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48|Jan/Mar 2008|JJ MEMÓRIA Na morte de Homero Serpa O recente falecimento de Homero Serpa, tal como tem acon- tecido com outras importantes figuras do nosso jornalismo das últimas décadas, passou praticamente despercebido nos media – jornais, rádio, televisão. E, no entanto, para além das suas qualidades próprias, ele pertenceu a uma geração que, nos anos 50/60 do século passado, nas páginas de A Bola, deu um contributo decisivo para a criação do moderno jornalismo desportivo português – uma geração que, na esteira do patriarca e pioneiro que foi “mestre” Cândido de Oliveira, integrava nomes como Vítor Santos, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Afredo Farinha e outros. A homenagem que neste número prestamos a Homero Serpa, através de uma entrevista pela primeira vez publicada, é enriquecida pela crónica de seu filho Vítor, actual director de A Bola. Para a JJ, constitui objectivo permanente, sempre que isso nos seja possível, recuperar momentos decisivos da história do jornalismo e dos jornalistas portugueses e manter viva a memória dos nossos melhores.

Na morte de Homero Serpa - clubedejornalistas.pt · acabado de passar pela guerra, e era um problema quando havia tentativas de greve e enchiam ali o arco, na Rua Primeiro de Maio,

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MEMÓRIA

Na morte deHomero Serpa

O recente falecimento de Homero Serpa, tal como tem acon-tecido com outras importantes figuras do nosso jornalismodas últimas décadas, passou praticamente despercebido nosmedia – jornais, rádio, televisão. E, no entanto, para alémdas suas qualidades próprias, ele pertenceu a uma geraçãoque, nos anos 50/60 do século passado, nas páginas de ABola, deu um contributo decisivo para a criação do modernojornalismo desportivo português – uma geração que, naesteira do patriarca e pioneiro que foi “mestre” Cândido deOliveira, integrava nomes como Vítor Santos, CarlosPinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Afredo Farinha eoutros. A homenagem que neste número prestamos aHomero Serpa, através de uma entrevista pela primeira vezpublicada, é enriquecida pela crónica de seu filho Vítor,actual director de A Bola. Para a JJ, constitui objectivo permanente, sempre que issonos seja possível, recuperar momentos decisivos da históriado jornalismo e dos jornalistas portugueses e manter viva amemória dos nossos melhores.

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Esta entrevista efectuou-se em 26 de Dezembro de 2005, no âmbitodo projecto Memórias Vivas do Jornalismo, desenvolvido no quadrodo Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ). O facto de ainvestigação abranger a segunda metade dos anos 50 e os anos 60 doséculo passado, justifica o facto de o diálogo ter incididofundamentalmente sobre este período.

Texto Fernando Correia e Carla Baptista Fotos Alexandra Silva e Arquivo de A Bola

Entrevista com Homero SerpaA Bola era muitas vezeschamada a “bíblia”...

Como é que foi parar ao jornalismo?

Primeiro, por vocação. Sempre tive, desde garoto, gostoem escrever. Também gostava muito de ler. Escrevia paramuitos lados, por exemplo para o Mosquito, que era umjornal infantil. Tive sempre essa tendência, talvez tenhavindo do meu avô, que foi um poeta popular republicano,e tinha uns versos muito simples. Deve ter sido a partirdessa veia paterna, era o pai do meu pai. Entretanto, tam-bém gostava muito do desporto, fui praticante de nataçãono Belenenses, durante uns 16 anos. A certa altura fun-dou-se o Jornal do Belenenses e pediram-me para eu es-crever qualquer coisa para lá. Eu, com o meu espírito inde-pendente, não escrevi sobre o Belenenses, e preferi abor-dar um tema que na altura estava na ordem do dia, a tra-vessia do Nilo, conseguida pelo Baptista Pereira. Maistarde, ele haveria de ganhar a travessia da Mancha. Aspessoas no Jornal do Belenenses ficaram um bocado intri-gadas, não percebiam porque é que eu não escrevia sobreeles, se era um jornal de clube...

Começou logo, portanto, no jornalismo desportivo...

Foi. O Jornal do Belenenses começou a utilizar-me commais frequência, com o Alberto Freitas e outros, e às tan-tas o Mário Sília, que também era dos jornais e cá do nossomeio, escreveu uma cartinha ao Vítor Santos, chefe deredacção da Bola, a dizer que havia um tipo que tinhajeito, e que era engraçado se me pudessem aproveitar. E apartir daí fui para A Bola, em 1955. Comecei como toda a

gente começava, como colaborador, que era a escola dojornalismo. Na colaboração é que as pessoas se iamdefinindo como possíveis redactores.

Não entrou propriamente no quadro, colaborava quando eles

pediam alguma coisa?

Realmente era assim. Ao princípio eles não pediam muitacoisa, mas a partir de certa altura passei a ser um colabo-rador quase redactor, porque era utilizado todos os dias.Entrei como redactor em Julho de 1965. Isto quer dizer oseguinte: não havia escolas de jornalismo, a verdadeiraescola era a colaboração. A pessoa entrava, se tinha jeitocontinuava, se não tinha... E íamos por aí fora até chegar aredactor em part-time. Foi o que me aconteceu, fui redac-tor em part-time durante um tempo. Entretanto eu acu-mulava (ninguém podia viver das colaborações, claro) comoutro emprego, era funcionário de escritório da Carris,onde fui subchefe do serviço contencioso, até que se criouo departamento de relações públicas e eu passei para aí.

Um dos meus cargos era ser director da revista LisboaCarris. Mudei aquilo, que era uma coisa elitista e passou a seruma coisa muito mais popular, com a colaboração dos miú-dos, dos filhos dos empregados, dei voz aos operários, aoscondutores dos eléctricos, e dos autocarros, mais tarde.Ganhei uma certa simpatia e fui adquirindo experiência.Mas também me sujeitei a coisas um bocado vis, comochegar à minha secretária de manhã e ter as gavetas arrom-badas, porque tipos da PIDE era o que não faltava dentro da

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companhia. Eram empregados da empresa e simultanea-mente agentes da PIDE, inspectores inclusivamente.Conheci três, pelo menos. Essa gente não tinha escrúpulosnenhuns, abriam as gavetas, vas-culhavam papeis... Certa vezpubliquei uma reprodução deum artigo que o República es-creveu, sobre a coisa o maisinocente da vida que era dar pri-mazia aos autocarros e aos eléc-tricos para se transportar e deixaros carros em casa – como se vê,isto já é um problema muito anti-go. No dia seguinte tinha a gave-ta arrombada. Nunca a adminis-tração me disse que eu não podiafazer isto ou aquilo. A administração era inglesa, aliás, tinhaacabado de passar pela guerra, e era um problema quandohavia tentativas de greve e enchiam ali o arco, na RuaPrimeiro de Maio, para lá do gradeamento, das instalaçõesda companhia em Santo Amaro. Podia estar lá a bandeira, ainglesa, que os policias não respeitavam, entravam por alidentro e batiam e dispersavam as pessoas. A administraçãoda companhia não era obrigada a aceitar, mas não tinha sim-patia por essas situações.

Conseguia conciliar os dois empregos, quando no jornal lhe

começaram a pedir mais coisas?

Muito dificilmente. A certa altura tive que optar. Pensava:«Às vezes estou aqui dentro do escritório, e começo a pen-sar que tenho que ir fazer uma reportagem, com fulano ou

sicrano, e esta gente tem umhorário, eu aqui não consigocumprir, como é que eu possofazer...» Estava no jornal e eramsete ou oito horas da noite, jáde instalações fechadas, e eutinha que voltar ao meu gabi-nete na Carris, porque tinhadeixado coisas suspensas.Aquilo estava-se a tornar, paraalém de incomportável, umbocadinho desonesto. Foi naaltura em que o director do jor-

nal, o Dr. Vicente Melo, disse que aquilo não era vida, econvidou-me a ir para lá.

Se bem que na altura fosse costume os jornalistas terem

duplo emprego...

Era normalíssimo, principalmente no jornalismo desporti-vo. Desde os seus inícios, o jornalismo desportivo não eraconsiderado bem jornalismo. Nós nem éramos doSindicato de Jornalistas, considerávamo-nos autores depublicações periódicas. E havia até nos que trabalhavamnos jornais diários umas certas más vontades. Eu nuncapercebi bem porquê. Em compensação, também havia

“Não tenho dúvida nenhuma de queo jornalismo desportivo é feito de

ídolos. Com o Nicolau e o Trindadefoi nos anos 20. Mas isso que

aconteceu então projectou-se atravésdos anos. Ainda hoje parte dapopularidade do Benfica e do

Sporting é derivada dessa luta deídolos, que veio por ai fora.”

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muitas amizades entre uns e outros, de maneira que passeibem esse período conturbado, em que um tipo é e não é.Portanto, saí da companhia onde tinha um bom lugar eonde gostavam de mim. Em parte, foi um salto no escuro.Mas a partir do início dos anos 60 não há dúvida que A Boladeu um grande salto, começam a subir as tiragens e melho-ram as condições dos que lá trabalhavam. Em grande parte,por influência das vitórias internacionais do Benfica. Antes,tinha sido ao contrário: um dos motivos por que o clubechamado Benfica, nos seus primórdios, dá um salto qualita-tivo, é exactamente quando os jornais da época, os Sports, oSéculo, o Diário de Notícias, embora começassem timida-mente, com pequenas notícias, foram alargando a cobertu-ra dos clubes e das modalidades.. Os jornais desportivosnão eram muito qualificados, mas a verdade é que tambémnão havia grandes motivos, porque de facto o desportoportuguês foi sempre muito medíocre.

Portanto, acha que as vitórias do Benfica na Taça dos

Campeões Europeus de Futebol deram um impulso decisivo

na imprensa desportiva?

Antes, houve outra coisa fundamental, que aliás lançou oBenfica e o Sporting, mas mais o Benfica: os duelos entre oJosé Maria Nicolau e o Trindade nas Voltas a Portugal debicicleta. Os jornais pegaram muito no ciclismo porqueachavam que este desporto era uma coisa quase heróica, eos leitores gostam de heróis. E de certa forma era heróico,uma pessoa ir de Lisboa ao Porto a pedalar pelos lamaçais,parar nas tascas e não haver abastecimentos... O públicointeressou-se muito pelo ciclismo, desde o Bento Pessoa,que ganhou provas lá fora, foi um homem verdadeiramentesensacional. Os jornais publicavam fotografias dos tiposcheios de lama, e isso deu um grande impulso ao ciclismoem Portugal. Os duelos do Nicolau com o Trindade forammotivo de grande destaque nos jornais. Naquela alturahavia, para além do obscuran-tismo, o analfabetismo, e as pes-soas agarravam-e aos ídolos,sempre quiseram ídolos! E aprocura dos jornais aumentou.

Não tenho dúvida nenhumade que o jornalismo desportivo éfeito de ídolos. Com o Nicolau e oTrindade foi nos anos 20. Mas issoque aconteceu então projectou-seatravés dos anos. Ainda hojeparte da popularidade do Benficae do Sporting é derivada dessa luta de ídolos, que veio por aifora. Ainda há pouco tempo, nas voltas a Portugal, e eu fiz 16,nós encontrávamos bandeiras do Benfica, do Sporting e doPorto, e a verdade é que nenhum deles tinha equipas a correr!

Nos seus primeiros tempos na profissão quem é que, no jor-

nalismo desportivo, concorria com a Bola?

Mundo Desportivo e, menos, o Record . O Record foi feito

por pessoas que saíram da Bola, alguns anos depois da fun-dação desta, em 1945, assim como o Mundo Desportivotinha nascido das cinzas do Sports. O Cândido de Oliveira,grande figura de A Bola e do nosso jornalismo desportivo,acho que não chegou a trabalhar no Mundo Desportivo, maspelo menos andou lá perto. Tinha aquela revista que aPIDE invadiu quando o prendeu, a Stadium, que foi dascoisas mais bem feitas em Portugal. A conjugaçãofotografia/textos era excelente. Depois, eles conseguiram

criar fotografias a cor, pintando--as na própria redacção, comlápis de cor. Nós na Bola não tí-nhamos cor, só o encarnado,para além do preto. Se pre-tendêssemos utilizar outra cor,por exemplo o verde ou o azul,isso custava um balúrdio. Passeianos no Diário Popular a paginaro jornal, era na tipografia delesque nós paginávamos. Era umacoisa que eu gostava de fazer,

paginar. Depois, atravessei a transição da composição aquente para o offset. Foi um salto muito grande, tudo maislimpo, os operários deixaram de engolir diariamente aque-les quilos de chumbo, que matou muitos.

Qual a sua experiência como redactor-paginador?

A certa altura fui designado como a pessoa com mais jeitopara paginar. Uma vez o Aurélio escreveu isso num artigo. Eu

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MEMÓRIA Homero Serpa

Homero Serpa nasceu em Lisboa em 8 de Janeiro de 1927.

Iniciou a sua carriera em A Bola, como colaborador, em 1955,

tendo em 1965 passado para os quadros do jornal. Foi chefe

de redacção de Bola-Magazine. Depois de reformado,

continuou a colaborar regularmente no jornal como colunista.

Nos últimos anos escreveu uma dezena de livros,

nomeadamente relacionados com o desporto, mas também

de ficção: História do desporto em Portugal do Século XIX à Primeira

Guerra Mundial, Edições Piaget, 2006; Uma História do Futebol, co-autoria com Vítor Serpa,

edições dos CTT, 2004; Cândido de Oliveira. Uma Biografia, Caminho, 2000; Glória e Vida dos três Grandes, co-autoria, edição de A Bola,

1995; 50 Anos do Desporto em Portugal, co-autoria, edição de A

Bola, 1994; Crónicas da Época Desportiva, Livros Horizonte, 1989; Outra Maneira de Contar Desporto, Prelo editora, 1976.

Obras de ficção: Na Estrada, Caminho, 2006; Largo da Memória, Caminho, 2005; Hospital de Dia, no prelo (Caminho).

“O redactor-paginador era mais oumenos autónomo. A minha funçãoera encher as páginas e eu enchia.Quando chegava a determinadaaltura e via que a publicidade

ocupava espaço que precisava para aprosa, tirava-a. Os tipos da

publicidade iam aos arames.”

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tinha gosto. E ia para a tipografia, mas em branco. Era assim:por exemplo, página dois; tinha a lista dos assuntos, chegavaà tipografia e tinha que me desenrascar. Depois apareciam-me o chumbo, os linguados, e eu olhava para aquilo e, àsvezes, dizia: «Mas isto não me cabe na página!». Então dava-me ao luxo (escola do Vítor Santos) de tirar publicidade. Enaquelas alturas chegavam a ficar de fora centenas de contosde publicidade. Eu tinha essa liberdade. O redactor-pagi-nador era mais ou menos autónomo. A minha função eraencher as páginas e eu enchia.Quando chegava a determinadaaltura e via que a publicidadeocupava espaço que precisavapara a prosa, tirava-a. Os tipos dapublicidade iam aos arames. OArtur Agostinho no Record metiaprimeiro a publicidade.

E a primeira página, quem é que

fazia?

A primeira página é que normal-mente fazíamos em conjunto. Ochefe de redacção, o Vítor Santos,tinha um jeitão para aquilo, masera tudo um bocado artesanal.Mas eu sentia uma liberdademuito grande quando paginava. Tinha as costas quentes dochefe de redacção. O Pinhão dizia muitas vezes: «eh, pá, tudesperdiças centenas de contos em publicidade, és exacta-mente como o Vítor Santos». E era verdade. Já o Pinhão não.Quando ele ia paginar, só se não podia meter a publicidade éque não o fazia, tinha espírito de economista, que foi umacoisa que eu nunca tive.

Davam relevo às imagens, às fotos, nessa altura?

A Bola, sim. O texto era importante mas havia um tipo afazer fotografias, o Nuno Ferrari, que eram um espectácu-lo. Sacrificou-se muita coisa para elas entrarem, como apublicidade.

Quais eram as dificuldades que vocês sentiam quando tinham

que ir fazer um relato, e depois mandar o texto para a redacção?

Nesse tempo, ia-se ao estrangeiro por causa do ciclismo e,principalmente, do futebol. Aí passei as coisas mais horro-rosas que se possam imaginar. Ao ponto de durante aVolta à França ter que ditar por telefone os nomes dosciclistas, mais de 100 (as Voltas a Portugal também foramassim), até que apareceu por milagre essa maquineta quenos punha cá os nomes, o fax, que apareceu quase simul-taneamente com o telex. Eu lembro-me do primeiro faxque levei para a Volta a Portugal, aquilo parecia umarmário. Mas foi um grande salto nas comunicações.

Quer dizer que mesmo durante os anos 60 vocês ainda tin-

ham que utilizar o telefone?

Sim, muitas vezes. E foi muito bom quando nós descobri-mos uns gravadores novos, e uns tipos que sabiam trabalharcom eles. Nesse caso já não era necessário eu estar a ditarlinha a linha, lia os textos, e parece que não mas era umalívio. Mesmo assim eram horas ao telefone. Para o serviçoser mais rápido, as coisas faziam-se assim, no caso de umjogo de futebol: na redacção havia uma equipa para nosatender, e nós ditávamos (se possível em texto definitivo, senão, em apontamentos) para um a crónica, depois para

outro a reportagem, para outroas entrevistas, enfim, aquelaspeças que nós tínhamos idealiza-do para a cobertura do jogo;depois cada um deles escrevia orespectivo texto, para mandarpara a tipografia. Dentro daslimitações técnicas daqueletempo, aquilo funcionava bem.

Mas uma vez passei pelasituação de não conseguirtransmitir nem uma linha, otelefone não funcionou. Foinum jogo na Ucrânia, em que oNéné partiu uma perna, e oBenfica foi eliminado da com-petição. Mas, na redacção, por

coisas que ouviram na rádio, coisas soltas, fizeram umacrónica brilhante. Foi o Alfredo Farinha. Nós até éramosum bocado incompatíveis nas questões da política. Maséramos amigos, e naquela altura protegíamo-nos uns aosoutros, defendíamo-nos uns aos outros.

Significa isso que as opiniões políticas não eram um factor

de divisão entre os jornalistas?

Havia pessoas que nós sabíamos perfeitamente que eramda direita. Outros não eram da direita nem de esquerda,eram apenas politicamente ignorantes. Não sabiam nada,nem um mínimo sobre política. Houve alguns que quan-do do 25 de Abril vieram-me perguntar coisas, não sabiamporque é que tinha havido o 25 de Abril... Isso aconteceu...Mas as opiniões políticas não nos dividiam. Quandohavia incompatibilidades, era mais por razões pessoais, desimpatia, cada um tem o seu feitio...

Não se discutia política nas redacções?

Nunca ouvi uma discussão política dentro do jornal. Eu, oVítor Santos, o Carlos Miranda e o Carlos Pinhão, às vezescom mais um ou outro, tínhamos o nosso grupo, costumá-vamos ir jantar juntos e aí discutíamos. Talvez fossemos ostipos mais evoluídos politicamente que o jornal tinha,pelo menos numa perspectiva de cultura democrática.

Vocês, na Bola, tinham uma forma muito própria de abordar

os acontecimentos que iam reportar no estrangeiro...

Ainda hoje recebo cartas de leitores recordando que

“Nesse tempo, ia-se ao estrangeiropor causa do ciclismo e,

principalmente, do futebol. Aí passeias coisas mais horrorosas que sepossam imaginar. Ao ponto de

durante a Volta à França ter queditar por telefone os nomes dos

ciclistas, mais de 100 (as Voltas aPortugal também foram assim), até

que apareceu por milagre essamaquineta que nos punha cá os

nomes, o fax...”

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aprenderam muito com as nossas crónicas, porque a ver-dade é que cá não transpirava nada do que acontecia láfora, a ignorância era muito grande sobre as realidades láde fora. E o que é que acontecia? Eu ia, por exemplo,“fazer” um jogo de futebol à Checoslováquia, e a ideia quecá havia sobre esse país era de ser um regime criminoso,onde as pessoas não podiam falar, estavam todas na mis-éria, etc. Então, para além do relato do jogo, eu escreviaum artigo em que falava, por exemplo, das paisagens edepois também, lá no meio, do nível de vida das popu-lações, quanto ganhavam, quanto gastavam, a formacomo lhes era facilitado no emprego a posição de pai oude mãe, aspectos do quotidiano e coisas assim.

E a Censura, como reagia?

Era uma coisa esquisita, mas o que eu escrevi daChecoslováquia ou da Polónia, por exemplo, a Censuracortou alguma coisa, mas nãofoi o género de perseguiçãocomo aconteceu com o VítorSantos. Aliás, devo dizer queeles cortavam pormenorescomo os que mencionei mesmosem ser relativos aos países deleste, bastava um tipo ir àBélgica, à Holanda ou à Dina-marca, descrever o nível devida deles, falar das crechesonde as mães iam de bicicletalevar as criancinhas lá atrás nocabaz... Quando a Censura nãocortava, as pessoas liam e de-pois faziam a comparação como que se passava cá. Aprendi aescrever nas entrelinhas... Esta forma de fazer as reporta-gens no estrangeiro foi um dos segredos de A Bola.

Mas vocês levavam orientação para escrever dessa maneira?

Não havia orientação nenhuma. Era uma coisa de cadaum de nós. Havia os que o não faziam. Para escrever qual-quer coisa para além do futebol, para além do aconteci-mento desportivo, é preciso ter-se sensibilidade para isso,ter lido algumas coisas, que muitos não faziam. Na altura,eu andava a ler Jorge Amado e esses livros clandestinosque me vinham parar à mão, e um deles foi o Quando osLobos Uivam, do Aquilino Ribeiro, que depois foi apreen-dido. Eu fui uma das primeiras pessoas a ter o livro. Edepois tive outro engraçadíssimo, que pouca gente tem,que é Quando os lobos julgam, a justiça uiva, escrito peloadvogado do Aquilino, e que evidentemente deu umagrande bronca.

Uma coisa muito boa que havia nos anos 60, passoupara os anos 70, e depois do 25 de Abril perdeu-se umbocado, era a rubrica chamada “Hoje jogo eu”, ondesaíram prosas sensacionais. Era o testemunho pessoal do

jornalista fora do relato, uma opinião pessoal, em queíamos agarrar num tema fora de tudo aquilo. Eu lembro-me perfeitamente de escrever coisas que depois a Censuracortava, mas outras não. Muita gente que escreve hojepara a Bola diz que tem saudades do “Hoje jogo eu”. Estarubrica era uma coisa obrigatória para qualquer pessoaque saísse da redacção para ir fazer reportagem, fosseonde fosse. Nem que fosse a Cacilhas. E nessa rubricavazava-se muita coisa social, muita coisa politica. Eramuito bonito.

Mas tudo isso não tinha um pouco a ver com a tradição de

A Bola?

Tinha muito a ver. A tradição da Bola foi implementadapelo Cândido de Oliveira, mais do que pelo Ribeiro dosReis, outro dos fundadores. O Ribeiro dos Reis era oficialdo exército. O Cândido foi preso pela PIDE em 1942, em

plena guerra, porque fazia tudoàs claras, os contactos com osingleses, a compra de umagrande colecção de botas desti-nadas à clandestinidade - casoos alemães nos invadissem,havia as botas... Preparou-se arecepção aos alemães, e nãopodia ser uma recepção deexército para exército. Eles emmenos de 24 horas chegavam aLisboa, auxiliados pela falangeespanhola. E montou-se umesquema com a espionageminglesa, e pelo país inteiroforam mobilizadas pessoas paraa resistência. A certa altura

achou-se conveniente adquirir botas, e houve um tipoqualquer que comprou não sei quantas dezenas de parese o Cândido é que pagou. Foi uma das acusações da PIDE,essa das botas. O Cândido era um bocado despassarado,foi preso e perguntou: «vocês vão interrogar-me por-quê?», e agarrou num papel, escreveu tudo, e disse:«tomem lá, entreguem isto ao ministro».

O Cândido, para além de jornalista, tinha um cargo nos

correios não era?

Era. Quando foi despedido era director de não sei quê, daparte do telégrafo. Ele era muito bom, tinha aprendido issona Casa Pia. E os tipos revolucionários quando pensavam emqualquer coisa iam ter com ele, por causa das comunicações,porque ele tinha uma quantidade de contactos espalhadospelo país inteiro. O Cândido morre em 1958. Mas ele eraassim, com um espírito de esquerda, culto, não era só os pon-tapés na bola, ele pensava para além disso tudo. O Vítor devez em quando dizia-me: «tu és um vermelhão….eu nãoposso deixar passar isto», e eu lá arranjava maneira de cortarumas coisitas para ver se a Censura não pegava, porque a Bola

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“O Cândido de Oliveira era umespírito de esquerda, culto, não era só

os pontapés na bola, ele pensavapara além disso tudo. O Vítor Santos

de vez em quando dizia-me: «tu ésum vermelhão….eu não posso deixar

passar isto», e eu lá arranjavamaneira de cortar umas coisitas paraver se a Censura não pegava, porquea Bola já tinha tido a experiência,

por causa do Cândido, de um mês desuspensão.”

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já tinha tido a experiência, por causa do Cândido, de um mêsde suspensão. O Augusto Valdez vem do Tarrafal, e oCândido (que também esteve preso no Tarrafal, um ano emeio, no início da década de 40) oferece-lhe o lugar de chefede redacção. Era impensável isto. Ainda mais quando elechegou do barco, vinha cheio de frio, o Cândido despiu osobretudo, e vestiu-lhe o sobretudo à frente dos tipos daPIDE. E eles ficaram à espera da primeira oportunidade.

Havia jornalistas desportivos, como foi o caso do Cândido,

que simultaneamente ocuparam cargos de treinadores nos

clubes ou mesmo de seleccionadores.

Isso era normal. Aconteceu com o Cândido, com o Ribeirodos Reis, com o Fernando Vaz, com o Ricardo Ornelas doPopular...

Como é que era conciliável? Isso, sob o ponto de vista ético,

hoje era impensável.

Era? Não sei. Num país como este, a ética é assim comouma bola, ou leva ainda mais chutos do que uma bola.Mas parece-me que sim, seria impensável. Os temposeram outros...

Mas havia o cuidado de, pelo menos, não escreverem sobre

esse clube?

Pelo contrário, até se escrevia sobre esse clube. Lá está, aguerra de audiências... Isso até aconteceu comigo, não souum santinho. Numa altura em que o Belenenses estava

muito aflito, dois dirigentes do clube, o Acácio Rosa e outro,foram ter com o Vicente Melo, que era o director da Bola, apedir para eu ir para lá como secretário técnico, para ver seaquilo conseguia subir. Eu fiquei surpreendidíssimo, e disseao Vicente Melo: «Eu estou no princípio da carreira, já souredactor, e agora vão tirar-me daqui, e vou estar dois ou trêsmeses fora?». Mas ele disse-me: «Olha que isso é de muitointeresse para o jornal». E sendo do interesse do jornal ia ten-tar. E fui. Passei aqueles dois meses e meio, ou mais, comosecretário técnico do Belenenses, e acontecia uma coisacuriosa: o Vítor Santos dizia-me todas as semanas que eutinha que escrever um artigo sobre o forro do futebol, a partede dentro do futebol. E escrevi muitas coisas, tirando partidodos conhecimentos que tinha com o cargo que ocupava. Masisto não era nada de excepcional. O Ricardo Ornelas tambémescreveu muitas coisas sobre a Selecção Nacional no DiárioPopular. O Ribeiro dos Reis puxava pelo Benfica...

Pensa que isso gerou uma certa cumplicidade entre jogado-

res, directores de clubes e jornalistas?

Que ainda há. A cacha nasce exactamente dessa cumplici-dade. É um bocado difícil uma pessoa descobrir novi-dades num clube, se não tiver essa cumplicidade e essescontactos. Isso existe. E olhe que o desporto não é o único,também existe na política.

O facto de os jornais diários, e nomeadamente no caso da

política, mas não só, estarem muito sujeitos à vigilância da

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“A BOLA nunca deixou de ser um jornal exactamente de escola porque os colaboradores não tinham o rabo sentadinho na secretária odia todo” (Homero Serpa)

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Censura, não terá aberto a porta ao exercício de um jornalis-

mo desportivo mais... jornalístico?

Acredito que sim, ainda que, como expliquei, a Censuratambém nos controlasse e cortasse! O jornalismo desporti-vo foi de facto uma escola, numa altura em que os jornaisdiários ainda trabalhavam muito à base do corta e cola. Eraum jornalismo criativo e que revelou pessoas com muitomérito. A pessoa tinha que es-crever, mas primeiro tinha quesair da redacção, procurar ascoisas, ir pelo país ou para oestrangeiro. A Bola nunca dei-xou de ser exactamente um jor-nal de escola porque os colabo-radores e redactores não tinhamo rabo sentadinho na secretáriao dia todo. A partir de 1961, ojornalismo desportivo dá umgrande salto, inclusive a Bola,que nesse ano já se aproximoude uma tiragem à volta dos 200mil, o que era uma coisa verdadeiramente impensável emPortugal. Depois, começou a ter uma grande projecção, nãosó em Portugal como no estrangeiro, nos núcleos de emi-grantes. Quando começou a guerra colonial, tambémcomeçou uma grande emigração. Eu fui encontrar genteem toda a parte da Europa, e as pessoas diziam-me (aindahoje é um bocado assim) que o único elo de ligação que ti-

nham com o país era A Bola. Vi o jornal numa pequenaaldeia suíça, fiquei espantado, ao pé dos outros jornaistodos, os alemães, os franceses. Isto foi um dos motivos quenos levou a cuidar da prosa, do português, a ter muitorespeito por aquilo que se escrevia. Nós sabíamos que umaparte daquela miudagem, da segunda geração, os tipos quenasciam já nas terras de acolhimento, liam a nossa língua

pela Bola. Os pais liam o por-tuguês pela Bola. Ainda hoje issoacontece.

As grandes corridas de bicicleta

eram, certamente, uma excelente

oportunidade para esse conheci-

mento das realidades e das pes-

soas...

Pois eram. Não me lembro demuitos redactores fazerem aVolta a Portugal. Fez o CarlosMiranda, mas ele não faziafutebol, o Carlos Pinhão fez

uma, acho, o Mário Zambujal também fez uma, antes deir para o Diário de Lisboa... Eu fiz dezasseis. Fiz as Voltas àBulgária, à Espanha, à França, isso tudo. As Voltas eramrealmente uma escola fantástica de jornalismo, em todosos aspectos. Uma pessoa andava mais do que quatro oucinco horas, às vezes, dentro de um automóvel, e a partirdaí começava a trabalhar. Às vezes acabávamos às sete da

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“O jornalismo desportivo foi de factouma escola, numa altura em que osjornais diários ainda trabalhavam

muito à base do corta e cola. Era umjornalismo criativo e que revelou

pessoas com muito mérito. A pessoatinha que escrever, mas primeiro

tinha que sair da redacção, procuraras coisas, ir pelo país ou para o

estrangeiro.”

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noite, depois, todo amarrotado, sem ter tempo sequer decomer ou tomar um duche, ia para o hotel, ou para assalas de imprensa, e começava a desbobinar aquilo tudo, eestávamos ali três, quatro horas quase sem levantar acabeça, a escrever e depois ao telefone. Foi das escolasmais fantásticas que eu tive, nesse aspecto.

E também do que me mostrou do mundo. Não há nadamelhor para conhecer um país do que uma Volta em bici-cleta. Uma pessoa entra nas aldeias pelas estradassecundárias. De Portugal, por exemplo, vi muita coisa quenão tinha nada a ver com o ciclismo em si. Eu creio que foio ciclismo que me obrigou a um espírito de observaçãomuito cuidado, rapidez a escrever, e deu-me uma rotinaque mais tarde havia de me servir quando comecei a escre-ver livros. Na literatura moderna, não sei bem como é queas pessoas procedem, mas o meu sistema é o seguinte:penso numa coisa, tomo meia dúzia de apontamentos ecomeço a escrever, e depois as coisas vão-se encadeando.Não sou pessoa para escrever dois romances, ou duasbiografias, ao mesmo tempo; escrevo-as de uma assentada.Hoje sou capaz de escrever 20 páginas, fazer as emendasno computador, mas depois está feito. Isto até pode não seratitude de um escritor, mas é de uma pessoa que tevetarimba a escrever depressa, e ater que escrever bem, porque ABola era rotulada como o jornalonde havia alguns dos que me-lhor escreviam. Alguns pu-blicaram livros. Depois eu tam-bém publiquei, tirando partidoda sensibilidade que o jornal meobrigava a ter, e também darapidez com que tínhamos deescrever. Fechávamos às duasda manhã, ou ainda mais tarde.Muitas vezes estive a paginar ABola até às três e tal na tipografiado Diário Popular, onde o jornal era feito. Ajudaram-memuito essa obrigatoriedade, esse conjunto de virtudes, quenos era exigido: escrever bem, o mais rápido possível e nãodeixar que o português fosse afectado.

Nos anos 60, os jornalistas desportivos não eram sindicali-

zados, só o podiam ser os que pertenciam à imprensa diá-

ria. Isso traduzia-se em alguma fricção entre uns e outros?

Não, talvez com uma ou outra excepção. Na Bola, a equipaera unida, apesar de haver alguns que eram sindicaliza-dos, como o Aurélio Márcio, que trabalhava no DiárioPopular, enquanto nós não podíamos ser. Mas esse assun-to só se debatia quando chegava a altura de reavivar asnossas pretensões junto do sindicato, para cuja direcção,nessa altura, só podiam ir tipos ligados ao regime.Curiosamente, o tipo que lá no jornal mais se mexeu e atéconseguiu chegar ao ministro, defendendo a entrada dosjornalistas desportivos no sindicato, foi o Alfredo Farinha.

Ele, com aquelas coisas lá das direitas, teve alturas em queassumiu posições correctas.

Aliás, nem todos os jornalistas de direita eram favoráveis à

Censura, pois não?

Ninguém podia ser. Isto é, devia haver quem fosse, masdiscretamente... A Censura era um monstro, falávamosnisso quando nos juntávamos, gente de vários jornais,naqueles sítios do Bairro Alto que fechavam mais tardecomo a Primavera do Augusto, o Alfaia, que serviajantares até às onze da noite, o Machado (a casa de fados)e outros. Eram uma espécie de tertúlias. Noutras horastambém nos juntávamos na Brasileira, onde caíam muitasvezes os gajos da PIDE, que se sentavam na mesa ao ladoa ouvir tudo. Havia outro que era o Nicola, já não é bemnos anos 60, mas não anda muito longe. O Nicola tambémera um ponto de tertúlia de malta de esquerda.

Esse convívio era só entre jornalistas de desporto, ou

outros também?

Havia outros, tipos de jornais diários. Antigamente nós tí-nhamos uma grande unidade. Éramos todos do contra,vamos lá, da oposição, mas nenhum de nós puxava pelas

suas ideias políticas e par-tidárias. Todos nós as tínhamos,é evidente, uns mais para ossocialistas, outros mais para oscomunistas, mas as nossas con-vicções partidárias ficavamconnosco. Uma coisa que nãoacontece hoje, está tudo disper-so. Diz-se: «temos saudades dotempo em que éramos unidos»,e é verdade. E isto no jornalismodesportivo era muito acentua-do. Na Bola, por exemplo, haviasensibilidades, mas nunca se pôs

o caso de se dizer: «eu sou isto, eu sou aquilo…». Isso nuncaaconteceu. Começou depois do 25 de Abril. Houve coisascuriosíssimas nesse aspecto, como por exemplo o CarlosPinhão, que era um tipo um bocado reservado, embora nãopareça, trabalhávamos em frente um ao outro, e de vez emquando falávamos de política e ele dizia-me que era daoposição, mas não passava daquilo...

Nos anos 60, como é que estava organizada a redacção da

Bola, isto é, qual era a estrutura? Estava tudo junto, havia

secções, salas?

A Bola hoje é do rés-do-chão ao terceiro andar. Mas naque-la altura era pobre, ou pelo menos remediada. Nós traba-lhávamos todos numa sala. Depois, havia o gabinete dodirector e o gabinete da tesouraria. A telefonista trabalha-va conjuntamente com os tipos que recebiam as sobras.Era o rés-do-chão só. Isto, parecendo arcaico, era simul-taneamente muito bom porque os nove ou dez que ali tra-

MEMÓRIA Homero Serpa

“Fechávamos às duas da manhã, ouainda mais tarde. Muitas vezes

estive a paginar A Bola até às três etal na tipografia do Diário Popular,

onde o jornal era feito. Ajudaram-memuito essa obrigatoriedade, esseconjunto de virtudes, que nos era

exigido: escrever bem, o mais rápidopossível e não deixar que o português

fosse afectado.”

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balhavam estavam em permanente contacto uns com osoutros. Nos anos 70, A Bola alugou o segundo andaresquerdo, e aí houve a divisão dos sectores: em baixo osadministrativos, em cima a redacção. Mas a tendência deunião era tão grande que quando nós não tínhamos quefazer (acontecia períodos assim), os tipos de um lado e ostipos do outro juntavam-se na sala principal e ficavam nacavaqueira. Nunca se perdeu o colectivismo. Isso foimuito importante para que não se perdessem as lições jor-nalísticas, e não só, do Cândido de Oliveira.

Há ainda uma coisa que gostava de acentuar emrelação aos anos 60, princípio dos anos 70: havia tempopara burilar a prosa, porque o jornal fechava tarde, eporque o jornal era um lençol, ainda tinha o formatogrande. Quando eu fui para lá tinha oito páginas, depois10, depois 14 e por aí acima. Este jornalismo que se fazagora, em comparação com aquele que nós fazíamos,parece que é feito sempre na mesma medida, com as mes-mas intenções e planos. Por exemplo, eu ia escrever umacoisa qualquer, nos anos 60 - acho que foram anos de ourodo jornalismo - , uma reportagem sobre qualquer coisa,levava os apontamentos, punha de parte e começava aescrever, a burilar. E ninguém me dizia que só tinha umacoluna, raramente isto acontecia. Se me diziam para es-crever à vontade, fazia as colunas que quisesse. O queoriginava também o sentido oposto que era o leitor perdera pachorra, ler um artigo que começa na primeira página,passa para a cinco, passa para a nove, os chamados abo-mináveis “continuados”.

A prosa de A Bola era diferente da dos outros jornais des-

portivos? Havia alguma orientação de escrita, para quem

chegava de novo?

Como eu disse, os jornalistas começavam quase semprepela colaboração. A pessoa entrava numa redacção e faziauma ou duas coisinhas. Havia quem lhes visse a prosa,fizesse uma emendas e dissesse ao chefe de redacção queeste ou aquele tinha jeito. Aí, quando nos começavam adar um bocadinho mais de liberdade, é que nos diziam:

«Vai lendo a Bola, os números antigos, que é para aprendero estilo». Criou-se um estilo colectivo. Era uma escola.

Quais eram as características desse estilo?

Principalmente, a obrigatoriedade de saber escrever. Aoutra era uma devoção (e isso existia) ao jornal, como sefosse uma Bíblia. Aliás, chamava-se muitas vezes à Bola a“Bíblia”... E as pessoas habituavam-se, não perdendo o seucunho pessoal, mas aproximando-se dos modelos.

Mas não havia propriamente uma orientação que dissesse

que se escrevia desta ou daquela maneira? Adquiria-se com

a leitura do próprio jornal?

Não, era de facto com a leitura do jornal. E na liberdadeque o chefe de redacção sempre deu às pessoas. O VítorSantos dizia sempre que ali não havia censura. E as pes-soas habituaram-se a isso, a não serem uns autómatos.Isso era importantíssimo. Uma pessoa sentir que podiaescrever segundo a sua vocação, o seu estilo, emboradepois aquilo tudo reunido criasse o verdadeiro espíritodo jornal.

Como era a redacção, em termos de habilitações académicas?

Eu tinha o curso comercial, o Miranda e outros tambémtinham cursos médios, o Pinhão chegou à universidade,em Direito, mas não acabou, o Vítor Santos chegou aandar em Agronomia, um ano ou dois, o Silva Resendeera advogado, o único com curso superior. Depois, àmedida que o tempo ia passando, começou-se a exigir umbocadinho mais. O Vítor (meu filho) esteve dois anos emmedicina, e um dia chegou a casa e disse: «Acabou, queroir para jornalista». Ia-me matando, a mim e à mãe.Estávamos em 1971.

E os salários?

Eram acima do normal. Tínhamos bons ordenados,mesmo em relação à imprensa diária. E ninguém queescrevesse, nem que fosse só uma linha, deixava de rece-ber essa linha. Era um princípio. Uma pessoa ia para lá

JJ

Na reportagem, Homero sentia-se como peixe na água. À esquerda: com o antigo campeão de F1, Emerson Fitipaldi. À direita: comEusébio e sua mulher Flora, em Moçambique

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colaborar, escrevia quatro, cinco ou seis coisinhas, chega-va ao fim do mês e ficava admirado porque diziam sem-pre para passarmos pela tesouraria, e tínhamos sempredinheiro para receber. Isso acon-teceu comigo. Passado um mêsde estar a colaborar, o Vítor San-tos pergunta-me: «Já recebes-te?», eu respondi que não, e eledisse logo: «aqui ninguém tra-balha de borla» e mandou-me àtesouraria. Eu fui e não queiramsaber o jeitão que aquilo medeu.

Quem estabelecia os montantes era o próprio Vítor Santos?

Não. O Vítor marcava as coisas, do género de fazer saberse isto ou aquilo era melhor ou pior, e isso ia depois parao Bandeira, que era editor. E este é que indicava os preços.Escrevia num exemplar do jornal, que tinha os nomessublinhados, e ele por baixo punha o dinheiro a receber.No próprio jornal impresso, que depois ia para a te-souraria.

Mas mesmo as colaborações eram assinadas? Isso não era

nada normal na época, pois não?

Não, não era. Aliás, na imprensa diária nem tudo o quepertencia ao desporto era assi-nado. O assinar era uma ca-racterística da imprensa des-portiva.

Quando é que vocês começaram

a utilizar a máquina de escrever?

Eu desde o primeiro minutoque utilizava a máquina, por-que trazia a escola da Carris.Havia pessoas a escrever à mão,

mas, na Bola, a maioria já escrevia à máquina, nos anos 60.O jornal tinha máquinas, mas eu tinha uma própria. Foi aque levei para os Estados Unidos, onde estive um mês, aacompanhar uma digressão do Belenenses. O clube joga-va o torneio de Nova Iorque. Acho que foi em 1963, aindaestava como colaborador na Bola. Claro que fiquei semférias na companhia, mas foi o meu grande lançamentono jornalismo.

MEMÓRIA Homero Serpa

“Passado um mês de estar acolaborar, o Vítor Santos pergunta-me: «Já recebeste?», eu respondi quenão, e ele disse logo: «aqui ninguémtrabalha de borla» e mandou-me àtesouraria. Eu fui e não queiram

saber o jeitão que aquilo me deu.”

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Nos anos sessenta, setenta, o jornalismo desportivo vivia os primórdios deuma suada autonomia. Ganhara o respeito das áreas menospreconceituosas do jornalismo generalista, mas já sentia, de há muito, aconsagração daquilo a que nos tempos modernos se chama, algodesrespeitosamente, o mercado, e que naquela época se chamava, muitosimplesmente, os leitores.

Eu vivi esse tempo na transição escolar do liceupara a universidade, mas desde há vários anosque acompanhava o meu pai à BOLA, essa

curiosa escola de jornalismo familiar do Bairro Alto. Norés do chão esquerdo do 23 da Travessa da Queimadaouvi muitas vezes o Vítor Santos, chefe de redacção míti-co, dizer-me, com ar triunfal, que naquela «loja de sa-pateiro» se fazia A BOLA com a qualidade rara deartesãos do jornalismo.

Para Vítor Santos, que seguira e personalizara a esco-la de um jornalismo desportivo militante, que arrancaranos anos quarenta com Cândido de Oliveira, a quemchamava de mestre, a ideia de que o jornalismo era umaarte, afastava decididamente a essência dos jornais deum conceito de fábrica de notícias, unidade de umaindústria que, mais tarde, apareceu imposta, mas nãocom resultados particularmente interessantes.

Vítor Santos dominava o espaço e as pessoas. Era ochefe e assim mesmo, nessa designação ambígua, gosta-va de ser chamado. Cândido era o mestre, Vítor Santos,o chefe. Muitas vezes, ao longo da história de A BOLA,se lançou a hipótese de VítorSantos passar a director do jor-nal. Nunca quis. A diferençaestava na sensação, de que nãoabdicava, de estar no terreno ede não perder nada, da con-cepção intimista do jornal, aofecho no chumbo quente doDiário Popular.

O meu pai nasceu e cresceu nessa escola. Era no ter-reno, tal como Vítor Santos, que melhor se sentia.Gostava de se chamar, a si próprio, um operário de jor-nais. Sempre o vi fugir da pretensão intelectual de algumtipo de jornalismo e sempre o vi aproximar-se dosleitores e dos operários gráficos (nesse tempo, tipó-

grafos) que, com ele, trabalhavam, diligentemente, noparto custoso de cada edição.

Essa opção era tanto mais surpreendente quanto omeu pai sempre manteve um estilo literário no seu jor-nalismo vivo de repórter entusiasmado com o mundo.Um mundo que sempre fez questão de mostrar muitopara lá do assunto desportivo que, aliás, tratava semdemasiada preocupação técnica, mais como um obser-vador atento e interessado. Ele, que provaria conheci-mentos de futebol no risco assumido como secretário téc-nico da equipa profissional do Belenenses, sempre achouque a opção por um jornalismo de especialização técnicado jogo se tornaria enfadonha e o afastaria da verdadeiraalma de jornalista.

Apreocupação com o respeito pelo leitor só erasuplantada por uma paixão irracional pelo jornal.Vítor Santos falava, por isso, nas cinco letras mág-

icas de A BOLA, que nos enfeitiçavam desde o momen-to em que pisávamos o chão do velho prédio apalaçado.Desde muito cedo, ainda antes de me deixar encantar

definitivamente pelo jornalismo epelos jornais, me apercebi decomo era decisiva, no sucesso deA BOLA, essa relação de forteespiritualidade dos seus jornalis-tas. Era por essa relação que gentetão diversa nas opções de vida seunia até à morte.

Curiosamente, a minha experiência de debutante dojornalismo aconteceria no Diário Popular e não naBOLA, onde só chegaria cinco anos mais tarde. Tive,pois, a sorte de aprender em duas escolas diferentes.Diversas, sim, mas igualmente sábias e em ambas se ensi-nava que o jornalismo era mais intuição que técnica,mais paixão que profissão.

Os artesãos dos jornais

O meu pai nasceu e cresceunessa escola. Era no terreno,tal como Vítor Santos, quemelhor se sentia. Gostava de sechamar, a si próprio, umoperário de jornais.

VÍTOR SERPA

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