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Barroco e Rococó na Arquitetura Religiosa do Rio de Janeiro Dra. Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira Universidade Federal do Rio de Janeiro Situada em posição estratégica na região centro-sul da extensa costa brasileira, num cenário de excepcional beleza natural e servida por um magnífico porto, a cidade do Rio de Janeiro estava por assim dizer naturalmente predestinada a de- sempenhar papel de primeiro plano nos destinos político e econômico do país. Esta vocação se confirma quando, com a descoberta do ouro e dos diamantes das Minas Gerais, transforma-se em porto escoadouro dos ricos minerais para o reino portu- guês e principal empório comercial da colônia. As invasões francesas de Duclerc em 1710 e Duguay-Trouin em 1711 consti- tuem o sinal externo da situação de relevância assumida pela cidade já nos primór- dios do século XVIII, situação esta formalizada administrativamente em 1748, com a unificação das capitanias meridionais em torno do governo de Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela. A transferência em 1763 da sede do governo dos vice-reis, até então situada em Salvador (Bahia) iria selar definitivamente o proces- so, consagrando a vocação do Rio de Janeiro como cidade capital, conservada até meados do século passado, com a construção de Brasília. As sucessivas dignidades de capital colonial (até 1822), imperial (até 1889) e republicana (até 1962) valeram ao Rio de Janeiro um extenso e variado acervo de monumentos civis e religiosos, nos quais os estilos arquitetônicos em voga no pa- norama europeu eram assimilados com rapidez, em obras de excelente qualidade, antecedendo manifestações similares em outras regiões do país. O Rio de Janeiro era e continua a ser, apesar de ter perdido a supremacia política, a cidade brasilei- ra mais aberta à absorção do novo. No período colonial que interessa diretamente ao nosso estudo, foi a primeira a assimilar a talha joanina e a pintura de perspecti- va de influência italiana, introduzidas na decoração da Igreja da Penitência, na terceira e quarta décadas do século XVIII, antecedendo em mais de 10 anos mani- festações similares na então capital Salvador e na opulenta capitania das Minas. O mesmo ocorreu com as plantas poligonais e curvilíneas, adotadas na arqui- tetura religiosa do Rio de Janeiro quase vinte anos antes de sua assimilação em Minas Gerais. Além de ter sido a cidade brasileira que registrou maior ocorrência

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Barroco e Rococó na Arquitetura Religiosa do Rio de Janeiro

Dra. Myriam Andrade Ribeiro de OliveiraUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Situada em posição estratégica na região centro-sul da extensa costa brasileira, num cenário de excepcional beleza natural e servida por um magnífico porto, a cidade do Rio de Janeiro estava por assim dizer naturalmente predestinada a de-sempenhar papel de primeiro plano nos destinos político e econômico do país. Esta vocação se confirma quando, com a descoberta do ouro e dos diamantes das Minas Gerais, transforma-se em porto escoadouro dos ricos minerais para o reino portu-guês e principal empório comercial da colônia.

As invasões francesas de Duclerc em 1710 e Duguay-Trouin em 1711 consti-tuem o sinal externo da situação de relevância assumida pela cidade já nos primór-dios do século XVIII, situação esta formalizada administrativamente em 1748, com a unificação das capitanias meridionais em torno do governo de Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela. A transferência em 1763 da sede do governo dos vice-reis, até então situada em Salvador (Bahia) iria selar definitivamente o proces-so, consagrando a vocação do Rio de Janeiro como cidade capital, conservada até meados do século passado, com a construção de Brasília.

As sucessivas dignidades de capital colonial (até 1822), imperial (até 1889) e republicana (até 1962) valeram ao Rio de Janeiro um extenso e variado acervo de monumentos civis e religiosos, nos quais os estilos arquitetônicos em voga no pa-norama europeu eram assimilados com rapidez, em obras de excelente qualidade, antecedendo manifestações similares em outras regiões do país. O Rio de Janeiro era e continua a ser, apesar de ter perdido a supremacia política, a cidade brasilei-ra mais aberta à absorção do novo. No período colonial que interessa diretamente ao nosso estudo, foi a primeira a assimilar a talha joanina e a pintura de perspecti-va de influência italiana, introduzidas na decoração da Igreja da Penitência, na terceira e quarta décadas do século XVIII, antecedendo em mais de 10 anos mani-festações similares na então capital Salvador e na opulenta capitania das Minas.

O mesmo ocorreu com as plantas poligonais e curvilíneas, adotadas na arqui-tetura religiosa do Rio de Janeiro quase vinte anos antes de sua assimilação em Minas Gerais. Além de ter sido a cidade brasileira que registrou maior ocorrência

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de plantas poligonais e curvilíneas, ao Rio revém também o mérito da criação das duas igrejas de maior complexidade e erudição nesses partidos. A primeira é a graciosa Nossa Senhora da Glória do Outeiro, única igreja no Brasil, cujo plano, composto de dois octógonos, acusa-se plenamente no exterior do edifício, onde os pontos de junção são destacados por esguias pilastras terminadas em coruchéus. A segunda, São Pedro dos Clérigos, tem planta em desenho trilolobado, resultante da agregação de capelas laterais semicirculares e torres redondas a uma nave elíptica procedida de um pórtico também semicircular. A Igreja da Glória data do período 1714-39 e a de São Pedro dos Clérigos de 1732-38, sendo o projeto de ambas atri-buído ao engenheiro militar José Cardoso Ramalho com base na tradição oral. Fi-nalmente foi ainda na talha das igrejas cariocas que as formas ornamentais do ro-cocó surgiram pela primeira vez (por volta de 1753), antecedendo também Minas Gerais em mais de uma década.

Entretanto, essa abertura à absorção de novidades artísticas, aliada a um de-senvolvimento político e econômico sem entraves que valeram ao Rio de Janeiro um dos mais ricos e diversificados acervos de monumentos nos períodos colonial e imperial, teve também seu lado negativo. A cidade capital parece ter encontrado ao longo processo histórico prazer análogo na incorporação do novo, e no descar-te do antigo, construções e destruições se alternando em ritmo perverso, como frente e verso de uma mesma moeda.

O Rio de Janeiro conheceu assim um número considerável de destruições alea-tórias de edificações importantes como o antigo Convento da Ajuda das irmãs claris-sas na região da Cinelândia (demolido em 1911), a igreja de Nossa Senhora do Parto na atual rua da Assembléia (demolida em 1930), e a antiga Sé e a Igreja dos Jesuítas, os monumentos fundadores situados no Morro do Castelo, que vieram abaixo com o desmonte do mesmo em 1922. E ainda, as quatro igrejas que tiveram o infortúnio de estar localizadas no futuro eixo da Avenida Presidente Vargas, aberta a partir de 1942. Entre as últimas a curvilínea São Pedro dos Clérigos, citada acima, uma das primeiras a ter tombamento individual, quando foi criada em 1937, a antiga diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN.

A riqueza econômica aliada ao conceito de progresso e a abertura à absorção do novo têm sido com frequência adversários da conservação do patrimônio histó-rico. No Rio de Janeiro além das destruíções citadas, foram causa de inúmeras re-formas e intervenções abrangentes para adaptação a novas necessidades, incluindo a incorporação de novas modas artísticas. Estas intervenções atingiram em maior ou menor ou menor grau, quase todas as igrejas do centro histórico da cidade, principalmente as mais recentes, construídas na segunda metade do século XVIII e princípios do XIX. Quatro aspectos s chamam particularmente a atenção: o altea-mento das paredes e abóbadas, o alongamento do espaço das capelas-mores com aprofundamento recorrente dos camarins dos retábulos, a abertura de clarabóias para iluminação e a complementação ornamental virtuosista das paredes.

É provável que o alteamento vertical das paredes e abóbadas com abertura de clarabóias e lunetas para iluminação e circulação do ar, tenha relação com as cam-panhas sanitaristas de fins do século XIX e princípios do XX, visando eliminar o fan-

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tasma da febre amarela e outras mazelas decorrentes da proverbial insalubridade da cidade. Já o aprofundamento dos camarins do retábulo principal e o preenchimento complementar de ornatos baseiam-se em motivos de ordem estética. O primeiro in-troduz um espaço secundário com iluminação própria, que enfatiza a importância visual do trono. Quanto aos acréscimos ornamentais, é evidente que os decoradores de fins do século XIX agiram sob inspiração do ecletismo, já que da complementação ornamental dos novos espaços criados com o alteamento das paredes, passaram sem transição aos espaços que os entalhadores setecentistas haviam deixado propositada-mente desornamentados, segundo a estética do contraponto entre cheios e vazios, própria do estilo rococó.

É bem possível que estas mudanças que descaracterizaram o aspecto original das igrejas cariocas tenham gerado um certo desinteresse dos arquitetos e historia-dores da arte pelo estudo da Arquitetura Religiosa do Rio de Janeiro, que pouco avançou após os estudos pioneiros de D. Clemente da Silva Nigra, Germain Bazin e Paulo Santos em meados do século passado. É entretanto inegável que apesar das numerosas perdas e reformas, o Rio de Janeiro ainda é detentor de um importante acervo de monumentos religiosos datando da época colonial, incluindo exempla-res paradigmáticos dos principais estilos de época que vigoraram no mundo luso-brasileiro dos séculos XVII ao XIX.

Das capelas mais antigas, correspondendo à fase do maneirismo seiscentista, pouca coisa se conservou. Bons exemplos destas construções primitivas subsistem entretanto do outro lado da baía, na cidade de Niterói, como a capela de São Lou-renço dos Índios, construída pelos jesuítas no século XVII. No Rio de Janeiro, se as fachadas do Mosteiro de São Bento e a da antiga capela da Santa Casa da Misericórdia, atual Nossa Senhora de Bonsucesso conservam ainda caracterís-ticas seiscentistas, as decorações internas já são mais tardias, ilustrando dife-rentes fases do barroco e do rococó. Observe-se que nesta última conservam-se os retábulos e as imagens da antiga igreja jesuítica demolida em 1922, que ocupam o espaço posterior, próximo à porta de entrada.

É preciso às vezes um pouco de imaginação para reconstituir mentalmente o as-pecto original das fachadas das igrejas cariocas refeitas na segunda metade do século XIX e primeira metade do XX, harmonizando-as com as decorações internas subsisten-tes do século XVIII. Felizmente o século XIX legou-nos uma vasta iconografia da cidade em desenhos e gravuras, como a de Hildebrandt, reproduzida no livro de Gilberto Ferrez que inclui duas vistas das fachadas do Convento de Santo Antônio e da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, antes da “modernização” dos frontões ao gosto neoco-lonial nos anos 20 do século passado. Conservou-se felizmente na igreja conventual o essencial da decoração da capela-mor datando da primeira fase da talha barroca luso-brasileira, conhecida pelo nome de nacional português. Além do belo retábulo de colunas torças e arquivoltas concêntricas destacando uma elaborada cartela com o emblema franciscano, doze painéis pictóricos ilustram na abobada e paredes late-rais cenas da vida de Santo Antônio, padroeiro da igreja. Observe-se que esta talha substituiu no período 1716-19 a primitiva do século XVII, à qual integrava-se a imagem seiscentista do Santo Antônio no trono do retábulo principal.

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Pertence também à primeira fase barroca da talha carioca, a suntuosa decora-ção da nave principal da igreja do Mosteiro de São Bento, com o revestimento total das pilastras e intradorso das arcadas, configurando uma verdadeira floresta de acantos, povoada por anjinhos e putti, com guirlandas de flores e cavalgando pás-saros fênix. O projeto desta decoração revém ao monge beneditino Frei Domingos da Conceição, natural de Matozinhos na periferia da cidade do Porto e é possível que date de cerca de 1680. Incluía pelo menos três retábulos e no principal deles tinham lugar as esplêndidas imagens dos fundadores São Bento e Santa Escolástica, juntamente com a padroeira Nossa Senhora de Montesserrate, executadas pelo mesmo monge escultor. Observe-se que, construída na primeira metade do século XVII e ampliada na segunda, a igreja do Mosteiro de São Bento teve inicialmente como o Convento de Santo Antônio, decoração interna em estilo maneirista, da qual ainda subsiste a extensa pintura da abóbada da nave em painéis geométricos, imitando embrechados de mármore.

Um século mais tarde, a igreja beneditina passaria por nova reforma decorati-va, desta vez restrita ao âmbito da capela-mor, inteiramente refeita no período 1788-1794, sob a direção do entalhador Inácio Ferreira Pinto. O bom senso aliado ao bom gosto, típicos da Ordem Beneditina, determinaram entretanto o douramen-to integral do retábulo e das molduras de talha enquadrando as pinturas, bem como a integração à nova decoração das imagens de Frei Domingos da Conceição e das pinturas de Frei Ricardo do Pilar.

Embora Germain Bazin tenha lamentado a perda de unidade da decoração in-terna de São Bento com a nova decoração rococó da capela-mor e arco-cruzeiro, uma análise do conjunto da ambientação decorativa de São Bento revela ao contrá-rio, integração harmoniosa não de duas mas de três fases ornamentais distintas, o maneirismo, o barroco e o rococó, todas com grande peso visual. Vemos portanto que das fases ornamentais da talha luso-brasisleira apenas o joanino não figura em São Bento, uma vez que os retábulos laterais da nave, já configuram claramente o Regência francês que antecedeu o rococó.

Fazemos aqui um parêntesis para lembrar que a conjugação de estilos ornamen-tais diferentes em uma mesma igreja não é apanágio dos decoradores do Mosteiro de São Bento nem das igrejas cariocas obcecadas pela incorporação do novo. Trata-se de procedimento habitual nas decorações barrocas luso-brasileiras, raramente con-cluídas nos prazos previstos nos contratos, tanto em virtude de sua magnitude quanto pelo fato de serem obras coletivas, dependendo de recursos de uma comunidade para financiá-las. São portanto raras as igrejas coloniais brasileiras construídas e decoradas no período de vigência de um único estilo ornamental, e apresentando em consequ-ência total unidade estilística. O que reforça o interesse da igreja da Ordem Terceira da Penitência, anexa ao Convento de Santo Antônio, cuja esplendorosa talha doura-da foi realizada em tempo recorde, entre 1723 e 1740 pela dupla de entalhadores portugueses Manuel de Brito e Francisco Xavier de Brito.

A decoração da Penitência é geralmente considerada como uma das manifes-tações de maior qualidade e homogeneidade estilística no mundo luso-brasileiro do chamado estilo D. João V ou joanino, de influência italiana. A talha dourada

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que recobre integralmente toda a superfície das paredes, integra nas abóbadas da nave e da capela-mor pinturas de perspectiva ilusionista segundo os protótipos elaborados em Roma, gênero este de pintura que faz nesta igreja sua primeira apa-rição no Brasil. No ano de 1732, foi com efeito assinado um primeiro contacto com o pintor Caetano da Costa Coelho relativo ao forro da capela-mor e cinco anos mais tarde um segundo contrato, relativo à pintura da nave. É entretanto provável que Costa Coelho tenha tido ajudantes na obra, já que não há registros de obras similares anteriores ou posteriores desse pintor, cuja especialidade nomeada na documentação de época era a de dourador.

É curioso registrar que após este excepcional conjunto, que inclui a capela de Nossa Senhora da Conceição no Convento de Santo Antônio anexo, nenhuma ou-tra igreja do Rio de Janeiro apresenta talha do estilo D. João V e pinturas de pers-pectiva ilusionista nos forros. Sabemos que o escultor Francisco Xavier de Brito passou em seguida para Minas Gerais, onde deixaria na cidade de Ouro Preto, outra obra-prima do estilo na talha da capela-mor da matriz do Pilar. Mas será que Manuel de Brito assim como os autores das pinturas de perspectiva dos forros não tiveram mais encomendas do porte das realizadas para a ordem franciscana?

Uma hipótese que pode ser levada em consideração é a da perda de retábulos joaninos em monumentos hoje desaparecidos, como o Seminário de São José e o Con-vento da Ajuda, ambos construídos em meados do século XVIII, logo após a Igreja da Penitência. É lícito também supor um projeto de talha joanina para a Igreja da Glória do Outeiro, harmonizado ao estilo dos azulejos do período 1735-40 que decoram as paredes da nave. E também para a igreja de São Pedro dos Clérigos, que apesar de construída no momento de apogeu deste estilo de talha acabou, como a Glória, sendo decorada tardiamente no final da era rococó. Mas por outro lado, pode-se também supor que a absorção precoce do rococó a partir de cerca de 1750, na talha das igrejas cariocas tenha freado o desenvolvimento normal do joanino, ao oposto do ocorrido em Minas Gerais, onde por volta de 1760 ainda se contratavam obras capitais neste último estilo como a capela-mor da Matriz de Antônio Dias em Ouro Preto.

Introduzido a partir dos anos 50, o rococó dominou a talha das igrejas do Rio de Janeiro durante toda a segunda metade do século XVIII, desenvolvendo aspectos espe-cíficos em grau suficiente à caracterização de uma escola regional, a exemplo das es-colas brasileiras de Minas Gerais e Pernambuco e das portuguesas do Minho, Porto e outras congêneres. Entretanto, ao oposto das escolas mencionadas, o rococó religioso carioca manteve-se restrito ao espaço interno das igrejas, não atingindo a volumetria externa das igrejas e a decoração das fachadas, em torno das portadas, frontões e en-quadramentos de vãos.

A razão principal foi sem dúvida a concorrência do chamado estilo pombalino que na arquitetura religiosa filia-se ao barroco tardio das igrejas construídas em Roma no século XVIII, adotado na arquitetura religiosa de Lisboa pós-terremoto. Conseqü-ência desta influência foram, além de fachadas diretamente alinhadas no modelo lisboeta como as de Santa Cruz dos Militares, Ordem Terceira do Carmo e São Fran-cisco de Paula, a volta aos partidos retangulares com a compartimentação vertical do espaço interno por pilastras monumentais engajadas nas paredes e continuadas visu-

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almente nas abóbadas. Observe-se que esta estrutura compartimentada inviabilizou tanto as pinturas de perspectiva nas abóbadas, quanto os revestimentos azulejares nas paredes, ambos desenvolvidos em superfícies continuas como as que serviram de suporte às decorações do rococó mineiro e pernambucano no mesmo período.

As decorações do rococó religioso do Rio de Janeiro tem portanto aspectos específicos que as diferenciam das congêneres em Minas Gerais e Pernambuco, os mais evidentes sendo a referida ausência de pinturas perspectivistas nas abóbadas e o uso de revestimentos integrais ou parciais de lambris de madeira pintados de cores claras sobre os quais são aplicados os ornatos de talha dourada. Condiciona-da aos painéis previstos nas paredes e tetos abobadados, as pinturas são ornadas com ricos emolduramentos ornamentais, que conferem aos ambientes um aspecto luxuoso e intimista, como nas decorações civis do estilo Luís XV.

Tendo em vista as recorrentes reformas e intervenções da segunda metade do século XIX, na espacialidade interna das igrejas o estudo do rococó religioso do Rio de Janeiro exige como medida preliminar a análise de ambientes ornamentais que não tenham sofrido alterações nesse período, ou que pelo menos tenham mantido o essencial de suas características. No primeiro caso situam-se três capelas de di-mensões restritas, que parecem ter escapado das reformas por se tratar de capelas internas, utilizadas para fins específicos por um grupo reduzido de fiéis. A mais antiga é a Capela das Relíquias no Mosteiro de São Bento, datada do período 1760-1769, cuja atribuição ainda não foi esclarecida com segurança, sendo conhecido apenas o autor das belas pinturas das paredes laterais, José de Oliveira Rosa (? -1769), um dos mais importantes da escola fluminense. As duas outras são as cape-las dos noviciados nas igrejas das Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco de Paula, documentalmente atribuídas a Valentim da Fonseca e Silva (? – 1819), co-nhecido como Mestre Valentim.

A mais requintada é a capela do Noviciado da Ordem Terceira do Carmo, execu-tada no período 1773-1780, primeira obra datada de Mestre Valentim no campo da talha religiosa, trata-se de um pequeno salão de planta retangular e teto abobadado, inteiramente revestido de talha dourada, cuja disposição é comandada pelo ritmo dos emolduramentos, enquadrando amplos painéis pictóricos. A parede do fundo é ocupa-da pelo retábulo, cercado de elementos ornamentais em composição bem mais livre e solta, do que nas paredes laterais e abóbadas. O desenho do coroamento do retábulo revela entretanto, algumas hesitações, como por exemplo na confusa duplicação das volutas nos limites sinuosos laterais.

Estas hesitações desaparecem nos retábulos executados posteriormente pelo artista nas igrejas da Conceição e Boa Morte, São Pedro dos Clérigos (conhecidos por fotografias do Arquivo do IPHAN) e Capela do Noviciado de São Francisco de Paula, esta última já da primeira década do século XIX. Características permanen-tes em todos esses retábulos são o coroamento em frontão e o emprego de colunas torças salomônicas como elementos de suporte, colunas essas que Mestre Valentim e Inácio Ferreira Pinto utilizaram em todos os retábulos que executaram posterior-mente, por motivos que ainda não foram elucidados com precisão.

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Fazemos aqui outro parêntesis para algumas considerações sobre a aparente contradição estilística da manutenção de colunas torças, herdadas da fase joanina, na talha carioca do período rococó. Observe-se primeiramente que o uso dessas colunas, tidas como uma espécie de marca registrada do rococó carioca, não foi exclusivo, concorrendo com a tipologia das colunas retas típicas do rococó, em-pregadas na talha de Minas Gerais e Pernambuco no mesmo período. Introduzidas por Mestre Valentim na citada capela do Noviciado da Ordem Terceira do Carmo na década de 1770, dominaram a talha da cidade por cerca de duas décadas, vol-tando a prevalecer após 1790, as colunas retas da fase inicial do rococó carioca.

É tempo de passar à análise das duas igrejas mais importantes para o estudo do rococó carioca, a Matriz de Santa Rita e a antiga igreja conventual do Carmo, ane-xa à Ordem Terceira. A primeira pelo seu pioneirismo, tendo sido a primeira a introduzir o rococó no contexto carioca, adotado nos retábulos da nave a partir de 1753. A segunda pelo requinte e abrangência de sua decoração em talha dourada, executada por Inácio Ferreira Pinto, nos anos 1780, na mesma época em que trabalhou na capela-mor do Mosteiro de São Bento. Lembramos que am-bas chegaram aos nossos dias sem alterações de grande porte, o que é sem dúvida excepcional em se tratando de Rio de Janeiro.

O elemento de maior impacto visual na decoração de Santa Rita é o arco-cru-zeiro monumental, que faz a transição entre os ambientes da nave e da capela-mor. Revestido em todas as faces de apliques ornamentais de talha dourada sobre fundo claro, tem como motivo central uma elegante tarja sinuosa, ladeada por duas aletas em rocalhas. Esta requintada composição ornamental, seria repetida nos arcos-cru-zeiros de várias outras igrejas, notadamente a Mãe dos Homens, Lapa dos Merca-dores, Carmo da Antiga Sé, Ordem Terceira do Carmo e Santa Cruz dos Militares, caracterizando um dos elementos mais típicos do rococó do Rio de Janeiro.

Inseridos em arcadas rasas, os retábulos da nave, tem como elementos de su-porte colunas estriadas de fuste reto conjugadas a esguios quartelões e coroamento em frontão sinuoso ladeado por anjos acima dos fragmentos de frontões curvos. Embora esta estrutura reproduza uma tipologia muito comum na região de Lisboa, a composição ornamental do remate externo da arcada, com tarja e aletas laterais foi sem dúvida elaborada no Rio de Janeiro.

O modelo dos retábulos da nave de Santa Rita foi retomado em várias outras igrejas como a Glória do Outeiro, a Lapa dos Mercadores e possivelmente Santa Cruz dos Militares, tendo entretanto sofrido importantes modificações na segunda metade do século XIX nas duas últimas. Permaneceu na talha do rococó carioca até época bem tardia, como sugerem o belo conjunto do Convento de Santa Teresa que poderia ainda datar de fins do século XVIII ou o da Igreja de Santa Luzia certa-mente já da primeira metade do XIX.

A suntuosa ornamentação da Igreja do Carmo da Antiga Sé, atualmente em restauração, é sem dúvida o exemplo de maior abrangência do rococó carioca. Transformada em Capela Real quando da transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, funcionou sucessivamente como Capela Imperial e Catedral Me-

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tropolitana (Sé) até o ano de 1976. Nas décadas finais do século XIX sofreu altera-ções que felizmente não chegaram a comprometer a espacialidade interna original, notadamente, o aprofundamento das arcadas dos retábulos laterais, configurando capelas independentes.

A organização decorativa do espaço interno obedece ao princípio, recorrente no rococó carioca, da compartimentação das paredes por pilastras engajadas, cujos limites são continuados na abóbada. Sua função entretanto neste caso meramente ornamental, já que são indicadas apenas por uma moldura na parte inferior entre as arcadas substituídas por medalhões ovais com pinturas na região superior. É provável que toda esta zona superior, que pesa excessivamente na ambientação decorativa da igreja, tenha sido reformulada quando o antigo templo carmelita foi adaptado para funcionar como Capela Real, pois é bastante conhecida a função social exercida pelas tribunas, destinadas às “damas da corte” no espaço da nave e à Família Real e Corpo Diplomático no da capela-mor.

Embora em menor escala, do que as duas igrejas que acabamos de descrever, três outras igrejas do Rio de Janeiro conservam ainda elementos básicos da decora-ção rococó original, as de Nossa Senhora Mãe dos Homens, Santa Cruz dos Militares e Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. Apesar das pesadas repinturas que masca-ram os contornos dos ornatos de talha, a Mãe dos Homens é ainda uma pequena jóia do rococó carioca e talvez o exemplo mais significativo do estilo pessoal de Inácio Ferreira Pinto, que nela trabalhou de forma mais livre do que nas igrejas conventuais do Carmo e São Bento, por se tratar de uma igreja de irmandade.

O espaço centralizado da nave poligonal não foi submetido à habitual com-partimentação em pilastras, sendo modulado apenas pelas arcadas do arco-cruzei-ro e do coro no sentido longitudinal e dos retábulos nos eixos transversais. Os quatro ângulos são ocupados por portas encimadas por tribunas e óculos em har-moniosa composição vertical que existiu também na demolida São Pedro dos Clé-rigos. A composição ornamental do arco-cruzeiro, com suas típicas aletas, é repe-tido no arco do coro e retomada em escala menor no remate das tribunas, o que confere grande harmonia a todo o conjunto de talha. Os retábulos e púlpitos da nave, fruto de uma intervenção de Antônio de Pádua e Castro na segunda metade do século XIX, não chegam a comprometer a ambientação decorativa original.

A principal diferença entre as repinturas que recobrem a policromia original da Mãe dos Homens e das duas outras igrejas citadas é que são mais evidentes e grosseiras, datando do século XX e não do anterior. Isto porque, tanto a Santa Cruz quanto a Lapa dos Mercadores sofreram importantes acréscimos ornamentais em meados do século XIX sob a direção de Pádua e Castro, que demandaram nova pintura geral da talha.

Na Lapa dos Mercadores, esses acréscimos atingiram sobretudo a zona supe-rior das paredes da nave oval, onde foi elevado um segundo frontão com relevos figurativos acima das arcadas dos retábulos para adequá-los à verticalização do espaço. Na Santa Cruz dos Militares, ao invés de elevar as pilastras até a nova ci-malha sobre a qual repousa a abóbada, a opção foi manter a antiga cimalha, crian-

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do um segundo andar bem definido com janelas abertas em tribunas substituindo as usuais lunetas. Condicionados a espaços precisos, os acréscimos ornamentais do século XIX podem entretanto ser facilmente identificados em ambas, o que não ocorre com as igrejas das Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco de Paula, já citadas nesse estudo em virtude das fachadas pombalinas e capelas internas do noviciado decoradas por Mestre Valentim.

Na Ordem Terceira do Carmo a sobrecarga ornamental é de tal ordem que mais adequado seria analisá-la dentro da produção do artista Antônio de Pádua e Castro (1804-1881) da época do ecletismo, já que até mesmo um olhar experimen-tado tem dificuldade em identificar remanescentes da decoração rococó original na profusão de ornatos que recobrem integralmente as paredes da nave. O mesmo pode ser dito de São Francisco de Paula, apesar da monumentalidade neoclássica conferida ao conjunto pelas possantes colunas coríntias do projeto apresentado em 1855 pelo italiano Mário Bragaldi. Interessante notar que a Irmandade preferiu este projeto ao apresentado por Pádua e Castro, por julgá-lo em maior harmonia com o retábulo de Mestre Valentim executado na capela-mor. Que acabou por seu turno sendo “reformulado” para adequação à decoração da nave, contratada e executada pelo mesmo Antônio de Pádua e Castro.

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Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira - 1361

Convento de Santo Antonio e Ordem Terceira de São Francisco da Penitênica com chafariz da Carioca – E. Hildebrandt, 1844.

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1362 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

Igreja da Ordem Terceira da Penitência / Barroco joanino.

Igreja de Santa Rita / Rococó.