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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO Márcio Lázaro Almeida da Silva Rio de Janeiro 2019

NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A

ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO

Márcio Lázaro Almeida da Silva

Rio de Janeiro

2019

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2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A

ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO

Márcio Lázaro Almeida da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Linguística da

Universidade Federal do Rio de Janeiro

como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em Linguística.

Orientadora: Profa. Dr

a. Tania Conceição

Clemente de Souza

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2019

Page 3: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

3

NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A

ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO

Márcio Lázaro Almeida da Silva

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da

Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Tania Conceição Clemente de Souza (Presidente) – Programa de Pós-

Graduação em Linguística/UFRJ

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Barros Montez (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação

Interdisciplinar em Linguística Aplicada/UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Juciele Pereira Dias (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Linguagem/UNIVÁS

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Jonathan Ribeiro Farias de Moura (Membro Externo) – Fundação Oswaldo

Cruz

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Evandro de Sousa Bonfim (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação

em Linguística e Línguas Indígenas/MN-UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Márcia Maria Damaso Vieira (Suplente) – Programa de Pós-Graduação em

Linguística/UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Silmara Cristina Dela Silva (Suplente) – Programa de Pós-Graduação em

Estudos da Linguagem/UFF

Page 4: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

4

FICHA CATALOGRÁFICA

SILVA, Márcio Lázaro Almeida da.

Na trama dos sentidos: o edital de concurso público sob a ótica

da Análise de Discurso / Márcio Lázaro Almeida da Silva. – Rio de

Janeiro: UFRJ / Letras, 2019.

236 f.

Referências e Anexos: 217-236.

Orientadora: Tania Conceição Clemente de Souza.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Linguística,

2019.

1. Edital de concurso público. 2. Aspectos discursivos gerais. 3.

Historicidade. 4. Paráfrase. 5. Polissemia. I. Souza, Tania Conceição

Clemente de (orientadora). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

III. Título.

Page 5: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

5

À memória de

Balbino Soares da Silva Filho,

meu pai, meu eterno amigo.

Page 6: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

6

AGRADECIMENTOS

A Deus, a nosso Senhor Jesus Cristo e a todas as energias que, em nome de

Deus, circulam entre nós para prática do bem.

A Balbino Soares da Silva Filho (in memoriam), meu pai, o ser de luz que, por

39 anos, caminhou do meu lado e cumpriu bravamente sua missão.

A Adelaide dos Santos de Almeida (in memoriam) e Djalma Pires de Almeida

(in memoriam), meus queridos avós.

À minha esposa, Taís, e ao meu filho, Thales, razões para meus anseios, por

terem compreendido minha ausência ao longo dessa caminhada.

À minha mãe, Iara, e meus irmãos, Marcos e Lúcia, alicerces de toda a minha

formação.

À Tania, minha querida orientadora, que, com suas lições certeiras, soube me

mostrar o valor de uma teoria como a Análise de Discurso a ponto de me fazer escolher

exclusivamente este caminho para um estudo sobre os editais de concurso público.

Tania é mais que orientadora; é amiga, é protetora. É aquela professora que sabe tomar

seu aluno pelas mãos e conduzi-lo com carinho e esmero na construção de novos

conhecimentos.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Linguística com os quais

tive a oportunidade de cursar as disciplinas inerentes ao curso.

Às professoras Juciele Pereira Dias e Silmara Dela Silva, pelos valiosos

comentários e orientações durante o Exame de Qualificação.

Aos meus colegas de turma, com quem compartilhei bons momentos de troca de

conhecimentos.

Aos meus queridos colegas de trabalho, pessoas mais que especiais das quais

tive de ficar afastado para a realização de mais uma etapa da formação acadêmica.

À Elizângela Fidélis, do Setor de Arquivo do Supremo Tribunal Federal, e Ao

Sr. Luís, da Coordenadoria de Gestão Documental e Memória do Tribunal Superior do

Trabalho, que tão gentilmente me enviaram cópias de antigos editais de concurso

público.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ –

pelo financiamento desta pesquisa por meio da concessão da Bolsa Aluno Nota 10 ao

longo dos dois últimos anos do curso de Doutorado.

A Sócrates e Cicuta. Não podia deixar de mencioná-los aqui.

Page 7: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

7

SILVA, Márcio Lázaro Almeida da. Na trama dos sentidos: o edital de concurso

público sob a ótica da Análise de Discurso. Tese (Doutorado em Linguística) –

Programa de Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

RESUMO

O edital de concurso público, tomado sob o prisma da Análise de Discurso, é um

campo do saber que traz a articulação entre o simbólico e o político, o que nos permite

colocá-lo numa posição privilegiada de investigação. Frise-se que se trata de um texto

prescritivo de regras que governam o concurso público, uma das maiores conquistas

políticas dos trabalhadores no Brasil. O concurso concentra uma típica relação inscrita

no modelo econômico do capitalismo: a relação entre instituição/Administração e

homem/administrado; em outras palavras, uma relação entre os que detêm os meios de

produção e os que pretendem vender sua força de trabalho. Esta tese tem por objetivo

apresentar uma análise da prática discursiva produzida pelo Estado em edital de

concurso público, levando em consideração: (i) a constituição histórica dos sentidos que

circulam hoje nos editais, por meio da incorporação/desincorporação de dizeres e

sentidos no transcurso do tempo, e (ii) os deslocamentos de sentidos operados pelo

efeito metafórico – deriva – nas atuais formulações do nosso objeto. Para o

desenvolvimento da análise, fizemos uma pesquisa documental, pela qual foi possível

construir dispositivos de arquivo formados basicamente por leis e editais, e

confrontamos esses arquivos com os pressupostos teóricos da Escola Francesa de

Análise do Discurso. Foram mobilizadas, da AD, dentre outras, as noções de

interdiscurso, formação discursiva, formação ideológica, intradiscurso, paráfrase,

polissemia e silenciamento.

Palavras-chave: 1. Edital de concurso público. 2. Historicidade 3. Paráfrase. 4.

Polissemia. 5. Silenciamento.

Page 8: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

8

SILVA, Márcio Lázaro Almeida da. In the plot of the meanings: the edict of public

tender notice through the vision of Discourse Analysis. Thesis (PhD in Linguistics) –

Postgraduate Program in Linguistics, Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), Rio

de Janeiro, 2019.

ABSTRACT

The public tender notice, through the prism of the Discourse Analysis, is an

knowledge field that brings the articulation between the symbolic and the political,

which allows us to place it in a privileged position of investigation. It is important to

emphasize that the tender notice is a prescriptive text of rules that regulates the public

tender process, one of the greatest political achievements of workers in Brazil. It

concentrates a typical relation incorporated in the economic model of capitalism: the

relation between institution/Administration and man/administered; in other words, a

relationship between those who hold the means of production and those willing want to

sell their labor power. This thesis aims to present an analysis of the discursive practice

produced by the State in a public tender notice, taking into consideration: (i) the

historical constitution of the senses that circulate in the public tender notice today,

through the incorporation/dis-incorporation of sayings and meanings in the course of

time, and (ii) the displacements of senses operated by the metaphorical effect - derives -

in the present formulations of our object. For the development of the analysis, we did a

documentary research, through which it was possible to construct archival devices

formed basically by laws and public tender notices, and we confront these archival

devices with the theoretical assumptions of the French School of Discourse Analysis.

The notions of interdiscourse, discursive formation, ideological formation,

intradiscourse, paraphrase, polysemy and silencing were mobilized, among others.

Key words: 1. Public tender notice. 2. Historicity. 3. Paraphrase. 4. Polysemy. 5.

Silencing.

Page 9: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

9

Lista de Quadros

Quadro 1 Aspectos teóricos relevantes em Les Vérités de la Palice

Quadro 2 Concepções de língua em Análise do Discurso

Quadro 3 Tipos de discurso

Quadro 4 Arquivo de editais sem irregularidades

Quadro 5 Arquivo de editais com irregularidades

Quadro 6 Arquivo de documentos do universo jurídico

Page 10: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

10

Lista de Siglas e Abreviaturas

ANC Assembleia Nacional Constituinte

Art. Artigo

AFRF Auditor Fiscal da Receita Federal

CCJC Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania

Cebraspe/UnB

Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção

de Eventos/Universidade de Brasília

Consulplan Consultoria e Planejamento em Administração Pública LTDA.

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

DASP Departamento Administrativo do Serviço Público

DOU Diário Oficial da União

ES Espírito Santo

Esaf Escola de Administração Fazendária

FAUF Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João del-Rey

FCC Fundação Carlos Chagas

FGV Fundação Getúlio Vargas

FUMARC Fundação Mariana Resende Costa

FUNDEP Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa

Indi Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais

LAEL Laboratório de Estudos Linguísticos

LASPRAT Laboratório Semântico-Pragmático de Textos

MPF Ministério Público Federal

N. Número

PB Paraíba

PL Projeto de Lei

PLS Projeto de Lei do Senado

PNE Portador de Necessidades Especiais

PR Paraná

RJ Rio de Janeiro

SC Santa Catarina

TCE Tribunal de Contas do Estado

Page 11: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

11

SUMÁRIO

Introdução.............................................................................................................. 14

1. A Análise do Discurso: revisão da literatura................................................. 18

1.1. Primeiras palavras.............................................................................. 18

1.2. A Linguística no seio do estruturalismo............................................ 20

1.3. A instauração de novos horizontes para a análise linguística............ 25

1.4. A Análise do Discurso Francesa........................................................ 28

1.4.1. Da fundação........................................................................ 28

1.4.2. Do programa teórico e prático de análise: a AD

pecheutiana.........................................................................

33

1.4.3. Desdobramentos da Análise de Discurso (pecheutiana) no

Brasil...................................................................................

45

2. Dispositivo teórico da Análise de Discurso................................................... 48

2.1. Discurso, Formação Discursiva e Formação Ideológica................... 48

2.2. Língua (em relação a discurso) em Análise de Discurso................... 54

2.3. Texto e discurso................................................................................. 57

2.4.

Sujeito e forma-sujeito....................................................................... 61

2.4.1. A noção de sujeito para a AD............................................. 61

2.4.2. A forma-sujeito................................................................... 66

2.4.3. Funções enunciativo-discursivas do sujeito....................... 66

2.5 Arquivo.............................................................................................. 67

2.6 Paráfrase e polissemia........................................................................ 70

2.6.1 “Arqueologia” da noção de paráfrase em Michel Pêcheux 70

2.6.2 Desenvolvimentos da noção de paráfrase e polissemia em

AD......................................................................................

76

2.7 Tipologia de discurso......................................................................... 81

2.8 A questão do silêncio em Análise de Discurso.................................. 84

3. Metodologia................................................................................................... 86

3.1. Procedimentos para a primeira etapa da pesquisa............................. 88

3.2. Procedimentos para a segunda etapa da pesquisa.............................. 94

3.2.1. Do corpus discursivo para a segunda etapa da pesquisa.... 97

4. História do concurso público no Brasil......................................................... 102

4.1. O surgimento do concurso público.................................................... 102

4.1.1. Algumas considerações sobre Estado, sujeito e poder....... 104

Page 12: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

12

4.1.2. O concurso público no seio do Estado Moderno................ 110

4.2. O concurso público no Brasil............................................................ 112

4.2.1. O concurso público no Brasil Imperial............................... 113

4.2.2. O concurso público na República Velha............................ 122

4.2.3. O concurso público na Era Vargas..................................... 130

4.2.4. O concurso público na República Liberal.......................... 137

4.2.5. O concurso público na Ditadura Militar............................. 139

4.2.6. O concurso público na República Federativa do Brasil..... 142

5. Considerações discursivas sobre o edital de concurso público..................... 154

5.1. A formação discursiva edital de concurso público............................ 154

5.2. Historicidade das formulações analisadas......................................... 159

5.3. Os sujeitos da relação editalícia......................................................... 175

5.4. A língua(gem) do edital..................................................................... 180

5.5. Tipologia de discurso......................................................................... 182

5.5.1. Natureza jurídica do edital de concurso público................. 182

5.5.2 Tipo de discurso em edital de concurso.............................. 186

6. A tensão paráfrase-polissemia e o silenciamento em editais de concurso

público...........................................................................................................

188

6.1. Análise da Cadeia de Formulação 1 (CF1): sobre requisitos para

investidura..........................................................................................

189

6.2. Análise da Cadeia de Formulação 2 (CF2): sobre o período de

inscrição.............................................................................................

195

6.3. Análise da Cadeia de Formulação 3 (CF3): sobre a limitação

temporal de cinco anos dos antecedentes criminais como um dos

requisitos para investidura.................................................................

197

6.4. Análise da Cadeia de Formulação 4 (CF4): sobre a devolução do

valor da taxa de inscrição..................................................................

199

6.5. Análise da Cadeia de Formulação 5 (CF5): sobre o direito à

nomeação...........................................................................................

202

6.6. Análise da Cadeia de Formulação 6 (CF6): sobre os critérios de

desempate..........................................................................................

205

6.7. Análise da Cadeia de Formulação 7 (CF7): sobre as vagas

destinadas a portadores de necessidades especiais............................

207

6.8. Análise da Cadeia de Formulação 8 (CF8): sobre prazo para

recursos quanto às provas aplicadas..................................................

209

6.9. Análise da Cadeia de Formulação 9 (CF9): sobre a ausência do

programa das provas..........................................................................

210

6.10. Análise da Cadeia de Formulação 10 (CF10

): sobre a previsão de

vagas para negros...............................................................................

211

Considerações finais.............................................................................................. 214

Referências............................................................................................................ 217

Page 13: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

13

Anexo I.................................................................................................................. 226

Anexo II................................................................................................................. 232

Page 14: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

14

Introdução

A atual Constituição da República Federativa do Brasil prescreve, em seu artigo

37, inciso II, que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação

prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e

a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei (...)”. Com esse

dispositivo, o ordenamento constitucional vigente, respeitando, dentre outros, os

princípios da democracia, da isonomia e da eficiência, estatui a necessidade de se

realizar um certame com o objetivo de selecionar os candidatos mais aptos ao serviço

público.

Dessa forma, a Administração Pública direta e indireta de qualquer um dos

Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) da União, dos Estados, do Distrito Federal

e dos Municípios, quando precisa prover seus cargos ou empregos públicos de recursos

humanos, fica vinculada à realização de concurso ao qual deve ser dada ampla

publicidade, em tempo hábil, por meio da imprensa oficial.

Para tornar públicas as regras que nortearão o relacionamento entre a

Administração e os interessados no certame entra em cena a figura jurídica do edital de

concurso público, um ato normativo editado pelo Estado contendo propriedades

textuais, discursivas e estilísticas muito bem marcadas em virtude de sua composição

característica.

Do ponto de vista jurídico, o edital de concurso pode ser entendido, em primeira

leitura, como um ato normativo que, subordinado à lei e editado pelos órgãos da

Administração Pública, vincula a Administração e os candidatos em um mesmo

processo administrativo. Embora aparentemente pareça ser construído de modo objetivo

no plano jurídico-conceitual, o edital de concurso, visto sob a ótica da linguística e,

mais especificamente, da Análise de Discurso, por atender às técnicas de redação oficial

e valer-se do jargão técnico do Direito e dos mecanismos de construção sintática típicos

da argumentação jurídica, ostenta uma forma de composição em que fica evidente a

opacidade do texto ao olhar do sujeito leitor.

Podemos ir além e afirmar – mesmo tendo conhecimento do risco que corremos

ao fazê-lo – que, na construção textual do edital, o sujeito-enunciador tem as aberturas

de que necessita para fazer manobras no processo de produção de sentidos; em outras

palavras, na produção discursiva do edital de concurso público, os sentidos podem ter

direções determinadas, desvelando um jogo próprio da língua, uma vez que o texto tem

Page 15: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

15

sempre direções de sentido definidas pelo enunciador. É em razão disso que

enxergamos o edital como um valioso objeto de estudo para a Linguística e,

especificamente, para a Análise de Discurso, uma vez que, em sua formulação, o

político se entrecruza com o simbólico.

Temos assistido, de norte a sul do país, nos diferentes poderes da República, ao

nascimento de inúmeras controvérsias no processo de formulação de editais de concurso

público. Tais controvérsias, não raro, conduzem a pedidos de impugnação, suspensão e

anulação de todo o processo administrativo atinente ao certame. Podemos citar, a título

de ilustração, o edital de concurso para a Prefeitura Municipal de Centralina/MG, que

faz parte do dispositivo de arquivo construído para a presente pesquisa. Esse edital foi

publicado na imprensa oficial em 15 de maio de 2009 e, dois meses depois, o Tribunal

de Contas do Estado de Minas Gerais determinou a suspensão cautelar do concurso em

razão das falhas identificadas. Entre as falhas, o TCE/MG aponta para enunciados que,

em nossa perspectiva (discursiva), rompem com o já-dito, isto é, com a memória

discursiva própria dos editais, produzindo deslocamentos de sentido que põem em risco

a estabilidade jurídica entre os sujeitos da relação editalícia.

A Escola Francesa de Análise do Discurso, conhecida como AD pecheutiana ou

marxista, deixou-nos um precioso legado teórico e metodológico para tratar dos

discursos, desde aqueles que se manifestam em uma materialidade verbal àqueles que

irrompem por meio do não verbal (SOUZA, 2001, 2018, entre outros). Como nosso

objetivo é estudar o edital de concurso público, vemos os pressupostos da AD como a

fundamentação perfeita para edificar a perspectiva de análise que desejamos construir

para esse objeto. Daí a necessidade, em nossa concepção, de circunscrever o trabalho na

linha de reflexão da AD desenvolvida neste período – entre o fim dos anos de 1960 e os

de 1980 – e tão propagada no Brasil. Em nosso país, a Análise do Discurso inaugurada

por Michel Pêcheux e desenvolvida por ele e seus seguidores constitui uma “referência

privilegiada”; sua dispersão a partir dos anos de 1990 “não gerou o fim das referências

teóricas, e as práticas ainda se inspiram nela”1.

Ao situarmos o edital de concurso público como objeto de investigação (frise-se:

em uma ótica discursiva, e não jurídica), estamos trazendo para o domínio da Análise de

Discurso uma matéria empírica, o corpo textual do edital, que rege o concurso público,

uma das maiores conquistas políticas dos trabalhadores no Brasil. Soma-se a isso o fato

1 Cf. Mazière (2007, p. 30)

Page 16: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

16

de o concurso público – e as regras de sua realização previstas em edital – concentrar

uma típica relação inscrita no modelo econômico do capitalismo: é a relação entre

homens/administrados e instituições/Administração; em outras palavras, uma relação

entre aqueles que pretendem vender sua mão de obra e aqueles que detêm as forças de

produção. Eis, portanto, o caráter político do concurso público e das suas normas de

realização previstas em edital.

Com base nas considerações feitas até aqui, assumimos o objetivo principal de

descrever, sob a ótica da Análise de Discurso de orientação francesa, a prática

discursiva produzida em edital de concurso público, levando em consideração: (i) a

constituição histórica dos sentidos que circulam hoje em dia nos editais, por meio da

incorporação/desincorporação de dizeres e sentidos no transcurso do tempo, e (ii) os

deslocamentos de sentidos operados pelo efeito metafórico – deriva – nas atuais

formulações do nosso objeto.

Para atingirmos esse objetivo, propomos uma investigação em duas etapas, de

modo que a primeira seja a base para a compreensão da segunda. A primeira visa

reconstituir a história do concurso público no Brasil e mostrar a maneira como os editais

de concurso vêm sendo textualizados no transcurso do tempo; tentamos, assim, produzir

uma historiografia sobre concurso e sobre o documento – edital – que dispõe sobre ele

em dadas condições de produção. É uma busca pela memória política do Estado. A

pergunta que nos fazemos é: como o Estado vem tratando o acontecimento concurso

público? A segunda etapa visa analisar os efeitos de sentido produzidos atualmente

quando a Administração formula um enunciado para configurar em dado edital, sendo

que tal enunciado rompe com os sentidos já estabilizados discursivamente. Cada uma

dessas etapas de pesquisa será descrita no Capítulo 3, em que discorremos sobre a

metodologia aplicada em nossa investigação.

Esta tese vem organizada em seis capítulos. No primeiro, apresentamos ao leitor

um itinerário sobre a Análise de Discurso de orientação francesa para mostrar-lhe o

percurso que essa disciplina seguiu desde sua gênese até seus desdobramentos nos anos

de 1980. No segundo, trazemos um recorte teórico dos princípios e procedimentos da

AD que serão mobilizados em nossa análise. No terceiro, descrevemos a metodologia

aplicada nas duas etapas de pesquisa. Os capítulos 4, 5 e 6 são destinados às análises

dos documentos que assumimos em nossa investigação sobre os editais.

A produção de uma pesquisa com as perspectivas que desejamos criar por meio

deste trabalho detém implicações teóricas e sociais. Acreditamos que toda pesquisa

Page 17: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

17

realizada nos níveis mais elevados de formação deva ser útil à produção do pensamento

científico e, principalmente, à sociedade. É com essa dupla responsabilidade que

pretendemos intervir com o presente trabalho.

No domínio das ciências jurídicas, existe relativa literatura acerca do edital de

concurso público. As pesquisas feitas nesse domínio produziram um acervo em que se

observa esse documento sob a ótica da lei, do Direito, dos princípios informadores do

Direito, da jurisprudência. E o resultado é um conjunto de considerações de ordem

estritamente jurídica.

No Brasil, a matéria empírica que assumimos, no presente trabalho, como objeto

de investigação carece, ainda, de estudos detalhados acerca dos aspectos linguísticos,

textuais, discursivos e estilísticos envolvidos em sua produção. Alguns estudos já vêm

sendo realizados pelo LASPRAT (Laboratório Semântico-Pragmático de Textos) e pelo

LAEL (Laboratório de Estudos Linguísticos), ambos vinculados à Universidade Federal

da Paraíba, porém as investigações desenvolvidas por esses núcleos de pesquisa

objetivam analisar e descrever a estrutura semântico-argumentativa de gêneros textuais

diversos, inclusive do edital, sem descrever este último em suas especificidades

discursivas.

Não vimos, ainda, nenhuma proposta de trabalho que interrogasse, no campo da

Linguística – e, em nosso caso, no campo da AD – questões referentes aos processos de

significação instaurados no ato de formulação de um edital específico. Falta uma

intervenção no sentido de responder a perguntas como: (a) como se deu a construção

histórica do edital? (b) como se justifica o fato de o edital ter adquirido historicamente

estruturas cada vez mais amplas? (c) como o edital foi incorporando dizeres produzidos

em outros momentos e em outros lugares? (d) como se dá a textualização do edital sob a

ótica da heterogeneidade? (e) e sob a ótica do silenciamento? (f) como os sentidos se

movimentam em função dos efeitos metafóricos que se realizam de um edital para

outro? Enfim, as perguntas são muitas, e acreditamos que uma intervenção que vise

responder ao menos algumas terá justificada sua relevância teórica.

Ressaltamos, ainda, a relevância social que nosso trabalho pode assumir ao

revelar alguns processos de significação utilizados por quem formula os enunciados (as

cláusulas, os dispositivos) que constituem o corpo do edital, processos de significação

que atendem, por vezes, a verdadeiras manobras da Administração.

Page 18: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

18

1. A Análise do Discurso: revisão da literatura

(...)

―estamos todos nós / cheios de vozes / que o mais das vezes / mal cabem em nossa voz

(...)

Até que de repente / um susto / ou uma ventania / (...) / chama /esses fósseis à fala.‖

(Ferreira Gullar)

1.1 Primeiras palavras

Neste capítulo, abraçamos o compromisso de construir um itinerário que

conduza o leitor à compreensão das rupturas, das bases epistemológicas, das

construções, das desconstruções e do legado que a Escola Francesa de Análise do

Discurso2 (doravante AD) nos deixou de herança. Nossa intenção é disponibilizar ao

leitor, leigo ou letrado no assunto, o referencial que nos dará amparo à construção do

dispositivo teórico a ser mobilizado em nossa análise sobre o edital de concurso

público.

Para realizar essa tarefa, entretanto, um questionamento nos perseguiu desde o

início: como apresentar, em uma linha fluida de raciocínio, os fundamentos de uma

Escola de análise do discurso que não se desenvolveu seguindo um pensamento

retilíneo? Como guiar o leitor por uma via concebida, em suas duas primeiras décadas

de existência, por construções e desconstruções teóricas sem parecer um ébrio

desgovernado? Afinal, como bem pontua Ferreira (2003b, p. 189), “(...) o terreno é dado

a armadilhas, obstáculos e pode levar algum incauto a não achar o caminho”.

É importante frisar que o fato de a AD de linha francesa ter se desenvolvido por

construções e desconstruções3 não a torna, em hipótese alguma, uma disciplina sem

estatuto científico. Construção e desconstrução são procedimentos inerentes à ascensão

e ao progresso de qualquer ato que se quer fundador de uma nova forma de pensar e

interpretar a realidade objetiva. E no caso específico da Escola Francesa de Análise do

Discurso, em sua gênese, não havia como ser diferente. Era impossível romper com as

amarras do estruturalismo e com a linguística imanente, sem uma linha de reflexão que

não se desse a contornos e descontornos, configurações e reconfigurações; uma linha de

2 A expressão Escola Francesa de Análise do Discurso, que dá título ao conjunto de estudos sobre o

discurso desenvolvidos por Michel Pêcheux por pouco mais de vinte anos, foi cunhado por Guespin

(1976, p. 7) ao afirmar: “Mas é importante assinalar que ele (o trabalho desenvolvido por Guepin)

procede da prática e da teoria que podemos e devemos agora conceber como uma frente científica

original, a escola francesa de análise do discurso”.

3 Essa perspectiva de desenvolvimento da AD por construções e desconstruções é apresenta por Denise

Maldidier, em A Inquietação do Discurso (MALDIDIER, 2003).

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19

reflexão que permitisse um diálogo interno – conflituoso por vezes – entre seus

próprios conceitos, princípios e procedimentos de análise, sem qualquer paternalismo,

despido do narcisismo de seu criador, a ponto de levar alguns desses conceitos,

princípios e procedimentos ao abandono, por mais doloroso que fosse ao pai.

Fruto de uma dialética incessante, a AD não se cansa de rever seus métodos e

suas concepções tendo em vista a construção de uma teoria capaz de tocar o real da

língua e o real da história. E essa busca obstinada nos deixou de legado uma sólida

fundação sobre a qual é possível erguer-se qualquer construção que visa abrigar os

mecanismos de constituição, formulação e circulação dos sentidos. Esse é, para nós, o

grande mérito que se pode atribuir à fundação da Análise de Discurso.

Há de se convir, portanto, que teoria alguma – e com a AD não foi diferente –

constrói-se sem perfilar caminhos tortuosos, sendo necessárias configurações e

reconfigurações. Por isso, talvez, o trajeto laborioso e, às vezes, obscuro, cerrado, não

só ao olhar opaco do leitor leigo, mas também ao olhar pretensioso do especialista. Daí,

o terreno ser dado a armadilhas. E longe de querermos ser vistos como incautos a não

achar o caminho, manifestamos, aqui, nosso pleno e humilde interesse em trazer ao

leitor uma apresentação lúcida sobre os desenvolvimentos da Análise de Discurso que

servirão de norte para nossas análises.

Retornemos, então, ao questionamento inicial: como apresentar a AD

lucidamente ao leitor, tendo em vista os desdobramentos produzidos desde a eclosão

dos tratamentos dados ao discurso, por volta dos anos 1960, até o que se faz hoje em

Análise de Discurso?

Na tentativa de construir um referencial teórico para o leitor, propomo-nos

apresentar a fundação e os desdobramentos da Análise de Discurso em quatro partes: (a)

primeiramente, tecemos breve comentário sobre a Linguística no seio do estruturalismo;

(b) em seguida, tratamos da instauração dos novos horizontes para a análise linguística a

partir da segunda metade do século XX; (c) depois, comentamos o momento em que se

institui a Análise de Discurso Francesa, um modelo de AD que ficou referido na

literatura como análise de discurso pecheutiana, de cunho marxista4; (d) finalmente,

citamos alguns desenvolvimentos de maior destaque na Análise de Discurso praticada

no Brasil.

4 Cf. Courtine (1999 [1991).

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20

1.2 A Linguística no seio do Estruturalismo

É comum o entendimento de que a AD só pôde se constituir, no final dos anos

1960, em razão de uma mudança de terreno. Mas por que a necessidade de mudar de

terreno para erguer um novo edifício que acolhesse essa frente científica original5? A

resposta está no próprio estruturalismo linguístico, que, não obstante seu caráter

imanentista, serviu como terreno fértil para a AD fecundar.

Na primeira metade do século XX, a Linguística, que acabara de romper com

método comparativista e sua descrição histórica da língua, reconstruiu-se no âmbito do

estruturalismo. Saussure (1995 [1916]), protagonista desse cenário, foi quem operou a

revolução científica nos estudos da linguagem e, por isso, é apontado como responsável

pelo estabelecimento da linguística moderna, o precursor do estruturalismo. O Curso de

Linguística Geral, que introduziu a noção de língua como sistema, permitiu que se

desenvolvesse, a partir dos anos 1920, a concepção de língua como estrutura, já que

“uma vez aceita a visão de que a língua constitui um sistema (...) cumpre analisar-lhe a

estrutura” (KENEDY & MARTELOTTA, 2003, p. 17). Do termo sistema ao seu

corolário estrutura, os estudos linguísticos percorreram um caminho que levou ao

desenvolvimento, entre as escolas pós-saussurianas, da doutrina intitulada

estruturalismo. Segundo Benveniste (1976, p. 100), a:

(...) doutrina que iria, alguns anos mais tarde, pôr em evidência a

estrutura dos sistemas linguísticos (...) encontra a sua primeira

expressão nas proposições redigidas em francês que três linguistas

russos, R. Jakobson, S. Karcevsky, N. Troubetzkoy, enviaram em

1928 ao 1º Congresso Internacional de linguistas em Haia com vistas

a estudar os sistemas de fonemas.

Portanto, a concepção saussuriana de linguagem, ou mais precisamente de língua

como sistema, permitiu o progresso da linguística estrutural com suas distintas

abordagens nas mais diferentes escolas linguísticas pós-Saussure. Entre essas

abordagens, segundo Kenedy & Martelotta (2003, p. 19), há duas principais: (i) aquela

que está centrada na forma linguística, relegando sua função a um plano secundário; (ii)

a que se centra na função desempenhada pela forma linguística no processo de

comunicação, ficando a forma linguística em si em segundo plano. No primeiro grupo,

temos as escolas formalistas, como a Escola de Copenhague, na Europa, e os trabalhos

5 Tomamos em empréstimo a expressão usada por Guespin (1976, p. 7).

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21

nela desenvolvidos, principalmente, por Louis Hjelmslev e Viggo Brøndal – os

criadores da Glossemática – e, na América, os trabalhos desenvolvidos por Leonard

Bloomfield e Zellig Harris. No segundo grupo, encontramos as escolas funcionalistas,

como a Escola de Praga, na Europa, e as pesquisas produzidas em seu domínio por

Roman Jakobson, Nicolai Troubetzkoy e Serguei Karcevsky e, mais tarde, ainda na

Europa, por André Martinet; na América, Franz Boas e Edward Sapir figuram entre os

principais precursores do estruturalismo americano com abordagem funcional.

Se a linguística estrutural surgiu na Europa com os linguistas de Praga e

prosperou, em seguida, com os de Copenhague, visando “pôr em evidência a estrutura

dos sistemas linguísticos”6, na América o estruturalismo foi implantado com outras

ambições: primeiramente, visaram à análise e à descrição exaustiva das línguas

ameríndias desconhecidas e ágrafas, o que necessitou da interferência de um enfoque

antropológico e etnológico7; em seguida, vieram as preocupações sobre a relação entre

pensamento e linguagem. No tocante ao primeiro momento, o papel desempenhado por

Franz Boas e Edward Sapir foi crucial; no que diz respeito ao segundo momento, foi a

vez de Benjamin Lee Whorf chamar a atenção de seus contemporâneos com “a tese de

que a linguagem determina a percepção e o pensamento”8 – a hipótese de Sapir-Whorf.

Ainda na América, Leonard Bloomfield, que, segundo Weedwood (2002, p. 131),

“adotou explicitamente uma abordagem behaviorista do estudo da língua, eliminando,

em nome da objetividade científica, toda referência a categorias mentais ou

conceituais”, desfrutou de enorme repercussão, tendo influenciado o surgimento da

escola distribucionalista ou neobloomfieldiana. Como bem enfatiza Ilari (2004, p. 78),

Bloomfield foi a grande referência dos estruturalistas norte-americanos, que não viam

Saussure como a “referência intelectual” de que precisavam.

Mesmo com a ampla divulgação que o estruturalismo teve nos Estados Unidos

da América, é justo salientar que é a Hjelmslev que se imputa uma das mais precisas

definições de linguística estrutural como “conjunto de pesquisas que se apóiam numa

hipótese segundo a qual é cientificamente legítimo descrever a linguagem como sendo

essencialmente uma entidade autônoma de dependências internas ou, numa só palavra,

uma estrutura” (HJELMSLEV, 1944 apud BENVENISTE, 1976, p. 103). Frise-se:

6 Como vimos, essa perspectiva é de Benveniste (1976, p. 100).

7 Para maiores detalhes, confira Ilari (2004).

8 Cf. Weedwood (2002, p. 130).

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entidade autônoma de dependências internas. Sob essa ótica, as explicações para os

fenômenos linguísticos não podiam ser buscadas em outro lugar que não fosse a língua.

Independentemente dos continentes por que tenha se expandido e dos teóricos

que contribuíram para o seu progresso, a linguística estrutural esteve fechada em seu

caráter imanente. Em Prolegômenos a uma teoria da linguagem, Hjelmslev traz à tona o

princípio da imanência para os estudos linguísticos ao afirmar que a língua deve ser

vista como uma “unidade encerrada em si mesma, como uma estrutura sui generis”

(HJELMSLEV, 1975, p. 3), devendo, portanto, ficar de fora quaisquer considerações

que levem em conta fatores extralinguísticos.

Há ainda um aspecto de extrema importância a se considerar em relação às

escolas estruturalistas: o (não) enfoque por elas conferido ao estudo do sentido. No

estruturalismo americano, em especial a partir dos trabalhos iniciais dos formalistas, a

linguística esteve, em grande parte, centrada no estudo da morfologia e da sintaxe,

campos de descrição que tinham por método a chamada análise componencial das

unidades linguísticas. A semântica e as questões referentes à significação estavam

excluídas do escopo do que concebiam como a ciência da linguagem humana; o sentido

não era passível de estudo científico em razão de sua natureza mental, psicológica. Ilari

(2004, p. 78) sinaliza que “Bloomfield chegou à conclusão de que o sentido – que é

mental, e portanto faz parte da psicologia individual – não poderia ser estudado

cientificamente” e conclui que “a linguística estrutural americana foi tipicamente avessa

ao estudo do sentido”. Até o distribucionalismo, conforme bem enfatiza Mazière (2007,

p. 27), acabou por eliminar “a questão do sentido lexical, deixada a cargo de

antropólogos, psicólogos e lógicos”.

Nem mesmo a primeira tentativa de formalização de uma teoria do discurso, de

Zellig Harris e sua Análise do Discurso, de 1952, deteve-se ao estudo do sentido. Em

seu trabalho, Harris aplicou a metodologia de análise típica do distribucionalismo com o

objetivo de analisar e descrever relações interfrasais. O procedimento, entretanto, ainda

não visava ao sentido do texto (MALDIDIER, NORMAND & ROBIN, 2014 [1976]).

O estruturalismo europeu, contudo, conseguiu enfocar o estudo da significação.

Segundo Ilari (2004), a glossemática, que teve aderência mais às questões do

significado que as do significante, foi a escola que, na Europa, por meio dos trabalhos

de Hjelmslev, trouxe as primeiras tentativas de explicar a significação sob a égide do

estruturalismo a partir das matrizes de traços semânticos. Essa vertente, que tratava do

sentido lexical por matrizes de traços, constituirá um dos pilares sobre o qual se

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23

sustentará, a partir dos anos 1960, a semântica estrutural desenvolvida, também na

Europa, por Algirdas Julius Greimas9 e Bernard Pottier.

É importante destacar também, segundo Mazière (2007, p. 27), que, apesar dos

esforços de Noam Chomsky no sentido de implantar, nos anos 1960, a questão do

sentido em seus debates, com a introdução do componente semântico em relação ao

componente sintático, as concepções de aceitabilidade e gramaticalidade “reduziram

consideravelmente o tratamento do sentido (redução à ambiguidade, depois ao não

sentido), e os enfrentamentos dos anos 1970 vão hipotecá-lo a partir de formalismos

lógico-semânticos”.

Independentemente de suas diferentes emergências geográficas, das distintas

metodologias que foram sendo implantadas para o tratamento de dados linguísticos, das

perspectivas assumidas por seus investigadores – quer funcional, quer formalista –, das

preocupações em recobrir mais um campo de descrição que outro, não podemos deixar

de reconhecer que o estruturalismo linguístico ecoou em todos os cantos a ponto de se

tornar, no início da segunda metade do século XX, a ciência-piloto de todas as ciências

humanas e sociais, a “matriz possível de toda atividade científica”10

.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que o estruturalismo linguístico atinge seu

apogeu, especialmente na Europa, ele começa a esbarrar em suas próprias limitações. O

fato mesmo de a linguística ser apropriada por outros campos de investigação já pode

ser interpretado como um indício de seu esgotamento, e isso fora sutilmente notado por

Haroche, Henry & Pêcheux (1971), ao afirmarem que “essa exploração ideológica da

linguística, sua reinscrição fora do seu próprio campo, não teriam sido possíveis sem a

existência de dificuldades interiores à própria linguística, e produzidas pelas mesmas

causas”. Vale ressaltar ainda, de acordo com Angermuller (2016, p. 11), que um dos

fatos que culminam nesse esgotamento é, no final da década de 1960, “a entrada na cena

intelectual de teóricos como Jacques Lacan, Louis Althusser, Michel Foucault e Jacques

Derrida, que se colocam numa posição de ruptura com as tendências teóricas

9 É importante destacar que a semântica estrutural concebida por J. Greimas a partir 1966 (ano da

publicação de Sémantique structurale) também receberá posteriormente contornos discursivos. A

perspectiva de análise criada por ele desembocou no que chamam hoje de Semiótica Discursiva

(BARROS, 2012), uma teoria que trata da enunciação em um quadro teórico-metodológico diferente da

AD pecheutiana, mas que também leva em consideração a relação entre texto e discurso.

10

Essa caracterização é de Ilari (2004, p. 76). Segundo ele, a antropologia (de Lévi-Strauss), a sociologia,

a estética, o estudo da moda (de Roland Barthes) e a teoria literária são algumas das ciências que

“formularam suas tarefas tomando como modelo a linguística”. Disciplinas como estas entram no rol das

ciências que enxergaram a linguística como o paradigma a seguir porque, segundo o autor, “lidam com

valores e representações” e “analisam algum tipo de troca simbólica”.

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24

anteriores”. Dessa forma, o esgotamento da abordagem estrutural conduzia à

necessidade de se iniciar uma revisão.

Na Europa, entre as primeiras propostas revisionistas, destacam-se a de Émile

Benveniste, que critica o estruturalismo em razão da exclusão do sujeito e o papel que

este desempenha na língua – a intervenção de Benveniste, embora ele se mantenha em

uma perspectiva estruturalista, vem exatamente no sentido de recolocar em cena certa

noção de sujeito no campo da linguística (daí sua teoria da subjetividade na

linguagem); a de Eugenio Coseriu, que, na esteira da dicotomia saussuriana entre

sincronia e diacronia, enxergou aquilo que chamaremos aqui de ilusão da delimitação da

sincronia – para Coseriu, demarcar com exatidão um momento sincrônico da língua era

uma ficção, em razão da convivência do velho com o novo em todo sistema linguístico

(parte daí sua defesa pela pancronia); e a de Michel Pêcheux, para quem a dicotomia

cunhada por Saussure entre língua e fala não teve outro objetivo a não ser excluir a

linguística do campo da fala, o que ocasionou a exclusão de qualquer consideração

sobre o sujeito e sobre o sentido do âmbito dos estudos linguísticos11

(as reflexões de

Pêcheux permitiram introduzir definitivamente o estudo do sentido).

Na América, embora não tenha se constituído como uma proposta revisionista

do estruturalismo, a gramática gerativa de Noam Chomsky desabrigou a linguística

estrutural americana do solo prestigioso em que se edificara. Conforme afirma Ilari

(2004, p. 86), “diante do gerativismo, a linguística estrutural americana foi perdendo

progressivamente terreno”. Porém, como ele mesmo nos ensina (2004, p. 85): “(...) a

gramática gerativa foi tratada pelos estruturalistas europeus como um novo

estruturalismo, que atendia melhor, do que qualquer outro tratamento da linguagem até

então proposto, ao propósito de matematização lançado por Hjelmslev”. No tocante,

então, às tentativas de tratamento formal sobre o sentido, sobre a significação, as

semânticas universais, que se constituíram sobre os fundamentos da gramática gerativa,

assim como a semântica estrutural erguida depois de Saussure, não passaram de

“lugares de recobrimento do corte saussuriano” (MALDIDIER, 2003, p. 31).

Retornando ao que dissemos no início deste item – e tomando por base as

colocações do grupo de pesquisa de Michel Pêcheux –, para que uma nova frente

11

Para considerações mais profundas, remetemos o leitor, mais uma vez, ao trabalho de Ilari (2004, p. 80-

81) e ao trabalho de Brandão (2003, p. 1). Esta última nos ensina que as dicotomias efetuadas por

Saussure no CLG “serviram para separar as noções de „fala‟ e „diacronia‟ para construir e eleger como

objeto da ciência lingüística, duas outras, as de „língua‟ e „sincronia‟”. A autora menciona ainda que a

consequência disso foi excluir “do âmbito da linguagem o conceito de linguagem enquanto trabalho

produzido por sujeitos falantes”.

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25

científica original se constituísse era, pois, mais do que necessário fazer uma mudança

de terreno, uma renovação que colocasse em cena a questão do sujeito, que fizesse o

sentido vir à tona e que reintroduzisse a história na investigação do fenômeno

linguístico.

1.3 A instauração de novos horizontes para a análise linguística

Fruto de uma abordagem distribucionalista, o artigo intitulado Discourse

Analysis – Análise do Discurso –, escrito por Harris (1969 [1952]), foi a primeira

tentativa de elaboração de uma teoria que considerasse as relações entre as partes de um

texto e, por isso, veio a exercer forte influência nos desenvolvimentos de Michel

Pêcheux. Publicado no volume 28 da revista Language, o texto foi traduzido para o

francês em 196912

.

O grande mérito do empreendimento de Harris reside na tentativa de construir

um “procedimento formal de análise dos segmentos superiores à frase, permitindo levar

em conta as relações transfrásticas que podem ser observadas nos „textos‟” (Brandão,

2003, p. 2-3). Como afirmam Haroche, Henry & Pêcheux (1971), o modelo harrisiano

“alia as preocupações concernentes às relações entre a „cultura‟ e a „língua‟ a uma

tentativa de estender a análise linguística „além dos limites de uma única frase‟”. O

deslocamento teórico e analítico que ele produziu permitiu uma verdadeira mudança de

rumo nos estudo linguísticos: da análise estritamente distribucional dos constituintes

imediatos da sentença para a análise do modo como se organizam os enunciados por

meio dos encadeamentos sintáticos e transformacionais operados entre as frases do

texto.

De acordo com Angermuller (2016, p. 16-17), são características da análise

instituída por Harris: (a) estudo da organização linguística do enunciado (da frase); (b)

concepção de discurso como o produto da organização dos enunciados que configuram

no texto; e (c) interesse por conexões sintáticas e transformacionais responsáveis pela

organização dos enunciados no discurso (as conexões sintáticas entre as frases do

corpus ocupam lugar privilegiado em seu método). Harris evoca, portanto, uma análise

de enunciados que é constitutiva do trabalho desenvolvido por Michel Pêcheux no final

da década de 1960; em sua AAD69, Pêcheux recorre ao método harrisiano, que se

12

É a versão francesa, publicada no número 13 da revista Langages, de que dispomos.

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26

tornará o centro de suas reflexões no tratamento do processo de paráfrase

(MALDIDIER, 2014 [1994]).

Embora encerre inestimável valor para desenvolvimentos posteriores de distintas

escolas de análise do discurso13

, o projeto de Harris, circunscrito no imperialismo da

linguística estrutural, visando a uma investigação intrínseca à língua, ainda não tinha

por interesse questões referentes ao sentido do texto, aos processos de significação e às

considerações sócio-históricas envolvidas na constituição do sentido, traços da AD que

será praticada na Escola Francesa de Análise do Discurso14

.

Uma grande reviravolta, que marcará profundamente a história das idéias

linguísticas, começa a acontecer na conjuntura histórica e política dos anos 1950-1960,

período em que o estruturalismo linguístico desvela as marcas do seu esgotamento. A

esse propósito, é importante salientar que o apogeu do pensamento estruturalista,

segundo Dosse (1993), ocorrerá no ano de 1966, quando começarão a ocorrer as

“primeiras fissuras” que darão resultado a novas perspectivas.

Entre os anos 50-60, dois teóricos europeus desempenharão o papel de

protagonistas, Roman Jakobson e Émile Benveniste, em virtude do desenvolvimento

teórico – e suas implicações na análise linguística – que eles produziram acerca da

noção de enunciação. Para Brandão (2003, p. 3), a enunciação “constitui a tentativa

mais importante para ultrapassar os limites da linguística da língua, permitindo elaborar

um conceito que possibilitasse colocar em relação língua e fala”, relação que tinha sido

dicotomizada no Curso de Linguística Geral (CLG) e que fechou os olhos do linguista

estruturalista para qualquer consideração sobre o papel do sujeito na língua. A

enunciação tornou-se a ferramenta perfeita para lutar contra a visão imanente da

linguística.

As leituras de Brandão (2003) e Maldidier, Normand & Robin (2014 [1976]) nos

permitem reconstituir o percurso da enunciação nos estudos linguísticos. Pela clareza de

suas apresentações, nós as tomamos aqui, com o intuito de traçar o caminho que esse

conceito tomou desde o início até se tornar um dos fundamentos da análise do discurso.

13

A Análise do Discurso de Harris influenciou o aparecimento de dois modelos de análise do discurso:

um se desenvolveu nos Estados Unidos e corresponde a uma ampliação do escopo do modelo harrisiano;

o outro se desenvolveu na França e, embora tenha inegável influência de Harris, constitui-se mais por

deslocamentos que por espelhamento daquele projeto. A AD francesa incorpora em seu modelo analítico

suas preocupações com o sujeito, com a história e com o sentido.

14

Para informações mais detalhadas, confira Maldidier, Normand e Robin (2014 [1976]) e Brandão

(2003).

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27

O percurso histórico da enunciação se inicia com o trabalho pioneiro de Charles

Bally, Tratado de estilística francesa, de 1909. Cabe, aqui, uma observação de nossa

parte: não é surpreendente que a problemática em torno da enunciação tenha irrompido,

nessa época, em um domínio que não fosse o da linguística – lembremo-nos de que a

recém criada ciência, segundo a orientação da época, ocupava-se da língua. A

enunciação, por implicar os contornos realizados pelo sujeito no “ato individual de

vontade e inteligência”15

, estando, assim, relacionada à fala, não poderia ser assumida

como uma preocupação do linguista imanente. Não é de se estranhar, portanto, a opção

de Bally, discípulo de Saussure e um dos compiladores do CLG, por tratar a enunciação

no âmbito de um tratado de estilística.

Nos anos de 1960, Jakobson (1963 apud BRANDÃO, 2003) e Benveniste (1976

[1966], 1999 [1974]) assumiram uma posição de vanguarda no âmbito dos estudos

sobre a enunciação, reinscrevendo-a nos limites da linguística, que, a partir desse

momento, começa a manifestar a preocupação de integrar fatores extralinguísticos na

investigação dos fenômenos da linguagem: a introdução de considerações sobre o papel

do sujeito na linguagem será o divisor de águas entre essa abordagem e a anterior.

A grande contribuição desses dois linguistas, independentemente dos matizes

que cada um tenha dado à enunciação, reside no tratamento que ambos conferiram às

unidades da língua definidas por suas propriedades funcionais no discurso. Jakobson

(1963 apud BRANDÃO, 2003) chamou essas unidades de shifters ou embrayeurs,

embreantes; Benveniste (1976 [1966], 1999 [1974]) as chamou de elementos indiciais

ou dêiticos. Maldidier, Normand & Robin (2014 [1976], p. 74) resumem em poucas

palavras as contribuições dos autores, afirmando que:

Quaisquer que sejam as diferenças que marcam suas abordagens, os

trabalhos destes dois linguistas convergem no sentido de colocar em

evidência uma classe de unidades da língua que se definem por suas

propriedades funcionais no discurso: embrayeurs (ou shifters) para

Jakobson, elementos indiciais para Benveniste, tais elementos têm a

particularidade de remeter para a “instância do discurso” em que eles

são produzidos, constituindo no enunciado pontos de emergência do

sujeito da enunciação.

O que precisamos frisar é que tais unidades funcionais servem, na enunciação,

como pontos de ancoragem por meio dos quais o sujeito se manifesta na língua e marca

as categorias de tempo e lugar; em outras palavras, essas unidades apresentam a função

15

É assim que Saussure (1995 [1916], p. 22) define parcialmente a fala.

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28

de identificar o enunciador, o momento em que se enuncia e o lugar da

enunciação. Para que isso seja possível, segundo Benveniste (1976 [1966], 1999

[1974]), a língua disponibiliza aos falantes um aparelho formal, constituído pelos

elementos indiciais responsáveis pela marcação do eu-aqui-agora; o sujeito falante se

apropria desse aparelho formal da língua e o converte em discurso. A enunciação

pressupõe, portanto, o trabalho individual de um sujeito falante.

Graças aos empreendimentos desenvolvidos por Jakobson e Benveniste que foi

possível conceber a subjetividade na linguagem, as formas como o sujeito nela se

inscreve no ato de enunciação. Por isso, como bem salientam Maldidier, Normand &

Robin (2014 [1976], p. 74]):

Esta descoberta comum funda a oposição entre enunciado e

enunciação e abre uma perspectiva nova à análise do texto: este não

mais manifesta o funcionamento da língua como “repertório de

signos e sistema de suas combinações”, mas remete para a

“linguagem assumida como exercício pelo indivíduo”.

Enunciado e enunciação, nesse contexto, “tornam-se uma dupla de noções

incontornáveis” (MAZIÈRE, 2007, p. 18) e vão permitir, a partir da década de 1960,

diferentes desdobramentos para a linguística, entre os quais se situa a Análise do

Discurso na França. A perspectiva criada especialmente por Benveniste, ainda no

contexto dos anos de 195016

, “desempenhou um papel fundamental na „invenção‟ deste

grande conceito do campo da linguagem: o discurso” (TEIXEIRA, 2012, p. 67).

1.4 A Análise de Discurso Francesa

1.4.1 Da fundação

A Análise de Discurso surgiu na França dos anos 60 a partir dos esforços de Jean

Dubois e de Michel Pêcheux que atuavam nos domínios do marxismo e da política.

Segundo Maldidier (2014 [1994], p. 19), ambos “são tomados em um mesmo espaço:

aquele do marxismo e da política” e “partilham as mesmas evidências sobre a luta de

classes, sobre a história, sobre o movimento social”.

16

Embora tenhamos conhecimento dos trabalhos de Benveniste a partir da compilação dos seus textos nas

obras de 1966 – Problemas de Linguística Geral – e 1974, Problemas de Linguística Geral II –, suas

teses foram desenvolvidas nos anos de 1950, quando, numa tentativa de se colocar contra o descritivismo

da linguística, atribuía à ciência da linguagem a tarefa de estudar a língua viva, tomada pelos falantes no

ato concreto de comunicação. Para maiores detalhes, confira Teixeira (2012, p. 65-68).

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29

Os historiadores da Análise de Discurso costumam situar as contribuições desses

dois autores a partir de dois textos fundamentais: (i) Lexicologia e análise de

enunciado, publicado no Cahiers de Lexicologie, número 15, em 1969, com o título

Lexicologie et analyse d’énoncés e (ii) Análise Automática do Discurso, publicado pela

Dunot em 1969. O primeiro texto corresponde à comunicação feita por Jean Dubois, em

1969, durante a realização do Colóquio de Lexicologia Política de Saint-Cloud, em que

“ele propôs um método de análise distribucional aplicado ao discurso político que,

superior à lexicologia, caracteriza-se pela análise de frases a partir de um corpus”

(MAINGUENEAU, 1996). O segundo é a tese de doutorado de Pêcheux; nela ele visava

à formalização de uma “máquina discursiva”, um “programa teórico e prático” para a

análise de textos.

No que diz respeito ao ato de fundação, há historiadores que tendem a situar um

ou outro desses teóricos na posição de pioneirismo. Segundo Mazière (2007, p. 31), “as

técnicas linguísticas da AD foram institucionalizadas por Jean Dubois”. Acrescenta a

autora que foi ele quem possibilitou o desenvolvimento da Escola Francesa de Análise

do Discurso, ao introduzir o sintagma “análise do discurso” (MAZIÈRE, 2007, p. 32).

Afirma ainda que entre 1969 e 1972, particularmente, surgiu a “Escola de Nanterre” em

análise do discurso, por meio da qual se desenvolveu “o primeiro círculo de

pesquisadores em AD” (MAZIÈRE, 2007, p. 34), cujos trabalhos se debruçavam sobre

textos políticos.

Embora Mazière (2007) nos conduza a enxergar Jean Dubois – e sua “Escola de

Nanterre” – como o fundador da AD, em razão de suas formalizações terem sido as

primeiras, ela mesma reconhece que foi por meio dos trabalhos desenvolvidos por

Michel Pêcheux e pelos pesquisadores que trabalharam em torno dele que a AD

“experimentou certa longevidade” (MAZIÈRE, 2007, p. 45). Entretanto, mais

importante que tornar preciso quem foi o fundador da Análise do Discurso é reconhecer

que ela estava sendo delineada por dois estudiosos cujas formações – em Linguística,

por Dubois e, em Filosofia, por Pêcheux – poderiam oferecer os ingredientes

necessários à constituição de uma nova frente científica. É importante lembrar que foi

em função das articulações entre a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise que a AD se

estabeleceu no seio das ciências humanas. Como bem enfatiza Maldidier (2014 [1994],

p. 20), “marxismo e linguística presidem o nascimento da AD na conjuntura teórica da

França dos anos 1968-70. Muito naturalmente, o projeto se inscreve num objetivo

político: a arma científica da linguística oferece meios novos para abordar a política”.

Page 30: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

30

Um fato importante de se destacar é que o ato de fundação da AD (saliente-se

que estamos aludindo ao gesto de inauguração que, na literatura, costuma ser referido

como 1ª Época da AD) está marcado por uma grande “virada” nos estudos de

linguagem em fins dos anos 60. Essa “virada”, caminho necessário para combater o

estruturalismo reinante, caracteriza-se, entre outros fatores17

: (i) pela incorporação de

componentes pragmáticos, (ii) pela assunção da dimensão histórico-social, (iii) pelo

deslocamento da noção de função para a de funcionamento e (iv) pelo lançamento da

hipótese de que o discurso é um processo de produção de sentidos. Tratemos

brevemente sobre cada um desses fatores.

(i) incorporação de elementos pragmáticos

No tocante ao primeiro fator mencionado acima, no transcurso dos anos 60-70,

vemos aparecer um conjunto de trabalhos na linguística francesa que busca a

reintegração de fatores extralinguísticos no estudo da linguagem humana. Uma das

críticas centrais da AD recaiu sobre a dicotomia saussuriana entre língua e fala,

separação que serviu para instituir a língua como objeto da linguística e excluir dela a

fala, a qual permitiria avaliar as condições de emprego da língua. A exclusão da fala

significou ainda o afastamento do sujeito. A AD entra como uma negação/superação do

gesto separador de Saussure. A esse respeito, cabe aqui a lição de Baronas (2003, p. 7):

A Análise do Discurso irrompe no final dos anos sessenta na França

como um gesto teórico-político que procura negar e, ao mesmo

tempo, superar o que Ferdinand de Saussure havia concebido em

termos de uma ciência da linguagem, ao propor, entre outras

questões, a separação entre língua e fala. Ou seja, a Análise do

Discurso (re)introduz nas preocupações sobre os estudos da

linguagem o que Saussure ao se inscrever no verdadeiro positivismo

de sua época deixou de fora: as condições de emprego da língua.

O objetivo inicial da AD foi, portanto, “rearticular o que o „corte saussuriano‟

havia separado, fazer ressurgir o que a instituição de uma linguística formal havia

17

Marandin (1993 [2014, p. 127]) nos ensina que a análise do discurso, em seu “modelo inaugural”, irá

reter o projeto de gramática de texto constituído no seio do estruturalismo e sobre esse referencial irá

propor três deslocamentos: (a) em vez de procurar “descobrir a estrutura de um texto”, a AD buscará

“conceber um sistema de análise aplicável a todo texto”; (b) em vez de se debruçar sobre a “descoberta

dos constituintes de um texto”, a AD lançará a hipótese de que “o discurso é um processo de produção de

sentidos”; (c) em vez de tentar descobrir o “sentido das expressões linguageiras”, a AD partirá para “a

construção de um fato”.

Page 31: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

31

removido para fora do campo da ciência da linguagem: as condições de emprego da

língua” (COURTINE, 1999 [1991], p. 8).

É oportuno lembrar que Maldidier, Normand e Robin (2014 [1976]) colocam

que, para se constituir uma teoria do discurso, era necessário reintegrar o

“extralinguístico”, aquilo que é dado pelo sujeito e/ou pelo contexto, pela situação, o

que ficara excluído da prática linguística no seio do estruturalismo. No modelo

inaugural de AD, mais especificamente na AAD69, Michel Pêcheux reintegra esse

aspecto “extralinguístico” ao propor o termo condições de produção para descrever as

“circunstâncias” em que se produz dado discurso. O próprio Michel Pêcheux reconhece

que “esta perspectiva está representada na teoria linguística atual pelo papel dado ao

contexto ou à situação, como pano de fundo específico dos discursos, que torna possível

sua formulação e sua compreensão” (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 74). Essa perspectiva

permite ainda refrear o recalque do sujeito pela linguística estruturalista.

(ii) assunção da dimensão histórico-social

Sobre a assunção da dimensão histórico-social, há que se reconhecer que uma

das teses centrais que será formulada na Análise de Discurso é a de que a significação

de um texto está ligada às condições sócio-históricas em que esse mesmo texto é

produzido e que essa ligação não é traço meramente secundário, mas constitutivo da

própria significação18

. Orlandi (2012b, p. 21) afirma que:

O estudo da linguagem não pode estar apartado da sociedade que a

produz. Os processos que entram em jogo na constituição da

linguagem são processos histórico-sociais. A análise de discurso tem

uma proposta adequada em relação a estas colocações, já que no

discurso constatamos o modo social de produção da linguagem. Ou

seja, o discurso é um objeto histórico-social, cuja especificidade está

em sua materialidade, que é linguística.

Trazer à tona a dimensão histórico-social representa uma tentativa de a Análise

de Discurso aplacar o recalcamento que a linguística estrutural fez da história, de modo

a constituir uma teoria materialista do discurso, tomando a língua numa relação com a

sociedade e a história. Na AAD69, Pêcheux (2014 [1969], p. 76) nos ensina que “o

processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um

discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima (...)”. O processo

18

É o ensinamento que nos dão Haroche, Henry e Pêcheux (1971).

Page 32: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

32

discursivo é, portanto, atravessado pelo “já ouvido” e pelo “já dito” (PÊCHEUX, 2014

[1969], p. 85). Compreendemos, assim, que as palavras significam pela língua e pela

história: “a história se inscreve na língua para que ela funcione, isto é, produza sentido”

(ORLANDI, 2014 [1993], p. 11). Assim, entra em jogo a concepção de funcionamento.

(iii) deslocamento da noção de função para a de funcionamento

No que diz respeito ao deslocamento da noção de função para a de

funcionamento, vale destacar que essa mudança teórica foi promovida por Pêcheux

(2014 [1969], p. 60) logo no início de sua obra, ao tratar sobre a Linguística e a análise

de texto. Afirma que:

(...) o deslocamento conceitual introduzido por Saussure consiste

precisamente em separar essa homogeneidade cúmplice entre a

prática e a teoria da linguagem: a partir do momento em que a língua

deve ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como

tendo a função de exprimir sentido; ela se torna um objeto do qual

uma ciência pode descrever o funcionamento (...) (grifos do autor).

Orlandi (2014 [1993], p. 11) afirma que a AD “pensa a compreensão (e não a

descrição finalista) do fato de linguagem, introduzindo explicitamente a noção de

„funcionamento‟”. Segundo Maldidier (2003, p. 31), o funcionamento das línguas em

relação a elas mesmas é uma “fórmula decisiva no pensamento de Michel Pêcheux”.

Na perspectiva criada por Pêcheux, para Maldidier (2003, p. 32), “é a partir desse

funcionamento autônomo que será preciso pensar os processos discursivos”.

(iv) lançamento da hipótese de que o discurso é um processo de produção de sentidos

A inclusão de elementos pragmáticos (sujeito e condições de produção), a

retomada da história e a noção de funcionamento desembocam em outro fator que

contribui para a “virada” nos estudos sobre a linguagem: a perspectiva de que o discurso

é um processo de produção de sentidos.

Antes de tudo, é importante destacar que a concepção de discurso introduzida

por Pêcheux (2014 [1969]) e trabalhada por seu grupo é uma noção fundadora

(MALDIDIER, 2003), fruto de rompimentos com teorias anteriores. Citemos como

exemplo a referência a Harris (1969 [1952]): a teoria desenvolvida por ele traz uma base

a que Pêcheux recorre para construir a noção de paráfrase; entretanto, sua noção de

Page 33: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

33

discurso propriamente não é recuperada19

. De fato, a noção de discurso introduzida por

Michel Pêcheux visa romper com as concepções de cunho estruturalista, fazendo

intervir, entre outras, as noções de sujeito, condições de produção e ideologia, com as

quais ele vinha trabalhando20

.

Há, portanto, um deslocamento da noção de discurso como enunciado resultante

do encadeamento de frases para uma compreensão de discurso como um processo que

produz sentidos entre os interlocutores. Pêcheux recusa, no esquema da teoria da

comunicação formulada por Roman Jakobson, a ideia de que, entre interlocutores, há

uma mensagem para transmitir uma informação. Em seu lugar, implementa a visão de

que, entre interlocutores, há o discurso, que produz um efeito de sentidos. Resulta daí a

nova perspectiva: estudar o processo de produção do discurso (o processo discursivo).

Como a noção de efeito de sentido é produtiva em Análise de Discurso – e, por

isso, será mobilizado em nosso estudo sobre os editais –, iremos retornar a ela no

próximo capítulo.

1.4.2 Do programa teórico e prático de análise: a AD pecheutiana

A produção teórica de Pêcheux se estendeu de 1966 a 198321

. Como

mencionamos no início deste capítulo, sua “Análise do Discurso”22

passou, durante esse

lapso temporal, por várias reconfigurações tendo em vista, sempre, à constituição de

uma máquina discursiva, um algoritmo catalisador de uma análise automática. As

construções e desconstruções em sua teoria nos deixaram como legado uma visão da

análise do discurso desenvolvida em três épocas. O próprio Michel Pêcheux, em 198323

,

reconheceu a existência desses momentos ao rascunhar um texto em que tratava das

“três épocas” da análise de discurso.

A partir de uma revisão da literatura, em que consideramos os principais

historiadores da análise do discurso, elaboramos as anotações a seguir pensando a AD

segundo as características de cada época em que se desenvolveu sem, entretanto, tomar

19

Harris (1969 [1952]) entende o discurso como o enunciado organizado pelo encadeamento interfrástico.

O discurso é, assim, unidade superior à frase. 20

Conferir Herbert (2012 [1966], 1995 [1968]). 21

Incluímos nesse período os trabalhos desenvolvidos por ele com o pseudônimo Thomas Herbert. 22

Usamos o sintagma “Análise do Discurso” em referência ao modelo proposto por Michel Pêcheux, em

que se visava à análise de um discurso específico: o discurso político. 23

PECHEUX, M. (1983). A análise de discurso: três épocas. IN: GADET, Françoise; HAK, Tony

(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5 ed.

Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014. pp. 307 a 315.

Page 34: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

34

cada um desses momentos de forma estanque. Pensamos as construções, os

desdobramentos e as reconfigurações da teoria criada por Pêcheux como um continuum

no qual podemos acessar conceitos operacionais, princípios e procedimentos de análise

para tratar da constituição dos sentidos e compreender os processos de significação em

suas diferentes materialidades.

Consideremos, pois, o momento inicial e o que se pode reter dele em um

trabalho de AD. Michel Pêcheux, em sua AAD69, tinha o objetivo de formalizar uma

“máquina discursiva” apta a tirar a leitura da subjetividade. Para tanto, implementa,

como sinalizamos no item anterior, um novo objeto de estudo: o discurso. O dispositivo

de análise proposto por ele vinculava-se a uma teoria do discurso, que, para Maldidier

(2003), estava inscrita num “vão” da conjuntura teórica e política da França naquela

época e que ainda estava por nascer.

Em AAD69, além de se preocupar em traçar tópicos de reflexão necessária para

a constituição de uma teoria do discurso24

, Pêcheux introduz noções que nortearão, a

partir dos anos seguintes, os trabalhos em AD. Destacam-se as noções de processo de

produção, condições de produção, relações de força, formações imaginárias, efeito

metafórico como deslizamento de sentido. Além disso, o “cavalo de Troia”25

traz a

previsão de que um processo discursivo se constitui sobre um discurso prévio e a

concepção de discurso como um “efeito de sentidos” entre dois pontos A e B. Pêcheux

(2014 [1969], p. 81) nos ensina que estes pontos não correspondem à “presença física

de organismos humanos individuais”, como previa a teoria da comunicação

jakobsoniana, mas a “lugares determinados na estrutura de uma formação social”.

Acrescenta, ainda, que “esses lugares estão representados nos processos discursivos em

que são colocados em jogo” (grifo do autor). Retornaremos a essa questão no próximo

capítulo, quando tratarmos das formações imaginárias postas em jogo no processo

discursivo.

É importante frisar ainda que o dispositivo de análise que está sendo criado visa

“realizar as condições de uma prática de leitura” (PECHEUX, 1969 [2014, p. 150]). Há

um princípio nessa prática de leitura que Michel Pêcheux chama de “princípio da dupla

diferença”, que o fará tomar, nos trabalhos desenvolvidos nos anos seguintes, as noções

de formação discursiva, formação ideológica, interdiscurso e intradiscurso.

24

Lembremo-nos de que Pêcheux, na PARTE I da AAD69, já toca na questão da análise do texto

buscando relações com a Linguística, trata dos métodos não linguísticos e paralinguísticos de análise e

aponta as dificuldades metodológicas para a constituição do corpus. 25

Termo usado por Paul Henry (1995 [2014, p. 38]) para designar a AAD69.

Page 35: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

35

O princípio da dupla diferença identifica a leitura como uma prática polêmica

por produzir gestos de interpretação diferentes, uma vez que o processo discursivo “se

caracteriza não somente pelos efeitos semânticos que nele se encontram realizados – o

que é dito no discurso x – mas também pela ausência de um certo número de efeitos que

estão presentes „além‟ (...)” (PECHEUX, 1969 [2014, p. 151]) . Ou seja, o discurso,

como efeito de sentidos, caracteriza-se não só pelo que é dito, mas também pelo “não

dito”.

A entrada de Pêcheux no domínio da Linguística fica evidente nas considerações

iniciais da AAD69. Embora sua penetração na Linguística também tenha ficado

marcada em um artigo de 1970, Considerações teóricas a propósito do tratamento

formal da linguagem, escrito em colaboração com Antoine Culioli e Catherine Fuchs26

,

e em Língua, ―Linguagens‖, Discurso, escrito em 197127

, a “entrada estrondosa” nas

ciências da linguagem, segundo Maldidier (2003, p. 28), dar-se-á, também em 1971,

com a publicação de A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso,

escrito em co-autoria com Claudine Haroche & Paul Henry28

.

Neste último artigo – daremos uma atenção especial a ele em razão da mudança

de terreno que propõe –, vemos uma crítica à semântica estrutural pós-saussuriana e às

semânticas universais associadas à gramática gerativa. A perspectiva que se cria é a de

que o corte saussuriano não foi suficiente para a constituição da semântica. Para

Haroche, Henry & Pêcheux (1971), “essa ruptura abre passagem para a fonologia, para

a sintaxe e para a morfologia, deixando entretanto de fora de seu campo uma boa parte

daquilo que atribuímos à semântica”. É por isso que, para Maldidier (2003, p. 31), essa

crítica aponta as semânticas linguísticas como “lugares de recobrimento do corte

saussuriano”. É aí que reside a necessidade de “mudança de terreno” por meio da

intervenção da problemática do discurso.

A necessidade de “mudança de terreno” está, portanto, explicitamente

reconhecida por Haroche, Pêcheux & Henry (1971) ao tratar do lugar que ocupava a

26

Cf. Maldidier (2003, p. 27). 27

PÊCHEUX, Michel. (1971). Língua, “Linguagens”, Discurso. IN: ORLANDI, E. Análise de Discurso:

Michel Pêcheux (Textos selecionados por Eni P. Orlandi). 3 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. p.

121-129. Esse texto foi publicado inicialmente no “Spéciale Idées” do L’Humanité em 1971. 28

HAROCHE, C.; HENRY, P.; PÊCHEUX, M. (1971). A semântica e o corte saussuriano: língua,

linguagem, discurso. Tradução de Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro. Linguasagem -

UFSCAR, São Carlos, ed. 03. Disponível em: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/traducao

_hph.php. Acesso em: 29 jun. 2016. Esse texto foi publicado no número 24 da revista Langages também

em 1971. O interstício entre ele e Língua, ―Linguagens‖, Discurso é de apenas dois meses.

Page 36: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

36

semântica entre os estudos linguísticos pós-saussurianos. Segundo eles, “a semântica

(enquanto teoria das regiões deixadas de lado do campo de aplicação dos conceitos e da

prática dos linguistas) supõe uma mudança de terreno ou de perspectiva”. Justificam

ainda a mudança de terreno em função de duas necessidades: “lutar contra o empirismo

(se desembaraçar da problemática subjetivista centrada sobre o indivíduo) e contra o

formalismo (não confundir a língua como objeto da linguística com o campo da

„linguagem‟)”.

Soma-se a isso a necessidade, segundo eles, de introduzir novos objetos

relacionados ao novo terreno. Para a perspectiva teórica que visavam implantar, tais

objetos deveriam partir de conceitos oriundos do materialismo histórico, conceitos estes

que vinham sendo recalcados pelas ciências humanas. Julgamos importante destacar

esse fato porque, já nesse artigo de 1971, Pêcheux explora uma das bases em que ele

fundamentará seu empreendimento, explicitamente, a partir de 1975: o materialismo

histórico, compreendido como a “teoria das formações sociais e de suas

transformações”29

.

Como consequências da mudança de terreno, as reflexões críticas tecidas sobre

a semântica de inspiração saussuriana conduzem, tendo em vista o objeto discurso, à

proposição de uma semântica discursiva, entendida como “a análise científica dos

processos característicos de uma formação discursiva (...) que leva em consideração o

elo que liga esses processos às condições nas quais o discurso é produzido (às posições

às quais deve ser referido)” (HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p. 13).

Entendendo o discurso como efeito de sentidos30

, os três desenvolvem uma das teses

fundamentais da semântica, a de que:

O sentido, objeto da semântica, excede o âmbito da linguística,

ciência da língua. A semântica não deriva de uma abordagem

linguística, ciência da língua. (...) Para além dos níveis fonológico,

morfológico e sintático, cuja descrição Saussure autoriza, a semântica

não é apenas um nível a mais, homólogo aos outros. (MALDIDIER,

2003, p. 31).

29

Em 1975, ao lado de Catherine Fuchs, em A propósito da análise automática do discurso: atualizações

e perspectivas, Pêcheux explicitará as bases sobre as quais se constrói a análise do discurso. 30

Essa expressão é usada por Haroche, Henry & Pêcheux (1971, p. 16) ao se referirem à direção da

pesquisa que visam implantar: uma pesquisa que pode “desembocar numa análise dos efeitos de sentido

implícitos ligados à relação entre diversas formações discursivas” (grifo nosso).

Page 37: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

37

Como afirmamos anteriormente, o dispositivo de análise instituído por Pêcheux

na AAD69 visava à constituição de uma prática de leitura, e isso o fez tomar algumas

noções que se tornaram fundamentais para a AD. Duas dessas noções foram

apresentadas no artigo publicado no número 24 da revista Langages (A semântica e o

corte saussuriano: língua, linguagem, discurso); são elas: Formação Ideológica e

Formação Discursiva (doravante, FD e FI). Retornaremos a esses conceitos no capítulo

seguinte.

É também no texto de 1971 que Haroche, Henry & Pêcheux formulam um dos

princípios fundamentais da AD, o princípio segundo o qual “as palavras podem mudar

de sentido segundo as posições determinadas por aqueles que as empregam”31

. No

mesmo artigo, eles concluem que “(...) o laço que une as „significações‟ de um texto às

suas condições sócio-históricas não é meramente secundário, mas constitutivo das

próprias significações”. Eis aqui a base da noção de condições de produção às quais se

relacionam as formações discursivas.

Segundo os ensinamentos de Maldidier (2003), podemos visualizar o triênio que

segue A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso como o

momento decisivo para a formulação de uma teoria do discurso. É um período marcado

pelas emanações que Louis Althusser exalou no contexto teórico da França no final da

década de 1960 com seu artigo Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: (notas a

uma investigação), que permitiram o desenvolvimento de uma “política marxista das

ciências humanas”32

. A perspectiva traçada por Althusser exerceu influência decisiva

nos trabalhos de Pêcheux. Soma-se a isso o aparecimento da noção de pré-construído,

introduzida na Análise do Discurso, segundo Collinot & Mazière (2014, p. 193), por

Paul Henry e Michel Pêcheux.

O discurso, entendido como uma prática social, não podia ficar imune a tais

elucubrações, e foi por meio delas que se fez possível o encontro da língua com a

ideologia. A relação entre língua/discurso com a ideologia – que, como vimos, já

encontramos nos artigos de Pêcheux citados acima, de 1971 – será o alicerce sobre o

qual ele construirá sua teoria do discurso no triênio seguinte, teoria que ficará visível no

artigo que Pêcheux escreve com Catherine Fuchs, A propósito da Análise Automática

31

Conferir Haroche, Henry & Pêcheux (1971, p. 6). 32

A expressão é de Courtine (1999 [1991]).

Page 38: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

38

do Discurso (publicado em março de 1975), e no livro Les Verités de la Palice, de

Pêcheux (publicado em maio de 1975)33

.

O alicerce da teoria do discurso é sustentado por duas grandes fundações:

(i) a tese da interpelação ideológica de Althusser

A tese da interpelação se resume no título que abre um dos capítulos da obra de

Althusser (1970 [1980, p. 93]): “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”.

Essa tese, fundamental para a constituição da teoria do discurso de Pêcheux, se

desenvolve no seguinte sentido:

Como todas as evidências, aí compreendidas as que fazem com que

uma palavra „designe uma coisa‟ ou „possua uma significação‟ (logo

aí compreendidas as evidências da „transparência‟ da linguagem),

esta evidência de que eu e você somos sujeitos – e que isto não cause

problemas – é um efeito ideológico elementar, o efeito ideológico

elementar. (ALTHUSSER, 1970 [1980, p. 95])

(ii) a tese do pré-construído de Paul Henry e Michel Pêcheux

O termo pré-construído, que será tomado por Pêcheux, a partir de 1975, como

um dos elementos decisivos para a construção de uma teoria do discurso, já aparece no

final do artigo 24 de Langages, em 1971, e vem previsto desde a AAD69, quando

afirma que:

(...) o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se

conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel

de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal

acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito

dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com

as “deformações” que a situação presente introduz e da qual pode

tirar partido. (PÊCHEUX, 1969 [2014, p. 76])

Está aqui implícita a primeira referência ao princípio de que o discurso se

sustenta sobre um discurso prévio. Mais adiante, Pêcheux (1969 [2014, p. 85]) evoca as

noções de pressuposição e implicação desenvolvidas por Oswald Ducrot para levantar a

hipótese de que “as diversas formações resultam, elas mesmas, de processos discursivos

anteriores (provenientes de outras condições de produção) que deixaram de funcionar

mas que deram nascimento a „tomadas de posição‟ implícitas que asseguram a

33

Nossa referência neste trabalho é a tradução brasileira Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação

do óbvio (doravante, SD), feita pela professora Eni Orlandi. Na versão brasileira, além do texto esculpido

em Les Vérités de la Palice, há outros textos anexos escritos também por Michel Pêcheux.

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39

possibilidade do processo discursivo em foco”. O discurso estaria, pois, atravessado

pelo “já ouvido” e pelo “já dito”.

Maldidier (2003) nos ensina que, diferentemente de Ducrot, que traz uma

interpretação lógico-pragmática sobre a pressuposição, Pêcheux, que desejava se

distanciar de qualquer interpretação logicista, assume a opção pelo pré-construído: “A

teoria do discurso acabava de receber um novo conceito: despojado de qualquer sentido

lógico, o pré-construído constitui a reformulação da pressuposição no novo terreno do

discurso” (Maldidier, 2003, p. 36).

A expressão semântica discursiva, adotada por Haroche, Henry & Pêcheux

(1971), será usada até 1975, ano em que Michel Pêcheux e Catherine Fuchs publicarão,

no número 37 da revista Langages, o artigo intitulado A propósito da análise

automática do discurso: atualização e perspectivas, uma reformulação da AAD69. É

neste texto que, pela primeira vez, vemos ser anunciadas as regiões do conhecimento

que se articulam para a constituição da Análise do Discurso34

.

(i) o Materialismo Histórico, entendido como a “teoria das formações sociais e de suas

transformações, compreendida aí a teoria das ideologias”.

(ii) a Linguística, concebida como a “teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos

de enunciação ao mesmo tempo”.

(c) a Teoria do Discurso, compreendida como a “teoria da determinação histórica dos

processos semânticos”.

(d) a Psicanálise, entendida como “uma teoria da subjetividade” (de natureza

psicanalítica) que atravessa e articula as três regiões do conhecimento científico

apresentadas anteriormente.

A articulação dessas regiões do conhecimento pretende trazer para a linguística a

história, assim como ela é tratada no materialismo histórico, e o sujeito, segundo a

concepção da psicanálise. Do materialismo histórico, a teoria do discurso retém

principalmente a noção de formação social ou formação econômica e social, que se

constitui pelos diferentes modos de produção. Para Marx (apud MALDIDIER,

NORMAND & ROBIN, 1976 [2014, p. 87]), “o modo de produção da vida material

domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual”. Da

34

Cf. Pêcheux & Fuchs, 1975 [2014, p. 160].

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40

psicanálise, importa a teoria freud-lacaniana sobre o inconsciente e “o deslocamento da

noção de homem para a de sujeito”, compreendendo-o como uma entidade que “se

constitui na relação com o simbólico, na história” (ORLANDI, 2013, p. 19).

Para a teoria do discurso, importa uma teoria da sintaxe e da enunciação e, ainda,

segundo Orlandi (2013, p. 19), a questão da não-trasparência da linguagem, partindo-se

da hipótese de que “a Análise do Discurso procura mostrar que a relação

linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação direta que se faz

termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro”. A Linguística é vista

como “disciplina nodal” (Mazière, 2007, p. 48).

A articulação entre Linguística, Materialismo Histórico e Psicanálise será

defendida por Michel Pêcheux até o final de sua vida e a vemos em Pêcheux (2012

[1984], p. 283]), ao afirmar que “a análise de discurso na França é antes de tudo (...) um

trabalho de linguistas, (...) de historiadores (...) e de psicólogos”. Daí sua caracterização

como “disciplina de entremeio” (ORLANDI, 1996, 2016).

O mérito de A propósito da análise automática do discurso: atualização e

perspectivas reside, entretanto, não apenas na formalização do tripé sobre o qual se

apoia a AD, mas no conjunto de pressupostos de análise que são instituídos e que

governarão, a partir de então, as inúmeras pesquisas que se desenvolveram em torno da

análise do discurso francesa. No artigo, encontramos uma discussão mais ampla acerca

dos seguintes aspectos recorrentes em análise do discurso35

: a tese da interpelação

ideológica; as noções de formação ideológica e formação discursiva; a teoria dos dois

esquecimentos; a relação entre produção de sentido e processo parafrástico; o processo

discursivo; a enunciação; os mecanismos de dessintagmatização linguística (ou

dessuperficialização) e dessintagmatização discursiva; a distinção terminológica entre

superfície linguística, objeto discursivo e processo discursivo; as condições de

construção de um corpus.

O ano de 1975, para a Análise do Discurso, não ficou marcado somente pela

revisão e inauguração de novas perspectivas de análise operadas pelo artigo publicado

em Langages 37. Nesse mesmo ano, vem coroar os estudos acerca do discurso o livro

de Michel Pêcheux intitulado Les Vérités de la Palice. Para melhor situar o leitor sobre

35

Com o intuito de não tornar nossa apresentação redundante, nós nos limitaremos, aqui, a uma mera

referência aos pontos de maior relevância para a pesquisa em AD que encontramos no artigo 37 de

Langages. No capítulo em que trataremos dos princípios e procedimentos da AD, o retorno ao artigo será

inevitável.

Page 41: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

41

as contribuições de Pêcheux neste livro, tomaremos por base a própria obra do autor e a

excelente exposição sobre ela feita por Maldidier (2003, p. 45-54). Com esse

referencial, elaboramos o quadro a seguir em que ficam destacados os aspectos

importantes para a AD contidos em Les Vérités de la Palice36

.

(a) A tese de que a Semântica é ponto nodal das contradições que atravessam a Linguística,

pois é nesse ponto que a Linguística se articula com a Filosofia e, assim, com o

Materialismo Histórico – ciência das formações sociais.

SD, p.

18

(b) Assunção da posição materialista, a partir da teoria marxista-leninista sobre ideologia, e

a tentativa de desenvolver a noção de processos discursivos a partir dessa posição.

SD, p.

33

(c) Opção pelo “ponto lógico-linguístico” que, segundo ele, pode nos conduzir a uma teoria

materialista do discurso.

SD, p.

84

(d) Necessidade de recondução ao “problema „moderno‟ da enunciação”. A enunciação,

segundo Pêcheux, ocupa o centro da nova configuração, que articula lógica, teoria do

conhecimento e filosofia da linguagem.

SD, p.

46-50

(e) Distinção entre língua – base linguística – e discurso – processo discursivo – e sua

relação com a ideologia. Como consequência dessas relações, recebemos duas teses: (i) a

tese segundo a qual é sobre a base linguística que se desenvolvem os processos

discursivos e (ii) a tese de que todo processo discursivo se inscreve numa relação

ideológica de classes.

SD, p.

82

(f) Acolhimento da tese do pré-construído para se referir a toda “construção anterior,

exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é „construído‟ pelo enunciado”.

SD, p.

89

(g) Recepção do termo articulação de enunciados como um funcionamento discursivo

(MALDIDIER, 2003, p. 47). Esse termo foi usado por Paul Henry, em seu artigo no

número 37 de Langages37

, em referência ao funcionamento das relativas, cuja construção

é, para Pêcheux, “o lugar privilegiado no caminho teórico que leva ao discurso”.

SD,

p.95

(h) Afirmação de que “uma teoria materialista dos processos discursivos não pode, para se

constituir, contentar-se em reproduzir, como um de seus objetos teóricos, o „sujeito‟

ideológico como „sempre-já dado‟”. Pêcheux conclui que essa teoria materialista dos

processos discursivos deve assumir uma teoria não-subjetiva da subjetividade. Temos

aqui um dos grandes avanços sobre a problemática do sujeito do discurso na AD.

SD, p.

121

(i) Ancoragem da teoria do discurso na tese althusseriana da interpelação ideológica

(MALDIDIER, 2003, p. 49). Vemos essa ancoragem nos capítulos 1 e 2 da 3ª Parte de

SD.

SD, p.

129 -

144.

(j) Sistematização – e aprofundamento da discussão – dos principais elementos de uma

teoria do discurso. Entre esses elementos destacam-se: (i) o caráter material do sentido,

(ii) o conceito de formação discursiva, (iii) a noção de processo discursivo, (iv) o

interdiscurso e o intradiscurso, (v) a forma-sujeito, (vi) a concepção de efeito de sentido,

(vii) o discurso-transverso e (viii) as noções de Esquecimento no 1 e Esquecimento n

o 2.

SD, p.

145 a

168

Quadro 1 – Aspectos teóricos relevantes em Les Vérités de la Palice

Esse modelo inaugural da Análise do Discurso, desenvolvido no “tempo das

grandes construções”38

, em virtude dos deslocamentos teóricos produzidos, passou por

36

Lembramos ao leitor que nossa referência é a tradução brasileira Semântica e Discurso: uma crítica a

afirmação do óbvio. 37

HENRY, Paul. (1975). Construções relativas e articulações discursivas. Trad. João Wanderley Geraldi

e Celene Margarida Cruz. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, (19): 43-64, jul./dez. 1990. 38

A expressão é de Maldidier (2003). A autora traz uma periodização da Análise do Discurso que se

divide em três momentos (que se aproximam das “três épocas” da AD visualizadas por Pêcheux (2014

Page 42: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

42

uma crise cuja consequência foi o desdobramento de um conjunto de trabalhos que

ficou referido na literatura como 2ª Época da AD, reconhecida por Pêcheux (2014

[1983, p. 309]). O programa de pesquisa implantado pela AAD69 e desenvolvido nos

anos seguintes – até 1975, em especial com o artigo 37 de Langages e Les Vérités de la

Palice – necessitava ser reorientado, uma vez que refletia ainda o modelo estrutural.

Segundo Maldidier (2014 [1994], p. 25), Pêcheux, nessa época, “dispunha de uma

concepção ainda simples de língua, fortemente marcada pela ideologia estrutural: a base

invariante (sintaxe) vs a seleção combinação (léxico)”.

Outra problemática do modelo inaugural apontada por Maldidier (2014 [1994]) é

o fato de que tanto o princípio de constituição do corpus quanto o método

distribucional do estruturalismo estavam centrados sobre a palavra. Por essa razão, a

problemática da construção do corpus constituirá um “deslocamento sensível”39

durante

o primeiro período de reconstrução do dispositivo. Soma-se a isso a entrada, em

Linguística, de campos como a pragmática, a filosofia da linguagem, os estudos sobre

enunciação e a recepção de Bakhtine-Volochinov, cujo livro Marxismo e Filosofia da

Linguagem acabara de entrar na conjuntura teórica da França dos anos 1970

(MALDIDIER, 2014 [1994]; BRANDÃO, 2012).

As reconfigurações mais sutis giram em torno das noções de formação

discursiva e interdiscurso. No tocante à formação discursiva, Pêcheux (2014 [1983], p.

310) passa a afirmar que:

(...) a noção de formação discursiva, tomada de empréstimo a Michel

Foucault, começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural

fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação

paradoxal com seu “exterior”: uma FD não é um espaço estrutural

fechado, pois é constitutivamente “invadida” por elementos que vêm

de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-

lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob a

forma de “pré-construídos” e de “discursos transversos”).

Isto posto, no que diz respeito ao interdiscurso, Pêcheux reorienta sua visão no

seguinte sentido:

A noção de interdiscurso é introduzida para designar “o exterior

específico” de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para construí-

la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição

estrutural fechada: o fechamento da maquinaria é pois conservado, ao

[1983]). São eles: o Tempo das grandes construções – de 1969 a 1975; o tempo das Tentativas – de 1976

a 1979; e o tempo da Desconstrução Domesticada – de 1980 a 1983. 39

Cf. Pêcheux (2014 [1983], p. 311).

Page 43: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

43

mesmo tempo em que é concebido então como resultado paradoxal

da irrupção de um “além” exterior e anterior. (PÊCHEUX, 2014

[1983], p. 310).

Durante o primeiro período em que se buscou por desconstruções e

reconfigurações (da 1ª para a 2ª Época da AD), Michel Pêcheux escreveu pouco. Os

historiadores da Análise do Discurso situam, nesse período, as seguintes contribuições

do autor: Remontemos de Foucault a Spinoza (1977), Há uma via para a linguística

fora do logicismo e do socialismo? (1977) e Só há causa daquilo que falha (1978). O

próprio Pêcheux (2014 [1983], p. 311) reconheceu que a “AD-2 manifesta muito poucas

inovações”.

A partir da década de 1980, a Análise de Discurso passará por outra reviravolta,

cuja consequência será uma nova Época a qual Pêcheux (1983 [2014, p. 311])

reconhecerá como AD-3, a 3ª Época da AD. No bojo da nova reconfiguração está a

realização do colóquio Materialidades Discursivas40

, realizado em Nanterre em 1980.

Nesse período da AD, presenciamos a desconstrução das maquinarias

discursivas e o desenvolvimento de novos procedimentos de análise. Dentre as

inovações, as pesquisas acentuam “o primado teórico do outro sobre o mesmo”

(PÊCHEUX, 2014 [1983], p. 311), isto é, o primado do interdiscurso sobre o discurso.

Há duas contribuições decisivas para o estabelecimento de novas perspectivas: a

de Jean-Jacques Courtine e a de Jacqueline Authier-Revuz. Courtine (2014 [1981]

[2014], 2016 [1982]) elaborou as noções de “enunciado dividido”, a partir da categoria

marxista da contradição, e “memória discursiva”, a partir da Arqueologia do Saber de

Michel Foucault. Além disso, ele ampliou o conceito de formação discursiva,

demonstrando que o fechamento de uma FD é instável, não havendo uma separação

definitiva entre um interior e o exterior; sob esse prisma, o fechamento de uma FD “se

inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se desloca em função das questões

da luta ideológica” (COURTINE, 2016 [1982, p. 20]). A contribuição de Authier-Revuz

(1990, 1998, 2004), fortemente influenciada pela teoria da polifonia de Bakhtine-

Voloshinov, reside, principalmente, na construção teórica sobre as heterogeneidades

enunciativas: heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva do discurso,

funcionamentos que permitem identificar a presença do outro sobre o mesmo e que

40

Tivemos acesso aos textos do colóquio por meio do livro organizado por Bernard Conein, Jean-Jacques

Courtine, Françoise Gadet, Jean-Marie Marandin e Michel Pêcheux, publicado pela Editora da Unicamp

em 2016: CONEIN, Bernard et al. (Org.) Materialidades discursivas. Campinas, SP: Editora da

Unicamp, 2016.

Page 44: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

44

recoloca, nas pesquisas em AD, a relação entre interdiscurso e intradiscurso

(MALDIDIER, 2003).

Depois década de 1980, entra em jogo a questão do arquivo e sua relação com a

problemática da leitura; o arquivo se torna elemento fundamental para a reconstrução de

novos algoritmos de análise do discurso. Pêcheux et al. (2014[1982]), após breve

“balanço” sobre o dispositivo de análise construído em AAD69, lançam os “pontos de

referência” para uma versão AAD80, entre os quais se destaca a definição do corpus,

cuja constituição deveria estar relacionada à problemática do arquivo. Em uma breve

nota de rodapé, Pêcheux et al. (2014 [1982], p. 255) afirmam que “os corpora tratados

pela AAD69 foram de dois tipos: os corpora experimentais e os corpora de arquivo.

Estes últimos constituem, em função das perspectivas teóricas atuais, os únicos tipos de

corpora passíveis de serem tratados pela análise do discurso”.

Pêcheux (2016 [1980], p. 24), em seu discurso de abertura do colóquio

Materialidades Discursivas, nos faz uma pergunta deveras provocadora: “Sabemos o

que é ler?”. E é pensando a leitura, no espaço do arquivo histórico, que ele imagina a

análise do discurso como “esse dispositivo muito particular de leitura que se poderia

designar como leitura-trituração” (PÊCHEUX, 2016 [1980], p. 25). No próximo

capítulo, trataremos com mais detalhes a noção de arquivo em AD.

Dentre as perspectivas lançadas em torno de uma AAD80, julgamos importante

chamar a atenção de duas:

(a) (re)afirmação41

da necessidade de serem considerados dois espaços para

descrever séries discursivas: o espaço vertical, da dimensão histórica do

discurso, e o espaço horizontal, do “fio do discurso”, isto é, do sequenciamento

(PÊCHEUX et al., 2014 [1982], p. 277]);

(b) afirmação do desejo de abandonar a prática de análise que se desenvolveu em

função do sentido atribuído à expressão análise do discurso42

e assumir, em seu

lugar, “uma prática contraditória, tomando a morfologia e a leitura” (PÊCHEUX

et al., 2014 [1983], p. 278).

41

Lembremo-nos de que essa afirmação se pauta na perspectiva criada por Courtine (2014 [1981], 2016

[1982]) acerca dos eixos vertical e horizontal da produção discursiva. 42

Pêcheux et al (2014 [1982], p. 278) reconhecem que o termo análise do discurso, que se difundiu a

partir da AAD69, “designa ao mesmo tempo uma decomposição de séries discursivas e uma regressão

que reduz a complexidade dessas séries a uma lei ou a um modelo de representação simplificador”. Mais

adiante, afirmam que é essa prática que deve ser abandonada.

Page 45: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

45

Outra contribuição valiosa de Michel Pêcheux à Análise do Discurso nesse

período é a introdução do conceito de acontecimento. Tomando suas próprias palavras,

podemos compreender o acontecimento como ―o ponto de encontro de uma atualidade e

uma memória‖ (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 17) ou como o fato novo ―em seu contexto

de atualidade e no espaço da memória que ele convoca‖ (PÊCHEUX, 2012 [1983, p.

19]). Desde 1980, no colóquio Materialidades Discursivas, ele já apontava para a

necessidade de “libertar a análise do discurso (...) das rotinas da reprodução do sentido e

engajá-la na produção do acontecimento” (PÊCHEUX, 2016 [1980], p. 27). Traremos o

conceito de acontecimento em AD com maiores esclarecimentos no próximo capítulo.

1.4.3 Desdobramentos da Análise de Discurso (pecheutiana) no Brasil

A Análise de Discurso possui muitas linhas teóricas43

. Por essa razão, desde

nossa Introdução, vimos afirmando em qual perspectiva nos baseamos para a

elaboração do dispositivo teórico e do dispositivo de análise que assumimos na presente

pesquisa. Filiamo-nos à Análise do Discurso proposta por Michel Pêcheux e

desenvolvida por ele e seu grupo entre os anos de 1969 e 1983. Entretanto, é importante

destacar que somamos aos postulados da AD pecheutiana pressupostos teóricos

elaborados no Brasil a partir da matriz francesa. É fato que a AD de orientação francesa

obteve desdobramentos e deslocamentos importantes em nosso país, em especial com os

trabalhos de Eni Orlandi, a partir dos anos de 1970, e dos pesquisadores a ela

vinculados.

Acreditamos que o principal desdobramento da AD francesa no Brasil tenha sido

a ampliação do seu escopo de estudo, resultante do deslizamento de uma Análise do

Discurso, que possui uma relação determinante com o discurso político, para uma

Análise de Discurso, que permitiu o estudo sobre o discurso em diferentes

materialidades. Não estamos nos referindo, aqui, ao deslizamento que fez a AD

pecheutiana caminhar rumo às reconfigurações que se aproximam das perspectivas

formalistas. É notória, nesse sentido, a observação de Baronas (2003, p. 7), para quem:

43

Só a título de ilustração, podemos citar as linhas de pesquisa implantadas atualmente no âmbito do

Grupo de Estudos Discursivos – GED, que reúne pesquisas em torno da Análise Dialógica do Discurso,

de orientação bakhtiniana, da Semiótica Discursiva, originada dos trabalhos de Greimas, e da Análise de

Discurso Francesa, sob a chancela dos estudos de Pêcheux e Foucault.

Page 46: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

46

O dispositivo teórico-político tal qual fora pensado por Pêcheux no

final dos anos sessenta ao caminhar de uma Análise do Discurso para

uma Análise de Discurso, principalmente depois da sua morte em

1983, gradativamente foi sendo desviado do seu percurso primeiro,

que era o de articular linguística e história e tomando uma

configuração que se aproximou cada vez mais das perspectivas

formalistas, as quais, no fundo, concebem o discurso como um

exemplo de língua.

Referimo-nos aos deslocamentos que permitiram o estudo do processo

discursivo nas diferentes trocas simbólicas realizadas pelo homem por meio da

linguagem verbal e não verbal. Sobre esta última, vale destacar, como exemplo, as

contribuições de Souza (2001, 2018, entre outros), que desenvolveu perspectivas

voltadas para o estudo da imagem (gráfica, fotográfica, fílmica, publicitária, etc.)

formulando um novo campo de descrição e análise do não verbal como materialidade

discursiva44

.

Os desdobramentos e deslocamentos teóricos realizados a partir da matriz de

origem francesa permitiram o reconhecimento daquilo que, hoje, é referido como

Análise do Discurso Brasileira (ORLANDI, 2005). Em razão da inviabilidade de trazer,

neste espaço, todas as contribuições dos pesquisadores brasileiros para a constituição

dessa Escola Brasileira de Análise do Discurso, destacaremos as de Eni Orlandi que

julgamos mais relevantes, tendo em vista, principalmente, o tratamento que daremos ao

nosso objeto de estudo. Para isso, tomamos por base Orlandi (2012a), que traz um

inventário de algumas de suas construções teóricas que ela considera como

“deslocamento produtivo” (tomaremos a liberdade de, aqui, apenas citá-las, pois, no

capítulo seguinte, iremos expor para o leitor com mais detalhes os conceitos instalados

em AD em função dessas contribuições):

(i) a tese de que, no processo discursivo, há uma tensa relação entre paráfrase e

polissemia;

(ii) o estabelecimento de um corte entre discurso e texto, sujeito e autor;

(iii) o deslocamento da operação de segmentação para a de recorte;

(iv) o princípio da incompletude da linguagem;

(v) a instalação do conceito de forma material ao lado da forma empírica e da

forma abstrata;

44

Confira também o conjunto de textos organizados por Souza & Pereira (2011).

Page 47: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

47

(vi) a teorização sobre o silenciamento de modo a se compreender como os

sentidos se constituem, são formulados e circulam na sociedade.

(vii) a revisão do conceito de interpretação, segundo a Hermenêutica e a Análise

de Conteúdo, o que a fez conceber a noção de gesto de leitura ou gesto de

interpretação, em que se considera a interpretação como uma prática

discursiva/simbólica;

(viii) a diferenciação entre Dispositivo Teórico e Dispositivo Analítico, o que

permite ao analista desenvolver seu estudo no batimento metodológico entre

teoria, descrição e interpretação;

(ix) a distinção entre interdiscurso e arquivo;

(x) a revisão do conceito de equívoco levando em consideração a falha da língua

na história;

(xi) a teorização sobre o duplo movimento da compreensão da subjetividade: a

interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia (assujeitamento) e a

individualização do sujeito pelo Estado.

Page 48: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

48

2. Dispositivo teórico da Análise de Discurso

Neste capítulo, apresentamos ao leitor os princípios e procedimentos difundidos

na Análise de Discurso de orientação francesa que serão mobilizados para darmos

tratamento ao nosso objeto de estudo. Gostaríamos de ressaltar que, em função das

limitações espaciais impostas a todo capítulo teórico, as anotações que fazemos aqui se

referem a um mínimo recorte do referencial teórico da AD, de modo a trazer para o

leitor os pressupostos necessários para a análise.

2.1 Discurso, Formação Discursiva e Formação Ideológica

Partiremos da tradicional noção de discurso como efeito de sentidos entre

interlocutores. Essa noção foi inicialmente delineada na AAD69, quando Pêcheux,

revendo a Teoria da Enunciação de Jakobson45

, propôs o termo discurso no lugar de

mensagem. Para Pêcheux (2014 [1969]), na interlocução, o que o locutor diz ao

alocutário “não se trata necessariamente de uma transmissão de informação” entre dois

indivíduos, mas de “efeito de sentidos” entre duas posições, “dois lugares determinados

na estrutura de uma formação social”.

Essa noção de discurso é fundadora. Ao deslocar a concepção de interlocutores

como indivíduos (pessoas físicas) que transmitem informações entre si para

interlocutores como lugares historicamente determinados, Michel Pêcheux funda uma

nova forma de analisar as trocas simbólicas realizadas pelo homem por meio da

linguagem.

A concepção de discurso introduzida na AAD69 teve como consequência uma

série de desdobramentos teóricos necessários para sua compreensão. O primeiro deles

foi relação que se estabeleceu entre efeito de sentidos e as noções de formação

discursiva (FD) e formação ideológica (FI), formuladas em 1971 no artigo A semântica

e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso, de Haroche, Henry e Pêcheux46

.

Segundo esses teóricos:

45

Devemos lembrar que, na Teoria da Enunciação de Roman Jakobson, há um remetente/destinador que

transmite a um destinatário uma sequência verbal – a mensagem – visando à transmissão de informação. 46

Estamos considerando o uso da noção de formação discursiva no interior da AD; daí partirmos desse

ponto, sem deixar de considerar que o termo em questão já tinha sido usado por Foucault (2008 [1969]).

Page 49: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

49

Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento

suscetível de intervir – como uma força confrontada a outras forças –

na conjuntura ideológica característica de uma formação social em

um momento dado. Cada formação ideológica constitui desse modo

um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são

nem “individuais” e nem “universais”, mas que se relacionam mais

ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em

relação às outras. (HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p.12)

Logo em seguida, apoiando-se em pressupostos do Materialismo Histórico, eles

acrescentam que:

(...) as formações ideológicas assim definidas comportam

necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias

formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e

deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão,

de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de

uma posição dada numa conjuntura dada: o ponto essencial aqui é

que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas, mas

também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se

combinam, na medida em que elas determinam a significação que

tomam essas palavras: como apontávamos no começo, as palavras

mudam de sentido segundo as posições ocupadas por aqueles que as

empregam. Podemos agora deixar claro: as palavras ―mudam de

sentido‖ ao passar de uma formação discursiva a outra.

(HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p.12) [Grifos nossos].

Os trechos destacados acima nos permitem sintetizar o seguinte quadro teórico:

uma formação ideológica consiste em uma concepção dada na conjuntura histórica de

dada formação social; a formação discursiva é aquilo que determina o que pode e deve

ser dito no interior dessa conjuntura sócio-histórica.

A noção de discurso – efeito de sentido – é posta, assim, numa relação com as

formações discursivas inscritas em dada formação ideológica. O sentido de uma palavra

não é dado a priori, ele emerge do interior da formação discursiva na qual dada palavra

é empregada. Esse posicionamento sobre efeito de sentido em relação à FD continua

sendo defendido por Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 167). Para eles, “o „sentido de

uma sequência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta

sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva (o

que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos)”.

Em Les Vérités de La Palice, Michel Pêcheux dá amplo desenvolvimento à

relação entre sentido, FD e FI. Lá, ele defende que o caráter material do sentido é

dependente constitutivamente do “todo complexo das formações ideológicas”. Desse

modo, parte em defesa de duas teses: (i) a de que o sentido das unidades da língua é

Page 50: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

50

determinado por posições ideológicas que entram em jogo no processo sócio-histórico

em que são reproduzidas, daí sua compreensão de FD como aquilo que determina o que

pode e deve ser dito dentro de uma FI dada; (ii) a de que toda FD dissimula (apaga,

oculta), pelo princípio da transparência do sentido, sua subordinação ao todo complexo

com dominante das formações discursivas, no interior do emaranhado das formações

ideológicas (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 146)47

. É nesse ponto específico que Pêcheux

formula um dos principais conceitos operatórios da Análise de Discurso. Ao todo

complexo com dominante das formações discursivas ele atribui o nome interdiscurso,

ao qual voltaremos adiante.

Essa concepção de FD, como um exterior específico do discurso, dominou as

pesquisas na Análise do Discurso instituída por Michel Pêcheux e, muito embora esse

conceito tenha sido posto em escanteio na França a partir dos anos 80, como bem

pontua Baronas (2011), ele continua operativo em pesquisas sobre o discurso por se

tratar de um conceito produtivo para a teoria.

Em razão de sua operacionalidade para o tratamento de diferentes temas no

amplo domínio da Análise de Discurso, são necessários outros apontamentos sobre a

noção de formação discursiva. Consideramos a reinterpretação do conceito por Courtine

(2014 [1981], 2016 [1982]) que, buscando elementos definidores de formação

discursiva em Michel Foucault, contribuiu para a superação de obstáculos relacionados

à noção de FD com os quais os analistas de discurso se confrontaram.

Courtine (2016 [1982]) sinaliza que há um erro na interpretação de formação

discursiva como um bloco de imobilidade, uma área de repetição fechada. Adverte que

uma FD não é um único discurso para todos, nem para cada um o seu discurso,

concepção de FD que a colocava como regiões fechadas e estabilizadas48

. Partindo da

premissa de que a contradição é o seu princípio constitutivo, ele irá pensá-la como dois

(ou vários) discursos em um só.

Consideramos assim uma FD como uma unidade dividida, uma

heterogeneidade em relação a si mesma: o encerramento de uma FD é

fundamentalmente instável, ele não consiste em um limite traçado

separando de uma vez por todas um interior e um exterior do seu

saber, mas se inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se

desloca em função das questões da luta ideológica. (COURTINE,

2016 [1982]) [Grifos do autor].

47

Para maiores detalhes, confira Pêcheux (2009 [1975], p. 146-149). 48

Confira Orlandi (2014 [1993]), que atribui a má compreensão sobre o conceito de FD não a Michel

Pêcheux, mas aos seus discípulos.

Page 51: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

51

O conceito de formação discursiva recebe, dentro dessa perspectiva, um

importante desdobramento realizado por Courtine (2014 [1981], 2016 [1982]). Ao

retomar de Pêcheux (2009 [1975]) o pressuposto de que o interdiscurso corresponde ao

“todo complexo com dominante das formações discursivas” e o de que o interdiscurso

está submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação, ele vê o interdiscurso

como a “articulação contraditória de uma formação discursiva e de formações

ideológicas” e propõe que “é no interdiscurso de uma FD que se constitui o domínio do

saber próprio desta FD” (COURTINE, 2016 [1982], p. 22). Segundo ele, primeiro há a

contradição que constitui uma FD; o domínio do saber e seus elementos são formados

em seguida. O domínio do saber realiza, assim, o fechamento – instável – de uma

formação discursiva.

O fechamento de uma FD é interpretado por Courtine como instável, porque ele

compreende o interdiscurso como um processo de reconfiguração incessante devido às

posições ideológicas que dada FD representa em conjuntura sócio-histórica dada. O

interdiscurso é, assim, a instância que governa o deslocamento das fronteiras de uma

formação discursiva. Desse modo, uma FD não é um bloco fechado, homogêneo,

estável; é mais um espaço em que podem ser incorporados elementos produzidos em

outro domínio do saber.

A introdução do conceito de interdiscurso como memória do dizer ou memória

discursiva – aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente – desempenhou

papel importante na AD. Quando observamos o interdiscurso, podemos “remeter o

dizer” posto em análise “a uma filiação de dizeres, a uma memória” e, ainda, podemos

identificar esse dizer “em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus

compromissos políticos e ideológicos” (ORLANDI, 2013, p. 32, lendo Courtine).

Para Courtine (2016 [1982]), uma FD comporta dois níveis de descrição: o do

enunciado e o da formulação. Ele chama de enunciado, representado por um [E], o

conjunto de elementos do domínio do saber inerente a uma FD, isto é, um “esquema

geral” que rege a repetibilidade no interior de uma rede de formulações. É a dimensão

vertical (interdiscursiva) do enunciado. Por outro lado, denomina formulação, processo

que ele representa com um [e], a sequência linguística que corresponde a uma

formulação possível de um enunciado [E] no domínio da rede de formulações. É a

dimensão horizontal (intradiscursiva) do enunciado.

Elaboramos o esquema abaixo para ilustrar a perspectiva assumida por Courtine.

No nível vertical, interdiscursivo, temos os elementos do saber – o enunciado [E] – um

Page 52: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

52

conjunto estratificado e desnivelado de formulações que constituem uma rede na qual se

estabiliza a referência de tais elementos, forma-se um objeto de discurso, algo pré-

construído, que fala antes e independentemente e constitui a memória do dizer. No nível

horizontal, intradiscursivo, temos a formulação [e], quando um sujeito enunciador,

ocupando uma posição determinada no interior da FD, em uma situação de enunciação,

apropria-se de dado elemento do saber [E], da memória discursiva, e o sequencializa,

lineariza, fazendo sua formulação.

Portanto, foi em função dos trabalhos de Courtine (2014 [1981], 2016 [1982])

que o conceito de FD se deslocou de uma compreensão que a colocava como uma

região fechada e estabilizada para campos de significação cujas fronteiras são móveis,

de modo que as FDs estejam em constante reconfiguração. O saber discursivo inerente a

uma FD se desloca no transcurso do tempo de modo que em dado domínio do saber vão

se produzindo diferentes dizeres. Compreendemos o trajeto produzido pelo

deslocamento dos sentidos no seio de um domínio do saber como aquilo que a AD

chama de historicidade. No texto Papel da Memória, Michel Pêcheux termina por

conceber a memória discursiva da seguinte maneira:

(...) uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena,

cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria

um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é

necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de

deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um

Interdiscurso de uma FD X

Costura uma FD, delimitando suas fronteiras (com outras FD), fronteiras estas

que podem ser deslocadas em razão de sua

incessante reconfiguração.

É levado a incorporar os elementos pré-construídos produzidos no seu exterior (já

que o interdiscurso é um processo de

reconfiguração incessante).

Determina o que pode e deve ser dito.

Domínio do

Saber

(elementos do saber)

e

E

Page 53: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

53

espaço de desdobramentos, réplicas; polêmicas e contra-discursos.

(ACHARD et al., 1999, p. 56).

Com base no que foi exposto sobre os trabalhos de Courtine, é necessário

sistematizar duas noções basilares da AD: interdiscurso e intradiscurso. O interdiscurso

– a memória discursiva – sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já

feitas, mas esquecidas, que vão construindo uma história de sentidos. É sobre essa

memória, de que não detemos controle, que nossos sentidos se constroem, dando-nos a

impressão de sabermos do que estamos falando (aí se forma a ilusão de que somos a

origem do que dizemos; esse apagamento é necessário para que o sujeito estabeleça um

lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos, constituindo outras

possibilidades dos sujeitos se subjetivarem).

Como leciona Orlandi (2013, p. 31), o interdiscurso é “o saber discursivo que

torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está

na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza

dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”.

O interdiscurso, a memória do dizer, determina o intradiscurso, a formulação de

um enunciado por um sujeito ocupando dada posição no seio da formação discursiva em

que está inscrito. O intradiscurso reativa a memória do dizer em dado acontecimento

discursivo. Por essa razão, em AD, relaciona-se às noções de interdiscurso e

intradiscurso o conceito de acontecimento discursivo que, segundo Pêcheux (2012

[1983], p. 17) é “o ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória”.

Voltando ao que expúnhamos sobre o discurso como efeito de sentido entre

interlocutores, podemos afirmar que sua relação com as noções de formação discursiva

e formação ideológica atravessou a Análise de Discurso durante os anos de 1970.

Depois dos anos 80, entretanto, com o declínio da concepção de FD, o discurso passou a

ser posto numa relação com o conceito de deriva.

A materialidade do discurso é a língua. Uma vez compreendida como “sistema

sintático intrinsecamente passível de jogo que comporta a inscrição dos efeitos

linguísticos materiais na história para produzir sentidos”49

, a língua deve ser vista como

uma forma material sujeita ao equívoco, ao deslize, à falha. Pêcheux (2012 [1983]) nos

ensina que o equívoco, a falta, a falha são constitutivos da língua.

49

Confira Ferreira (2003, p. 197).

Page 54: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

54

Baronas (2005) afirma que, em 1983, com a obra O discurso: estrutura ou

acontecimento, Pêcheux faz o noção de efeito de sentido desembocar na perspectiva da

deriva.

Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro,

diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de sentido para

derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação

própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente).

Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois,

linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente

determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a

interpretação. (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 53)

Sendo o equívoco inerente ao sistema linguístico, a língua fica sujeita a falhas e,

por elas, os sentidos deslizam, ficam à deriva. À Análise de Discurso cabe interpretar e

descrever o modo como os efeitos de sentido são produzidos nos possíveis pontos de

deriva, na série de deslocamentos produzidos de um enunciado a outro. Os pontos de

deriva passam a constituir, assim, o lugar sobre o qual deve recair o olhar do analista

para observar os efeitos de sentido.

2.2 Língua (em relação a discurso) em Análise de Discurso

Uma vez apresentada a noção de discurso, cumpre destacar sua relação com

outras instâncias consideradas na AD: a instância da língua e a da ideologia. Isso se faz

necessário, porque um dos postulados da AD diz respeito ao jogo de materialidades que

cada uma dessas instâncias desempenha em relação à outra. Repete-se em, AD, que a

língua é a materialidade do discurso; e o discurso, a materialidade da ideologia.

Aquilo que se deve entender por língua é uma das questões sobre as quais se

debruçam os analistas do discurso. Com base em Mazière (2007, p. 17-19), podemos

traçar dois diferentes contornos para o conceito de língua, desde Saussure até o

momento em que a AD começa a se constituir: língua como estrutura, sistema, e língua

como instrumento de comunicação, isto é, como a entidade empírica usada pelos

sujeitos falantes no exercício da comunicação.

Em ambas as concepções, não há qualquer consideração de língua no tocante ao

seu funcionamento. Como vimos no capítulo precedente, a entrada de Pêcheux na

linguística foi decisiva para a formulação de uma nova visão sobre língua a partir do

deslocamento da noção de função para funcionamento. Como consequência dessa visão,

Page 55: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

55

a língua na AD não pode ser pensada da mesma forma como o é na Linguística, como

sistema abstrato; a língua na AD possui um funcionamento autônomo, funcionamento

este que, na perspectiva de análise criada por Pêcheux, dependerá da relação da língua

com a ideologia, com a história, que “se inscreve na língua para que ela funcione, isto é,

produza sentido” (ORLANDI , 2014 [1993], p. 11). Língua, para o analista de discurso,

não é um sistema abstrato fechado nele mesmo; é uma das maneiras que o homem, ser

histórico e social, adotou para significar o mundo e se significar no mundo. E para isso

o homem necessariamente inscreve a língua na história.

A partir do deslocamento teórico de função para funcionamento realizado por

Michel Pêcheux, Orlandi (1983, p. 115) elaborou o conceito de funcionamento

discursivo, compreendendo-o como “a atividade estruturante de um discurso

determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com

finalidades específicas”. Por meio dessa atividade estruturante, segundo a autora,

podemos reconhecer as marcas formais que remetem a certa formação discursiva, em

outras palavras, a partir do funcionamento discursivo, podemos analisar em um discurso

dado como os interlocutores se representam e suas relações com as formações

ideológicas (ORLANDI, 1983). As marcas formais da língua estão, portanto, revestidas

com esse funcionamento e por meio delas o analista tem como acessar a relação da

língua com a ideologia.

Outra contribuição importante de Eni Orlandi nesse sentido foi a introdução do

conceito de forma material. No capítulo anterior, revimos que a concepção saussuriana

de linguagem permitiu o desenvolvimento de diferentes abordagens na Linguística

Estrutural, entre elas a abordagem formalista, que se centra na forma, deixando a

função em segundo plano. A partir do conceito de forma, de Hjelmslev (1975), e

influenciada pela perspectiva da Análise de Discurso desenvolvida a partir dos anos de

1980, em especial depois do Colóquio “Materialidades Discursivas”, Orlandi (2012a, p.

40) concebeu a noção de forma material como o “acontecimento do significante

(estrutura) no sujeito, no mundo”. A forma material permite pensar a relação entre

estrutura e acontecimento (ORLANDI, 2005). É nesse sentido que se afirma, em AD,

que a materialidade da ideologia é o discurso, e a materialidade do discurso é a língua.

Assim, por meio do discurso podemos observar as relações entre língua e ideologia.

Com a publicação de O discurso: estrutura ou acontecimento, de Michel

Pêcheux, a língua da AD passa a ser “tomada em sua forma material enquanto ordem

significante capaz de equívoco, de deslize, de falha, ou seja, enquanto sistema sintático

Page 56: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

56

intrinsecamente passível de jogo que comporta a inscrição dos efeitos linguísticos

materiais na história para produzir sentidos” (FERREIRA, 2003, p. 197). A investigação

em AD que toma a forma material como unidade sujeita ao equívoco permite ao analista

trazer para sua análise o trabalho com a paráfrase e a polissemia, dois procedimentos de

análise que nos levam ao reconhecimento dos deslizamentos de sentido.

Antes de passarmos para o próximo item, há posicionamentos assumidos em AD

sobre a noção de língua que julgamos importante destacar. Trata-se da concepção

discursiva de língua de vento e língua de madeira, segundo Gadet & Pêcheux (2004

[1981]) e Courtine (1999 [1981]), de língua fluida e língua imaginária, de acordo com

Orlandi & Souza (1988), e da concepção de língua numa perspectiva enunciativa,

conforme Guimarães (2003).

De acordo com Gadet & Pêcheux (2004 [1981]), a língua de madeira é dura,

hermética, reflexo de um sistema fechado, prescritivo e normativo, típico do Direito e

da Política. A língua de vento é uma língua fluida, flexível e acessível aos falantes em

suas trocas simbólicas cotidianas. É em Courtine (1999 [1981]) que encontramos uma

das formulações mais expressivas acerca dessas formas de existência da linguagem.

Para ele, línguas de madeira são como “línguas vindas do frio”, “língua paralisada,

como que imobilizada pelo frio”, “língua de pano, rude, áspera, desigual”, “línguas de

peso, talhadas na massa (nas massas?), fundidas em um bloco, línguas de mármore,

línguas de ferro” (COURTINE, 1999 [1981], p. 16). Por outro lado, são línguas de

vento as línguas instáveis e fluidas.

Orlandi & Souza (1988) trazem um desenvolvimento das noções de língua

expostas acima, defendendo que a língua fluida – que está para a concepção de língua

de vento – e a língua imaginária – que está para língua de madeira – são diferentes

modos de existência da linguagem. A primeira “é a que pode ser observada e

reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, através da história da

constituição de formas e sentidos, tomando os textos como unidades (significativas) de

análise, no contexto de sua produção” (ORLANDI & SOUZA, p. 34). A segunda

corresponde às “línguas-sistemas, normas, coerções, as línguas-instituição, a-históricas”

(ORLANDI & SOUZA, p. 28). A língua fluida manifesta-se nas relações do nosso

cotidiano e, já que “não pode ser contida no arcabouço dos sistemas e fórmulas”,

permite o contínuo movimento, o deslocamento de suas formas e sentidos. A língua

imaginária, caracterizada pela sistematização, pelas contenções institucionais, freia a

fluidez, o movimento, reproduzindo um sistema estático.

Page 57: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

57

Guimarães (2003), considerando os diferentes espaços de enunciação, concebe

quatro categorias teóricas para se referir aos modos como as línguas estão distribuídas

para seus falantes, o que nos parece uma divisão social da língua em função dos grupos

que a utilizam e como a utilizam. Para ele, existe a língua materna, usada pelos falantes

pelo simples fato de ser praticada pela sociedade em que nasceram; há a língua franca,

adotada por grupos falantes de línguas maternas distintas visando ao intercurso comum;

temos, ainda, a língua nacional, entendida como língua que caracteriza um povo

específico; e, finalmente, a língua oficial, adotada pelo Estado em seus atos legais.

Guimarães (2003, p. 48) ressalta que “as duas primeiras categorias tratam das relações

cotidianas entre falantes e as duas seguintes de suas relações imaginárias (ideológicas) e

institucionais”. Desse modo, para o autor, a língua materna e a língua franca estão para

a noção de língua fluida (de vento); a língua nacional e a língua oficial estão para a

língua imaginária (de madeira). Buscamos visualizar essas relações pelo quadro que

propomos a seguir:

2. Texto e Discurso

2.3 Texto e Discurso

Quadro 2 – Concepções de língua em Análise do Discurso

2.3 Texto e Discurso

A questão do texto – e mais especificamente do sentido do texto – constitui um

dos pontos centrais da Análise de Discurso e foi pensada desde a AAD69. Logo no

início da primeira parte de sua tese, ao tratar da Análise de Conteúdo e da Teoria do

Discurso, Pêcheux (2014 [1969]) levanta os pontos críticos dos métodos não

Língua de vento

Língua de madeira

Gadet & Pêcheux (2004 [1981]) e Courtine (1999 [1981])

Língua fluida

Língua imaginária

Orlandi & Souza (1988)

Língua materna

Língua franca

Língua nacional

Língua oficial

Guimarães (2003)

Page 58: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

58

linguísticos de análise: (i) aqueles que se valem da dedução frequencial e (ii) os que se

fundamentam na noção de categorias temáticas. Entre os primeiros, os métodos de

análise não visam ao funcionamento da língua, mas apenas à existência de materiais

linguísticos, de forma que acabam por não responder às questões referentes ao sentido

do texto. No segundo grupo, no qual a Análise de Conteúdo ocupa lugar central, embora

haja preocupação com a questão do sentido do texto, tal sentido é visto como algo que

pode ser acessado a partir da estrutura linguística do texto, como se o sentido estivesse

vinculado às unidades da língua tomadas em sua construção (efeito da concepção de

transparência da linguagem).

Ao propor orientações para a formulação de uma Teoria do Discurso, Pêcheux

(2014 [1969], p. 72), pensando a questão do sentido, parte do princípio de que é

necessário haver, em relação aos métodos anteriores, “uma „mudança de terreno‟ que

faça intervir conceitos exteriores à região da linguística atual”; em outras palavras, era

necessário deslocar a noção de texto levando em consideração o seu funcionamento

(ORLANDI, 2012a). Sua proposta é ligar ao linguístico o social e o histórico e, para

isso, lança a noção de processo de produção para designar “o conjunto de mecanismos

formais que produzem um discurso de tipo dado em „circunstâncias‟ dadas”

(PECHEUX, 2014 [1969], p. 73). As “circunstâncias dadas” são chamadas por ele de

condições de produção, que fazem intervir, na análise do sentido, o papel

desempenhado pelo contexto/situação.

Segundo Orlandi (2014) a noção de condições de produção (CP, a partir de

agora) não diz respeito à situação empírica em que o discurso é produzido, mas à

representação dessa situação no imaginário histórico-social. Uma das orientações

pontuais sobre as CP vem de Orlandi (2013) que as considera em sentido estrito e em

sentido amplo. Em sentido estrito, as CP correspondem às circunstâncias da enunciação

(o contexto imediato, aquilo que responde, por exemplo, às perguntas O quê? Quem?

Quando? Onde?); em sentido amplo, elas incluem o contexto sócio-histórico,

ideológico (aquilo que traz para a análise considerações sobre o modelo de formação

social, a organização política do Estado, os acontecimentos históricos etc.). Portanto,

para o interior da noção de CP convergem aspectos sociais, históricos e ideológicos.

Além disso, Orlandi (2013, p. 30) frisa que, além das CP, a memória “também faz parte

da produção do discurso”, pelo importante papel que desempenha na constituição e

formulação dos sentidos. É por meio da memória que os sujeitos “acionam” os

acontecimentos históricos que sustentam as significações.

Page 59: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

59

Entramos brevemente no conceito condições de produção, porque ela é crucial

para a compreensão de texto em AD e sua relação com o discurso. Guespin (1976, p. 4

apud INDURSKY, 2006, p. 27) leciona que “um olhar lançado sobre um texto, do ponto

de vista de sua estruturação em „língua‟ faz dele um enunciado; um estudo linguístico

das condições de produção deste texto o transforma em um discurso”. Indursky (2006)

enfatiza que essa perspectiva nos leva à visão de texto como unidade de análise afetada

pelas condições de produção, as quais relacionam o texto a sujeitos históricos, inscritos

em uma FD (e, por isso, dotados de uma memória discursiva) filiada a uma FI. Assim,

antes de proceder à análise do texto, é indispensável oferecer informações sobre suas

condições de produção.

A maneira como as noções de texto e discurso vêm inter-relacionadas em

Análise de Discurso é descrita por Orlandi (2012a, 2012b, 2013). Segundo o que

apresentamos no item anterior, o discurso, como efeito de sentidos entre interlocutores,

é um objeto histórico-social por meio do qual a AD põe em cena o confronto entre o

simbólico – a linguagem – e o político. Assim, para a AD, o discurso funciona como

objeto teórico. O texto, uma vez compreendido, “pragmaticamente, como unidade

complexa de significação, consideradas as condições de produção” (ORLANDI, 2012b,

p. 28), torna-se a unidade de estudo, o objeto empírico tomado à análise. O texto nos

permite ter acesso ao discurso. Orlandi (2012a, p. 78) esclarece que:

(...) na maneira como considero o texto, não se trata do texto como

obra literária, não se trata do texto como pretexto para estudar a

língua, ou para estudar as línguas, trata-se do texto como forma

material, como textualidade, manifestação material concreta do

discurso, sendo este tomado como lugar de observação dos efeitos da

inscrição da língua sujeita ao equívoco na história. Trata-se do texto

como unidade de análise (científica) do discurso. E é essa sua

qualidade teórica, o de ser unidade de análise.

Como já dissemos, a materialidade da ideologia é o discurso, e a materialidade

do discurso é a língua. Assim, por meio do discurso podemos observar as relações entre

língua e ideologia. O texto (repetimos: objeto empírico de análise) é posto por Orlandi

(2012a) como o lugar material em que essa relação entre língua e ideologia produz seus

efeitos. Para visualizar melhor a posição do texto nesse emaranhado de materialidades,

elaboramos o esquema abaixo:

Page 60: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

60

É importante destacar um traço do discurso que não foi mencionado até agora

para relacioná-lo à noção de texto em AD: a incompletude do discurso. Orlandi (2013,

p. 52) afirma que a incompletude é “a condição da linguagem” uma vez que “nem os

sujeitos nem os sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente”. Esse

princípio caracteriza, de fato, todo o dispositivo teórico da AD, pois os conceitos

operatórios com que nela se trabalha são vistos sob a ótica da incompletude: linguagem,

sujeito, sentido, discurso – e, assim também, texto –, só para citar alguns, estão sempre

incompletos. Não é possível atribuir a esses elementos da Teoria do Discurso um início

e o fim determinado. Sujeitos ao equívoco, à falha, ao jogo, eles estão abertos ao

contínuo movimento na história.

Portanto, o texto, afirma Orlandi (2012a, p. 87), “não pode ser visto como uma

unidade fechada, pois tem relações com outros textos (existentes, possíveis ou

imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação) e com o que

chamamos exterioridade constitutiva, ou seja, o interdiscurso”. O texto está assim

aberto à atribuição de diferentes sentidos que vão depender dos gestos de interpretação

realizados por quem o formula e por quem o lê. Os efeitos de sentido produzidos entre

os interlocutores poderão ser sempre outros.

O retorno a Orlandi (2012a) mais uma vez se faz necessário, em razão da

posição privilegiada em que ela coloca o texto para o analista de discurso em sua tarefa

de interpretação:

O texto é lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de

funcionamento da discursividade. Sendo assim, ele é trabalho de

interpretação. É tarefa do analista compreender tanto como os

sentidos estão nele quanto como ele pode ser lido. Essa dimensão

ambígua da historicidade do texto mostra que o analista não toma o

texto como ponto de partida absoluto nem como ponto de chegada.

Língua Discurso

(objeto teórico) Ideologia Materialidade do Materialidade da

Texto (objeto empírico)

Page 61: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

61

Ele o considera como lugar em que se podem observar os gestos de

interpretação dos sujeitos. (ORLANDI, 2012a, p, 89).

Consideramos, então, o texto como uma unidade de análise não-acabada, aberta

à exterioridade – assim como o discurso –, embora seja construída imaginariamente

com início, meio e fim. Essa organização do texto que prevê um início e um fim é

imaginária, pois, como dissemos acima, os sentidos produzidos no texto não

apresentam, discursivamente, um início e um fim determinados. Na construção de um

texto há um trabalho realizado por um sujeito que, assumindo a função-autor50

,

textualiza diferentes enunciados trazidos do interdiscurso da formação discursiva em

que está inscrito (ou, mais propriamente, das diferentes formações discursivas que

podem atravessar aquele texto).

A esse propósito, é importante destacar o princípio segundo o qual a constituição

de um texto é heterogênea, pois o sujeito ocupa diversas posições no texto. Orlandi

(2012b, p. 70-71) afirma que “o texto é atravessado por várias posições do sujeito”, as

quais “correspondem a diversas formações discursivas”, uma vez que no texto

convergem enunciados de diferentes discursos, derivados de diferentes FD.

É com base nesses argumentos que Orlandi (2012a) defende a existência da

heterogeneidade detectável no texto ou heterogeneidade textual, como sendo aquela que

observamos por meio das diferentes formações discursivas que atravessam o texto. Para

Orlandi (1995), o texto é heterogêneo em função dos diferentes materiais simbólicos por

meio dos quais é produzido (imagem, grafia, som, etc.), em razão da natureza da

linguagem empregada em sua construção (oral, escrita, científica, literária, etc.) e

quanto à posição do sujeito no texto. Assim, afirma a autora, “um texto não corresponde

a uma só FD, dada a heterogeneidade que o constitui, lembrando que toda FD é

heterogênea em relação a si mesma” (ORLANDI, 1995, p. 115).

2.4 Sujeito e forma-sujeito

2.4.1 A noção de sujeito para a AD

A concepção de sujeito em Análise de Discurso apresenta suas especificidades.

Ela foi construída a partir de dois pilares: a leitura que Louis Althusser realizou sobre o

50

Preferimos tocar especificamente na função-autor quando tratarmos sobre o sujeito e suas formas de

representação a depender das funções enunciativo-discursivas por ele desempenhadas.

Page 62: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

62

termo ideologia com base nos clássicos do marxismo e a formalização da noção de

sujeito por Jacques Lacan em sua teoria psicanalítica. Do primeiro, a principal retenção

em AD é a tese da interpelação ideológica que Althusser (1980 [1970]) formulou em

Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado; do segundo, importa para a AD a leitura

que Lacan realizou sobre o sujeito à luz do simbólico, marcado pela linguagem,

interpretando-o como uma unidade dividida, descentrada.

Como dissemos no capítulo anterior, a tese da interpelação se resume no título

que abre um dos capítulos da obra de Althusser (1980 [1970], p. 93): “A ideologia

interpela os indivíduos como sujeitos”. Essa tese, fundamental para a constituição da

teoria do discurso de Pêcheux, se desenvolve no seguinte sentido:

Como todas as evidências, aí compreendidas as que fazem com que

uma palavra „designe uma coisa‟ ou „possua uma significação‟ (logo

aí compreendidas as evidências da „transparência‟ da linguagem),

esta evidência de que eu e você somos sujeitos – e que isto não cause

problemas – é um efeito ideológico elementar, o efeito ideológico

elementar. (ALTHUSSER, 1980 [1970], p. 95)

Louis Althusser introduz a compreensão de que todas as evidências são efeitos

ideológicos. Ele destaca, na passagem acima, duas que são importantes para a produção

da Teoria do Discurso. A primeira delas é a evidência do sentido, entendida como o

efeito ideológico que faz a linguagem ser vista como transparente, como se o sentido

estivesse sempre lá, quando, segundo a perspectiva da teoria do discurso, o sentido está

no interior das FD filiadas a dada FI. Tal evidência não nos deixa, assim, perceber o

caráter material do sentido, a historicidade de sua construção no seio das FD. A segunda

é a evidência do sujeito, um efeito ideológico que cria no sujeito a ilusão de que ele é

sempre sujeito, quando, de acordo com a teoria, ele só se torna sujeito ao ser interpelado

pela ideologia; para o Althusser, esse é o efeito ideológico elementar. Essa evidência,

portanto, “apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”

(ORLANDI, 2013, p. 47)51

.

A interpelação transforma o indivíduo – o “não-sujeito”, segundo Pêcheux (2009

[1975], p. 141), em sujeito por meio da ideologia. Como vimos antes, o sentido das

sequências linguísticas não está nelas mesmas, mas nas FD – inscritas em dada FI – em

51

Não pretendemos fazer com que essas considerações levem o leitor a crer que a ideologia tem a função

de ocultar dadas condições. É importante retomar, nesse sentido, Orlandi (2013, p. 47): “(...) a ideologia

não é ocultação mas função da relação necessária entre linguagem e mundo”.

Page 63: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

63

que tais sequências são (re)produzidas pelo sujeito, ao assumir uma posição dada numa

conjuntura sócio-histórica dada. Nessa perspectiva, para que haja sentido é necessário

que a língua se inscreva na história.

Logo, todo indivíduo, na produção do discurso, é interpelado pela ideologia para

se tornar sujeito do que diz. A interpelação ideológica produz, assim, o assujeitamento,

condição necessária para o indivíduo se tornar sujeito. Para a Análise de Discurso

importa o pressuposto de que a ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e

dos sentidos” (ORLANDI, 2013, p. 47), pois se parte do princípio de que não há

discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia.

A tese da interpelação constitui ponto central no trabalho de Pêcheux (2009

[1975], p. 140), para quem: “Todo nosso trabalho encontra aqui sua determinação pela

qual a questão da constituição do sentido se junta à constituição do sujeito, e não de

modo marginal (...), mas no interior da „tese central‟, na figura da interpelação” [grifos

do autor].

Devemos nos lembrar de que Pêcheux (2014 [1969], p. 81) já introduz a noção

de que os interlocutores não correspondem bem à “presença física de organismos

humanos individuais”, mas a “lugares determinados na estrutura de uma formação

social”. Somando a essa noção os pressupostos do Materialismo Histórico, formou-se na

AD a concepção de sujeito como “posição” entre outras, o lugar que o indivíduo ocupa

na formação social para ser sujeito do que diz. Por conseguinte, fala-se em posição-

sujeito numa referência a esse lugar social ocupado pelo sujeito.

O sujeito com que a AD trabalha não é, entretanto, afetado apenas por um

campo exterior – pela ideologia –, mas também por algo que lhe é interior – pelo

inconsciente. Por isso, uma das máximas da AD será a de que o sujeito é atravessado

pela ideologia e pelo inconsciente.

Será sobre a Teoria Psicanalítica formada sobre o binômio Freud-Lacan (mais

especificamente sobre os desenvolvimentos feitos por Lacan a partir dos pressupostos

teóricos estabelecidos por Freud) que a AD irá buscar a sustentação para conceber a

noção de sujeito. Segundo Magalhães & Mariani (2010, p. 394):

Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, que trazemos aqui para o

campo do discursivo, importa compreender mais de perto o

funcionamento do sistema dos significantes, um funcionamento

marcado por uma negatividade e por uma descontinuidade: há uma

distância entre um significante e outro, e nessa distância marca-se um

vazio. Nossa entrada na linguagem é afetada por esse modo de

Page 64: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

64

funcionamento, que inclui a descontinuidade significante. Quando

tomamos a palavra e falamos, nós o fazemos marcados pelo

funcionamento dessa descontinuidade que inclui o vazio (o espaço

entre os significantes) e traz a marca da distância entre a linguagem e

o mundo. É por isso que, de acordo com Lacan, o sujeito falante, o

parlêtre (LACAN, 1985, p. 188) é um sujeito dividido pelo

funcionamento da linguagem, pois é "atingido por essa

descontinuidade, barrado e em via de se barrar; é o que vai marcá-lo

com um inconsciente".

É sobre a noção de sujeito como unidade dividida, descentrada, clivada,

heterogênea, que se apoia a AD. Tal noção é uma das consequências da distinção

estabelecida entre o Outro (l’Autre) e o outro (l’autre). Lacan (1995, p. 297) afirma que

“há dois outros que se devem distinguir, pelo menos dois – um outro com O maiúsculo

e um outro com o minúsculo, que é o eu. O Outro, é dele que se trata na função da fala”.

A forma autre origina-se do latim alter, base da qual se forma a palavra alteridade. De

forma resumida, podemos dizer que o outro corresponde a uma alteridade que nos é

próxima, nosso semelhante, com quem nos relacionamos; é da ordem do imaginário. O

Outro corresponde a uma alteridade levada ao extremo; não se trata de um indivíduo

com sua constituição física, mas um lugar que se situa na linguagem, sendo, portanto,

da ordem do simbólico. Em AD, o Outro corresponde ao interdiscurso, memória

discursiva52

.

Todo falante está afetado pelo Outro. Quando o sujeito entra na linguagem, ele

se submete a uma estrutura de linguagem e a sentidos já constituídos. Os significantes

de que nos apropriamos ao falar e consideramos como “nossos” são constituídos e

afetados pelo Outro (Magalhães & Mariani, 2010).

A filosofia idealista da linguagem vê o sujeito como a fonte do que diz e dos

sentidos. Com base no que foi exposto acima, a Análise de Discurso, atravessada pela

teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, enxergou o sujeito como unidade

heterogênea, descentrada, cindida, clivada, uma vez que é afetado pelo Outro: no seu

dizer há um feixe de distintas vozes já produzidas pela/na linguagem, pelo/no

simbólico, e apagadas, esquecidas.

Pêcheux & Fuchs (2014 [1975]) diferenciam duas formas de esquecimento no

discurso:

52

Ver Orlandi (2012a, p. 111).

Page 65: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

65

(a) o esquecimento número 1, da instância do inconsciente e da ideologia, é também

chamado de esquecimento ideológico, uma vez que “resulta do modo pelo qual somos

afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 35). Esse esquecimento cria a ilusão de

sermos a origem, a fonte do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-

existentes, inscritos no Outro.

(b) o esquecimento número 2, da instância da enunciação (daí ser chamado também de

esquecimento enunciativo), resulta do fato de que o sujeito, ao fazer a formulação de um

enunciado, opta por uma sequência linguística e não outra, isto é, privilegia uma forma

e apaga as demais, de modo que todas as possibilidades de enunciação formam uma

família parafrástica que mostra que o dizer sempre pode ser outro (ORLANDI, 2013).

Esse esquecimento cria a ilusão referencial – ilusão da realidade do pensamento – que

faz o sujeito crer que o que diz dá margem a apenas uma significação.

Antes de encerrar este item, é importante retornar à questão do assujeitamento

produzido pela interpelação ideológica para destacar um desenvolvimento teórico

operado por Orlandi (2012a). Para ela, há dois movimentos na compreensão da

subjetividade, quais sejam:

1º Movimento: interpelação do indivíduo (considerado em sua dimensão bio-

psicológica) em sujeito pela ideologia – essa é a forma de assujeitamento pela qual o

indivíduo afetado pelo simbólico na história se subjetiva, isto é, torna-se sujeito. O

resultado dessa interpelação é uma forma-sujeito histórica.

2º Movimento: individualização do sujeito pelo Estado – essa é a forma de

individualização pela qual a forma-sujeito histórica é individualizada pelo Estado por

meio de suas instituições. O resultado é, agora, um indivíduo (considerado em sua

dimensão social) construído pelo Estado, inscrito (o indivíduo) em dada formação social

capitalista; no nosso caso, capitalista.

Portanto, para compreender como a subjetividade se manifesta na

discursividade, é necessário percorrer este duplo movimento: o indivíduo é interpelado

em sujeito pela ideologia em um processo simbólico; em uma formação social como a

nossa, capitalista, esse indivíduo – materialidade da forma-sujeito histórica – é

Page 66: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

66

determinado pelo modo como o Estado lhe dá sua forma individual(izada), qual seja, a

forma de um indivíduo livre de coerções e submisso, forma pela qual deve responder,

como sujeito-jurídico (sujeito de direitos e deveres), diante do Estado e dos outros

homens (ORLANDI, 2012a).

2.4.2 A forma-sujeito

O termo forma-sujeito foi trazido por Michel Pêcheux para a Análise de

Discurso a partir de Althusser (1972 apud PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 150) que

afirmava que “todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática

se se revestir da forma de sujeito. A „forma-sujeito‟, de fato, é a forma de existência

histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”.

O sujeito, como vimos, é constituído pela interpelação ideológica. Esta dá ao

indivíduo uma forma específica dependendo do modelo de formação social em que ele

esteja inserido. A forma-sujeito que todo indivíduo assume é, portanto, determinada

historicamente pelo modelo de formação social, levando em consideração os modos de

produção. Haroche (1992, p. 178) coloca como um princípio geral “o fato de que a

forma-sujeito representa „a forma de existência histórica de todo indivíduo‟”, o que

justifica o fato de a forma-sujeito ter tomado diferentes formas no curso da história. Na

Idade Média, por exemplo, predominou a figura do sujeito-religioso, um sujeito

passivo, submetido às leis de Deus. Atualmente, em uma formação social capitalista,

como a nossa, o sujeito assume a forma de sujeito-jurídico ou sujeito-de-direito, um

sujeito ao mesmo tempo livre (responsável) e passivo (submisso); por um lado, essa

forma-sujeito detém autonomia e responsabilidade, por outro, subordina-se às leis do

Estado.

2.4.3 Funções enunciativo-discursivas do sujeito

Orlandi (2012b) nos ensina que o sujeito está inscrito no texto que produz. Para

a Análise de Discurso não interessa falar das marcas que comprovam essa inscrição do

sujeito, como faz a clássica teoria da enunciação de Benveniste (1976), mas das suas

diferentes funções enunciativo-discursivas assumidas na produção de um texto

específico. A autora aponta, por exemplo, as funções enunciativas cunhadas por Oswald

Ducrot, em sua obra O dizer e o dito, de 1985: o sujeito pode assumir a função de

Page 67: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

67

locutor, pela qual ele se representa como eu no discurso, e a de enunciador, em função

perspectiva que o sujeito constrói em dada formulação.

Tomando por base o “princípio da autoria” de Michel Foucault, Orlandi (2012a,

2012b) acrescenta outra função, de caráter discursivo: a função-autor, uma contraparte

da forma-sujeito histórica. Sua proposta é colocar a função-autor logo abaixo da ordem

(hierarquia) estabelecida por Ducrot, de modo que ficássemos com as seguintes funções

enunciativo-discursivas para o sujeito: locutor, enunciador, autor. Nessa hierarquia, o

sujeito assume funções que o levam em direção ao social. A função-autor, em sua

concepção, “é aquela em que o sujeito falante está mais afetado pelo contato com social

e suas coerções” (ORLANDI, 2012a, p. 103).

Diferentemente da concepção de autoria de Foucault, Eni Orlandi entende a

função-autor como um princípio geral, uma vez que sempre será imputada uma autoria a

um texto, mesmo que não haja um autor específico. Além disso, a função-autor produz

o efeito-texto, ―um espaço discursivo organizado, simbolicamente fechado e

ilusoriamente completo” (INDURSKY, 2006, p. 28). A função-autor, no plano

discursivo, produz o efeito imaginário de unidade do texto.

Essas funções enunciativo-discursivas do sujeito se constituem na perspectiva da

emissão/formulação do discurso. Na perspectiva da recepção, Orlandi (2012b, p. 138-

139) considera três outras funções enunciativo-discursivas para o sujeito:

a) alocutário – “é o tu a quem o eu do locutor se dirige”, é a contraparte da função-

locutor.

b) destinatário – “é o outro da perspectiva do enunciador, isto é, uma perspectiva

de leitor construída pelo enunciador, é o leitor-ideal inscrito no texto, por

antecipação”. É a contraparte da função-enunciador.

c) leitor – “é aquele que se assume como tal na prática de leitura”. É a função mais

determinada pelo social, assim como a função-autor.

2.5 Arquivo

Como mencionamos no capítulo anterior, a partir da década de 1980,

principalmente em função das preocupações referentes à constituição do corpus de

análise, a questão do arquivo e sua relação com a problemática da leitura passou a

figurar no centro das atenções do analista de discurso. Os corpora de arquivo passaram

Page 68: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

68

a ser vistos como os únicos passíveis de serem tratados pela análise de discurso,

segundo o entendimento de Pêcheux (2014 [1982]), em razão das respostas às dúvidas

que o dispositivo de arquivo oferecia aos analistas no tocante ao corpus.

Se entrecruzarmos as reflexões produzidas pelos teóricos que estão na base dos

desenvolvimentos da Análise de Discurso, iremos compreender as razões da assunção

do arquivo para a investigação. Robin (1979, p. 70 apud COURTINE, 1999, p. 9)

sinaliza que a AD, desde seu nascimento, visa atenuar “dois recalcamentos simétricos”:

o do historiador, que recalca o significante, materialidade da linguagem, e o do

linguista, que recalca o sujeito e a história (daí a proposta de articular três regiões do

conhecimento: a linguística, que traz o significante; o materialismo histórico, que faz

intervir a história e a psicanálise que traz o sujeito). É em razão disso que, segundo

Guilhaumou (2009), a noção de arquivo passa a atravessar a AD a partir dos anos de

1980, uma vez que tal noção permite articular estes dois campos do saber: história e

linguística. Soma-se a isso a preocupação, em voga na época, sobre a questão das

“materialidades discursivas”, o que contribuiu também para o arquivo adquirir sua

relevância teórico-metodológica na AD, por permitir a análise dessas materialidades e, a

partir disso, o estabelecimento do corpus discursivo tendo em vista critérios pré-

definidos no momento da leitura do arquivo. (DELA SILVA, 2015).

Mas o que é o arquivo na perspectiva da Análise de Discurso? Pêcheux (2014

[1982], p. 59) o entende, em sentido amplo, como “campo de documentos pertinentes e

disponíveis sobre uma questão”. O arquivo traz à tona “o discursivo informaticamente

marcado sob a forma dos dados textuais” (PÊCHEUX, 2014 [1982], p. 57); por isso

Pêcheux também o chama de discurso textual53

, que ele considera como “o lugar em

potencial de um confronto violentamente contraditório”, capaz de permitir a realização

de diferentes gestos de leitura por meio do confronto entre o próprio arquivo e a

memória histórica.

Cabe, aqui, a diferenciação entre estas duas instâncias de análise: arquivo

(memória de arquivo) e memória histórica. Orlandi (2014) esclarece que a memória de

arquivo é aquela que se institucionaliza, é arquivada, e, por isso, não se esquece. É a

memória que as instituições em geral arquivam – e para isso se valem de mecanismos

formais de arquivística – com o objetivo de guardar traços de sua história, de modo que

53

Na prática da Análise de Discurso, são todas estas formas de se referir ao mesmo objeto: arquivo,

memória de arquivo, discurso textual e discurso documental.

Page 69: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

69

fique preservado o registro de acontecimentos que o homem pode retomar

posteriormente para compreender a realidade que o cerca. A memória discursiva – o

interdiscurso –, entretanto, é o saber discursivo que dá sentido às nossas palavras toda

vez que falamos, uma memória que restabelece aquilo que já foi dito (sentidos pré-

existentes) antes e em outro lugar, mas esquecido. A memória discursiva é, assim,

estruturada pelo esquecimento.

O arquivo, memória institucional, abre espaço à construção de um conhecimento

discursivo acerca dos diferentes setores e práticas sociais pelas quais os homens se

organizam para a produção de bens e serviços e sua reprodução em sociedade. A

construção desse conhecimento é feita a partir dos diferentes gestos de leitura (aqui

reside a função do analista de discurso) possíveis de se realizar sobre o arquivo em

constante confronto com a memória histórica, diferentemente do tratamento e

interpretação realizados por outros campos de investigação. É nesse sentido que Nunes

(2008, p. 82) defende que:

Ler os documentos de arquivo conduz a explicitar os gestos de

interpretação que subjazem a sua elaboração, evitando-se reproduzir

uma história já dada, fixada, e mostrando seu processo de construção.

As práticas institucionais e de arquivo realizam um trabalho de

interpretação que direciona os sentidos, estabelecendo uma

temporalidade e produzindo uma memória estabilizada.

Guilhaumou & Maldidier (2014 [1986], p. 170) fazem considerações

importantes acerca da noção de arquivo, mostrando em especial o seu funcionamento e

o que ele é capaz de engendrar em uma análise de discurso. Grifamos os trechos que nos

chamam à atenção:

O arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura, seu

funcionamento é opaco. Todo arquivo, principalmente manuscrito, é

identificado em presença de uma data, de um nome próprio, de uma

chancela institucional etc., ou ainda pelo lugar que ele ocupa em

uma série. Essa identificação, puramente institucional, é para nós

insuficiente: ela diz pouco do funcionamento do arquivo”. (...) O

arquivo não é o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é,

dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua

abrangência social. O arquivo não é um simples documento no qual

se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona

dispositivos e configurações significantes.

A perspectiva que se cria em AD é a de que, por meio da leitura de

arquivo, o analista não se depara simplesmente com um documento no qual se

Page 70: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

70

encontram apenas referências institucionais (data, nome próprio, chancela etc.), mas

também com dispositivos e configurações significantes, as quais o permitem investir em

uma análise que ponha em relação língua e discursividade. Lembremo-nos de que, nessa

época, a língua é pensada como estrutura sujeita ao equívoco, ao deslize, à falha, ou

seja, como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo; por outro lado, a

discursividade é vista como a inscrição de efeitos linguísticos materiais na história para

produzir sentidos. É nessa relação língua-discursividade que, para Pêcheux (2014

[1982]), deve ser situado o trabalho de leitura de arquivo54

.

A concepção do arquivo no seio da Análise de Discurso não trouxe apenas

contribuições teóricas, mas também permitiu o desenvolvimento de um percurso

metodológico fluido que vai desde a leitura do arquivo referente ao tema da pesquisa até

à constituição do corpus discursivo a ser tomado em análise. Em uma investigação, o

analista precisa realizar de início este importante movimento que consiste na passagem

do arquivo ao corpus.

Para a constituição do corpus discursivo, o analista se vale de uma operação

chamada de recorte, proposta por Orlandi (1984). Essa operação representa um

deslocamento metodológico em relação à técnica de segmentação, proposta por Léon &

Pêcheux (2012 [1982]). O recorte é uma unidade discursiva, um fragmento textual

relacionado à situação discursiva. Quando o analista faz um recorte de um fragmento do

corpo textual, ele não deixa de considerar a relação desse recorte com o todo textual,

isto é, com a materialidade discursiva de onde ele (o recorte) foi pinçado, e,

principalmente, com as condições de produção em que aquele texto foi elaborado.

2.6 Paráfrase e polissemia

2.6.1 “Arqueologia” da noção de paráfrase em Michel Pêcheux

Como as noções de paráfrase e polissemia ocupam lugar central em nossa

análise sobre os editais de concurso público, preocupamo-nos em esboçar para o leitor

um quadro teórico que o permita compreender esses conceitos operacionais. Não

queremos, entretanto, criar a ilusão de que daremos conta de tudo que já se falou sobre

paráfrase e polissemia em AD. Tendo em vista o modo como esses processos serão

mobilizados na análise, pinçamos, na literatura, as postulações iniciais sobre eles e suas

54

Para maiores detalhes, confira Pêcheux (2014 [1982], p. 66).

Page 71: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

71

reconfigurações no desenvolvimento da Análise de Discurso. Neste primeiro item,

buscamos apresentar a noção de paráfrase na perspectiva de Michel Pêcheux e

pesquisadores a ele vinculados, considerando os trabalhos situados na linha do tempo

abaixo.

O mecanismo de paráfrase constitui um dos referenciais mais importantes da

Análise de Discurso e está presente no estudo da produção de sentidos desde o

surgimento do primeiro dispositivo instituído por Michel Pêcheux em AAD69. Nessa

versão inaugural da AD, Pêcheux aborda a questão da sinonímia local ou contextual,

que é “um caso particular do problema da paráfrase”55

.

Pêcheux (2014 [1969], p. 94-95) caracteriza sinonímia local ou contextual como

a “possibilidade de substituição” entre “dois termos, x e y, pertencentes a uma mesma

categoria gramatical” em função de determinados contextos. Tomemos como exemplos

os termos zangada (x) e irada (y), adjetivos que podem ser permutados em contextos

como:

A mulher está {irada} com o marido.

A mulher está {zangada} com o marido.

Os dois adjetivos, entretanto, não são substituíveis em contextos como:

Sua casa é {irada}.

*Sua casa é {zangada}.

Na primeira formulação, o adjetivo irada, ao caracterizar conotativamente o

substantivo casa, produz uma enunciação possível, o que não acontece com a palavra

55

Confira Notas à AAD-69 (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 157). A nota de número 18 traz esse

esclarecimento.

1969 1975 1975 1982 1982

Pêcheux

(AAD69)

Pêcheux & Fuchs

(A propósito da

AAD:

Atualização e

perspectivas)

Pêcheux

(Semântica

e Discurso)

Léon & Pêcheux

(Análise sintática

e paráfrase

discursiva)

Pêcheux et al.

(Apresentação da

AAD)

Page 72: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

72

zangada, que não admite a mesma figuração no contexto dado, pois não produz a

mesma imagem56

.

A partir do conceito de sinonímia contextual, Pêcheux (2014 [1969], p. 96)

elabora a noção de efeito metafórico, “fenômeno semântico produzido por uma

substituição contextual, para lembrar que esse „deslizamento de sentido‟ entre x e y é

constitutivo do „sentido‟ designado por x e y”. Em outras palavras, a substituição

contextual, que implica o deslizamento de sentido entre x e y, produz o fenômeno

semântico que Pêcheux (2014 [1969]) chama de efeito metafórico. Além disso, é

importante notar que o efeito metafórico, segundo o autor, por resultar da substituição

contextual, faz variar a superfície do texto mantendo a mesma ancoragem semântica

(PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 97).

No artigo publicado na revista Langages, no 37, Pêcheux e Fuchs (2014 [1975],

p. 167), com o intuito de compreender o processo discursivo, lançam uma noção de

paráfrase que vem a constituir um verdadeiro princípio de análise em AD. No artigo,

eles lecionam que:

(...) a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de

paráfrase entre sequências tais (=sequências discursivas concretas)

que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia

chamar a “matriz do sentido”. Isso equivale a dizer que é a partir da

relação no interior desta família que se constitui o efeito de sentido,

assim como a relação a um referente que implique este sentido.

Entendemos que Pêcheux e Fuchs (2014 [1975]), ao assumirem a paráfrase

nessa perspectiva, pretendem instituir um princípio de análise que sirva para dar

visibilidade ao processo discursivo, à maneira como o sentido é produzido entre

interlocutores. O analista, seguindo o princípio, deve levar em consideração a relação

de paráfrases entre sequências discursivas concretas que formam uma família

parafrástica, a qual constitui a matriz do sentido. Como essa noção de paráfrase vai ao

encontro dos procedimentos de análise que adotamos para tratar os efeitos de sentido

entre diferentes formulações em editais de concurso, propomos uma representação

visual para as relações de paráfrase em uma família parafrástica.

56

Pêcheux (2014 [1969], p. 95) coloca em relação as palavras brilhante e notável, que podem ser

permutadas em este matemático é notável e este matemático é brilhante – em que brilhante está em

sentido conotativo. Os mesmos termos não podem, porém, ser substituídos em a luz brilhante do farol o

cegou e *a luz notável do farol o cegou.

Page 73: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

73

eenunciado

denunciado

cenunciado

benunciado

aenunciado

A imagem acima é a de uma família parafrástica sobre algum referente (Fpx)

que constitui uma matriz de sentidos. No interior dessa Fpx, sequências discursivas

concretas – cada enunciado – são colocadas numa relação de paráfrase. Tomando por

base os ensinamentos de Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 168), que enxergam o

processo discursivo como “as relações de paráfrase interiores ao que chamamos a matriz

do sentido inerente à formação discursiva”, temos o entendimento de que cabe ao

analista compreender os efeitos de sentido produzidos nos deslizamentos entre as

sequências arroladas no interior de uma família parafrástica.

Pêcheux (2009 [1975], p. 266), buscando fazer alguns esclarecimentos e

retificações sobre o artigo de Langages 3757

, propõe a distinção entre duas concepções

de paráfrase: por um lado, temos uma noção “puramente sintática”; por outro, uma

concepção que ele denomina de “histórico-discursiva”. A primeira pressupõe “uma

unidade não-contraditória do sistema da língua como reflexo eterno no espírito

humano”; a segunda marca “a inscrição necessária dos funcionamentos parafrásticos em

uma formação discursiva historicamente dada” (grifos do autor).

A concepção de paráfrase é amadurecida nos anos seguintes e, depois de 1980,

época da AD marcada pela reflexão sobre a heterogeneidade, pelo reconhecimento do

outro no interior do mesmo e pelo retorno ao arquivo para a construção do corpus, tal

concepção passa a desempenhar importante papel na Análise de Discurso.

Léon & Pêcheux (2012 [1982]) fornecem uma verdadeira metodologia para um

estudo que envolva a problemática da paráfrase e, por isso, deter-nos-emos um pouco

mais a esse artigo. Nele, vemos muitos pontos do texto publicado em Langages 37

sendo retomados e aprofundados; por exemplo, o termo sequência discursiva concreta é

retomado, mas como sequência discursiva autônoma (não se trata de mera mudança no

tocante à denominação, mas de reformulação de uma perspectiva que visa enfatizar a

57

Comentário do próprio Pêcheux (2009 [1975], p. 265).

Fpx

Page 74: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

74

análise a partir da construção do corpus). Para eles, “segundo a hipótese da AAD sobre

a produção do sentido, só é possível dar visibilidade ao processo discursivo colocando

várias sequências em relação” (LÉON & PÊCHEUX, 2012 [1982], p. 167), sequências

estas obtidas pela construção do corpus de análise. Os autores apresentam três etapas

para o tratamento do corpus, quais sejam:

ETAPA 1: segmentação do corpus em SDA

Devemos segmentar o corpus em sequências discursivas autônomas (SDA). Elas

são autônomas porque, quando as selecionamos, “quebramos o fio discursivo e

permitimos que sejam tratadas pelo algoritmo como entidades independentes” (LÉON

& PÊCHEUX, 2012 [1982], p. 167). A segmentação é feita com base em critérios

sintáticos, levando em consideração as ligações interfrásticas (por meio de conectivos,

anáforas e elipses) e as marcas de enunciação (o sistema modo-aspecto-tempo e os

determinantes). Depois da fase de segmentação, ainda nessa mesma etapa, faz-se uma

divisão do corpus em certo número de SDA‟s, as quais serão tratadas pelo algoritmo de

análise como unidades máximas de comparação.

ETAPA 2: estabelecimento da fórmula da SDA

Essa etapa consiste em tomar as SDA‟s organizadas por mais de uma frase para

estabelecer a fórmula da sequência discursiva com base nas ligações interfrásticas e as

marcas de enunciação.

ETAPA 3: análise sintática da frase

Na última etapa do tratamento do corpus, procede-se à análise sintática da frase.

Tal análise toma por base a teoria de Chomsky defendida no livro Aspectos da Teoria

da Sintaxe, de 1965, para decompor a frase em proposições, isto é, em níveis P

chomskyanos58

. Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 168) acrescentam, contudo, alguns

“elementos que permitem compreender aquilo que já pode haver de discursivo na

análise de uma frase”.

58

O que Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 168) estão chamando de níveis P chomskyanos corresponde

aos níveis sintagmáticos (SN, SV, SAdv, SPrep etc.) ligados verticalmente nas árvores sintáticas.

Page 75: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

75

Um dos elementos que ligam diretamente a discursividade à sintaxe é a paráfrase

sintática59

que, segundo os autores, permite ultrapassar “a problemática estritamente

linguística para abordar questões de ordem discursiva” (LÉON & PÊCHEUX, 2012

[1982], p. 169). No artigo, retoma-se a concepção clássica da Linguística sobre

paráfrase sintática – a de que duas sequências estão em uma relação de paráfrase quando

elas são semanticamente equivalentes, embora ocorra ou variação de suas estruturas

sintáticas e manutenção da identidade lexical ou variação lexical e manutenção da

estrutura sintática – para projetar a hipótese de que “entre duas sequências a variação

sintática introduz uma diferença de sentido” (LÉON & PÊCHEUX, idem, p. 170).

Há duas noções introduzidas nesse artigo: espelhamento e deriva. Os dois

conceitos se relacionam às variações/identidades lexicais e sintáticas produzidas entre

sequências numa relação de paráfrase. O espelhamento ocorre quando há identidade

lexical e variação sintática, variação esta que introduz uma diferença de sentido.

Entretanto, a diferença de sentido produzida é mínima e está presente em toda paráfrase

sintática. A deriva, por outro lado, ocorre quando há variação lexical e identidade

sintática. Nesse caso, Léon & Pêcheux apontam que, dependendo do nível de variação

lexical, pode haver diferença de sentido, mas eles admitem que o algoritmo de análise

previsto em AAD69 não foi capaz de indicar o grau de semelhança (ou diferença) de

sentido uma vez que este era determinado empiricamente, de forma arbitrária60

.

A problemática envolvida em torno dos pólos identidade-alteração nos conduz à

outra importante contribuição trazida por Léon e Pêcheux no artigo em análise: a

reflexão sobre o mesmo (identidade) e o outro (alteração) na produção discursiva do

sentido. Segundo eles:

Vem se tornando progressivamente claro para nós que essa produção

discursiva do sentido se encontrava entre dois pólos opostos, quais

sejam: aquele do mesmo (da identidade, da repetição, assegurando a

estabilidade da forma lógica do enunciado) e aquele da alteridade (da

diferença discursiva, da alteração do sentido induzido pelos efeitos de

espelhamento e de deriva (...)).

Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 172) concluem o artigo apontando o traço

essencial no estudo da discursividade, o que constitui um norte para o analista de

59

O outro elemento é a introdução de ligações horizontais entre as proposições, com as quais não nos

ocuparemos uma vez que não serão mobilizadas para nossa análise. 60

Para maiores detalhes, ver Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 170).

Page 76: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

76

discurso proceder em suas investigações: “compreender a tensão contraditória entre a

relação paradigmática de substituição que tende em direção à estabilização da forma

lógica e a existência de relações de deriva e de alteração entre sequências (...)”.

Pêcheux et al. (2014 [1982]), a partir da proposta de redefinir a estratégia de

descrição e análise em AD, reconhecem que a paráfrase tem lugar central na teoria, mas

sua problemática deve ser retomada numa perspectiva diferente daquela apresentada nos

modelos teóricos anteriores, ou seja, a paráfrase, segundo eles, precisa ser retomada

numa perspectiva que atenda à “posição geral do nosso projeto (= projeto de Michel

Pêcheux e seu grupo): o estudo „do outro no interior do mesmo‟” (PÊCHEUX et al.,

2014 [1982], p. 275).

2.6.2. Desenvolvimentos da noção de paráfrase e polissemia em AD

Apresentamos a brevíssima revisão acima com o objetivo de mostrar que o

recurso à paráfrase nos estudos sobre a produção do sentido se fez presente desde a

AAD69 até os últimos anos em que Michel Pêcheux se dedicou à Análise de Discurso.

Mesmo que tenha sido operado, em seu percurso histórico, algum deslocamento teórico

sobre o processo61

, a paráfrase ocupou, em diversos momentos, lugar central na AD.

Na Análise de Discurso que se formou no Brasil, a noção de paráfrase também

vem ocupando posição privilegiada, especialmente a partir dos trabalhos desenvolvidos

por Eni Orlandi ainda na década de 1970. Até hoje a paráfrase vem sendo mobilizada na

construção de diferentes dispositivos analíticos para dar tratamento à discursividade.

O efeito metafórico que comentamos no item anterior – o deslizamento de

sentido provocado pela substituição de termos do contexto – não é, entretanto, um

fenômeno semântico produzido exclusivamente pela paráfrase. Os trabalhos produzidos

por Orlandi (1983, 1984, 2012a, 2012b, 2013) representam um autêntico

desenvolvimento dos princípios instituídos por Michel Pêcheux sobre esse processo.

Na esteira do pensamento elaborado por Eni Orlandi, para a produção de

sentidos soma-se o processo chamado de polissemia. Toda produção discursiva se dá

por meio da articulação destes dois processos: paráfrase e polissemia.

61

Esse deslocamento fica evidente em Pêcheux et al. (2014 [1982], p. 275) ao afirmarem que, na AAD69,

“a paráfrase é definida de maneira composicional: duas frases estão em relação de paráfrase se a soma de

suas partes constitui um mesmo sentido por identidade ou equivalência lexical”. Por outro lado, em uma

perspectiva nova, vislumbrada a partir da década de 1980, a paráfrase é tomada como o estudo do outro

no interior do mesmo.

Page 77: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

77

Em função do princípio teórico da AD segundo o qual o discurso é efeito de

sentidos entre locutores, Orlandi (1984, p. 10) nos ensina que houve a necessidade de se

abrir espaço para intervir a noção de polissemia, a qual permite considerar a

“multiplicidade de sentidos de que é capaz de se revestir qualquer ato de linguagem,

qualquer unidade da linguagem em uso”.

Assim, para que seja possível observar o funcionamento discursivo, Orlandi

(1984) postula que é necessário determinar os processos de constituição do discurso, os

quais são de natureza sócio-histórica. Entre esses processos, ela distingue dois que

considera fundamentais: a polissemia e a paráfrase.

Deparamo-nos com o princípio da tensão paráfrase-polissemia na produção dos

sentidos em A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, de 1983, obra em

que Orlandi defende que:

“(...) a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes

processos: o parafrástico e o polissêmico. Isto é, de um lado, há um

retorno constante a um mesmo dizer sedimentado – a paráfrase – e,

de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento. Esta

é uma manifestação da relação entre o homem e o mundo (a natureza,

a sociedade, o outro), manifestação da prática e do referente na

linguagem. Há um conflito entre o que é garantido e o que tem de se

garantir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o

mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do

discurso, tensão entre o texto e o contexto histórico-social: o conflito

entre o mesmo e o diferente. Entre a paráfrase e a polissemia”.

(ORLANDI, 1983, p. 21)

Esse princípio é até hoje defendido por Orlandi (2013, p. 36) – ao manter a

afirmação de que “todo funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre

processos parafrásticos e processos polissêmicos” – e compartilhado por inúmeros

analistas em pesquisas sobre a discursividade em diferentes materialidades.

Nesse ínterim de mais de 40 anos, Orlandi (1983, 1984, 2012a, 2012b, 2013)

elaborou uma espessa teorização sobre os processos em foco. Tentaremos resumi-la

evocando a diferenciação proposta pela autora entre três formas de repetição, noção que

ela traz dos trabalhos elaborados em torno de Michel Pêcheux, em especial Léon &

Pêcheux (2012 [1982]). Orlandi (2013, p. 54) distingue as seguintes formas de

repetição:

a) a repetição empírica (mnemônica) que é a do efeito papagaio, só

repete;

Page 78: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

78

b) a repetição formal (técnica) que é um outro modo de dizer o mesmo;

c) a repetição histórica, que é a que desloca, a que permite o movimento

porque historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos

seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as

evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já

estabelecido.

Compreendemos que as repetições de tipo (a) e (b) estão para a noção de

paráfrase, processo pelo qual se busca manter o mesmo, o sentido igual, sob diferentes

formas ou com a mesma forma; a repetição do tipo (c), por outro lado, está para a

concepção de polissemia, processo que visa o novo, a multiplicidade dos sentidos62

.

A repetição do tipo (a) constitui a mera repetição de uma sequência. Em razão

da mobilização que faremos desse conceito em nosso gesto de interpretação sobre os

editais de concurso, iremos nos deter um pouco mais a essa forma de repetição.

Comparado-a com as duas outras, poderíamos ser levados a pressupor que a repetição

empírica não engendraria qualquer deslize de sentido. Contudo, devemos levar em

consideração que cada repetição está relacionada a um acontecimento discursivo. Isso é

sinalizado por Orlandi (1983, p. 109):

Do ponto de vista da Análise de Discurso, a mera repetição já

significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo

discursivo. Quando digo a mesma coisa duas vezes, há um efeito de

sentido que não me permite identificar a segunda à primeira vez, pois

são dois acontecimentos diferentes. (Grifo da autora)

Além disso, temos que considerar o fato de que cada repetição pode ser

formulada por uma forma-sujeito inscrita em uma formação discursiva diferenciada, de

modo que se atribua outro sentido àquela formulação repetida literalmente. Lembremo-

nos de que, segundo Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 167): “o „sentido‟ de uma

sequência só e materialmente concebível na medida em que se concebe esta sequência

como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva (o que explica,

de passagem, que ela possa ter vários sentidos)”.

Os argumentos acima nos colocam diante da seguinte perspectiva (a qual

assumiremos em nosso dispositivo analítico): a repetição empírica, uma vez relacionada

a acontecimentos diferentes ou formulada por formas-sujeito inscritas em formações

discursivas distintas, introduz diferença de sentido; a repetição formal – paráfrase –

62

Para maiores informações, confira ORLANDI (1984, p. 11).

Page 79: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

79

também introduz diferença de sentido, mesmo que seja mínima63

, pelas mesmas razões

apresentadas anteriormente (acontecimentos diferentes ou formas-sujeito diferentes

produzem diferenças de sentindo); e a repetição histórica – polissemia – é marcada pela

variação dos sentidos já instituídos, isto é, pela instauração de um novo sentido. A

polissemia é, assim, o processo que mais relacionado está com a concepção de “deriva”,

o que não significa que a paráfrase não implique deriva, deslizamento de sentido.

Sobre a noção de “deriva”, “efeito metafórico” vale ressaltar a lição de Orlandi

(2012a, p. 23): “o efeito metafórico é o fenômeno semântico – a deriva – produzido por

uma substituição contextual, observando-se que este deslizamento entre x e y é

constitutivo do sentido designado por x e y”. A autora conceitua efeito metafórico a

partir da noção de substituição contextual entre termos que, como vimos acima, é um

problema específico da paráfrase assim como entendida por Pêcheux (2014 [1969]).

Orlandi (2005b, p. 78 apud SCHENEIDERS, 2012, p. 1002) ressalta que “é a paráfrase

(pensada em relação à configuração das formações discursivas) que está na base da

noção de deriva que, por sua vez, se liga ao que é definido como efeito metafórico”.

É importante trazer aqui Pêcheux (2012 [1983], p. 51), para quem toda descrição

em Análise de Discurso:

(...) está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo

enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente

de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar

para um outro (...). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é,

pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-

sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis,

oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende

trabalhar a análise de discurso.

Portanto, partimos do princípio de que tanto a paráfrase quanto a polissemia

produzem a deriva, o deslizamento de sentido. A primeira, visando ao logicamente

estável, produz um deslizamento mesmo que mínimo; a segunda, visando romper com

os sentidos estabilizados, desloca o já instituído para compor nova significação.

Feitas essas colocações e tendo deixado antevisto pelo leitor a perspectiva que

assumiremos para tratar as três formas de repetição em edital de concurso público,

retornemos à teorização de Eni Orlandi sobre os dois processos em discussão.

63

Reveja a colocação de Léon e Pêcheux (2012 [1982], p. 170), para quem a paráfrase sintática “introduz

uma diferença de sentido” ínfima na forma de espelhamento.

Page 80: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

80

Orlandi (1984, p. 11) acrescenta que a paráfrase é o processo que, na linguagem,

permite a produtividade, uma vez que se caracteriza pela “reiteração de processos já

cristalizados pelas instituições, em que se toma a linguagem como produto e se mantém

o dizível no espaço do que já está instituído”. Por outro lado, a polissemia rege a

criatividade, “que instaura o diferente, na medida em que o uso, para romper o processo

de produção dominante de sentidos e na tensão com o contexto histórico-social, pode

criar novas formas, produzir novos sentidos”. Além disso, ao retomar a concepção de

paráfrase elaborada por Pêcheux e Fuchs (2014 [1975]), a autora mantém a noção de

que esse processo constitui a matriz do sentido. Por outro lado, a polissemia é vista por

ela como “a fonte do sentido, a própria condição de existência da linguagem, uma vez

que a base da significação está na multiplicidade de sentidos”.

Com a intenção de fornecer uma distinção precisa entre os dois processos,

formulamos o esquema a seguir com base nos trabalhos de Orlandi (1983, 1984, 2012a,

2012b, 2013):

Paráfrase Polissemia

“Os processos parafrásticos são aqueles

pelos quais em todo dizer há sempre algo que se

mantém, isto é, o dizível, a memória”.

“A paráfrase representa assim o retorno

aos mesmos espaços do dizer”.

Pela paráfrase, são produzidas “diferentes

formulações do mesmo dizer sedimentado”.

Ela “está do lado da estabilização”.

Rege a produtividade, que “mantém o

homem num retorno constante ao mesmo espaço

dizível: produz a variedade do mesmo”64

.

A paráfrase é “a matriz do sentido, pois

não há sentido sem repetição, sem sustentação no

saber discursivo”.

Na polissemia, o que vemos é

“deslocamento, ruptura dos processos de

significação”.

“Ela joga com o equívoco”.

Rege a criatividade, que “implica na

ruptura do processo de produção da linguagem,

pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o

diferente, produzindo movimentos que afetam os

sujeitos e os sentidos na sua relação com a história

e a língua”65

.

“Para haver criatividade é preciso um

trabalho que ponha em conflito o já produzido e o

que vai-se instituir”.

A criatividade é a “passagem do

irrealizado ao possível, do não-sentido ao sentido”.

A polissemia “é a fonte da linguagem

uma vez que ela é a própria condição de existência

dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos –

não fossem múltiplos, não pudessem ser outros,

não haveria necessidade de dizer”.

64

Para Orlandi (2012b, p. 26) “a produtividade se dá pela obtenção de elementos variados através de

operações que são sempre as mesmas, que incidem recorrentemente e que, dessa forma, procuram manter

o dizível no mesmo espaço do que já está instituído (o legítimo, a paráfrase)”.

65

Para Orlandi (2012b, p. 26) “a criatividade instaura o diferente na linguagem na medida em que o uso

pode romper com o processo de produção dominante de sentidos e, na tensão da relação com o contexto

histórico-social, pode criar novas formas, novos sentidos”.

Page 81: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

81

Antes de finalizar este item, queremos demarcar na presente discussão um traço

da paráfrase discursiva defendido por Henry (1990 [1975]). Para este teórico, a

paráfrase é um conceito que remete à noção de formação discursiva, compreendida

como aquilo que pode e deve ser dito numa conjuntura dada a partir de uma posição

dada. Nessa relação entre paráfrase e formação discursiva, a paráfrase está relacionada

àquilo que pode “ser substituto de uma unidade dada”66

. Henry (1990 [1975], p. 52)

defende que: “a noção de paráfrase discursiva é uma noção “contextual” no sentido de

que as paráfrases discursivas dependem das condições de produção e de interpretação,

ou seja, das formações discursivas diversas às quais o discurso pode estar relacionado

para nelas produzir sentido”.

Levaremos em consideração esse princípio em nosso dispositivo analítico, pois,

como será apresentado em nossa análise, uma mesma formulação em edital de concurso

público muda o efeito de sentidos entre os interlocutores (e o status da formulação)

dependendo da forma-sujeito que a emprega e da formação discursiva em que se

inscreve.

2.7 Tipologia de discurso

A preocupação em traçar uma tipologia para os discursos sempre esteve presente

no domínio da AD, desde suas formulações iniciais. No texto Lexicologia e análise de

enunciado, por exemplo, Dubois (2014 [1969]), considerando os enunciados políticos

dos textos estudados no Colóquio de Lexicologia Política de Saint-Cloud, realizado em

abril de 1968, afirma que esses enunciados derivam de dois tipos de discurso. De um

lado, temos o discurso polêmico, marcado pela presença de asserções que entram em

confronto com outras asserções implicitamente reconhecidas entre os “adversários”.

Nesse tipo de discurso, o objetivo do enunciador é persuadir, levar o ouvinte/leitor a

criar uma identidade com o autor do discurso, sujeito da enunciação. Por outro lado,

temos o discurso didático, marcado pela presença de asserções identificadas como

“verdadeiras”, sobre as quais não recai qualquer possibilidade de confronto. O objetivo

do enunciador não é persuadir, mas tão-somente informar, isto é, formular asserções que

não se opõem a outras.

66

Henry (1990 [1975], p. 52).

Page 82: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

82

Orlandi (2013) afirma que há inúmeros critérios para se definir tipologias de

discurso. Quanto à forma de uma instituição (e suas normas), por exemplo, temos o

discurso político, o religioso, o pedagógico, o jornalístico, o científico etc.; quanto à

matéria/disciplina tratada, temos o discurso sociológico, o antropológico, o literário, o

filosófico etc. Segundo a autora, todas essas tipologias, dentre muitas outras possíveis,

não devem constituir o centro das atenções dos analistas de discurso, pois o que

caracteriza o discurso não é o seu tipo, mas o seu modo de funcionamento.

Por isso, desde os anos de 1980, Eni Orlandi vem trabalhando com uma

tipologia de discurso que leva em consideração o funcionamento discursivo, a atividade

estruturante de um discurso determinado por um falante determinado para um

interlocutor determinado com uma finalidade específica (ORLANDI, 1983). Para tanto,

ela toma por base, dentre outros critérios, a questão da polissemia para elaborar sua

tipologia, uma vez que esse processo é constitutivo da tensão que produz o texto. Como

afirma Orlandi (1983, p. 9), “podemos tomar a polissemia enquanto processo que

representa a tensão constante estabelecida pela relação homem/mundo, pela intromissão

da prática e do referente, enquanto tal na linguagem”.

Assim, os trabalhos de Orlandi (1983, 1984 2013) nos levam ao reconhecimento

de três tipos de discurso: lúdico, polêmico e autoritário. A caracterização desses

discursos é feita tecnicamente com base nos seguintes critérios67

:

(i) Modo como os interlocutores se consideram – por esse critério, observa-se

se o locutor considera seu interlocutor, não o considera ou se a relação entre

eles é qualquer uma.

(ii) Reversibilidade – critério que determina a dinâmica da interlocução;

dependendo do grau de reversibilidade, há maior ou menor troca de papéis

entre os interlocutores no discurso.

(iii) Relação dos interlocutores com o objeto de discurso (como o referente se

apresenta) – por esse critério, é verificado se o objeto de discurso está

ausente (encoberto pelo dizer), ou se ele é disputado pelos interlocutores,

que procuram dominá-lo, ou se ele é mantido como tal, ou seja, como objeto

de discurso, e os interlocutores se expõem a ele.

67

Confira Orlandi (1983, p. 142).

Page 83: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

83

(iv) Carga de polissemia – permite avaliar, tendo em vista o critério anterior, se

há maior ou menor carga de polissemia entre os interlocutores e o referente.

Os critérios descritos acima permitem definir cada tipo de discurso, segundo a

tipologia estabelecida por Orlandi (1983, 1984, 2013), da seguinte maneira:

a) DISCURSO AUTORITÁRIO – Nele, a polissemia é contida; o referente (objeto

de discurso) está ausente, pois é apagado pela relação de linguagem que se

estabelece; não há interlocutores, pois o locutor se coloca como agente exclusivo

apagando sua relação com o interlocutor; a reversibilidade tende a zero. O

exagero é a ordem no sentido militar, assujeitamento ao comando.

b) DISCURSO POLÊMICO – A polissemia é controlada; o referente (objeto de

discurso) é disputado pelos interlocutores, os quais se mantêm presentes, numa

relação tensa de disputa pelos sentidos, ou seja, eles tentam dominar o referente,

conferindo-lhe direção com perspectivas particulares; a reversibilidade se dá sob

certas condições. O exagero é a injúria.

c) DISCURSO LÚDICO – A polissemia é aberta; o referente (objeto de discurso)

está presente como tal, isto é, enquanto objeto; os interlocutores se expõem aos

efeitos dessa presença inteiramente sem regular sua relação com os sentidos (daí

a polissemia aberta); a reversibilidade é total. O exagero é o non sense.

Para facilitar a visualização desses traços de cada tipo de discurso, elaboramos o

quadro teórico abaixo:

Como os interlocutores se

consideram

Grau de

reversibilidade

Como o referente se

apresenta

Carga de

polissemia

Resultado do

exagero

Discurso

Autoritário

Há um locutor que se impõe

como agente exclusivo e

apaga sua relação com o

interlocutor

Tendência a ser

nula (zero)

Ausente/apagado/

oculto pelo dizer

Contida Ordem/

Assujeitamento

ao comando

Discurso

Polêmico

Presentes em uma tensa

relação de disputa pelos

sentidos.

Manifesta-se sob

dadas condições

Disputado pelos

interlocutores

Controlada Injúria

Discurso

Lúdico

Expostos aos efeitos da

presença do referente sem

regular sua relação com os

sentidos.

Total Presente como tal (como

objeto) na interlocução

Aberta Non sense

Quadro 3 – Tipos de discurso

Page 84: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

84

2.8 A questão do silêncio em Análise de Discurso

A Análise de Discurso é uma disciplina que, ao se instituir como um espaço

polêmico das maneiras de ler68

– o que prevê a possibilidade de diferentes gestos de

leitura sobre uma mesma forma material –, parte do princípio de que, no plano

discursivo, aquilo que é dito, enunciado, mantém constante relação com tudo que não é

dito.

Orlandi (2013) explica que há diversas maneiras de analisar o não-dito em AD.

Dentre os linguistas que se debruçaram sobre essa questão, ela cita o trabalho de

Oswald Ducrot, do qual podemos extrair conceitos como pressuposto e subentendido,

informações implícitas no enunciado que correspondem a maneiras de não-dizer.

Entretanto, uma perspectiva singular para trabalhar com o não-dito foi desenvolvida por

Orlandi (2007), que teorizou sobre o silêncio, tornando-o uma categoria de análise

operativa em AD.

Em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, Orlandi (2007) apresenta

as maneiras como o silêncio pode significar, uma vez que há sentido no silêncio. Para

ela, o silêncio, como princípio geral, é a “„respiração‟ (o fôlego) da significação; um

lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido”

(ORLANDI, 2007, p. 13). Na obra em comentário, a autora assume que o silêncio

apresenta duas formas: silêncio fundador e silenciamento ou política do silêncio, o qual

possui duas formas de existência, o silêncio constitutivo e silêncio local.

O silêncio fundador ou fundante é o princípio de toda significação, que nos leva

a assumir que o sentido sempre pode ser outro. Corresponde a um não-dito que é, ao

mesmo tempo, história e função da relação entre língua e ideologia. Não se trata de

mero complemento da linguagem, mas de uma contraparte dotada de significação

própria. Ao chamar essa forma de silêncio de fundador, não se quer atribuir outra ideia

que não seja a de que o silêncio garante o movimento dos sentidos (ORLANDI, 2007).

O silenciamento ou política do silêncio é uma prática constitutiva da linguagem

que visa pôr em silêncio. Uma de suas formas de existência é o silêncio constitutivo,

que se relaciona ao fato de que, quando falamos, optamos por formas da língua que

necessariamente apagam, silenciam outras, o que resulta no princípio de que para dizer

é preciso não-dizer. Orlandi (2007, p. 73), afirma que:

68

Expressão tomada emprestada de Pêcheux (2014 [1982], p. 59).

Page 85: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

85

O silêncio constitutivo pertence à própria ordem de produção do

sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa a

política do silêncio como um efeito de discurso que instala o anti-

implícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido

a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí

se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam

instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação

discursiva, uma “outra” região de sentidos.

A outra forma de existência da política do silêncio é o silêncio local, que implica

a censura, a proibição de se dizer algo em dada conjuntura. Trata-se da manifestação

mais visível da política do silêncio, que traz em seu bojo a interdição do dizer

(ORLANDI, 2007).

Todo o desenvolvimento sobre a questão do silêncio visa constituir em AD não

só uma reflexão teórica e filosófica sobre ele, mas também, e principalmente, pretende

trazer implicações para as práticas de leitura que levem em consideração, no tocante ao

método de análise, a relação entre o dito e o não-dito, uma relação que permite ao

analista avaliar os contornos significativos entre o que é enunciado em dada conjuntura

e tudo que, simultaneamente, fica silenciado na enunciação.

Page 86: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

86

3. Metodologia

Como já delineamos antes, nosso principal objetivo é compreender os modos

como os sentidos são atualmente produzidos na interlocução que se instaura quando um

órgão vinculado ao Estado, no exercício de sua função administrativa, elabora um edital

de concurso público e o põe em circulação na sociedade entre os

indivíduos/administrados69

. Para tanto, vale ressaltar que: (a) se nos propomos a tratar

dos efeitos de sentidos entre interlocutores – Administração e administrados –,

entendemos que se torna necessária uma filiação às Teorias do Discurso, mais

especificamente àquela constituída pelo legado deixado por Michel Pêcheux; (b) se nos

propomos a abordar o discurso, não podemos nos distanciar do princípio de que todo

discurso é um continuum, já que nasce em outro e aponta para outro; e (c) se, em função

da condição imediatamente anterior, assumirmos que um processo discursivo é o

resultado de outros processos discursivos já sedimentados, tornar-se-á necessário

remeter o que é dito hoje à memória e, assim, apreender uma enunciação

contemporânea no universo do já-dito, tendo um vista sua historicidade.

Essa perspectiva de trabalho nos coloca, assim, diante de uma imposição: para

compreender o atual processo discursivo em edital de concurso público, precisamos

compreender a historicização dos sentidos que foram sendo produzidos no domínio

dessa materialidade com o transcurso do tempo. Não estamos propondo que se resgate a

memória histórica – na condição de interdiscurso – relacionada a um processo

discursivo; afinal, dado o caráter imaterial e irrepresentável dessa memória, tal proposta

seria ilusão. O que propomos é que se resgate, do amplo universo da memória de

arquivo, do discurso documental, um recorte de dizeres que nos permita compreender

como os sentidos foram sendo historicamente constituídos, deslocados, sedimentados e

incorporados no processo discursivo produzido em edital de concurso a ponto de fazê-lo

ir adquirindo progressivamente uma dimensão textual cada vez mais ampla. Pensemos,

por exemplo, na diferente textualidade de um edital elaborado pelo Estado durante o

Império em relação a um edital produzido hoje em dia: o corpo textual do edital

deslocou de uma estrutura mínima para outra de dimensão muito superior.

Portanto, como já sinalizamos em nossa Introdução, para atingirmos os objetivos

da presente pesquisa, propomos uma investigação em duas etapas. A primeira visa

69

Optamos pela referência a indivíduo, sempre que consideramos a pessoa física como um número em

relação ao Estado, isto é, como o sujeito individualizado pelo Estado.

Page 87: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

87

reconstituir a história do concurso público e mostrar como os editais de concurso vêm

sendo textualizados no transcurso do tempo. A segunda visa analisar os efeitos de

sentido produzidos contemporaneamente quando a Administração formula um

enunciado para configurar em edital, sendo que tal enunciado rompe com os sentidos já

estabilizados discursivamente.

Para o desenvolvimento dessas duas etapas da pesquisa, fez-se necessária a

assunção de dois dispositivos analíticos – cada qual com seus respectivos arquivos –

que nos permitissem um gesto de interpretação sobre as atuais práticas discursivas

postas em jogo na textualização de editais.

A constituição de um arquivo para tratar de um tema específico é, para nós, um

dos momentos – o primeiro – mais importantes no estabelecimento do dispositivo

analítico em AD, pois é a partir dele (do arquivo) que se constitui o corpus discursivo,

formado por todos os enunciados que serão colocados em análise.

Dentre o que já tratamos acerca do arquivo no capítulo 2, há três aspectos sobre

esse objeto que devemos retomar, de forma sucinta, para justificar nossas opções

metodológicas na constituição dos arquivos que selecionamos para esta pesquisa.

Primeiramente, devemos considerar o arquivo como um objeto linguístico e histórico

constituído pela heterogeneidade, podendo incorporar enunciados/discursos de ordens

distintas (Schneiders, 2014). Em segundo lugar, com base em Guilhaumou & Maldidier

(2014 [1986], p. 170), não podemos perder de vista que “o arquivo nunca é dado a

priori, e, em uma primeira leitura, seu funcionamento é opaco”. Terceiro: a

compreensão de arquivo, em sentido amplo, como “campo de documentos pertinentes e

disponíveis sobre uma mesma questão” (PÊCHEUX, 2014 [1982], p. 59) subtrai do

arquivo qualquer sensação de unidade, conferindo-lhe, ao contrário, dispersão.

Desta forma, estando o arquivo marcado pela heterogeneidade, pela opacidade e

pela dispersão, cumpre ao analista, em um primeiro momento, tratar da constituição do

arquivo que será tomado em sua pesquisa tendo em vista a questão por ele levantada e

a finalidade da análise. Em outras palavras, o analista deve destacar do interior do

grande Arquivo sobre o tema abordado, o conjunto de documentos que ele pretende

considerar para a construção do seu corpus discursivo. Esse primeiro movimento feito

pelo analista pode ser representado como no esquema abaixo, em que A representa todo

o Arquivo, toda a memória institucionalizada, e representa o arquivo constituído pelo

analista a partir da seleção dos documentos que lhe servirão para a composição do

corpus discursivo.

Page 88: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

88

Vale ressaltar que esse primeiro movimento já é um gesto de interpretação.

Embora o Arquivo (A) – como memória institucionalizada, que não se esquece – não se

confunda com o interdiscurso – como memória discursiva/histórica, estruturada pelo

esquecimento – é no confronto entre eles que há espaço para interpretação (Orlandi

(2003). Não uma interpretação única e exclusiva, mas um gesto de interpretação, entre

outros possíveis, em face do arquivo () tomado em relação ao tema da pesquisa.

3.1 Procedimentos para a primeira etapa da pesquisa

Optamos por recorrer, de início, ao imenso arquivo que temos sobre o tema

concurso com o objetivo de conhecer sua história. Para tanto, tivemos que partir de um

ponto. Como iremos tratar do edital de concurso considerando suas especificidades no

Brasil, optamos por reconstruir sua história a partir de 1822, com a Independência do

país, tomando o concurso e o edital, de início, na época do Brasil Imperial. Em

seguida, buscamos considerá-los em cinco períodos históricos diferentes: a República

Velha, a Era Vargas, a República Liberal, a Ditadura Militar e a atual República

Federativa.

O estudo histórico prévio que empreendemos nessa etapa sobre concurso e edital

traz um objetivo mais específico: conhecer a constituição dos dizeres e a determinação

histórica dos sentidos para compreender o processo de formulação dos editais na

atualidade. Não queremos dizer com isso que temos a intenção de apreender o

interdiscurso sobre o qual se constrói hoje o edital. Conhecemos o caráter imaterial da

memória discursiva e impossibilidade de ser apreendida, como se pudesse ser um bloco

compactado de dizeres já produzidos. Nossa intenção é tão somente criar um referencial

em que se demarque o aparecimento gradual de enunciados que foram sendo

incorporados historicamente na produção de editais. Acreditamos que, a partir disso,

teremos condições de dar tratamento adequado ao edital de concurso público, um

tratamento ao mesmo tempo desembaraçado de implicações jurídicas e capaz sinalizar

os problemas de sentido envolvidos, hoje em dia, em sua construção.

A

Page 89: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

89

Para levar a cabo essa primeira tarefa, adotamos a seguinte metodologia.

Fizemos uma pesquisa documental em que foram considerados dois arquivos: (i) um

arquivo constituído por referência aos termos edital e concurso na legislação brasileira e

(ii) um arquivo constituído por editais de concurso. Ambos foram construídos levando

em consideração cada um dos períodos históricos do Brasil mencionados acima (do

Brasil Imperial à República Federativa do Brasil).

Para a formação do primeiro arquivo, que chamaremos Arquivo 1 – Legislação,

fizemos uma “varredura” na legislação brasileira, desde a Constituição de 1824 até a

atualidade, disponível no site oficial da Presidência da República

(www2.planalto.gov.br/)70

, para verificar os momentos da história em que se fala em

concurso e edital. Os gestos de leitura realizados sobre esse arquivo são apresentados ao

leitor no capítulo 4.

Foram adotados os seguintes procedimentos:

1) Recorremos às leis disponibilizadas no Acervo do Executivo Federal, buscando

nelas as ocorrências das palavras edital e concurso. Diante da ausência de tempo

hábil para ler toda a legislação em busca dessas palavras, recorremos a um

recurso simples oferecido pelo próprio sistema de busca do site para localizar

um conteúdo específico no documento: com a lei aberta, utilizamos a opção Ctrl

+ F. Por meio desse atalho, procuramos localizar a ocorrência das palavras

postas em análise.

2) Todas as ocorrências dessas palavras foram reproduzidas em documento novo

criado no editor de texto Microsoft Word, indicando a lei respectiva, com o

intuito de constituir o arquivo para análise.

3) Para que fosse possível traçar um percurso histórico do aparecimento das

palavras concurso e edital, aplicamos os procedimentos descritos acima sobre a

legislação brasileira, considerando-a em sua evolução cronológica. Dessa forma,

dividimos a legislação em 6 grupos, quais sejam:

70

Consultamos o item Legislação que constitui o Acervo da Presidência da República. Por meio do site

oficial do Palácio do Planalto - http://www2.planalto.gov.br/ - é possível identificar as leis que compõem

o sistema jurídico brasileiro no campo Acervo. Lá, há o link http://www4.planalto.gov.br/legislação que

dá acesso ao Portal da Legislação, onde todo cidadão tem acesso a quase todo material legislativo

(Constituições, Leis Ordinárias, Decretos, Estatutos, Códigos, etc.) produzido na história do Brasil.

Page 90: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

90

Grupo A – Legislação do Brasil Imperial, entendido o Brasil Imperial como o período

que se estende do dia 7 de setembro de 1822, com a Independência, até o dia 15 de

novembro de 1889, com a Proclamação da República.

Grupo B – Legislação da República Velha, entendida a República Velha como o

período que se estende entre a Proclamação da República, a partir de 15 de novembro de

1889, e a Revolução de 1930 (iniciada, mais precisamente, em 24 de outubro de 1930).

Grupo C – Legislação da Era Vargas, entendida a Era Vargas como o período que se

estende da Revolução de 1930 até o ano de 1945 (mais precisamente em 29 de outubro

de 1945, quando Vargas foi deposto). Vale ressaltar que a Era Vargas teve três

momentos históricos, que ficaram conhecidos, respectivamente, como: Governo

Provisório/fase revolucionária (de 1930 a 1934), Governo Constitucional/fase

constitucional (de 1934 a 1937) e Estado Novo/fase ditatorial (de 1937 a 1945).

Consideraremos a legislação da Era Vargas em sua totalidade, sem considerá-la em cada

período em que Vargas governou.

Grupo D – Legislação da República Liberal, entendida como o breve período

democrático que se estende de 13 de novembro de 1945 a 31 de março de 1964 e

constitui um período de entremeio de duas ditaduras.

Grupo E – Legislação da Ditadura Militar, entendida como o período que se estende de

1º de abril de 1964, com o golpe militar, a 14 de janeiro de 1985.

Grupo F – Legislação da República Federativa do Brasil, entendido como o período que

se estende de 15 de janeiro de 1988 até os dias atuais.

Para a formação do segundo arquivo, a ser nomeado Arquivo 2 – Edital,

buscamos editais disponibilizados em sites de diferentes órgãos públicos (por exemplo,

Câmara dos Deputados e Tribunal Superior do Trabalho) ou bancas examinadoras (por

exemplo, Esaf e Cebraspe/UnB). Diante da impossibilidade de obter editais antigos, em

especial aqueles que foram produzidos pelo Estado nos séculos XIX e XX, utilizamos a

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, um portal de periódicos nacionais que

permite ampla consulta, pela internet, a jornais, revistas, anuários, boletins e

Page 91: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

91

publicações seriadas71

. Optamos pela Hemeroteca porque, sendo o edital de concurso

público um documento que deve ser publicado na imprensa para dar ampla publicidade

aos interessados, ela oferece a possibilidade de resgatar editais emitidos por órgãos

oficiais em diferentes épocas e diferentes lugares do país. Os gestos de leitura realizados

sobre esse arquivo são apresentados ao leitor no capítulo 5.

Para construir o Arquivo 2, selecionamos 2 (dois) editais dentro de cada década

dos períodos históricos considerados. Tal seleção não é, entretanto, aleatória.

Escolhemos, dentro de cada década, o edital mais antigo e o edital mais recente (1 edital

no início e outro no final de cada década). Constituem o Arquivo 2 – Edital os seguintes

editais:

1. Editais do Brasil Imperial

Edital de Concurso de 1823 Periódico: “Diário do Governo” do Império do

Brasil

Data: 1º de julho de 1823

Edital de Concurso de 1829 Periódico: “O Universal”

Data: 9 de março de 1829

Edital de Concurso de 1830 Periódico: “O Farol Maranhense”

Data: 21 de maio de 1830

Edital de Concurso de 1838 Periódico: “O Universal”

Data: 8 de outubro de 1838

Edital de Concurso de 1840 Periódico: “O Universal”

Data: 16 de março de 1840

Edital de Concurso de 1849 Periódico: “Diário do Rio de Janeiro”

Data: 1º de outubro de 1849

Edital de Concurso de 1850 Periódico: Publicador Maranhense

Data: 7 de fevereiro de 1850

Edital de Concurso de 1859 Periódico: “O Universal”

Data: 27 de maio de 1859

Edital de Concurso de 1861 Periódico: “Diário do Rio de Janeiro”

Data: 06/11/1861

Edital de Concurso de 1868 Periódico: “Correio Mercantil”

Data: 11 de novembro de 1868

Edital de Concurso de 1870 Periódico: “Jornal do Pará”

Data:17 de fevereiro de 1870

Edital de Concurso de 1877 Periódico: “Jornal do Pará: Órgão Oficial”

Data: 1º de setembro de 1877

Edital de Concurso de 1882 Periódico: “Pharol (RJ)”

Data: 15 de maio de 1882

71

Cf. https://www.bn.gov.br/explore/acervos/hemeroteca-digital#.

Page 92: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

92

2. Editais da República Velha

Edital de Concurso de 1889 Periódico: “A República (PR)”

Data: 27 de dezembro de 1889

Edital de Concurso de 1893 Periódico: “A República (PR)”

Data: 14 de junho de 1893

Edital de Concurso de 1899 Periódico: “Gazeta de Notícias (RJ)”

Data: 26 de outubro de 1899

Edital de Concurso de 1900 Periódico: “Minas Geraes”

Data: 20 de março de 1900

Edital de Concurso de 1908 Periódico: “Diário da Manhã (ES)”

Data: 22 de abril de 1908

Edital de Concurso de 1911 Periódico: “Correio Paulistano”

Data: 25 de janeiro de 1911

Edital de Concurso de 1919 Periódico: “Correio Paulistano”

Data: 16 de fevereiro de 1919

Edital de Concurso de1924 Periódico: “O Dia (PR)”

Data: 10 de janeiro de 1924

Edital de Concurso de 1927 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados

Disponível em

http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13816

Data: 27 de junho de 1927

3. Editais da Era Vargas

Edital de Concurso de 1930 Periódico: “A República (SC)”

Data: 13 de dezembro de 1930

Edital de Concurso de 1937 Periódico: “A República (SC)”

Data: 22 de junho de 1937

Edital de Concurso de 1940 Periódico: “O Dia (Curitiba)”

Data: 19 de abril de 1940

Edital de Concurso de 1945 Periódico: “Diário Carioca”

Data: 14 de julho de 1945

4. Editais da República Liberal

Edital de Concurso de 1950 Periódico: “Diário Carioca”

Data: 16 de janeiro de 1950

Edital de Concurso de 1957 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados

Disponível em

http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13817

Data: 11 de setembro de 1957

Edital de Concurso de 1961 Periódico: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro

Data: 23 de novembro de 1961

Page 93: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

93

5. Editais da Ditadura Militar

Edital de Concurso de 1969 Periódico: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro

Data: 22 de dezembro de 1969

Edital de Concurso de 1971 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados

Disponível em

http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13858

Data: 26 de abril de 1971

Edital de Concurso de 1977 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados

Disponível em

http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13856#

Data: 28 de janeiro de 1977

Edital de Concurso de 1982 Coordenadoria de Gestão Documental do TST

Data: 06 de agosto de 1982

6. Editais da República Federativa do Brasil

Edital de Concurso de 1989 Disponível em:

bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/14138/e

dital_1_1989.pdf?...4

Data: 4 de dezembro de 1989

Edital de Concurso de 1993 Disponível em:

http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=sobre

StfConcursoPublico&pagina=Editais_concurso_1993

Data: 20 de setembro de 1993

Edital de Concurso de 1998 Disponível no site do Cespe/UnB

http://www.cespe.unb.br/concursos/_antigos/anteriores_

2002/1999/Escrivao_PF/Arquivos/

Data: 17 de dezembro de 1998

Edital de Concurso de 2001 Disponível no site do Cespe/UnB

www.cespe.unb.br/concursos/_antigos/2002/senado/Arq

uivos/ED2001_senado1.pdf

Data: 31 de outubro de 2001

Edital de Concurso de 2009 Disponível no site da ESAF

http://esaf.fazenda.gov.br/assuntos/concursos_publicos/e

ncerrados/2009/auditor-fiscal-da-receita-federal-do-

brasil

Data: 18 de setembro de 2009

Edital de Concurso de 2011 Disponível no site da CONSULPLAN

http://www.consulplan.net/concursosInterna.aspx?k=N8

b56a8jybE=

Data: 11 de novembro de 2011

Edital de Concurso de 2018 Disponível no site do Cespe/UnB http://www.cespe.unb.br/concursos/TCE_MG_18/

Data: 5 de junho de 2018

É um importante justificar para o leitor uma necessidade que se impôs ao nosso

trabalho. Em razão das limitações de espaço físico de uma tese de doutorado, julgamos

Page 94: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

94

que não é possível reproduzir em anexo toda a legislação que compõe o Arquivo 1 e

todos os editais que compõem o Arquivo 2. Desse modo, optamos apenas por referi-los

(legislação e editais) ao leitor, oferecendo-lhe as devidas fontes de pesquisa. Nos

capítulos 4 e 5, em que fazemos a análise sobre esses arquivos, as referências serão

retomadas e sinalizadas para o leitor.

3.2 Procedimentos para a segunda etapa da pesquisa

O primeiro arquivo que construímos para a segunda etapa da pesquisa é formado

por quatro editais que não sofreram qualquer forma de controle (administrativo ou

judicial) por dispor, em princípio, suas cláusulas segundo os contornos das leis, da

doutrina e da jurisprudência. Nesse arquivo, encontram-se editais cujos concursos foram

promovidos por instituições examinadoras que gozam de relativo prestígio no país; são

elas: a Escola de Administração Fazendária (Esaf), que é vinculada ao Ministério da

Fazenda e responsável pela seleção de pessoal para o provimento de cargos na

Administração Pública Federal; o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção

e de Promoção de Eventos (Cebraspe), vinculado à Universidade de Brasília; a

Fundação Getúlio Vargas (FGV), que, além de ser uma instituição de ensino superior

que visa, principalmente, preparar pessoal qualificado para a Administração pública e

privada, possui em sua estrutura organizacional um setor – FGV Projetos – destinado à

promoção de concursos e exames; e a Fundação Carlos Chagas (FCC), que se tornou

uma das bancas examinadoras de maior vulto e prestígio no país nos últimos anos.

Como esse arquivo é constituído por editais que não foram alvo de

questionamentos e processos, nós o chamaremos de E+

(leia-se “arquivo de editais sem

irregularidades”). E sua composição segue as especificações no Quadro 4, apresentado

na página seguinte.

Reiteramos, antes de seguir, a finalidade da análise nessa parte de nossa pesquisa

sobre os editais: apresentar ao leitor como se manifesta a tensão paráfrase-polissemia na

formulação de editais e, mais especificamente, como o jogo com a polissemia no seio de

uma cadeia de sentidos já estabilizados pelas leis, pela doutrina e pela jurisprudência,

pode abrir determinada formulação em um edital a diferentes interpretações, o que faz o

edital ficar sujeito ao controle administrativo e/ou judicial em função da instabilidade

que se cria.

Page 95: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

95

Arquivo E+

Banca Concurso de referência Ano de

publicação

Fonte/disponibilidade

Esaf Concurso público para provimento de cargos

de Auditor-Fiscal Federal Agropecuário-

Médico Veterinário do Ministério da

Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

2017 http://www.esaf.fazenda.gov.br/a

ssuntos/concursos_publicos/em-

andamento-1/concurso-mapa-

2017/auditor-fiscal-federal-

agropecuario-mapa

Cebraspe Concurso público para provimento de vagas

nos cargos de Delegado, Perito, Agente,

Escrivão e Papiloscopista da Polícia Federal.

2018 http://www.cespe.unb.br/concurs

os/pf_18/

FGV Concurso público para quadro permanente de

Serviços Auxiliares do Ministério Público do

Estado do Rio de Janeiro.

2016 https://fgvprojetos.fgv.br/concur

sos/mprj

FCC Concurso público para provimento de cargos

do quadro de Servidores Auxiliares da

Defensoria Pública do Estado do Amazonas.

2017 http://www.concursosfcc.com.br/

concursos/dpeam217/index.html

Quadro 4 – Arquivo de editais sem irregularidades

Com o intuito de pôr em confronto os sentidos estáveis – materializados pela

paráfrase72

– com os sentidos que visam romper com o instituído – mobilizados pela

polissemia –, era necessário trazer para a análise enunciados de editais que sofreram

alguma forma de controle e tomá-los como unidades de comparação em relação àqueles

formulados em editais sem falhas apontadas. Daí a necessidade de recorrer a outro

arquivo.

O segundo arquivo que construímos, portanto, é formado por editais de concurso

público que passaram, após publicação na imprensa oficial, por processo de controle

administrativo ou judicial, ocasionando pedidos de impugnação, suspensão cautelar ou

anulação do certame. Por se tratar de textos maculados por falha ou falta

(silenciamentos), nós chamaremos esse arquivo de E-

(leia-se “arquivo de editais com

irregularidades”). Sua constituição segue as especificações no Quadro 5, que se

encontra na página seguinte:

72

Estes sentidos estáveis seriam tomados a partir das formulações em editais que compõem o Arquivo

E+

.

Page 96: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

96

Arquivo E-

E

D

I

T

A

L

1

Concurso de referência Prefeitura Municipal de Centralina/Minas Gerais.

Banca Prima Face Consultoria e Assessoria em Concursos (Prima Face). Data da publicação 15 de maio de 2009.

Disponível em: https://static-files.folhadirigida.com.br/uploads/files/Edital13174_2.pdf Forma de

controle Controle judicial pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 23/07/2009, que

determinou a suspensão cautelar do concurso em razão das falhas apontadas. Resultado do controle Em 7 de outubro de 2009, o prefeito reeditou o documento editalício acatando as

determinações do TCE. A versão retificada do edital está disponível em: www.seapconcursos.com.br/v2/arquivos

/.../852638e6b13e9b6f6f09599b158fb0d3.p...

E

D

I

T

A

L

2

Concurso de referência Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/Minas Gerais.

Banca Fundação de Apoio a Universidade Federal de São João Del-Rey (FAUF).

Data da publicação 15 de setembro de 2009.

Disponível em: https://www.ufsj.edu.br/fauf/concurso_pmsjdr.php Forma de controle Controle judicial pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 29/10/2009, que

determinou a suspensão cautelar do concurso em razão das irregularidades encontradas. Resultado do controle Em 31/7/2010, o presidente da Fundação tornou pública a revogação da suspensão

temporária do Concurso Público e Processo Seletivo.

A versão retificada disponível em: https://www.ufsj.edu.br/fauf/concurso_pmsjdr.php

E

D

I

T

A

L

3

Concurso de referência Prefeitura Municipal de Santa Rita/Paraíba

Banca FACET Concursos. Data da publicação 18 de março de 2016. Disponível em:

diario.santarita.pb.gov.br/wp-content/.../2016/.../DIÁRIO-OFICIAL-483-18-03-2016 Forma de controle Manifestação do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, que determinou suspensão

cautelar do concurso. A decisão é de 7 de abril de 2016. Resultado do controle Em 24/05/2016, o prefeito reeditou o documento acatando as determinações do TCE.

A versão retificada do edital está disponível em: www.facetconcursos.com.br/santarita/edital_santarita.pdf

E

D

I

T

A

L

4

Concurso de referência Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais

Banca FUMARC – Fundação Mariana Resende Costa

Data da publicação 26/09/2008. Disponível em: www.fumarc.com.br/imgDB/concursos Forma de controle

Controle do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 02/12/2008, que

determinou a suspensão do concurso em razão das irregularidades encontradas. Resultado do controle A versão re-ratificada do edital, de 09/03/2009, está disponível em:

www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/edital_retificacao-20090309-154723.pdf

E

D

I

T

A

L

5

Concurso de referência Procurador da República do Ministério Público Federal/MPF.

Banca O concurso foi organizado e executado pelo próprio MPF. Data da publicação 26 de agosto de 2016. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/concursos/concursos/

procuradores/ 29-concurso Forma de controle

Uma ação civil pública movida pelo próprio Ministério Público Federal, que pedia anulação do certame e desfazimento de todos os atos praticados, recebeu Decisão de

Waldemar Cláudio de Carvalho, Juiz Federal da 14ª Vara do Distrito Federal, que

determinou a suspensão do concurso em 29 de março de 2017. Resultado do controle Por força de decisão judicial, o concurso foi suspenso em 05 de abril de 2017 e voltou a

ter prosseguimento em 12 de junho de 2018 (até nossa última consulta ao site do

Ministério Público Federal em 08/09/2018, o concurso ainda estava em andamento). Não encontramos nenhuma alteração no edital.

E

D

I

T

A

L

6

Concurso de referência Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (Indi).

Banca Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP. Data da publicação 24 de fevereiro de 2012 . Disponível em: http://www.gestaodeconcursos.com.br/site/site/

DetalheConcurso.aspx?CodigoConcurso=973 Forma de controle O Edital autuado pelo TCE de Minas Gerais em 25 de abril de 2012.

Resultado do controle No dia 18 de junho de 2012, o Diretor-Presidente do Indi suspendeu o concurso em cumprimento da determinação da autuação do TCE e, em 05 de julho de 2012, editou uma

retificação do edital para dar prosseguimento ao certame.

Edital de retificação e reabertura disponível em: http://www.gestaodeconcursos.com.br/

site/site/DetalheConcurso.aspx?CodigoConcurso=973

Quadro 5 – Arquivo de editais com irregularidades

Page 97: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

97

Finalmente, para que não restassem dúvidas sobre a inadequação das

formulações nos editais que sofreram controle, recorremos a outro arquivo, formado por

decisões tomadas pelos órgãos de controle. Denominamos esse arquivo, constituído por

sete Documentos (DOC), de D

(leia-se “arquivo de documentos do universo jurídico”);

nele, se inclui tudo que diz respeito ao Direito. Esse arquivo foi construído de acordo

com as especificações que seguem no Quadro abaixo:

Arquivo D

DOC1

Forma de controle Judicial

Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

Relator Conselheiro Elmo Braz

Concurso Prefeitura de Centralina/MG – Banca Prima Face

Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/497.pdf

DOC2

Forma de controle Judicial

Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

Relator Conselheiro Elmo Braz

Concurso Prefeitura de São João Del-Rey/MG – Banca FAUF

Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/643.pdf

DOC3

Forma de controle Judicial

Autoria Tribunal de Contas do Estado da Paraíba

Relator Conselheiro Fábio Túlio Filgueiras Nogueira

Concurso Prefeitura de Santa Rita – Banca FACET

Disponibilidade publicacao.tce.pb.gov.br/1f8eee89cc7c4dd47f22df48653e005c

DOC4

Forma de controle Judicial

Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

Relator Conselheira Adriene Andrade

Concurso Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais – Banca FUMARC

Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/542.pdf

DOC5

Forma de controle Judicial

Autoria Ministério Público Federal

Relator/Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho

Concurso Ministério Público Federal

Disponibilidade https://justutor.com.br/media/uploads/b66564c443984947866e30d6

bd34597a.pdf

DOC6

Forma de controle Judicial

Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

Relator Procurador Marcílio Barenco Corrêa de Mello

Concurso Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (Indi)

Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1623.pdf

Quadro 6 – Arquivo de documentos do universo jurídico

3.2.1 Do corpus discursivo para a segunda etapa da pesquisa

Uma vez estabelecido o arquivo com o qual pretendemos nos encontrar para,

respaldados por uma teoria, dar tratamento à matéria posta em análise na segunda etapa

Page 98: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

98

da presente pesquisa, torna-se necessário realizar um segundo movimento, de igual

importância ao primeiro (o do estabelecimento do arquivo): a construção do corpus

discursivo a ser tomado em análise tendo em vista a finalidade da investigação.

A noção de corpus em Análise de Discurso veio a ocupar uma posição

privilegiada a partir dos anos de 1980, quando os analistas da época se voltaram para as

leituras de arquivo. Pêcheux & Léon (2012 [1982]), ao tratarem sobre procedimentos

teórico-metodológicos em AD, incluem, entre estes, a questão da constituição do corpus

a partir da concepção de arquivo. Para eles:

(...) analisar uma materialidade discursiva supõe estruturar o campo

dos arquivos submetidos à análise, o que chamamos, por vezes, a

construção do corpus.

Nessa perspectiva, um corpus é um sistema diversificado,

estratificado, disjunto, laminado, internamente contraditório, e não

um reservatório homogêneo de informações ou uma justaposição de

homogeneidades contrastadas. (PÊCHEUX & LÉON, 2012 [1982], p. 165)

Já que um dos nossos objetivos é mostrar como, nas formulações de editais, a

polissemia irrompe no seio dos dizeres e sentidos estabilizados, balançando os

mecanismos de significação previamente instituídos, julgamos procedente pôr em

relação os enunciados formulados em edital que dispõem sobre a mesma matéria, o

mesmo referente, para dar visibilidade ao processo discursivo.

Pêcheux & Léon (2012 [1982]), propõem o procedimento de segmentação de

sequências discursivas autônomas (SDA), que são tratadas, na análise, como unidades

máximas de comparação. Entretanto, não tomaremos por base a noção de segmentação

proposta pelos autores73

. Para selecionar os enunciados a serem tomados como unidades

de comparação em uma cadeia de formulações sobre o mesmo referente, levaremos em

consideração a operação denominada recorte, assim como proposta por Orlandi

(1984)74

.

73

Ressaltamos, aqui, uma mudança no dispositivo de análise concebido por nós até o Exame de

Qualificação desta Tese de Doutorado, realizado em 06 de setembro de 2017. Até então, vínhamos

trabalhando com a noção de sequência discursiva autônoma; porém, em razão das valiosas observações

feitas pelas avaliadoras, julgamos oportuno alterar o tratamento que demos até aquele momento aos

enunciados selecionados do arquivo para a construção do corpus discursivo. Aproveitamos a nota para

renovar nossos agradecimentos à banca da Qualificação, formada pelas Professoras Doutoras Tania

Conceição Clemente de Souza, orientadora, Juciele Pereira Dias e Silmara Dela Silva. 74

Remetemos o leitor ao Capítulo 2, em que apresentamos essa noção.

Page 99: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

99

Mas o que justifica a opção por esse procedimento de análise? A própria posição

teórico-metodológica que esta operação ocupa na Análise de Discurso que vem sendo

produzida no Brasil. Para compreender o papel do recorte na construção do corpus

discursivo, precisamos retomar brevemente a perspectiva criada por Orlandi (1984),

para quem o recorte, por ser fragmento relacionado à “linguagem-e-situação”, constitui

uma unidade discursiva. O “recorte nos remete à situação de interlocução, e, de forma

mais abrangente, a particularidades que derivam da ideologia” (ORLANDI, 1983, p.

149). A sequência discursiva autônoma, entretanto, obtida pelo processo de

segmentação, é fruto de operações sobre a língua segundo os critérios sintáticos e as

marcas de enunciação (“o sistema modo-aspecto-tempo e os determinantes”)75

. A

passagem da noção de sequência discursiva autônoma – SDA – para a de recorte

discursivo – RD76

– vai ao encontro dos pressupostos teóricos e procedimentos

analíticos implantados hoje em Análise de Discurso. Essa passagem, como bem enfatiza

Orlandi (1984), representa um deslocamento da frase para o texto e, assim, para nós, da

língua para o discurso. Já que nossa intenção é, neste trabalho, dar visibilidade ao

processo discursivo em editais de concurso, a noção de recorte apresenta um melhor

funcionamento no âmago do nosso dispositivo analítico. Isso se justifica pelo fato de

que, ao fazermos um recorte de um fragmento do corpo de dado edital, não deixamos de

considerar sua relação com o todo textual, isto é, com a materialidade discursiva de

onde ele (o recorte) foi pinçado, e, principalmente, com as condições de produção sobre

as quais aquele edital fora formulado.

É justo salientar também que o recorte, no interior do arquivo, daquilo que se

pretende pôr em análise permite ao analista desenvolver seu trabalho em uma posição

menos desconfortável, uma vez que o recorte lhe dá a ilusão – favorável ao analista – de

unidade: caminha-se da dispersão do arquivo para unidade imaginária do corpus

constituído pelos recortes. Notamos o mesmo sentimento por Schneiders (2014, p. 104),

para quem:

(...) a noção de RD coloca-se como mais apropriada (...) permitindo

traçar, no interior de uma heterogeneidade e multiplicidade de

documentos que compõem o arquivo de pesquisa, uma ideia, mesmo

que imaginária, de unidade para o corpus de análise, unidade que se

estabelece no jogo com a heterogeneidade.

75

Confira a este propósito Pêcheux & Léon (2012 [1982], p. 167). 76

Retomamos a expressão e a sigla usadas por Schneiders (2014).

Page 100: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

100

Neste estudo, o corpus discursivo é construído a partir dos recortes operados

sobre os arquivos E+

, E-

e D, haja vista a finalidade da análise. Como pomos em

relação enunciados de editais que foram alvo de controle judicial e enunciados que não

sofreram qualquer forma de controle, ambos sobre o mesmo referente, foi necessário

construir dois corpora analíticos.

O primeiro corpus é formado por cláusulas de editais questionadas em razão da

forma como se dá a enunciação; nesses casos, a perspectiva construída pelo enunciador

rompe com os sentidos sedimentados, o que engendra a instabilidade de sentidos entre

os interlocutores. Esse corpus discursivo foi produzido basicamente a partir dos recortes

operados sobre o arquivo E-

.

O segundo corpus é estabelecido por cláusulas de editais que não sofreram

controle, uma vez que, em princípio, a enunciação não rompe com os sentidos já

instituídos. Esse corpus discursivo foi elaborado a partir dos recortes operados sobre o

arquivo E+

. Descrevemos detalhadamente a seguir os procedimentos adotados para a

construção de ambos os corpora.

(a) Do corpus discursivo I – referente aos arquivos E-

e D

Primeiramente, recortamos, do arquivo E-

, os fragmentos de editais que foram

alvo de questionamento em razão da maneira como o enunciado fora formulado em

determinado edital. Em seguida, procuramos identificar, no arquivo D, os sentidos já

instituídos que foram mobilizados pelo órgão de controle para questionar a respectiva

enunciação; recortamos, assim, para compor também o corpus I, o argumento do

universo jurídico que punha em xeque aquela formulação. Por último, recortamos, dos

respectivos editais retificados77

indicados no arquivo E-

, os fragmentos que

disciplinavam o mesmo conteúdo, agora formulados sem as irregularidades apontadas.

Para facilitar a visualização desses dados pelo leitor, dispomos os fragmentos recortados

em uma tabela com três colunas. A primeira coluna traz os recortes dos enunciados

formulados na publicação inicial do edital; a segunda coluna, os recortes dos enunciados

contidos nos pareceres e decisões dos órgãos de controle; a terceira, os recortes dos

77

Isso nos casos em que houve retificação. Como o leitor perceberá mais adiante, nem sempre o órgão

fiscalizado, responsável pela publicação do edital, acata as recomendações do órgão fiscalizador,

insistindo ora no jogo com equívoco da língua ora no silenciamento, para preservar sua posição de

império e fazer o indivíduo que participa do concurso manter-se na posição de assujeitamento ao Estado.

Page 101: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

101

enunciados retificados. Dessa forma, os recortes do arquivo E-

, conjugados com os

recortes do arquivo D, resultaram no corpus discursivo I, que o leitor poderá conferir

no ANEXO I deste trabalho.

(b) Do corpus discursivo II – referente ao arquivo E+

Para a construção do corpus discursivo II, tomamos os editais referenciados no

arquivo E+

e recortamos os enunciados que dispunham sobre a mesma matéria prescrita

pelos editais eivados de irregularidade, dispostos no corpus discursivo I. Como

estabelecemos um arquivo de editais sem falhas formado por quatro editais, recortamos,

dos quatro, os enunciados a serem relacionados como unidades de comparação. Assim,

os recortes operados no âmbito do arquivo E+

resultaram no corpus discursivo II, que o

leitor pode observar o ANEXO II do presente trabalho.

É importante frisar para o leitor que esses recortes foram organizados de acordo

com as matérias disciplinadas pelo enunciado posto em análise, matérias que

consideramos os pontos críticos em editais. São dez pontos críticos que colocamos em

análise e, no corpus discursivo II, eles aparecem na seguinte ordem: requisitos para

investidura, período de inscrição, limitação temporal para os antecedentes criminais,

devolução do valor da taxa de inscrição, direito à nomeação, critérios de desempate,

vagas destinadas a portadores de necessidades especiais, prazo para recursos, ausência

do programa de provas e previsão de vagas para negros.

Até aqui apresentamos ao leitor os dois movimentos (necessários para esta

pesquisa) realizados inicialmente para o estabelecimento do nosso dispositivo analítico:

seleção do arquivo e constituição do corpus. Preocupamo-nos em trazer para o leitor, a

partir desses movimentos, os corpora de análise construídos a partir do arquivo pinçado

dentro do universo de documentos atinentes ao tema. Além disso, estamos já balizados

pelo dispositivo teórico mobilizado nos Capítulos 1 e 2.

Page 102: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

102

4. História do Concurso Público no Brasil

4.1 O surgimento do concurso público

O concurso público é um processo administrativo produzido pelo Estado para

selecionar os candidatos mais aptos ao desempenho de cargos, empregos e funções

públicas. Esta tríade, Estado – candidato apto – Concurso, sempre esteve presente em

processos seletivos desde suas origens mais remotas.

Fiuza & Sapio (2012), em um estudo sobre a origem do concurso público na

China Antiga, ensinam-nos que os primeiros processos seletivos fundamentados na

meritocracia são datados entre os anos de 2.300 a.C. e 150 a.C.. Nesse período, a cada

três anos, os Oficiais do Império eram submetidos a testes de natureza física para que o

Estado avaliasse suas condições reais de saúde de modo a mantê-los ou dispensá-los do

exercício da função. Posteriormente, durante a Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.),

teriam surgido as primeiras avaliações escritas sob influência dos ensinamentos de

Confúcio. Como enfatizam Fiuza & Sapio (2012), o sistema filosófico que se formou

em torno de Confúcio defendia a necessidade de uma consciência lógica moral por

parte dos indivíduos para que uma sociedade harmônica fosse formada. Provavelmente,

foi em função dessa consciência moral que as avaliações escritas teriam sido instituídas

para os processos seletivos. Estava lançada, desde então, a base para a formulação do

princípio da moralidade, materialmente previsto, hoje em dia, em grande parte das

Constituições de Estado78

. Em um terceiro momento, no período da Dinastia Ming

(1.368 d.C. a 1.644 d.C.), os processos de seleção adquiriram uma elaboração mais

ampla, que previa diferentes níveis de exame para prover os cargos e funções estatais

com os mais capacitados para o exercício.

A prática de seleção com base em um sistema de mérito para a escolha do mais

apto ao exercício da função pública remonta, portanto, há mais de 4.000 anos. No

transcurso do tempo, difundiram-se diferentes práticas até a construção do instituto

jurídico do concurso público. De acordo com Cretella Júnior (1994 apud

AGLANTZAKIS, 2003), houve as seguintes formas de seleção na história das

civilizações: sorteio, compra e venda, herança, arrendamento, nomeação e eleição.

78

É o caso da nossa atual Constituição. O artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil

assim reza: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência”.

Page 103: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

103

Montamos o quadro sinótico abaixo, como base em Aglantzakis (2003), para o leitor ter

uma visão geral sobre essas formas de seleção.

Sorteio Sistema comumente usado durante a Antiguidade Clássica e a Idade Média. No

primeiro período, essa prática, difundida principalmente na Grécia, ficou marcada

pelo modo como os cargos políticos eram sorteados (havia o sorteio puro,

aplicado a pessoas que passavam por um processo seletivo prévio, e o sorteio

condicionado, aplicado a pessoas que detinham “condições apreciáveis”, uma

forma de reputação ilibada). No segundo período, a prática era válida entre as

comunas italianas, unidades básicas de organização territorial da Itália.

Compra e venda Usado durante a Idade Média, especialmente na França. Nesse sistema, o Estado

alienava os empregos públicos àqueles que o desejassem exercer, a título oneroso,

isto é, por meio de um contrato que implicava obrigações recíprocas entre ambas

as partes.

Herança Instituído igualmente durante a Idade Média. Nesse sistema, o ingresso em cargos

públicos era determinado por meio da hereditariedade.

Arrendamento Instituído pelas sociedades feudais da Idade Média. Por meio desse sistema, o

Estado concedia, por tempo determinado, os cargos públicos a particulares

mediante uma quantia arrecadada pelos cofres públicos.

Nomeação Sistema que consistia na designação de particular para dado cargo público.

Ficaram reconhecidas duas formas de nomeação: a absoluta, efetuada por um

único indivíduo sem interferência de qualquer poder, e a relativa, efetuada por

meio de um ato administrativo que previa a necessidade de manifestação de

vontade de um poder com a aprovação de outro poder.

Eleição Sistema que consiste na escolha de funcionário por meio de votação em escrutínio

(sufrágio).

No Estado moderno, o concurso público é o processo de provimento da maior

parte dos cargos públicos e se distingue dos outros sistemas de seleção por ser uma

“série complexa de procedimentos para apurar as aptidões pessoais apresentadas por um

ou vários candidatos que se empenham na obtenção de uma ou mais vagas e que

submetem voluntariamente seus trabalhos e atividades a julgamento de comissão

examinadora” (AGLANTIKIS, 2003)79

.

Nesse sentido, por se tratar de um processo realizado pelo Estado, que, por meio

dos poderes a ele atribuídos, seleciona sujeitos para compor seus cargos públicos, é

importante trazer para nossa discussão algumas noções centrais sobre essa forma de

organização política da sociedade (Estado) e sua relação com o poder e os sujeitos.

79

Por se tratar de um artigo que circula em ambiente virtual, não foi possível remeter à pagina em que

este fragmento se encontra.

Page 104: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

104

4.1.1 Algumas considerações sobre Estado, sujeito e poder

Na esteira do Direito, é possível apreender o conceito de Estado levando em

consideração quatro perguntas básicas: (1) O que é o Estado? (2) Que tarefas ele

realiza? (3) Do que ele necessita para realizar essas tarefas? (4) Que limitações ele tem?

Não é tarefa fácil dar resposta à primeira pergunta. Mesmo no domínio das

Ciências Jurídicas, onde se incluem as Teorias do Estado, não encontramos conceitos

uníssonos em razão da complexidade inerente à noção de Estado. Dallari (2007)80

, que

nos fala de uma posição privilegiada do Direito, apresenta-nos diferentes conceitos

sobre essa forma de organização social, os quais convergem, contudo, a um mesmo

ponto comum, que gostaríamos de destacar tendo em vista a perspectiva a ser traçada.

Segundo esses conceitos, o Estado seria: (i) “ordem coativa normativa da conduta

humana”81

, (ii) “corporação territorial dotada de um poder de mando originário”82

, (iii)

“unidade de dominação”83

, (iv) “institucionalização do poder”84

, (v) “monopólio do

poder”85

.

Todos os conceitos acima convergem no sentido de atribuir ao Estado poder:

poder de vigiar a ordem social; poder de criar, modificar e impor normas sobre aqueles

que lhe estão circunscritos; poder de fixar pena sobre aqueles que infringem as normas

por ele instituídas a ponto de restringir-lhes a liberdade, poder de criar e cobrar tributos

etc.

Temos, aqui, o fundamento necessário para responder sucintamente às questões

(2) e (3) que levantamos acima: o Estado, segundo as definições apresentadas, necessita

de poder para realizar o bem comum, sua tarefa essencial. Essa realização do bem

comum como finalidade geral do Estado é defendida por Dallari (2007, p. 108) ao

afirmar que:

(...) o Estado, como sociedade política, tem um fim geral,

constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais

sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim,

pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este

como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas

80

Julgamos oportuno trazer a voz de um dos maiores juristas brasileiros. Dalmo de Abreu Dallari é

Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP. Por isso ele fala de uma posição discursiva bem

específica, vinculada às Ciências Jurídicas. Temos, assim, um discurso do Direito sobre o Estado. 81

Conceito de Hans Kelsen (apud DALLARI, 2007, p. 119). 82

Conceito de Jellinek (apud DALLARI, 2007, p. 118). 83

Conceito de Heller (apud DALLARI, 2007, p. 117). 84

Conceito de Burdeau (apud DALLARI, 2007, p. 117). 85

Conceito de Gurvitch (apud DALLARI, 2007, p. 117).

Page 105: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

105

as condições de vida social que consistam e favoreçam o

desenvolvimento integral da personalidade humana.

É importante nesse ponto trazer para discussão a relação poder-Estado na esteira

da Filosofia. Em Dois ensaios sobre o sujeito e o poder, Foucault (1984) aponta para

um tipo de poder político que nasceu entre as instituições cristãs: o poder pastoral.

Ligado à instituição religiosa, essa é uma forma de poder que visa assegurar a salvação

do indivíduo no além-mundo. Essa forma de poder não se preocupa somente com a

comunidade como um todo, mas com cada indivíduo em particular; busca, assim,

conhecer o que se encontra na cabeça das pessoas (exploração de suas almas)

impelindo-as a revelar seus segredos íntimos.

O poder pastoral difere de outra forma de poder político que se desenvolveu

progressivamente a partir do século XVI. Foucault (1984) chama essa nova forma de

poder de Estado, “tipo de poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas

dos interesses da comunidade ou, deveria dizer, de uma classe ou de um grupo de

cidadãos escolhidos”86

. Segundo Foucault (1984), há, entretanto, no interior do Estado

ocidental moderno, que se desenvolveu a partir do século XVIII, uma complexa

combinação de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores,

combinação que, para ele, resulta da integração, por parte do próprio Estado moderno,

das antigas técnicas do poder pastoral, sob a égide de uma nova forma política.

Foucault (1984) sublinha que “o poder do Estado é uma forma de poder

simultaneamente globalizante e totalitária”87

. Por isso, ele não considera o Estado

moderno como uma entidade que tenha se desenvolvido deixando os indivíduos de lado,

mas “como uma estrutura muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados

sob uma condição: que forneça a esta individualidade uma nova forma e que a submeta

a um conjunto de mecanismos específicos”88

. Vemos, entre esses mecanismos

específicos, as leis, a doutrina do Direito, a jurisprudência e outros mecanismos formais

que visam assegurar direitos e impor obrigações aos indivíduos. O Estado moderno é

visto, assim, como uma “matriz de individualização” (uma nova forma de poder

pastoral). As estruturas de poder moderno realizam, segundo Foucault (1984), um

“duplo” constrangimento político: a individualização e a totalização.

86

Conferir página 5 da versão em português. 87

Idem nota anterior. 88

Conferir página 7 da versão em português.

Page 106: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

106

Ao encontro dessa linha de reflexão vem a perspectiva criada por Orlandi

(2012a) sobre o “duplo movimento na compreensão da subjetividade”89

: 1º)

interpelação do indivíduo (considerado em sua dimensão bio-psicológica) em sujeito

pela ideologia – essa é a forma de assujeitamento pela qual o indivíduo afetado pelo

simbólico na história se subjetiva, isto é, torna-se sujeito. O resultado dessa interpelação

é uma forma-sujeito histórica; 2º) individualização do sujeito pelo Estado – essa é a

forma de individualização pela qual a forma-sujeito histórica é individualizada pelo

Estado por meio de suas instituições. O resultado é, agora, um indivíduo (considerado

em sua dimensão social) construído pelo Estado.

Se juntarmos à perspectiva de Michel Foucault as reflexões que se

desenvolveram em torno da concepção althusseriana de interpelação ideológica, que

assujeita (ideologicamente) o indivíduo, isto é, transforma o indivíduo em sujeito,

fazendo nascer uma forma-sujeito histórica inscrita em uma conjuntura sócio-histórica

dada, teremos condições de ver como se deu o deslocamento da forma-sujeito do Estado

medieval, dotado do poder político pastoral, para a forma-sujeito do Estado moderno.

Compreendemos que a interpelação ideológica do indivíduo no Estado medieval

produzia uma forma-sujeito – o sujeito-religioso – subordinada a Deus e ao discurso

religioso, à Letra (HAROCHE, 1992). O progressivo deslocamento do poder pastoral

para o poder de Estado, deslocou simultaneamente o sujeito-religioso para outra forma-

sujeito – o sujeito-de-direito ou sujeito-jurídico – subordinado às Letras (HAROCHE,

1992), isto é, ao conjunto de mecanismos específicos, produzidos pelo próprio Estado,

que torna o indivíduo ao mesmo tempo livre e submisso.

O que dissemos até aqui nos abre espaço para pensar os deslizamentos de

sentido de Estado no transcurso do tempo. O poder pastoral era aquele que demonstrava

preocupação tanto com o aspecto individual quanto com o social, sendo que a

individualização era feita sobre a forma-sujeito histórica construída pela interpelação

ideológica produzida na formação social daquele período (medieval); dava-se, portanto,

sobre a forma sujeito-religioso. O primeiro deslizamento ocorreu do poder pastoral para

o poder de Estado que, em um primeiro momento (século XVI), enfatizava somente o

aspecto social, por preocupar-se apenas com os interesses da comunidade. A partir do

século XVIII, o Estado reintegrou a técnica de individualização do poder pastoral

deslizando, assim, o poder de Estado do século XVI para o poder de Estado moderno,

89

Rever Capítulo 2, página 65.

Page 107: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

107

que retornou sua preocupação para o aspecto social e para o individual. A

individualização, entretanto, faz-se agora sobre outra forma-sujeito, construída pela

interpelação ideológica produzida no interior do Estado moderno. A individualização é,

pois, sobre a forma sujeito-de-direito. O esquema abaixo visa facilitar a visualização dos

deslocamentos a que nos referimos.

Poder pastoral – ênfase no social e no individual

(individualização sobre a forma-sujeito-religiosa)

Poder de Estado – ênfase no social

Totalização (ênfase no social)

Poder de Estado Moderno

Individualização (ênfase no individual)

(individualização sobre a forma-sujeito-de-direito)

Há outro traço sobre o poder de Estado moderno que devemos destacar. O poder

inerente ao Estado no exercício de suas funções não é absoluto90

. Podemos, assim,

responder à questão (4) que formulamos no início afirmando que o Estado, na

atualidade, o Estado Democrático de Direito, esbarra em limitações no que diz respeito

ao poder que tem em suas mãos. É de se fazer notar os conceitos de Estado que

continuamos a apresentar a seguir:

(vi) “Força material irresistível (...) limitada e regulada pelo direito” 91

.

(vii) “Ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado

em determinado território” (DALLARI, 2007, p. 119).

Temos, assim, uma noção de Estado limitado e regulado pelo Direito com vistas

à realização do bem comum. Por meio das definições acima, que coroam a concepção

de Estado Democrático de Direito, vemos que o Estado não detém poder absoluto. No

90

Ao menos não o é mais. Lembremo-nos de que durante o Absolutismo, o monarca concentrava todos

os poderes em suas mãos, podendo até legislar mesmo sem o consentimento da sociedade. 91

Conceito de Duguit (apud DALLARI, 2007, p. 117).

Page 108: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

108

momento em que é constituído, seus criadores, verdadeiros titulares do poder92

,

reservam para si, no documento que institui o Estado – a Constituição –, um conjunto

de direitos em face ao ente que estão criando. Dessa forma, tanto o indivíduo (investido

em sua forma sujeito-de-direito produzida pela interpelação) quanto o Estado são

detentores de direitos (liberdades) e obrigações (deveres/limitações). Vale, assim,

referir-se ao Estado como Estado-de-direito, pelo fato de o exercício do poder estar

também limitado por um “conjunto de mecanismos específicos” que cerceiam suas

liberdades. O Estado-de-direito não possui uma liberdade sem limites.

Portanto, em uma forma de Estado como a nossa, direitos e deveres são

delimitados tanto para o Estado-de-direito quanto para o sujeito-de-direito, delimitação

que cria uma tensão constitutiva entre os dois pólos. Tensão produzida, ao mesmo

tempo, pelo Estado, que detém poder para individualizar e massificar os indivíduos, e

pelos sujeitos, que detêm em suas mãos “ferramentas” para assegurar o cumprimento

dos seus direitos. É nesse sentido que Gomes (2015, p. 81) assevera:

Se considerarmos Estado (Estado-de-direito) e cidadão (sujeito-de-

direito) como categorias jurídicas, podemos entender que Estado é

categoria que massifica os indivíduos, que não são considerados em

sua individualidade, mas como uma massa homogênea. Estado, como

o entendemos, é uma ficção histórica e politicamente constituída, já

que a homogeneização (busca por regularidade) é construída, não

espontânea.

Como dizíamos antes, as limitações impostas ao Estado têm como consequência

a criação de direitos para os sujeitos. É a esse conjunto de direitos resultantes das

limitações impostas ao Estado que a doutrina jurídica chama de Direitos Individuais,

Direitos Fundamentais ou Liberdades Fundamentais93

. Motta (2006, p. 65) embasa

nitidamente essa visão ao declarar:

Os Direitos Individuais representam um conjunto de limitações do

Estado em face das pessoas que com ele se relacionam. Pode-se dizer

que é um conjunto de direitos que assim se reservam os titulares do

poder no momento em que criam o Estado. Assim, ao redigirem a

Constituição, estabelecem limites ao ente que estão criando.

92

Afinal, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente

(...)” (CRFB, art. 1º, Parágrafo Único). 93

Silva (2008, p. 184), com base em nossa atual Constituição da República Federativa do Brasil,

classifica os direitos fundamentais em seis grupos: (i) direitos individuais (previstos no art. 5º), (ii)

direitos à nacionalidade (art. 12), (iii) direitos políticos (arts. 14 a 17), (iv) direitos sociais (arts. 6º e 193

e ss.), (v) direitos coletivos (art. 5º) e (vi) direitos solidários (arts. 3º e 225).

Page 109: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

109

Essas liberdades fundamentais têm origem no conjunto de documentos que

foram surgindo a partir de movimentos sociais que lutavam contra o poder absoluto do

Estado. Destaca-se, a título de ilustração, a Declaração de Direitos do Homem e

Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 1789, no auge

da Revolução Francesa.

Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade promulgados pela Revolução

Francesa permitiram, em cada país, por meio de suas Cartas Magnas – suas

Constituições –, o desenvolvimento de um conjunto de Direitos Fundamentais. Esses

direitos foram sendo conquistados pelo povo frente ao Estado em períodos diferentes da

história, de modo que podemos reconhecer, na atualidade, as Gerações de Direitos

Fundamentais.

De acordo com a visão clássica, temos três gerações de direitos94

: (a) Primeira

Geração, em que estão os direitos ligados ao ideal de liberdade, os quais impõem ao

Estado limitações ao poder de legislar em face aos indivíduos, que conquistaram suas

liberdades (situam-se, aqui, os direitos civis e políticos); (b) Segunda Geração, etapa

em que foram surgindo os direitos ligados ao ideal de igualdade (situam-se, nessa

geração, os direitos sociais, econômicos e culturais); (c) Terceira Geração, dimensão

dos direitos humanos relacionados ao ideal de fraternidade (estão, aqui, os direitos

referentes ao desenvolvimento econômico, à proteção do meio ambiente e à defesa do

consumidor)95

. Dentro desse rol de Direitos Fundamentais, interessa-nos,

especificamente, a Segunda Geração, por ter permitido o desenvolvimento dos direitos

sociais, dentre os quais se destaca o direito ao trabalho.

Optamos por iniciar essa apresentação tocando na formação histórica dos

direitos fundamentais assegurados ao sujeito-de-direito frente ao Estado-de-direito para

mostrar que, em um determinado momento da história, com vistas ao atendimento aos

direitos da Segunda Geração – em especial no tocante ao Direito do Trabalho –,

assistimos ao florescimento do concurso público, com todas as características que hoje

lhe são inerentes.

94

Há constitucionalistas que ampliam o rol das Gerações de Direitos Humanos, acrescentando a Quarta e

Quinta Gerações. 95

Cf. Motta (2006, p. 68-69) e Novelino (2009, p. 362-363).

Page 110: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

110

4.1.2. O concurso público no seio do Estado Moderno

Segundo Cretella Júnior (1994, p. 461 apud AGLANTZAKIS, 2003), o concurso

público “se desenvolveu, na França, a partir de Napoleão, depois de renhidas lutas

contra seus opositores, beneficiados por outros sistemas”. Lembremo-nos de que

Napoleão se situa no contexto histórico da Revolução Francesa e seus proclamados

ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. Contexto histórico do moderno Estado-de-

direito em que figura o sujeito-de-direito.

É pacífica a compreensão de que o deslocamento de um processo de seleção

pautado nos privilégios daqueles que detinham o poder em suas mãos para um processo

de seleção em que se põem candidatos em ampla concorrência com o objetivo de

selecionar o mais forte, o mais apto, o mais eficiente, operou-se durante a transição do

Estado Absolutista para o Estado-de-direito. O concurso, como meio de seleção de

funcionário público, é fruto do Estado-de-direito. E mais que isso: é fruto das conquistas

advindas do ideal de igualdade, que permitiu o desenvolvimento dos direitos sociais e,

inscritos nestes, os direitos ao trabalho. Afinal, o concurso é o instituto cujo propósito

“é assegurar igualdade de condições para todos os concorrentes, evitando-se

favorecimentos ou discriminações e permitindo-se à administração selecionar os

melhores candidatos ao cargo que estejam disputando” (AGLANTZAKIS, 2003)96

.

O concurso público vem, portanto, inscrito numa relação entre Estado-de-direito

e sujeito-de-direito, relação esta demarcada por um conjunto de direitos e obrigações

atribuídos a ambas as partes. Mas como se dá essa relação?

Com o objetivo de fugir das explicações de cunho jurídico, tentamos oferecer

uma interpretação discursiva para essa relação considerando a perspectiva teórica criada

por Pêcheux (1999 [1982], 2012 [1983]). No primeiro texto citado, Michel Pêcheux

estabelece uma relação entre dois universos de formulação do discurso: os universos

discursivos logicamente estabilizados e os universos discursivos não-estabilizados

logicamente. Os primeiros estão “inscritos no espaço da matemática e das ciências da

natureza, no das tecnologias industriais e bio-médicas, e na esfera social dos

dispositivos de gestão-controle administrativos”; nesses universos, figuram formulações

em um “núcleo duro lógico”, que visa assegurar um mundo semanticamente perfeito no

qual não sobra espaço para a ambiguidade e para o equívoco (ao menos pela ilusão do

96

Por se tratar de um artigo que circula em ambiente virtual, não foi possível remeter à pagina em que

este fragmento se encontra.

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111

não-equívoco para a produção de uma homogeneidade lógica). Os segundos são

“próprios ao espaço sócio-histórico dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos,

dos enunciados políticos, da expressão cultural e estética”; nesses universos figuram

formulações discursivas constitutivamente marcadas pela ambiguidade e pelo equívoco

(PÊCHEUX, 1999 [1982], p. 24).

Em O Discurso: estrutura ou acontecimento, Pêcheux (2012 [1983], p. 31)

desenvolve o que chamou de universos logicamente estabilizados. Nesses espaços

discursivos, afirma ele:

supõe-se que todo sujeito falante sabe do que se fala, porque todo

enunciado produzido nesses espaços reflete propriedades estruturais

independentes de sua enunciação: essas propriedades se inscrevem,

transparentemente, em uma descrição adequada do universo (tal que

este universo é tomado discursivamente nesses espaços).

Como dissemos acima, esses universos criam a ilusão de um mundo

logicamente, semanticamente perfeito, por meio do qual se pode determinar aquilo que

é verdadeiro ou falso. Para Pêcheux (2012 [1983], p. 34), a “necessidade universal de

um „mundo semanticamente normal‟” produz consequentemente a necessidade de

“disjunções e categorizações lógicas”, ou seja, torna-se necessário estabelecer

“fronteiras”. E acrescenta: “o Estado e as instituições funcionam o mais frequentemente

– pelo menos em nossa sociedade – como polos privilegiados de resposta a esta

necessidade” (de estabelecer fronteiras). Gomes (2015, p. 66), em sua interpretação

sobre essa perspectiva de Pêcheux, conclui que “estabelecido como espaço

administrativo, o Estado tem, entre outras funções, a de classificar os indivíduos de

acordo com critérios definidos que se alinham a uma lógica disjuntiva”.

Voltemos à questão do concurso. Para nós, em uma sociedade como a nossa, o

concurso público é um dispositivo administrativo de gestão-controle. Por isso, nós o

vemos como uma prática social que se inscreve no universo do logicamente estabilizado

que visa assegurar uma homogeneidade lógica entre o Estado-de-direito e o sujeito-de-

direito em um mundo tido como “semanticamente normal”. O concurso se torna, assim,

uma prática pela qual o Estado e suas instituições realizam disjunções e categorizações

lógicas visando à manutenção do logicamente estável. O concurso, por meio das

disjunções e categorizações, realiza uma “gestão social dos indivíduos” (PÊCHEUX,

2012 [1983], p. 30), pela qual eles são identificados, separados de acordo com critérios

definidos, comparados, colocados em ordem, classificados etc.

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112

Além disso, para nós, a inscrição do concurso em um espaço discursivo

logicamente estável não o torna um ritual sem contradições, falhas, faltas. Não que isso

represente, como enfatiza Pêcheux (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 51), um

“amolecimento do núcleo duro lógico”, mas por ser o equívoco algo próprio da língua,

lugar em que se materializa o discurso. Para Pêcheux (2012 [1983], p. 32), a

“homogeneidade lógica”, como uma necessidade do sujeito pragmático, é, sempre,

“atravessada por uma série de equívocos, em particular termos como lei, rigor, ordem,

princípio, etc que „cobrem‟ ao mesmo tempo, como um patchwork heteróclito, o

domínio das ciências exatas, o das tecnologias e o das administrações” (grifos nossos).

O discurso produzido na prática social do concurso pelas administrações do

Estado jamais estaria imune ao equívoco da língua. Os sentidos constituídos no âmbito

dessa prática não se imobilizam dentro da ilusão de um mundo semanticamente normal,

com uma homogeneidade lógica. Pelo equívoco constitutivo da língua, os sentidos,

também nessa prática, deslocam-se, estão suscetíveis de se tornarem outros.

Forma-se, assim, um movimento cíclico de deslocamentos de sentido na

produção discursiva do concurso público. Ele é cíclico, porque visa retornar o sentido

para um espaço logicamente estabilizado. Esse movimento, fruto da relação entre

Estado-de-direito e sujeito-de-direito (ambos com seus direitos e limitações) visa

alcançar sempre o logicamente estável, a homogeneidade lógica, dentro de um universo

de sentidos sujeitos ao equívoco. Acreditamos que é esse movimento cíclico de

deslocamento de sentidos que faz a prática discursiva do concurso público, como toda

prática discursiva, variar, deslizar para outra, no transcurso do tempo.

4.2. O concurso público no Brasil

Os manuais de Direito costumam apresentar o concurso público como uma

prática que ganhou propulsão no Brasil nos anos de 1930, quando passou a figurar

explicitamente na Constituição de 1934, a primeira a prever uma série de dispositivos

que regulavam o acesso aos cargos públicos das instituições vinculadas ao Estado. Não

devemos, com isso, afirmar que o concurso público não era uma prática produzida antes

em nosso país. De fato, se considerarmos nosso ordenamento jurídico como um todo, o

que inclui não somente a Constituição do país, mas também as leis (ordinárias,

delegadas, complementares etc.), os decretos, as portarias, as medidas provisórias, as

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113

resoluções etc., ficará nítido que o concurso público era uma prática legitimamente

organizada antes da Constituição de 1934.

Neste item, buscamos apresentar ao leitor uma breve história do concurso no

Brasil, considerando-o a partir de 1822, ano da Independência, o que não implica que o

concurso tenha surgido no país apenas depois de 1822. A prática já existia. Porém,

como temos que iniciar nosso gesto de leitura a partir de um ponto específico, optamos

por entrar no fio do processo discursivo referente ao concurso nesse período partindo da

hipótese de que, desde então, o Estado – independente – e suas instituições

administrativas buscariam por uma brasilidade na produção dos seus atos oficiais.

Como sinalizamos em nossa metodologia, vamos observar como os sentidos

relacionados à prática do concurso foram sendo constituídos e deslocados por nosso

ordenamento jurídico em seis diferentes momentos políticos: Brasil Imperial, República

Velha, Era Vargas, República Liberal, Ditadura Militar e República Federativa do

Brasil. Reiteramos também que a perspectiva que criamos aqui não se funda sobre

aquilo que já está pronto, dado, pelos manuais de Direito. Pelo contrário, tentamos

lançar um olhar diferenciado sobre a história do concurso a partir de um gesto de leitura

realizado sobre o discurso documental, sobre a memória de arquivo institucionalizada.

4.2.1. O concurso público no Brasil Imperial

Consideramos Brasil Imperial o período da história do Brasil que se estende do

dia 7 de setembro de 1822, com a Independência, até o dia 15 de novembro de 1889,

com a Proclamação da República. Na Constituição Política do Imperio do Brazil,

elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25 de

março de 1824, não encontramos qualquer referência ao instituto do concurso público.

Não há sequer qualquer referência a palavras que remetam à concepção de concurso:

seleção, certame, concorrência, candidato, edital.

Vemos esse silenciamento como constitutivo dos sentidos inerentes à prática de

seleção na época. O fato de não-dizer – isto é, não formular, no corpo de uma lei

outorgada pelo próprio imperador, os critérios de seleção – é uma marca discursiva que

nos permite identificar as atitudes e representações próprias da formação ideológica no

início do Império. Ao imperador cabiam as decisões sobre o seu governo; formulações

expressas no texto constitucional sobre os modos de seleção poderiam, assim, limitar

sua esfera de decisão pessoal.

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114

Já que não se falava em concurso, procuramos verificar como a primeira Carta

Magna previa a nomeação para o exercício de cargo público. Verificamos que o texto

constitucional referia-se a “nomear” e “prover”, mas sem qualquer previsão de

concurso. É o que podemos perceber nos trechos abaixo. Os grifos são nossos:

Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador:

VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado

Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita

pelos seus Ministros de Estado.

São suas principaes attribuições

II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos.

III. Nomear Magistrados.

IV. Prover os mais Empregos Civis, e Politicos.

V. Nomear os Commandantes da Força de Terra, e Mar, e removel-

os, quando assim o pedir o Serviço da Nação.

VI. Nomear Embaixadores, e mais Agentes Diplomaticos, e

Commerciaes.

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos

Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança

individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio,

pela maneira seguinte.

XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos

Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja

dos seus talentos, e virtudes. (Grifos nossos)

Vemos, aqui, um traço interessante. Embora se admita, em lei, que “Todo

cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos (...)”, tendo em vista exclusivamente

(“sem outra differença”) seus talentos e virtudes, não havia previsão (silenciamento) de

qualquer processo seletivo que pudesse definir o cidadão mais virtuoso e talentoso para

ocupar um cargo público. Era o Imperador que detinha o poder de nomear, prover e

demitir quem julgasse dotado dessas qualidades para o exercício das funções públicas.

Os cargos eram, portanto, de livre nomeação e exoneração por parte do monarca.

Esse poder conferido ao chefe estatal está inscrito em um modelo de sociedade

em que as relações de poder se manifestam entre dois polos: imperador x cidadãos,

sendo o imperador tomado na condição de “soberano” e os cidadãos tomados na

condição de “súditos”. Vale ressaltar que essa relação se faz visível no próprio texto

constitucional; no preâmbulo da Constituição de 1824, afirma-se: “DOM PEDRO

PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador

Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos

Súbditos (...)”.

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115

A palavra “súdito” nos remete à concepção de “não livre”, “submetido à vontade

de outrem” ou, mais precisamente, submetido à vontade do imperador. A forma-sujeito

histórica inscrita nesse modelo de formação social corresponde a um sujeito-de-direito

mais submisso que livre, e isso se faz notar na própria Carta Constitucional outorgada

por D. Pedro I. Sämy (2016), em um estudo sobre a positivação da “liberdade” em

nossas constituições, tomou as palavras “livre” e “liberdade” como palavras-pivô e

realizou um levantamento desses termos em todas as constituições formuladas no

Brasil. Na Constituição Imperial, a palavra “liberdade” aparece 3 vezes, “livre” apenas

2 vezes. Se compararmos com a atual Constituição Federal, em que as mesmas palavras

ocorrem, respectivamente, 17 e 28 vezes, é nítida a imagem que podemos ter do

cidadão-súdito circunscrito no Brasil Imperial. A relação jurídica fica, portanto,

estabelecida entre um Estado-de-direito a que se atribui mais liberdade que limitação e

um sujeito-de-direito a que se atribui mais limitação que liberdade.

Embora a Constituição Imperial não dissesse nada sobre a forma de seleção dos

cidadãos talentosos e virtuosos, há dois tipos de atos normativos do Império, leis e

decretos imperiais, destacados em nosso dispositivo de arquivo, que dispõem sobre o

concurso público. Dentro do recorte que fizemos no arquivo do nosso ordenamento

jurídico, o primeiro documento identificado como um referencial sobre o concurso data

de 1827. Trata-se da Lei de 15 de outubro de 1827, que determina a criação de escolas

de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Essa

lei faz impor o concurso público, mesmo sem usar ainda a palavra concurso. Ao tratar,

do artigo 6º ao 14, sobre os professores das escolas de primeiras letras, a lei determina

no artigo 7º que os/as pretendentes às cadeiras disponíveis deverão ser examinados(as)

publicamente perante os Presidentes, em Conselho, cabendo primeiramente a estes

prover o/a pretendente julgado(a) mais digno(a) para que, em seguida, o Governo faça

sua legal nomeação. O imperador, na condição de chefe de Governo, só poderia nomear

o professor para as cadeiras disponíveis, mediante prévia examinação entre

pretendentes, o que entendemos como concurso.

Um traço importante nessa lei é que ela determina alguns pré-requisitos para que

os/as pretendentes participem da examinação – para que sejam “admitidos à oposição e

examinados”, nos termos da lei em foco –; eles devem ser cidadãos brasileiros, em gozo

de seus direitos civis e políticos, sem nota da regularidade de sua conduta (artigo 9º) e

com reconhecida honestidade (artigo 12), pré-requisitos que constituem desde então um

domínio do saber próprio da formação discursiva em que se inscreve o concurso

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116

público. Mais um traço digno de nota, que também integra esse domínio do saber, é

diferenciação entre homens e mulheres que exercerão a mesma função (artigo 12). Às

professoras, compete o ensino do mesmo conteúdo de responsabilidade dos professores,

com exclusão das noções de geometria e limitação das noções de aritmética às quatro

operações fundamentais. Tais limitações são impostas porque passa a ser competência

das professoras também o ensino de prendas que sirvam à economia doméstica. Trata-

se, pois, de uma ponderação de atribuições – não de discriminação – de modo que as

professoras não ficassem com mais atribuições que os professores. No tocante à

remuneração e gratificações, a lei não faz nenhuma diferenciação, cabendo às mestras

os mesmos ordenados e gratificações concedidos aos mestres.

Pela leitura dos documentos tomados em nosso dispositivo de arquivo, a prática

de examinação de “pretendentes” para escolher o “mais digno” parece ter sido válida

para selecionar professores por toda a primeira metade do século XIX, mas não outros

profissionais para desempenhar outras funções. Vejamos o que dispõem as leis que

trouxemos para nosso dispositivo de arquivo.

A Lei de 15 de novembro de 1827, que versa sobre dívida pública e caixa de

amortização, ao tratar sobre o pessoal destinado ao serviço, do artigo 40 ao 47, dispõe

que haverá no estabelecimento inspetor, contador, tesoureiro, corretor, escriturário e

porteiro; os três primeiros são nomeados pelo Governo; os demais, por uma Junta de

Administração com a aprovação do Governo. Para esses cargos, portanto, a lei não nos

deixa antever se deve haver ou não processo de examinação entre pretendentes.

Outro ato normativo, a Lei de 1º de outubro de 1828, que dá nova forma às

Câmaras Municipais e trata das suas eleições e de seus Juízes de Paz, ao tratar no Título

V, dos seus empregados, toca apenas no ato de nomeação e demissão sem prever

qualquer forma específica de seleção de pessoal.

A Lei de 23 de novembro de 1841, que cria um Conselho de Estado, estabelece

que haverá 12 Conselheiros de Estado Ordinários e 12 Extraordinários, todos também

nomeados pelo Imperador; mas não há previsão de concurso. Outra norma do mesmo

ano, a Lei de 3 de dezembro de 1841, que reforma o Código de Processo Criminal, ao

tratar, no Capítulo I, da Polícia, dispõe que no Município da Corte e em cada Província

haverá um Chefe de Polícia, Delegados e Subdelegados, os quais serão nomeados pelo

Imperador. Nesta e em todas as previsões anteriores, fica evidente a falta de referência à

forma como será feita a escolha do cidadão a ser nomeado.

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117

Um ato normativo do Brasil Imperial valioso para nós é o Decreto N. 817 de 30

de agosto de 1851, pois determina como se deve proceder, em casos de vacância, para o

provimento definitivo do cargo de Serventuário dos Ofícios de Justiça e outros

Empregos inerentes a tais Ofícios (secretários, escrivães, curadores, porteiros, tabeliães,

promotores etc.). O provimento dos ofícios e empregos é disciplinado do artigo 10 ao

artigo 13. O procedimento descrito é o seguinte:

(i) assim que vagarem, os cargos devem ser providos temporariamente pelas autoridades

competentes, ficando estas incumbidas de comunicar ao Governo, na Corte, e aos

Presidentes, nas Províncias, sobre a existência da vaga e como ela está sendo

interinamente preenchida (art. 10);

(ii) as mesmas autoridades devem afixar editais nos Ofícios (a palavra edital como

instrumento de publicidade/convocação para o processo seletivo, a partir de então,

começa a figurar nas leis consideradas em nosso arquivo), editais estes que serão

reproduzidos nas capitais das Províncias, anunciando a vaga e convidando os

pretendentes a apresentar seus requerimentos no prazo de sessenta dias (art. 11);

(iii) findo o prazo, as autoridades remetem os requerimentos para o Presidente da

Província anexando informações sobre as habilitações e merecimento de cada

pretendente e, ainda, declarando se os pretendentes estão aptos ou não ao provimento

(art. 12);

(iv) o Presidente remete os requerimentos ao Governo, mais especificamente à

Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, acompanhados de informação sobre a

idoneidade de cada pretendente, declarando explicitamente se merecem o provimento

(art. 13).

Esse decreto traz um silenciamento sobre a maneira como será feita a escolha do

pretendente que será provido no cargo vago. Porém, ele é o primeiro dentro do nosso

dispositivo de arquivo que situa o gesto de afixação de editais na repartição em que se

deu a vaga e sua reprodução nas capitais. Não se fala explicitamente em concurso, e a

definição fica a critério do Governo com base na análise dos requerimentos

apresentados pelos pretendentes. A seleção é feita por julgamento de mérito com base

nas habilitações declaradas pelos pretendentes.

Nesse período, um dos atos normativos mais importantes do nosso recorte é o

Decreto N. 1.387 de 28 de abril de 1854, que dá novos estatutos às Escolas de

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118

Medicina. Nele encontramos explicitamente o instituto do concurso público, inscrito no

artigo 66 do decreto: “A nomeação dos oppositores será feita em virtude de concurso

público”. É o primeiro ato normativo do nosso recorte que traz o sintagma concurso

público. O concurso, entretanto, é uma prática aplicada para selecionar apenas

candidatos para o cargo de Lente Catedrático. Como já dissemos antes, a prática do

concurso nesse período parece ser, portanto, vinculada à seleção de professores.

Dentre os seus dispositivos, esse decreto disciplina como será feita a habilitação

dos candidatos, as provas, o provimento do cargo e prevê ainda a possibilidade de

realização de novo concurso em caso de inobservância das formalidades previstas

inicialmente. Esse decreto torna-se valioso por nos permitir ver como os sentidos sobre

a prática do concurso que temos até a atualidade foram sendo constituídos. Vale

destacar também que, além de prever a possibilidade de anulação do concurso (artigo

74, segunda parte) caso suas formalidades essenciais não tiverem sido observadas, o

decreto dispõe sobre o recurso ao Governo de candidato que se julgar prejudicado no

certame no tocante à sua habilitação e à de terceiros (artigo 67).

A transição da década de 1850 para 1860 parece ter sido decisiva para a irrupção

do concurso no contexto histórico-social do Brasil Imperial. Atos normativos

posteriores passam a dispor sobre a necessidade do concurso prévio ao provimento

efetivo de cargos vagos. Se até a década de 1850, o concurso foi predominantemente

uma prática de seleção de professores, a partir dessa década foi progressivamente se

tornando uma prática assumida pelas instituições públicas em geral para a seleção de

profissionais que desempenham diferentes ofícios.

Nesse sentido, é de se notar o Decreto N. 2.549 de 14 de março de 1860. Ele

regula o concurso e o provimento dos empregos do Tesouro Nacional e Tesourarias de

Fazenda das Províncias. Embora disponha especificamente sobre o provimento dos

empregos de Amanuenses, Oficiais das Secretarias das Tesourarias Fazendárias,

Praticantes e Escriturários do Tesouro Nacional, seus dispositivos constituem

verdadeiros parâmetros e procedimentos para a realização de concurso público. Vale

ressaltar que, logo no artigo primeiro, o decreto determina explicitamente que o

provimento desses empregos somente acontecerá por meio de concurso. Assim reza o

dispositivo: “Art. 1º O provimento dos empregos de Amanuenses, e Officiaes das

Secretarias das Thesourarias de Fazenda, de Praticantes, e das duas ultimas classes de

Escripturarios do Thesouro Nacional, e das mesmas Thesourarias de Fazenda só poderá

ter lugar por meio de concurso”.

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119

No âmbito do Decreto 2.549, há um sentido que irrompe no contexto social da

época que vai atravessar o tempo e se deslocar de diferentes maneiras. Esse sentido está

materializado no artigo 23, que assim estatui (o grifo é nosso):

Art. 23. Nas Provincias em que, por falta de estabelecimentos de

instrucção secundaria, não fôr possivel encontrar pessoas que tenhão

as habilitações exigidas por este Decreto para a admissão aos

empregos das Repartições de Fazenda nelle mencionadas, poderá o

Governo dispensar do exame, huma ou mais das seguintes materias:

Inglez, Francez, Geographia, Historia do Brasil, e algebra até

equações do 2º grão.

Os individuos, porém, que forem assim admittidos, não poderão ter

accesso para as outras Repartições, em que se exigirem taes

habilitações, salvo mostrando-se primeiro habilitados nas referidas

materias.

Devemos notar que, em 1860, em pleno Brasil Imperial, o Decreto implanta uma

política pública com a intenção de sanar desigualdades sociais. É o princípio da

igualdade sendo já aí aplicado: pessoas desiguais devem ser tratadas de modo desigual.

A institucionalização do concurso público afetou também os órgãos vinculados

às administrações das Forças Armadas. O Decreto 4.173 de 06 de maio de 1868, que

organiza o corpo de Fazenda Armada, no capítulo que trata da admissão de pessoal ao

serviço, estabelece, em seu artigo 10, o concurso público como forma de provimento

dos cargos disponíveis, concurso que será anunciado com a antecedência mínima de um

mês de modo que o público possa dele tomar conhecimento.

Outro Decreto que merece nota é o de N. 4.668, de 5 de janeiro de 1871, pois

eles traz alterações das disposições do Decreto N. 817 de 30 de agosto de 1851, que já

comentamos antes. Tais alterações dizem respeito exatamente aos modos como a

administração deve proceder, em caso de vacância, para o provimento definitivo dos

Ofícios de Justiça e outros empregados dessa repartição. Devemos observar que as

alterações são propostas 20 anos depois da primeira norma. Cabe-nos verificar que

deslocamentos foram operados.

No decreto de 1851, para a seleção do candidato ao posto de serviço, havia um

conjunto de procedimentos que não ensejavam o concurso. A seleção ficava a critério

do Governo. Além disso, esse decreto não mencionava qualquer forma de

questionamento por parte dos outros pretendentes que não foram escolhidos pela

Administração para o mesmo posto. O decreto de 1871 vem basicamente com estes

objetivos: delegar ao Presidente da Província o ato de nomeação e permitir aos

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concorrentes não preteridos entrar com recurso sobre a decisão. Para nós, este é o maior

mérito do Decreto de 1871: abrir espaço para a figura do recurso.

O Decreto N. 5.659 de 06 de junho de 1874, que dá nova organização à

Secretaria de Estado dos Negócios do Império, traz a palavra concurso explicitamente.

Ao tratar da nomeação dos Oficiais e dos Amanuenses das Secretarias, o ato não só

institui o concurso como o procedimento para prover tais empregos, mas também traz

os requisitos exigidos no certame. Em relação à publicidade, o decreto retoma um

sentido que, nessa época, já parece circular: “Art. 28 - Todos os concursos serão

anunciados com antecedência de 30 dias, em edital publicado pela imprensa”.

Há um movimento de sentidos interessante nesse Decreto: os artigos 25 e 27

abrem a possibilidade de nomeação de candidato aprovado em concurso anterior,

independentemente de novo concurso. Não se estipula, entretanto, ainda nenhum prazo

de validade de concurso público.

O Decreto N. 6.026, de 6 de novembro de 1875, que cria e dá regulamento à

Escola de minas em Minas Gerais, determina que a nomeação dos Professores

destinados ao serviço nessa instituição se dê mediante concurso. A figura jurídica do

contrato vem prevista também e se aplica para estrangeiros que venham servir naquela

repartição e serventes da Escola. Observa-se, portanto, que, para o desempenho de

função que exija grande conhecimento nas matérias, vigora o concurso público.

Estamos nos aproximando, nesse período, da transição do Império para a

República, que foi um deslocamento político necessário para a implantação da

burguesia no Brasil. Nesse contexto, o Decreto 9.420 de 28 de abril de 1885, que

consolida a legislação relativa aos empregos e ofícios de Justiça, é decisivo para a

instituição do concurso. Esse Decreto, logo no artigo 1º, consolida que nenhum Ofício

de Justiça, independente de sua denominação ou natureza, será provido sem realização

de concurso. O princípio do concurso público passa a ser aplicado para a seleção de

pessoal destinado desde os cargos mais baixos aos mais elevados na hierarquia do

Judiciário (o artigo 71 estatui que “o porteiro do Supremo Tribunal de Justiça é provido

pelo Governo, mediante concurso, como os demais serventuários vitalícios”). A figura

do concurso se torna imperativa a ponto de ter que ser realizado logo que um ofício se

torne vago (o artigo 135 determina que “logo que falecer o serventuário vitalício, ainda

que exista sucessor, será posto o ofício a concurso”).

Precisamos parar a descrição que vimos fazendo até aqui para tecer algumas

considerações sobre o contexto sócio-histórico e ideológico em que o concurso começa

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121

a se institucionalizar. Estamos em um período do Brasil (fins dos anos de 1880) em que

pressões internas e externas fazem o país caminhar para uma revolução burguesa.

Na Europa, a revolução burguesa já tinha sido operada por meio da Revolução

Inglesa (1640) e da Revolução Francesa (1789). Esses movimentos permitiram a

burguesia desenvolver as relações capitalistas de produção e exercer a dominação social

e a hegemonia política sobre os demais segmentos da sociedade (FERNANDES, 2006).

Segundo a interpretação do sociólogo Florestan Fernandes, em sua clássica obra

A Revolução Burguesa no Brasil, há dois acontecimentos que marcam o

desenvolvimento da burguesia em nosso país: a extinção da escravidão, declarada pela

Lei 3.353 de 13 de maio de 1888, e a Proclamação da República em 15 de novembro de

1889. De um lado, a relação de produção escravista não atendia mais às relações de

produção que se desenvolviam no Brasil e no mundo; por outro, o rompimento com a

monarquia, pelo que a França e a Inglaterra davam como exemplo, abria espaço para

uma nova forma de organização política do Estado, que teria maior autonomia e poder

de decisão.

A revolução burguesa no Brasil, segundo Fernandes (2006), dá início à

modernidade no país, marcada por uma sociedade capitalista em que as relações de

produção se dão entre aqueles que detêm os meios de produção (classe burguesa) e os

que vendem sua força de trabalho em troca de salário (classe operária). Nesse novo

Estado capitalista, as relações entre o Estado-de-direito e o sujeito-de-direito (sujeito-

capitalista) deslizam, tornando-se diferentes do modelo anterior. Como vimos acima,

aos sujeitos-de-direito circunscritos no modelo imperial eram atribuídas poucas

liberdades. Com o modelo burguês implantado, o Estado (burguês) tende a ir

progressivamente ampliando o rol de direitos para os sujeitos com uma finalidade bem

específica: manter sua própria relação de produção. Mas como fazer isso? Como manter

a aparência de que está tudo bem entre a classe burguesa e a operária para que se

perpetue a relação de produção capitalista?

Para nós, a melhor resposta a essa pergunta pode ser dada a partir dos

ensinamentos de Michel Pêcheux. Como nos ensina Pêcheux (1990 [1982], p. 10), “a

particularidade da revolução burguesa foi a de tender a absorver as diferenças rompendo

as barreiras: ela universalizou as relações jurídicas no momento em que se universaliza

a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos trabalhadores livres”. Ou, segundo as

palavras de Gomes (2015, p. 45), “a burguesia tende, portanto, a absorver as diferenças,

mascarando-as sob a unidade jurídica”.

Page 122: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

122

O Estado burguês, para manter sua relação de produção, instala, por meio de

suas instituições, por meio do Direito, a ilusão de igualdade, para mascarar ou apagar as

diferenças, quando, de fato, mantém essas diferenças sob o primando do próprio

Direito. Esse movimento de absorção de diferenças pela ilusão da unidade Gomes

(2015) chamou de “separeamento”. A ilusão da igualdade criada pela burguesia por

meio das instituições democráticas serve, antes de tudo, para assujeitar as classes

dominadas.

Acreditamos que não foi à toa que o concurso público começou a se

institucionalizar como uma prática da Administração Pública no exercício de sua função

de gestão-controle na transição do Império para a República. O Estado burguês, uma

vez implantado, acompanha as construções e representações da ideologia burguesa. É

por isso que veremos nas décadas seguintes o surgimento de diversos atos normativos

que visam assegurar o princípio da igualdade, apagando as desigualdades.

4.2.2 O concurso público na República Velha

Consideramos República Velha o período que se estende de 15 de novembro de

1889, com o ato de Proclamação, culminando na transição do Império para a República,

até 24 de outubro de 1930, dia do principal acontecimento que pôs fim à República

Velha: o Golpe de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do

presidente eleito Júlio Prestes.

Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, elaborada por

representantes do povo brasileiro reunidos em Congresso Constituinte e promulgada em

24 de fevereiro de 1891, também não encontramos qualquer referência ao instituto do

concurso público. Da mesma forma, não há referência a palavras como seleção e

certame que poderiam configurar como substitutas do termo investigado. Do mesmo

modo que na Constituição de 1824, verificamos que o texto constitucional de 1891

refere-se a “nomear”, “nomeação”, “funcionário público”, mas sem qualquer previsão

de seleção prévia à nomeação. É o que podemos perceber nos trechos abaixo (os grifos

são nossos):

Art 48 - Compete privativamente ao Presidente da República:

2º) nomear e demitir livremente os Ministros de Estado;

5º) prover os cargos civis e militares de caráter federal, salvas as

restrições expressas na Constituição;

Page 123: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

123

11º) nomear os magistrados federais mediante proposta do Supremo

Tribunal;

12º) nomear os membros do Supremo Tribunal Federal e os

Ministros diplomáticos, sujeitando a nomeação à aprovação do

Senado. Na ausência do Congresso, designá-los-á em comissão até

que o Senado se pronuncie;

13º) nomear os demais membros do Corpo Diplomático e os agentes

consulares;

Art 56 - O Supremo Tribunal Federal compor-se-á de quinze Juízes,

nomeados na forma do art. 48, nº 12, dentre os cidadãos de notável

saber e reputação, elegíveis para o Senado.

Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis

pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus

cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não

responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.

Parágrafo único - O funcionário público obrigar-se-á por

compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus

deveres legais.

Embora a Constituição de 1891 não preveja expressamente o concurso, os anos

de 1890, primeira década após a implantação de um governo republicano em 15 de

novembro de 1889, foram bastante produtivos no tocante ao concurso público. Por mais

que a Constituição de 1891 tenha silenciado regras atinentes ao provimento dos cargos

públicos, mesmo antes de sua promulgação, já no âmbito da República, houve uma

atividade legislativa notável sobre as formas de provimento.

Dentro do recorte que fizemos, só no ano de 1890, há 12 decretos – a maior

parte deles já foi revogada por legislação posterior – que determinam o concurso para o

provimento de cargos. Alguns decretos chegam a incluir capítulos ou seções para dispor

exclusivamente sobre concurso (veja, por exemplo, os Decretos 407/1890, 408/1890 e

810/1890).

Por meio dos decretos que tomamos a partir de 1890, vemos um traço peculiar

na forma de provimento dos cargos públicos: os postos de trabalho considerados

superiores em uma hierarquia eram ocupados por funcionário da carreira por meio de

um procedimento chamado de acesso, em que o funcionário sobe de posto por

merecimento e antiguidade. A ocupação dos postos mais baixos, entretanto, fica

subordinada a concurso. É o que vemos no Decreto N. 216 de 22 de fevereiro de 1890,

que dá nova organização à Secretaria do Interior (já revogado). Ele determinava que a

nomeação dos 2os

oficiais e dos amanuenses fosse precedida de concurso conforme o

disposto no Decreto 5.659 de 1874, enquanto os cargos de 1º Oficial eram providos por

acesso, isto é, por nomeação de funcionário já pertencente à estrutura de carreira em

Page 124: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

124

função de seu merecimento e antiguidade. Algo semelhante encontramos no Decreto N.

277 de 22 de março de 1890, também revogado em 1991. O art. 12 estatuía que as

promoções nos corpos sanitários fossem feitas dois terços por merecimento e um terço

por antiguidade, do primeiro para o segundo posto, e deste em diante somente por

merecimento; as nomeações para o primeiro posto deviam ser feitas por concurso. O

mesmo procedimento é seguido no Decreto N. 291 de 29 de março de 1890, que

reorganiza a Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Esse Decreto determina que

a nomeação de amanuenses está sujeita a concurso, enquanto as nomeações para outras

funções se dá por escolha do Governo ou por acesso.

No âmbito desses atos normativos, o Decreto N. 330 de 12 de abril de 1890,

revogado em 1991, desempenha papel importante. Dentro do recorte que tomamos em

nosso dispositivo de arquivo, esse decreto, que promulga o regulamento que organiza o

ensino nas escolas do Exército, estatui, do artigo 78 ao 86, um conjunto de

procedimentos para que o concurso seja realizado. São eles: (i) oito dias depois que o

comandante do Exército tiver conhecimento que a vaga se deu, a inscrição para o

concurso é aberta na secretaria da escola; (ii) o concurso é anunciado nas folhas de

maior circulação e no Diário Oficial contendo desde já a indicação do período de

inscrição dos candidatos – esse período nunca será menor de quatro meses nem maior

de oito; (iii) terminado o prazo de inscrição, reúne-se uma congregação para julgar a

admissão dos candidatos ao concurso e organizar a relação dos que foram habilitados

para o certame, que acontecerá dentro do prazo de três meses depois de encerrada a

inscrição; (iv) as provas consistem em defesa de tese, dissertação escrita, preleção oral,

arguição sobre as provas escrita e oral e prova prática nas matérias que a permitem; (v)

concluídos os atos do concurso, a congregação faz votação nominal, sendo excluídos os

candidatos que não tenham recebido dois terços dos votos; também pelos votos fica

determinada a classificação dos candidatos; (vi) em caso de empate, é o comandante da

escola que, com seu “voto de qualidade”, desfaz o empate.

Há dois detalhes importantes nesse decreto: 1º) o artigo 83 estatui que as provas

são reguladas por programas e instruções organizadas pela congregação e aprovadas

pelo Governo. É o primeiro ato normativo que vemos em nosso recorte prever

programas para as matérias exigidas no concurso. 2º) o artigo 86 prevê a possibilidade

de anulação caso tenha ocorrido desrespeito a alguma formalidade essencial.

O Decreto N. 371 de 02 de maio de 1890 (revogado por Decreto de 1991), que

aprova o regulamento do Colégio Militar, determina que o professor adjunto é nomeado

Page 125: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

125

por concurso, exceção feita às primeiras nomeações, que podem ser feitas sem concurso

e provas de habilitação. O Decreto N. 377-A de 05 de maio de 1890 (revogado por

decreto de 1991), que organiza a Secretaria de Estado dos Negócios da Instrução

Pública, determina que as nomeações para os cargos não ocupados após a

transferência de empregados de Secretarias antigas para a recém criada “poderão ser

feitas independentemente de concurso” (art. 7º). Mesmo que o concurso caminhasse

nesse período rumo à institucionalização, esses decretos nos permitem ver que os

próprios atos normativos da época deixavam uma margem de liberdade para atuação da

administração, que, por meio do mérito administrativo, isto é, pelo julgamento de

conveniência ou oportunidade, podia prover os cargos com ou sem concurso nas

circunstâncias indicadas acima (primeiras nomeações para o cargo de professor do

Colégio Militar e nomeação para cargo não ocupado após processo de transferência de

empregados).

Outra norma valiosa para nós é Decreto N. 379-A de 08 de maio de 1890

(revogado por Decreto de 1991), que reorganiza o Museu Nacional. Ele determina que a

nomeação dos diretores e subdiretores do Museu preceda a concurso sobre as matérias

da seção em que fossem empossados. O concurso constava de dissertação escrita e oral

e uma prova prática sobre pontos tirados à sorte. A norma ainda determina os pré-

requisitos necessários à admissão: ser cidadão brasileiro, ter capacidade profissional

(provada por títulos científicos de origem brasileira ou estrangeira e publicação de obras

ou memórias de notório mérito científico) e moralidade comprovada (veja todo artigo

17 do Decreto). O importante para nós é que esse decreto, dentro do nosso recorte, é o

primeiro a fazer referência a provas de títulos científicos e a considerar publicações de

candidatos como critérios de examinação. As provas de títulos, que hoje constituem

uma prática reiterada em muitos concursos, encontram ressonância em uma prática que

já se fazia presente nas administrações desde 1890. Outro fato importante é o tratamento

que este decreto dava ao estrangeiro que, segundo o parágrafo único do artigo 17, podia

ser nomeado para os cargos mencionados acima mesmo sem concurso desde que tivesse

se naturalizado brasileiro.

O Decreto N. 406 de 17 de maio de 1890 dava regulamento à Estrada de Ferro

Central do Brasil e foi revogado em 1991. Ele trazia de forma bem didática os modos de

provimento dos cargos em vigor na época: por livre nomeação, por acesso e por

concurso. Na prática de provimento dos cargos desse órgão específico (Estrada de

Ferro), eram nomeados por acesso, atendendo-se de preferência à aptidão e à

Page 126: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

126

assiduidade, os oficiais, os escriturários, os agentes de estação, seus ajudantes e fiéis, os

conferentes, os telegrafistas, os amanuenses e os condutores de trem – todos, portanto,

que já ocupassem algum posto naquele órgão. Por concurso eram admitidos apenas os

praticantes, para posto inicial na carreira. Todos os demais empregados não

especificados acima eram nomeados por livre escolha.

O Decreto N. 407 de 17 de maio de 1890, também revogado em 1991, aprovava

o regulamento da Escola Normal da Capital Federal. O capítulo X versava sobre o

preenchimento da vagas de professor. Os princípios e procedimentos eram os seguintes:

(i) os docentes eram nomeados por concurso, exceção feita ao momento inicial de

criação da Escola em que o Governo podia preencher as vagas sem concurso; (ii) ao

surgir uma vaga de magistério, o secretário a anunciava nos jornais mais lidos da

Capital abrindo a concorrência em noventa dias; (iii) os candidatos requeriam a

inscrição declarando os cargos antes exercidos, seus títulos e trabalhos pedagógicos,

literários e científicos; (iv) terminado o prazo para inscrição e não havendo candidato

inscrito, outro anúncio era feito pelo mesmo período do anterior, e, se não houvesse

inscrito, a nomeação para o cargo poderia ser feita independente de concurso; (v)

havendo concurso, os candidatos eram julgados por comissão, eleita pela congregação

da Escola, a qual competia propor ao Governo quem deveria ocupar a vaga; (vi)

terminadas as provas, caso houvesse concurso, todas eram julgadas pelos examinadores

habilitados pela congregação, os quais emitiam juízo escrito fundamentado sobre o

candidato; (vii) a comissão do concurso fazia a classificação dos candidatos e a

submetia à congregação para que esta fizesse a devida indicação ao Governo.

O Decreto N. 408 de 17 de maio de 1890, igualmente revogado em 1991,

aprovou o regulamento do Instituto Nacional de Cegos. Esse Decreto reservava um

capítulo inteiro – Capítulo XXII – sobre concurso público para o magistério, cujos

procedimentos eram assemelhados aos do concurso para a Escola Normal, descritos no

Decreto 407/1890. Resumimos os procedimentos: (i) publicação de anúncio informando

a abertura de inscrição com prazo nunca maior de três meses, as matérias da cadeira em

concurso, a natureza das provas e as condições que deviam ser cumpridas pelos

candidatos; (ii) aplicação de provas escrita, oral e prática das matérias que a admitiam;

(iii) julgamento pela comissão organizadora e indicação ao Governo do candidato que

recebesse a maioria dos votos. Traços importantes: (i) no começo da execução do

regulamento do Instituto, o Governo podia preencher as vagas existentes sem concurso;

(ii) o artigo 245 do decreto prevê que o candidato que já tivesse realizado a prova escrita

Page 127: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

127

e não pudesse realizar a oral por motivo de doença justificada faria a mesma prova em

até oito dias, não ficando assim excluído do certame.

O Decreto N. 429 de 29 de maio de 1890, que deu novo regulamento ao Hospital

da Marinha do Brasil, ao tratar dos escreventes do Hospital, estatuía que, mesmo o

concurso não sendo obrigatório para todas as funções, mas apenas para aquelas que o

regulamento determinasse (art. 129), no caso do provimento do cargo de escrevente

devia haver concurso, no qual o candidato devesse mostrar ter bom procedimento, idade

mínima de 18 anos, boa letra, conhecimento perfeito da gramática e da língua nacional,

aritmética e teoria das proporções (art. 65).

O Decreto N. 810 de 04 de outubro de 1890, revogado em 1991, alterou o

regulamento do Museu Nacional, inclusive no que diz respeito a concurso, reservando

um capítulo inteiro para dispor sobre o assunto. Esse decreto traz de novidade os

seguintes aspectos: (i) há referência a “programas especiais”, um conjunto de

disposições que determinavam como as provas eram realizadas; e (ii) após a votação

dos examinadores para a escolha dos candidatos em lista de classificação, o candidato

que não entrasse na relação dos apresentados ao Governo ficava impossibilitado de

prestar novo concurso para o mesmo cargo no prazo de três anos e, caso sofresse

alguma rejeição (o decreto não estipula as razões para isso), ficaria impossibilitado de

entrar em concurso para sempre. Fica evidente a aplicação de uma pena de caráter

perpétuo (art. 41), forma de penalidade que, hoje, está formalmente proibida pela

Constituição Federal (art. 5º, XLVII, b).

Retomando o que dissemos no item precedente, estamos em um período (1890)

de implantação da burguesia. O Estado burguês, para se perpetuar, precisa criar e

reproduzir mecanismos que deem ao cidadão a sensação de que ele é igual a seus pares.

E para isso a atividade legislativa desempenha papel importante. Todos os atos

normativos apresentados acima, mesmo sendo anteriores à promulgação da Constituição

de 1891, evidenciam que o concurso era uma prática que se institucionalizava para

colocar os cidadãos em pé de igualdade, mascarando quaisquer diferenças.

Após a promulgação da Constituição de 1891, encontramos apenas seis decretos

que dispõem sobre concurso. Vejamo-los.

O Decreto N. 1.940 de 17 de janeiro de 1895 é uma ferramenta valiosa para

vermos como os sentidos sobre o concurso foram sendo construídos. Nós o

consideramos, dentro do nosso recorte, como a primeira Lei de Concurso no Brasil,

pois, ao fornecer instruções para os concursos destinados ao provimento dos cargos de

Page 128: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

128

amanuenses e 2os

oficiais da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, dispõe

exclusivamente sobre concurso. Lembremo-nos que, em 1890, o Decreto N. 291,

comentado acima, já determinava que o cargo de amanuense fosse preenchido mediante

concurso. O Decreto de 1895 vem disciplinar como será realizado esse concurso. Os

princípios aplicados à seleção e os procedimentos do certame podem ser assim

resumidos:

(i) são feitos anúncios com antecedência de 15 dias pondo em concurso os cargos de

amanuenses e de 2os

oficiais que não tiverem sido preenchidos internamente – estes

cargos, segundo o artigo 2º, são preenchidos por concurso interno realizado entre

aqueles que já desempenham a função de amanuense;

(ii) forma-se banca de examinação;

(iii) para o cargo de amanuense, as provas são de caligrafia, língua portuguesa, francesa

e inglesa, noções de história do Brasil e geografia geral e aritmética. A prova de

caligrafia e língua portuguesa consiste em um ditado feito pelo examinador. O

candidato a este cargo pode, se quiser, prestar o exame em língua alemã, o que lhe

confere prioridade na nomeação constituindo critério de desempate (artigos 8º e 14);

(iv) para o cargo de 2º oficial, as provas são de língua alemã (tradução para o alemão de

textos ditados pelo examinador), princípios de direito internacional e direito público

nacional e redação;

(v) os candidatos são todos examinados sobre os mesmos pontos e conjuntamente;

(vi) as provas são públicas;

(vii) o candidato que não comparecer ou se retirar do recinto antes de fazer a prova fica

excluído do concurso;

(viii) há duas votações: primeiro, os examinadores votam, por escrutínio, logo depois

que os exames tenham terminado; essa votação se dá por meio de esferas brancas, que

indicam aprovação pelo examinador, e pretas, indicadoras de reprovação; em seguida,

os examinadores votam sobre o merecimento dos candidatos.

(ix) elabora-se uma lista de classificação que é remetida ao Ministro;

(x) caso não haja candidato habilitado para o concurso, as vagas são preenchidas por

livre escolha do Governo.

O Decreto N. 9.169-A de 30 de novembro de 1911, que dava nova organização a

algumas repartições da Marinha, também determinava o concurso como o procedimento

para prover o cargo de 4º Oficial da Secretaria da Marinha. Deve-se notar, nesse

decreto, que: (i) o concurso é anunciado com antecedência de 30 dias em Diário Oficial

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129

e em jornais de maior circulação na Capital Federal; (ii) exige-se idade mínima de 18

anos e máxima de 30 para concorrer ao posto; (iii) permite-se a inscrição de candidato

por meio de procuração legalmente estabelecida; (iv) não se admite inscrição de

candidato após o prazo estabelecido em edital; (v) há, implicitamente, a previsão de

uma espécie de validade do concurso, pois o artigo 128, § 5º, estatui que as vagas que

ocorrerem dentro de seis meses depois do último concurso serão preenchidas pelos

candidatos aprovados respeitada a ordem de classificação, a manutenção de bom

procedimento e o limite de idade de 30 anos. Esta previsão é, para nós, a semente do

que será estatuído, no futuro, como prazo de validade do concurso.

O Decreto N. 9.262 de 28 de dezembro de 1911, revogado em 1991, dispunha

sobre a reorganização da justiça do Distrito Federal. Em seus artigos 18 e 19,

determinava que os cargos de escrivão, distribuidor, contador, partidor, avaliador e

porteiro seriam preenchidos por concurso mediante o disposto no Decreto 9.420/1885,

que comentamos no item anterior. Os pretendentes ao cargo deveriam ser maiores de 21

anos, possuir pleno gozo dos direitos civis e políticos, ter moralidade e aptidão física

para o exercício do cargo, apresentar folha corrida e ser habilitado em exame de

suficiência. Do mesmo modo dispunha o Decreto N. 9.831 de 23 de outubro de 1912,

revogado em 1991, que versava sobre a Administração e a Justiça no território do Acre.

A única diferença entre este último e o primeiro é que o último prevê o ato de

publicação oficial de edital convocando os concorrentes a apresentar seus requerimentos

no prazo de 60 dias.

O Decreto N. 13.670 de 26 de junho de 1919, que dá novo regulamento à

Secretaria de Estado das Relações Exteriores, traz informações importantes sobre

concurso e elaboração de editais. É a primeira norma, dentro do nosso recorte, que

dispõe algo sobre a elaboração de edital. No tocante a concurso, o Decreto estabelece

que, para ser nomeado Terceiro Oficial, o interessado deve ter sido aprovado em

concurso, além de ser brasileiro, ter capacidade física, bom procedimento, idade de 18

anos e apresentar caderneta de reservista. Além disso, essa norma estatui as matérias

exigidas no concurso para o cargo em questão: caligrafia e datilografia, língua

portuguesa, francesa, inglesa e alemã (o candidato deve falar e escrever corretamente

pelo menos a primeira, entre as estrangeiras), história e geografia (especialmente do

Brasil), aritmética e noções de direito internacional público e privado, constitucional,

administrativo, civil, comercial e industrial. No que diz respeito aos editais de concurso,

o decreto estabelece que eles devem ser assinados pelo Diretor Geral da Contabilidade e

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130

que sua elaboração compete à Seção do Expediente de Pessoal. O Decreto N. 14.056 de

11 de fevereiro de 1920, que também regula a mesma Secretaria, amplia a competência

da Seção de Contabilidade, que passa a lavrar, segundo o art. 22, os editais de concurso

para os diversos cargos do Ministério das Relações Exteriores.

O Decreto 15.670 de 06 de setembro de 1922, revogado em 1944, aprovou o

regulamento para a Biblioteca Nacional. Esse ato normativo tinha uma seção inteira

para tratar sobre o provimento de cargos. O concurso é instituído como um

procedimento “comum à Biblioteca Nacional, ao Arquivo Nacional e ao Museu

Histórico Nacional” (art. 29) e por meio dele serão nomeados os amanuenses dos dois

primeiros e os 3os

oficiais do último. A inscrição para esses concursos era aberta na

Biblioteca Nacional e ficavam admitidos à inscrição os candidatos habilitados no curso

técnico – curso oferecido pela Biblioteca Nacional para habilitar candidatos ao referido

concurso. Os pré-requisitos que os candidatos deviam satisfazer eram: idade entre 18 e

30 anos e preencher as demais condições exigidas para o provimento em cargos

públicos federais.

4.2.3 O concurso público na Era Vargas

Como mencionamos no início do item precedente, no dia 24 de outubro de 1930

ocorreu o principal acontecimento que fez deslocar o sistema político do Brasil da

República Velha para a Era Vargas. Com o Golpe de 1930, Getúlio Vargas assumiu em

3 de novembro de 1930 a chefia do Governo Provisório e governou continuamente até

1945. Os historiadores tendem a distinguir, nesse ínterim de 15 anos, três momentos do

Governo Vargas: 1º) Governo Provisório, de 1930 a 1934; 2º) Governo Constitucional,

de 1934 a 1937; e 3º) Estado Novo (Ditadura), de 1937 a 1945.

Nesse período, duas constituições foram elaboradas: a Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho 1934) e a Constituição dos

Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de1937), cada qual relacionada a um

contexto sócio-histórico e ideológico diferente, como se pode ver pelos “preâmbulos”

inscritos em cada uma delas:

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em

Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar

um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade,

a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e

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131

promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS

ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. (Constituição de 1934)

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO

BRASIL,

ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz

política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de

desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios

partidários, que, uma notória propaganda demagógica procura

desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos

ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se

em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência

da guerra civil;

(...)

Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à

sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz

política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu

bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição,

que se cumprirá desde hoje em todo o País. (Constituição de 1937)

A primeira foi promulgada por representantes do povo brasileiro reunidos em

Assembleia Nacional Constituinte. O sujeito-enunciador é representado por “nós”,

“representantes do povo”. Faz apelo à fé em Deus, faz injunção à democracia e enaltece

princípios como liberdade, justiça e bem-estar social e econômico. A segunda foi

outorgada por Getúlio Vargas. Quem fala nesse texto é o próprio presidente; entretanto,

para conferir ao texto constitucional um efeito de sentido de objetividade, o sujeito-

enunciador é representado por “ele”, “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS

UNIDOS DO BRASIL”. O apelo à fé em Deus dá lugar à razão, levando em consideração

as condições sociais em que o país se encontrava naquele momento.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934) é a primeira

Constituição do país a fazer referência explícita ao instituto do concurso público. No

corpo textual dessa Carta Magna, a referência a concurso público é feita em 5 (cinco)

artigos. É o que podemos perceber nos trechos abaixo. Os grifos são nossos:

Art 95 - O Ministério Público será organizado na União, no Distrito

Federal e nos Territórios por lei federal, e, nos Estados, pelas leis

locais.

§ 3º - Os membros do Ministério Público Federal que sirvam nos

Juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só perderão

os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo

administrativo, no qual lhes será assegurada ampla defesa.

Art 104 - Compete aos Estados legislar sobre a sua divisão e

organização judiciárias e prover os respectivos cargos, observados os

preceitos dos arts. 64 a 72 da Constituição, mesmo quanto à

requisição de força federal, ainda os princípios seguintes:

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132

a) investidura nos primeiros graus, mediante concurso

organizado pela Corte de Apelação, fazendo-se a classificação,

sempre que possível, em lista tríplice;

Art 158 - É vedada a dispensa do concurso de títulos e provas no

provimento dos cargos do magistério oficial, bem como, em qualquer

curso, a de provas escolares de habilitação, determinadas em lei ou

regulamento.

Art 169 - Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando

nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de

dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude

de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado

por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.

Art 170 - O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários

Públicos, obedecendo às seguintes normas, desde já em vigor:

1º) o quadro dos funcionários públicos compreenderá todos os

que exerçam cargos públicos, seja qual for a forma do pagamento;

2º) a primeira investidura nos postos de carreira das repartições

administrativas, e nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á

depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos;

A Constituição de 1934 traz uma verdadeira revolução no que respeita ao

provimento de cargos públicos do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. O concurso

se torna obrigatório para a seleção dos membros do Ministério Público Federal (art. 95,

§ 3º); para o provimento de cargos do Judiciário, respeitada a legislação produzida pelos

Estados (art. 104, alínea a); para o provimento de cargos do magistério oficial, em que

se torna obrigatório não só o concurso de provas, mas também o de títulos (art. 158);

para a investidura em cargos das repartições administrativas do Legislativo ao qual a

Constituição atribuiu competência para produzir um Estatuto dos Funcionários Públicos

(art. 170, segunda parte).

Além dessa conquista – o concurso público – para o povo de modo geral, que

passa a ter chance de concorrer por cargos que antes estavam fechados para um grupo

específico de candidatos indicados por representantes de governo, a nova norma

constitucional implementa, em seu artigo 169, o princípio da estabilidade no serviço

público. Após dois anos no cargo (e em geral depois de dez anos de efetivo exercício), o

funcionário nomeado por concurso só perde o cargo, por meio de sentença judicial ou

processo administrativo, ficando assegurada sua ampla defesa. Essa forma de

estabilidade vai balançar depois, deslocando sentidos (voltaremos a isso mais adiante).

Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937), continua-se fazendo

referência explícita ao instituto do concurso público. Os dispositivos sobre esse instituto

continuam os mesmos, como podemos observar nos únicos trechos que tratam de

concurso (grifos nossos):

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133

Art 103 - Compete aos Estados legislar sobre a sua divisão e

organização judiciária e prover os respectivos cargos, observados os

preceitos dos arts. 91 e 92 e mais os seguintes princípios:

a) a investidura nos primeiros graus far-se-á mediante concurso

organizado pelo Tribunal de Apelação (...);

Art 156 - O Poder Legislativo organizará o Estatuto dos

Funcionários Públicos, obedecendo aos seguintes preceitos desde já

em vigor:

(...)

b) a primeira investidura nos cargos de carreira far-se-á

mediante concurso de provas ou de títulos;

c) os funcionários públicos, depois de dois anos, quando

nomeados em virtude de concurso de provas, e, em todos os casos,

depois de dez anos de exercício, só poderão ser exonerados em

virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo,

em que sejam ouvidos e possam defender-se.

Ambas as constituições, portanto, sinalizam o concurso prévio ao ato de

provimento de cargos públicos. Por essa razão, é comum Manuais de Direito situarem

esse instituto como uma conquista dos cidadãos a partir de 1930. Entretanto, nossa

leitura sobre o dispositivo de arquivo que trazemos para nossa pesquisa torna evidente

que a prática do concurso já estava institucionalizada no país antes de Vargas. Com

Vargas, o processo de seleção pública ganhou solo no texto constitucional, o que

representa, de fato, uma importante conquista para o cidadão, uma vez que direitos

instituídos por uma Constituição, a Lei Maior do Estado, ficam, em princípio, menos

vulneráveis a modificações ou supressões.

Uma das construções mais importantes desse período para a questão do concurso

público foi a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP. Esse

órgão já estava previsto na Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937, no

artigo 67, que assim estatuía:

Haverá junto à Presidência da República, organizado por decreto do

Presidente, um Departamento Administrativo com as seguintes

atribuições:

a) o estudo pormenorizado das repartições, departamentos e

estabelecimentos públicos, com o fim de determinar, do ponto de

vista da economia e eficiência, as modificações a serem feitas na

organização dos serviços públicos, sua distribuição e agrupamento,

dotações orçamentárias, condições e processos de trabalho, relações

de uns com os outros e com o público;

b) organizar anualmente, de acordo com as instruções do

Presidente da República, a proposta orçamentária a ser enviada por

este à Câmara dos Deputados;

c) fiscalizar, por delegação do Presidente da República e na

conformidade das suas instruções, a execução orçamentária.

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134

Mas foi o Decreto-Lei nº 579 de 30 de julho de 1938 que criou o DASP e

atribuiu, entre outras, a seguinte competência: “selecionar os candidatos aos cargos

públicos federais, excetuados os das Secretarias da Câmara dos Deputados e do

Conselho Federal e os do magistério e da magistratura” (art. 2º, alínea d). O DASP se

manteve como órgão executor de seleção e aperfeiçoamento de pessoal até 1986,

quando foi extinto e substituído pela Secretaria da Administração Pública da

Presidência da República – SEDAP – pelo decreto nº 93.211 de 3 de setembro de 1986.

A atividade legislativa sobre o concurso público não se deu apenas nas

Constituições da Era Vargas. Há vários atos normativos (decretos, leis ordinárias e

decretos-leis) do nosso ordenamento jurídico que dispuseram normas relativas a

concurso entre os anos de 1930 e 1945. Passamos a descrever os principais aspectos

sobre concurso previstos nessas normas.

O Decreto nº 19.851 de 11 de abril de 1931, revogado em 1991, que tratava do

ensino universitário, apresenta um título inteiro para falar sobre o corpo docente das

universidades. Esse decreto reconhece quatro tipos de docente: professor catedrático,

auxiliar de ensino, docente livre e professor contratado.

Para o provimento de cargo de professor catedrático é obrigatório o concurso de

título e de provas. No concurso de títulos, em que se visa avaliar o mérito do candidato,

são apreciados: os diplomas e outras dignidades universitárias e acadêmicas, os estudos

e trabalhos científicos, as atividades didáticas já exercidas e as realizações práticas de

natureza técnica ou profissional. No concurso de provas, que objetiva mensurar a

erudição, a experiência e a didática do candidato, há defesa de tese, prova escrita, prova

prática ou experimental e prova didática.

Para a função de auxiliar de ensino, o decreto não estabelece qual seria a forma

de seleção, deixando, no Parágrafo Único do artigo 68, aos institutos universitários a

regulamentação das condições de admissão.

O docente livre é um título conferido, segundo os critérios definidos em

regulamento de cada instituto universitário, ao candidato que demonstre, por um

concurso de títulos e de provas, capacidade técnica, científica e didática (art. 75). Desse

concurso, conforme preceitua o artigo 70, devem fazer parte os professores auxiliares

nomeados dois anos antes sob pena de perda automática do cargo.

No tocante ao professor contratado, o decreto não dispõe sobre sua forma de

seleção. Sua contratação parece ficar por juízo de mérito do instituto universitário, que

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135

contrata professor brasileiro ou estrangeiro em razão de suas vantagens didáticas ou

culturais (art. 71, § 1º).

O concurso público é imposto como um procedimento obrigatório para o

provimento do cargo de professor catedrático e docente livre, e os mesmos

procedimentos adotados para a seleção de docentes se tornam recorrentes na

administração pública brasileira da época para o provimento de diferentes cargos

públicos. Vemos tais procedimentos, dentre tantos outros atos normativos que não

tomamos para descrição em nosso recorte, no Decreto nº 20.865 de 28 de dezembro de

1931, revogado em 1990; no Decreto nº 23.122 de 09 de setembro de 1933, revogado

em 1990; no Decreto nº 23.196 de 12 de outubro de 1933, ainda em vigor; e no Decreto

nº 23.512 de 28 de novembro de 1933, também revogado em 1991.

O Decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931, revogado em 1991, dispunha sobre

a organização do ensino secundário. Nele, há cláusulas sobre concurso, considerado

obrigatório para nomeação de docente do Colégio Pedro II (do artigo 14 ao 17) e de

inspetores (do artigo 58 ao 64). Um princípio digno de observação que esse decreto

institui é sobre a estabilidade do professor catedrático no serviço público. Na verdade,

não se trata de estabilidade, mas de “instabilidade”, pois o artigo 17 determinava que,

após 10 anos da nomeação, o professor, caso quisesse, podia se candidatar à recondução

no cargo, havendo novo concurso no qual só podiam concorrer professores de outras

instituições que também tivessem sido nomeados por concurso. Era uma forma de tratar

os candidatos à recondução com igualdade. O professor do Colégio Pedro II cumpria

suas funções, portanto, em um interstício máximo de 10 anos, só podendo permanecer

no cargo se fosse aprovado em novo concurso.

No caso de concurso para inspetor, há pontos que também merecem nota: (i) a

nomeação por concurso era apenas para inspetor, função inicial de carreira, pois para a

função de inspetor geral mantinha-se o processo de acesso; (ii) além dos pré-requisitos

sempre enunciados, a idade determinada era de 22 anos, no mínimo, e 35, no máximo;

(iii) as notas das provas eram graduadas de zero a dez – é o primeiro ato normativo, no

nosso recorte, que versa sobre nota e não votação com esferas pelos examinadores, o

que torna o processo seletivo menos subjetivo por parte da administração; (iv) a

aprovação no concurso parece implicar, segundo o artigo 64, direito subjetivo à

nomeação se houver vaga, respeitada a ordem de classificação; (v) é introduzido prazo

de validade do concurso de 3 anos para este concurso especificamente, perdendo o

candidato o direito à nomeação depois desse período. Por conseguinte, do Decreto nº

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136

19.890 de 18 de abril de 1931, é importante reter que, por meio dele, podemos

vislumbrar, já no início dos anos de 1930, a presença de critérios de julgamento por

nota, imposição de prazo de validade do concurso e, principalmente, o delineamento do

princípio do direito subjetivo à nomeação.

A essa altura, o concurso público é instituto amplamente usado em diferentes

repartições para a seleção de pessoal qualificado para o exercício da função pública.

Citemos dois exemplos com base no recorte que fizemos na legislação: para admissão à

carreira consular – Decreto nº 24.113/1934 – e para o quadro de Intendentes de Guerra

do Exército – Decreto nº 24.287/1934.

Tomamos em nosso recorte um Decreto do final do período em análise – Era

Vargas: é o Decreto nº 13.609 de 21 de outubro de 1943, que, embora tivesse sido

revogado em 1991, voltou a valer no mundo jurídico em 1993 em virtude de outro ato

normativo (Decreto de 22/06/1993) ter tornado a revogação sem efeito. O Decreto

13.609/43 regula o ofício de tradutor público e intérprete comercial. Seu artigo 1º

mantém o concurso público (de provas apenas) como procedimento a ser tomado para

seleção de tradutor e intérprete. O que devemos notar é a tempestividade atribuída ao

processo seletivo. O artigo 2º declara que

Criado um ofício ou declarada qualquer vaga dentro do limite que for

fixado, a Junta Comercial ou o órgão correspondente fará publicar no

jornal oficial, dentro de 10 dias e no mínimo por três vezes, edital

com prazo não inferior a 60 dias, declarando aberto o concurso que se

realizará em sua sede e tornando conhecidas as condições para a

inscrição dos candidatos.

Falamos em tempestividade do processo seletivo porque, naquela época, uma

vez reconhecida a vaga, ela era colocada em concurso. Além disso, o mesmo artigo traz

o princípio da ampla publicidade do concurso, o prazo do edital e as condições que os

candidatos devem respeitar para se candidatar à vaga. Outros princípios que esse

decreto mantém são: (a) o do provimento do cargo com respeito à classificação dos

candidatos em concurso e (b) o prazo de validade do concurso, estipulado, nesse caso,

em um ano.

Há outro princípio estatuído nesse Decreto que é novo para nós, considerando o

recorte que trazemos em nossa pesquisa: trata-se do prazo para posse. O artigo 11

estipula que se o candidato aprovado e nomeado não tomar posse no prazo de 30 dias

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137

contados a partir da data da nomeação perderá o direito que lhe cabe em favor de outro

candidato da lista de classificação.

Antes de passarmos para o próximo item, é necessário fazer uma ressalva. A

partir desse período, Era Vargas, encontramos uma intensa atividade legislativa que

visava regular profissões, funções, cargos e empregos públicos. Muitas leis foram

produzidas tomando outras como modelo, numa espécie de espelhamento, sendo feitas

apenas as adaptações necessárias para dispor sobre dada profissão/função. Por essa

razão, no nosso recorte, selecionamos apenas os atos normativos que, por nosso gesto

de interpretação, introduziam algum sentido novo na prática do concurso.

4.2.4 O concurso público na República Liberal

República Liberal é o nome atribuído pelos historiadores ao breve período que

se estende de 1945 a 1964. Em 1945, o Brasil saía de um regime ditatorial implantado

por Vargas em 1937 (Estado Novo), regime que fora retomado em 1964 com o Golpe

Militar. A República Liberal constitui, assim, um hiato entre duas ditaduras, um lapso

temporal em que o país pode reexperimentar a democracia, com a qual Vargas havia

rompido em 1937.

É importante levar em consideração que o contexto sócio-histórico e ideológico

em que irrompe a República Liberal é marcado pelas transformações sociais,

econômicas, políticas e culturais operadas a partir de 1930. O país passava por amplo

processo de modernização em seus variados setores. Sobre o aspecto político, devemos

reter o fato de muitos governantes desse período terem produzido um discurso

fundamentado em projetos sociais – os de maior destaque nesse sentido foram Getúlio

Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964) – o

que fez esse regime democrático ser considerado de base populista.

A legitimação do novo regime democrático é feita com a promulgação, em 18 de

setembro de 1946, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Em seu preâmbulo,

vemos ecoar os mesmos efeitos de sentido produzidos pela Constituição de 1934 com o

objetivo de retomar a democracia. Assim reza a abertura da Carta de 1946: “Nós, os

representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia

Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a

seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil”. O sujeito-enunciador volta a se

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138

representar na primeira pessoa do plural, “nós”, “representantes do povo”, retorna o

apelo à fé em Deus e volta a fazer injunção à democracia.

Nesse contexto de democracia, o concurso público mantém-se no texto

constitucional de 1946. A Lei Maior determina que o ingresso na carreira da

magistratura (art. 124), do Ministério Público (art. 127), do magistério no ensino

secundário e no superior oficiais (art.168) depende de concurso público. Além disso,

determina-se também que a primeira investidura em qualquer cargo de carreira deve ser

efetuada mediante concurso (art. 186).

A principal inovação que a Carta de 1946 traz é o comando constitucional que

versa sobre a estabilidade no serviço público em virtude do concurso. Segundo o artigo

188, os funcionários efetivos nomeados por concurso são estáveis após dois anos de

exercício, enquanto os efetivos nomeados sem concurso se tornam estáveis apenas

depois de cinco anos de exercício.

Entre os demais atos normativos do nosso ordenamento jurídico, o Decreto nº

37.396 de 26 de maio de 1955 traz contribuições importantes para prática do concurso

público. No recorte que fizemos sobre a legislação, esse é o primeiro ato normativo que

visa estabelecer “normas práticas gerais para vigorar nas aberturas de concurso”.

Embora se aplique a concurso para provimento de vagas de professor de instituições

vinculadas às Forças Armadas, o decreto adota práticas que serão reiteradas em outros

concursos. Por isso, nós as descreveremos a seguir.

A primeira delas é a adoção de um sistema de avaliação por provas e títulos (art.

2º, § 1º). As provas são de quatro tipos: teórico-escrita, prática ou experimental, didática

e defesa de tese. Outro traço importante nesse decreto é que ele determina a publicidade

do concurso por meio de edital de modo que as condições de inscrição e a maneira

como o certame será realizado sejam conhecidas por todos (art. 2º, § 4º). Além disso, a

norma determina que o resultado final do concurso será amplamente anunciado por todo

o Brasil, através dos órgãos divulgadores (art. 2º, § 8º)

É no seio da República Liberal que nasce a primeira formulação de um Estatuto

dos Funcionários Públicos Civis da União. A Lei no 1.711 de 28 de outubro de 1952

estatuiu um conjunto de princípios jurídicos que governaram o funcionalismo público

federal até 1990, quando foi revogada pela Lei 8.112/1990, sobre a qual falaremos mais

adiante. Em razão do seu teor e suas disposições acerca do concurso público, iremos nos

deter um pouco mais à lei nº 1.711/1952. Resumimos os sentidos ali implementados nos

seguintes itens:

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(i) a lei retoma o princípio da Constituição de 1946 segundo o qual a primeira

investidura em qualquer cargo de carreira deve ser efetuada mediante concurso;

(ii) o concurso podia ser de provas ou títulos e, também, de provas e títulos;

(iii) uma vez aberto o concurso, ele deveria ser homologado no prazo de doze meses;

(iv) para tomar posse, o candidato deveria satisfazer os seguintes requisitos: ser

brasileiro, ter completado dezoito anos, estar em gozo dos direitos políticos e quite com

as obrigações militares, ter bom procedimento, gozar de boa saúde comprovada em

inspeção médica, possuir aptidão para o exercício da função e ter se habilitado em

concurso.

4.2.5 O concurso público durante a Ditadura Militar

Em 1º de abril de 1964, o golpe militar encerrou o governo democrático da

República Liberal ao depor o presidente eleito João Goulart. As Forças Armadas, por

meio de um golpe de Estado, assumiram o poder implantando um regime de Ditadura

Militar, que se estendeu até janeiro de 1985. Nesse lapso temporal de quase 21 anos, o

Brasil experimentou o governo de cinco presidentes militares – Castelo Branco, Costa e

Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, respectivamente – e recebeu uma nova Carta Magna,

a Constituição de 1967, que teve nova redação em 1969 conferida pela Emenda

Constitucional nº 1 de 17/10/196997

.

É importante destacar que Constituição da República Federativa do Brasil de

1967/1969 é considerada pela maior parte dos doutrinadores do Direito nacional como

uma constituição outorgada98

. Embora, o preâmbulo dessa Constituição declarasse que

“O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a

seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”, não se pode considerar essa

Lei como um ato promulgado, uma vez que ela não evoca a participação do povo.

A leitura do arquivo resultante da atividade legislativa nesse período (1964-

1985) evidencia que a disposição sobre concurso público não se deu no tocante ao

aspecto quantitativo, mas no qualitativo. Não encontramos, no amplo campo de

documentos referentes a concurso naquela época, tantos atos normativos que tratassem

do tema; entretanto, os que encontramos indicam que as prioridades do governo militar

97

Em razão da EC de 17/10/1969, iremos nos referir a partir de agora apenas à Constituição de 1969. 98

Confira a este respeito Silva (2008, p. 41). Para ele, as Constituições brasileiras de 1824, 1937 e 1967

foram todas outorgadas, uma vez que foram elaboradas e estabelecidas sem a participação do povo.

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140

foram as de organizar o que já estava instituído, fixando princípios e normas que

disciplinassem o ingresso nos cargos públicos. Para a construção do nosso dispositivo

de arquivo, pinçamos os atos normativos que descrevemos a seguir.

Considerando, de início, a Constituição de 1969, verificamos que muito do que

já tinha sido dito nas cartas constitucionais anteriores ressoa na de 1969. O concurso

público continua sendo referido como o procedimento necessário para selecionar

candidatos para o ingresso no Ministério Público federal (art. 95), na Magistratura

federal (art. 123), na Magistratura estadual (art.144) e no Magistério das redes oficiais

de ensino médio e superior (art. 176). De modo geral, repetindo o que já estava dito na

Constituição de 1946, “a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação

prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados

em lei” (art. 97, § 1º), exceção feita para os cargos em comissão, declarados em lei, de

livre nomeação e exoneração.

Em sentido amplo, o artigo 97 da Lei Maior determina uma série de princípios

atinentes ao concurso, princípios estes que se perpetuarão em leis posteriores. Ao

primeiro desses princípios a Doutrina do Direito e a Jurisprudência em geral costumam

se referir como princípio do amplo acesso aos cargos públicos, pelo qual se constitui o

sentido de que todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei

podem ter acesso aos cargos públicos. Outro princípio que fica bem definido no corpo

da Constituição de 1969 é o da estabilidade no serviço público; de acordo com o artigo

100, os funcionários nomeados por concurso tornam-se estáveis após dois anos de

efetivo exercício.

No tocante aos deslocamentos operados, vemos irromper no seio da Constituição

de 1969 dois sentidos novos. O primeiro fixa pela primeira vez o prazo máximo de

validade do concurso, que não pode passar de quatro anos contados a partir da data da

homologação (art. 97, § 3º). O segundo eleva o instituto do concurso público da posição

de procedimento para a posição de princípio a ser adotado pela legislação de ensino (art.

176, § 3º, inciso VI). Assim, o provimento dos cargos de carreira do magistério oficial,

como já sinalizamos acima, depende de concurso público prévio para que seja legítimo.

Como vimos no item precedente, a Lei no 1.711 de 28 de outubro de 1952, que

estabeleceu o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, embora tenha feito

sistematizações acerca do concurso, deixou lacunas sobre a maneira como a

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141

administração deveria proceder no processo de seleção99

. Para preencher essas lacunas e

outras deixadas até então pela legislação, o Decreto nº 55.003 de 13 de novembro de

1964 (já revogado por decreto em 9 de maio de 1991) constitui, para nós, o primeiro

grande ato normativo a dispor exclusivamente sobre concurso e critérios de nomeação

dos aprovados. Esse decreto dispõe sobre as normas destinadas a disciplinar o ingresso

em cargos públicos e a nomeação de candidatos habilitados em concurso.

Logo no início desse ato normativo decretado pelo Presidente da República,

retoma-se o princípio já instituído: o de que o ingresso em caráter efetivo nos cargos

públicos depende de prévia habilitação em concurso público de provas ou de provas e

títulos (art. 1º). Para tanto, o decreto delega ao DASP – Departamento Administrativo

do Serviço Público, que, como já vimos, foi criado em 1938 – a realização de todo

concurso público, seja por iniciativa do próprio DASP ou mediante solicitação dos

órgãos interessados.

Vemos, nesse decreto, um respeito singular aos direitos adquiridos pelos

candidatos habilitados em concurso. O artigo 1º, § 2º, determinava que, havendo

candidato habilitado em concurso para determinado cargo, as vagas existentes não

podiam ser providas em caráter interino, devendo o candidato habilitado ser convocado

para ocupar o posto. E, caso houvesse cargo ocupado interinamente, os interinos tinham

que ser exonerados dentro do prazo de 60 dias contados da homologação do concurso,

de modo que a vaga fosse por direito destinada àquele que se habilitou em concurso. A

nomeação dos aprovados devia ser, de acordo com o decreto, simultânea à exoneração

dos interinos (art. 2º).

Outro traço importante que devemos notar diz respeito à comprovação da

habilitação profissional específica para dado cargo. O artigo 3º do decreto disciplina que

a investidura no cargo somente pode ocorrer mediante a apresentação do respectivo

diploma, mas determina que isso deve ser expresso no termo de posse, fase final do ato

de investidura. Essa perspectiva criada em 1964 é até hoje utilizada na administração

pública.

Outro decreto que dispõe sobre concurso, também editado durante a ditadura

militar, é o Decreto no 86.364 de 14 de setembro de 1981, que dispõe sobre concursos

públicos e provas de seleção para ingresso nos órgãos e entidades da Administração

Federal. Há um novo sentido irrompendo no seio do que já estava estabelecido sobre a

99

Entendemos que isso resulta do fato de a Lei nº 1.711 de 28 de outubro de 1952 não ter como objeto

específico o concurso, mas a organização geral do funcionalismo público federal.

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142

inscrição em concurso público. O artigo 2º determina que, no ato da inscrição, o

candidato deve apenas apresentar documento oficial de identidade e firmar declaração

de que possui os demais documentos comprobatórios das condições exigidas para a

inscrição. A apresentação desses documentos só se faz depois, caso o candidato seja

aprovado, no momento prévio à posse. Desde então, portanto, a comprovação dos

requisitos para a investidura em cargo público fica atrelada ao momento da posse.

Entre as leis ordinárias produzidas durante o regime militar, destacamos em

nosso dispositivo de arquivo a Lei no

4.737 de 15 de julho de 1965 em virtude do que

dispõe sobre o atendimento de preceitos vinculados à problemática do concurso.

Atualmente, em todo edital de concurso público, um dos requisitos exigidos para a

investidura no cargo é “estar em dia com as obrigações eleitorais”. Esse requisito

encontra ressonância na lei em foco, que instituiu o Código Eleitoral brasileiro. O inciso

I do § 1º do artigo 7º estatui que o candidato que não provar que votou ou justificou a

impossibilidade de votar na última eleição fica impossibilitado de inscrever-se em

concurso para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles. Portanto, a

quitação das obrigações com a Justiça Eleitoral, nessa época, impedia o candidato de se

inscrever no concurso. Tal prática, entretanto, não se mantém atualmente. Hoje, o

candidato deve comprovar esse requisito no ato da posse.

4.2.6 O concurso público na República Federativa do Brasil

A eleição indireta de Tancredo Neves em 15 de janeiro de 1985 marcou o fim do

regime militar implantado em 1964, e a reassunção do poder pelos civis deu início ao

processo de redemocratização do país. A democracia pela qual o país clamava só veio a

se firmar em 1988 com a promulgação da Constituição da República Federativa do

Brasil, em vigor até os dias de hoje.

No lapso temporal entre 1985 e 1988 houve uma série de acontecimentos que

indicam a maneira como se deu a redemocratização. A chapa que concorria à

Presidência da República formada por Tancredo Neves, candidato a presidente, e José

Sarney, vice-presidente, foi eleita por um colégio eleitoral constituído por parlamentares

do Senado e da Câmara Federal. Tancredo não chegou a assumir o cargo em função de

sua morte em 21 de abril de 1985, ficando o posto presidencial destinado a Sarney.

Durante seu mandato, houve o restabelecimento das eleições diretas, as quais já eram

exigidas pelo povo no fim da ditadura. Mas o principal ato político daquele período foi

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143

a Mensagem no 48 de 28 de junho de 1985 enviada pelo presidente em exercício para o

Congresso Nacional pela qual ele convocava uma Assembleia Nacional Constituinte

(ANC), que foi instalada em 1º de fevereiro de 1987. Em 5 de outubro de 1988 foi

promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), a

Constituição Cidadão, como foi chamada por Ulysses Guimarães, presidente da ANC.

A Constituição de 1988 entra no cenário político dos anos de 1980 com o

objetivo de resgatar o povo das condições sociais em que fora deixado pelos mais de

vinte anos de ditadura. A intenção do poder constituinte que culminou com a nova Carta

Magna vem inscrita em seu preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia

Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado

a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça

como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem

interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,

promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO

DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Visando ao atendimento, de um lado, dos direitos sociais e individuais e, de

outro, dos princípios instituídos pela nova Constituição, em especial o princípio da

igualdade e outros princípios expressos na Lei Maior (legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência)100

, o novo Estado Democrático permitiu amplo

desenvolvimento do estatuto do concurso público. Os últimos trinta anos constituem

inegavelmente o período de maior atividade legislativa acerca de concurso.

Julgamos oportuno retomar o que falamos anteriormente sobre a construção da

classe burguesa no Brasil. Dissemos que o Estado burguês, para manter sua relação de

produção, instala, por meio dos seus aparelhos ideológicos (em especial pelo Direito), a

ilusão de igualdade, para mascarar ou apagar as diferenças, quando, de fato, mantém

essas diferenças valendo-se do próprio Direito. O Estado burguês busca, assim, uma

harmonização com o povo, com a classe dominada, para melhor assujeitá-la. Como

afirma Gomes (2015, p. 44), “com o objetivo de ascender ao poder, a burguesia se

empenha em uma relação popular” e, assim, “estabelece-se o sujeito-de-direito sob a

100

Os princípios constitucionais expressos estão no artigo 37 da CRFB/1988: “A administração pública

direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,

ao seguinte: (...)”.

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144

égide da liberdade e igualdade como busca incessante, apagando a desigualdade

prevalente e visando à legitimação de uma desigualdade”.

Compreendemos que, partir dos anos de 1980, com a redemocratização do

Brasil, a criação de um novo Estado – o Estado Democrático, como afirma o preâmbulo

da Constituição – terá como um dos principais objetivos (para não dizer o principal) a

ampliação e perpetuação da burguesia no país. Isso se tornará visível pela expressiva

política de inclusão das minorias produzida no novo cenário legislativo a ser

configurado após a promulgação da Constituição de 1988. Nunca, na história do país, os

atos normativos trataram tanto sobre direitos sociais e individuais, liberdades, bem-

estar, igualdade, justiça, sociedade fraterna, sociedade despida de preconceitos como

tratarão a partir de 1988.

As referências às noções de “liberdade” e “livre” (sujeito livre) nunca foram, em

nossa história política, tão bem marcadas como o serão na Nova República. Vale trazer

de novo o levantamento realizado por Sämy (2016) sobre o emprego dessas palavras na

Constituição de 1988. “Liberdade” configura 17 vezes; “livre”, 28. São, ao todo, 45

referências expressas a uma concepção de liberdade; por outro lado, não há nenhuma

referência explícita à submissão no texto constitucional. É por isso que entendemos a

criação do Estado Democrático como uma forma de ampliar e perpetuar a burguesia e,

para isso, o caminho seria criar um conjunto de ilusões que deixassem o sujeito ao

mesmo tempo livre e submisso às leis do Estado.

No tocante ao concurso público, veremos, a partir do exame dos atos normativos

que pinçamos para a construção do nosso dispositivo de arquivo, o surgimento de

diferentes normas que visam assegurar a igualdade e a liberdade como buscas

incessantes do Novo Estado em prol do povo, com o objetivo de apagar as

desigualdades quando, de fato, legitima-se a desigualdade.

Em razão da falta de tempo e espaço físico hábeis para tratar, nesta tese, de todos

os atos normativos referentes a concurso público que foram produzidos a partir de 1988,

recortamos em nosso dispositivo de arquivo apenas aqueles que trazem um sentido

novo, que opera deslocamentos em relação ao que já estava sedimentado.

Comecemos pelas disposições previstas na carta constitucional.

O artigo 37 da Constituição de 1988 é decisivo para a reafirmação do concurso.

No inciso II desse artigo, o constituinte manteve a perspectiva de que a investidura em

cargos, empregos e funções públicas depende de prévia aprovação em concurso público

de provas ou de provas e títulos. Além disso, o mesmo artigo determina, no inciso III,

Page 145: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

145

que o prazo de validade do concurso é de até dois anos, prorrogável uma única vez por

igual período. O inciso IV traz uma inovação para assegurar os direitos dos candidatos

aprovados em dado concurso: durante o prazo improrrogável previsto no edital de

convocação, o aprovado em concurso público é convocado com prioridade sobre novos

concursados para assumir o cargo.

Embora a regra do concurso seja aplicada pela Constituição para a seleção de

pessoal para todos os cargos, empregos e funções públicas, o constituinte discriminou

no corpo textual da Lei Maior os cargos que devem ser sempre providos por concurso.

São os seguintes casos: (a) para ingresso na carreira da magistratura (art. 93, I); (b) para

cargos dos tribunais, exceto os de confiança (art. 96, I, e); (c) para o ingresso na carreira

do Ministério Público (art. 129, § 3º); (d) para ingresso na carreira da Advocacia-Geral

da União (art. 131, § 2º); (e) para os cargos de procuradores dos Estados e do Distrito

Federal (art. 132); (f) para a Defensoria Pública (artigo 134, § 1º); e (g) para o

magistério público.

Outra inovação diz respeito ao momento em que o servidor adquire estabilidade.

A nova Constituição estatui, no artigo 41, que os servidores nomeados para cargo de

provimento efetivo em razão de concurso se tornam estáveis após três anos de efetivo

exercício. O prazo de três anos não foi previsto, entretanto, no texto constitucional

originário, o qual mantinha a previsão de dois anos para a aquisição de estabilidade. Foi

com a Emenda Constitucional no 19 de 1998 que o prazo deslocou de dois para três

anos, período considerado mais razoável para a administração avaliar o desempenho do

servidor, posto em condição de estágio probatório.

Entre os atos normativos do nosso ordenamento jurídico situados abaixo da

Constituição Federal, encontramos leis ordinárias, decretos e projetos de lei que trazem

informações importantes acerca do concurso. Destacaremos, primeiramente, a Lei no

8.112 de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores

públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Paralelamente

teremos que comentar outras normas em razão dos princípios instituídos pelo estatuto

dos servidores federais.

Podemos afirmar que a maior inovação desta lei reside na reserva de percentual

de vagas para portadores de deficiência. Essa previsão está inscrita no § 2º do artigo 5º

da lei, que assim determina: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o

direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições

sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão

Page 146: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

146

reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. Embora antes

da lei nº 8.112/1990 já houvesse norma101

que proibisse criar obstáculos à inscrição em

concurso público de pessoa portadora de deficiência, o que já era alguma garantia, foi o

estatuto dos servidores federais a primeira grande norma a zelar por deficientes em

processo seletivo.

Será, entretanto, por meio do Decreto no 3.298 de 20 de dezembro de 1999, que

os portadores de necessidades especiais (PNE) ganharão maior proteção. A propósito,

esse decreto e a lei nº 8.112/90 são sempre citados no corpo textual de editais ao se

tratar sobre as vagas destinadas aos PNE. O decreto veio a desfazer qualquer equívoco

que a lei 8.112 possa ter deixado aberto, especialmente no que diz respeito ao percentual

de vagas reservadas. A lei 8.112 determina que fique na reserva até 20% das vagas, mas

não define um mínimo. Desse modo, um órgão poderia prever apenas 1%. Para que isso

não acontecesse, o decreto 3.298/1999 estipulou, em seu artigo 37, § 1º, que deve ficar

reservado um percentual mínimo de 5%. Estatuiu ainda que, se com a aplicação do

percentual previsto em lei, o resultado for número fracionado, a administração deve

arredondar para o primeiro número inteiro subsequente. Com o intuito de assegurar

vagas aos PNE, o decreto 3.298/1999 chegou a determinar o que deve vir a constar no

corpo textual dos editais de concurso. De acordo com o artigo 39 do decreto:

Art. 39. Os editais de concursos públicos deverão conter:

I - o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à

reserva destinada à pessoa portadora de deficiência;

II - as atribuições e tarefas essenciais dos cargos;

III - previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do

estágio probatório, conforme a deficiência do candidato; e

IV - exigência de apresentação, pelo candidato portador de

deficiência, no ato da inscrição, de laudo médico atestando a espécie e

o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código

correspondente da Classificação Internacional de Doença - CID, bem

como a provável causa da deficiência.

Outra lei que vem reiteradamente expressa no texto de edital é a de número

13.146 de 6 de julho de 2015, que ficou referida na literatura como Estatuto da Pessoa

com Deficiência. O inciso II do artigo 8º eleva à condição de crime, punível com

101

Confira como exemplo a lei 7.853 de 24/10/1989. Essa lei proíbe criar obstáculos à admissão de

pessoal portador de deficiência, mas não institui nenhum percentual que a Administração Pública deva

reservar para PNE.

Page 147: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

147

reclusão de dois a cinco anos e multa, qualquer tentativa por parte da Administração de

criar obstáculos à inscrição de qualquer pessoa em razão de sua deficiência.

Precisamos retornar agora à lei nº 8.112/1990, pois ela prevê mais um meio de o

Estado assegurar ao povo condições de igualdade. Trata-se da hipótese de isenção da

taxa de inscrição em concurso público, que vem ressalvada no artigo 11. De fato, essa

previsão não pode ser vista como um acontecimento produzido pela lei 8.112/90, que

não tratou especificamente, em nenhuma cláusula, sobre a hipótese de isenção, tendo

feito apenas uma ressalva no final do artigo 11. Deve-se à Lei nº 9.527, de 10/12/97,

que deu nova redação a algumas cláusulas do estatuto do servidor federal e veio a

prever a isenção do taxa para aqueles que comprovem insuficiência de recursos

financeiros.

Após essa previsão legal, surgiram três atos normativos para disciplinar a

isenção do valor da taxa de inscrição: o Decreto no 6.135/2007, o Decreto n

o 6.593/2008

e a Lei no

13.656/2018, todos recorrentemente referidos nos textos de editais. O

primeiro não se refere especificamente a concurso, nem à isenção de taxa; apenas dispõe

sobre o CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal), que,

de acordo com o artigo 2º, é “um instrumento de identificação e caracterização sócio-

econômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para

seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados

ao atendimento desse público”. Por meio desse comando, todo edital de concurso

passou a estabelecer que qualquer cidadão inscrito no CadÚnico fique isento do

pagamento da taxa de inscrição.

O Decreto no

6.593/2008 desempenhou papel importante nesse cenário, porque

veio a regulamentar o artigo 11 da Lei nº 8.112/1990 (com sua redação alterada pela Lei

nº 9.527/97), quanto à isenção de pagamento de taxa de inscrição em concursos

públicos realizados no âmbito do Poder Executivo federal. Esse decreto sinaliza

explicitamente, no artigo 1º, que os editais de concurso para órgãos federais devem

prever a possibilidade de isenção de taxa de inscrição102

.

A Lei no

13.656 de 30 de abril de 2018, recentemente criada, veio a ampliar a

possibilidade de isenção. Por meio dessa lei, ficam isentos não apenas os cidadãos que

comprovem hipossuficiência financeira, mas também os doadores de medula óssea em

entidades reconhecidas pelo Ministério da Saúde (artigo 1º, inciso II). Desse modo, de

102

Simetricamente, os Estados e os municípios passaram a fazer o mesmo, fundamentados em legislação

produzida por esses entes federativos, além da disponibilizada em âmbito federal.

Page 148: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

148

acordo com a nova lei, todo edital de concurso público federal deve trazer essa previsão,

mencionando os critérios de isenção da taxa e, também, as sanções cabíveis para

candidatos que tentarem fraudar o processo. É importante salientar que o objetivo real

dessa lei é incentivar a doação de medula óssea e não desequilibrar as desigualdades

sociais.

Julgamos importante destacar por fim que a lei 8.112/1990 estabelece

explicitamente os “requisitos básicos para investidura”, sem fechar um rol taxativo de

exigências, uma vez que, dependendo da natureza do cargo, outros podem vir a ser

exigidos no certame. É importante destacar essa previsão em lei, porque tais condições

passam a compor cláusulas de editais de concurso; em todo edital, há um item para

dispor sobre “requisitos para investidura”. De acordo com o artigo 5º dessa lei, são os

seguintes os requisitos: nacionalidade brasileira, gozo dos direitos políticos, quitação

com as obrigações militares e eleitorais, nível de escolaridade exigido para o exercício

do cargo, idade mínima de 18 anos, aptidão física e mental.

Devemos trazer também para nossa descrição o que está disposto no artigo 27 da

Lei no

10.741 de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do Idoso –, que consagra importante

proteção à admissão do idoso em qualquer trabalho ou emprego. Segundo a lei, fica

proibida, inclusive para concurso, a discriminação e a fixação de limite máximo de

idade, a não ser quando a natureza do cargo o exigir. Além do mais, esse dispositivo

legal institui a idade como o primeiro critério de desempate em concurso público,

ficando preferido o candidato de maior idade.

Um dos atos normativos mais importantes para a compreensão da construção de

editais é o Decreto no 6.944 de 21 de agosto de 2009 por dispor sobre normas gerais

relativas a concurso público. O que merece nota é o fato de essa norma reservar uma

seção inteira (Seção II, do Capítulo II) para tratar especificamente sobre o Edital de

Concurso Público. A Administração Pública fica obrigada a especificar no corpo do

edital um conjunto mínimo de informações, as quais são aludidas pelo decreto103

, com o

103

De acordo com o artigo 19, o edital dever ter, no mínimo, as seguintes informações: I - identificação

da instituição realizadora do certame e do órgão ou entidade que o promove; II - menção ao ato

ministerial que autorizar a realização do concurso público, quando for o caso; III - número de cargos ou

empregos públicos a serem providos; IV - quantitativo de cargos ou empregos reservados às pessoas com

deficiência e critérios para sua admissão; V - denominação do cargo ou emprego público, a classe de

ingresso e a remuneração inicial, discriminando-se as parcelas que a compõem; VI - lei de criação do

cargo, emprego público ou carreira, e seus regulamentos; VII - descrição das atribuições do cargo ou

emprego público; VIII - indicação do nível de escolaridade exigido para a posse no cargo ou emprego;

IX - indicação precisa dos locais, horários e procedimentos de inscrição, bem como das formalidades para

sua confirmação; X - valor da taxa de inscrição e hipóteses de isenção; XI - orientações para a

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149

objetivo de tornar o processo de seleção justo para ambas as partes, Administração e

administrados.

Ponto importante a ser destacado no decreto diz respeito ao princípio da

publicidade do edital. O decreto determina, em seu artigo 18, que todo edital deve ser

publicado integralmente no Diário Oficial da União (DOU) com antecedência mínima

de sessenta dias104

da realização da primeira prova e, também, deve ser divulgado no

sítio do órgão que fará o concurso e no sítio da instituição que executará o certame.

Além disso, fica determinado que qualquer alteração no edital deve ser publicada no

DOU e divulgada no órgão e na instituição executora.

Com o objetivo de desfazer as desigualdades historicamente construídas entre

brancos e negros, em 2014 entrou em vigor a Lei no 12.990, que reserva aos negros 20%

das vagas oferecidas nos concursos públicos federais. Essa reserva, de acordo com o §

1º do artigo 1º, deve ser feita sempre que o quantitativo de vagas oferecidas for maior

ou igual a 3 (três). Se o resultado da aplicação dessa regra for número fracionado, ele

deve ser arredondado ou para o primeiro número inteiro subsequente, caso a fração seja

maior ou igual a 0,5, ou para o primeiro número inteiro inferior, se a fração for menor

que 0,5.

Para finalizar nossa descrição sobre o tratamento do concurso público na atual

República, trazemos para o leitor algumas considerações sobre o Projeto de Lei do

Senado (PLS) 92/2000 – continuado na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei

(PL) 252/2003 – que visa implantar uma Lei Geral dos Concursos Públicos a ser

aplicada por todos os órgãos vinculados à estrutura administrativa da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a seleção de pessoal. Conforme

preceitua o artigo 1º desse PL, o objetivo é estabelecer “normas gerais sobre a

apresentação do requerimento de isenção da taxa de inscrição, conforme legislação aplicável; XII -

indicação da documentação a ser apresentada no ato de inscrição e quando da realização das provas, bem

como do material de uso não permitido nesta fase; XIII - enunciação precisa das disciplinas das provas e

dos eventuais agrupamentos de provas; XIV - indicação das prováveis datas de realização das provas;

XV - número de etapas do concurso público, com indicação das respectivas fases, seu caráter eliminatório

ou eliminatório e classificatório, e indicativo sobre a existência e condições do curso de formação, se for

o caso; XVI - informação de que haverá gravação em caso de prova oral ou defesa de memorial; XVII -

explicitação detalhada da metodologia para classificação no concurso público; XVIII - exigência, quando

cabível, de exames médicos específicos para a carreira ou de exame psicotécnico ou sindicância da vida

pregressa; XIX - regulamentação dos meios de aferição do desempenho do candidato nas provas; XX -

fixação do prazo de validade do concurso e da possibilidade de sua prorrogação; e XXI - disposições

sobre o processo de elaboração, apresentação, julgamento, decisão e conhecimento do resultado de

recursos.

104

O § 2o do artigo 18, entretanto, prevê esse prazo pode ser reduzido mediante ato motivado da

autoridade competente pela realização do concurso público.

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150

realização de concursos públicos de provas ou de provas e títulos no âmbito da

administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios”.

É importante destacar uma breve história sobre esse Projeto de Lei105

. A

iniciativa de elaborar um conjunto de normas gerais relativas a concursos públicos

nasceu no âmbito do Senado Federal, com o Projeto de Lei do Senado 92/2000, de

autoria do senador Jorge Bornhausen. O projeto tramitou no Senado do dia 12/04/2000

ao dia 06/03/2003, quando foi remetido à Câmara dos Deputados, casa em que passou a

tramitar com a designação/numeração Projeto de Lei 252/2003.

O que chama a atenção é o fato de esse Projeto de Lei, que foi efetivamente

apresentado à Câmara dos Deputados em Sessão Plenária do dia 07/03/2003, ainda vir

tramitando no Congresso Nacional sem previsão de aprovação definitiva. Atualmente, o

sítio oficial da Câmara destaca a seguinte situação do processo: “Aguardando Parecer

do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC)”106

. Nesse

ínterim de 15 anos, foram apensados ao PL 252/2003 outros 41 projetos de lei que

também versam sobre concurso público. A discussão é ampla, pois requer de ambas as

Casas Legislativas os cuidados necessários à manutenção da ordem jurídica ao se

colocar em jogo a tensão entre administração e administrados.

Portanto, é fato que ainda não dispomos de uma Lei Geral de Concursos

implantada em âmbito federal, valendo os princípios jurídicos implantados por leis

esparsas como as que comentamos anteriormente. Diante da morosidade das Câmaras

federais, o Distrito Federal e alguns Estados já passaram à frente e editaram suas

próprias normas gerais relativas a concursos públicos. Fizemos uma busca pelos sítios

eletrônicos das casas legislativas estaduais e distrital e encontramos as seguintes leis em

vigor nos respectivos entes federativos: (a) Lei no 4.949, de 15/10/2012, que estabelece

normas gerais para realização de concurso público pela administração direta, autárquica

e fundacional do Distrito Federal; (b) Lei no 7.858, de 28/12/2016, que dispõe sobre

normas relativas a concurso público pela Administração Pública do Estado de Alagoas;

(c) Lei no 19.587, de 10/01/2017, que estabelece normas gerais para a realização de

concursos públicos no âmbito da Administração Pública do Estado de Goiás; e (d) Lei

105

Reconstruímos essa breve história com base em informações dispostas sobre as tramitações de ambos

Projetos de Lei disponíveis em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/43692> e

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=105464>. 106

Confira em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=105464>.

Nossa última consulta foi no dia 23/11/2018.

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151

no 1.172, de 10/04/2017, que estatui normas para concurso público no Estado de

Roraima.

Nota-se que todas essas leis mantêm entre si e o PL 252/2003 uma espécie de

repetição técnica, disciplinando cada conteúdo referente a concurso basicamente com

os mesmos dizeres. Por essa razão, para evitar redundância, destacaremos os princípios

instituídos apenas pelo PL 252/2003, inclusive para não nos afastarmos

metodologicamente do nosso gesto de leitura, que incide sobre a legislação produzida

em âmbito federal. Devemos frisar também que recortamos apenas aquilo que julgamos

importante para a análise de editais de concurso público.

O primeiro aspecto que deve ser notado no Projeto de Lei diz respeito à reserva

de um capítulo inteiro para tratar do EDITAL. O artigo 5º estatui que o edital é o

instrumento vinculante da administração pública e, por isso, é de cumprimento

obrigatório. Isso decorre de um princípio já instituído em nosso ordenamento jurídico: o

princípio da vinculação ao edital ou princípio da vinculação ao instrumento

convocatório, pelo qual tanto a administração quanto os administrados ficam vinculados

às regras estabelecidas no edital. Daí decorre o aforismo: “o edital é a lei do concurso

público”. Outra característica a que o artigo 5º se refere é a de que o edital deve ser

escrito de forma clara e objetiva para possibilitar a compreensão de seu conteúdo pelos

candidatos.

O artigo 5º faz menção expressa também a dois preceitos importantes que devem

estar relacionados ao edital: sua publicidade e seu conteúdo mínimo. O § 1º do artigo 5º

estabelece que, por meio do princípio da publicidade, a administração deve buscar a

máxima divulgação de um concurso, inclusive pela imprensa oficial. A publicidade se

aplica também, de acordo com o artigo 6º, a quaisquer alterações produzidas no edital,

as quais devem ser divulgadas tanto na imprensa oficial quanto nos jornais de grande

circulação. Ainda sobre publicidade, o PL destaca que o edital deve ser publicado com a

antecedência mínima de 60 dias em relação à primeira prova (art. 7º).

O § 3º do artigo 5º determina as informações mínimas que devem constar do

edital, sob pena de ser declarada sua nulidade. Em razão do teor dessas informações

mínimas e sua relativa importância para nossa pesquisa, nós as destacamos a seguir.

Assim versa o § 3º do artigo 5º:

O conteúdo mínimo do edital, sob pena de nulidade, é composto de: I

– identificação da banca realizadora do certame e do órgão que o

promove; II – identificação do cargo, suas atribuições, quantidade e

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152

vencimentos; III – indicação do nível de escolaridade exigido para a

posse no cargo; IV – indicação do local e órgão de lotação dos

aprovados; V – indicação precisa dos locais e procedimentos de

inscrição, bem como das formalidades confirmatórias dessa; VI –

indicação dos critérios de pontuação e contagem de pontos nas provas;

VII – indicação do peso relativo de cada prova; VIII – enumeração

precisa das matérias das provas, dos eventuais agrupamentos de

provas e das datas de suas realizações; IX – indicação da matéria

objeto de cada prova, de forma a permitir ao candidato a perfeita

compreensão do conteúdo programático que será exigido; X –

regulamentação dos mecanismos de divulgação dos resultados, com

datas, locais e horários; XI – regulamentação do processo de

elaboração, apresentação, julgamento, decisão e conhecimento de

resultado de recursos; XII – fixação do prazo inicial de validade e da

possibilidade de sua prorrogação; XIII – lotação inicial dos aprovados

e disciplina objetiva das hipóteses de remoção; XIV – percentual de

cargos ou empregos reservados às pessoas portadoras de deficiência e

critérios para sua admissão.

Preceito importante que deve ser destacado do PL 252/2003 vem inscrito no §

13, que determina que os pré-requisitos escolaridade mínima e qualificação profissional

subjetiva devem ser comprovados pelo candidato no ato da posse, ficando vedada a

exigência de comprovação no momento da inscrição.

Outro aspecto do PL 252/2003 que merece nota é a reserva de um capítulo

inteiro para dispor sobre INSCRIÇÃO. Atualmente, um dos pontos mais controversos

em concurso é a questão da devolução da taxa de inscrição. O artigo 11, § 2º, do PL

determina que o valor relativo à inscrição deve ser devolvido sempre que ocorra a

anulação do concurso por qualquer causa. Além disso, fica estabelecido que as

inscrições, quando presenciais, devem ser recebidas em locais de fácil acesso e em

período e horário que facilitem sua realização pelos interessados (art. 12).

Mais um sentido instituído pelo PL que vimos comentando vem inscrito do

artigo 56 ao 63, que versam sobre recursos. Fica estabelecido que em hipótese alguma o

edital pode prever cláusula que impeça ou crie obstáculos à interposição de recursos. O

PL frisa ainda que o prazo para recurso não pode ser inferior a 3 (três) dias úteis.

Por fim, destacamos um dos pontos mais controversos em concursos públicos

que também vem disciplinado no PL 252/2003: o direito à nomeação dos aprovados. O

artigo 64 preceitua que “os candidatos aprovados no concurso são detentores de mera

expectativa de direito à nomeação”. Entretanto, esse comando se aplica apenas aos

aprovados em número excedente ao de vagas previstas no edital, pois o § 1º do artigo 64

prevê a hipótese do direito subjetivo à nomeação dos candidatos aprovados dentro do

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153

número de vagas oferecidas pelo instrumento de convocação. Nesse caso, a

administração fica obrigada a dar posse ao candidato aprovado nessa circunstância.

Como vimos anteriormente, o sentido de direito subjetivo à nomeação ronda a

administração pública desde os anos de 1930. Vimos que o Decreto nº 19.890 de 18 de

abril de 1931 previa esse direito ao candidato em concurso para o cargo de inspetor do

Colégio Pedro II que ficasse classificado dentro do número de vagas previstas em edital.

Atualmente, é essa a compreensão dos nossos tribunais. Trazemos, como exemplo, o

Recurso Extraordinário 598.099, julgado pelo Relator Ministro Gilmar Mendes, do

Supremo Tribunal Federal, do qual extraímos o trecho a seguir107

:

Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá

escolher o momento no qual realizará a nomeação, mas não poderá

dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa

a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um

dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do

concurso com número específico de vagas, o ato da Administração

que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de

nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à

nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número

de vagas.

Decisões como esta visam refrear práticas escusas da Administração Pública,

que, não raro, realiza concurso público oferecendo dado número de vagas e não convoca

nenhum dos aprovados classificados dentro das vagas ofertadas, apresentado

justificativas que fogem às determinações legais e decisões reiteradamente tomadas

pelos Tribunais Superiores.

Finalizamos este capítulo reiterando o que colocamos como nosso objetivo

principal ao produzi-lo, trazer ao leitor a memória política do Estado para mostrar-lhe

como essa forma de organização do poder veio tratando até a atualidade o

acontecimento concurso público. Passemos, agora, ao estudo das maneiras como o

edital de concurso público vem sendo textualizado nas práticas administrativas

produzidas por nosso Estado.

107

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=145

6>.

Page 154: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

154

5. Considerações discursivas sobre o edital de concurso público

No capítulo precedente, tivemos a oportunidade de mostrar ao leitor como

diferentes sentidos para a prática do concurso público no Brasil foram sendo

constituídos e deslocados pela atividade legislativa do Estado em quase 200 anos de

história (1822-2018). Em diversos pontos desse recorte temporal, em razão dos anseios

da própria Administração e dos administrados, vimos sentidos previamente instituídos

serem deslocados visando à constituição de sentidos novos, tendo em vista a conjuntura

sócio-histórica e ideológica em cada período. Esse movimento que rompe com o

instituído para implementar novas significações teve sempre o mesmo objetivo:

produzir uma estabilidade nos sentidos (mesmo que transitória) e, assim, manter a

estabilidade jurídica entre as partes envolvidas.

Vimos também que o concurso público caminhou paulatinamente rumo a sua

institucionalização, de modo que, atualmente, ele é concebido como procedimento

obrigatório para o provimento dos cargos e empregos disponíveis em qualquer órgão

vinculado à administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, incluindo-se, nesse rol, os empregos disponíveis nas

empresas públicas e sociedades de economia mista, que pertencem à estrutura da

administração indireta.

Neste capítulo, trazemos algumas reflexões sobre o edital de concurso público a

partir da mobilização de conceitos oriundos da Análise de Discurso com o objetivo de

estabelecer a base para sustentar as análises empreendidas no capítulo seguinte. A

principal pergunta que nos fazemos aqui é: o que justificaria, em uma perspectiva

discursiva, em que se consideram os efeitos de sentidos entre os interlocutores, a origem

de litígios entre as partes envolvidas em um concurso público em função da maneira

como alguns enunciados são formulados em edital?

5.1 A formação discursiva edital de concurso público

Como vimos no capítulo 2, as concepções de formação ideológica (FI) e

formação discursiva (FD) estão na base das considerações feitas em Análise de Discurso

acerca dos efeitos de sentidos produzidos entre interlocutores, entendidos estes como

lugares historicamente determinados.

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155

Com o intuito de justificar interpretações variadas para os mesmos enunciados

formulados em dado edital de concurso – uma interpretação por parte da Administração

e outro por parte dos administrados –, devemos partir de duas considerações prévias: (a)

uma FI é um conjunto de atitudes e representações que se relacionam de algum modo a

posições de classes em conflito; (b) uma FI comporta uma ou várias FDs interligadas

que determinam o que pode e deve ser dito.

Nossa tese é a de que Administração e administrados/candidatos, sujeitos na

relação editalícia, na condição de posições de classes em conflito, inscrevem-se em

formações ideológicas distintas, muito embora ambos devam, em princípio, zelar pelo

bem comum. A Administração Pública é uma atividade desenvolvida pelo Estado para

atingir o bem comum; por isso, deve desenvolver, por meio de seus órgãos, uma prática

administrativa que atenda aos interesses da coletividade, desvencilhada de quaisquer

vícios que ponham em risco a estabilidade jurídica entre as partes. Entretanto, não raro,

vemos órgãos públicos se valerem de meios obscuros para se manterem em sua posição

de império, estabelecendo regras que ofendem leis e princípios já instituídos. Em razão

disso, os administrados, diante dos usos excessivos (e abusivos) de poder que a

Administração pode vir a fazer, necessitam de um conjunto de instrumentos que

assegurem seus direitos historicamente construídos. Na prática, portanto, os interesses

desses dois polos nem sempre são os mesmos, o que os coloca em posições de classes

em conflito.

Entendemos ainda que cada uma dessas partes da relação editalícia apresenta, no

interior da FI em que se inscrevem, diversas FDs cada qual encerrando em seu campo os

elementos do domínio do saber que lhe são próprios. Dentre as FDs da Administração,

destacamos uma a que chamaremos a partir de agora de FDecp

(leia-se: formação

discursiva de edital de concurso público). Dentre as FDs do administrado/candidato,

destacamos a FDcand

(leia-se: formação discursiva dos candidatos em concurso

público). Para o leitor melhor visualizar o quadro teórico que pretendemos apresentar,

segue o esquema abaixo:

Page 156: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

156

Administração Pública Administrado/candidato

Tentaremos apresentar, neste item, uma descrição da constituição da formação

discursiva de edital de concurso público, uma vez que constitui o edital nosso objeto de

estudo.

Seguindo a esteira de pensamento de Michel Pêcheux e os desenvolvimentos

propostos por Courtine (2014 [1981], 2016 [1982]) sobre a noção/relação entre

interdiscurso e formação discursiva, entendemos que a FDecp

, assim como toda FD, está

submetida originariamente à lei de desigualdade-contradição-subordinação, de modo

que seu interdiscurso – o todo complexo com dominante da formação discursiva

(PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 149) – resulte da articulação contraditória da própria FDecp

com a FI em que está inscrita. Lembremo-nos de que, de acordo com Courtine (2016

[1982]), de início, ocorre a contradição entre o todo complexo com dominante da FD e

as atitudes e representações da FI em que se inscreve; em seguida, constitui-se o

interdiscurso daquela FD.

No interdiscurso da FDecp

, foi se constituindo historicamente um domínio do

saber próprio dessa formação discursiva, o qual é responsável pelo fechamento –

instável – de suas fronteiras, demarcando, assim, uma zona de repetibilidade em que

figuram seus elementos do saber. Devemos, portanto, destacar que as fronteiras da

FDecp

podem se deslocar, uma vez que, como toda FD, a FDecp

não funciona como um

bloco homogêneo e fechado de dizeres, mas como um espaço em que podem ser

incorporados elementos do saber oriundos de outras FDs.

Esse fenômeno de incorporação de elementos do saber de uma FD por outra

torna-se evidente na prática discursiva dos editais de concurso público quando vemos o

edital formular em seu corpo textual dizeres produzidos em outro lugar, em especial na

esfera legislativa. No capítulo anterior, mostramos como o Poder Legislativo atuou na

constituição histórica de dizeres que representavam tanto os anseios da Administração

FI

FDecp

FDx

FDy

FDx

FDy

FDcand

FI

Page 157: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

157

quanto os dos administrados, de modo que ficasse estabelecida uma zona de

repetibilidade de sentidos que visava sempre à estabilidade jurídica. Tais dizeres

passaram a ser formulados, em editais de concurso, pelos órgãos públicos no exercício

de sua função administrativa.

Para ilustrar o que acabamos de expor, tomaremos como exemplo dois editais. O

primeiro é de 1823; o segundo, de 1838108

.

Como o leitor poderá notar, o primeiro edital, organizado com uma textualidade

mínima, se comparado com os atuais editais de concurso produzidos no Brasil, visava

tão somente dar publicidade aos interessados sobre os cargos públicos vagos e convocá-

los à concorrência. O segundo edital cumpre basicamente a mesma função. Mas há

dizeres formulados no interior deste edital que não estão presentes no primeiro. Dentre

eles, destacamos o seguinte trecho:

Os candidatos (...) deverão mostrar por documentos, e pelo exame,

que possuem os seguintes requisitos – a qualidade de Cidadão

Brasileiro – a idade de 18 anos – conhecimento da Grammatica da

Lingoa Nacional, e mormente da Orthografia – o das quatro

operações da Arithmetica – boa letra – robustez, e regularidade de

conduta.

108

Esses editais foram obtidos por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O primeiro edital

foi publicado no periódico Diário do Governo do Império do Brasil em 1º de julho de 1823, página 3. O

segundo foi publicado no periódico O Universal em 8 de outubro de 1838, páginas 3-4.

Page 158: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

158

No capítulo anterior, em que apresentamos os dispositivos legais que foram

sendo instituídos pela atividade legislativa no transcurso do tempo, destacamos a Lei de

15 de outubro de 1827, na qual os artigos 9º e 12 determinavam os pré-requisitos que os

candidatos deviam atender para participar da examinação: deviam ser cidadãos

brasileiros, em gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota da regularidade de sua

conduta e com reconhecida honestidade. Pelo recorte que fizemos na legislação

brasileira para a constituição do dispositivo de arquivo que nos permitiu reconhecer a

historicidade dos sentidos em editais, essa foi a primeira lei em que vimos ser instituído

um conjunto de pré-requisitos que os candidatos deviam atender para participar do

certame. Não temos, portanto, como afirmar categoricamente se antes de 1827 havia lei

que já impunha a comprovação desses requisitos.

O fato é que o edital de 1823, que reproduzimos acima, não formula nenhum

enunciado que crie esta perspectiva: necessidade de apresentar documentos para

comprovar o atendimento aos requisitos. Porém, o edital de 1838 já traz incorporado de

algum modo os mesmos dizeres instituídos pelo Poder Legislativo na Lei de 15 de

outubro de 1827. Esses pré-requisitos constituem desde então o domínio do saber e,

assim, o interdiscurso (memória discursiva) próprio da formação discursiva em que se

inscreve o concurso público, a FDecp

.

Partimos do princípio de que o conhecimento da memória do dizer inerente à

FDecp

nos permite, em uma análise das formulações atuais em edital de concurso (como

a que faremos no próximo capítulo), remeter o que é dito hoje à memória discursiva, a

uma filiação de dizeres, trazendo para o que é posto em análise sua historicidade.

Entendemos que todas as formulações produzidas hoje em edital podem ser remetidas a

uma memória, de modo que seja possível identificar tais formulações em sua

historicidade para, assim, analisar os deslocamentos de sentidos produzidos em cada

contexto sócio-histórico e ideológico.

Como não é possível, entretanto, produzir uma investigação sobre a

historicidade de todas as formulações contemporâneas em editais, em razão do escopo

deste trabalho, selecionamos um conjunto de enunciados que constituem pontos de

deriva dignos de observação. São os enunciados que, uma vez formulados em edital,

chocam-se com a memória discursiva da FDecp

, o que gera uma série de consequências

drásticas que vão desde os pedidos de impugnação aos de anulação de todo o certame.

Esses enunciados e os conflitos de sentido por eles produzidos serão apresentados e

Page 159: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

159

discutidos no próximo capítulo. O que faremos aqui, repetimos, é apenas mostrar a

historicidade desses dizeres.

5.2 Historicidade das formulações analisadas

A análise a ser apresentada no próximo capítulo recai sobre 10 (dez) enunciados

recorrentes em edital de concurso público que, não raro, são objetos de questionamento

pela própria administração ou por candidatos, órgãos de classe, Ministério Público e

Poder Judiciário, em razão da forma irregular como foram formulados (irregular, porque

esses enunciados se chocam com a memória do dizer). São enunciados que dispõem

sobre: (a) momento de apresentação dos requisitos para a investidura; (b) período de

inscrição; (c) limitação temporal de cinco anos para os antecedentes criminais (entre os

requisitos para investidura); (d) devolução do valor da taxa de inscrição; (e) direito à

nomeação; (f) critérios de desempate; (g) vagas destinadas a portadores de necessidades

especiais; (h) prazo para recursos quanto às provas aplicadas; (i) ausência do programa

das provas; e (j) previsão de vagas para negros. Considerando os editais que formam o

Arquivo 2 - Edital, buscamos apresentar ao leitor a historicidade de cada dizer até o

ponto mais antigo da nossa linha do tempo (início do Brasil Imperial).

A. Sobre o momento de apresentação dos requisitos para a investidura

Desde o início do Império, a apresentação dos documentos que comprovavam o

atendimento aos requisitos mínimos exigidos para a investidura no cargo esteve atrelada

ao momento inicial do processo administrativo do concurso público. Nesse período, os

documentos que provavam os requisitos eram solicitados aos pretendentes no momento

da inscrição, para que estes fossem habilitados e admitidos ao concurso (à “oposição”,

como alguns editais se referiam).

Recortamos dos editais históricos que compõem nosso Arquivo 2 - Edital, as

formulações que enunciam essa perspectiva e as listamos abaixo (os grifos são nossos):

“(...) só podem ser admitidos á oposição os Cidadãos Brazileiros, que estiverem no gozo dos seus

direitos civis e politicos, sem nota na regularidade de sua conducta, cumpre que a habilitaçaõ consista

na apprezentaçaõ de documentos que provem taes qualidades.” [Edital de concurso de 1930]

“São condições necessarias á inscripção: apresentar requerimento em que demonstrem ter pelo menos

18 anos de idade (...)”.[Edital de concurso de 1893]

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160

“São portanto convidados os pretendentes ao provimento (...) a apresentarem (...) seus requerimentos

[de inscrição] (...) instruídos com os seguintes documentos: auto de exame de sufficiencia e

calligraphia (...), folha corrida, certidão de edade (...)”.[Edital de concurso de 1900]

“Convido, por isso, aos que ao mesmo quiserem concorrer, a se inscreverem por meio de requerimento

(...) acompanhado de prova de goso dos direitos civis e políticos, folha corrida e quaesquer outros

documentos (...)”.[Edital de concurso de 1930]

“Serão admitidos a concurso (...) os candidatos de ambos os sexos que contarem com mais de 18 e

menos de 30 anos de idade em 18-8-45, data de encerramento das inscrições”. [Edital de concurso de

1945]

“Os requerimentos de inscrição serão instruídos com os seguintes documentos: certidão de idade,

atestado de bom comportamento, (...)”.[Edital de concurso de 1957]

“Ao inscrever-se o candidato deverá (...) apresentar os seguintes documentos: a) diploma de professor

do ensino primário (...)”. [Edital de concurso de 1969]

“Exibir no ato de inscrição: a) carteira ou cédula de identidade; b) título de eleitor; c) comprovante de

estar em dia com o Serviço Militar; d) comprovante de habilitação de nível superior (...)”. [Edital de

concurso de 1977]

Como o leitor pode observar, a prática discursiva adotada pela Administração

Pública, desde o início do Império até a época da Ditadura Militar, permitia ao sujeito-

enunciador do edital de concurso reproduzir a mesma perspectiva: exigir do candidato a

comprovação dos requisitos já no ato de inscrição. Essa perspectiva constitui para nós

um elemento do saber pertencente ao interdiscurso da FDecp

.

Tomando como base a teorização de Courtine (2016 [1982]), que assume a

existência de dois níveis de descrição de uma FD – o do enunciado [E] e o da

formulação [e] –, podemos afirmar que esse elemento do saber da FDecp

descrito aqui

constitui um enunciado [E], inerente à dimensão interdiscursiva da FDecp

, que funciona

como um “esquema geral” a reger a repetibilidade no interior de uma rede de

formulações. Por outro lado, cada formulação enunciada por uma forma-sujeito

específica de um edital constitui um [e], inerente à dimensão intradiscursiva da FDecp

.

Em outras palavras, esse elemento do saber constitui, no interior dessa formação

discursiva, um enunciado [E] que enseja, em cada ato de enunciação por uma forma-

sujeito, no plano intradiscursivo, diferentes formulações [e], todas filiadas à memória do

dizer. Os sentidos estabilizam-se; e, assim também, estabiliza-se a segurança jurídica

entre as partes.

Desse modo, tal elemento do saber [E] – exigência de requisitos no ato de

inscrição – estabiliza uma referência dentro de uma rede estratificada e desnivelada de

formulações. Cria-se, assim, um objeto de discurso, um pré-construído, que passa a

constituir a memória do dizer e a governar cada formulação em uma situação específica

Page 161: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

161

de enunciação, quando dada forma-sujeito se apropria desse objeto de discurso [E], que

“fala antes e independentemente”, e a lineariza com uma sequência linguística,

produzindo dada formulação.

Os editais que analisamos nos permitem ver que essa prática de significação

manteve-se imóvel até os anos de 1970 (nossa última referência é o edital de 1977). A

FDecp

manteve estável o dizer em análise até então. A partir dos anos de 1980, como os

dados seguintes evidenciam, há um deslocamento de sentido. Os grifos ainda são

nossos.

“3. São condições de inscrição: a) ser brasileiro; ter idade superior a 18 anos; c) estar quite com as

obrigações eleitorais; d) estar em dia com o Serviço Militar, quando do sexo masculino (...). 4. Para inscrever-se, o candidato deverá, no período das inscrições, apresentar-se nos locais indicados

no item 1, munido de: a) cédula de identidade; b) comprovante de recolhimento do valor da taxa de

inscrição. 6. A aprovação da inscrição dependerá da apresentação pelo candidato, no ato da inscrição dos

documentos especificados no item 4. No ato da posse, o candidato deverá comprovar as demais

exigências”. [Edital de concurso de 1982]

“4. Requisitos: 4.1 - ser brasileiro, nato ou naturalizado, e estar em dia com as obrigações eleitorais e militares; (...) 4.6 - por ocasião da posse, será exigida a comprovação dos requisitos, importando sua não

apresentação em insubsistência de inscrição, nulidade da aprovação ou habilitação e perda dos direitos

decorrentes”. [Edital de concurso de 1989]

As formulações acima, de acordo com nossos dados, passam a ser produzidas a

partir dos anos de 1980. Mas o que justificaria a deriva de uma formulação para outra?

No capítulo anterior, mostramos ao leitor que, desde 1964, por meio do Decreto nº

55.003 de 13 de novembro de 1964 (período em que o país experimentava nova ditadura

militar), já havia dispositivo legal que determinava que a apresentação de documentos

(no caso deste decreto, o diploma) devesse ser feita no termo de posse, fase final do ato

de investidura. Tal determinação, entretanto, não produziu nenhum efeito, como

mostram os enunciados que extraímos dos editais de concurso de 1969 e 1977,

reproduzidos na página anterior, pelos quais o diploma já é exigido no ato de inscrição.

Referimo-nos também, no capítulo sobre história do concurso, ao Decreto no

86.364 de 14 de setembro de 1981, também editado durante a ditadura. O artigo 2º

determinava que, no ato da inscrição, o candidato devia apenas apresentar documento

oficial de identidade e firmar declaração de que possuía os demais documentos

comprobatórios das condições exigidas para a inscrição. A apresentação desses

documentos só era feita depois, no momento prévio à posse. Esse decreto parece ter

produzido maior efeito sobre os atos da administração, pois, como nossos dados

Page 162: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

162

mostram, a partir do edital de 1982, assim passa a ser exigida a comprovação dos

requisitos.

Acreditamos que o deslocamento de sentidos operado aqui se justifique em razão

do contexto sócio-histórico e ideológico. Para nós, a deriva de uma formulação para

outra não ter sido operada efetivamente, pela prática administrativa, com o decreto de

1964 se justifica pelo fato de o país estar iniciando um regime militar. Por outro lado,

em 1981, quando a ditadura já mostrava as marcas do seu esgotamento, e o povo

clamava por uma nova constituinte na intenção de reaver direitos do cidadão que

haviam sido solapados, o Decreto no 86.364 passa produzir mais efeito, balançando os

sentidos enraizados pela administração, movimentando-os.

Considerando o princípio de que o fechamento de uma FD é sempre instável, é

inegável que houve, depois de 1981, uma movimentação nas fronteiras FDecp

, que

incorporou um dizer produzido anteriormente na esfera legislativa. Um novo enunciado

[E] passa, assim, a compor o interdiscurso dessa FD, ampliando seu domínio do saber, a

partir do qual inúmeras formulações [e] passam a ser produzidas pela forma-sujeito, em

uma nova rede de filiação de sentidos.

B. Sobre o período de inscrição

Os tribunais têm o entendimento de que deve haver um período de tempo

arrazoado, contado a partir da data de publicação do edital, para que os candidatos

possam realizar sua inscrição em um concurso. Isso decorre do princípio da

razoabilidade, pelo qual se impõe um limite à discricionariedade da Administração

Pública, buscando uma adequação entre os meios e os fins nos atos por ela praticados.

Muito embora não tenhamos encontrado em nosso Arquivo 1 – Legislação

nenhum ato normativo que, entre 1822 e 1850, tivesse disposto sobre o período de

inscrição em concurso público, os editais históricos que tomamos em análise indicam

que, nesse período, havia uma oscilação entre duas margens de tempo – 30 ou 60 dias –,

como mostram as formulações abaixo (grifos nossos):

“Todos os pertendentes aos mesmos logares dirigirám á sobredita Mesa os seos requerimentos dentro do

praso de trinta dias (...)”. [Edital de concurso de 1823]

“(...) fica aberto o concurso por espaço de sessenta dias para o provimento da cadeira de 1.as Letras

(...)”. [Edital de concurso de 1850]

Page 163: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

163

Entretanto, como vimos no capítulo prévio, o Decreto N. 817 de 30 de agosto de

1851 trouxe alguma contribuição nesse sentido, fixando que os requerimentos de

inscrição deveriam ser apresentados no prazo de 60 (sessenta) dias. Assim, esse sentido

instituído na esfera legislativa parece ter sido incorporado pela FDecp

, constituindo mais

um enunciado [E] a compor o domínio do saber dessa formação discursiva. Uma análise

dos dizeres já produzidos no interior da FDecp

deixa evidente que, do Brasil Imperial até

a República Liberal, a oscilação entre esses dois lapsos temporais entra em jogo, no

nível intradiscursivo, em diferentes formulações de editais. É o que indicam os recortes

abaixo, somados aos anteriores:

“(...) fica marcado o prazo de 60 dias (...) para inscripção e processo de habilitação dos oppositores às

cadeiras (...)”. [Edital de concurso de 1882]

“(...) se acha aberta pelo prazo de 60 (sessenta) dias, contados desta data [26/10/1899], a inscripção para

o concurso ao cargo de professor provisório do Estado”. [Edital de concurso de 1899]

“(...) a contar de 15 do corrente mez, durante 40 dias, achar-se-á aberta (...) a inscripção para o concurso

ao provimento dos logares de carteiro (...) ”. [Edital de concurso de 1924]

“Fica nesta data aberto concurso, pelo prazo de (60) sessenta dias, para o provimento do alludido

officio”. [Edital de concurso de 1930]

“Os interessados poderão inscrever-se (...) no período de 16-7-45 a 18-8-45 (...)”. [Edital de concurso de

1945]

“Os requerimentos de inscrição devem ser apresentados (...) no período de 16 de setembro a 15 de

outubro (...)”. [Edital de concurso de 1957]

A partir dos anos de 1960, vemos outra prática de significação irromper no

contexto histórico-social da Ditadura Militar. O período destinado à inscrição é reduzido

consideravelmente, chegando a atingir menos de um terço do período mínimo até então

estipulado (30 dias). É o que mostram as formulações abaixo.

“As inscrições (...) serão feitas (...) no período de 29-12-69 a 9-1-70 (...)”. [Edital de concurso de 1969]

“(Das Inscrições) Ficarão abertas no período de 16 a 27 de agosto de 1982. [Edital de 1982]

“Inscrições: 1.1 - Período: de 08 a 30 de janeiro de 1990”. [Edital de concurso de 1989]

“2 – Das inscrições: 2.1 – Períodos: de 27 de setembro a 1º de outubro de 1993”. [Edital de concurso de 1993]

“A inscrição será efetuada (...) no período compreendido entre 10 horas do dia 28 de setembro de 2009

e 23h59min do dia 13 de outubro de 2009 (...)”. [Edital de concurso de 2009]

Page 164: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

164

Acreditamos que a mudança drástica operada sobre essa perspectiva do período

de inscrição se deva aos avanços tecnológicos que o Brasil experimentou a partir da

segunda metade do século XX, ampliando consideravelmente os meios de comunicação,

o que fez tal perspectiva perdurar até os dias atuais, independentemente dos litígios que

vem provocando contemporaneamente. No próximo capítulo, voltaremos a esse ponto e

mostraremos as consequências da incorporação desse sentido novo à memória do dizer

da FDecp

, uma vez que tem produzido questionamentos do Judiciário face ao tão

reduzido tempo que alguns concursos impõem aos candidatos.

Para fechar este item, entendemos que tal prática de significação passou a

constituir mais um enunciado [E] inerente ao interdiscurso da FDecp

, um pré-construído

que vem governando, até hoje, a zona de repetibilidade, permitindo diferentes

formulações com prazo variável dentro da margem considerada (menos de 30 dias).

C. Sobre a limitação temporal de cinco anos dos antecedentes criminais como um dos

requisitos para investidura

A comprovada reputação ilibada é uma característica que a Administração

Pública vem perseguindo desde sempre nos processos de seleção de candidatos aos

cargos pertencentes à sua estrutura. Entre os editais históricos que assumimos em nosso

trabalho, desde o Brasil Imperial até a atual República Federativa do Brasil, a condição

de candidato probo sempre foi um requisito imposto pela prática discursiva da

Administração na elaboração de edital. Desse modo, para nós, essa perspectiva

engendra, no interior da FDecp

, mais um elemento do saber próprio do seu interdiscurso,

mais um enunciado [E] que dá margem a diferentes formulações do mesmo dizer

sedimentado. Os recortes abaixo demonstram essa prática discursiva (grifos nossos).

“Os candidatos (...) deverão mostrar por documentos (...) robustez, e regularidade de conduta”. [Edital

de concurso de 1838]

“São condições necessárias á inscripção: (...) ter boa conduta exihibindo fé”. [Edital de concurso de

1893]

“A inscripção se fará mediante requerimento (...) instruído de: (...) atestado de bom comportamento

passado por autoridade policial ou por duas pessoas de notória respeitabilidade (...)”. [Edital de

concurso de 1911]

“(...) a se inscreverem por meio de requerimento (...) acompanhado de (...) folha corrida (...)”. [Edital de

concurso de 1930]

“Os requerimentos de inscrição serão instruídos com os seguintes documentos: (...) b) atestado de bom

comportamento firmado por duas pessoas idôneas”. [Edital de concurso de 1957].

Page 165: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

165

“Exibir no ato da inscrição: (...) f) certidões negativas da justiça comum, Justiça Federal e Justiça

Militar; g) folha corrida”. [Edital de concurso de 1977]

“4. Requisitos: 4.5 – ter boa conduta e idoneidade moral”. [Edital de concurso de 1989]

Todas as formulações acima revelam a necessidade de o candidato satisfazer à

mesma condição: possuir bons antecedentes. Entretanto, os editais que produziram tais

formulações silenciam uma informação importante: os documentos que provam que o

candidato possui bons antecedentes devem ser considerados retrospectivamente até que

ponto da linha do tempo?

A partir do momento em que o edital formula um enunciado estabelecendo a

necessidade de provar reputação ilibada, mas não indica um período mínimo

retrospectivo em que será considerada e avaliada a vida pregressa do candidato, o

silenciamento desse sentido cria uma espécie de pena de caráter perpétuo. Desse modo,

a Administração, em dado concurso, poderia vir a criar obstáculos para candidatos que,

em algum momento da vida, tivesse cometido ato ilícito, impossibilitando-o a participar

do certame.

Por essa razão, estamos observando contemporaneamente a constituição de um

novo sentido no interior da FDecp

, sentido este que, para nós, compõe outro enunciado

[E], um novo elemento do saber inerente a essa formação discursiva. Essa nova prática

de significação quebra o silenciamento que descrevemos acima e determina um lapso

temporal retrospectivo de 5 (cinco) anos para avaliar a vida pregressa dos candidatos.

Nós encontramos essa perspectiva na formulação a seguir (grifo nosso).

“O Edital de convocação para matrícula no Programa de Formação fixará prazo e local para que os

candidatos apresentem os documentos a seguir relacionados, indispensáveis à sindicância de vida

pregressa (...) : a) certidão dos setores de distribuição dos foros criminais da Justiça Federal, Estadual e Eleitoral

dos lugares em que tenha residido o candidato nos últimos 5 (cinco) anos; (...) [Edital de concurso de

2009].

D. Sobre a devolução do valor da taxa de inscrição

Outra formulação sempre prevista atualmente em editais de concurso público diz

respeito à devolução do valor da taxa de inscrição paga pelo candidato. Como veremos

no capítulo seguinte, formulações desse sentido têm sido constantes alvos de pedidos de

impugnação e anulação de edital.

Page 166: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

166

Se tomarmos por base os recortes de editais apresentados abaixo, veremos que,

desde o período da Ditadura Militar109

até o início deste século, a perspectiva enunciada

fora a mesma: a de que a taxa referente à inscrição não seria devolvida em hipótese

alguma. O único edital desse período, dentro do nosso Arquivo 2 - Edital, a prever a

devolução foi o de 1977 (primeira formulação abaixo), considerando apenas uma

circunstância: caso o candidato não tivesse efetivado a inscrição.

A taxa de inscrição somente será devolvida se o candidato não tiver efetivado a inscrição. [Edital de

concurso de 1977]

Em nenhuma hipótese haverá devolução da importância paga a título de ressarcimento das despesas

(...) [Edital de concurso de 1989]

“Não haverá, em qualquer hipótese, devolução da referida taxa”. [Edital de concurso de 1993]

“O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma”.

[Edital de concurso de 2001]

Por isso, entendemos que essa perspectiva constitui mais um elemento do saber

próprio da FDecp

, um enunciado [E] que permite diferentes formulações no plano

intradiscursivo. É, pois, mais um pré-construído, que está sempre já-lá na memória do

dizer e permite uma forma-sujeito dele se apropriar para produzir uma formulação

contemporânea em um edital.

As controvérsias acerca dessa perspectiva já produziram inúmeras disputas

judiciais entre candidatos e órgãos públicos. A Administração lançava um edital de

concurso, recolhia os valores da taxa de inscrição e, caso o concurso fosse anulado por

decisão judicial ou mesmo cancelado pela própria Administração por motivos de

conveniência, os candidatos não eram ressarcidos. É importante ressaltar que a

Administração Pública, com essa prática, comete um ato de enriquecimento ilícito às

custas do administrado.

As contendas judiciais e a consequente jurisprudência firmada pelos tribunais

fizeram irromper, em nossa atual conjuntura, um sentido novo que já constitui o

interdiscurso da FDecp

. Muitos editais (não todos, como veremos no próximo capítulo)

trazem formulações que preveem a devolução do valor da taxa de inscrição caso o

concurso venha a ser cancelado por conveniência ou interesse da Administração. É o

que nos deixa ver a formulação abaixo:

109

Foi somente a partir desse período que encontramos cláusulas em editais a dispor sobre devolução da

taxa de inscrição.

Page 167: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

167

O valor da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento

do concurso por conveniência ou interesse da Administração. [Edital de concurso de 2009]

E. Sobre o direito à nomeação

O direito à nomeação do candidato aprovado e classificado em concurso público

é outra formulação recorrente (e necessária) em editais. Pelos documentos de que

dispomos em nosso Arquivo 1 - Legislação, a enunciação desse direito se tornou uma

prática discursiva durante a República Liberal e vem sendo reproduzida até os dias de

hoje com novos contornos enunciativos.

O Arquivo 1 revela que, da República Liberal até o final da Ditadura Militar, as

administrações criaram a perspectiva de que os candidatos habilitados/classificados em

concurso eram nomeados na ordem de classificação. Entretanto, não determinavam, por

meio de nenhuma cláusula, que a habilitação e a classificação dentro do número de

vagas poderiam dar ao candidato o direito de ser efetivamente nomeado. Havia, pois,

um silenciamento nesse sentido. É o que indicam os recortes seguintes, que demonstram

a existência de outro enunciado [E] próprio da FDecp

:

Os candidatos habilitados serão nomeados na ordem da classificação obtida na localidade em que

tenham pleiteado aproveitamento (...) [Edital de concurso de 1945]

As nomeações obedecerão rigorosamente à ordem de classificação. [Edital de concurso 1957]

O provimento dos cargos obedecerá à ordem de classificação dos candidatos. [Edital de concurso de

1982]

É oportuno lembrar que, no capítulo anterior, mostramos que o princípio do

direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado dentro do número de vagas

ofertadas já estava se institucionalizando em nossa prática administrativa desde a

década de 1930. O Decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931, ao dispor sobre o concurso

para inspetor do Colégio Pedro II, determinava no artigo 64 que o candidato tinha

direito ao provimento no cargo assim que se verificasse a existência de vaga. Contudo,

o silenciamento por parte da Administração nas formulações destacadas acima a

colocava em posição de império, de modo que a ela caberia avaliar a necessidade de

convocar ou não para nomeação o candidato aprovado e classificado em concurso.

Com isso, não raro, a Administração realizava concurso prevendo um número

específico de vagas, arrecadava valores referentes à taxa de inscrição, desenvolvia os

procedimentos administrativos com toda a aparência de legalidade e, findo o processo,

Page 168: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

168

não nomeava os candidatos, alegando, com base no “mérito administrativo”, a ausência

de conveniência ou oportunidade para a nomeção. Inevitavelmente, resultaram dessa

prática processos judiciais impetrados por candidatos que viam seus direitos serem

negados.

Com a finalidade de conter as contendas judiciais, depois da promulgação da

atual Constituição Federal, esse sentido se movimenta, e vemos ser incorporada à FDecp

nova prática de significação. A partir de então, os editais passaram a enunciar a

perspectiva de que a aprovação e a classificação do candidato, mesmo dentro do número

de vagas, não lhe dá o direito à nomeação, mas tão só a expectativa desse direito. Essa

significação passou a compor o interdiscurso da FDecp

e vem funcionando

discursivamente como um pré-construído que governa formulações contemporâneas em

editais de concurso. É o que revelam os dados abaixo:

A aprovação no concurso, ainda que no limite das vagas existentes, assegurará ao concorrente apenas

a expectativa de direito à nomeação, segundo a rigorosa ordem classificatória por ÁREA DE

SELEÇÃO, ficando a concretização desse ato condicionada à observância das disposições legais

pertinentes e ao exclusivo interesse e conveniência da Administração da Câmara dos Deputados.

[Edital de concurso de 1989]

“A aprovação e a classificação final geram, para o candidato, apenas a expectativa de direito à

nomeação”. [Edital de concurso de 1998]

A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a

concretização desse ato condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo

interesse e conveniência da Administração, da rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade

do concurso. [Edital de concurso de 2009]

Contudo, as formulações atuais filiadas a esse elemento do saber incorporado à

FDecp

no início da Nova República têm produzido efeitos de sentido controversos entre

os interlocutores (Administração e candidatos). Como mostramos no capítulo anterior,

os Tribunais Superiores entendem que o candidato aprovado dentro do número de vagas

tem o direito à nomeação. Não cabe, portanto, à Administração avaliar a conveniência

ou a oportunidade para nomear o candidato nessa condição. Trata-se de uma obrigação.

Por isso, a Administração Pública, respeitando a atual jurisprudência dos Tribunais,

vem produzindo editais com uma nova formulação sobre esse sentido, a exemplo da

transcrita abaixo:

Os candidatos aprovados dentro do número de vagas ofertadas neste edital possuem direito

subjetivo à nomeação. [Edital de concurso de 2018]

Page 169: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

169

O sentido construído pela formulação acima já constitui novo elemento do saber

pertencente à FDecp

. É outro enunciado [E] inerente a essa FD que vem regendo a

repetibilidade no seio de uma rede de formulações. Como mostraremos no capítulo

seguinte, nos editais, hoje, há uma oscilação entre esse sentido e o anteriormente

descrito, o que tem produzido pedidos de impugnação ou anulação de concursos.

F. Sobre os critérios de desempate

Dentre os editais que consideramos para nossa análise, só encontramos

formulações sobre critérios de desempate em editais produzidos pela Administração a

partir da República Liberal. Desde então até o início do século XXI, a perspectiva criada

era a de que, havendo igualdade na totalização dos pontos, o desempate era feito com

base no melhor resultado em determinada prova (em geral, a de Língua Portuguesa) ou

em dado conjunto de provas (como as de Conhecimentos Específicos). Para nós, essa

prática de significação constituiu um enunciado [E] pertencente ao domínio do saber da

FDecp

. Assim, filiada a essa memória do dizer, as formas-sujeito de editais produziram

as seguintes formulações no plano intradiscursivo:

“Ocorrendo empate, deverá ser observado, sucessivamente, o seguinte critério: a) melhor resultado na

prova de português (...)”. [Edital de concurso de 1957]

“Os casos de empates, enquanto persistirem, serão resolvidos atribuindo-se prioridade ao candidato que

tiver obtido maior número de pontos, sucessivamente: 1º) na prova de Conhecimentos Específicos

(...)”. [Edital de concurso de 1977]

“Para os cargos de Técnico Judiciário e Auxiliar Judiciário, na hipótese de igualdade de total de pontos,

terá preferência, sucessivamente, o candidato que: a) tiver melhor nota na prova de Português (...)”.

[Edital de concurso de 1982] “Em caso de empate na classificação, terá preferência o candidato que haja obtido maior nota,

sucessivamente, nas provas: a) Específica Objetiva da Área de Seleção (...); d) mais idoso”. [Edital de

concurso de 1989]

“9.1. Em caso de empate, terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) obtiver maior nota na

segunda parte das provas discursivas (...)”. 9.2 Persistindo o empate, terá preferência o candidato

mais idoso. [Edital de concurso de 2001]

Um movimento de sentido interessante de se notar é a inclusão do critério de

desempate baseado na idade do candidato; a qualidade de “candidato mais idoso” passa

a ser considerada. Essa perspectiva irrompe no seio da FDecp

, como nossos dados

revelam, a partir de 1988. Acreditamos que ela seja fruto da conjuntura ideológica da

época, uma vez que a Constituição de 1988 trouxe relativa proteção ao idoso.

Page 170: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

170

Entretanto, até o ano de 2003, o desempate pautado na qualidade “candidato mais

idoso” era o último a ser observado. É o que sinalizam as duas últimas formulações

acima.

De acordo com que apresentamos no capítulo anterior, o ano de 2003 foi

decisivo para a constituição de um novo sentido, um novo enunciado [E] a compor o

domínio do saber da FDecp

. A Lei no

10.741 de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do

Idoso – instituiu a idade como o primeiro critério de desempate em concurso público.

Assim, as atuais formulações em edital, com objetivo de não romper com essa

significação estável, vêm contemporaneamente filiadas a essa memória discursiva; caso

contrário, são certos os pedidos de impugnação. Recortamos o trecho abaixo para

ilustrar ao leitor:

“Ocorrendo empate quanto ao número de pontos ponderados obtidos, terá preferência o candidato com

idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (...)”. [Edital de concurso de 2009]

G. Sobre as vagas destinadas a portadores de necessidades especiais

No capítulo sobre a história do concurso público, vimos que, com a Lei

8.112/1990, as pessoas portadoras de necessidades especiais ganharam efetiva

proteção110

nos certames realizados no país. Desde então, esse direito instituído na

esfera legislativa foi incorporado pela FDecp

, tornando-se mais um elemento do saber

dessa FD, reativado nas formulações intradiscursivas. O recorte a seguir mostra que

logo que a lei fora aprovada, os editais passaram a enunciar em seu corpo textual essa

perspectiva.

“Aos candidatos abrangigos pelo Art. 5º, Parágrafo 2º, Lei 8.112/90, é assegurado o direito de se

inscreverem, sendo-lhes reservada 01 (uma) vaga para a Área Fim”. [Edital de concurso de 1993]

Esse novo enunciado inerente à memória do dizer da FDecp

ganhou outros

contornos enunciativos, de modo que seja possível reconhecer a historicidade dos

deslocamentos de sentidos. Com a Lei 8.112/90, a significação que irrompe na

conjuntura social, política e ideológica da época – lembremo-nos de que essa proteção

foi instituída logo depois da promulgação da atual Constituição, que trouxe grande

110

Preferimos falar em “efetiva proteção”, porque, como vimos no capítulo anterior, ato normativo

anterior (Lei 7.853 de 24/10/1989) já impedia a Administração obstar a inscrição de candidatos PNE,

embora não estabelecesse um percentual mínimo de vagas a ser reservado para eles.

Page 171: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

171

contribuição nesse sentido111

– é a de que os órgãos públicos devem reservar até 20%

das vagas, mas não fica estatuído um percentual mínimo. Desse modo, a instituição que

reservasse o mínimo das vagas estaria atuando nos limites da lei.

É exatamente o que vemos na formulação transcrita acima. De acordo com o

edital do qual esse enunciado foi recortado, para o cargo de Técnico Judiciário - Área

Fim, eram oferecidas 30 (trinta vagas). O edital, contudo, reservou apenas 01 (uma

vaga) para PNE, o que corresponde a aproximadamente 3% do total de cargos a serem

providos.

Para fazer valer a Constituição Federal de 1988, era necessário, pois, uma norma

legal que estabelecesse limitações à Administração Pública de modo a assegurar os

direitos dos PNE. Foi por isso que, como mostramos no capítulo anterior, o legislativo

editou o Decreto 3.298/1999 e, mais recentemente, a Lei 13.146/2015, ambas

recorrentemente referidas na textualização de editais.

Esses atos normativos movimentaram a prática de significação produzida pela

Lei 8.112/90, deslocando-a para que ficasse previsto um percentual mínimo de vagas a

serem ocupadas por PNE. A FDecp

incorporou, em seu domínio do saber, esse novo

enunciado, ao qual se filiam atualmente as formulações que preveem, pelo menos, 5%

das vagas para PNE. É o que indica o recorte a seguir:

“O candidato que se julgar amparado pelo Decreto n. 3.298, de 20/12/99, (...) poderá concorrer às vagas

reservadas a pessoas com deficiência (...)”. [Edital de concurso de AFRF de 2009]

Muito embora a formulação acima, em nenhum trecho, estabeleça

expressamente a reserva dos 5%, a tabela enuncia essa perspectiva: das 450 vagas

disponíveis, 23 são reservadas a candidatos com deficiência, ao passo que 427 ficam

destinadas aos candidatos em ampla concorrência. Com a aplicação da regra, o resultado

fica fracionado em 22,5 vagas (5% de 450). Em respeito ao Decreto 3.298/99, o edital

arredondou para o primeiro número inteiro subsequente, ficando o total de 23 vagas.

111

O inciso XXXI do artigo 7o da CRFB traz, no rol dos Direitos Sociais, o devido amparo aos PNE, ao

estabelecer que “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à

melhoria de sua condição social: (...) XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e

critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.

Page 172: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

172

H. Sobre prazo para recursos quanto às provas aplicadas

O capítulo anterior nos permitiu observar que a concepção de recurso em

concursos públicos é prenunciada pela esfera legislativa desde o Brasil Imperial. Entre

os editais analisados, entretanto, só nos deparamos com formulações desse sentido a

partir da Ditadura Militar. O recorte abaixo parece evidenciar que, nesse período, a

Administração dava uma margem de 24 horas, contadas a partir do encerramento da

vista de provas, para os candidatos apresentarem seus recursos.

“O candidato poderá apresentar recurso à Banca Examinadora (...) no prazo de 24 horas após o

encerramento da vista de provas”. [Edital de concurso de 1977]

Consideramos que o dizer acima constitui um [E] que compôs a FDecp

durante a

Ditadura Militar. Nossos dados mostram ainda que, depois da promulgação da

CRFB/88, houve um deslocamento de sentidos que fez esse prazo derivar para 48 horas.

Não encontramos, dentro do nosso dispositivo de arquivo sobre a legislação brasileira

(Arquivo 1 – Legislação), nenhuma norma editada pelo legislativo que justificasse essa

deriva. Acreditamos que ela seja produto da própria Carta Magna de 1988, que elevou à

posição de princípio constitucional o preceito do contraditório e ampla defesa112

. O

prazo de 24 não seria, nessa perspectiva, suficiente para que os candidatos fizessem sua

ampla defesa perante a banca de examinação. Um novo enunciado [E] parece, portanto,

ampliar as fronteiras da FDecp

, permitindo outras formulações.

“O candidato poderá interpor recurso (...) no prazo de 48 horas após a identificação da prova

discursiva”. [Edital de concurso de 1989]

“O candidato que desejar interpor recurso contra o gabarito oficial preliminar (...) disporá de 2 (dois) dias

úteis após a sua divulgação”. [Edital de concurso de 1998]

“O candidato que desejar interpor recurso contra os gabaritos oficiais das provas objetivas disporá de até

dois dias, a contar do dia subseqüente ao da divulgação dos gabaritos oficiais”. [Edital de concurso de

2001]

“O recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a partir do dia

seguinte ao da divulgação dos gabaritos (...)”. [Edital de concurso de 2009]

112

Confira a este respeito o artigo 5o, inciso LV, da Constituição Federal de 1988: “aos litigantes, em

processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla

defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Page 173: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

173

Entre os editais analisados, assistimos à historicização de outra prática de

significação, além das duas mencionadas acima, a partir de 2009113

. Os editais passaram

a prever prazo recursal de 03 (três) dias – outro enunciado a compor, para nós, a FDecp

para conceder ao candidato um lapso temporal maior e, assim, ficar assegurada sua

ampla defesa.

“O candidato que desejar interpor recursos (...) disporá de 03 (três) dias para fazê-lo, a contar do dia

subsequente ao da divulgação desses gabaritos”. [Edital de concurso de 2011]

“O candidato que desejar interpor recursos (...) disporá das 9 horas do primeiro dia às 18 horas do

terceiro dia (...) para fazê-lo”. [Edital de concurso de 2018]

Contemporaneamente, temos assistindo, na textualização de editais, à

formulação destas duas últimas perspectivas: o edital prevê prazo de recurso de 02

(dois) ou 03 (três) dias. Ambas formulações estão, portanto, filiadas à atual

configuração da FDecp

.

I. Sobre a ausência do programa das provas

Entre os editais considerados em nossa investigação, a primeira formulação a

prever os conteúdos mínimos a ser objeto de examinação em provas de concurso é de

1893. Coincidentemente, segundo o que apresentamos no capítulo prévio, o primeiro

ato normativo a dispor, no campo legislativo, sobre programas para as matérias exigidas

em um certame data de 1890 (Decreto N. 330 de 12 de abril de 1890). A partir de então,

entendemos que essa prática de significação passou a constituir um enunciado [E]

inerente à FDecp

, como mostram os recortes a seguir114

.

“O concurso versará sobre o seguinte: calligraphia; línguas nacional e franceza; arithmetica e suas

aplicações ao commercio com especialidade reducções de moedas, pesos e medidas, cálculos, de

desconto, juros simples e compostos, e teoria de cambios, princípios de escripturação mercantil, noções

de geographia do Brazil”. [Edital de concurso de 1893].

“O concurso constará de: a) dictado de um trecho extrahido da Constituição da República Brasileira de 15

a 20 linhas e analyse grammatical das 20 primeiras palavras; b) Problemas sobre as quatro operações

fundamentaes, em dez pontos, cada um com três questões; d) Leitura de um trecho manuscripto em

portuguez, de preferência minutas de officios, portarias e circulares”. [Edital de concurso de 1924]

113

Não estamos afirmando categoricamente que essa nova perspectiva tenha se dado em 2009. Supomos

essa data pautando-nos nos recortes operados sobre os editais do nosso Arquivo 2 - Edital. O movimento

dos sentidos parece ter ocorrido nesse período. 114

Apresentamos os recortes apenas até 1945, pois a partir desse momento as formulações sobre

programas de provas tornam-se cada vez maiores, chegando atingir dezenas de páginas em editais

contemporâneos.

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174

“O concurso (...) compreenderá as seguintes provas: a) BÁSICA: Português, Aritmética e Corografia do

Brasil; b) ESPECIALISTA: Redação (para a carreira de Auxiliar) e Prática Datilográfica (para a carreira

de Datilógrafo)”. [Edital de concurso de 1945]

A previsão dos programas das provas tornou-se uma imposição nas atuais

formulações de editais de concurso. Cumpre ressaltar ainda que, além do conteúdo

programático, há entendimento por parte dos Tribunais Superiores no sentido de ser

necessário a instituição realizadora do certame indicar uma bibliografia básica sobre a

qual os examinadores se apoiarão para formular as questões. Uma forma de se criar

alguma estabilidade entre as partes envolvidas na relação editalícia.

J. Sobre a previsão de vagas para negros

Podemos afirmar que a previsão de vagas para negros em concursos públicos é

uma das construções mais recentes na produção discursiva de editais de concurso.

Como mostramos no capítulo anterior, trata-se de uma prática instituída pelo poder

legislativo em 2014 por meio da Lei no

12.990, que reserva aos negros 20% das vagas

oferecidas nos concursos públicos federais sempre que o quantitativo de vagas for maior

ou igual a 03 (três). Vemos esse novo sentido como outro enunciado [E] que veio a

compor a FDecp

.

Por ser uma lei que se aplica apenas à Administração Pública Federal, não cabe

aos editais estaduais e municipais produzir, no plano intradiscursivo, formulações que

enunciem essa perspectiva. Porém, os órgãos públicos federais ficam obrigados a

formular, em seus editais, enunciados filiados a esse elemento do saber incorporado à

FDecp

. Não cabe silenciamento por da Administração, sob pena de anular-se todo o

procedimento administrativo atrelado ao concurso.

Tendo em vista a descrição dos elementos do saber da FDecp

apresentados até

aqui, parece que temos argumentos suficientes para sustentar a tese de que essa FD é

fruto de um constante deslocamento de fronteiras que vem sendo produzido desde o

Brasil Imperial (ou, poder-se-ia dizer, desde sempre). Além disso, a análise que fizemos

evidencia que é a esfera legislativa a principal responsável (principal, porque há

também a atuação do poder judiciário), pela incorporação de novos elementos ao

domínio do saber dessa FD, alargando suas fronteiras movediças e ampliando o escopo

da sua memória do dizer.

Page 175: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

175

5.3. Os sujeitos da relação editalícia

Em uma análise discursiva do edital de concurso público, as primeiras perguntas

que se impõem estão relacionadas aos indivíduos que participam da relação editalícia.

Quem são esses indivíduos? Que forma-sujeito é instituída em relação a cada um deles

em função do assujeitamento ideológico? De que lugar eles falam? Quais são as marcas

que atestam a subjetividade na textualização do edital?

Podemos afirmar que, na relação social produzida pelo edital de concurso

público, há basicamente dois indivíduos que participam da interlocução: de um lado

temos a Administração Pública (locutor, em sentido amplo) ou, de forma mais

específica, o órgão vinculado à estrutura administrativa do Estado responsável pela

elaboração de um edital (locutor, em sentido estrito)115

; de outro, temos os

administrados, isto é, os candidatos (interlocutores).

Na perspectiva da Análise de Discurso, sabemos que esses interlocutores –

considerados em sua individualidade como pessoa física (candidato) e pessoa jurídica

(Administração) –, na produção do discurso, são interpelados pela ideologia para se

tornarem sujeitos do que dizem. Este é o primeiro movimento que devemos considerar

para compreender a subjetividade em editais de concurso116

: os indivíduos em questão

(administração e candidatos) são interpelados em sujeito pela ideologia; em outras

palavras, cada um dos indivíduos da relação editalícia, por meio do assujeitamento

ideológico, é afetado pelo simbólico na história tornando-se sujeito.

O assujeitamento tem como resultado a forma-sujeito histórica, que atua nas

trocas simbólicas produzidas na sociedade. Desse modo, Administração e candidatos

revestem-se, pela interpelação ideológica, de uma forma-sujeito para serem agentes de

dada prática social.

Na relação produzida por um edital de concurso público, falaremos em forma-

sujeito-candidato para nos referirmos aos administrados, cidadãos que satisfazem, em

princípio, os requisitos exigidos em dado concurso público e, ao se inscreverem,

colocam-se numa relação bilateral com a Administração Pública, estabelecendo-se um

vínculo do qual decorrem direitos e obrigações para ambos. Em razão dos objetivos do

115

Como não é possível especificar quem é o sujeito que fala na produção de um edital (mesmo porque

sua textualização não é feita por um único indivíduo, mas por uma equipe de técnicos que recebem essa

atribuição), preferimos colocar a Administração Pública na posição de locutor. 116

Tomamos por base a teorização de Orlandi (2012a) sobre o duplo movimento na constituição da

subjetividade.

Page 176: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

176

nosso trabalho, não nos ocuparemos com a descrição detalhada dessa forma-sujeito.

Nosso foco incide sobre a forma-sujeito revestida pela Administração ao produzir um

edital de concurso. Antes de darmos um nome a essa forma-sujeito, iremos expor dois

aspectos que justificarão nossa escolha.

O primeiro aspecto relaciona-se com o que apresentamos de início. No primeiro

item deste capítulo, em que descremos a FDecp

, tornou-se evidente que essa formação

discursiva é atravessada por uma série de dizeres produzidos em outro lugar que foram

sendo historicamente incorporados em função dos anseios tanto do poder público

quanto dos cidadãos. Desse modo, quando observamos um edital produzido

contemporaneamente, deparamo-nos com um texto constitutivamente heterogêneo,

elaborado com enunciados que trazem à tona sentidos constituídos em diferentes

momentos da nossa história e por diferentes sujeitos. Essa heterogeneidade do edital é,

portanto, fruto do princípio de que “o discurso é uma dispersão de textos e o texto é

uma dispersão do sujeito” (ORLANDI, 2012b). Assim, para nós, o texto editalício é

atravessado por várias posições do sujeito, que correspondem a diferentes formações

discursivas (por exemplo, a FD da própria Administração, a FD do Legislativo, a FD do

Judiciário etc.).

Outro aspecto que devemos levar em consideração diz respeito à maneira como

os editais de concurso são usualmente elaborados antes de entrarem em circulação na

sociedade. Em geral, o órgão público responsável pelo concurso prepara uma minuta do

edital contendo as informações gerais sobre o processo de seleção. Em seguida, essa

minuta é transmitida à instituição responsável pela execução do concurso, que finaliza a

estruturação do edital e o submete à revisão pelo órgão público respectivo para que seja

dada ampla publicidade ao certame. O que desejamos sinalizar para o leitor é que não há

um único sujeito responsável pela produção de um edital de concurso público, o que

vem a ser uma problemática para determinação da forma-sujeito responsável pela

enunciação.

Levando em consideração os dois aspectos que mencionamos acima, falaremos

em forma-sujeito-instituição para nos referirmos à(s) entidade(s) que entra(m) em jogo

no processo de produção de um edital de concurso público. A principal razão para

considerarmos a existência dessa forma-sujeito relaciona-se ao fato de ela ser, de acordo

com nosso entendimento, a fonte da enunciação de todas as perspectivas em um edital.

Em outras palavras, pela forma-sujeito-instituição se constitui uma posição-sujeito, isto

é, um lugar determinado na estrutura da nossa formação social a ser ocupado tanto pelo

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177

órgão público quanto pela instituição executora do concurso. Além disso, a forma-

sujeito-instituição, uma vez compreendida como uma forma de existência histórica, abre

espaço para um gesto de leitura que nos permite analisar os diferentes dizeres

produzidos no interior da FDecp

no transcurso do tempo e observar os movimentos de

sentido operados pelo homem em suas práticas de significação.

Agora que temos delimitadas as formas-sujeito que participam da interlocução

produzida pelo edital de concurso, cabe avaliar de que lugar elas falam. Dentro de uma

formação social como a nossa, esses sujeitos falam de uma posição discursiva muito

bem definida. Sabemos que a ambos são atribuídos direitos e obrigações. Mas a

Administração é uma posição-sujeito a que são atribuídas prerrogativas que não são

concedidas aos administrados, uma vez que cabe à primeira a realização do bem

comum. A Administração ocupa, assim, uma posição de “império”, de comando, que

lhe dá margem a enunciar a perspectiva que melhor atenda aos interesses públicos. Por

outro lado, os candidatos ocupam a posição de comandado, na qual, aceitando as

normas impostas pela poder público para um concurso, inscreve-se, submetendo-se a

elas.

É possível reconhecer essas posições discursivas (de comando x de submissão)

quando observamos as marcas que atestam a subjetividade na textualização atual do

edital: as formas linguísticas que indicam os sujeitos-enunciadores (destinadores) do

edital e a forma linguística que aponta para o sujeito-enunciatário (destinatário). Os

recortes a seguir mostram a maneira como a categoria “pessoa” aparece enunciada no

edital. Em cada conjunto de enunciados ((I), (II) e (III)), o item (a) traz referência ao

órgão público realizador do concurso, e o item (b) se refere à instituição executora do

processo de seleção (a banca examinadora); ambos, portanto, dizem respeito ao

destinador. O item (c) se refere ao destinatário.

(I) Edital de concurso de 2018

(a) O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (...) torna pública a realização de concurso

público para provimento de vagas do cargo de Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do

Estado de Minas Gerais (TCEMG), mediante as condições estabelecidas neste edital.

(b) O Cebraspe realizará o concurso utilizando o método Cespe de seleção.

(c) Os candidatos nomeados estarão submetidos ao Regime Jurídico estatutário, em conformidade com

as normas contidas na Lei Estadual nº 869, de 5 de julho de 1952 (...).

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178

(II) Edital de concurso de 2011

(a) A COMISSÃO DE CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE)

(...) torna pública a realização de concurso público para o provimento de cargos efetivos, de nível médio e

de nível superior, do quadro de pessoal do Tribunal Superior Eleitoral (...).

(b) A CONSULPLAN consultará o órgão gestor do CadÚnico para verificar a veracidade das

informações prestadas pelo candidato.

(c) O candidato que se declarar pessoa com deficiência concorrerá em igualdade de condições com os

demais candidatos.

(III) Edital de concurso de 2009

(a) O DIRETOR-GERAL DA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO FAZENDÁRIA (...) divulga e

estabelece normas específicas para abertura das inscrições e a realização de concurso público destinado a

selecionar candidatos para o provimento de cargos de AUDITOR-FISCAL DA RECEITA FEDERAL

DO BRASIL (...).

(b) A ESAF consultará o órgão gestor do CadÚnico para verificar a veracidade das informações prestadas

pelo candidato.

(c) O candidato poderá retirar o Edital regulador do concurso no endereço eletrônico (...).

Os trechos destacados nas formulações acima evidenciam a exclusiva marcação

da categoria em foco com formas linguísticas que remetem à 3ª pessoa. Tanto os

destinadores – órgão público e instituição executora/banca examinadora – quanto os

destinatários são referidos na 3ª pessoa.

Essa forma de individuação na produção discursiva dos editais constrói um

efeito de distanciamento entre destinador e destinatário. A marcação dos sujeitos em 3ª

pessoa traz, ao mesmo tempo, um efeito de sentido de objetividade e dissimetria entre

os interlocutores (órgão público e banca examinadora x candidatos). A objetividade

fecha o texto em seu caráter impessoal, no sentido de “desprovido de 1ª pessoa”, como

deve ser todo ato normativo produzido pelo Estado, caracterizado pela impessoalidade.

A dissimetria reproduz o desnivelamento das posições-sujeito ocupadas por cada um

dos interlocutores – o destinador ocupa posição de comando; o destinatário, a de

comandado.

De modo mais amplo, podemos afirmar que a enunciação em 3ª pessoa para

esses três sujeitos envolvidos na relação editalícia apaga a interação entre eles (ou, mais

precisamente, apaga a interação entre os destinadores e o destinatário), construindo-os

discursivamente como sujeitos distintos, dotados de direitos e obrigações pelos quais

respondem individualmente caso cometam alguma infração às normas do edital. Eis a

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forma como, pelo nosso entendimento, o Estado individualiza esses sujeitos, de modo

que cada um deles, representados em sua individualidade, possa vir a responder civil e

criminalmente pelos ilícitos praticados.

Há um traço linguístico peculiar que julgamos interessante destacar, uma vez

que, para nós, traz à tona o papel da memória no ato de formulação no plano

intradiscursivo. Esse traço linguístico se relaciona à maneira como o processo de

referenciação é construído na textualização do edital sempre que é necessário fazer

remissão às seguintes pessoas: à banca examinadora e ao(s) candidato(s).

Os dados apresentados nos itens (I), (II) e (III) acima mostram que tais pessoas

são referidas por meio de um processo de referenciação pela reiteração (repetição) dos

mesmos sintagmas: o Cebraspe, a Consulplan, a Esaf e o candidato. Entendemos que

essa repetição constitui um mecanismo de produção do discurso, isto é, de efeitos de

sentidos entre os interlocutores. Para nós, a repetição do nome da banca examinadora,

sempre que o enunciador precisa retomá-la na construção do texto de edital, realça a

posição discursiva que esse sujeito ocupa em relação ao destinatário, atribuindo-lhe uma

força argumentativa que o candidato não tem. Por outro lado, a repetição do sintagma o

candidato traz um jogo com a memória discursiva que também nos permite identificar

sua posição-sujeito no processo enunciativo. Para compreendermos esse jogo, temos

que tomar a palavra candidato em sua origem.

Candidato provém do latim candidātus que, por sua vez, deriva do adjetivo

latino candĭdus. Esta última palavra pode significar branco, alvo, sereno, puro,

bondoso, leal, sincero etc. Por isso, o termo candidātus designava na Roma Antiga o

sujeito vestido de branco117

.

No capítulo anterior, vimos que a eleição já foi uma forma de seleção para a

escolha de funcionário público por meio de votação em escrutínio. Ao que tudo indica, a

Roma Antiga foi um dos berços da civilização em que essa prática foi adotada. Os

pretendentes aos cargos públicos trajavam uma roupa branca como meio de serem

identificados e diferenciados do restante do povo. A veste branca que eles usavam

servia para marcar o indivíduo como um sujeito puro, leal, sincero, probo, que passou a

ser referido como candidātus, “vestido de branco”. A roupa branca metaforizava, assim,

a honestidade do candidato, que devia ser dotado de uma vida pregressa imaculada. Era,

117

Para mais detalhes sobre os sentidos dessas palavras latinas, confira Botelho (2014).

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180

pois, uma forma de representar, no imaginário social romano, a “reputação ilibada”,

qualidade que se espera hoje de todo candidato ao serviço público.

Por essa razão, entendemos que o uso reiterado do sintagma o candidato, nos

atuais editais de concurso, em referência ao destinatário inscreve-se na discursividade

dos editais, no momento de sua formulação e circulação, para reafirmar a posição

histórica da forma-sujeito-candidato, uma posição de pessoa honesta que saberá cuidar

da coisa pública.

5.4. A língua(gem) do edital

É comum encontramos, nos distintos entes federativos (União, Estados, Distrito

Federal e Municípios) no exercício dos seus poderes (legislativo, executivo e

judiciário), seus respectivos Manuais de Redação Oficial, prontuários que estipulam um

conjunto de parâmetros de escrita pelo qual o poder público deve redigir seus atos

normativos e comunicações.

Tomamos, a título de ilustração, o Manual de Redação da Presidência da

República, que governa a escrita do executivo federal. Logo no início, quando são

tratados aspectos gerais da escrita do Estado, o Manual assume o princípio de que “a

redação oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto de

linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade” (BRASIL, 2002, p. 4). O

edital de concurso público é um ato normativo e, como tal, deve obedecer aos

parâmetros instituídos pelo Estado para sua redação. Daí dever reunir as características

apontadas acima.

Como vimos no item anterior, a impessoalidade está diretamente relacionada ao

modo como a categoria de “pessoa” é instituída no texto. Quando a forma-sujeito de um

edital faz referência ao órgão público e à banca examinadora por meio de seus nomes

institucionais, busca-se criar um efeito de sentido de objetividade, excluindo do texto

quaisquer impressões individuais do destinador. Muito embora, o edital seja assinado

por um chefe de expediente, a enunciação não é feita em seu nome, mas em nome do

Serviço Público. Do mesmo modo, quando a forma-sujeito-instituição se refere ao

destinatário como o(s) candidato(s), a intenção é produzir o mesmo feito de

objetividade, tratando-o(s) de forma impessoal e homogênea. Esse mecanismo de

impessoalização resultou consequentemente em uma padronização das formas de

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181

referência aos sujeitos da relação editalícia, estabelecendo um efeito de uniformidade na

textualização do ato normativo.

Clareza, concisão e formalidade são atributos da redação oficial que precisam

ser igualmente respeitadas na produção do edital. Por clareza, o Manual entende a

qualidade que torna o texto claro, “possibilitando a imediata compreensão pelo leitor”

(BRASIL, 2002, p. 6). Concisão é definida como a qualidade que faz o texto conciso,

capaz de transmitir o máximo de informação com o menor número de palavras. O

Manual ressalta também a característica da formalidade que, além de atender à forma, à

sua estruturação típica, relaciona-se também ao uso do padrão culto de linguagem.

Ao estipular um conjunto de princípios aplicados à escrita de seus atos oficiais, o

Estado visa perpetuar o uso daquilo que, em Análise de Discurso, entendemos como

língua de madeira, segundo a concepção de Gadet & Pêcheux (2004 [1981]) e Courtine

(1999 [1981]), ou língua imaginária, na visão de Orlandi & Souza (1988).

Na textualização do edital de concurso público, o Estado faz uso da língua

oficial118

, uma língua que, por atender às técnicas de redação oficial e valer-se do jargão

técnico do Direito e dos mecanismos de construção sintática típicos da argumentação

jurídica, ostenta uma forma de composição em que fica evidente a opacidade do texto

ao olhar do sujeito leitor. Desse modo, defendemos a posição de que a língua adotada

pela Administração para a textualização do edital de concurso é a língua de madeira,

uma língua imaginária, típica das instituições, fechada nela mesma.

Esse posicionamento nos permite tecer duas considerações. Primeiramente, se

tomarmos a caracterização feita por Courtine (1999 [1981]) sobre língua de madeira

como “língua de pano, rude, áspera, desigual”, seremos levados a supor que a língua

usada na textualização do edital não é para a compreensão de todos. Não pretendemos

afirmar que isso seja um traço intencional por parte do enunciador. Ela é desigual, uma

vez que reproduz o desnível entre a Administração do Estado e os administrados,

cidadãos comuns que não têm o domínio dessa língua áspera. Assim, por mais que os

Manuais de Redação Oficial estipulem que a clareza deva ser atributo da escrita do

Estado, a língua de madeira possibilitaria “a imediata compreensão pelo leitor”? Pura

ilusão da transparência do sentido. A propósito, o próprio Manual de Redação da

Presidência da República traz expressamente a ilusão da transparência ao afirmar (grifos

nossos):

118

Adotamos esse termo dentro da concepção formulada por Guimarães (2003).

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182

Não se concebe que um ato normativo de qualquer natureza seja

redigido de forma obscura, que dificulte ou impossibilite sua

compreensão. A transparência do sentido dos atos normativos, bem

como sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Direito:

é inaceitável que um texto legal não seja entendido pelos cidadãos. A

publicidade implica, pois, necessariamente, clareza e concisão.

(BRASIL, 2002, p. 4)

A segunda consideração diz respeito à questão da fluidez. Como nos ensinam

Orlandi & Souza (1988), a língua imaginária (e, assim também, a língua de madeira)

freia a fluidez, o movimento dos sentidos, já que reproduz um sistema estático. Mas, na

produção discursiva do edital de concurso, os sentidos não se movimentariam, eles

ficariam sempre inertes dentro do sistema fechado do qual fazem parte? Na perspectiva

da Análise de Discurso que assumimos neste trabalho, o sentido da palavra sempre pode

ser outro. Por mais que se respeite todo um conjunto principiológico aplicado à escrita

do edital, a significação jamais estará fechada, abrindo espaço para diferentes

interpretações, fazendo os sentidos movimentarem-se.

5.5 Tipologia de discurso

Encontramos em Orlandi (1983, 1984, 2013) os fundamentos teóricos para

incluir o edital de concurso público no âmbito do discurso autoritário.

Argumentaremos em favor dessa tese levando em consideração o princípio de que é no

funcionamento discursivo – isto é, no modo como o discurso é estruturado em editais

por um locutor específico para um interlocutor determinado com uma finalidade

singular – que temos as bases para enquadrar um discurso dentro de uma tipologia.

Antes, julgamos necessário trazer informações sobre a natureza jurídica dos

editais de concurso, as quais contribuirão para traçarmos os argumentos favoráveis à

nossa tese, uma vez que nos permitirão reconhecer o papel desempenhado por cada

instância considerada no âmago do funcionamento discursivo (locutor, interlocutor e

finalidade em editais).

5.5.1 Natureza jurídica do edital de concurso público

Cumpre assinalar, de início, que o concurso público é um processo

administrativo atualmente compreendido, em sentido amplo, conforme orientação de

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183

Alexandrino e Paulo (2011, p. 807), “como uma série de atos ordenados em uma

sucessão lógica, a qual tem por finalidade possibilitar à administração pública a prática

de um ato administrativo final ou a prolação de uma decisão administrativa final”.

No transcorrer dessa “série de atos ordenados", é possível que insurjam conflitos

de interesse entre os participantes do certame (interlocutores) ou entre estes e a

Administração Pública (locutor). Motta (2006) afirma que “o concurso público é

ontologicamente marcado pelo conflito de interesses entre os concorrentes e,

eventualmente, entre qualquer destes e a Administração”119

.

Acrescente-se que, diante dos eventuais litígios entre administrados –

concorrentes no certame – e Administração, além da observância dos princípios, entre

outros, da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, isonomia,

razoabilidade e proporcionalidade, previstos em nossa Constituição Federal, deve ser

observado, com a máxima atenção, o princípio da vinculação ao instrumento

convocatório ou princípio da vinculação ao edital.

Entra em jogo a figura jurídica do edital de concurso público como ato

administrativo normativo que serve ao controle de todo o processo administrativo

implementado para a seleção de candidatos ao serviço público (eis a finalidade de um

edital). O edital, em razão do princípio da vinculação ao instrumento convocatório,

tornou-se um ato normativo de caráter obrigatório emitido pelos órgãos da

Administração para tornar público, a todos os interessados, o conjunto de regras que

governarão a realização de dado concurso e que deverão ser observadas por ambas as

partes que entram em jogo no certame: administração e administrados. Torna-se

oportuna, aqui, a lição de Motta (2006), para quem:

A publicação do edital torna explícitas quais são as regras que

nortearão o relacionamento entre a Administração e aqueles que

concorrerão aos seus cargos e empregos públicos. Daí a necessária

observância bilateral, a exemplo do que ocorre com as licitações: o

poder público exibe suas condições e o candidato, inscrevendo-se,

concorda com elas, estando estabelecido o vínculo jurídico do qual

decorrem direitos e obrigações. Pactuam-se, assim, normas

preexistentes entre os dois sujeitos da relação editalícia. De um lado a

Administração. De outro, os candidatos. Qualquer alteração no

decorrer do processo seletivo, que importe em mudança significativa

na avença, deve levar em consideração todos os participantes

inscritos e previamente habilitados, não sendo possível estabelecer-se

119

Não é possível indicar a página deste fragmento, pois o texto circula em meio virtual.

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184

distinção entre uns e outros, após a edição do edital. Desta forma,

compete ao administrador estabelecer condutas lineares,

universais e imparciais, sob pena de fulminar todo o concurso,

oportunidade em que deverá estipular nova sistemática editalícia para

regular o certame. (Grifos nossos)

É oportuno frisar que o edital, uma vez assumido como ato normativo, permite-

nos considerá-lo, com base nos ensinamento de Pêcheux (2012 [1983]), como um

procedimento de gestão-controle administrativo, que visa produzir uma estabilidade

discursiva. Este é, para nós, o traço (discursivo) peculiar do edital de concurso público:

um documento marcado pela estabilização dos sentidos. Os editais inscrevem-se, assim,

no universo dos discursos logicamente estabilizados, com seu núcleo rígido de

formulações que visam assegurar um mundo semanticamente perfeito, sem espaço para

o equívoco e para a ambiguidade.

Entretanto, como salientamos no capítulo anterior, o fato de o concurso e, assim,

o edital (documento que o disciplina), estarem inscritos em um universo discursivo

logicamente estável não os torna um ritual imune ao equívoco da língua, pelo qual os

sentidos se deslocam, estando sempre suscetíveis de se tornarem outros. É por essa

razão que, não raro, irrompem os litígios entre candidatos ou entre estes e a

Administração.

Para que sejam evitadas contendas entre os “sujeitos da relação editalícia”, tem

sido comum, na nossa atual prática social, o edital ser submetido a diferentes formas de

controle. Alexandrino e Paulo (2011, p. 791) definem controle administrativo como:

Conjunto de instrumentos que o ordenamento jurídico estabelece a

fim de que a própria administração pública, os Poderes Judiciário e

Legislativo, e ainda o povo, diretamente ou por meio de órgãos

especializados, possam exercer o poder de fiscalização, orientação e

revisão da atuação administrativa de todos os órgãos, entidades e

agentes públicos, em todas as esferas de Poder.

A doutrina jurídica prevê diferentes formas de classificação do controle

administrativo, dentre as quais destacamos, segundo nossos interesses, a classificação

conforme a origem. Sob essa ótica, o controle pode ser interno, externo ou popular.

A vantagem de se tratar de um processo administrativo organizado por uma

sequência de atos preordenados encontra-se no fato de a própria administração pública

poder, com base no princípio da autotutela, rever seus atos. É o que se chama de

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185

controle interno. Seu fundamento é, pois, o poder de autotutela, segundo o qual a

administração, com base no princípio da legalidade, pode rever seus próprios atos,

anulando-os, se forem ilegais, ou, com base no mérito administrativo, pode revogá-los

por motivo de conveniência ou oportunidade.

Essa forma de controle interno é prevista no texto constitucional, que afirma, no

artigo 74, que “Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma

integrada, sistema de controle interno (...)”. É, portanto, uma forma de controle

realizada tanto pelo Executivo, que exerce tipicamente a função administrativa, quanto

pelo Legislativo e pelo Judiciário, que, embora suas funções primárias sejam outras,

exercem secundariamente a função administrativa. Ratifica o poder de autotutela por

parte da administração a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, que assim reza:

A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de

vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos;

ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,

respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a

apreciação judicial.

Diferentemente do controle interno, diz-se que o controle é externo quando um

Poder controla os atos administrativos produzidos por outro Poder120

. É o que acontece,

por exemplo, quando o Judiciário é provocado pelo Ministério Público ou por qualquer

cidadão interessado para rever os atos praticados pelo Executivo ou, ainda, pelo

Legislativo ou Judiciário no exercício de atividade administrativa.

O controle popular, por outro lado, é aquele que pode ser realizado por

quaisquer administrados, aos quais é atribuída, por lei, “a possibilidade de – diretamente

ou por intermédio de órgãos com essa função institucional – verificarem a regularidade

da atuação da administração pública e impedirem a prática de atos ilegítimos, lesivos ao

indivíduo ou à coletividade, ou provocarem a reparação dos danos deles decorrentes”

(ALEXANDRINO & PAULO, 2011, p. 793). A principal lei que confere aos cidadãos a

possibilidade de controle popular é a Constituição Federal. O artigo 5º, inciso LXXIII,

estatui que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a

anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à

moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”. E,

ainda, o artigo 74, § 2º da Lei Maior estabelece que “qualquer cidadão, partido político,

120

Cf. Alexandrino e Paulo (2011, p. 793).

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186

associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades

ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.

No tocante ao controle administrativo sobre a realização de concursos públicos,

vemos que as três formas de controle apresentadas acima têm sido praticadas para

conter, não raro, as exigências abusivas cometidas em editais de concurso, exigências

que ferem os princípios constitucionais e vão contra as conquistas dos cidadãos face ao

arbítrio da administração. Dessa forma, é possível assistir à própria administração,

valendo-se do poder de autotutela, suspender um edital de concurso após a reavaliação

do mérito administrativo, que tenha permitido observar que, por uma questão de

conveniência ou oportunidade, aquele concurso não atende às demandas da

administração naquele momento. Pode também a administração anular um edital de

concurso após ter observado algum vício insanável que torne o ato ilegal e, por isso,

passível de anulação. Além disso, não tem sido incomum assistir ao Poder Judiciário,

após prévia provocação, suspender ou anular a realização de um concurso em virtude

das falhas cometidas no certame. Por fim, destacamos os casos recorrentes de mandado

de segurança com pedido de liminar, impetrados por cidadãos, diretamente ou por seus

respectivos conselhos profissionais, contra edital de concurso em razão da existência de

cláusula da qual discordem.

5.5.2 Tipo de discurso em edital de concurso

Afirmamos anteriormente que o edital de concurso público se caracteriza por ser

um discurso autoritário. Chegamos a essa conclusão, após estudarmos o edital tomando

de empréstimo os critérios adotados por Orlandi (1983, 1984 2013) ao propor sua

tipologia de discurso: modo como os interlocutores se consideram, grau de

reversibilidade, relação dos interlocutores com o objeto de discurso (como o referente

se apresenta) e carga de polissemia.

Devemos destacar que, para a nossa caracterização do edital como discurso

autoritário, nós o consideramos no seu estado inicial, isto é, no momento em que ele é

formulado em dadas condições de produção e posto em circulação na sociedade. Nós o

consideramos assim porque, no seu nascimento, o edital, como a lei do concurso,

irrompe no mundo jurídico com um caráter impositivo. Como todo ato normativo, ele é

formulado pela Administração para não ser questionado, exceção feita aos editais

elaborados em discordância com a lei, o que pode levar às formas de controle que

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187

dissertamos no subitem anterior. Entretanto, seu caráter impositivo, via de regra, não

daria margem ao questionamento por parte dos interlocutores.

Portanto, devemos deixar nítida nossa perspectiva para o leitor.

Independentemente das possibilidades de controle sobre os editais de concurso cuja

existência reconhecemos mais acima, considerando o seu nascimento no mundo jurídico

e suas delimitações dentro de um universo discursivo logicamente estável, ele é

produzido como um impositivo legal que não abre espaço ao questionamento. É com

base nessa essência do edital que o caracterizamos como discurso autoritário.

Assim, considerando o primeiro critério adotado por Orlandi, entendemos que,

na produção discursiva de um edital de concurso público, há um locutor que se

manifesta como um agente exclusivo do discurso, apagando sua relação com os

interlocutores. O “tu” previsto no edital, que corresponde ao candidato, é colocado

como mero receptor, não podendo interferir no processo.

No tocante ao segundo critério, entendemos que a reversibilidade em editais

tende a zero. Todo edital, produzido sem qualquer vício que o torne ilegal, nasce no

mundo jurídico sem dar margem à troca de papéis entre os interlocutores. Assim, a

Administração Pública, em um certame específico, impõe suas condições; os

candidatos, concordando com elas, inscrevem-se ou não para participar da seleção.

Como o edital de concurso corresponde à lei, a voz do seu locutor traz,

circunscrita em uma relação de poder, mais força que o próprio dizer. Desse modo, de

acordo com o terceiro critério, entendemos que o objeto de discurso de editais (seu

referente) fica apagado, encoberto pelo dizer do locutor, que se encontra em uma

posição discursiva em que lhe são conferidos plenos poderes para formular o edital de

modo que melhor atenda à Administração e aos administrados.

Com base no critério carga de polissemia, entendemos que a polissemia em

editais é contida uma vez que os enunciados formulados em sua produção visam manter

a estabilidade jurídica entre as partes, o que depende de um jogo com os sentidos já

sedimentados, estabilizados discursivamente.

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6. A tensão paráfrase-polissemia e o silenciamento em editais de concurso público

Entre o Homem e a Instituição, numa relação em que o poder e a ideologia são as constantes,

os sentidos balançam entre uma permanência que às vezes parece irremediável

e uma fugacidade que se avizinha do impossível. E aí ficamos.

(ORLANDI, 2012b, p. 15)

Nesta parte do nosso trabalho, procuramos mostrar: a) como, na produção do

edital de concurso público, enunciados são formulados na tensão paráfrase-polissemia; e

b) dois casos de silenciamento. Partimos da hipótese inicial de que, sendo o edital um

ato normativo que disciplina todo o trâmite de um concurso, suas cláusulas devam ser

enunciadas segundo o mecanismo da paráfrase tendo em vista a manutenção da

estabilidade discursiva e, assim, da estabilidade jurídica entre as partes envolvidas

(administração e administrados). Em contrapartida, a polissemia seria, em editais,

extremamente contida, uma vez que a forma-sujeito de um edital não poderia, jogando

com o equívoco da língua, formular enunciados que rompessem com o já instituído

pelas leis, pela doutrina, pela jurisprudência e pelas práticas já enraizadas na

administração pública.

Colocamos em jogo enunciados de editais que não sofreram qualquer forma de

intervenção e enunciados que foram alvo impugnação, revogação ou anulação. Com

relação aos editais sob impugnação, no entanto, faz-se necessário verificar que efeitos

de sentidos são instituídos, levando-se em conta o tipo de paráfrase que daí resulta.

Quando da análise dos editais, recorreremos a Léon & Pêcheux (2012 [1982]) a fim de

se buscar colocar em discussão nos editais referidos o trabalho que se efetua na língua

em termos de léxico e sintaxe.

Partimos da tese de que, embora todo enunciado se filie a uma rede de

formulações já constituídas, em razão da incompletude do sujeito e dos sentidos o

enunciado pode representar um deslocamento nessa rede. Assim, o enunciado é

constituído por pontos de deriva, deslizamentos/efeitos metafóricos. Mas há também

pontos de bloqueio, que interrompem a deriva em busca da estabilização. A existência

desses dois processos na linguagem levou Orlandi (2013) a estabelecer a diferenciação

entre três formas de repetição: a empírica (mnemônica), que só repete, nada muda; a

formal (técnica), que implica outra maneira de dizer o mesmo; e a histórica, que

provoca o deslocamento, fazendo emergir o irrealizado no âmago dos sentidos

estabilizados. As duas primeiras constituem pontos de bloqueio na produção do

discurso; a última, pontos de deriva.

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Na literatura da Análise de Discurso, as duas últimas formas de repetição que

mencionamos acima são tratadas, respectivamente, como paráfrase e polissemia,

processos que vêm sendo tratados por Eni Orlandi desde a década de 1970 e passaram a

constituir parte de inúmeros dispositivos analíticos em pesquisas que visam investigar

discurso em diferentes materialidades.

Não obstante a tensão básica do discurso se manifeste no jogo entre paráfrase e

polissemia, tensão esta que se torna um “prato cheio” na análise de editais, a repetição

mnemônica também intervém no ato de formulação desta forma de ato normativo, ainda

que, em princípio, não produza tensão. Frise-se por ora: “em princípio”. Em função

disso, devido à natureza do corpus trazido para análise, coloraremos em jogo, os três

processos.

Para dar visibilidade ao jogo repetição-paráfrase-polissemia e aos efeitos de

sentido produzidos, tomamos os enunciados formulados nos editais analisados (e

dispostos nos corpora discursivos I e II) e os dispomos em uma cadeia de formulações

(doravante CF). Em cada CF, relacionamos nas primeiras linhas os enunciados de

editais que não sofreram qualquer forma de controle administrativo/judicial e deixamos

por último o(s) enunciado(s) formulado(s) em edital(is) submetido(s) a questionamento

em razão de suas falhas ou silenciamentos. Estes últimos serão indicados em vermelho.

É importante justificar a maneira como organizamos as cadeias de formulações.

Entre cada formulação, utilizamos uma barra vertical cuja função é indicar que as

formulações em análise formam uma rede de enunciados que atestam que o dizer

sempre pode ser outro. Portanto, não instituímos essa rede com a intenção de afirmar a

existência de qualquer historicidade entre os enunciados postos em análise, mas apenas

que eles estão em uma relação de paráfrase. Devemos destacar ainda que não iremos

explorar as variações sintáticas entre as frases no todo, mas apenas dos fragmentos

destacados entre chaves, uma vez que são eles os pontos críticos que levaram dado

edital à intervenção judicial.

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6.1 Análise da Cadeia de Formulação 1 (CF1): sobre requisitos para investidura

O candidato será {investido no cargo} se atendidas as seguintes exigências: (...) [Esaf]

Dos requisitos básicos {para investidura nos cargos}: (...) [Cebraspe]

O candidato deverá atender (...) {para investidura no cargo} aos seguintes requisitos: (...) [FGV]

O candidato (...) será {investido no Cargo/Especialidade} se atender (...): [FCC]

São requisitos {para inscrição / nomeação}: (...) [Prima Face]

Entre os pontos {a}, {b}, {c} e {d}121

, formulados de acordo com as leis,

observamos um típico processo parafrástico, pelo qual em cada dizer há algo que se

mantém visando à estabilidade dos sentidos e, assim, a estabilidade sociojurídica entre

as partes envolvidas. Entre eles, há uma variação sintática mínima, mas não há variação

lexical. Entretanto, na deriva para o ponto {e}, em que há variação sintática e total

variação lexical, apontando para outros referentes, há algo que se rompe. Jogando com o

equívoco, com a intrínseca susceptibilidade de o enunciado poder tornar-se outro122

, os

sentidos derivam, rompendo, no seio da cadeia de enunciados realizados na atual

conjuntura – estáveis discursivamente –, com o já estabelecido por lei. É aqui que

intervém a polissemia para permitir que os sujeitos e os sentidos se movimentem. O

processo polissêmico, como podemos notar, é uma força que permite o sujeito-

enunciador da formulação {e} deslocar um enunciado já estabilizado para outro ainda

não realizado contemporaneamente, mas possível.

De fato, com base no que apresentamos no capítulo anterior, o enunciador desta

formulação {e} está retomando sentidos pré-existentes, que já configuraram no interior

da FDecp

, mas que não entram em conformidade com universo jurídico atualmente

estabelecido. Conforme nosso entendimento, a perspectiva que impunha a comprovação

dos requisitos no ato de inscrição, em virtude das leis, deveria ter sido desincorporada

da FDecp

a partir da década de 1980 de modo a se manter a estabilidade dos novos

sentidos.

121

Considere cada um desses pontos em relação a cada um dos enunciados da cadeia de formulações na

respectiva ordem em que aparecem. Aplicaremos o mesmo procedimento em todas as cadeias de

formulação analisadas neste capítulo. 122

Cf. Pêcheux (1983[2012, p. 53]).

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191

Deslocamentos como esse representam um jogo próprio da língua123

: fazer

manobras no processo de produção de sentidos, o que reflete a “exterioridade relativa”

da formação ideológica (MALDIDIER, 2003, p. 39). Expliquemos: a enunciação de

uma cláusula específica de edital de concurso tende a ser regulada por circunstâncias

várias (históricas, sociais, políticas e, principalmente, jurídicas) – daí uma possível

estabilidade entre os pontos {a}, {b}, {c} e {d}; contudo, na formulação de um

enunciado por meio da polissemia, a força que pretende deslocar o sedimentado para o

irrealizado atualmente reflete a formação ideológica na qual aquela formulação está

inserida. No seio dessa formação ideológica, manifesta-se uma formação discursiva que

tende a fechar o processo seletivo, excluindo do certame, já no ato de inscrição, os

indivíduos que não atendem aos requisitos estabelecidos. Desse modo, por exemplo, um

candidato que não tivesse 18 anos completos (este é um dos requisitos) até o último dia

da inscrição, mas que o tivesse três meses depois quando ainda se realizasse o concurso,

ficaria excluído daquele processo. Em outras palavras, ao deslocar os sentidos já

instituídos para outro ponto, o enunciador, nesse edital, manobra o processo, criando

obstáculos para aqueles que, durante a inscrição, não satisfaçam um dos requisitos

previstos. A forma-sujeito que fala nessa formulação se inscreve em uma FD filiada à

FI do Estado que, no ato de individuação dos sujeitos, decepa-lhes direitos.

A CF1 mostra que a consequência do deslocamento operado pela polissemia na

produção discursiva do edital de concurso pode ser drástica no mundo sócio-jurídico. A

formulação do enunciado {e} na construção do edital do concurso para a Prefeitura

Municipal de Centralina/MG foi julgada ilegal pelo TCE/MG com o argumento de que

as exigências apontadas (ter nacionalidade brasileira, ter idade mínima de 18 anos, estar

quite com a Justiça Eleitoral etc.) devem ser pleiteadas na data da posse e não no

momento da inscrição e/ou nomeação.

A deriva, o deslizamento de sentidos, das formulações {a, b, c, d} para a

formulação {e} produz discursivamente uma enunciação (uma perspectiva) possível

pelo jogo com as formas da língua, mas abre uma arena para o confronto com os

enunciatários em virtude dos efeitos de sentido estabelecidos. Instalam-se, assim, numa

relação de antagonismo, duas formas-sujeito: de um lado, temos uma forma-sujeito-

instituição inscrita em uma FD filiada a uma FI do Estado cerceadora de direito; do

outro, uma forma-sujeito-candidato (que corresponde ao cidadão em geral) – inscrita em

123

Esse jogo é inerente à língua porque, imaginariamente, toda formulação tem direções de sentido

determinadas.

Page 192: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

192

uma FD que traz à tona – como efeito do pré-construído – uma série de dizeres e

sentidos produzidos/conquistados historicamente a partir das lutas políticas e

ideológicas entre classes.

A organizadora do concurso, em respeito às indicações do TCE/MG, fez a

devida retificação do edital, em que passou a figurar o seguinte enunciado: “São

requisitos para posse: (...)”. Assim, com a nova enunciação, a CF1 se reorganiza com a

seguinte composição:

CF1 Reformulada

O candidato será {investido no cargo} se atendidas as seguintes exigências: (...) [Esaf]

Dos requisitos básicos {para investidura nos cargos}: (...) [Cebraspe]

O candidato deverá atender (...) {para investidura no cargo} aos seguintes requisitos: (...) [FGV]

O candidato (...) será {investido no Cargo/Especialidade} se atender às seguintes exigências (...): [FCC]

São {requisitos para posse}: (...) [Prima Face/retificado]

As substituições contextuais entre {investido no cargo}, {para investidura nos

cargos}, {para investidura no cargo}, {investido no Cargo/Especialidade} e

{requisitos para posse} cria, no seio da CF1 reformulada, uma rede parafrástica de

sentidos estáveis, apta à manutenção da ordem jurídica. De modo geral, poderíamos

esquematizar a enunciação produzida nos cinco editais na seguinte fórmula:

{a, b, c, d, e} – O candidato deve atender x para y.

Na CF1 reformulada, há um contorno sintático entre a última formulação e as

anteriores que devemos notar. Em todas as formulações, x está para

requisitos/exigências. Mas apenas em {a, b, c, d} y está para investidura. Na formulação

{e}, y está para posse. Temos, assim, um deslocamento que se opera entre {(para)

investidura} e {para posse}. Ambas as construções sintáticas visam estabelecer a ideia

de finalidade; entretanto a opção por posse no lugar de investidura produz efeitos na

discursividade do edital, muito embora os sentidos que irrompam na formulação {e}

não a tornem ilegal no campo jurídico.

Page 193: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

193

Para compreendermos a natureza desses jogos, devemos retomar as noções de

investidura e posse. Na doutrina do Direito124

, investidura é um processo que produz o

elo entre um indivíduo e um cargo ou emprego público. Sendo processo, possui início,

meio e fim; envolve um conjunto de atos produzidos tanto por parte da administração

quanto por parte do administrado.

No início do processo de investidura, temos a nomeação, que é o ato de

convocação do candidato aprovado em concurso público, respeitada a ordem de

classificação. Esse ato, que constitui um movimento unilateral do Estado – da

Administração – é oficializado por sua publicação na forma de decreto ou portaria na

imprensa oficial.

No fim do processo, temos a posse, que finaliza a investidura. É o momento em

que o indivíduo nomeado aceita, formalmente, por meio da assinatura do termo de posse

apresentado pelo Estado, as atribuições, deveres e responsabilidades do cargo. Só a

partir desse momento que o indivíduo nomeado se torna servidor público. Trata-se,

assim, de ato bilateral que depende de um movimento do indivíduo e de outro realizado

pelo Estado. Entre a nomeação e a posse, há um lapso temporal de, geralmente, 30 dias.

Para facilitar a compreensão, propomos a figura abaixo para representar o processo de

investidura em cargo público.

Voltemos ao que falávamos sobre os efeitos de sentido produzidos no

deslocamento, no âmago da CF1 reformulada, de {(para) investidura} para {para

posse}.

As enunciações previstas nas formulações {a, b, c, d}, com base no que

explicamos sobre investidura, ficam abertas a três interpretações: os requisitos devem

ser comprovados na nomeação (momento inicial da investidura), na posse (momento

124

Para apresentar esses conceitos, baseamo-nos em Motta (2006) e Alexandrino (2011).

Investidura

Nomeação

início

Posse

Estado

meio fim

indivíduo Estado

lapso temporal

Page 194: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

194

final) ou entre a nomeação e a posse? O edital, via de regra, mantém uma linguagem

referencial/denotativa de modo a fechar o texto a uma única interpretação (pura ilusão).

Assim, ao apresentar formulações como as de {a, b, c, d}, para tentar fugir da

plurissignificação, o próprio enunciador formula outros enunciados no corpo do edital

para fechar o campo de significação. Nos editais da Esaf, Cebraspe e FGV, o

enunciador formula cláusulas que determinam o momento exato em que os requisitos

devem ser comprovados; a FCC estabelece esse momento na própria cláusula que

dispõe sobre os requisitos125

. Transcrevemos, abaixo, essas formulações:

Edital Esaf 2017

4.1.1 - A falta de comprovação de qualquer um dos requisitos

especificados neste subitem e daqueles que vierem a ser estabelecidos

na letra “l” impedirá a posse do candidato.

Edital Cebraspe 2018

3.11 O candidato deverá declarar, na solicitação de inscrição, que tem

ciência e aceita que, caso aprovado, deverá entregar os documentos

exigidos para matrícula por ocasião da convocação para o Curso de

Formação Profissional, assim como os documentos comprobatórios

dos requisitos exigidos para o cargo no momento da posse.

Edital FGV 2016

3.4 No ato da posse, todos os requisitos especificados no item 3.3

deverão ser comprovados mediante a apresentação de

documentação original.

Edital FCC 2017

3.1 O candidato aprovado no Concurso de que trata este Edital será

investido no Cargo/Especialidade se atender às seguintes exigências

na data da posse: (...) [Grifos nossos]

A Prima Face, após provocação do Poder Judiciário, reformulou o que havia

enunciado na publicação inicial do seu edital. O gesto de interpretação que pretendemos

realizar aqui ficará mais nítido se tomarmos a primeira formulação da Prima Face (a que

fora julgada ilegal) e a colocarmos em comparação com a retificada.

São requisitos {para inscrição / nomeação}:

São requisitos {para posse}:

O apagamento da perspectiva de que os requisitos deveriam ser apresentados na

inscrição é visível. Mas é importante notar o deslocamento de nomeação para posse, e

não para investidura, como fazem as outras bancas. Nesse deslize, o enunciador

125

Veja a esse propósito o item 1 do corpus discursivo II (ANEXO II).

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195

transfere, explicitamente, no corpo da formulação daquela cláusula do edital, a

comprovação dos requisitos para o último momento da investidura. A reformulação

demonstra uma nova relação entre as formações discursivas das partes envolvidas no

processo: uma relação que visa à aliança entre as partes. Agora, o candidato, além de

não dever apresentar os documentos na inscrição, ele não precisa fazê-lo nem no

momento da nomeação, mas tão-somente no ato de posse, no fim do processo.

6.2 Análise da Cadeia de Formulação 2 (CF2): sobre o período de inscrição

As inscrições (...) encontrar-se-ão abertas {no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016}. [FGV]

As inscrições ficarão abertas (...) {no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017} (...). [FCC]

A inscrição será efetuada {no período compreendido entre 10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017}.

[Esaf]

Será admitida a inscrição (...) {no período entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018} (...)

[Cebraspe]

PERÍODO DE INSCRIÇÕES: {22/07/2009 a 05/08/2009} (...). [Prima Face]

Período de inscrições {de 21 DE MARÇO a 08 de ABRIL DE 2016} (...). [Facet Concursos]

Os tribunais compreendem que, em respeito ao princípio da publicidade, deve

haver um período de, no mínimo, 30 dias destinado à realização das inscrições pelos

candidatos. Nesse sentido, os pontos {a} e {b} refletem o recurso da paráfrase na busca

pela estabilização dos sentidos instituídos pelas leis e pela jurisprudência. Em {a}, o

lapso temporal é de 39 dias e, em {b}, de 29 dias. Porém, o deslize produzido pela

substituição de {a/b} por {c/d/e/f} conduz à ruptura do sentido sempre já-lá: o ponto

{c} prevê um lapso temporal de 15 dias; o ponto {d}, 14 dias; o ponto {e}, 15 dias; e o

ponto {f} de 19 dias.

Nos deslocamentos dos pontos {a/b} para os pontos {c/d/e/f}, saímos de

formulações já estabilizadas para formulações possíveis, determinadas pelo equívoco da

língua. Na CF1, analisada anteriormente, vimos que as formulações possíveis, que visam

romper por meio da polissemia com o já instituído, esbarram em dadas circunstâncias

sob pena de serem impugnadas. É o que se esperaria igualmente para as quatro últimas

formulações da CF2. Contudo, apenas as duas últimas foram objeto de controle judicial.

O TCE/MG impugnou o dispositivo no edital elaborado pela Prima Face, com o

argumento de que as inscrições devem ser realizadas durante o lapso mínimo de trinta

dias, e o TCE/PB impugnou a cláusula do edital elaborado pela FACET, argumentando

Page 196: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

196

que o prazo de inscrição inferior a 30 dias inviabiliza extensivamente o conhecimento

prévio do certame. O controle realizado por esses tribunais visa, portanto, manter a

estabilização dos sentidos que circulam atualmente no interior da FDecp

.

A pergunta que colocamos é: por que as formulações dos pontos {c} e {d} não

foram questionadas nem pelos cidadãos que pretendiam se candidatar às vagas nem

pelos devidos órgãos de fiscalização e controle? Da mesma forma que, em âmbito

estadual, há os Tribunais de Contas dos Estados para exercer o controle externo sobre os

atos praticados pelo Estado e pelas prefeituras municipais, como é o caso do controle

exercido sobre os editais elaborados pelas prefeituras de Centralina (MG) e Santa Rita

(PA), há o Tribunal de Contas da União para exercer as mesmas intervenções sobre atos

praticados por órgãos federais. Por que o TCU não questionou, então, o edital da

Esaf/2017, que versava sobre o concurso para o MAPA (Ministério da Agricultura,

Pecuária e Abastecimento), e o edital do Cebraspe/2018, que disciplinava o concurso

para a Polícia Federal?

As prefeituras de Centralina e Santa Rita, após os pedidos de correção feitos

pelos respectivos TCE, retificaram seus editais. A primeira passou a prever um lapso

temporal de 33 dias para inscrição; a segunda, 30 dias. A Esaf e o Cebraspe não fizeram

nenhuma alteração, uma vez que não houve manifestação contrária às suas formulações.

Com as retificações, temos a seguinte CF2 reformulada:

CF2 Reformulada

As inscrições (...) encontrar-se-ão abertas {no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016}. [FGV]

As inscrições ficarão abertas (...) {no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017} (...). [FCC]

A inscrição será efetuada {no período compreendido entre 10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017}.

[Esaf]

Será admitida a inscrição (...) {no período entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018} (...)

[Cebraspe]

As inscrições deverão ser efetuadas (...) {no período de 19 de outubro a 22 de novembro de 2009} (...) [Prima Face/retificado]

Período de inscrições: prorrogado {de 01 a 30 de JUNHO DE 2016}, nos dias úteis. [Facet Concursos/retificado]

Mostramos no capítulo anterior que, a partir dos anos de 1960, desenvolveu-se a

prática de se determinar, em editais, prazo de inscrição inferior a 30 dias. Embora as leis

e as decisões tomadas pelos tribunais aludam à necessidade de se satisfazer o intervalo

mínimo de 30 dias (preceito atendido hoje por muitos editais), os órgãos públicos

Page 197: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

197

federais ainda vêm fazendo uso de período inferior com toda aparência de legalidade,

não sendo interposto qualquer pedido de impugnação nesse caso.

A cadeia parafrástica em análise sinaliza uma hipótese potencial sobre a

movimentação desses sentidos na produção discursiva em edital. O fato de as

formulações {c} e {d}, mesmo prevendo prazo de inscrição inferior a trinta dias, não

terem sido objeto de questionamento por nenhuma forma de controle da administração

sinaliza a coexistência de dois sentidos pré-construídos oscilando atualmente no

domínio do saber da FDecp

. Esses sentidos parecem, entretanto, estar em um processo de

distribuição, de modo que eles só sejam semanticamente possíveis quando realizados

pela forma-sujeito-instituição correspondente.

Nossa tese é a de que os editais elaborados por órgãos públicos federais e pelas

bancas por eles contratadas para executar um concurso ocupam uma posição discursiva

que preside esses deslocamentos de sentido. Como nos ensinam Haroche, Pêcheux e

Henry (1971), as palavras mudam de sentido de acordo com os sujeitos que as

pronunciam. É uma questão de relação de forças, que se faz valer na comunicação. O

lugar de onde as formas-sujeito dos editais da Esaf e do Cebraspe falam parece ser

decisivo para determinar o que vão dizer. Para nós, é esse traço discursivo que justifica

o fato de um órgão público municipal ser impedido de fixar prazo menor de 30 dias, ao

passo que essa concessão é feita a órgãos federais. As formulações parecem ser

determinadas, no plano intradiscursivo, pelas posições discursivas ocupadas por cada

órgão.

6.3. Análise da Cadeia de Formulação 3 (CF3): sobre a limitação temporal de cinco

anos dos antecedentes criminais como um dos requisitos para investidura

O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...) i) apresentar certidão negativa dos setores de

distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, {nos últimos cinco anos}, da Justiça Federal e Estadual; j)

apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido {nos últimos cinco anos}(...); k)

apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, {nos últimos cinco anos}: (...) [Esaf]

São requisitos para inscrição / nomeação: (...) Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público ou função, demissão a bem do

serviço público ou por justa causa, fato a ser comprovado através da apresentação de documento idôneo ou assinatura de regular

termo de declaração, {no período de 05 a 10 anos} tendo em vista as circunstâncias atenuantes ou agravantes; (...) [Prima Face]

Com base no que dissemos no capítulo anterior, podemos afirmar que as formas-

sujeito-instituição responsáveis pelas enunciações acima filiam-se de algum modo à

memória discursiva da FDecp

. Vimos que a Administração vem reproduzindo a

perspectiva de que a comprovação de bons antecedentes deve ser feita levando em

consideração os últimos cinco anos de vida pregressa do candidato. Desse modo, o

ponto {a}, formulado de acordo com a lei, corresponde a um enunciado que se filia ao

Page 198: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

198

interdiscurso da formação discursiva de editais de concurso. O ponto de deriva {b},

porém, traz uma formulação que foge ao domínio do saber dessa FD, por prever período

de investigação superior a cinco anos, tornando-se alvo de intervenção judicial.

A lei, a doutrina do Direito e a jurisprudência, com o intuito de afastar qualquer

possibilidade de aplicação de pena perpétua ao cidadão126

, trazem o entendimento de

que a fase de investigação da vida pregressa do candidato não pode levar em

consideração um lapso temporal desarrazoado, que crie uma eterna punibilidade ao

condenado. A vida do candidato não pode ser investigada de forma ilimitada, mas

dentro de um período específico prévio à posse. Assim, constituiu-se no domínio do

saber da FDecp

, especialmente a partir do Artigo 64, inciso I do Código Penal127

, o

sentido de que a investigação deve ser feita levando em consideração os últimos cinco

anos.

Essa nova significação, que interpretamos como um [E] que passou a compor a

FDecp

, é uma aquisição recente, implantada a partir de 1984 (quando a Lei nº 7.209, de

11.7.1984, deu nova redação ao inciso I do Artigo 64 do CP) e defendida

contemporaneamente por doutrinadores e pela jurisprudência no atual Estado

Democrático de Direito. Nós a vemos, ao mesmo tempo, como uma prerrogativa

(mesma que limitada) concedida ao Estado e um “bônus” concedido ao cidadão que,

uma vez tendo cometido ato ilícito, cumpriu sua pena, arrependeu-se e deseja

reconstruir sua vida servindo ao Estado. Mais além, essa nova significação traz à tona os

compromissos políticos e ideológicos assumidos pelo Estado de Direito frente aos

cidadãos.

Acreditamos que o fato de se tratar de um sentido novo, ainda movediço nas

práticas administrativas dos órgãos do Estado, justifica as formulações em editais que

oscilam entre o prazo de cinco anos e prazos superiores. Trata-se, na prática, de uma

significação em movimento. Isso justificaria ainda, pelo nosso entendimento, a opção

pelo silenciamento dessa perspectiva na textualização de alguns editais. Dos quatro

editais que compõem nosso arquivo E+

, apenas um (o da Esaf) enunciou essa

perspectiva. Os demais (Cebraspe, FGV e FCC) silenciaram-se. Silenciamento que

126

Nossa Constituição Federal/1988 proíbe expressamente a aplicação desse tipo de pena (cf. Artigo 5º,

XLVII, b). 127

Assim reza o referido dispositivo legal: “Art. 64 - Para efeito de reincidência: I - não prevalece a

condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver

decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do

livramento condicional, se não ocorrer revogação; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

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199

semeia incertezas no edital, pois, na própria textualização de editais de concurso, o

sujeito-enunciador dispõe que os “casos omissos” serão resolvidos pela Administração.

Atribui-se, assim, à Administração, um poder de decisão sobre tudo que fica silenciado,

o que pode vir a produzir prejuízos aos administrados.

O que vale notar é que a perspectiva atual – que estipula o prazo de apenas cinco

anos de investigação – está difundida no universo jurídico. Desse modo, quando um

edital formula um enunciado que foge a tal sentido, fica sujeito à intervenção judicial. A

Prefeitura de Centralina, em função dos pedidos de correção feitos pelo TCE/MG,

retificou seu edital, passando a prever um lapso temporal limitado em 5 (cinco) anos

anteriores à data da posse para investigar o candidato. Com as retificações, temos a

seguinte CF3 reformulada:

CF3 Reformulada

O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...) i) apresentar certidão negativa dos setores de

distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, {nos últimos cinco anos}, da Justiça Federal e Estadual; j)

apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido {nos últimos cinco anos}(...); k)

apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, {nos últimos cinco anos}: (...) [Esaf]

São requisitos para inscrição / nomeação: (...) Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público ou função, demissão a bem do

serviço público e por justa causa, fato a ser comprovado através da apresentação de documento idôneo ou assinatura de regular

termo de declaração, {no período de 05 anos} anteriores a data da posse. [Prima Face/retificado]

6.4. Análise da Cadeia de Formulação 4 (CF4): sobre a devolução do valor da taxa

de inscrição

O valor da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por

conveniência ou interesse da Administração}. [Esaf]

O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do

certame por conveniência da Administração Pública}. [Cebraspe]

O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do

concurso por conveniência da Administração Pública}. [FGV]

O valor recolhido na inscrição {não será devolvido}. [FCC]

O valor da inscrição, uma vez pago, {não será devolvido, sob hipótese alguma, salvo no caso de não realização do Concurso,

por culpa ou omissão exclusiva da Administração}; [Prima Face]

{Em hipótese alguma, haverá devolução da taxa de inscrição já recolhida.} [FAUF]

A cadeia de formulação acima evidencia um traço marcante na produção

discursiva dos editais de concurso: a estabilização dos sentidos. Os enunciados {a}, {b}

e {c} constituem aquilo que entendemos por pontos de bloqueio, produzidos pela

repetição empírica (mnemônica) do mesmo enunciado, de modo que nada se altere.

Independentemente da mínima variação da superfície linguística em {b}, em que há a

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200

substituição do item lexical concurso por certame, ambos tendo o mesmo referente, o

efeito metafórico produzido por essa substituição contextual mantém a mesma

ancoragem semântica. Há variação da superfície, mas não de significação.

Entretanto, quando pomos em relação os enunciados {a}, {b} e {c} com {d},

deparamo-nos com um deslocamento de sentidos, produzido pela enunciação de uma

perspectiva que não se filia à mesma rede de formulações estáveis

contemporaneamente. Assim, entendemos {d} como um ponto de deriva, que traz

efeitos metafóricos construídos pelo silenciamento, por parte da Administração, das

hipóteses que assegurariam a devolução da taxa de inscrição.

De acordo com o que afirmamos no capítulo anterior, essa perspectiva enunciada

em {d} pela FCC retoma um elemento do saber que já esteve incorporado na FDecp

,

algo pré-construído, que está lá na memória do dizer. Contudo, ela se choca com novos

sentidos que têm sido incorporados atualmente a essa FD em função das demandas

judiciais. Hoje em dia, segundo a jurisprudência firmada pelo Judiciário, não sendo

realizado o concurso, o valor referente à taxa de inscrição deve ser devolvido ao

candidato.

A forma-sujeito-instituição do concurso executado pela FCC, para produzir uma

formulação contemporânea [e], apropriou-se de um [E] que não entra atualmente na

configuração da FDecp

, produzindo um novo deslocamento de sentido para retomar uma

prática de significação pré-existente. Essa movência desestabiliza a rede de formulações

contemporânea, de modo que o enunciado {d}, elaborado pela FCC, se torne alvo de

controle de legalidade.

No entanto, como atesta nossa CF4, o edital da FCC, que disciplinou o concurso

para a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, não passou pelo crivo do Judiciário.

Não encontramos quaisquer relatos de pedidos de impugnação, nem mesmo qualquer

forma de controle que podia ser exercido tanto pelo órgão público autor do concurso

(controle interno) quanto pelo Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, responsável

pelo controle externo dos atos da Administração.

Quando voltamos à CF4

e pomos em relação os enunciados {a}, {b}, {c} com

{e} e {f}, defrontamo-nos com formulações (as duas últimas) que caíram em controle

judicial. No deslocamento dos pontos {a, b, c} para o ponto {e}, mais uma vez

assistimos ao jogo do equívoco produzindo uma ruptura com os processos de

significação discursivamente estáveis na atualidade. A enunciação de {e}, embora

ressalve hipóteses de devolução, traz uma textualização diferente daquilo que é

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201

considerado estável pelo judiciário, o que pode vir a produzir diferentes efeitos

metafóricos, que ocasionem interpretações diferentes, criando, assim, uma instabilidade

jurídica entre as partes da relação editalícia. O TCE/MG solicitou a alteração do subitem

do referido edital que dispunha tal perspectiva para determinar que a taxa de inscrição

fosse devolvida ao candidato “em caso de cancelamento ou suspensão do certame”. A

intenção é, portanto, reproduzir a perspectiva que está atualmente incorporada à FDecp

,

de forma que fique assegurada a estabilização dos sentidos.

No deslocamento dos pontos {a, b, c} para o ponto {f}, vemos a FAUF realizar

o mesmo deslocamento de sentidos – em relação ao que é considerado estável

atualmente no interior da rede de formulações em análise – feito pela FCC. Porém,

diferentemente desta, o edital da FAUF foi alvo de controle externo. O TCE/MG

impugnou a cláusula do edital do concurso da Prefeitura Municipal de São João Del-

Rey, que não previa hipóteses de devolução, alegando que tal perspectiva feria o

princípio jurídico que proíbe o enriquecimento ilícito, neste caso, por parte da

Administração.

Após as devidas retificações de ambos os editais, conforme orientações do

TCE/MG, as cláusulas que dispunham sobre devolução de taxa de inscrição ganharam

nova textualização. A CF4 fica reformulada do seguinte modo:

CF4 Reformulada

O valor da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por

conveniência ou interesse da Administração}. [Esaf]

O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do

certame por conveniência da Administração Pública}. [Cebraspe]

O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do

concurso por conveniência da Administração Pública}. [FGV]

O valor recolhido na inscrição {não será devolvido}. [FCC]

A taxa de inscrição, uma vez paga, {somente será devolvida nos casos de: não realização do Concurso; exclusão de algum

cargo oferecido; em caso de cancelamento ou suspensão do Certame; demais casos que a Comissão Especial de Concurso

Público julgar pertinente}. [Prima Face/retificado]

{No caso de hipóteses inesperadas, inclusive em caso de não realização ou suspensão do concurso, o candidato terá direito a

devolução do valor pago a titulo de inscrição}. [FAUF/retificado]

Vemos formulações {e} e {f} como formas de repetição técnica (formal), que

implicam outra maneira de dizer o mesmo, funcionando como um ponto de bloqueio

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202

para assegurar a estabilização dos sentidos. Em outras palavras, retorna-se ao mesmo

espaço do dizer, mas de maneira diferente. É a paráfrase na busca da estabilização.

Para finalizar, é oportuno chamar a atenção para um traço que já sinalizamos ao

analisarmos CF2: o lugar de onde as formas-sujeito dos editais produzidos pela Esaf,

pelo Cebraspe e, assim também, pela FCC falam parece ser decisivo para determinar o

quê e como vão dizer. O fato de essas instituições executoras de concurso gozarem de

relativo prestígio em todo país as coloca em uma posição discursiva diferente de outras

instituições, como a Prima Face e a FAUF, ao ponto de aquelas enunciarem

perspectivas que fogem à prática de significação contemporânea, desfiliando-se da rede

de formulações estáveis, e, mesmo assim, não serem alvo de controle judicial.

6.5. Análise da Cadeia de Formulação 5 (CF5): sobre o direito à nomeação

{A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato

condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da

rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade do concurso}. [Esaf]

A convocação para o Curso de Formação Profissional e {a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de

vagas, o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros} oferecidos no item 4 deste edital.

[Cebraspe]

{Os candidatos classificados serão convocados para nomeação} por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado

pela ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). [FGV]

{Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação} publicada no Diário Eletrônico da

Defensoria Pública do Estado do Amazonas. [FCC]

{A aprovação no concurso público regido por este Edital assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a

concretização desse ato condicionada ao exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da disponibilidade

orçamentária, da estrita ordem de classificação, do prazo de validade do concurso e do cumprimento das disposições legais

pertinentes. [Prima Face]

{A aprovação no Concurso Público não cria direito à nomeação}, mas esta, quando ocorrer, obedecerá a ordem de classificação

final constante da homologação do Concurso Público. [FAUF]

{A classificação no Concurso Público assegurará a expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos aprovados},

seguindo a ordem classificatória, ficando a concretização das nomeações condicionada à existência de vagas e a prioridade sobre

novos concursados para assumir cargo no serviço público municipal de SANTA RITA. [FACET]

{A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o direito automático à

admissão}, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de classificação ou com outros candidatos, até o

final do prazo de validade deste Concurso Público. [FUNDEP]

No capítulo prévio, tivemos a oportunidade de mostrar ao leitor a movimentação

dos sentidos, no interior da FDecp

, no tocante à nomeação dos candidatos aprovados e

classificados dentro do número de vagas. Contemporaneamente, em razão da

jurisprudência dos Tribunais Superiores, podemos afirmar que o elemento do saber que

funciona discursivamente como o pré-construído “válido” para as formulações

Page 203: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

203

intradiscursivas, relaciona-se à prática de significação segundo a qual o candidato

classificado tem direito subjetivo à nomeação. No entendimento do Judiciário, portanto,

os editais devem conter uma cláusula que assim disponha essa perspectiva.

A CF5, entretanto, evidencia que há uma oscilação entre o sentido

contemporâneo, cuja manutenção é pretendida pelo Judiciário, e o outro constituído

anteriormente, que prevê a nomeação apenas como uma “expectativa de direito”. Os

pontos {b}, {c} e {d} trazem formulações que aparentam atender à prática de

significação atual, embora não explicitem o fato de a nomeação constituir mera

expectativa de direito ou o fato de a nomeação constituir direito subjetivo do candidato.

Silenciamentos que abrem o texto à plurissignificação, dando margem a diferentes

interpretações. Entretanto, do ponto de vista jurídico e administrativo, essas

formulações não trazem insegurança para as partes envolvidas. Por isso, os pontos {b},

{c} e {d} não foram objeto de quaisquer formas de controle judicial.

Contraditoriamente, também não foi alvo de controle a cláusula formulada pela

Esaf, ponto {a}, que traz uma enunciação que foge à atual prática de significação. A

Esaf elaborou uma formulação intradiscursiva [e] que retoma um enunciado [E] que,

pela perspectiva do Judiciário, não deveria mais pertencer à FDecp

, uma vez que infringe

um direito adquirido pelo candidato quando aprovado dentro do número de vagas.

Temos aqui mais um indício que reforça nossa argumentação, segundo a qual a posição

discursiva ocupada pela forma-sujeito-instituição é decisiva para que ela enuncie a

perspectiva que quer, sem que seja alvo de controle judicial. Perguntamo-nos, de novo,

por que a Esaf, ao formular um enunciado que foge à significação contemporânea, não

respondeu por isso? Nossa tese é a de que sua posição discursiva, o lugar de onde a Esaf

fala, é determinativa, conferindo-lhe autonomia e poder para enunciar uma perspectiva

que circule na sociedade com toda aparência de legalidade.

A prática discursiva da Administração Pública referente ao direito à nomeação

envolve, atualmente, um dos pontos mais controversos da produção do discurso em

editais. Isso fica visível quando tomamos em comparação o ponto {a} da CF5

com os

pontos {e}, {f}, {g} e {h}. Estes últimos foram todos condenados pelo Judiciário, que

exigiu dos respectivos órgãos públicos/instituições examinadoras a devida retificação.

As formulações {e}, {f}, {g} e {h}, embora sejam enunciados diferentes, trazem

a mesma perspectiva daquela produzida pela Esaf: o candidato tem apenas a expectativa

de direito à nomeação. Assim, {a}, {e}, {f}, {g} e {h} estão em uma relação de

Page 204: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

204

paráfrase, uma vez que fazem um constante retorno ao mesmo espaço do dizer.

Contudo, {e}, {f}, {g} e {h} foram impugnados pelos órgãos de controle.

Para nós, esses casos de impugnação estão relacionados à posição discursiva das

respectivas formas-sujeito enunciadoras de {e}, {f}, {g} e {h}. O ponto {e} foi

formulado pela Prefeitura Municipal de Centralina/Prima Face; {f}, pela Prefeitura

Municipal de São João Del-Rey/FAUF; {g}, pela Prefeitura Municipal de Santa

Rita/FACET; e {h}, pelo Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas

Gerais/FUNDEP. Essas instituições parecem não ter a mesma “força” que a Esaf, de

modo que o lugar de onde as primeiras falam não lhes dê a mesma autonomia e poder

que a última detém.

As formas-sujeito-instituição responsáveis pelas formulações de {e} e {f}, após

o julgamento dos respectivos órgãos de intervenção, reapresentaram novas

textualizações. A Prima Face revogou o enunciado, silenciando-se completamente sobre

a nomeação (o que, de algum modo, não é seguro para o candidato); a FAUF

reformulou o que tinha inicialmente enunciado de modo a prever a nomeação do

candidato dentro da ordem de classificação. Por outro lado, as formas-sujeito

responsáveis pelas formulações de {g} e {h}, a FACET e a FUNDEP, não fizeram

nenhuma alteração na primeira versão de seus editais. Eis a CF5 reformulada.

CF5 Reformulada

{A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato

condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da

rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade do concurso}. [Esaf]

A convocação para o Curso de Formação Profissional e {a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de

vagas, o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros} oferecidos no item 4 deste edital.

[Cebraspe]

{Os candidatos classificados serão convocados para nomeação} por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado

pela ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). [FGV]

{Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação} publicada no Diário Eletrônico da

Defensoria Pública do Estado do Amazonas. [FCC]

(Revogado) (Prima Face/retificado)

{A nomeação dos aprovados no Concurso Público obedecerá a ordem de classificação final constante da homologação}.

(FAUF/retificado)

{A classificação no Concurso Público assegurará a expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos aprovados},

seguindo a ordem classificatória, ficando a concretização das nomeações condicionada à existência de vagas e a prioridade sobre

novos concursados para assumir cargo no serviço público municipal de SANTA RITA. [FACET/não retificado]

{A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o direito automático à

admissão}, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de classificação ou com outros candidatos, até o

final do prazo de validade deste Concurso Público. [FUNDEP/não retificado]

Page 205: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

205

O que justificaria o fato de as bancas examinadoras das duas últimas

formulações da CF5 não terem feito a devida retificação exigida pelos respectivos

órgãos de controle, e o concurso prosseguir de forma legítima até sua fase final? Para

nós, esta contradição se justifica pela oscilação que ocorre contemporaneamente entre

os dois sentidos constituídos no interior da FDecp

. Entendemos que o sentido novo (que

obriga o órgão público a nomear o candidato classificado dentro do número de vagas),

assim que foi incorporado à FDecp

, não excluiu do mesmo território o sentido

constituído anteriormente (que concedia ao candidato apenas a expectativa de direito).

Percebemos que os dois sentidos, mesmo em confronto um com o outro, funcionam

discursivamente como pré-construídos que estão sempre lá no âmago da formação

discursiva do concurso público.

6.6. Análise da Cadeia de Formulação 6 (CF6): sobre os critérios de desempate

Havendo {empate} na totalização dos pontos, {terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta)

anos}(...). [Esaf]

Em caso de {empate} na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, {terá preferência o

candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste

concurso} (...) [Cebraspe]

Em caso de {empate}, {terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos,

até o último dia de inscrição neste concurso} (...). [FGV]

(...) na hipótese de {igualdade de nota final}, {após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741,

de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados

cadastrais} (...) [FCC]

Em caso de {empate} na Primeira Etapa, será classificado o candidato que: 7.1.4.1 obtiver maior número de pontos na prova de

Conhecimento Específico; 7.1.4.2 obtiver maior número de pontos no conteúdo de Língua Portuguesa da prova de Conhecimento

Geral; 7.1.4.3 obtiver maior número de pontos no conteúdo de Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral; 7.1.4.4 {for

mais velho}. [FAUF]

No capítulo 5, mostramos que duas práticas de significação foram constituídas

historicamente no interior da FDecp

no que diz respeito aos critérios de desempate em

provas de concurso. Antes de 2003, os critérios eram variados e definidos por cada

órgão público para dado concurso; depois de 2003, com a proteção que a Constituição

Federal e a Lei no

10.741 de 1º de outubro de 2003 concederam ao idoso, fechou-se o

campo de formulação intradiscursiva da administração, que só pôde, a partir de então,

prever como primeiro critério de desempate a qualidade de “candidato mais idoso”: o

mais idoso tem preferência sobre os demais candidatos.

Os pontos {a}, {b}, {c} e {d} da Cadeia de Formulação 6 evidenciam que,

atualmente, é este último sentido que está lá na memória do dizer e norteia as

formulações intradiscursivas contemporâneas. Esses pontos estão em uma relação de

Page 206: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

206

paráfrase, visando dizer o mesmo sentido independente das diferentes textualizações.

Eles funcionam, assim, como outro ponto de bloqueio na produção discursiva dos

editais, pelo qual se busca a estabilização do mesmo sentido de modo a se assegurar a

estabilidade jurídica entre as partes.

Quando comparamos os pontos {a}, {b}, {c} e {d} com o ponto {e},

observamos um deslocamento de sentidos. A FAUF, executora do concurso da

Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/MG, retoma uma prática de significação que

não está em conformidade com atual configuração discursiva do sentido em questão.

Assim, {e} funciona, no interior da CF6, como um ponto de deriva.

Em razão do controle a que o edital está sujeito, essa formulação da FAUF foi

questionada pelo TCE/MG, que alegou que a cláusula assim formulada fere os preceitos

da Lei Federal 10.471/2003 e a previsão de que o candidato mais idoso prevalece em

caso de desempate. Não há, nesse sentido, margem de discricionariedade para a

administração, cabendo a ela atuar exclusivamente de acordo com a lei. Em termos

discursivos, podemos dizer que não há espaço para a deriva, cabendo a forma-sujeito-

instituição formular a perspectiva que entre em conformidade com a atual configuração

discursiva para o mesmo sentido.

Após a suspensão cautelar do edital, a FAUF retificou o instrumento de

convocação em que passou a figurar a seguinte formulação: “Em caso de empate na

Primeira Etapa, será classificado o candidato que: 7.1.4.1 possuir mais de sessenta

anos}; (...)”. Mais uma vez, temos um retorno à paráfrase. A CF6 fica reformulada com

a configuração seguinte e mostra que, para a formulação do sentido em análise, não há

espaço para a polissemia, devendo o sentido ser sempre o mesmo, sob pena de anulação

do concurso.

CF6 Reformulada

Havendo {empate} na totalização dos pontos, {terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta)

anos}(...). [Esaf]

Em caso de {empate} na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, {terá preferência o

candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste

concurso} (...) [Cebraspe]

Em caso de {empate}, {terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos,

até o último dia de inscrição neste concurso} (...). [FGV]

(...) na hipótese de {igualdade de nota final}, {após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741,

de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados

cadastrais} (...) [FCC]

“Em caso de {empate} na Primeira Etapa, {será classificado o candidato que: 7.1.4.1 possuir mais de sessenta anos}; (...)”.

[FAUF/retificado]

Page 207: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

207

6.7. Análise da Cadeia de Formulação 7 (CF7): sobre as vagas destinadas a

portadores de necessidades especiais

O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo

Decreto nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às {vagas reservadas a pessoas com

deficiência}, fazendo sua opção no pedido de inscrição no concurso. [Esaf]

Das vagas destinadas a cada cargo/área, {5% serão providas} na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de

1990, e suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015,

e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de

fevereiro de 2013.

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até

o primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área}, nos termos do §

2º do artigo 5º da Lei nº 8.112/1990 e suas alterações. [Cebraspe]

Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, {ficarão

reservadas 10% (dez por cento)} aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº

2.298, de 28 de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012 (...)

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte {número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro

número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas}, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da

Lei nº 8.112, de 1990. [FGV]

Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto

Federal nº 3.298/1999, ser-lhes-á {reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes}, das que vierem a surgir

ou das que forem criadas no prazo de validade do Concurso.

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro

número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas}, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei

Federal nº 8.112/90 e do Enunciado CNJ nº 12/2009. [FCC]

Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070, de 27/11/2006, serão {reservadas 10% (dez por cento) das vagas

providas em cada cargo para candidatos portadores de necessidades especiais}, {desprezadas frações menores que 1 (um)},

conforme disposto no Quadro 1, deste Edital, desde que sua deficiência seja compatível com o exercício do cargo, de acordo com

exame médico que fará avaliação das condições do candidato que se classificar. [FAUF]

Com base no que dissemos nos capítulos 5 e 6, podemos afirmar que o sentido

referente às vagas destinadas a PNE, estabilizado hoje na prática discursiva do edital, é

o de que deve haver uma reserva de, no mínimo, 5 %128

e, no máximo, 20%129

. Caso o

resultado da aplicação dessa regra resulte em número fracionado, a Lei 3.298/99

determina que a fração deve obrigatoriamente ser arredondada para o primeiro número

inteiro subsequente.

Esse sentido constitui um “dizer sedimentado” e vem funcionando como outro

ponto de bloqueio na produção discursiva do edital. Desse modo, na CF7, os pontos

{a}130

, {b}, {c} e {d} reiteram a mesma prática de significação, uma vez que são

128

Percentual definido pela Lei 3.298/99. 129

Percentual definido pela Lei 8.112/90. 130

A Esaf não estipulou percentuais em sua formulação ao tratar das vagas destinadas a PNE. Porém, no

item 1.2 do edital, onde dispõe sobre o quantitativo geral de vagas, o sujeito-enunciador aplica a regra

segundo a lei. Das 300 vagas oferecidas, 15 (5% de 300) são reservadas para PNE. O edital silenciou a

regra do arredondamento por não haver aplicação naquele caso, uma vez que o número total de vagas é

inteiro.

Page 208: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

208

produzidas diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. Embora os enunciados

sejam diferentes, o sentido é sempre o mesmo. Todas essas formulações colocam-se do

lado da estabilização dos sentidos.

Contudo, no ponto {e}, elaborado pela FAUF para o concurso da Prefeitura

Municipal de São João Del-Rey/MG, observamos a polissemia rompendo com o

processo de significação estabilizado, deslocando, movimentando o sentido. No jogo

com o equívoco, o enunciador cria uma nova perspectiva, a qual despreza as frações

menores que 1 (um), infringindo a regra do arredondamento prevista pela Lei 3.298/99.

O resultado de uma formulação como esta não podia ser outro: o TCE/MG

questionou o teor do enunciado produzido pela FAUF e solicitou a devida retificação. O

Tribunal em questão entende que, sempre que há o oferecimento em um certame de pelo

menos duas vagas, deve ser feita a reserva de modo a se aplicar a tese da máxima

efetividade das leis.

Com isso, a FAUF e a Prefeitura Municipal de São João Del-Rey retificaram o

edital do concurso dando nova redação ao que tinham enunciado na primeira versão do

edital. O resultado dessa nova textualização pode ser visto na CF7 Reformulada.

CF7 Reformulada

O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo

Decreto nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às {vagas reservadas a pessoas com

deficiência}, fazendo sua opção no pedido de inscrição no concurso. [Esaf]

Das vagas destinadas a cada cargo/área, {5% serão providas} na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de

1990, e suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015,

e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de

fevereiro de 2013.

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até

o primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área}, nos termos do §

2º do artigo 5º da Lei nº 8.112/1990 e suas alterações. [Cebraspe]

Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, {ficarão

reservadas 10% (dez por cento)} aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº

2.298, de 28 de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012 (...)

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte {número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro

número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas}, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da

Lei nº 8.112, de 1990. [FGV]

Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto

Federal nº 3.298/1999, ser-lhes-á {reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes}, das que vierem a surgir ou das que forem criadas no prazo de validade do Concurso.

+

Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro

número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas}, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei

Federal nº 8.112/90 e do Enunciado CNJ nº 12/2009. [FCC]

Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070, de 27/11/2006, {serão reservadas 10% (dez por cento) das vagas

providas em cada cargo para candidatos portadores de necessidades especiais. Será reservada 1 (uma) vaga para portador

de necessidades especiais em todos os casos em que o número de vagas oferecidas para o cargo estiver compreendido entre 2

(duas) e 9 (nove)}. [FAUF/retificado].

Page 209: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

209

6.8. Análise da Cadeia de Formulação 8 (CF8): sobre prazo para recursos quanto

às provas aplicadas

Quanto às provas objetivas: (...) e) {o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a

partir do dia seguinte ao da divulgação dos gabaritos}(...) [Esaf]

O candidato que desejar interpor {recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9

horas do primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente

ao da divulgação desses gabaritos}. [Cebraspe]

O candidato que desejar interpor {recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita

objetiva, mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação

destes}. [FGV]

{Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa}, tendo

como termo inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento. [FCC]

Será admitida a interposição de {recurso pelo candidato que se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso terá

um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da prova}. (...). [FACET]

A Cadeia de Formulação 8 traz mais um tópico que indica a paráfrase como o

processo sobre o qual se assenta a produção discursiva dos editais de concurso. As

cláusulas editalícias que dispõem sobre prazo de recursos para as provas aplicadas são

formuladas retornando ao mesmo espaço do dizer.

No capítulo anterior, tivemos a oportunidade de mostrar que,

contemporaneamente, na textualização de editais, há duas perspectivas que entram em

jogo: o edital prevê prazo de recurso de 02 (dois) ou 03 (três) dias úteis, contados a

partir da divulgação do gabarito. Ambas estão filiadas à atual configuração da FDecp

ao

ponto de serem consideradas lícitas tanto pela Administração, no momento em que

elaboram seus editais, quanto pelos órgãos de controle, no momento em que os julgam.

Na CF8, os pontos {a}, {b}, {c} e {d} são produzidos no plano intradiscursivo

por formas-sujeito que optaram pelo prazo dois dias. São todos eles enunciados na

ordem da paráfrase: diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. Pontos de

bloqueio, que enquadram o edital nos contornos da lei. Porém, {e} constitui um ponto

de deriva formulado por meio do processo polissêmico; nele, vemos uma ruptura com a

memória do dizer que pode ter sido provocada por engano ou mesmo por manobra do

sujeito-enunciador, de modo a evitar recursos às questões das provas escritas.

O enunciado {e}, elaborado pela FACET Concursos e pela Prefeitura Municipal

de Santa Rita, previu prazo recursal de três dias contados a partir do encerramento das

provas (e não a partir da liberação dos gabaritos). De acordo com o relatório do

TCE/PB, que impugnou o referido edital, houve uma coincidência entre o prazo de

divulgação dos gabaritos (segundo o edital, esse prazo é de 72 horas após o

Page 210: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

210

encerramento das provas) e o prazo de recurso (segundo o edital, 3 dias após o

encerramento das provas). Nesse sentido, o prazo de recurso estaria expirado no

momento da divulgação do gabarito, e os candidatos não teriam, na prática, direito ao

recurso.

Depois da retificação do edital, a mesma cláusula passou a ter outra formulação,

conforme atesta a CF8

Reformulada, que implica o retorno ao mesmo espaço do dizer

sedimentado. Volta-se à paráfrase. Retoma-se o estabilizado.

Quanto às provas objetivas: (...) e) {o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a

partir do dia seguinte ao da divulgação dos gabaritos}(...) [Esaf]

O candidato que desejar interpor {recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9

horas do primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente

ao da divulgação desses gabaritos}. [Cebraspe]

O candidato que desejar interpor {recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita

objetiva, mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação

destes}. [FGV]

{Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa}, tendo

como termo inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento. [FCC]

{Será admitida a interposição de recurso pelo candidato} que se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso terá

{um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da prova e/ou após a divulgação do gabarito} (...). [FACET/retificado]

6.9. Análise da Cadeia de Formulação 9 (CF9): sobre a ausência do programa das

provas131

{ANEXO I – PROGRAMAS} [Esaf]

Nas provas, {serão avaliados, além de habilidades, conhecimentos conforme descritos a seguir.} (...) [Cebraspe]

{ANEXO I – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO} [FGV]

{ANEXO II - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO} [FCC]

{Ø} [FUMARC]

A Cadeia de Formulação acima traz um traço diferente das demais. Nela, pomos

em jogo a questão do silenciamento. No capítulo 5, mostramos que a indicação dos

conteúdos sobre os quais as questões das provas de concurso devem ser formuladas é

uma prática que começou a se constituir no Brasil desde o Império. Atualmente, é

131

Para a organização da CF9, referimo-nos apenas ao título ou ao enunciado que prevê a descrição do

conteúdo programático das provas, uma vez que não é possível transcrever todo o programa em razão do

espaço que ele ocuparia.

Page 211: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

211

considerada inadmissível na produção discursiva dos editais qualquer tentativa de

silenciamento dos programas de provas, sob pena de ser fulminado todo o processo

seletivo.

Os pontos {a}, {b}, {c} e {d} da Cadeia de Formulação 9 atestam que a

indicação do programa de provas é uma prática recorrente. De fato, entre todos os

editais que tomamos em análise para a presente pesquisa, apenas um deixou de aludir

aos conteúdos de possível examinação em suas provas: trata-se do VI Concurso Público

para ingresso na carreira da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, executado

pela FUMARC. Podemos resumir o histórico do referido concurso da seguinte forma: a)

o edital foi divulgado em 03 de março de 2008; b) em 02 de dezembro de 2008, o edital

foi apreciado pela Segunda Câmara Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que

determinou a suspensão do concurso em razão das irregularidades apresentadas (entre

elas, a ausência dos programas de provas); c) em 03 de dezembro de 2008, a FUMARC

publicou uma nota declarando a suspensão do concurso; em 2009, o concurso foi

restabelecido com inscrições previstas entre 23/03/2009 e 02/04/2009 (no novo edital,

havia o ANEXO I, com previsão dos conteúdos de prova).

O concurso promovido pela FUMARC para a Defensoria Pública de Minas

Gerais evidencia que, na atual produção discursiva de editais, não cabe o silenciamento

dos conteúdos de prova, em razão da instabilidade produzida para os candidatos. O

silenciamento dá à Administração um amplo leque de conteúdos que os candidatos não

têm condições de conhecer – para efeitos de arguição em concurso – em função das

próprias limitações do ser humano.

6.10. Análise da Cadeia de Formulação 10 (CF10

): sobre a previsão de vagas para

negros

{Além das vagas previstas neste Edital, das que vierem a ser criadas durante o prazo de validade deste processo seletivo,

20% (vinte por cento) serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014}. [Esaf]

{Das vagas destinadas a cada cargo/área, 20% serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, e da

Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018}. [Cebraspe]

{Ø} [MPF]

A Cadeia de Formulação 10 segue o mesmo caso da anterior: põe em jogo o que

deve ser enunciado com o que, por vezes, é silenciado. Vale salientar também que, na

Page 212: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

212

CF10

, há formulações produzidas apenas em editais de concursos federais, uma vez que

o sistema de cotas para negros, implantado pela lei federal 12.990/2014 só se aplica a

certames que visam prover cargos públicos da União.

Os editais produzidos pela Esaf e pelo Cebraspe, com o objetivo de dar plena

efetividade à lei 12.990/2014, trazem formulações que respeitam a lei. Por isso, os

pontos {a} e {b} não esbarraram em controle judicial, uma vez que constituem

paráfrases em relação à lei, retomam a memória do dizer, pendendo para a estabilização

do sentido. Essas formulações constituem, assim, dentro da atual conjuntura, um ponto

de bloqueio na produção discursiva dos editais que disciplinam concursos federais.

O ponto {c}, entretanto, faz um silenciamento sobre a cota para negros.

Devemos notar que esse silenciamento é produzido pelo Ministério Público Federal

(MPF) em seu concurso para Procurador da República. Um órgão, que em princípio tem

a função institucional de fazer cumprir-se a lei, descumpre-a: uma contradição digna de

ser observada em uma perspectiva discursiva.

Perguntamo-nos a qual formação ideológica o MPF se filia afinal. Trata-se de

uma FI que nega o sistema de cotas ou uma FI que vê a cota como uma forma de

atenuar os desníveis que nossa sociedade construiu historicamente sobre o negro no

Brasil? Para responder a essa pergunta, devemos analisar todo o trâmite do referido

concurso.

O edital do 29º Concurso para provimento de cargos de Procurador da

República, organizado e executado pelo próprio Ministério Público Federal, foi

publicado em 26 de agosto de 2016. Nele, não foi formulada qualquer cláusula de

previsse 20% das vagas destinadas a negros. Por isso, o próprio MPF, depois de ter sido

provocado por cidadãos que viram o direito à cota ser infringido, moveu uma ação civil

pública em que era pedida a anulação do certame e desfazimento de todos os atos

praticados. A ação, que tramitou na 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito

Federal, ocasionou a suspensão do concurso em 05 de abril de 2017, voltando a ter

prosseguimento apenas em 12 de junho de 2018.

Mesmo com a suspensão do concurso, não encontramos, após seu

restabelecimento, nenhum edital de retificação que previsse explicitamente o percentual

(de vagas para negros) previsto em lei. Quando consultamos o site oficial do MPF132

, o

único documento em que fica evidente que o MPF respeitou a decisão judicial e passou

132

http://www.mpf.mp.br/concursos/concursos/procuradores/29-concurso?b_start:int=0

Page 213: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

213

a prever alguma vaga para negros é o Edital 74 de 18/12/2018, que divulga o resultado

final do concurso. Entre os classificados nas “vagas de ampla concorrência” há 46

candidatos; entre os classificados nas “vagas reservadas a pessoas negras”, há apenas 1.

O fato é que não temos condições de identificar quantas vagas o MPF reservou

certamente a pessoas negras. O concurso, mesmo assim, seguiu seu trâmite

normalmente após a liminar que o restabeleceu.

Page 214: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

214

Considerações finais

O presente trabalho teve por objetivo analisar a prática discursiva produzida pelo

Estado na textualização dos editais de concurso público. Para isso, fizemos uma

investigação em que se tornou necessário seguir duas vias – duas etapas de pesquisa –

de modo que fosse possível oferecer uma ampla visão dos mecanismos envolvidos

atualmente na formulação de enunciados em editais.

De início, observamos como os sentidos referentes a concurso público vieram

sendo constituídos pela atividade do poder legislativo federal, do Brasil Imperial à atual

República Federativa do Brasil, e como esses sentidos foram sendo formulados, no

plano intradiscursivo, pelos órgãos da Administração Pública em editais por ela

produzidos no mesmo período. Em seguida, colocamos em análise a maneira pela qual a

Administração formula contemporaneamente os enunciados de edital, com o objetivo de

mostrar como os deslizamentos hoje praticados podem fulminar todo o documento,

ocasionando suspensão ou anulação do certame, uma vez que rompem com os dizeres já

sedimentados. Sobre este último aspecto, sinalizamos que as contendas entre

Administração e administrados – interlocutores da relação editalícia – surgem e se

acentuam em razão desses deslizamentos de sentido (a deriva, o efeito metafórico) que

intervêm nas formulações contemporâneas de enunciados e balançam os processos de

significação já instituídos. Nossas análises nos permitiram, assim, chegar às conclusões

que descrevemos a seguir.

Ao assumirmos que o concurso público é um dispositivo administrativo de

gestão-controle concentrado nas mãos do Estado, pudemos inscrevê-lo no domínio

daquilo que Pêcheux (1999 [1982], 2012 [1983]) chamou de universo discursivo

logicamente estabilizado, que cria a ilusão de um mundo semanticamente normal e onde

há a necessidade de produzir disjunções e categorizações lógicas, ou seja, é preciso

estabelecer fronteiras (e o Estado e suas instituições funcionam para dar resposta a esta

necessidade). Desse modo, tivemos condições de afirmar que o concurso é uma prática

pela qual o Estado e suas instituições realizam disjunções e categorizações lógicas,

produzindo uma gestão social dos indivíduos, pela qual eles são identificados no

momento da inscrição, separados de acordo com critérios definidos (nível de

escolaridade, cargo pretendido, etc.), comparados em termos de desempenho nas

provas, colocados em ordem de classificação etc. Tudo isso visando à seleção dos

candidatos mais aptos a cuidar da coisa pública.

Page 215: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

215

Entretanto, o fato de estar aparentemente inscrito em um espaço discursivo

logicamente estável não faz do concurso um ritual sem contradições, falhas, faltas, uma

vez que o equívoco e a falta são próprios da língua. Por isso, mostramos que o discurso

produzido pelo Estado na prática social do concurso jamais estaria imune ao equívoco

da língua. Os sentidos constituídos no âmbito dessa prática não se imobilizam dentro da

ilusão de um mundo semanticamente normal. Pelo equívoco constitutivo da língua, os

sentidos, também nessa prática, estão suscetíveis de se tornarem outros, movimentando-

se, deslocando-se progressivamente.

A análise que desenvolvemos nos três últimos capítulos nos permitiu estabelecer

a existência de uma formação discursiva própria da Administração Pública no tocante à

questão do concurso. Nós a nomeamos formação discursiva de edital de concurso

público – FDecp

–, um espaço que rege a repetibilidade no interior de uma rede de

formulações possíveis. Mostramos que FDecp

, como toda formação discursiva, não é

uma região fechada e estabilizada, mas uma área em que podem ser incorporados

elementos do saber oriundos de outras formações discursivas. Esse fenômeno de

incorporação de elementos do saber de outras FDs pela FDecp

mostra que esta

permanece em incessante reconfiguração. Isso fica evidente quando vemos a forma-

sujeito enunciadora em um edital formular em seu corpo textual dizeres produzidos em

outro lugar, em especial na esfera legislativa.

A incessante reconfiguração da FDecp

vem sendo produzida desde sempre.

Considerando o lapso temporal adotado na pesquisa (Brasil Imperial – República

Federativa do Brasil), vimos que dizeres instituídos pelos atos normativos editados pelo

legislativo federal foram sendo incorporados, em um momento, e desincorporados, em

outro, pela FDecp

de modo a atender aos anseios do povo e da Administração dentro de

cada conjuntura sócio-histórica. Dentro dos aproximados 200 anos de história da FDecp

considerados neste trabalho (1822-2018), diferentes enunciados [E] foram constituídos

no interior da FDecp

. Esses enunciados regeram, por um tempo, a repetibilidade em uma

rede de formulações intradiscursivas em alguns editais até o momento em que, também

por força de lei, foram desincorporados, dando lugar a novos [E] que irrompem no

âmago da FDecp

para atender aos novos anseios do Estado e do povo.

No tocante à questão da paráfrase e da polissemia na produção discursiva do

edital, nossa pesquisa mostrou que o processo parafrástico é seu princípio fundamental,

em virtude da necessidade de se dizer sempre o mesmo, embora seja possível fazê-lo

com outras palavras. A paráfrase em edital, que se dá em relação à lei e ao que já foi

Page 216: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

216

dito em outros editais e se encontra sedimentado, estável discursivamente, mantém a

estabilidade dos sentidos e, assim, a estabilidade jurídica entre as partes envolvidas.

Por outro lado, como sinalizamos mais acima, pelo equívoco constitutivo da

língua, os sentidos também estão suscetíveis de se tornarem outros na produção de

editais, movimentando-se, deslocando-se. Porém, o presente trabalho indica que o

processo polissêmico é extremamente contido na produção de editais; mais

especificamente, podemos afirmar que ele é refreado pela lei e pela jurisprudência dos

tribunais, que visam manter o que está estável. As formulações investidas de sentidos

outros, ao deslocarem do irrealizado para uma significação que se pretende instituir,

balançam os sentidos sempre já-lá, fazendo o edital ficar suscetível à impugnação. Por

isso, quando a forma-sujeito de um edital, trabalhando nos limites da possibilidade de

movência dos sentidos, inaugura uma nova significação ou tenta recuperar aquela que já

esteve (mas não mais está) incorporada no domínio do saber da FDecp, torna o edital alvo

de intervenção judicial.

Há, contudo, “exceções” à intervenção. Nossa pesquisa revela que nem sempre a

polissemia produz questionamento, no/pelo judiciário, sobre o teor da “nova”

formulação, do “novo” sentido instituído. Para nós, esse fenômeno se relaciona à

posição discursiva ocupada pela forma-sujeito enunciadora de um edital, o que

justificaria o fato de algumas instituições não terem seus editais questionados em razão

do jogo provocado pela polissemia em dadas formulações. Isso mostra que não é

possível conter totalmente a polissemia, e é por meio de “brechas” como esta que os

sentidos deslizam.

No que diz respeito ao silenciamento, nossa pesquisa mostra que, na produção

discursiva do edital, não cabe ao sujeito enunciador silenciar-se sobre elementos do

saber próprios da FDecp, cuja formulação deve estar presente no corpo textual do edital.

O silenciamento daquilo que, pelas práticas enraizadas para a construção de editais,

deve ser enunciado, mas não é, também leva o edital ao controle de legalidade pelos

órgãos do Judiciário.

Para finalizar, devemos afirmar, em função dos traços destacados acima, que o

edital de concurso público é um texto marcado por alto grau de estereotipia, constituído

por uma série de enunciados que constituem basicamente paráfrases da lei e do que já

foi dito antes em outro edital em virtude da necessidade de se manter a estabilidade dos

sentidos e, assim, a estabilidade sociojurídica.

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_________; NORMAND, C.; ROBIN, R. (1976). Discurso e ideologia: bases para uma

pesquisa. . IN: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Gestos de Leitura: da história no

discurso. 4 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014, p. 69-105.

Page 222: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

222

MAINGUENEAU, D. Jean Dubois et les débuts de l’analyse du discours en France:

quelques réflexions. IN: Linx, no 34-35, 1996.

MAZIÈRE, F. Análise do discurso: história e práticas. Tradução Marcos Marcionilo.

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NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Método, 2009.

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_________. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP:

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_________. Ler Michel Pêcheux Hoje. IN: ORLANDI, E. Análise de Discurso: Michel

Pêcheux (Textos selecionados por Eni P. Orlandi). 3 ed. Campinas, SP: Pontes Editores,

2012. p. 11-20.

_________. Discurso e texto: formulação e circulação de sentidos. 4 ed. Campinas, SP:

Pontes Editores, 2012a.

_________. Discurso e leitura. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2012b.

Page 223: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

223

_________. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 11ª edição. Campinas,

SP: Pontes Editores, 2013.

_________. Discursos e Museus: da memória e do esquecimento. Entremeios: revista

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_________; SOUZA, T. C. C. A língua imaginária e a língua fluida: dois métodos de

trabalho com a linguagem. In: ORLANDI, E. P. IN: ORLANDI, E. (Org.). Política

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Pêcheux. 5 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014, p. 59 a 158.

_________. (1971). Língua, “Linguagens”, Discurso. IN: ORLANDI, E. Análise de

Discurso: Michel Pêcheux (Textos selecionados por Eni P. Orlandi). 3 ed. Campinas,

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_________. (1975). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni

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_________. (1982). Ler o arquivo hoje. IN: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Gestos

de Leitura: da história no discurso. 4 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014.

_________. (1982). Sobre a (des-)construção das teorias linguísticas. Trad. Celene M.

Cruz e Clémence Jouët-Pastré. IN: Línguas e Instrumentos Linguísticos. Campinas,

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_________. (1982). Delimitações, inversões, deslocamentos. IN: Cadernos de Estudos

Linguísticos. Campinas, n. 19, jul./dez., 1990, p. 7-24.

_________. (1983). O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 6

ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

_________. (1984). Metáfora e interdiscurso. IN: ORLANDI, E. Análise de Discurso:

Michel Pêcheux (Textos selecionados por Eni P. Orlandi). 3 ed. Campinas, SP: Pontes

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_________. (1984). Sobre os contextos epistemológicos da análise do discurso. IN:

ORLANDI, E. Análise de Discurso: Michel Pêcheux (Textos selecionados por Eni P.

Orlandi). 3 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012b, p. 283-294.

_________. Nota introdutória à tradução brasileira. IN: CONEIN, B. et al. (Org.)

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Page 224: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

224

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GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma

introdução à obra de Michel Pêcheux. 5 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014,

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PECHEUX, M. et al. (1982). Apresentação da análise automática do discurso (1982).

IN: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma

introdução à obra de Michel Pêcheux. 5 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014,

p. 251-279.

PECHEUX, M. et al. (1983). A análise de discurso: três épocas (1983). IN: GADET, F.;

HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de

Michel Pêcheux. 5 ed. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014, p. 307-315.

SÄMY, P. G. H. A positivação da "liberdade" nas Constituições brasileiras. Revista Jus

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SAUSSURE, Ferdinand. (1916). Curso de Linguística Geral. Tradução Antônio

Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

SCHNEIDERS, C. M. O funcionamento da paráfrase discursiva: constituição do sujeito

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até a EC n. 56 de 2007. São Paulo: Malheiros, 2008.

SOUZA, T. C. C. de. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de

Comunicação. RUA, Campinas, n. 7, 65-94, 2001.

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e a imagem na sala de aula (curso de extensão). Rio de Janeiro: Faculdade de

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__________. Perspectivas da análise do (in)visível: a arquitetura discursiva do não

verbal. RUA, Campinas, v. 24, n. 1, p. 17-36, 2018.

__________; PEREIRA, R. C. Discurso e ensino: reflexões sobre o verbal e o não-

verbal. 1 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

TEIXEIRA, M. Um olhar enunciativo sobre o discurso. IN: DI FANTI, M. G.;

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WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Trad. Marcos Bagno. São

Paulo: Parábola Editorial, 2002.

Page 225: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

225

Pareceres e Decisões de Tribunais

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Irregularidades em edital

ensejam suspensão de concurso público. Relatório de 23 de julho de 2009. Relator:

Elmo Braz. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 72, n. 3, ano

XXVII, set. 2009. Disponível em <http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/

497.pdf>. Acesso em 19 de fevereiro de 2017.

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Suspensão de concurso

público por irregularidades em edital. Relatório de 20 de outubro de 2009. Relator:

Elmo Braz. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 73, n. 4, ano

XXVII, dez. 2009. Disponível em <http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia

/643.pdf>. Acesso em 28 de janeiro de 2017.

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado da Paraíba. Administração Direta Municipal.

Prefeitura de Santa Rita. Análise de edital de concurso público para provimento de

cargos diversos: Edital nº 01/2016. Relatório de 7 de abril de 2016. Relator: Fábio Túlio

Filgueiras Nogueira. Decisão Singular DS1-TC 00021/16 - Decisão Singular - 1ª

Câmara. Proc. 03736/16. Disponível em <https://publicacao.tce.pb.gov.br/ee86d88fc

24f9401396fafd7eec8d5cb>. Acesso em 25 de março de 2017.

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Suspensão de concurso

público por irregularidades no edital. Relatório de 02 de dezembro de 2008. Relatora:

Adriene Andrade. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 71, n. 2,

ano XXVII, junho. 2009. Disponível em <revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/

Materia/542.pdf >. Acesso em 19 de fevereiro de 2017.

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Irregularidades em concurso

público. Relatório de 25 de abrilde 2012. Relator: Marcílio Barenco Corrêa de Mello.

Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, jul/ago/set, 2012. Disponível

em < revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1623.pdf>. Acesso em 28 de

janeiro de 2017.

BRASIL. Poder Judiciário/Seção Judiciária do Distrito Federal. Superior Tribunal de

Justiça. Ação Civil Pública, com pedido de tutela de urgência, em que o autor pleiteia a

reserva de 20% dos cargos disponibilizados no último Edital do 29º Concurso Público

de Procurador da República para os candidatos negros, em cumprimento ao disposto no

art. 1º da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Ação Civil Pública: 7100. Autor:

Ministério Público Federal. Ré: União Federal. Juiz: Waldemar Cláudio de Carvalho.

DF, 29 março 2017. Disponível em: <www.justificando.com/wp-content/uploads/2017

/03/liminar-cotas.pdf>. Acesso em 11 de maio de 2018.

Page 226: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

226

ANEXO I – Corpus discursivo I – Recortes dos arquivos E-

e D

Enunciados referentes ao Edital 1 – Prefeitura Municipal de Centralina/MG – Prima Face

Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital

2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO

2.1. São requisitos para inscrição / nomeação:

Alteração do item 2.1, para definir que as

condições arroladas serão exigidas na data

da posse e não no momento da inscrição

e/ou nomeação.

2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE

2.1. São requisitos para posse:

2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO

2.15. DAS INSCRIÇÕES

PERÍODO DE INSCRIÇÕES: 22/07/2009 a 05/08/2009,

exceto sábados, domingos e feriados.

Alteração do item 2.15, para determinar

que as inscrições devem ser realizadas

durante o lapso mínimo de trinta dias.

2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE

2.15. DAS INSCRIÇÕES

2.15.1. As inscrições deverão ser efetuadas pela internet, no

site http://www.primafaceconcursos.com.br, no período de 19

de outubro a 22 de novembro de 2009 ou presencialmente no

período de 19 de outubro a 19 de novembro de 2009

conforme item 2.15.5.

2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO

2.1. São requisitos para inscrição / nomeação:

2.1.8. Ter boa conduta e não possuir antecedentes criminais;

2.1.10. Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público

ou função, demissão a bem do serviço público ou por justa

causa, fato a ser comprovado através da apresentação de

documento idôneo ou assinatura de regular termo de

declaração, no período de 05 a 10 anos tendo em vista as

circunstâncias atenuantes ou agravantes;

Alteração dos subitens 2.1.8 e 2.1.10, para

estabelecer limitação temporal às vedações

previstas.

2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE

2.1. São requisitos para posse:

2.1.8. Ter boa conduta e não possuir antecedentes criminais,

no período de 05 anos anteriores a data da posse;

2.1.10. Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público

ou função, demissão a bem do serviço público e por justa

causa, fato a ser comprovado através da apresentação de

documento idôneo ou assinatura de regular termo de

declaração, no período de 05 anos anteriores a data da posse;

2.16. O Edital estará disponível na página do endereço

eletrônico www.primafaceconcursos.com.br, sendo de

responsabilidade exclusiva do candidato a obtenção desse

material.

Alteração do item 2.16, para ampliar a

publicidade do instrumento convocatório,

cujo aviso deve contar com divulgação pela

internet, publicação em jornal de grande

circulação no Município e no diário oficial,

além de afixação no quadro de avisos da

Prefeitura Municipal, informando onde

pode ser encontrada a íntegra do edital.

2.16. O Edital na Íntegra estará disponível na página do

endereço eletrônico www.primafaceconcursos.com.br e no

quadro de avisos da Prefeitura Municipal de Centralina.

Eventuais publicações serão publicadas nos meios já

informados além do Diário Oficial de Minas Gerais e no

Jornal do Pontal (circulação local).

Observação: A obtenção do edital na íntegra é de

responsabilidade exclusiva do candidato.

2.20. Outras informações:

c) O valor da inscrição, uma vez pago, não será devolvido,

sob hipótese alguma, salvo no caso de não realização do

Alteração do subitem 2.20-c, para

determinar a devolução do valor da taxa de

inscrição em caso de cancelamento ou

2.20. Outras informações:

c) A taxa de inscrição, uma vez paga, somente será devolvida

nos casos de:

Page 227: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

227

Concurso, por culpa ou omissão exclusiva da Administração;

suspensão do certame.

não realização do Concurso;

exclusão de algum cargo oferecido;

em caso de cancelamento ou suspensão do Certame;

demais casos que a Comissão Especial de Concurso Público

julgar pertinente.

9. DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

9.3. A aprovação no concurso público regido por este Edital

assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação,

ficando a concretização desse ato condicionada ao exclusivo

interesse e conveniência da Administração, da disponibilida-

de orçamentária, da estrita ordem de classificação, do prazo

de validade do concurso e do cumprimento das disposições

legais pertinentes.

Exclusão do item 9.3, uma vez que é

ofertada vaga.

9. DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

9.3. (Revogado)

Enunciados referentes ao Edital 2 – Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/MG – FAUF

Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital

4. Das inscrições e procedimentos afins:

4.3 Condições Gerais:

4.3.4 Em hipótese alguma, haverá devolução da taxa de

inscrição já recolhida.

O subitem 4.3.4 dispõe que em hipótese

alguma, haverá devolução da taxa de

inscrição já recolhida; a referida cláusula

deve ser alterada de modo a prever a

devolução da taxa de inscrição nos casos de

cancelamento ou anulação do concurso, em

observância ao princípio jurídico que

proíbe o enriquecimento ilícito.

4. Das inscrições e procedimentos afins:

4.3 Condições Gerais:

4.3.4 No caso de hipóteses inesperadas, inclusive em caso de

não realização ou suspensão do concurso, o candidato terá

direito a devolução do valor pago a titulo de inscrição.

7. Da Classificação e Homologação

7.1 Cargos com apenas 1 (uma) etapa:

7.1.4 Em caso de empate na Primeira Etapa, será classificado

o candidato que:

7.1.4.1 obtiver maior número de pontos na prova de

Conhecimento Específico;

7.1.4.2 obtiver maior número de pontos no conteúdo de

Língua Portuguesa da prova de Conhecimento Geral;

7.1.4.3 obtiver maior número de pontos no conteúdo de

Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral;

7.1.4.4 for mais velho.

No subitem 7.1.4, referente aos critérios de

desempate, observou-se engano na

aplicação das normas da Lei Federal n.

10.471/03, uma vez que o candidato

enquadrado no conceito legal de idoso deve

ter prevalência no caso de empate, em

atendimento ao disposto no art. 27,

parágrafo único, do citado diploma legal,

sem prejuízo da aplicação de outros

critérios que podem ser escolhidos

discricionariamente pela administração

7. Da Classificação e Homologação

7.1 Cargos com apenas 1 (uma) etapa:

7.1.4 Em caso de empate na Primeira Etapa, será classificado

o candidato que:

7.1.4.1 possuir mais de sessenta anos;

7.1.4.2 obtiver maior número de pontos na prova de

Conhecimento Específico;

7.1.4.3 obtiver maior numero de pontos no conteúdo de

Língua Portuguesa da prova de

Conhecimento Geral;

7.1.4.4 obtiver maior número de pontos no conteudo de

Page 228: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

228

pública. Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral;

7.1.4.5 for mais velho.

9. Dos aprovados

9.2 No Concurso Público

9.2.2 A aprovação no Concurso Público não cria direito à

nomeação, mas esta, quando ocorrer, obedecerá a ordem de

classificação final constante da homologação do Concurso

Público.

A previsão contida nos subitens 9.2.2 de

que a aprovação do candidato não lhe

garante o direito à nomeação está em

desacordo com o entendimento do Superior

Tribunal de Justiça e desta Corte de

Contas, no sentido de que o candidato

aprovado dentro do número de vagas

previstas no edital deixa de ter mera

expectativa de direito para adquirir direito

subjetivo à nomeação para o cargo a que

concorreu e para o qual foi habilitado.

9. Dos aprovados

9.2 No Concurso Público

9.2.2 A nomeação dos aprovados no Concurso Público

obedecerá a ordem de classificação final constante da

homologação.

10. Das disposições finais

10.2. Todas as publicações, convocações, avisos e resultados

serão afixados no quadro de aviso da Secretaria de Saúde da

Prefeitura Municipal de São João Del-Rei.

A previsão de publicidade dos atos

referentes ao presente certame apenas no

quadro de aviso da Secretaria Municipal de

Saúde, conforme consta do subitem 10.2,

não atende ao princípio da ampla

divulgação dos atos administrativos e

restringe a acessibilidade dos candidatos.

10. Das disposições finais

10.2. Todas as publicações, convocações, avisos e resultados

serão afixados no quadro de aviso da Secretaria de Saúde da

Prefeitura Municipal de São João Del-Rei, nos quadros de

aviso da Fundação de Apoio a Universidade Federal de São

João Del-Rei - FAUF e disponibilizados no site da FAUF, no

seguinte endereço: http://www.ufsj.edu.br/fauf/concursos.php.

1. Da Participação de Candidatos Portadores de Necessidades

Especiais:

1.1 Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070,

de 27/11/2006, serão reservadas 10% (dez por cento) das

vagas providas em cada cargo para candidatos portadores de

necessidades especiais, desprezadas frações menores que 1

(um), conforme disposto no Quadro 1, deste Edital, desde

que sua deficiência seja compatível com o exercício do

cargo, de acordo com exame médico que fará avaliação das

condições do candidato que se classificar.

Quanto à reserva de vagas para os

portadores de deficiência, é importante

salientar que o entendimento deste Tribunal

vem se consolidando no sentido de aplicar a

tese da máxima efetividade da norma

constitucional e, em função disso,

determinar que haja reserva sempre que

houver o oferecimento no certame de pelo

menos duas vagas.

Ressalta-se que deverá ser considerado o

percentual editalício, sem prejuízo de

garantir a devida concretização do

comando constitucional insculpido no art.

37, VIII, da Constituição Federal de 1988.

No presente caso, o edital prevê que serão

reservadas 10% das vagas providas em

1. Da Participação de Candidatos Portadores de Necessidades

Especiais:

1.1 Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070,

de 27/11/2006, serão reservadas 10% (dez por cento) das

vagas providas em cada cargo para candidatos portadores de

necessidades especiais. Será reservada 1 (uma) vaga para

portador de necessidades especiais em todos os casos em que

o número de vagas oferecidas para o cargo estiver

compreendido entre 2 (duas) e 9 (nove).

1.1.1 - Caso surjam novas vagas no decorrer do prazo de

validade do Processo Seletivo ou do Concurso Publico, 10%

(dez por cento) delas serão igualmente reservadas para

candidatos portadores de necessidades especiais.

Page 229: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

229

cada cargo para candidatos portadores de

necessidades especiais, desprezadas frações

menores que um.

Assim, deverá a administração:

— reservar uma vaga em todos os casos em

que o número de vagas oferecidas para o

cargo estiver entre dois e nove;

— aplicar o percentual de 10% em todos os

casos em que o número de vagas oferecidas

para o cargo for igual ou superior a 10,

afastada a possibilidade de

arredondamento;

— incluir uma cláusula que disponha: caso

surjam novas vagas no decorrer do prazo

de validade do concurso público, 10% delas

serão, igualmente, reservadas para

candidatos portadores de deficiência.

Enunciados referentes ao Edital 3 – Prefeitura Municipal de Santa Rita/PA – FACET Concursos

Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital

Edital publicado no DOE em 18 de março de 2016.

CAPÍTULO II - DAS INSCRIÇÕES AO CONCURSO

PÚBLICO

1. As inscrições poderão ser realizadas sob a forma

presencial, conforme item 2 ou através da internet seguindo o

item 3.

1.1 Cada candidato poderá inscrever-se para apenas um dos

cargos previsto no Concurso.

2. Período de inscrições de 21 DE MARÇO a 08 de ABRIL

DE 2016, de segunda a sexta feira. (nos dias úteis). Horário:

das 8h às 13h. Local: Sede da Prefeitura, Rua Juarez Távora,

nº93. Centro - SANTA RITA –PB.

Ausência de prazo mínimo a separar a

publicação do Edital no Diário Oficial

Eletrônico e o início do período de

inscrição, inviabilizando o conhecimento

prévio do certame. Período de inscrição

inferior a 30 dias.

Edital publicado no DOE em 24 de maio de 2016.

CAPÍTULO II - DAS INSCRIÇÕES AO CONCURSO

PÚBLICO

1. As inscrições poderão ser realizadas sob a forma

presencial, conforme item 2 ou através da internet seguindo o

item 3.

2. Período de inscrições: prorrogado de 01 a 30 de JUNHO

DE 2016, nos dias úteis. Horário: das 8h às 13h. Local: Sede

da Prefeitura, Rua Juarez Távora, nº93. Centro - SANTA

RITA –PB.

CAPÍTULO III - DAS PROVAS E DA DATA DE

REALIZAÇÃO

4. E após a realização das provas escritas, no prazo de 72

Coincidência entre os prazos para

divulgação dos gabaritos e recurso. O

subitem 4 do Capítulo III informa que a

CAPÍTULO III - DAS PROVAS E DA DATA DE

REALIZAÇÃO

4. E após a realização das provas escritas, no prazo de 72

Page 230: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

230

(setenta e duas) horas, a Organizadora do Concurso divulgará

os respectivos gabaritos de respostas das provas escritas no

site www.facetconcursos.com.br.

CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS

1. Será admitida a interposição de recurso pelo candidato que

se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso

terá um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da

prova. Deverá ser utilizado o formulário do anexo III do

edital para o envio do recurso.

Organizadora do certame divulgará

os gabaritos das provas em 72 (setenta e

duas) horas e o item 1 do Capítulo VI

propaga que o encerramento do prazo

recursal se dá 03 (três) dias úteis após o

encerramento da prova. Em termos

práticos, o prazo recursal poderá estar

expirado no mesmo instante da divulgação

do gabarito.

(setenta e duas) horas, a Organizadora do Concurso divulgará

os respectivos gabaritos de respostas das provas escritas no

site www.facetconcursos.com.br.

CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS

1. Será admitida a interposição de recurso pelo candidato que

se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso

terá um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da

prova e/ou após a divulgação do gabarito, também

obedecendo ao mesmo prazo para recorrer. Deverá ser

utilizado o formulário do anexo III do edital para o envio do

recurso.

CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS

5. Os Recursos devem ser encaminhados, obedecendo aos

prazos estabelecidos no item 1 deste Capitulo à FACET

Concursos, localizada na Av. Antônio Xavier de Moraes,

03/05 – Sapucaia-Timbaúba (PE) - CEP 55870-000 - REF:

Concurso Público da Prefeitura Municipal de SANTA

RITA/PB. Os recursos poderão ser Protocolados na Central

de Informações da Instituição ou ainda remetidos por

SEDEX para que possam chegar em nossa central em tempo

hábil para serem julgados.

Carência de estabelecimento de prazo

adequado e razoável para entrega dos

recursos. Conforme item 5 do Capítulo VI,

os recursos serão entregues através da

Empresa Brasileira de Correios e

Telégrafos. Destarte, o prazo para

admissibilidade do recurso deve ser visto

na data da postagem, não da chegada

efetiva da documentação na comissão de

julgamento, pois não pode o candidato se

responsabilizar pela entrega da

correspondência. Mesmo o SEDEX pode

atrasar. Não considerar esta hipótese é

malferir os princípios da ampla defesa e do

contraditório.

CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS

5. Os Recursos devem ser encaminhados, obedecendo aos

prazos estabelecidos no item 1 deste Capitulo, , à FACET

Concursos, localizada na Av. Antônio Xavier de Moraes,

03/05 – Sapucaia-Timbaúba (PE) - CEP 55870-000 - REF:

Concurso Público da Prefeitura Municipal de SANTA

RITA/PB. Os recursos poderão ser Protocolados na Central de

Informações da Instituição ou ainda remetidos por SEDEX,

contando da data da postagem na agência dos correios. Os

quais serão admitidos e julgados.

CAPÍTULO IX - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

7. A classificação no Concurso Público assegurará a

expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos

aprovados, seguindo a ordem classificatória, ficando a

concretização das nomeações condicionada à existência de

vagas e a prioridade sobre novos concursados para assumir

cargo no serviço público municipal de SANTA RITA.

Expectativa de direito para candidatos

aprovado dentro do número de vagas. O

item 7 do Capítulo IX assegura expectativa

de direito dos candidatos aprovados. É

importante ressalvar que os candidatos

aprovados e classificados dentro dos

números de vagas possuem direito subjetivo

de serem nomeados.

CAPÍTULO IX - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

7. A classificação no Concurso Público assegurará a

expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos

aprovados, seguindo a ordem classificatória, ficando a

concretização das nomeações condicionada à existência de

vagas e a prioridade sobre novos concursados para assumir

cargo no serviço público municipal de SANTA RITA.

Page 231: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

231

Enunciados referentes ao Edital 4 – Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais – FUMARC

Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital

Silenciamento sobre o programa das provas escritas. Ausência de discriminação do conteúdo

programático das provas, descumprindo o

inc. X do art. 8° da Lei n. 42.899/2002, que

determina, in verbis:

Art. 8° O edital para concurso público

conterá:

(...)

X — conteúdos programáticos, incluindo

noções de direitos humanos nos termos da

Lei n. 13.660, de 14 de julho de 2009, e a

bibliografia sugerida.

O edital passou a prever o programa de provas.

Enunciados referentes ao Edital 5 – Ministério Público Federal – MPF

Enunciados da primeira

formulação do edital

Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital

Omissão/silenciamento

O autor da ação pleiteia a reserva de 20% dos cargos disponibilizados

no último Edital do 29º Concurso Público de Procurador da República

para os candidatos negros, em cumprimento ao disposto no art. 1º da

Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014.

Não encontramos edital fazendo a correção. O concurso prosseguiu

em função do Mandado de Segurança nº 34.981/DF que, embora

apenas deferisse liminar para que os candidatos que fizeram a prova

objetiva tivessem acesso à folha de respostas, acabou por se tornar a

fresta pela qual o concurso continuou sendo produzido.

Enunciados referentes ao Edital 6 – Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais – FUNDEP

Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de

controle

Enunciados após a

retificação do edital

13.5 O candidato aprovado será convocado, em ordem de classificação, por meio de telegrama ou de

correspondência registrada, com aviso de recebimento, para comprovar os requisitos exigidos do

cargo/especialidade para o qual concorreu, de acordo com a necessidade e conveniência do INDI e critérios

estabelecidos neste Edital.

14.2 O INDI convocará, observados os critérios de oportunidade e conveniência, o candidato a ser admitido,

para apresentar os seguintes documentos: (...)

15.18 A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o

direito automático à admissão, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de

classificação ou com outros candidatos, até o final do prazo de validade deste Concurso Público.

Retificar os subitens 13.5, 14.2 e

15.18 do edital, de modo a

conferir aos candidatos

aprovados, dentro do número de

vagas oferecidas, o direito

subjetivo à admissão e suprimir

os critérios de oportunidade e

conveniência neles previstos.

Não houve correção.

Page 232: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

232

ANEXO II – Corpus discursivo II – Recortes do arquivo E+

1) Sobre o momento de apresentação dos requisitos para investidura

Edital Esaf 2017 4.1 - O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...)

4.1.1 - A falta de comprovação de qualquer um dos requisitos especificados neste subitem e daqueles que vierem a ser estabelecidos na letra

“l” impedirá a posse do candidato.

Edital Cebraspe 2018 3 Dos requisitos básicos para a investidura nos cargos: (...)

3.11 O candidato deverá declarar, na solicitação de inscrição, que tem ciência e aceita que, caso aprovado, deverá entregar os documentos

exigidos para matrícula por ocasião da convocação para o Curso de Formação Profissional, assim como os documentos comprobatórios dos

requisitos exigidos para o cargo no momento da posse.

Edital FGV 2016 3.3 O candidato deverá atender, cumulativamente, para investidura no cargo, aos seguintes requisitos: (...)

3.4 No ato da posse, todos os requisitos especificados no item 3.3 deverão ser comprovados mediante a apresentação de documentação

original.

Edital FCC 2017 3.1 O candidato aprovado no Concurso de que trata este Edital será investido no Cargo/Especialidade se atender às seguintes exigências na

data da posse: (...)

2) Sobre o período de inscrição

Edital Esaf 2017 5.2- A inscrição será efetuada exclusivamente via internet, no endereço eletrônico www.esaf.fazenda.gov.br, no período compreendido entre

10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017, considerado o horário de Brasília-DF, mediante o pagamento da taxa a ela

pertinente, no valor de R$ 120,00 (cento e vinte reais), por meio de boleto eletrônico, pagável em toda a rede bancária.

Edital Cebraspe 2018 7.2 Será admitida a inscrição somente via internet, no endereço eletrônico http://www.cespe.unb.br/concursos/pf_18, solicitada no período

entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018 (horário oficial de Brasília/DF).

Edital FGV 2016 4.1 As inscrições para o Concurso Público encontrar-se-ão abertas no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016.

Edital FCC 2017 4.2 As inscrições ficarão abertas, exclusivamente, via Internet, no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017

(horário de Brasília), de acordo com o item 4.3 deste Capítulo.

3) Limitação temporal de cinco anos para os antecedentes criminais (entre os requisitos para investidura)

Edital Esaf 2017 4.1 - O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...)

i) apresentar certidão negativa dos setores de distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, nos últimos cinco anos, da

Justiça Federal e Estadual;

j) apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido nos últimos cinco anos, expedida, no

máximo, há seis meses;

k) apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, nos últimos cinco anos:

Page 233: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

233

I - Responsável por atos julgados irregulares por decisão definitiva do Tribunal de Contas da União, do Tribunal de Contas de Estado, do

Distrito Federal ou de Município, ou ainda, por conselho de contas de Município;

II - Punido, em decisão da qual não caiba recurso administrativo, em processo disciplinar por ato lesivo ao patrimônio público de qualquer

esfera de governo;

III - Condenado em processo criminal por prática de crimes contra a Administração Pública, capitulados nos Títulos II e XI da Parte Especial

do Código Penal Brasileiro, na Lei nº 7.492, de 16/6/1986, e na Lei nº 8.429, de 2/6/1992;

IV - Punido com demissão ou destituição de cargo em comissão, por infringência do artigo 117, incisos IX e XI, e artigo 132, incisos I, IV,

VIII, X e XI, ambos da Lei 8.112/90;

Edital Cebraspe 2018 Trata, no Anexo VI, sobre a Investigação Social do candidato, mas silencia o tempo anterior a ser considerado.

Edital FGV 2016 3.3 O candidato deverá atender, cumulativamente, para investidura no cargo, aos seguintes requisitos: (...)

l) não ter sido condenado à pena privativa de liberdade transitada em julgado ou qualquer outra condenação incompatível com a função

pública; (...)

o) não registrar antecedentes criminais que se apresentem, a critério do MPRJ, incompatíveis com a natureza do cargo;

Silencia-se sobre o tempo.

Edital FCC 2017 Sem referência.

4) Sobre a devolução do valor da taxa de inscrição

Edital Esaf 2017 5.6 - O valor da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por conveniência ou

interesse da Administração.

Edital Cebraspe 2018 7.4.6 O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do certame

por conveniência da Administração Pública.

Edital FGV 2016 4.13 O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso

por conveniência da Administração Pública.

Edital FCC 2017 4.3.10 O valor recolhido na inscrição não será devolvido.

5) Sobre o direito à nomeação

Edital Esaf 2017 19.4 - A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato condicionada à

observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração, da rigorosa ordem de classificação e

do prazo de validade do concurso.

Edital Cebraspe 2018 6.8 A convocação para o Curso de Formação Profissional e a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de vagas, o

número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros oferecidos no item 4 deste edital.

Edital FGV 2016 12.12 Os candidatos classificados serão convocados para nomeação por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado pela ECT

(Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos).

Page 234: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

234

Edital FCC 2017 12.2 Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação publicada no Diário Eletrônico da Defensoria Pública

do Estado do Amazonas.

6) Sobre os critérios de desempate

Edital Esaf 2017 16.1.1 - Havendo empate na totalização dos pontos, terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, na forma do

disposto no parágrafo único do art. 27 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).

16.1.2 - Persistindo o empate, o desempate beneficiará o candidato que, na ordem a seguir, tenha obtido, sucessivamente:

1º - o maior número de pontos na prova discursiva;

2º - a maior pontuação na prova objetiva 2;

3º - a maior pontuação na disciplina D-3;

Edital Cebraspe 2018 19.1 Em caso de empate na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, terá preferência o

candidato que, na seguinte ordem:

a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste concurso, conforme artigo 27, parágrafo único, da Lei nº

10.741, de 1º de outubro de 2003 e suas alterações (Estatuto do Idoso);

b) obtiver a maior nota na prova discursiva (P2);

c) obtiver a maior nota na prova oral;

d) obtiver a maior nota na prova objetiva (P1);

e) obtiver o maior número de acertos na prova objetiva (P1);

f) tiver maior idade;

g) tiver exercido a função de jurado (conforme artigo 440 do Código de Processo Penal).

Edital FGV 2016 10.1 Em caso de empate, terá preferência o candidato que, na seguinte ordem:

a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste concurso, nos termos do artigo 27, parágrafo único, do

Estatuto do Idoso;

b) obtiver a maior nota no Grupo II;

c) obtiver a maior nota em Língua Portuguesa; e

d) persistindo o empate, terá preferência o candidato mais idoso.

Edital FCC 2017 10.3 (...) na hipótese de igualdade de nota final, após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741, de 1º de

outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados cadastrais, estabelecido no item

7.8 do Capítulo 7, deste Edital, terá preferência, para fins de desempate, o candidato que, sucessivamente:

a) obtiver maior nota na Prova Discursiva-Estudo de Caso;

b) obtiver maior nota na Prova de Conhecimentos Específicos;

c) obtiver maior número de acertos nas questões de Língua Portuguesa, na Prova de Conhecimentos Gerais;

d) tiver maior idade;

e) tiver exercido efetivamente a função de jurado no período compreendido entre a data de entrada em vigor da Lei nº 11.689/2008, e a data de

término das inscrições para este concurso.

Page 235: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

235

7) Sobre as vagas destinadas a portadores de necessidades especiais

Edital Esaf 2017 7.1 - O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo Decreto

nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência, fazendo sua

opção no pedido de inscrição no concurso.

Edital Cebraspe 2018 5.1 Das vagas destinadas a cada cargo/área, 5% serão providas na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e

suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, e da decisão

proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de fevereiro de 2013.

5.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o

primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área, nos termos do § 2º do artigo 5º da Lei

nº 8.112/1990 e suas alterações.

Edital FGV 2016 6.1.1 Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, ficarão

reservadas 10% (dez por cento) aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº 2.298, de 28

de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012, desde que apresentem laudo médico (documento original ou cópia

autenticada em cartório) atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da

Classificação Internacional de Doenças – CID.

6.1.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro número

inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da Lei nº 8.112, de 1990.

Edital FCC 2017 5.2 Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto Federal nº

3.298/1999, ser-lhes-á reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes, das que vierem a surgir ou das que forem criadas

no prazo de validade do Concurso.

5.2.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número

inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei Federal nº 8.112/90 e do

Enunciado CNJ nº 12/2009.

8) Sobre prazo para recursos quanto às provas aplicadas

Edital Esaf 2017 15.1 - Quanto às provas objetivas:

e) o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a partir do dia seguinte ao da divulgação dos

gabaritos, no endereço www.esaf.fazenda.gov.br, seguindo as orientações ali contidas

Edital Cebraspe 2018 9.12.2 O candidato que desejar interpor recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9 horas do

primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação desses

gabaritos.

Edital FGV 2016 11.2 O candidato que desejar interpor recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita objetiva,

mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação destes.

Page 236: NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO …

236

Edital FCC 2017 11.2 Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa, tendo como termo

inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento.

9) Sobre a ausência do programa das provas

Edital Esaf 2017 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO I – PROGRAMAS”

Edital Cebraspe 2018 24.2.1 Nas provas, serão avaliados, além de habilidades, conhecimentos conforme descritos a seguir. (...)

Edital FGV 2016 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO I – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO”

Edital FCC 2017 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO II - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO”

10) Sobre a previsão de vagas para negros

Edital Esaf 2017 8 – DAS VAGAS RESERVADAS AOS CANDIDATOS NEGROS (Observação nossa: reveja as tabelas no item 8)

8.1.1 - Além das vagas previstas neste Edital, das que vierem a ser criadas durante o prazo de validade deste processo seletivo, 20% (vinte por

cento) serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014.

Edital Cebraspe 2018 6 DAS VAGAS DESTINADAS AOS CANDIDATOS NEGROS (Observação nossa: reveja as tabelas no item 8)

6.1 Das vagas destinadas a cada cargo/área, 20% serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, e da Portaria Normativa nº

4, de 6 de abril de 2018.

Edital FGV 2016 Não se aplica. Concurso estadual.

Edital FCC 2017 Não se aplica. Concurso estadual.