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48|Out/Dez 2008|JJ Acácio Barradas Uma perda irreparável Com a morte de Acácio Barradas, em Outubro último, o jornalismo português perdeu um dos seus mais dignos e respeitados profissionais das últimas décadas e o associativismo jornalístico – o Sindicato, a Casa da Imprensa, o Clube dos Jornalistas – viu desaparecer um dirigente empenhado, activo e dinâmico como poucos. No que ao Clube particularmente diz respeito, o Acácio, convém sublinhá-lo, foi presidente do Conselho Fiscal desde o primeiro até ao mandato actual, quando a doença que o atormentava já não lhe permitiu aceitar o encargo; e foi um permanente e interessado apoiante desta revista, a cujo Conselho Editorial sempre pertenceu. Tínhamos previsto para o presente número, dedicado ao 25º aniversário do Clube, uma curta entrevista com ele. Tal já não foi possível. Em jeito de homenagem, publicamos uma outra, inédita, realizada no quadro da preparação de um livro entretanto já editado 1 , e que tem a particularidade de nos evocar o que foram os pouco conhecidos primeiros anos da vida profissional do Acácio, em Angola. MEMÓRIA

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Acácio BarradasUma perda irreparável Com a morte de Acácio Barradas, em Outubro último, o jornalismoportuguês perdeu um dos seus mais dignos e respeitados profissionaisdas últimas décadas e o associativismo jornalístico – o Sindicato, aCasa da Imprensa, o Clube dos Jornalistas – viu desaparecer umdirigente empenhado, activo e dinâmico como poucos. No que aoClube particularmente diz respeito, o Acácio, convém sublinhá-lo, foipresidente do Conselho Fiscal desde o primeiro até ao mandatoactual, quando a doença que o atormentava já não lhe permitiuaceitar o encargo; e foi um permanente e interessado apoiante destarevista, a cujo Conselho Editorial sempre pertenceu. Tínhamosprevisto para o presente número, dedicado ao 25º aniversário doClube, uma curta entrevista com ele. Tal já não foi possível. Em jeitode homenagem, publicamos uma outra, inédita, realizada no quadroda preparação de um livro entretanto já editado1, e que tem aparticularidade de nos evocar o que foram os pouco conhecidosprimeiros anos da vida profissional do Acácio, em Angola.

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Entrevista com Acácio BarradasIniciou a profissão em Angola, depois veio para

Lisboa, mas tudo começou no Porto…

Comecei como jornalista profissional emLuanda. O projecto familiar era fazer-me advoga-do, mas de repente tudo se alterou devido a umacidente de percurso. Fui pai solteiro em plenaadolescência, o que representou um escândalo nafamília, até porque a mãe era mais velha do queeu e de baixa condição social. Enfim, uma histó-ria digna de romance neo-realista. Acabei pornão continuar os estudos. Estava no quinto anodo liceu mas já não fui a exame, pelo que oficial-mente fiquei com habilitações académicas aindamenores do que as que realmente tenho.Considero-me, portanto, um autodidacta. O quena minha geração constitui regra dominante. Ashabilitações académicas eram normalmente bai-xas e raros jornalistas tinham formação superior.

Em que ano começou como jornalista?

Como amador, no início dos anos 50, no Jornalde Lousada. Profissionalmente, por volta de 1955,em Luanda. Fui para Angola dois anos antes, poisa família achou que era preciso meter-me naordem com a dureza do trabalho assalariado.Segui para Luanda na terceira classe suplementar(ou seja, o porão transformado em camarata) deum navio de passageiros. Mas como tinha a apa-rência de um pequeno lorde (de acordo com a des-crição de um livro então em voga da Condessa deSégur) andava livremente por todo o navio,incluindo as zonas reservadas da 1.ª classe. Na

altura, ir para as colónias (que o Salazar crismoude províncias ultramarinas) requeria uma cartade chamada que garantisse colocação, a fim deimpedir o desprestígio da raça branca pela degra-dação do desemprego. Mas a verdade é que sefaziam muitas cartas de chamada por favor, quedavam a garantia de um emprego fictício. E só nodestino as pessoas se desenrascavam conformepodiam. Quando cheguei, havia a possibilidadede entrar no Banco de Angola, o que me assusta-va um bocado porque, ao contrário das letras,lidei sempre mal com números. Depois zanguei--me com a pessoa que me tinha mandado a cartade chamada e fiquei um pouco ao Deus dará. Eutinha, realmente, uma certa vocação inata para ojornalismo, primeiro porque o meu pai, que eraum homem dos sete ofícios, tinha fundado (como meu avô Acácio e o meu tio Romeu) um jornalchamado Última Hora, no Porto, ainda no tempoda primeira República. Já fui consultar esse perió-dico à Biblioteca Nacional e, por aquilo que vi,não o achei nada revolucionário, antes pelo con-trário. Mas encontrei um antigo tipógrafo que medisse ter sido o jornal estraçalhado, como muitosnessa época. Invadiram a sede, rebentaram comas máquinas, etc. Houve muita confusão destegénero durante a Primeira República e o jornalfoi vítima disso.

Vem de uma família de republicanos?

Se o meu pai era republicano, não o posso afir-mar. Aliás, morreu muito novo e a minha cons-

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Em 1967, ainda em Angola, pouco tempo antesde vir para Lisboa

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ciência dele foi mitificada na infância. Mas o meuavô paterno, de quem aliás herdei o nome, era-osem dúvida. Até tinha o cartão do PartidoRepublicano, que conservava como relíquia e umdia me mostrou em segredo. Em pleno fascismo,tal passado não abonava a obediência ao regimesalazarista, o que era perigoso para um funcioná-rio público, condição em que esse meu avô termi-nou os seus dias, depois de ter sido industrial eproprietário, em Vila Nova de Gaia, de uma fábri-ca que acabou destruída pelo fogo. Mas voltandoao meu pai, que como disse era homem dos seteofícios, a sua profissão dominante era a de fotó-grafo, com estabelecimento próprio na RuaFormosa da Baixa portuense. E colaborava com aImprensa no registo dos grandes acontecimentos.Note-se que um fotógrafo nessa época era pessoaimportante. Tal como hoje se fica à espera quechegue a televisão, antigamente aguardava-se ofotógrafo. Era ele que conferia dimensão históricaaos grandes acontecimentos.

Como se chamava o seu pai?

Álvaro Barradas, cuja memória pretendihomenagear ao dar o seu nome a um dos meusfilhos, que por sinal também é um excelente fotó-grafo, embora faça disso um hobby. Entre outras,uma das aventuras do meu pai foi trabalhar comReinaldo Ferreira, o célebre Repórter X. Tenhoem meu poder o cartão que testemunha essefacto e que já prometi ao Museu da Imprensa,pois é uma verdadeira relíquia. Mas isto era ape-nas uma das actividades dele, que tinha uma casade fotografia, tinha o já referido jornal ÚltimaHora dirigido pelo irmão, enquanto ele próprioorientava a publicação de uma revista especiali-zada com o título A Indústria Portuense, entreoutras actividades. Infelizmente morreu novo,vítima de cancro, pelo que fiquei órfão commenos de dois anos. Cresci com uma imagemextraordinária do meu pai e comecei desde muitonovo a interessar-me pelo jornalismo. Tinhagosto pela escrita, lia muito, lia até desalmada-mente, comprava imensos jornais e revistas. Aminha mãe dava-me uma semanada generosa eeu gastava quase tudo em livros, jornais, cinema,teatro, concertos. O único dinheiro mal gasto eracom a porcaria do tabaco.

Tudo isso se passa no Porto?

Sim. No Porto e em Paredes, pois a minha mãecasou-se em segundas núpcias com um comer-ciante daquela vila (hoje cidade) e fui viver para

lá, embora continuasse a ir ao Porto com frequên-cia. Fazia o meu próprio jornal, à mão, vendia àfamília, contava histórias, escrevia peças de tea-tro, tudo com base na realidade do dia-a-dia.Logo, tinha a vocação de jornalista bastante acen-tuada. Quando fui para Luanda e resolvi ser jor-nalista profissional, soube que havia uma vagano matutino O Comércio de Angola e fui lá ofere-cer-me para a preencher. Mas só lá estive umasemana. Tinha um feitio levado dos diabos e eramuito independente. No sétimo dia entrei no jor-nal com o chapéu na cabeça e fui admoestadopelo chefe de redacção. Não gostei da formacomo se me dirigiu e virei-me a ele de tal manei-ra que o encostei à parede e acabei por sair. É pre-ciso ver que estávamos em Luanda, um sítio desol intenso, eu ainda não estava habituado e tra-zia o chapéu de palhinha para me proteger. Ecomo era muito leve, chegava a esquecer-me queo trazia na cabeça.

Entrar com o chapéu era sinal de má educação?

Para ele, era. Devia tirar o chapéu para o cum-primentar. Aquilo era uma personagem todaimbuída de respeitinho serôdio. Na altura, agente via que até nas grandesredacções dos filmes america-nos os jornalistas entravam dechapéu na cabeça, alguns nuncao tiravam, pareciam cowboys. Foichato porque nesse jornal sófazia reportagem, todos os diasia trabalhar para a rua e gostavamuito. Enfim, dessa vez volteipara a rua, mas definitivamen-te, enfrentando uma situaçãode desemprego algo dramática.

Nessa situação, li no jornal a província deAngola, que era o principal diário da manhã, certacrónica de um senhor chamado José Manuel daCosta, sobre os «vadios que andavam por ali acoçar-se pelas esquinas sem fazer nada» e care-ciam de ser forçados ao trabalho. Achei que aqui-lo tinha a ver comigo e bati-lhe à porta do gabine-te: «Olhe, eu sou um desses vadios que anda poraí a coçar-se pelas esquinas, de maneira que euagradecia que me desse emprego aqui no jornal».Ele era o subdirector e ficou um bocado aflito:«Compreenda, isto não era consigo, era para unsenergúmenos». E acompanhou-me à porta comar assustado, porque lhe devo ter feito cara depoucos amigos.

O certo é que, passado algum tempo, acabei

“Fazia o meu própriojornal, à mão, vendia àfamília, contavahistórias, escrevia peçasde teatro, tudo combase na realidade dodia-a-dia”

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por entrar nesse jornal, a fim de ocupar umavaga deixada pelo Luís Fontoura, forçado ademitir-se por causa de um título em que ridicu-larizava um importante colaborador dessemesmo jornal. Foi o próprio Luís Fontoura (quese tornou um dos históricos do PSD e foi secretá-rio de Estado) que me alertou para o facto:«Agora há uma vaga e eles precisam de gente».Fui lá, ofereci-me e fiquei. Entrei à experiênciacomo repórter. Nessa qualidade, fiz uma reporta-gem no Norte de Angola, ou seja no Uíge, queme deixou uma forte e desagradável impressãodos colonos novos-ricos pela alta do café. Vi-oscomportarem-se como labregos que a febre dodinheiro tornara arrogantes. Esta experiênciaservir-me-ia mais tarde para os enfrentar no seupróprio reduto.

Mas antes de entrar n’ a província de Angola tiveali um período de transição em que fui corres-pondente em Luanda do Diário Popular. Foi omeu emprego precário, em que fazia tudo: erajornalista, cobrador e ainda angariava publicida-de para um letreiro luminoso que havia por cimada Livraria Lello. Uma promiscuidade abominá-vel, mas de que só tive consciência mais tarde.

O Diário Popular, nessa altura, tinha uma edi-ção especial para o Ultramar, em papel bíblia.Autoproclamava-se «o jornal de maior expansãono mundo português» e até era verdade. Tinhaessa edição em papel bíblia três vezes por sema-na, porque só havia três carreiras aéreas semanaisentre Lisboa e Luanda. Faziam-se em aviõesDakotas, que voavam aos pulinhos para chegarao destino. Quando entrei no jornal a província deAngola, deixei esse cargo.

Como é que mandava os textos para Lisboa, por

telex?

Não, pelo correio aéreo. Isto dá uma ideia decomo eram as coisas nesse tempo. Por exemplo,n’ a província de Angola, o jornalista do Desporto(e que mais tarde viria a ser o chefe de redacção)era o mesmo homem que angariava publicidadepara o jornal. Não havia regra. Era tudo umpouco sem ética e o pior é que nem sequer setinha noção disso.

Os termos ética e deontologia não se usavam?

Não, só ouvi falar disso mais tarde. Mas queser jornalista não era cobrar assinaturas, issosabia eu perfeitamente, mas não tinha outrosrecursos e precisava de sobreviver. Logo que meinstalei com uma secretária minha e com capaci-

dade para ser apenas jornalista, deixei tudo oresto e dediquei-me exclusivamente à profissão.Mas o clique que operou em mim essa transfor-mação radical só se verificou de facto em Maio de68, quando em Lisboa deparei com esta frase naporta de um casal de jornalistas meus amigos:«Nunca escrevas nada que não possas assinar».Esta frase fez mais por mim do que mil sermões.Mas se é certo que, nesse tempo, havia muitaignorância sobre questões de ética e deontologia,que podem tornar desculpáveis certos comporta-mentos, que dizer do que se passa hoje e meparece bastante pior? Ainda recentemente, abadalada Teresa Guilherme proclamou aos qua-tro ventos que «quem tem ética passa fome».Nem sequer lhe ocorreu acrescentar: «mas temdignidade e merece respeito». Bem sei que aTeresa Guilherme não é jornalista, não passa deuma atrevida. Pior fez a Maria João Avillez, quemal se viu com a carteira profissional de jornalis-ta violou as incompatibilidades profissionais aofazer publicidade redigida para um banco. Fui euque denunciei a situação e ela, muito elegante,entregou o assunto ao seu advogado, o nãomenos elegante José Miguel Júdice, que teve odescaramento de a justificar, como se o texto emquestão fosse anódino e não principescamenteremunerado como publicidade redigida. Hoje,quando se erra, teima-se no erro e não se pededesculpa. Só o Eduardo Cintra Torres veio apúblico dar-me razão. Uma sujeira.

Que tipo de jornal era a província de Angola?

Era um matutino generalista, o principalórgão de informação de Angola, que aliás deuorigem ao actual Jornal de Angola, órgão oficiosodo MPLA.

Em termos tecnológicos, estava bem apetrechado?

Era a tipografia clássica.

Mas conhecendo como funcionavam os jornais aqui

em Lisboa, na mesma época, era parecido?

Só posso responder por avaliação posterior. Aúnica base de comparação que então eu tinhaera com o jornal onde comecei de facto, mas issofoi uma actividade amadorística, nas férias,quando ia para Lousada, onde o meu avô eraguarda-livros (hoje diz-se contabilista) noGrémio da Lavoura. Havia lá o Jornal de Lousada,onde publiquei os primeiros textos, inclusiva-mente artigos de fundo. Fiz uma página culturalchamada Mensagem, de que alguns colaborado-

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res se tornaram conhecidos: um deles é o CarlosPorto, crítico de teatro, começou lá.Correspondia a um movimento cultural decinco jovens de Paredes, chamado Clarão.Começámos a fazer a página no Jornal deLousada, porque não nos deixaram fazê-la n’ OProgresso de Paredes. Achavam que nós éramosuns fedelhos com a mania de intelectuais e nãonos deram espaço no jornal da terra. Acabei porencontrar esse acolhimento no Jornal de Lousada,talvez porque o meu avô paterno era influentena terra. Comecei a escrever para lá umas coisase como adoeceu o homem que fazia os artigosde fundo, disse ao administrador: «Se quiser, eufaço». Ele aceitou e durante um tempo os artigosde fundo do jornal foram escritos por mim, jácom notória propensão polemista.

Esse jornal ainda era muito parecido com osdo tempo do Gutenberg. Era tudo manual, ia-secompondo letra a letra, linha por linha. Esse meuprimeiro contacto com os jornais fez-me impres-são porque o sistema de composição era muitorudimentar. Estou a falar do final dos anos 40,princípio dos anos 50. Era muito vulgar, naépoca, os jornais de província serem compostosmanualmente, só os grandes jornais tinhamlinotypes e intertypes. Em comparação com oJornal de Lousada, é evidente que a província deAngola era um periódico altamente evoluído por-que tinha máquinas já de grande envergadura,embora ainda não dispusesse de rotativa para aimpressão. A tiragem ainda não o justificava.Mas era um jornal de grande circulação, que saíaem Luanda e era distribuído de manhã por todasas capitais de distrito com ligações aéreas. Estivelá uns tempos. Depois saí, ou melhor, fui postona rua porque houve um amigo, o escritorAlfredo Margarido, que publicou no DiárioPopular, primeiro por meu intermédio e depoisnoutros jornais, uma série de artigos sobre oracismo na África portuguesa, sobretudo emAngola. Esses artigos suscitaram uma reacçãointempestiva entre os colonos brancos. Sentiramque estavam a ser postos em cheque. O Comérciode Angola e a província de Angola insurgiram-se earremeteram contra o Margarido como se fosse odemónio, num clamor emocional totalmentedesprovido de sentido crítico. Pretendiam pura esimplesmente…

Achincalhar?

Exactamente. Achincalhar, chamar a atençãoda PIDE e pressionar as autoridades. De tal modo

que o governador-geral Sá Viana Rebelo fez umdespacho proibindo a residência do AlfredoMargarido em Angola. O Margarido estava emLisboa, onde viera de férias, e já não pôde regres-sar. Eu escrevi-lhe, achava que ele devia levar oassunto avante, ou seja: replicar aos ataques deque fora alvo ao abrigo da Lei de Imprensa. Eleassim fez, mandou-me as cartas, eu entreguei-ascom todas as formalidades legais, mas os jornaisnão as publicaram. Um deles, alegando que aCensura tinha cortado, o que até era provável; ooutro nem sequer perdeu tempo a dar-me umajustificação. Achei que aquilo ultrapassava asmarcas e escrevi ao Margarido: «Manda-me umaprocuração», porque o processo só podia seraccionado em Luanda, não podia ser ele aqui emLisboa a fazê-lo. Ele mandou-me uma procura-ção, eu fui ter com um advoga-do, que também fez aquilo pormilitância e comentou: «Eh pá,isto é indecente. Este gajo está aser encurralado».

O advogado era o EugénioFerreira, líder da Oposição, ecomo eu era um pelintra não sefez pagar pelo trabalho. Entãometi O Comércio de Angola e aprovíncia de Angola, que era omeu jornal, no tribunal. Veio asentença, que aplicava multas e impunha aos jor-nais a publicação das cartas de resposta. Devodizer que as cartas de resposta nunca forampublicadas porque a Censura não autorizou. Opoder executivo sobrepôs-se ao poder judicial eimpediu a publicação das cartas, embora as mul-tas tivessem sido aplicadas. Em resultado desteprocedimento fui, mais uma vez, despedido.Fiquei sem emprego e com dificuldades enormes,até porque tinha uns vales à caixa, e quando fuiposto na rua estava completamente liso. Nemsequer podia pagar a pensão onde residia. Fiquei,de facto, muito aflito.

Aconteceu em que ano?

Deve ter sido por volta de 1957. Nessa altura,em Luanda, havia três jornais diários. N’ OComércio de Angola e n’ a província de Angola tinhasido despedido. O terceiro era o Diário de Luanda,órgão da União Nacional, onde eu não era bemvisto, quer dizer, até era bem visto por alguns dosseus jornalistas menos sectários. Mas era daOposição e como tal tinha a entrada cortada.

Portanto, fiquei sem possibilidade de arranjar

“Era difícilencontrar negrosque tivessem ashabilitaçõesnecessárias, pelomenos que escrevessemem bom português”

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trabalho nos jornais. Na emergência, um amigoofereceu-me em pre go na Divisão de Trans portesAéreos, (DTA, génese da actual TAAG), que tinhavagas de tarefeiros para vários aeroportos.Escolhi o mais distante de Luanda como se fossepara o exílio. Foi assim que fugi (o termo não éinocente) para Sá da Bandeira.

Estive cerca de um ano na DTA. Quandohouve a campanha eleitoral para a Presidência daRepública, em que concorreu o generalHumberto Delgado, surgiu em Luanda um outrojornal chamado ABC – Diário de Angola. Esse jor-nal surgiu um pouco à boleia das eleições. A tipo-grafia que depois veio a imprimir o ABC foi amesma que fez os cartazes da propaganda doHumberto Delgado em Angola.

O ABC ficou logo muito ligado à oposição. Euestava em Sá da Bandeira e comecei a escreverpara lá umas Crónicas da Huila. Era uma coisavagamente literária, com notória influência dascrónicas que o poeta Daniel Filipe então escreviado Porto para o Diário Ilustrado. Tal colaboraçãoparece ter agradado e foi o meu passaporte deentrada para o jornal. A certa altura, o MachadoSaldanha, que era director executivo do ABC,convidou-me para redactor e agarrei imediata-mente essa possibilidade, regressando a Luanda.

O chefe de redacção era o José Mensurado,que mais tarde teve em Lisboa funções idênticasn’ O Século e adquiriu grande projecção na RTP,porque fez as reportagens dos foguetões da

NASA e foi pivot na transmissão da chegada doHomem à Lua.

O José Mensurado entrou em litígio com oMachado Saldanha, o tal director executivo, e quisfazer uma greve no jornal. Eu não tinha nada a vercom a guerra dele e disse ao Mensurado: «Acabode chegar, depois de ter tido uma vida infernalpara arranjar este emprego, agora arranjo esteemprego e já me estão a meter num sarilho enor-me, ainda por cima nem sei se estás do lado darazão. Ele começou a explicar-se e eu via que asrazões dele não justificavam tal atitude. O ABC eraum jornal diário, que devia ser feito em máximaforça de manhã e pelas três da tarde entrava namáquina para sair à rua por volta das cinco, hora aque os funcionários públicos saíam das reparti -ções. Mas o José Mensurado era pouco madruga-dor e nunca conseguia estar no jornal antes dasonze, onze e meia, meio-dia. Isto não podia ser,pelo que eu era muito crítico em relação à manei-ra como ele anarquizava a redacção. Disse-lhe:«Tens uma maneira incorrecta de lidar com o jor-nal, porque eu quando aqui chego sei o que tenhopara fazer, mas há pessoas que ficam paradas àespera de saber o que o que vais determinar, por-que nem uma agenda fazes». Ele ficou muito cha-teado e eu resolvi ouvir também as razões doMachado Saldanha. Acabei por não me solidarizarcom o Mensurado. Gerou-se uma ruptura e houveuma reunião plenária na redacção, em que todosfalámos, dissemos o que tínhamos a dizer e no dia

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Acácio Barradas em reportagem no Uíge

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D, que o Mensurado tinha dado ao MachadoSaldanha para satisfazer as suas reivindicações,como não tivesse recebido resposta, declarou:«Então eu vou-me embora». Em boa verdade sóum jornalista se manteve solidário com ele, embo-ra fosse sem dúvida o melhor. Era o Aníbal Melo,que mais tarde se tornou combatente do MPLA eé hoje uma das suas gloriosas referências.

No dia seguinte, encontro uma ordem de servi-ço a nomear-me chefe de redacção interino. Fiqueiem sobressalto e fui ter com o Machado Saldanha:«Não posso aceitar por uma razão muito simples:vão dizer que eu arranjei isto tudo para ficar como lugar do Mensurado». Diz-me o Saldanha: «Aisim? Então olhe para a redacção e encontre-mealternativa». Verifiquei que não havia solução,porque nenhum daqueles tipos que lá estavampodia ser meu chefe. Nenhum deles revelara terqualidades para isso. A alternativa era contrataralguém de fora, mas levaria tempo, pelo que nãotive outro remédio senão aceitar.

Que tipo de pessoas eram esses jornalistas?

O José Mensurado era um jornalista de gran-de gabarito. De todos nós, era o mais apetrecha-do tecnicamente. Falava e escrevia inglês na per-feição, lia a Time com desenvoltura. Portanto, eraum homem dotadíssimo para chefiar a secçãointernacional de qualquer periódico. Tinhaexcepcionais qualidades, tinha cultura, mas eraum indivíduo para quem não havia horas. Ora,um jornal faz-se com ritmos horários rigorosos equem desempenha funções de responsabilidadenão pode prevaricar. Tem de ser um exemplo depontualidade e de regularidade.

O Aníbal Melo, que resolveu sair com ele,mais tarde foi para a União dos Povos de Angola(UPA), que depois deu origem à FNLA. Quandoviu o logro em que tinha caído, pois a FNLA erabastante racista e desprezava os mestiços, transi-tou para o MPLA, cujo sector informativo dirigiudurante muito tempo. O Aníbal Melo era umapessoa com grandes problemas psicológicos(acabou por se suicidar já depois da indepen-dência pela qual tanto lutou) mas era um indiví-duo extremamente habilitado. Os outros não.Mas foi com esses que fiquei a fazer o jornal, oque redobrou o meu esforço.

Havia negros na redacção?

O Aníbal Melo era o único mestiço. N’ a pro-víncia de Angola existia um colaborador, o LuísAlberto Ferreira, que também era mestiço. É pre-

ciso ver que o acesso dos naturais ao ensino eramuito mais difícil. O liceu em Angola é umacoisa do princípio do século, mas realmente sóganhou força nos anos 20 ou 30. Universidadesó houve nos anos 60, graças ao terrorismo, queneste caso e em muitos outrosacabou por ter efeitos positi-vos. Antes do terrorismo, nãose pensou sequer em abrir umauniversidade em Angola por-que queriam que as pessoasviessem estudar para a metró-pole. Isso dificultava o acessodos naturais às redacções. Eradifícil encontrar negros quetivessem as habilitações neces-sárias, pelo menos que escre-vessem em bom português. O Aníbal Melo é umcaso excepcional. O Luís Alberto Ferreira é outrocaso excepcional. Veio para Lisboa, foi redactordo Jornal de Notícias e na televisão fazia comen-tários de tauromaquia, de que se tornou especia-lista. O Luís Alberto Ferreira até ganhou umaalcunha: como escreve muitíssimo bem e é mes-tiço, houve quem o cognominasse de CamiloCastelo Preto. Outro caso singular foi oBernardino Coelho, também mestiço, que emPortugal chefiou a secção Cidade do DiárioPopular, mas que, enquanto em Angola, naredacção d’ O Comércio chefiada por Ferreira daCosta, raramente ia além do trabalho burocráti-co de passar à máquina os telegramas de agên-cia, que então elidiam as palavras óbvias ouintuíveis. Fazer de um jornalista com as qualida-des do Bernardino Coelho um dactilógrafoconstituiu para mim uma inequívoca demons-tração de racismo. Felizmente safou-se e veiopara Lisboa, onde foi devidamente avaliado econsiderado no Diário Popular.

Voltando ao ABC, como correu a experiência de chefe

interino?

Com enormes dificuldades. Eu nunca tinhaido à tipografia para paginar o jornal e tive logoque o fazer no primeiro dia. Tinha ideias, masideias teóricas. Agora meter as mãos no chum-bo… Tive uma aprendizagem complicada e ace-lerada. Uma das pessoas a quem eu mais devo nojornalismo é a um tipógrafo mestiço chamadoLuciano. Cheguei ao pé dele sem saber mexer nochumbo e ajudou-me imenso. Meio ano depoiseu já sabia mais do que ele, porque a sua apren-dizagem tivera um fim, enquanto eu lia revistas e

“Eu lia revistas e jornaisestrangeiros, procuravaestudar as paginações eacabei por me tornar umespecialista nessamatéria. Tinha ummisto de jornalista e detipógrafo”

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jornais estrangeiros, procurava estudar as pagi-nações e acabei por me tornar um especialistanessa matéria. Tinha um misto de jornalista e detipógrafo. Gostei muito da parte da tipografia ecomecei a mexer no chumbo, a sujar as mãos.Tornei-me um mestre nessa matéria. Eu própriopaginava já directamente nas ramas. A únicacoisa que os tipógrafos tinham de fazer era o aca-bamento, fechar as ramas da página, porquequanto ao recheio estava todo lá. Isto foi umacoisa que em Lisboa surpreendeu muita gente,em especial os tipógrafos do Diário Popular,pouco habituados a ver jornalistas fazerem o seutrabalho com tanta desenvoltura.

O ABC aguentou-se depois da campanha eleitoral

de 1958?

O ABC não existia durante a campanha.Passou a sair após as eleições. Até aí a tipografiado ABC só imprimiu os cartazes eleitorais dogeneral Humberto Delgado. Mas o simples factode ter feito os cartazes criou uma expectativa emrelação ao jornal que não foi defraudada. Nãosendo verdadeiramente da oposição, era um jor-nal independente, tanto quanto possível. E emLuanda era o único que não alinhava nas hossa-nas ao regime.

Como é que funcionava a Censura lá? Era como cá,

os censores viam as provas…

Funcionava no Palácio do Governo. O modeloera exactamente o mesmo, embora os critériosfossem por vezes dissemelhantes. Em certoscasos, a censura em Angola e também emMoçambique era mais liberal. Noutros, era maisdura, em especial se punha em causa o portugue-sismo do Ultramar.

Enquanto jornalista em Angola, costumava ir a

outros países africanos em reportagem?

Viajar era quase proibitivo para os recursos daépoca, a não ser quando se acompanhavam enti-dades oficiais, com tudo pago. Mas o ABC era oúnico jornal que tinha uma secção diária exclusi-vamente consagrada a notícias de África. Osoutros jornais não, porque nos anos 50 e 60 asindependências foram sucessivas e eles procura-vam sempre denegrir esses países que conquista-vam a independência. O ABC era o único quetinha uma visão positiva desse problema: consi-derávamos que Angola se situava no continenteafricano, não podíamos ignorar a geopolítica edevíamos dar relevo aos acontecimentos de Áfri-

ca. Essa era uma das coisas que mais chateava aCensura, a PIDE e as autoridades administrati-vas.

Cortavam muita coisa?

Sim, muito. Com algumas particularidades. ACensura em Angola funcionava de uma maneiraque dava alguma latitude a certas coisas que aquinão se podiam dizer, e lá podiam. Havia outrasque aqui se podiam dizer e lá não. Aqueles arti-gos do Margarido, por exemplo, a denunciarsituações de racismo em Angola, isso lá era prati-camente impossível, mas aqui passou tudo,mesmo num grande jornal fiel ao regime fascistacomo o Diário de Notícias, ao tempo dirigido peloescritor Augusto de Castro.

E o inverso, lembra-se de alguma situação?

Em 1967, houve na região de Lisboa enxurra-das terríveis em que morreram mais de 500 pesso-as. As fotografias de toda aquela miséria foramcortadas nos jornais de cá, que não publicaramquase nada. Era uma árvore aqui, uma coisa des-garrada ali, nada que tivesse a real dimensão dra-mática, as vidas humanas perdidas, o gado morto,os haveres perdidos. Todas essas fotografias nãopuderam ser publicadas cá, mas lá foram. Eu naaltura chefiava em Luanda a redacção da revistaNotícia e fiz um suplemento especial repleto comas imagens aqui proibidas pela censura.

Só se vendia em Luanda?

Não, vendia-se cá também. Tinha uma ediçãodupla. E a edição metropolitana incluía o slogan«Notícia – uma lança de África na Europa». Erauma revista semanal, saía aos sábados e, na altu-ra, foi um órgão de informação influente.Quando foi publicado esse suplemento, em 1967,esgotou-se rapidamente. As pessoas viam final-mente as imagens da grande tragédia obtidaspor muitos dos melhores fotógrafos da Imprensametropolitana, e que só assim puderam chegarao grande público. Foi o que se chama um gran-de «furo» jornalístico. A Edite Soeiro, que erachefe da redacção da delegação de Lisboa, com-prou essas fotografias, mandou-mas e eu fiz lá osuplemento sem que a Censura o impedisse. Porque haveria essa diferença? A minha interpreta-ção é que, lá, aquilo serviu para mostrar aos indí-genas que os brancos também tinham miséria esofrimento, não acontecia só nas sanzalas.

Portanto, os critérios que regiam a Censura muda-

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vam em função da latitude?

E da percepção das pessoas, penso eu. NoABC, a certa altura, tive um colaborador preciosoque fazia um jornalismo sensacionalista, de inspi-ração brasileira, embora com uma linguagemtipicamente angolana. Ele gostava imenso e euexplorava isso, fazia grandes manchetes com ascoisas dele e até mandava anunciá-las por umacarrinha sonora. Era um grande repórter angola-no chamado Ernesto Lara Filho. Por vezes faziacoisas um bocado demagógicas mas eu alinhavanaquilo porque ele sabia seduzir com as palavras.Por exemplo, passavam em Lisboa altas persona-lidades que em Angola eram mitificadas, sobretu-do personalidades brasileiras porque nós emAngola acompanhávamos muito as actualidadesdo Brasil. Fascinavam-nos as revistas brasileiras,o Cruzeiro, a Manchete. Um dia, o Ernesto entre-vistou aqui o Jânio Quadros…

Esse repórter trabalhava em Lisboa?

Ele era de lá, nasceu em Benguela, mas estavacá a estudar e depois acabou os estudos e ficoupor aqui uns tempos, já não me lembro em quesituação. Sei que estava em Lisboa e mandava-nos artigos e entrevistas com frequência. O JânioQuadros foi Presidente do Brasil, subiu ao poderna altura em que o capitão Henrique Galvãoandou às voltinhas com o paquete Santa Maria nomeio do Atlântico.

Foi quem lhe concedeu o estatuto de exilado políti-

co quando o barco aportou no Recife.

Exactamente. O Henrique Galvão esteve doisdias à espera de entrar com o barco, à espera queo Jânio Quadros tomasse posse. O Jânio era umindivíduo de direita. Simplesmente, em relaçãoao regime ditatorial português, funcionava comoum democrata. O símbolo político do JânioQuadros era algo que nesta altura volta a fazerfalta no Brasil (e em Portugal idem aspas): umavassoura. Significava a pretensão de correr comtodos os corruptos da administração pública. OJânio Quadros passou por Lisboa e o Ernestoteve artes de o conseguir entrevistar. No meio daentrevista, uma frase do Jânio ressoou como umtiro na minha cabeça: «Se for eleito visitareiAngola». Resolvi fazer com ela uma mancheteespecial, embora temeroso de um corte da cen-sura. Repare-se no melindre: Angola não era umpaís independente, era oficialmente uma provín-cia do Ultramar português. Logo, o JânioQuadros exorbitava e interferia com situações

politicamente delicadas quando se referia espe-cificamente a Angola e não a Portugal. Resolviarriscar: escolhi umas letras garrafais de madeirapróprias para cartaz e paginei em duas linhasfortes a frase do Jânio, que se via a cem metros,por cima da sua fotografia.

Uma paginação à Diário Popular ?

Uma paginação mais à brasileira. O títuloberrava como um cartaz. Aquilo vai à Censura,que por distracção não entendeu o sentido políti-co da frase. Mas logo que o jornal saiu para a rua,as reacções não tardaram, sobretudo por partedos meios oficiais lisboetas. Fui chamado aoPalácio, fui chamado à PIDE, mas fiz-me deparvo. Depois aquilo acabou por não dar emnada, a menos que quisessem arranjar mais umsarilho diplomático com o Brasil. E quem foicorrido foi o censor.

Após este episódio, durante uns tempos aCensura via tudo à lupa e corta-va mais do que devia, numaautêntica retaliação. O pior éque passei a ter que mandar ojornal à Censura já paginado,para eles verem o próprio estré-pito do título e respectiva locali-zação. Nunca fiquei preso masfui numerosíssimas vezes inte-rrogado pela PIDE por causa dematéria publicada no ABC quetinha passado o crivo da Censura.

O trabalho no ABC foi a sua experiência jornalística

em Angola mais relevante?

Estive no ABC em quatro períodos distintos,sempre como chefe de redacção. Mas em 1962resolvi aceitar uma operação de risco e fui para oJornal do Congo, que se publicava no Uíge, ou sejano coração do terrorismo da UPA.

O terrorismo começou em Angola em Marçode 1961. O chefe de redacção do Jornal do Congofoi baleado, não se sabe bem como. Se foi umabala desgarrada, nunca se percebeu bem de ondeé que proveio. Ele não morreu, mas ficou defi-ciente e na emergência foi preciso contratar novochefe de redacção. Como o linotipista do jornalme conhecia do ABC, fez-me tais referências quelhe pediram para me sondar. E convidaram-mepor engano, pois não sabiam que eu detestava ojornal e a sua demagogia e que estava decidido acombatê-la por dentro, utilizando a táctica trots-kista do entrismo.

“Em certos casos, acensura em Angola eem Moçambique eramais liberal. Noutros,era mais dura, emespecial se punha emcausa o portuguesismodo Ultramar”

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Os donos do Jornal do Congo eram os homensdo café, quinze proprietários que fizeram umasociedade, cada um tinha a sua quota, não meconheciam, precisavam de um jornalista quefosse do contra, um indivíduo enérgico, decidi-do e que não alinhasse facilmente com o poder,porque eles, na altura, estavam envinagradoscom o poder por terem os seus interesses alipostos em causa. A tropa nunca mais vinha emesmo quando chegou não dava a protecçãoque eles reclamavam para as suas propriedades.A tropa considerava que defender os interessesde Portugal não era a defesa dos interesses doscafezeiros. E foi assim que, para exclusiva pro-tecção das propriedades, foi criado um corpo devoluntários.

Como era o Jornal do Congo antes da sua entrada?

Era um jornal sem critério, mas que vendiamuito pela demagogia que o caracterizava. Diziauma coisa na primeira página, na última dizia ocontrário, chegava inclusivamente a defenderposições racistas em determinados artigos.Lembro-me de ler lá um artigo em que se procla-mava: «Precisamos de fazer aquilo que a Áfricado Sul fez». No fundo, era o apartheid. Isto ao ladode outros artigos que defendiam a «nação multir -racial e pluricontinental». Era uma coisa sem reinem roque, uma desordem, correspondia umpouco à maneira de ser do tal chefe de redacçãoanterior, Sousa Costa. Pensei um bocadinho eresolvi aceitar. Fui para lá e tive uma estratégia de

me assenhorear do jornal e de lhe conferir algu-ma dignidade. Quis sobretudo acentuar, numaregião onde imperavam os ódios raciais, que osnegros não eram apenas terroristas, tinham umacultura e uma identidade dignas de respeito.Enfim, fiz tudo o que quis e me apeteceu sem darsatisfações a ninguém.

Em situação de guerra, como foi possível essa

liberdade?

Verifiquei que o director do jornal era um pa -nhonhas, estava ali só para dar o nome.

O que aliás era típico nos directores dessa época,

não é?

Era típico, porque em Angola havia uma leique impunha que os directores fossem licencia-dos. Alguns proprietários de jornais, não tendolicenciatura e precisando de um director, iampedir a um amigo licenciado que desse o nomepara o cabeçalho. Alguns ganhavam por isso,outros aceitavam por mera vaidade. Mas haviacasos escandalosos. Por exemplo, o ABC tevecomo director um engenheiro que vivia emLisboa e que nunca conheci. Eram pessoas quedavam o nome só para figurar no cabeçalho emais nada.

No caso do Jornal do Congo, o director eradeste género mas também era vaidoso e a minhaestratégia com ele foi dizer-lhe: «Gostava dereceber instruções suas». Ao que ele respondeu:«O senhor é que sabe, é que é jornalista». Entãocontinuei: «Pois fique sabendo que não receboinstruções de mais ninguém. Os homens do cafétêm o dinheiro, mas não dispõem de autoridadeeditorial. Para mim, o director é o director». Elesentiu-se todo inchado e quando eu tinha lá oshomens do café a chatear-me por causa das coi-sas que eu punha no jornal, desculpava-me comele: «Os senhores escusam de me pressionar,quem manda aqui é o director». Saíam dali furio-sos comigo, mas não podiam fazer nada porque,do ponto de vista formal, a minha atitude eralegítima. Mal eles saíam, eu pelo telefone avisa-va o director para ele não ser comido pelosoutros e a partir daí estava tudo OK. Aqueledirector era o ideal para mim. O jornal fez-secomo eu quis. Um jornal bastante independente,devo dizer, numa zona extremamente difícil queestava em guerra.

O mais curioso é que a própria PIDE reconhe-ceu o meu papel no Jornal do Congo e, mesmo acontragosto, prestou-me justiça, como mais tarde

MEMÓRIA Acácio Barradas

Álvaro Barradas,pai do Acácio,trabalhou com

Reinaldo Ferreiracomo fotógrafo

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verifiquei ao consultar os seus arquivos na Torredo Tombo. Dizia, cito de memória, mais oumenos isto: antes da entrada do Barradas, o Jornaldo Congo era escarnecido na Associação dosNaturais de Angola. Mas depois passou a ser lidoali com o maior interesse. Senti-me recompensa-do com esta medalha do inimigo.

O certo é que no Uíge não fiz só o jornal, ani-mei aquilo, criei um Cine-Clube e levei lá aAmália Rodrigues a cantar para a tropa.

O jornal também patrocinava espectáculos?

Só dessa vez, devido à minha maneira de ser.Foi uma cena engraçada, porque a Amália teveque cantar de dia, no único recinto onde era pos-sível fazer o espectáculo sem o risco de sermosatacados pela UPA: numa grande piscina e ao arlivre. Era perigoso ser à noite, porque a seguran-ça seria reduzida e não queríamos arranjar pro-blemas com a Amália. Levei algum tempo a con-vencê-la a cantar de dia, pois detestava fazê-lo eacabou por cantar de óculos escuros, como fazhoje o Pedro Abrunhosa. Na altura, disse-me: «Éa primeira vez que faço isto na minha vida, por-que eu só canto à hora das bruxas».

A Amália foi a Angola em digressão e ofereceualguns espectáculos para as Forças Armadas. Epara ela não correr riscos, programaram os espec-táculos para Nova Lisboa e Benguela. Comoachei isto indecente, fui a Luanda esperá-la edisse-lhe: «Então a senhora vai cantar para tropanos sítios onde não há guerra?». Ela era muitoviva e de compreensão rápida. «Quem é você?»,começou por indagar. Expliquei que era jornalis-ta e estava no Uíge. Ela nem pestanejou: «Tenhodois dias livres na minha visita a Angola. Se qui-ser, arranje o espectáculo para um destes dias queeu vou lá». Eu assim fizi, tive que tratar de tudo,avião, alojamento e ela foi lá cantar nessas condi-ções. Note-se que nessa altura a Amália estava noauge, tendo acabado de editar o que, para mui-tos, é o seu disco emblemático: Com Que Voz. Asua actuação no Uíge foi verdadeiramente ines-quecível, pois a vibração do acolhimento desper-tou nela uma fortíssima emoção que se exprimiude maneira sublime. Obrigou-me a apresentá-laantes de entrar em cena, o que me levou a rece-ber a maior ovação da minha vida.

Quando saiu do Jornal do Congo?

Acabei por sair do Jornal do Congo apenas novemeses depois de nele ter ingressado, devido a umproblema de carácter familiar, relacionado com

aquela minha primeira filha «acidental». Tive devir com urgência ao Puto, que era a nossa desig-nação mais carinhosa para Portugal Continental.E para vir cá, tinha que ser substituído, porque euno jornal era tudo.

Não havia outras pessoas na redacção?

Eu era chefe de uma redacção que não existia,só tinha colaboradores. Não havia possibilidadenenhuma de eu deixar o jornal durante um mêsou mais. Então, fiz-me substituir por um excelen-te jornalista, o Emílio Filipe (já falecido), queficou lá uns tempos. Mas quando ele saiu, fê-losem as minhas preocupações de deixar o postobem entregue e o jornal caiu nas mãos da extre-ma-direita. Isto mostra como é que aquele jornalflutuava conforme o chefe de redacção e sem amenor interferência do director.

Devo dizer que tive um bom interlocutor napessoa do major Rebocho Vaz. Na altura eragovernador do Uíge e até intervinha muitasvezes para levantar cortes de censura. Era ummilitar esclarecido e dialogante. A qualquer horaeu chegava ao palácio para pôr um problema, elemandava esperar e logo quetivesse oportunidade recebia-me. Eu expunha-lhe o proble-ma, ele dizia sim ou não, massempre sem peias, sem proble-mas burocráticos, nem salama-leques. Foi sempre uma pessoaextraordinária, nesse aspecto.Mais tarde, veio a ser governa-dor-geral de Angola.

E depois da vinda a Portugal,

onde retomou a profissão?

Regressei ao ABC, para o cargo de chefe deredacção, porque as pessoas que ficavam nolugar tinham sempre dificuldades de trato com oMachado Saldanha, e eu conseguia superar issotudo. A única coisa que não consegui superar foio vil metal, pois ele era um forreta e nunca mepagou (a mim e a ninguém) de forma justa ecompensadora.

Os jornalistas ganhavam mal?

Em relação ao comum dos mortais, o jornalis-ta tinha um vencimento que lhe dava um estatu-to social relativamente elevado. Era uma profis-são com um nível de rendimento acima damédia. Por exemplo, no ABC, onde eu me queixa-va de ganhar mal, auferia seis mil escudos. Não

Chamei os fotógrafosda publicação edesafiei-os: «Pàzinhos,temos aqui apossibilidade de fazerbrilhar o vossotrabalho. Vamos deixaras fotos miniatura etrabalhar em grande»

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era muito, não era pouco. Eu é que tinha respon-sabilidades familiares e diziam que vivia acimadas minhas posses. Quando vim embora paraPortugal Continental, em 1968, já ganhava dezmil escudos, o que poderia ser considerado bas-tante bom se tal rendimento não fosse afectadopor subtracções como a pensão determinada pelotribunal para os meus filhos menores e outrosencargos familiares de carácter fixo.

Depois do ABC, transitou directamente para o

Diário Popular?

Depois do ABC ainda trabalhei em Luandanas revistas Noite & Dia e Notícia, de que o jor-nalista Charulla de Azevedo entretanto se torna-ra proprietário, graças ao apoio dos empresáriosManoel Vinhas e Caetano Beirão da Veiga. OCharulla ficou dono de um pequeno impérioque incluía uma gráfica, uma agência de publici-dade e as Listas Telefónicas Classificadas. Tinha33 anos e um promissor futuro, mas não resistiuao peso das responsabilidades e teve um enfartefulminante. Depois disso, os chacais entraram naliça para disputarem o poder com intrigalhadas eeu abomino esses joguinhos de salão, pelo quepensei livrar-me daquilo na primeira oportuni-dade.

Foi nessa altura que a Edite Soeiro se deslocoua Luanda para uma visita de trabalho…

A Edite Soeiro foi sua mulher...

Foi o que hoje se chama uma «união de facto».Temos um filho, o Luís Barradas, que utilizou osgenes dos pais para outra forma de comunicação:a publicidade. Foi por causa da Edite que eu vol-tei ao Puto, porque ela foi a Angola numa visitade trabalho e ficamos enamorados. A solução eraela voltar para Angola ou eu vir para Portugal.Acabei por ser eu a dar o salto, até porque se tor-nava mais fácil e já se adivinhava que os brancostinham os dias contados em Angola, mesmo osque haviam resistido ao fascismo e se haviamsolidarizado com os nacionalistas que lutavampela independência, como era o meu caso.

Na revista Notícia, teve alguma acção determinan-

te?

Entre outras acções determinantes, fui eu quetransformei esse semanário em revista. O que severificou mal entrei, por circunstâncias fortuitas.O Charulla de Azevedo, que era redactor dosemanário, ia estar ausente para uma reportagemde três semanas na República Federal Alemã e

pediu-me para eu o substituir. Na altura, o admi-nistrador da publicação, António Alves Simões,deu uma volta comigo pelas instalações daempresa e, na tipografia, disse-me: «Sabe, eutenho estas máquinas de offset que comprei paraimprimir os boletins do Totobola. Mas para o efei-to só as utilizo dois dias e ficam paradas o restoda semana. Se você quiser, pode experimentarimprimir aqui alguns cadernos da revista, tirandomaior partido das imagens». Perguntei aoCharulla se via algum inconveniente em que eutentasse a experiência durante a sua ausência eele deu-me carta branca.

Na altura, havia uma revista francesa de queeu gostava muito, a Paris Match, quando haviaum acontecimento importante punha grandesfotografias a morder a página, sem margem. Eraaquilo que eu tinha imaginado sempre, que viatambém n’ O Cruzeiro e na Manchete do Brasil.

Chamei os fotógrafos da publicação e desafiei-os: «Pàzinhos, temos aqui a possibilidade defazer brilhar o vosso trabalho. Vamos deixar asfotos miniatura e trabalhar em grande». Enfim,entusiasmei-os. E o resultado foi imediato.Comecei por alterar o caderno que incluía a capae as páginas centrais. Deu logo nas vistas e toda agente gostou. Tanto que quando o Charullaregressou da Alemanha, disse-me: «Isto é bestial.Já não sais de cá». Progressivamente, a revista foimudando até ficar completamente feita em offset.Eu comecei a trabalhar em offset muito cedo, emmeados dos anos 60, em Angola.

Então isso foi antes de existir offset nos jornais de

Lisboa?

Muitos anos antes. Só voltei a trabalhar com ooffset já nos anos 70, no Diário Popular.

Nessa altura, já lá não estava o Francisco Pinto

Balsemão?

Não. O Balsemão saiu da empresa antes dessarenovação gráfica, que ficou a dever-se ao seuinimigo figadal Braz Medeiros. Mas foi oBalsemão que, em 1968, me admitiu no jornal,depois de uma recomendação do Luís Fontoura.Quando fui falar com o Balsemão vi que, a pardas informações positivas do Fontoura, tambémrecolhera a meu respeito informações negativas,pois a dada altura atirou-me com esta: «Ouvidizer que você é muito makeiro», o que em lingua-gem luandense significava agitador. Fixei-o nosolhos e respondi ao comentário com um desafio:«Sabe, Dr. Balsemão, não gosto que me pisem o

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rabo e se o fazem reajo à bruta. Mas se o tranqui-liza admitir-me experimentalmente, digo-lhe jáque não me oponho, pois considero a experiênciarecíproca. Julgo que bastam três meses». Eleanuiu e perguntou-me o que é que eu sabia fazer.«Olhe – disse eu – prefiro dizer-lhe aquilo quenão sei. Não sou excepcional em nada, sou razo-ável em muitas coisas e tenho um handicap: nãofalo inglês, que é uma coisa que cada vez vaisendo mais necessária, e falo mal francês. Emmatéria de línguas, não sou nenhum barra. Masdomino as técnicas da profissão, quer comoredactor quer como paginador».

«E politicamente, como é?» – interrompeu-mede chofre. «Sou democrata», respondi. Ao que elereplicou: «É disso que a gente precisa». Dessa éque eu gostei, porque na altura isto era tudomuito complicado sob o ponto de vista político eeu tinha cadastro na PIDE.

Chegou a Lisboa em plena Primavera marcelista?

Entrei no Diário Popular em 1968, para aí emMarço, Abril. O Salazar caiu da cadeira uns mesesdepois. A minha entrada no Popular verificou-seantes, ainda não havia a ala liberal daAssembleia. Francisco Balsemão trabalhava numgabinete ao fundo da redacção e tinha, de facto,um certo poder lá dentro, que era contrariadopor uma corrente forte da redacção, a dos vetera-nos, que se sentiam mais ligados ao administra-dor Braz Medeiros, que era legionário e presiden-te do Sporting. O Balsemão estava a entrar numterreno que tinha sido dominado (e até minado)pelo Braz Medeiros. Estava a querer renovar osquadros, com pessoas mais arejadas. Eu entreinessa leva de pessoas contratadas por ele e quetinham uma nova visão do mundo.

Que tipos de serviços é que fez no Popular?

Fiz tudo. E com grande prazer. Como tinha sidochefe de redacção em vários periódicos, raramen-te podia sair para a rua em reportagem, estavamuito agarrado à secretária, a rever os textos dosoutros, a organizar, a paginar. De repente, alicomecei outra vez a ir para a rua, a ir em busca dasnotícias, a escrever reportagens e eu adorava isso.

Quando descobriram que eu tinha jeito para apaginação, resolveram explorar essa faceta e lixa-ram-me com funções de chefia. Comecei outravez a rever o trabalho dos outros, mas eu próprioa ter uma criatividade menor, a não ser a criativi-dade que se traduz em títulos e em descobrirtemas para investigar.

Muitas vezes me arrependi de ter demonstra-do o meu jeito para a paginação, pois quandoviram que era capaz de associar o jornalismo àtipografia e fazer coisas na tipografia que os pró-prios tipógrafos ficavam espantados, deixei defazer reportagem. A verdade é que eu estavamais avançado do que eles, porque já trabalhavaem offset.

Basicamente, saía uma impressão mais limpa e

permitia tirar muito mais cópias...

Tinha todas as vantagens. Era um trabalholimpo, tecnicamente mais avan-çado, simplesmente havia aoposição dos tipógrafos emesmo de muitos jornalistas. Ooffset praticamente acabou comos tipógrafos. Passaram a sertécnicos de bata branca, a tra-balhar com pinças, os mais tos-cos não conseguiram transitarde uma tecnologia para outra.Houve uma oposição forte,mesmo de muitos jornalistas que sentiam que jánão sabiam mexer naquilo.

Quando o Diário Popular comprou a primeiramáquina rotativa em offset, a Goss, eu fui a Françacom uma equipa de operários, de tipógrafos, ohomem da gravura, dois chefes de tipografia, osdois impressores, um grafista. Era um grupo deuma dezena de trabalhadores especializados. Fuicom eles a França ver trabalhar a Goss, para sefazer a compra e para eles terem lá uma primei-ra formação com os técnicos franceses. Ficámoslá quinze dias para ver funcionar a máquina, veras aptidões que ela tinha, para poder ensinardepois as outras pessoas. Eu fui escolhido parachefiar o grupo porque era o único no DiárioPopular que sabia daquilo. O problema maior foiconvencer os meus chefes que eles não iam serpostos de lado. As pessoas tinham um medoterrível do offset, circunstância agravada pelofacto de no Diário de Lisboa, primeiro jornal por-tuguês a adoptar o sistema, o administradorLopes do Souto ter feito daquilo um mistério sóacessível a raros.

Quando criou o Expresso, o Balsemão levou

alguém com ele do Popular?

Vou-lhe contar uma coisa que ainda hoje mecausa engulhos. O Balsemão viu-se forçado a sairdo Diário Popular, porque o Braz Medeiros soubeaguardar a oportunidade de o incompatibilizar

“O Balsemão estava aquerer renovar osquadros, com pessoasmais arejadas. Euentrei nessa leva depessoas contratadas porele e que tinham umanova visão do mundo”

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com o tio, que também se chamava FranciscoBalsemão, e que era detentor da quota principal.Havia um acordo entre o Braz Medeiros e oBalsemão tio, de acordo com o qual se um delessaísse, o outro também sairia. Quando oBalsemão sobrinho foi eleito para a ala liberal daAssembleia Nacional e patrocinou a defesa deuma Lei de Imprensa, o Braz Medeiros influen-ciou o tio de forma tão negativa que ambos deci-diram vender o jornal ao banco Borges & Irmão,onde o Dr. Miguel Quina era figura de proa. OFrancisco Pinto Balsemão não teve outro remédiose não bazar, porque ficava em minoria. Em con-trapartida, o Braz Medeiros regressou em forçaao jornal, nomeado pelo Miguel Quina comopresidente do Conselho de Administração. Umgolpe de mestre.

Naquelas circunstâncias, tomei a iniciativa deassinalar a saída do Francisco Pinto Balsemãocom um jantar de homenagem, pondo em relevoo seu desempenho na defesa de uma Lei deImprensa que pretendia pôr termo à Censura.Fiz um abaixo-assinado que percorreu não só aredacção mas todas as secções da empresa embusca de inscrições. E o resultado foi curioso.

Numa casa com algumas centenas de emprega-dos e em que muitos, sobretudo jornalistas,deviam favores pessoais ao Balsemão, só houveumas trinta inscrições para o jantar. Tudo pormedo do Braz Medeiros, que diziam vingativo. Ecomo eu era o autor da iniciativa, ninguém davanada pela minha pele, coisa para que eu aliás meestava borrifando, pois nesse tempo não me fal-tavam convites para outros jornais. Mas a verda-de é que o clima que gerei era de cortar à faca eo próprio redactor principal, José de Freitas, quese blasonava da oposição e até aí fora obsequio-so comigo, pura e simplesmente deixou de mefalar, mesmo para corresponder a uma simplessaudação.

O certo é que não fui vítima de nenhuma reta-liação por parte do Braz Medeiros e, pelo contrá-rio, muitos daqueles poltrões que deveriam terido ao jantar até porque lhe deviam o emprego, aprotecção e outros favores, vi-os depois seremdesprezados pelo Braz Medeiros, ao qual preten-diam bajular. Uma saborosa ironia, assente napsicologia muito própria do Braz Medeiros, parao qual os homens ou têm ou não têm tomates. Ecomo eu mostrara que tinha tomates, ele achou

MEMÓRIA Acácio Barradas

Angola, anos 60: o repouso do jornalista

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por bem respeitar-me, até porque as informaçõesdos veteranos sobre as minhas qualidades profis-sionais eram muito positivas. Daí que me tenhapago com mais generosidade do que o Balsemão,que sob este aspecto sempre foi «unhas de fome».

Depois de tudo isso, o Balsemão não o convidou

para o Expresso?

Ora aí está uma pergunta que abre caminhopara a tal situação que ainda hoje me causaengulhos. Um dia o Balsemão convidou-me avisitá-lo na Braamcamp, onde o Expresso se insta-lou até se mudar para Paço de Arcos. Mostrou-meo projecto gráfico do jornal, pediu-me opiniãosobre vários assuntos, inclusivamente sobre omelhor dia para a publicação, referiu o nome dealguns colaboradores e disse que iria em seguidacriar o quadro redactorial, perguntando-me se euestava interessado na aventura. Respondi-lhesem pestanejar que podia contar comigo se equando quisesse, pois o projecto jornalístico deleera cativante. Não se falou de cargos a desem-penhar, nem de remunerações a pagar. E saí dalicom a garantia de que ele me iria contactar embreve. Até hoje.

Quando recebi convite para o lançamento doExpresso, não fui. Achei que o comportamentodele fora, no mínimo, descortês. E pelo que seidas suas idiossincrasias, não tenho dúvidas quealgum dos meus «amigos da onça» lhe tenha feitochegar aos ouvidos uma intrigazinha a meu res-peito, que o dissuadiu de me convidar. Este ladofraco do Balsemão, tão permeável à intriga, éuma das suas facetas mais negativas, que o JoséAntónio Saraiva documenta de forma expressivanos livros autobiográficos que escreveu sobre oExpresso, de que foi director ao longo de 22 anos.

Voltando ao Diário Popular, como definiria o posi-

cionamento político do jornal?

Curiosamente, era um jornal que, estandoligado ao regime, tinha lá dentro muita gente quenão era e fora admitida pelo Francisco PintoBalsemão. Portanto, no 25 de Abril foi fácil aadaptação, excepto nalguns quadros superiores.Mais de metade da redacção estava mortinha porque aquilo acontecesse para poder ter outro com-portamento. Aqueles que não acompanharam,ficaram a marcar passo. Mas não fizemos sanea-mentos abaixo da administração, cumprindoescrupulosamente a máxima de que «trabalhado-res não saneiam trabalhadores». Sob tal aspecto,fomos exemplares.

O próprio chefe de redacção, coitado, no dia25 de Abril, foi completamente ultrapassadopelos acontecimentos. Nunca deixou de enviar ostextos à Censura, até que o estafeta lhe disse: «Ósr. Dr., já não está lá ninguém». Ele mandavaaquilo tudo e ainda dizia para o homem da agen-da: «Não te esqueças que amanhã o Chefe deEstado vai não sei onde!». A malta ria-se comaquilo tudo. O país a cair por todos os lados e eleainda estava naquela onda do antigamente.

Refere-se ao Fernando Teixeira?

Sim, ele não estava preparado para os novostempos. Acabou por ser promovido a director doJornal do Comércio durante uns tempos. Foi amaneira que o Miguel Quina arranjou de ele ficarcom um lugar qualquer.

O Diário Popular, nos anos 60, era o jornal portu-

guês mais dinâmico?

Era um jornal com uma grande influência,vendia cento e tal mil exemplares por dia, eramesmo popular. É difícil hoje nós encontrarmosuma redacção com as características que tinha oPopular desse tempo! Haviauma mesa de telefones e todosos dias era marcado o serviço detelefones a três ou quatro jorna-listas. Os telefones estavamsempre a tocar e eram os leito-res que nos davam notícias,informações ou a fazer pergun-tas que nos davam pistas parainformação. Por outro lado, ser-via para o repórter que ia a umlado qualquer passar as infor-mações pelo telefone, muitas vezes em cima dahora de fecho e tínhamos de redigir ali as notíciasmuito rapidamente. As fontes permanentes eramos hospitais, a polícia, os bombeiros e depoisíamos aos sítios saber mais detalhes quandohavia alguma coisa que justificasse. Havia servi-ços de rotina. Por exemplo: se uma pessoa impor-tante estava doente, seguíamos dia-a-dia a suaevolução. Houve uma ocasião uma senhora queme encontrou na rua e me disse: «Ai, eu queroagradecer-lhe imenso porque sei que o senhormandava todos os dias telefonar para saber dasaúde do meu marido, foi uma atenção que agente não pode esquecer». Uma atenção! Nósestávamos a fazer de vampiros, queríamos eradar a notícia logo que essa pessoa morresse!

Quando o Joaquim Agostinho estava a correr

“Quando o JoaquimAgostinho estava a correrna Volta à França e todos osdias acabava a etapa, osleitores pretendiam saberem que lugar chegara e paraonde é que telefonavam?Para o Diário Popular”

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na Volta à França e todos os dias acabava a etapa,os leitores pretendiam saber em que lugar chega-ra e para onde é que telefonavam? Para o DiárioPopular. O jornal tinha uma ligação profunda aoleitor, nunca vi uma coisa assim. Cultivava-seesse espírito. Os jornalistas que iam para os tele-fones atendiam os leitores com simpatia e delica-deza. Muitas vezes os leitores ligavam a dizer:«Olhe, passaram aqui na rua três ambulâncias,sabem o que aconteceu?». O jornalista respondia:«Não sabemos, mas telefone daqui a dez minutose a gente já lhe diz». Averiguávamos a informa-ção e se, por vezes, era uma coisa sem importân-cia, outras vezes tinha. Mas éramos constante-mente alertados pelos leitores para tudo e maisalguma coisa.

O jornal pagava aos informadores que tinha nesses

locais estratégicos?

Alguns eram pagos. Outros tinham a chamada«benesse». O jornal tratava bem as pessoas quelhe davam informação ou facilidades. Vou-lhedar o exemplo dos polícias sinaleiros. Quando oDiário Popular saía da oficina, tinha que se levar osjornais a Santa Apolónia para apanhar o comboiopara o Norte. E no trânsito para Santa Apolóniahavia três polícias sinaleiros que eram funda-mentais para não haver atrasos. O trânsito para-va para deixar passar o carro do Popular. Essespolícias sinaleiros recebiam todos o jornal do dia.

O jornal era uma coisa a que todos os nossosinformadores tinham direito e alguns tambémrecebiam uma avença. Quem não tinha avença,por alturas do Natal recebia uma prenda. Haviasempre pessoas a quem o jornal obsequiava comprendas de maior ou menor valor, consoante aimportância do seu contributo para a nossa mis-são informativa.

Concorda que os anos 60 foram anos de viragem...

E de crise! Por exemplo, a questão do offset foiuma revolução que, do meu ponto de vista, crioumais vítimas do que a informática. O ambientedo computador, passada a primeira barreira, éamigável. Agora, a transição do chumbo para off-set foi grave porque deu cabo da classe dos tipó-grafos.

Em Inglaterra provocou greves com destrui-ção de material. Eles lá são mais brutos do quenós e houve coisas terríveis. Nós aqui consegui-mos passar sem as guerras que houve lá fora, foiuma coisa relativamente pacífica, talvez porqueos portugueses são mais resignados, mas fez víti-

mas. Entre os jornalistas, nessa época, houveuma renovação. A Universidade, ainda que naaltura não houvesse cursos de jornalismo, come-çou a criar novos quadros e novos valores. Eu souum autodidacta, mas não defendo os autodida -ctas. Prefiro os que se qualificam pela formaçãoacadémica, embora não tenha ilusões sobre aqualidade do nosso ensino superior, que tantasvezes é de pacotilha.

Em termos políticos, com a subida do Marcelo

Caetano ao poder, sentiu alguma mudança com

reflexos no trabalho dos jornalistas?

Não sei se directamente por causa do Marcelo.Acho que já havia antecedentes. Para além dosacontecimentos no resto do mundo, a nível inter-no, para mim, houve duas coisas fundamentais:uma foi o facto de os estudantes, até por egoísmo,não quererem ir lutar para o Ultramar. Achavamque a Guerra Colonial não tinha nada a ver comeles e a perspectiva de terem que pôr uma fardae irem para a guerra gerou uma crise estudantilque atravessou todos os anos 60.

O facto de haver uma ditadura punha a juven-tude contra o poder instituído, sobretudo depoisda grande sacudidela das eleições do HumbertoDelgado, cujos resultados foram fraudulentos.Essa atmosfera de contestação abalou todos osanos 60 com múltiplos sismos cujas ondas seforam propagando. A ditadura, a GuerraColonial e a repressão contribuíram para que arevolta fosse cada vez mais latente. A repressãoda PIDE e da Censura foi particularmente inten-sa nesse período.

1 Fernando Correia e Carla Baptista, Jornalistas.Do Ofício à Profissão. Mudanças no Jornalismo

Português (1956-1968), Caminho, 2007.

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