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NA “DOLORIDA MEMÓRIA”: UMA ANÁLISE DO EU LÍRICO NEGRO
NO POEMA CERTIDÃO DE ÓBITO DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Pedro Henrique Braz (UNESPAR/Campo Mourão)
Sandro Adriano Silva (UFSC/UNESPAR)
Resumo
A obra poética de Conceição Evaristo destaca-se pela rica linguagem, a partir de um eu lírico negra que busca seu lugar de fala feminina e emancipação identitária. Autora de destaque na literatura brasileira contemporânea, apresenta uma dicção poética que se faz “escrevivência”, num misto de liricidade, manifesto e resistência, importantes constituintes da literatura de expressão negro-brasileira contemporânea. Em Poemas da recordação e outros movimentos (2017), o eu lírico de Conceição perpassa por diferentes temáticas da sociedade brasileira, entre as quais, destacam-se as questões étnico-raciais, tão emergenciais à condição dos negros e negras no Brasil. Esta comunicação propõe uma análise interpretativa do poema Certidão de óbito, que integra a citada obra, atendendo às relações entre forma e conteúdo que conduzem a memória histórica, social e individual, ao demarcar o posicionamento da subjetividade lírica na reflexão das relações raciais do passado e do presente na vida do negro(a) na sociedade brasileira. Palavras-chave: Literatura negro-brasileira; Poesia; Conceição Evaristo. Introdução
Entre as diversas discussões sobre literatura no Brasil, apenas
recentemente há uma atenção voltada ao conceito terminológico de literatura
negra, que vem dando seus primeiros passos num meio acadêmico no qual
ainda prevalece a valoração de escritores não-negros, apontando para um
apagamento de outros sujeitos e escritas, como a das minorias étnico-raciais
e sexuais, o que implica a consolidação de um cânone literário excludente,
racista e misógino.
Uma das consequências da representação (ou não representação) do
negro na literatura e da própria ideia de uma literatura negro-brasileira – para
não se falar em outras literaturas e formas de arte, como a teledramaturgia –
pode ser avaliada lançando-se um olhar sobre o estatuto do personagem.
Quando não ausente, apagado ou colocado em mera posição de figurante, o
negro e a negra são apresentados por meio de estereótipos eróticos e
sexistas, principalmente as mulheres negras. Um dos exemplos já na
literatura canônica pode ser tomado Rita Baiana, personagem negra de O
Cortiço (1880), de Aluísio Azevedo, com seu caráter inigualável: “ninguém
como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles
movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser
sem o cheiro que a mulata soltava de si” (AZEVEDO, p.59, 1997).
Este imaginário sobre o negro, resultado das relações estruturais de
base escravagista, patriarcal e latifundiária, influenciou diretamente na
consolidação do cânone literário brasileiro, que, ao reproduzir a mentalidade
colonial, ainda mais rígida nos primeiros anos pós-abolicionistas, com a quase
total exclusão do negro aos bens culturais, tornou desafiadores o surgimento
e o reconhecimento de autores e autoras afro-brasileiros. Em meio a essa
realidade, o(a) escritor(a) negro(a) deveria optar entre deixar de lado as
origens para melhor ser aceito na sociedade, ou ir em contrapelo à
marginalidade imposta, manifestando em resistência, pela escrita, como fizera
o poeta Luiz Gama. (BROOKSHAW, 1986). Também jornalista e advogado,
Gama lutou em defesa de sua poesia e das causas do povo negro no Brasil,
“fez abertamente referência a si próprio como negro, dirigindo sua crítica a
todos os descendentes afro-brasileiros que tentavam escapar da sua origem
ocultando-se atrás de uma máscara de falsa brancura” (BROOKSHAW,
p.164, 1986). Nesse cenário, também é essencial destacar a poeta Maria
Firmina dos Reis, professora e autora do primeiro romance de autoria
feminina negra na América Latina, e primeiro romance abolicionista, Úrsula
(1859), e da expressiva subjetividade negra feminina nos poemas de “Cantos
à beira-mar” (1871).
A busca pelo reconhecimento da literatura negro-brasileira se estende
pelo século XX e vem até os dias de hoje, compreendida enquanto
resistência, na sua característica de manifesto de um povo que foi silenciado
por séculos, além de pôr em evidência o (a) negro (a) em sua realidade
cotidiana, violenta e excludente.
Nessa perspectiva situa-se a obra de Conceição Evaristo, que tendo
entrado na cena literária brasileira em 1990, na série Cadernos Negros,
apresenta uma galeria de personagens na prosa e eu lírico na poesia como
signos de um projeto literário e político no qual a representação da identidade
negra assume o protagonismo na afirmação de identidade e pertencimento.
As diferentes temáticas tratadas em Poemas da recordação e outros
movimentos, como a religiosidade, família, relações sociais e constituição do
sujeito negro, direcionam um teor crítico, histórico, reflexivo e a predileção por
um eu negro feminino contribui “com a rescisão de um passado de
representações figuradas pela depreciação de atributos étnico-raciais e de
gênero, em um tom denunciativo e de dessilenciamento de vozes literárias
negras[...].” (SILVA, 2011, p.101).
O poema, uma certidão de ossos e lágrimas
Neste trabalho, nos atentamos especificamente à maneira como as
reflexões em torno das questões raciais enformam esteticamente o poema
Certidão de óbito, evidenciando seu conteúdo imersivo, repleto de
significações histórica e cujo legado na atualidade faz do poema uma
construção de linguagem e discurso sensivelmente tocantes ao leitor e à
leitora. Consideremos o poema:
Os ossos de nossos antepassados colhem as nossas perenes lágrimas pelos mortos de hoje. Os olhos de nossos antepassados, negras estrelas tingidas de sangue, elevam-se das profundezas do tempo cuidando de nossa dolorida memória. A terra está coberta de valas e a qualquer descuido da vida a morte é certa. A bala não erra o alvo, no escuro um corpo negro bambeia e dança. A certidão de óbito, os antigos sabem, veio lavrada desde os negreiros. (EVARISTO, 2017, 17).
Em tom memorialístico, o eu lírico revisita a imagem do corpo como
metáfora da violência histórica da escravatura e relaciona-a à realidade do(a)
negro(a) brasileiro(a). As figuras de linguagem, como a hipérbole em “perenes
lágrimas” e a personificação em “dolorida memória” exprimem a angústia do
eu lírico negro que vive com a “certidão de óbito” desde a escravidão, que se
mantém pelo reflexo na (ainda) injusta e desigual sociedade brasileira, palco
cotidiano do homicídio de homens e mulheres negras. No poema, resgata-se
a narrativa dos antepassados escravizados, que comparecem em imagens
como “negras estrelas tingidas de sangue”, tornando possível a compreensão
do árduo passado e da custosa ‘liberdade’, que muitas vezes levou à morte, e
que responde na atualidade pela metáfora em “um corpo negro bambeia de
dança”, expressando dramaticamente uma liberdade que “dança”; entretanto,
o descontrole “bambeia”, simulando a bala do tiro certeiro. A sensibilidade de
Conceição elabora uma crítica aguda à sociedade contemporânea brasileira,
que está “coberta de valas”, numa alusão nada hiperbólica, antes realista, ao
genocídio negro.
Valendo-se do pronome de terceira pessoa, o eu poético dialoga com o
leitor em “nossos antepassados”, possibilitando um ritmo de posicionamento,
afirmando as origens e identidade das vozes que ecoam na subjetividade
lírica. (CUTI, 2010, p.93).
Na poética e na política que se fazem afirmativas na poesia negra de
Conceição Evaristo, torna-se imprescindível reconhecer historicamente e dar
voz ao corpo negro que sofreu objetificação como prática da ideologia
patriarcal (BONNICI, 2007, p.192). Na literatura negro-brasileira o corpo
significa “um complexo discursivo, no qual “os elementos corporais que são
usados para discriminar são transformados em recursos linguísticos”( PAULA,
2012, p.3), a partir de uma ‘força motriz, que se faz palavra e cria mundos
capazes de dar a si mesma uma nova identidade’”, na concepção de Octavio
Paz (1982, p. 234).
Considerações finais
A sensibilidade da autora denota uma crítica à sociedade
contemporânea e à ideia de um cânone exclusivista. Conceição transmite
desalento pelas imagens no poema, faz da poesia seu protesto, sua
“escrevivência” (MACHADO, 2014), como “a possibilidade de
experimentarmos sensações e emoções de que as personagens ou ‘eus’ lírico
são dotados na obra” (CUTI, 2010, p.93). Elas concedem-nos, nas palavras
de Paz, como “conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz
de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este
mundo [...]” (PAZ, 2012, p.21).
Referências AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. Ed. São Paulo: Ática, 1997.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá:
Eduem, 2007.
BROOKSHAW, D. Raça & cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1983, v. 7.
CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. Ed. Rio de
Janeiro: Malê, 2017.
MACHADO, Bárbara Araújo. Escre(vivência): a trajetória de Conceição Evaristo. História
oral, v. 17, n. 1, p. 243-265, 2014
PAULA, Claudemir da Silva. Corpo e corporeidade na poesia de escritoras afro-brasileiras.
Anais do 3º SILIC – Simpósio de Literatura Brasileira contemporânea. O regional como
questão na contemporaneidade: olhares transversais. Disponível em:
https://docplayer.com.br/17660361-Corpo-e-corporeidade-na-poesia-de-escritoras-afro-
brasileiras.html. Acesso em 19 mar. 2019.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. São Paulo: Nova Fronteira, 1982.
SILVA, Ana Rita Santiago da. Da literatura negra à literatura afro-feminina. Via
Atlântica, Cachoeira, n. 18, p. 91-102, 30 dez. 2010. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50743/54849. Acesso em 19 mar. 2019.