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Na Venda Do Tatu – Waldemar Martins 1

Na Venda Do Tatu

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Livro de Contos de Waldemar Martins

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APRESENTAÇÃO

Luz, câmera, ação... ! Na tela, mais um autêntico produto nacional. É que Waldemar Martins escreve

verdadeiros roteiros de cinema. Seus contos são filmes exibidos em nossa memória. Nossas vistas se

transformam em lentes de uma Panavision. Um rancho com esteio de maçaranduba. Um monjolo de

guarantã. O pilão de cabreúva – para não dar gosto no fubá ou azedar a canjica...

São imagens... que só mesmo um arquiteto da linguagem constrói em nossa imaginação. Waldemar Martins

recompõe, ao seu modo, o Brasil caboclo. Os dias. As noites. O luar do sertão. Mas impõe um ritmo tão

marcante e pessoal que funde numa metalinguagem Glauber e Mazzaropi. Seus tipos brasileiros, matutos –

cuja a morada é a casinha de sapé no pé do morro –, têm a ver, também, com personagens de Monteiro

Lobato. Seus “jecas”, levam uma vidinha sossegada. Caçam e pescam. Plantam cana para fazer garapa.

Colhem feijão e milho, e no terreiro há um pé de santabárbara para livrar dos raios, nas noites de

tempestades. Só que, ao contrário da obra de Lobato ou do cinema de Mazzaropi, suas personagens são

reais. Tornam atitudes que às vezes chocam. Diferentes da passividade e do bom-mocismo dos tipos de

Mazzaroppi e Lobato. Tornam-se criaturas glauberianas. Se preciso, encarnam Macunaíma, o herói sem

nenhum caráter, de Oswlad.

A publicação oportuna, embora tardia, de Waldemar Martins reforça que este é mesmo o país do desperdício.

Esconde autores não revelados. Talentos não lapidados. Como adverte o escritor do “idioleto manoelês

archaico”1, o Poeta Maior, Manoel de Barros: “O Brasil precisa que não desapareçam suas expressões

regionais.

Waldemar Martins, não só retrata um Brasil original, sem xenofobia, como universaliza sua obra regional,

“cantando sua própria aldeia”. Não registra o Brasil computadorizado, neoliberal, globalizado. Nesta era de

contrastes tão gritantes, onde crianças ainda passam fome, agora, via internet, ignorar a atualidade de “Na

venda do Tatu” é desdenhar de nossa realidade.

João Bosco de Castro Martins

Jornalista

1 Barros, Manoel de Livro sobre nada

Ed. Record - Rio de Janeiro, l 996

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SUMÁRIO 1. - Na venda do Tatu ....................................................................................................... 04

2. - Tia Dorama ................................................................................................................. 04

3. – Escravos brancos ..................................................................................................... 06

4. - A vela .......................................................................................................................... 07

5. - Dito Boca Larga .......................................................................................................... 07

6. - A indiazinha Kari ........................................................................................................ 08

7. - Roubaram minha égua .............................................................................................. o9

8. - Tapera caída .............................................................................................................. 10

9. - Tio Neca ...................................................................................................................... 11

10. - Dedicação de mestra .............................................................................................. 12

11. - A suicida ................................................................................................................... 13

12. - O presente ............................................................................................................... 13

13. - Uma vida por outra vida .......................................................................................... 14

14. - Astúcia cabocla ........................................................................................................ 15

15. - Enforcado pela consciência .................................................................................... 15

16. - Não caso. Caso. Não casam ................................................................................... 16

17. - Natal ......................................................................................................................... 17

18. - Tupã .......................................................................................................................... 18

19. - Almas infantis .......................................................................................................... 18

20. - O fìlho era meu ........................................................................................................ 19

21. - Rosely, meu pingo de saudade .............................................................................. 20

22. - Hipnose .................................................................................................................... 20

23. - Os milagres .............................................................................................................. 21

24. - Periga, pobre Periga ................................................................................................ 22

25. - Palavras para a angústia ........................................................................................ 23

26. - O ladrão .................................................................................................................... 24

27. - Castigo e milagre ..................................................................................................... 25

28. - A pequenina morta .................................................................................................. 26

29. - O fiscal ...................................................................................................................... 27

30. - A noite das assombrações ...................................................................................... 28

31. - Um certo Joaquim Martins de Castro ..................................................................... 28

32. – O Casamento .......................................................................................................... 30

33. – O Lar......................................................................................................................... 30

34. – A Realidade ............................................................................................................. 33

35. – O Drama .................................................................................................................. 33

36. – O Jantar ................................................................................................................... 33

37. – O Padre virou Diabo ............................................................................................... 34

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A realização desta obra é uma declaração de amor da esposa, dos filhos e dos netos para quem tem dedicado sua vida à família e ao próximo.

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NA VENDA DO TATU Percebi o alvoroço na vendado Tatu, da pequena vila. Dois soldados e o cabo Pinho já cercavam Raul. Este estava acuado entre duas paredes. Um risco grosso de sangue escorria-lhe pelo nariz. Na mão esquerda, segurava um cabo de machado. Na mão direita, uma faca-matão. Os olhos saíam-lhe pelas órbitas. Sua roupa de gente simples estava rasgada e ensangüentada. Era alto. Forte. Rosto rosado. Dentadura natural. O cabo deu o ultimato: – Entregue-se, Raul! – Venha me pegar! Mato um por um... – Gritou num ranger de dentes. Raul era meu bom amigo. Eu já sabia do acontecido. Era um sujeito pacato. Honesto. Trabalhador. Morava no pé da serra da Mantiqueira. Havia tido uns reveses na vida. A mulher morrera de parto. O filho nasceu, estava vivo, mas era mongólico. José, o filho mais velho, fugiu com uma rapariga do circo. O xodó era Laura. Longos cabelos. Olhos cinzentos. Doze anos. Bonita e alegre. Nas noites enluaradas, seu pai tocava violão e a voz de Laura trincava longe o cristal da solidão... Laura morreu de leucemia. Numa madrugada, Raul chegou a minha casa com a filha nos braços. Caminhara léguas e léguas... Laura estava muito mal... Eu e Raul a internamos nas Clínicas de Ribeirão. Laura definhou. Cortaram seu corpo. Quantas injeções... Seu corpinho foi sumindo, sumindo... Numa visita, ela segurou minhas mãos e disse baixinho: “Professor, ajude meu pai me levar de volta pra serra. Lá eu saro. Sarando vou cantar pro senhor, não me deixe aqui... tenho medo... judiam tanto de mim...” Daí a algumas noites, Laura entrou em minha casa. Estava linda. De branco. Um sorriso brilhante. Parece que dançava... Pulou em meu pescoço e beijou minha fronte... Nisto bateram na porta. Acordei assustado. Era Raul. Laura havia morrido... Quantas flores silvestres cobriram seu corpo... Raul nunca mais tocou violão. Naquela manhã, estava ali na venda fazendo umas comprinhas. Entraram cinco filhinhos-de-papai. Vinham de Sacramento. Beberam. Arruaçaram, pisaram o pé de Raul. Raul ainda é que pediu desculpas... – É fresco! – Gritou um. Outro deu-lhe um tapinha por trás do chapéu, derrubando-o na testa. Raul procurou deixar o local. Foi puxado pelo braço: – Bebe uma pinga. – Não bebo. – Está de luto. – Gritou outro.

– Que nada, o “murcho é corintiano”... – E zás. arrancaram-lhe a tira preta do bolsinho da camisa... Raul avermelhou. Laura. Mexeram com Laura. Tiraram-lhe Laura do coração. Viu Laura cantando. Laura doente. Laura chorando. Gemendo. Morrendo cortada... Tiraram lhe Laura... Um urro ressoou pela vila e foi espantar maritacas que comiam cachos de arroz... Daí a pouco, cinco corpos estavam inertes no chão... Quando o cabo sacou a anua e gritou: – Entregue-se ou atiro!!! Raul respondeu decidido: – Atire, bruxo!!! Neste momento, fiquei entre o policial e Raul e pedi-lhe: – Pode entregar a mim a faca e o cabo de machado, Raul... Como uma criança, ele me atendeu. Debruçou-se em meus ombros e pôs-se a chorar convulsivamente... – Eles zombaram de Laura, professor... – Você vai comigo, Raul. Ninguém vai lhe fazer mal! (Ninguém, berrou minha alma; filho da pu... nenhum!) Tornei-o pelo braço e seguimos rumo à delegacia de polícia. Há um mês apenas, eu e Raul, no pé da serra da Mantiqueira, comemos uma polenta com galinhada. Bebemos vinho. Passeamos e fomos visitar o pequeno túmulo de Laura... (30.04.1974) TIA DORAMA Esse galo está ficando velho. Tia Dorama não perdeu a hora porque já se acostumara a levantar-se às quatro e meia da madrugada. Mas foi só acender o lampião “Aladin” e dirigir-se para a cozinha... quiquiriquiii... – Agora, seu vagabundo! O cheiro do café coado recendeu pela casa. Pra quem estava dormindo, agora era levantar... engolir o cafezinho... mas antes era melhor fechar os olhos e dar a última cochiladinha... – Vamos! Vamos! Levantem-se! – Lá vinha Tia Dorama com voz enérgica e passos ligeiros arrancando a coberta de cada um. Ela era alta. Magra. Rosto aquilino. Olhos miúdos. Ativa e decidida. Quando sua sombra, pela luz do lampião que trazia nas mãos, projetava-se na

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parede, ficava comprida e a metade de seu corpo subia teta afora... Parecia o pêndulo de um relógio antigo marcando as horas da vida... Levantando-se, a primeira coisa que fazia era: água no fogo e acordar – batendo numa campana dependurada no varandão da fazenda – os retireiros. Dizia que homem foi feito pra fazer filhos, beber cachaça, jogar truques e mulher... E só ela resolvia quase todos os problemas da casa. Certo dia, um burro bravo derrubou seu peão e quebrou-lhe a perna. Ela a encanou com tira de saco branco e finas ripas de bambu. Mandou buscar a besta xucra. Meteu-lhe um arreio. Montou no animal. Ele pulou. Corcoveou. Deu coices. Fungou. Tentou morder-lhe a perna, mas por fim... cedeu aos caprichos do abridão... Os meninos eram criados com carinho e rigidez: “A bênção, papai; a bênção, mamãe...” – Ou quando saíam para algum arrasta-pé, ela: “Às onze e meia, quero vocês de volta. Depois dessa hora... não entram em casa”. Passou o tempo. Mas para Tia Dorama, eles não cresceram. Um dia, depois de puxar a orelha do grandalhão e dar-lhe boas palmadas, foi dizendo: “Da próxima vez, meu filho, que você deixar sua mulher e filhos pra ficar que nem cachorro atrás de cadela no cio, lhe pico de chicote!!!” E ela cumpria. – Mãe que cria menino com mimosidade, cheio de frescura, ele cresce mimoso e fresco... Menino tem que ter amor e carinho, mas há de ser criado no tempo e no vento. Tem que dar respeito para ser respeitado. A gente conserta o que sai fora da linha facilmente, é só não fazer coração mole! Bobeou, apanhou. Prometeu, cumpriu... Com tantos afazeres, ainda dava conta do casarão de 20 cômodos, fora o porão que era, a bem dizer, outra moradia. O casarão ainda pode ser visto à distância. No alto e no meio de uma invernada limpa. Nunca gostou de árvores por perto. Tiravam a visão, dizia sempre. Do varandão, seus olhos pequenos percorriam a linha do horizonte. Pela poeira levantada na pequena estrada que servia de acesso, conhecia se vinha carroça ou cavaleiro. Naquela tarde, a poeira era demais: “Aí vem boiada pra pouso”, pensou. Aguardou. Daí a pouco, um boiadeiro veio chegando. – Boa tarde, patroa. Ela não respondia a cumprimento de estranhos. – O patrão está? Queríamos pouso de uma noite pra boiada... – É comigo mesma. Quantas cabeças ao todo? O boiadeiro mediu-a de baixo em cima. Abaixou o berrante. Descansou seu corpo de estatura média no estribo esquerdo do animal. Arrumou o cinturão. Afrouxou o nó do lenço de seda que trazia no pescoço e com as costas da mão direita

quebrou acima da testa a aba do chapelão de feltro. Depois, num tom irônico respondeu: – Pra contar, tem 600 cabeças. Pra gente não contar, que já está escurecendo, nós e o gado estamos cansados... pagamos por 700 cabeças. Cem de lambugem. – Está bem. Cobro vinte centavos por cabeça. Bem entendido: não quero nenhuma mais, nenhuma menos. A entrada para o pasto é naquela porteira. Se vocês quiserem arranchar, que seja do lado de lá daquele córrego... Virou as costas. Entrou em casa. Fechou a porta. Uma briga de cães fê-la voltar. Era seu cão policial com outro, dos boiadeiros. Estalou firme o chicote. O policial acompanhou-a para dentro de casa, de cabeça baixa. O galo cantou. Outra vez Tia Dorama já estava de pé. Clareava o dia. – Ô de casa! Tia Dorania apareceu. – Bom dia, madame. Ela não respondeu ao cumprimento, – Vim acertar as contas. Pago pelas 600 cabeças? – Vou contar o gado – respondeu secamente a Tia Dorama. O boiadeiro quebrou outra vez a aba do chapéu, deu um risinho e virou o cavalo nos pés traseiros. Reuniu seus peões, e foi dizendo: “A madame quer contar o gado. Quero ele espremido no corredor. Gritem e dêem chapeladas à vontade. Onde passa um tem que entrar três ou quatro... Quando a Madame chegar nos 200 bois, quero todos do outro lado do pasto... aí ela vai ver que dei lambugem!!!” Assim foi feito. Tia Dorama, sentada no mourão, parecia que havia crescido mais ainda. Usava um vestido preto (havia perdido um filho) cuja barra ia até os pés, deixando aparecer somente o par de botinas que calçava. O gado despencou-se aflito no funil do corredor. Os peões gritavam como loucos. Bezerros espezinhados. Boi berrando. Cachorro latindo e um poeirão danado se levantava do chão. Os olhos de Tia Dorama, agudos e penetrantes, iam marcando: 1, 2, 6, 45, 237, 678... quando três bois se espremiam para passar, ela... tuc, chutava a cara de um com o bico da botina e ele recuava... Chegou ao fim da contagem.

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– 813, seu moço. O senhor me deve Cr$ 162,60. Se achar que errei, contamos outra vez. – Tá bem, patroa. Pagamos pelos 813, mas... estou pagando a mais... – Quer vender a boiada pelas 600 cabeças? – Não! – Respondeu o boiadeiro, irritado. Meteu a mão no cinturão, tirou um maço de dinheiro. Conferiu. Pagou. Quebrou mais ainda a aba do chapéu na testa, virou o cavalo nos pés e saiu em disparada... A boiada já ganhava dianteira. – Ô Tia Dorama (assim todos a chamavam) – perguntou um dos seus peões –. a senhora nunca contou “gado de pouso", e por que logo hoje? – Sempre desconfiei, meu trilho, de gente que traz o chapéu quebrado na testa... (20.09 1976) ESCRAVOS BRANCOS O baiano “assuntou” a conversa com as mãos em for-ma de conchas atrás das orelhas. – “Chegando lá, na sede do Pontão, vamos prevenir os capangas. Chicote, carabina e revólver. Mulé e menino, gritou, chicote acalma. Cabra tentá fugi, a carabina pega. Sujeito avançou brabo, revólver pára ou tomba o bicho. Num tem cunversa, mulé meia-idade manda pra ‘Colônia do Fundão’, fazê comida pros 100 homens que trabaiam lá. Mulé-moça vai ajudá na limpeza, fazê ropas, lavá e ... nos fins de sumana dançá e servi na cama pros trabaiadores... Criança que pode ajudá fica, a que não, vamos esprevitando aí pelo sertão ou deixa pro padres adventistas... A derrubada dos 80.000 hectares não pode pará... Ah! Quem morre morrido ou quem a gente mata, jogue no ‘Poço das Piranhas’...” O baiano nem quis ouvir mais nada. Tremia da cabeça aos pés. Noite. A lua iluminava de prata a clareira aberta para o repouso. Olhou sua mulher e filhos que dormiam em cima da trouxa de roupas sujas. Olhou um por um. Mulher grávida de oito meses. Cinco filhos, três meninos “hoje”, duas meninas “muié”. Ele vinha do Norte da Bahia com destino a São Paulo. Em Itajobi, conseguiu beira naquele “pau-de-arara” com 20 famílias... Agora descobriu: escravos brancos! Olhou ao redor. Quatro guardas bem armados. Todo mundo dormia... O baiano achou que não podia perder um segundo. Precisava fugir com a família. Puxou sua maleta de viagem. Enfiou a mão. Procurou sua peixeira. Meteu-a na cinta por trás das costas.

Tirou um pedaço de fumo, meteu-o na boca. Mascou. Cuspiu. Olhos firmes dos quatro vigilantes... Levou as mãos às costas. Apertou o cabo da peixeira... Precisava fugir... fugir... De repente, uma idéia... Há pouco mais de um mês, conheci esse baiano. Ali em Cândia. Distrito de Pontal. Armou sua morada. Uma espécie de “camping”, só que era armado com varas, taquaras e com paredes e telhado de velhos sacos plásticos de adubo. Baiano esperto. Conversador. Usava um boné e tinha falhas dos dentes dianteiros. Aparentou-me 50 anos. – Se mal num pergunto, o moço sabe onde que posso arranjar terra para plantar fumo? – Não. – Respondi-lhe e comecei a puxar conversa com o baiano. – A gente chegou aqui de pouco e está gostando. Terra de gente boa. Até polícia num complica muito, pediro pré eu desocupá desta choça em 60 dias. Até lá construo quatro paredes de tijolos... – O baiano trabalha onde? – Faço de tudo, seu moço. Mexo com eletricidade. Carpintaria. Pedreiro. Lavrador. Roceiro. Meeiro. Já fui parteiro e quase escravo branco... Sou meio médico, pois quem tem “famia” grande tem que se “aprevinir”, por isso carrego minha farmacinha: salamargo, melhoral, mercúrio, algodão, “gais”, álcool e injeção... Agora “tô” na quebra de milho e antes vim da cata de algodão... Pra "home’ que qué trabaiá, num farta serviço não... – Baiano, me conta esse negócio de que quase foi escravo. – É prajá, patrão... E quando o “pau-de-arara” parou pro descanso, eu, cismado, me pus de ouvido naquela gente. Descobri tudo. Agora precisava fugir... fugir... Me veio uma idéia. Pegá os “home” na peixeira, era muito pra uma faca só. Pensei no salamargo. Acordei a "muié”. Contei-lhe tudo. A pobre se arrepiô. Disse pr'ela: O que nos pode sarvá é o salamargo e expliquei o plano. Eu ia metê salamargo nos “mininos”. Pra começá “precisei” dar rápido e na “amarra”. A gritaria começou aí. Muleque berrava engasgado, mas todos tomaram. O capanga veio qui nem cascavé: – Que barulho é esse aí, baiano??? – Os mininos cumeram jabá estragado, patrão, e estão com dor de barriga. – Daí a pouco, foi um

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Deus-me-acuda. A mulé levava um pro mato, outro já tinha se cagüetado pelas pernas. Acordou-se todo mundo bravo e resmungando. Os capangas vieram. Tremi. – Baiano, arreda com tua famia fedorenta lá pro mato! Aminhã cedo nós dá remédio pros mininos... – Sim sinhô, patrão. – Ah! Seu moço, era o que eu queria. Pegar o mato e cair fora. Assim fiz e andei a noite inteira. Mulé pesada. Minino fraco. Mas me distanciei bens. Saí num arraiá após dois dias de caminhada. Trabalhei ali 25 dias. Descansei a Famia. Juntei meus trapos e comprei passagem de ônibus até Passos de Minas. No meio da viagem, a mulé começou a sentir dores do parto... Parei no primeiro arraiá. Num tinha médico nem farmácia, mas tinha uma velha de alma boa que me arranjou um quarto pra mulé adoecê. Fui parteiro de meu filho. O bichinho nasceu. “Enfaxei” mulé e minino com um lençol velho. Chamei um carro e zarpei atrás do ônibus... – Isso é loucura, baiano – disse-me o chofer. – Sua mulher pode morrer... – Morre se fìcar aqui. Vou atrás de recurso... – E cá estamos, seu moço. A prosa vai bem, mas me dá licença que vou até ao rio ver se pego uma misturinha... – Gostei do seu jeito, baiano; agora você viu que a vida para muitos é dura mesmo. – Que nada, seu moço; é dura só pra quem é mole... (30.08.1973) A VELA - Acuda-me, Nossa Senhora! Minha filha está morrendo!!! A mulher que gritava tinha os cabelos revoltos. Era magra. Feições nordestinas. Rosto moreno e batido pelo sofrimento. Um vestido de chita vermelha, barato, por cujo decote aparecia um seio comprido e magro. O calor era angustiante naquele ônibus. As pequenas distâncias não tinham fim. Gente em pé, sentada, espremida. Uma criança com os olhos remelentos estava impaciente com os pequenos mosquitos-pólvora. Mecanicamente, sua mãe passava-lhe de leve um lenço de seda pelo rosto. Passageiros olhavam pela janela, displicentes, as queimadas do capim

esturricado. As vacas de lombos magros. As praias dos riachos desaparecidos. As mulheres que apanhavam lenha pelos barrancos, enquanto seus filhos, nus, brincavam no chão. Muito jovem sentado. Muito velho em pé. De vez em quando, o choramingar de um pretinho que, atirando-se para trás, refugava o seio gordo da mãe. O contato do seu corpo com o materno esquentava demais, e ele protestava num repuxo. O grito pegara todos de surpresa. Mesmo os sonolentos que pendiam a cabeça e tinham sonhos rápidos, acordaram de uma vez. Todos se voltavam agora para a mulher que agitava nos braços uma esquelética criancinha de seis meses. Vinha do médico. Não pôde ser medicada. A diarréia aumentara. A mãe tentava dar-lhe o seio quando percebeu que ela estava morrendo. – É batizada? – Perguntou alguém. – Não. – Eu te batizo em nome de Deus, Padre Todo-Poderoso. O ônibus havia parado e mesmo os que já se achavam do lado de fora, fizeram o nome do Padre. – Tem uma vela por aí? – Não. Alguém abriu cuidadosamente a mãozinha já fria e fê-la apertar um palito de fósforo aceso. DITO BOCA LARGA 2323-1034 Seu rosto era triangular. Pele de cor chaguenta com sinais de quem teve bexiga. O nariz parece que foi achatado no meio do rosto. Quando ria, e mesmo pra falar, a boca se abria ao encontro das orelhas. Por isso o apelido de Dito Boca Larga. Tipo interessante. Alto. Pernas de Garrincha. Chapéu sempre atolado na cabeça, roupa remendada e só andava descalço. Gostava de passear montado a cavalo. Possuía cavalos espertos, marchadores... Eu já sabia quando era ele, só pelo trote do animal: toc, toc! Montava em pêlo e usava por fucinheira uma cordinha. Falava alto e procurava pronunciar bem as palavras: – Bom dia, senhor Benedito! – BOM DIA, MEU PROFESSOR! Um dia, ouvi quando alguém lhe ofereceu uma espingarda, e ele respondeu: – “Arma” tenho uma e cheia de pecado. Pra que outra “arma”? Uma tarde, quando desfilava garbosamente pela cidade, num cavalo marchador, uma turma de jogadores, de cima de um caminhão, gritou-lhe:

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– Olha o “Dito Boca Larga”, montado numa égua! Mais que depressa, ele alcançou o caminhão, fê-la parar e foi dizendo com gestos e vozeirão: – “Vanceis tão enganados duas veis. Minha boca é grande pruque trabaio e ganho muito pra cumê. Na de vanceis só entra coisa roubada. Tem mais: vanceis usam boca pra maldizê; eu, pra abençoá. O outro engano tá na montaria. Benedito Constâncio não se monta em égua; égua é feita pra procriá. Com respeito, vossas mães não têm curpa, mais vanceis nasceram cavalos. E mais: pra vê se monto em égua ou cavalo, se agachem e óiem pru baixo..." – Virou o cavalo nas quatro patas e desapareceu, com o corpo esticado para trás. Dito vendia verduras, ovos e algumas galinhas magricelas. Sua voz era ouvida a quatro quarteirões. No curandeirismo, dizia-se o bom. Uma vez, disse-me que quase foi enterrado vivo. Quis saber como, e ele me contou que... estava montando num cavalo, campeando galinhas pra comprar, isso lá no Chapadão do Zagaia e eis que surge na sua frente um tatu canastra. (Esses tatus chegam a pesar 80 quilos, e é comum o caboclo usar sua casca para medida, tendo capacidade de até 40 litros. É uma espécie quase já extinta. Em seu buraco, entra uma pessoa deitada.) “Aí, professô – continuou Dito –, como tô sempre aprevinido, lacei o bicho. O bicho urrou e começou a arrastá meu bainho pro buraco. Não teve jeito, quando vi que o tatu entrava mesmo na sua casa, pulei e agarrei no rabo do bainho. Fumo os dois pra boca da cisterna. O bicho só cavucava... O bainho caiu de ‘joeio’; não tive outro jeito, puxei da faca e zás, cortei o laço... Tava tão esticado que o bainho caiu de barriga pro ar...” – Dito, se você pega esse tatu, que ia fazer com ele? – É, professô, queria ganhá um dinheirinho... Já pensou eu alugá esse tatu pra abri valeta pra prefeitura'? (01.02.1975) A INDIAZINHA KARI Lá no Norte de Goiás, na selva bruta, Pedro construiu sua choupana. Escolheu o rio Tapirapé, afluente do Araguaia. Suas praias nada tinham a perder de beleza das daquele rio: O ano todo enfeitadas pelo pau-d'arco e suas flores amarelas, pela cajarana, gameleiras ou pelo colorido das mais variadas aves – araras, papagaios, periquitos, garças, socós, jaburus...

Pedro, hoje, era o que restava de uma antiga tribo tupi, os Tapirapés. Sentia o desaparecimento de sua tribo, principalmente, das manifestações culturais, devido ao contato com os brancos e o desmoronamento do sistema religioso, causando também o desaparecimento dos “xamãs” (feiticeiros, pajés). Os poucos que restavam de sua tribo, estavam agregados numa única aldeia – a Aldeia Nova, à margem esquerda da foz do Tapirapé, no rio Araguaia. Ele preferiu isolar-se à margem direita, mata adentro, levando consigo mulher e seus três filhos. Dois já ajudavam o pai na roça de mandioca, milho e feijão ou demonstravam destreza na caça de aves e pequenos animais com as armas que tão bem manejavam: o arco e a flecha. E aprenderam, também, que para terem sucesso deveriam cantar, na noite que antecedia a caçada, como seu pai lhes ensinou: lêi, iê, leraqui Jô sadu canari. Ahn!... Kari estava pequenina ainda, mas com seus dois anos, era de uma beleza que apaixonava quem a conhecesse. Esperta como o esquilo, era a alegria da casa. Pedro era forte, nariz aquilino, lábios finos, pele clara, ombros largos. Educado por missionários cristãos, mesmo usando um "short", andava descalço e sem camisa. Seus cabelos negros e grossos desciam pelos ombros e costas; eram presos por uma "tiara” de dentes de onça em volta da cabeça e na testa, apartados em forma de franja. Tanto Pedro como sua mulher usavam, no pescoço, colares ou miçangas e nos pulsos e pernas, os "tamancurás” – enfeites de algodão trançados. Traziam o corpo pintado com urucum e demais resinas, pois além de gostarem de enfeites, protegiam-se dos mosquitos. Pedro vivia rodeado de carinho. No seu quintal, havia inúmeras araras domésticas, periquitos, papagaios e outros animais, pegos pelos meninos em ninhos ou na mata. Sua mulher é quem cuidava da casa, ora tecendo redes com folhas de palmeiras, ora fazendo enfeites com penas coloridas ou peças de cerâmica: panela, tigela, vasos e mesmo bonecos de cera, os “anointi”, usando cera preta de abelha. Modelava ainda, com rapidez. em cera preta, um ser sobrenatural – o "Topi”. Isto tudo vendia aos "civilizados” ou "brancos”, como chamava os que lá apareciam à procura de Pedro. Eram caçadores, pescadores, compradores de terras, turistas, engenheiros e mesmo garimpeiros à procura de informações ou

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para contratar Pedro para ser guia em pontos de pesca, caçadas, evitando, assim, que se perdessem na mata. Pedro era inteligente. Tanto manejava bem a faca como o dardo, arma como a flecha. Aprendeu a pilotar motores de popa e conhecia os caminhos do rio tanto durante o dia como à noite. Seu semblante era de homem sério. Não brincava ou pouco ria. Percebiam sua dentadura firme, quando trincava entre os dentes o açaí, a macaúva... Gostava de conduzir os grupos, mas não de se afastar muito de sua choupana. Nunca saía para ficar além de uma noite, e mesmo quando assim acontecia, ficava acordado, de cócoras, em torno da pequena fogueira e atiçando o fogo, pensando na mulher e filhos, enquanto no acampamento os brancos cantavam, bebiam e muitas vezes pegavam-se em violentas discussões e até brigas. Pedro não bebia. Nem se misturava com os brancos. Sabia do seu lugar, embora insistissem que ficasse em seu meio. Era um guia perfeito: cuidadoso, enxergava à distância, com o ouvido no chão, se nas margens dos rios, percebia a aproximação de cardumes de peixes, ou em terra firme as pisadas de pessoas ou animais. Naquele dia, Pedro, a mulher e os dois filhos foram buscar mandioca e milho na roça. Kari ficou dormindo em uma esteira, dentro da choupana. O sol era causticante e o mormaço dominava a tarde. De repente, chamaram sua atenção os estridentes gritos das araras e demais aves de seu quintal. Pedro levantou a cabeça. Sabia que elas anunciavam perigo. Rápido como um raio, saltando moitas e quebrando pequenas varas no peito, como o mais hábil dos cervos, chegou à choupana. As araras batiam asas e ainda gritavam. A porta da choupana estava fechada. A esteira no chão vazia. Kari desaparecera. Pulou rápido no terreiro. Correu os olhos ao redor. Percebeu um canto em que havia, pelo mato tombado, sinais de que alguém entrara e saíra por ali. Pedro olhou para o céu. Emitiu tremendo urro e rangeu os dentes. Maritacas e macacos fugiram assustados, mata adentro. Caiu de “quatro pés”. Não era mais o civilizado, mas o selvagem. Não fez o sinal da cruz, brandiu o punho cerrado e bateu firme no chão, esmagando o mato verde. Os olhos feridos e a boca espumando mostravam ódio e pediam vingança. Os brancos sempre perseguiram sua tribo, ora explorando seus irmãos, ora seringueiros e garimpeiros raptando suas mulheres e crianças para usá-las ou vendê-las como objetos. Farejou o chão como um animal à procura de caça. Seguiu a trilha do mato tombado.

Pôs-se de pé. Corria, percebendo os cipós que há pouco haviam sido cortados a facão. Chegou num limpo. Percebeu onde fizeram curta parada. Catou do chão uma “cabrita”, faca usada pelos seringueiros na extração do látex. Então eram seringueiros? Covardes e traiçoeiros... Que queriam com Kari? Vendê-la? A noite caiu. Pedro corria levado pelo instinto. Ora farejava o ar, ora parava e aguçava os ouvidos. Ele sabia que não podia esperar, se tomassem alguma embarcação... pronto, nunca mais veria Kari. – Isso, a embarcação. Em desabalada correria, seguiu rumo à praia. Quando o sol despertou a selva pelo amanhecer, Pedro chegou de volta a sua choupana apertando contra o peito a pequenina Kari que ainda dormia, mas acordou com o alarido das araras e a gritaria feliz de sua mãe e irmãos. Pedro colocou a filha na esteira. Ajoelhou-se, levantou os olhos para o céu e fez o sinal da cruz. Não era mais o selvagem, era Pedro, o civilizado... Dizem que, quando pescadores “gringos” aportaram a lancha na praia, de madrugada, foi um horror, pois encontraram os corpos de três seringueiros espalhados pela areia branca, respingada de sangue. Estavam torcidos, achatados, destroçados... dando a impressão de terem sido mortos por dentadas ferozes, sob a fúria de animais selvagens... (01.02.1975) ROUBARAM MINHA ÉGUA Rogério não dormia. Aquela vontade que a gente tem, de realizar um desejo, tira mesmo o sono. Ele queria comprar uma égua. Afinal, seus 50 anos de luta já pesavam em suas pernas. Com uma égua, poderia mascatear. Passear. Dar umas caçadinhas. O diabo era o dinheiro. Andava sempre “apitado”. Mas com Farid não teria problemas. – Como é, Farid, você não me consegue uma égua? Preciso de uma que não custe muito. Negócio comigo não tem embaraço. – Num precisa falar mais nada, Rogério. Tenho uma égua pra ocê que é um negócio. Eu pra ocê faz qualquer negócio. Lá se foi Rogério com o turco Farid. – Turco não; faz favor: libanês! – dizia ele. – Olha qui beleza, Rogério! Num precisa falar nada. Está um poco magra, mas é sadia. Pra engordar, farelo di milho e arroz. Veja qui pêlo

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breto! Tá no lustro sem raspadeira. Num precisa falar nada, é sua. Já vai levá égua pra ocê. Paga como pode. Eu quer servir amigo. Ocê me dá 200 cruzeiros agora e esse rilógio. (Arrancou-o do bolsinho de Rogério.) É patacão Roscoff, caiu du moda. Num precisa falar mais nada. Aceito pruque ocê é amigo du peito. – Mas, seu Farid... – Num fala mais nada. Leva Marta Rocha. Esse nome du égua. Já. Já, ocê vende ela pro dobro. Eu leva égua pra ocê e aproveita pega dinheiro. Num brecisa falar mais nada. Nigócio feito. Lá se foi Rogério com a égua do turco, ou melhor, libanês. Rogério quis colocá-la num piquete do compadre Gregório. Com um pouco de trato, ela vai arribar; Farid disse que é novinha... Passaram-se algumas semanas. – Seu Farid, a égua refuga milho, cana, se cansa à toa... – Falta de costume, coitadinha. Ocê põe milho di molho e pica cana bem fininha cum facão. Tem bom apetite. Ocê num brecisa falar mais nada. Feis milhor negócio de tua vida. Égua é um colosso. Naquela noite, começou a chover a cântaros. Quem sabe agora com a brota do capim Marta Rocha melhorasse... Bem cedinho, passada a chuvarada, lá se foi Rogério com o milho macio e a cana picadinha... Enorme foi sua surpresa. – Desgraçados! Roubaram minha égua! – Gritou. – Canalhas, ainda deixaram em seu lugar essa perebenta cheia de pêlos brancos!! Mais velha que o tempo! – Mas e quem ia fazer isso, compadre Rogério? Disse-lhe Gregório. Espere! – Passou as mãos pelo lombo do animal, ainda molhado. Saíram pretas. – Rogério, vá atrás do Farid. Ele o tapeou. Sua égua é essa mesmo. Acontece que estava tingida com graxa preta de sapato... Choveu, você viu o que aconteceu. – Escute, se você encontrar o Farid por aí, avise o Rogério. (02.09.1972) TAPERA CAÍDA Só porque ali a tragédia caiu sobre cinco pessoas, uns, ao vê-la, se benziam. Outros diziam-na assombrada. No pé da montanha, numa depressão, a tapera mantinha seu vulto fantasma. Fui chegando. O sol já se declinava. Meu perdigueiro farejou uma caça. Não dei importância. O mato havia dominado tudo. Parte do telhado já havia sido arriado pelo vento.

Enfiei a cabeça por uma abertura de janela. Senti no rosto a frescura do piso de terra úmida. O mato crescia ali também. O silêncio era quebrado por asas de vespas. Levantei bruscamente minha mão direita. Havia tocado numa lagartixa de pele branca e transparente. Pela porta da cozinha, caída, avistei um pé de jasmim pelado pelas formigas. Fora plantado numa lata de vinte litros e enterrado no chão. Via-se um palmo do beiral da lata de fora e bem corroída pela ferrugem. Havia pelo chão um pé de chinelo. Cascas de bala 44. Um paletó velho. Uma cuia de coité quebrada. Comecei a buscar o passado... Ah! Quando fui encurralado em cima de minha canoa, perto de um pesqueiro, no rio Grande, em Rifaina, onde eu morava, por cinco bêbados do lado de Araxá que chegaram numa lancha a motor: – Seu moço, você tá bom pra levá um tiro na cara. Esse pesqueiro tem dono! – Mas o rio, não – respondi. – A mais, estou passando, mas se resolver pescar, pesco. – Repita o que você disse, se for homem! – Coloquem a mão nesse professô e vancês vão virá comida de piranha... (A voz veio do barranco, e todos nós olhamos de uma só vez.) O vulto estava atrás de uma árvore. Aparecia só a “carabina-papo-amarelo" de mira na canoa dos cinco... Benedito tornou-se meu grande amigo. Gostava de fazer-lhe visitas. Vindo à cidade fazer compra, o primeiro que visitava era a mim. Era um tipo meigo, educado, estatura média, meia-idade, sincero, leal e destemido. Gostava de me fazer perguntas. Ensinei-lhe que: – Pepino com pinga não mata. Leite com frutas não faz mal. Querosene ou benzeção não curam picadas de cobra. Maleita vem de pernilongos, e não do mau-cheiro. Bicho de queijo não é queijo. Desidratação em criança não se priva a água. Peste em galinha não se cura com simpatias, e sim com remédios... Teresa, sua mulher, era uns dez anos mais nova que ele. Simpática. Bonita. Muito educada e atenciosa. Rosto oval. Cabelos negros e semilongos. Corpo de moça, nem parecia ser mãe de Pedro e Tonico... A casinha simples, limpa, gostosa, fica isolada naquele pé de serra. Só Manequinho, o vovô, como era conhecido, morava ali pertinho. – Jeromo, o compadre. Jeromo é muito bom, professô – dizia Benedito.

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Todo sábado traz a viola e vem tocá pra gente. Dá gosto de ouvi ele cantá; já feis até uma música pra Teresa... Vem cá num sábado conhecê ele, professô... Um cão latiu. Uma galinha voou assustada. Olhei. Sentado no quintal, pelado, estava Tonico, Niniquinho, o caçulinha de três anos. Comia arroz e feijão, com as mãos, numa cuia de coité. Um cãozinho ao lado, deitado, de orelhas em pé, mantinha os olhos fixos na comida. A galinha ia passando. Parou. Ligeira, deu uma bicadinha no arroz e – AU, AU! Nhac!... Cacaracará!... – lá se foi voando. Benedito amava a mulher e os filhos. Amor sincero. Dedicado. Abrutalhado, às vezes, mas amor bastante caboclo. – Pedrinho tem cinco anos, mas já ajuda o pai na roça; menino-home bom taí, professô... – dizia-me Benedito. – Eu não estando em casa, Jeromo... vancê vem toca pra Teresa e crianças. Gostaram de vancê... – Benedito era até sem malícia. Jeromo, solteiro, forte, de fala macia, quieto, era o padrinho de Niniquinho. Naquela tarde... – Cadê cumpadre Benedito, cumadre Teresa? – Viajô, cumpadre Jeromo. Vorta dipois damanhã. Vão chegá... Mas Benedito voltou naquela madrugada. Os galos já cantavam. A polícia foi avisada por Manequinho. Na tapera feliz, a desgraça chegou. Benedito estava morto, com uma faca enterrada no peito, abraçado à mulher e filhos. Teresa foi estrangulada, Jerônimo e as crianças mortos a tiros. Manequinho, o vovô, é quem sabe tudo... Naquele dia, Jerônimo, a convite de Teresa, entrou. Começou a cantar e a beber goles de pinga. As crianças foram para a cama. – Teresa, vem cá. – Que foi, cumpadre, tu tem um olhá esquisito. – Me beije. Te amo. Não agüento mais vivê sem vancê. Vamos simbora comigo, Teresa! – Sai daqui Jeromo! Vancê perdeu o respeito. Sai já. Sai!!! – gritou, e Jerônimo tentou agarrá-la.

– Indecente!!! Te mato!!! – Correu em direção da carabina, sempre carregada. Ficava em seu quarto. Jerônimo alcançou-a. Enlouqueceu. Colocou suas mãos fortes no pescoço de Teresa e apertou. Seu corpo amoleceu. Ajoelhou. Caiu. – TERESA!!! – gritou Jerônimo. As crianças acordaram em gritos. Jerônimo começou a dar tiros nos meninos. Por fim, encostou o cano embaixo do seu queixo e disparou. Amanhecia. Benedito cheirou no ar a desgraça. Apertou as esporas do seu baio. Pulou do cavalo. Entrou. Percebeu tudo. – Teresa... meus filhos... meus filhinhos... Minha Teresa... – Ajoelhado, foi beijando um por um. Foi abraçando a todos. (Ah! Ah! Ah! ) Ria e chorava. Ficou louco. – Bem que vancê queria se mudá, Teresa. A coieta nunca foi boa... Ah! Ah! Ah! Eu vou com vancê, Teresa. Os fìlhinhos percisam do pai, pra crescer macho... Eu vou, Teresa; eu vou, Niquinho... Eu vou, Pedro... Vancê não pode tocá roça sozinho lá no céu... – Puxou uma peixeira e... ... Desculpe-me, não sei se já escureceu ou se tenho lágrimas nos olhos... (12.08.1972) TIO NECA "Gado branco é melhó pra gente criá quando se vai ficando velho; fica mais fácil pra ser visto de longe no meio do cercado”, explicava o Tio Neca, setenta anos no lombo. “Ei lasca de aroeira que o cupim do tempo não estraga”, dizia-lhe eu. Bebia uma cachaça. Campeava. Tocava numa “oito-baixos”. Escorava “homem sem palavra na ponta do facão e puxava uma dança sentida”. “Quanto mais nova a dama, mais quiabento fica o velho”, ufanava-se ele. Pai de onze mineirinhos nascidos com a parteira Rita lá nas furnas da serra da Mantiqueira e criados descalços nos pedriscos dos chapadões. Meninos fortes. De manhãzinha já estavam no curral, bebendo leite com a boca nas tetas das vacas. Comiam gostosamente em cuias de coités. “A gente compra na cidade uns garfo, dispois eles ferrujam e dá um zinabre na boca. O sadio memo é deixá menino comê com as mão.” Quando eu passava por aquelas bandas, era uma festa. – “Vamo apiá, patrão!” Eu apeava do cavalo e chegava. De início, a meninada sumia. Depois foi se acostumando com as balas... – "Sapeca o peito, patrão; esta pinga é boa: óia como fais colarinho”, e agitava o litro.

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Daí apouquinho, vinha o cafezinho. Na hora do almoço, chegava um arroz branco e fumegante; no caldeirão de ferro, o feijão amassado. Farinha de mandioca numa latinha de margarina, e a malagueta num vidro de Toddy. A gente comia até... Um dia, Tio Neca chorou. "A patroa, professô, saiu no terrero de noite, pra recolhê umas ropas e foi picada de cascavé. Levei pro curandero. Benzeu. Deu querosene perparada, mas num adiantô. Truxe pro dotô, mais quá, quando reza não cura, muito menos medicina... Assuntei quando o dotô disse: – É, Tio Neca, com essa filharada, você precisava estar morando na cidade. Aí você não perdia sua mulher. Aqui não tem cobras.” Os meninos se espigaram: cresceram. As meninas substituíram a mãe no serviço. O tempo passou. Só Tio Neca não envelheceu. Um dia, ei-la chegando à cidade. Gritos abalam o entardecer. Uma mulher em chamas corre pelas ruas. Tio Neca aperta as rosetas no baio. Com sua capa de duas braças, ele tentou abafar o fogo no corpo da infeliz. – Agradeço sua coragem, Tio Neca, ao tentar salvar minha esposa, dizia o doutor. Acidente estúpido. Ela fazia a janta no fogão a querosene... o bujão de vidro era preso em cima. Despencou e... – “É. dotô, assunte bem pra isto: se vosmicê morasse nas furnas onde moro, não perdia sua muié; lá num tem esses tar de fogão...” (01.06.1971) DEDICAÇÃO DE MESTRA Batiam. Seria o vento? O vento não bate... A professora abriu a porta da pequena sala de aula de sua escolinha isolada, em São Joaquim da Barra. Deparou-se com um quadro comovente. A seus pés, uma criancinha de uns 7 anos, cabelos ruivos, rostinho sardento, olhos bem azuis, achava-se ofegante. Caminhara rastejando-se, por trilhos e caminhos de pedras, areia, terra e ciscos, um quilômetro. Rastejando. Era aleijada das pernas e com os bracinhos atrofiados. – Oh! Minha filha, você se perdeu? Vou pedir a um garotinho que a leve de charrete para sua casa. Onde você mora?

– Não, professora – respondeu-lhe a criança com energia –, não vim aqui para que se apiedem de mim. Nem me perdi. Nem quero voltar para casa. Vim aqui porque preciso aprender a ler e a escrever!!! – A velha mestra suspirou. Sentiu que chorava. Olhou suas perninhas moles. Seus bracinhos curtos e atrofiados... Viu naquele pequeno rosto o esplendor da alvorada. A cor das bonecas de milho novo, naquela cabecinha. No azul dos seus olhos, viu o céu onde as estrelas da esperança, da fé, da decisão, do desejo, do sacrifício, formavam o Cruzeiro do Sul... A mestra enxugou suas lágrimas. Agora sorria. E, sorrindo, agachou-se. Tomou nos braços aquele pequenino corpo. Achegou-o bem perto do seio. Apertou-o. A criança beijou-lhe o rosto. A mestra entrou na classe e com todo carinho colocou a menina na cadeira junto a sua mesa... Lá fora um passarinho cantou. Flores se desabrocharam. Veio o outono. Com ele, frutos do amor encheram os cestos do coração. A velha mestra continuou seu trabalho normal. Vieram as chuvas. As mesmas goteiras salpicaram a pequena sala de aula. O jardim. A horta escolar. A farmácia, a biblioteca, tudo, tudo continuou no mesmo ritmo de trabalho. Veio a “Festa dos Diplomas”. Flores. Cantos. Hinos... Nem o inspetor registrou nada em seu livro de “termos de visita”... Nem sei como foi. Um dia, a Secretaria da Educação parou. Uma simples professora ia ser homenageada com todo respeito. Ei-la, que surge. Trazia no colo apertada no seio, uma criancinha de pernas e braços atrofiados. De cabelos ruivos. De rosto sardento. De olhos azuis. De um sorriso alvo como alvos eram seus dentinhos. A mestra colocou-a carinhosamente numa cadeira junto à mesa da secretaria; a criança, outra vez beijou-lhe o rosto. Mestra e criança regressaram. Houve oratória. Chuva de pétalas. Aplausos... Disseram à mestra que pedisse algo para si e ela pediu... para sua escolinha... sementes de flores, de hortaliças, livros para sua biblioteca, merenda escolar, material para a caixa... Ah! Ia me esquecendo: telhas novas para que as goteiras não molhassem tanto as cabecinhas dos seus alunos... Não sei se foi atendida... Aconteceu que... “Aquela criança foi alfabetizada. Lia corretamente. Era inteligente e dava-se à matemática. Gostava do desenho. Escrevia maravilhosamente bem, uma letra redondinha,

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caprichada, com o lápis preso entre os alvos dentes da sua beijoqueira boquinha...” (14.11.1972) A SUICÍDA – Eu juro que me mato, professor! Eu juro, juro por Deus! Vou me jogar num poço! Sandra era uma garotinha de dez anos. Cursava o 4º ano do Grupo, lá nos confins. Rosto oval, cheio de sardas. Cabelos loiros e crespos pela permanente. Uniforme sovado. Vinha de longe. Morava num sítio onde seus pais eram arrendatários. Caminhava só três léguas... Quando passava mal na classe, já sabíamos: era fome. Mesmo assim, era esperta. Viva. Estávamos nos exames finais. Ela foi reprovada. O inspetor era exigente. Palrador. Gostava de falar difícil às criancinhas... Empregava a jurisdição de Rui Barbosa, falava da filosofia de Tomás de Aquino, em densidade demográfica do Brasil e nos bate-papos comuns, em torno de aumento de ordenado, abono, pró-labore ou coisa parecida. Mas Sandra foi mal mesmo. Onde se viu não conhecer os sinônimos de: perplexidade, constitucional, máximo (ele pronunciava máquicimo) e eu jogava umas indiretas... Mássimo. Isso mesmo, respondia-me ele, “MÁQUICIMO”, e abria a bocarra. E Sandra foi mal mesmo. Nem soube responder “como se divide o coração, quais as funções dos órgãos do aparelho digestivo e, ainda por cima, me erra numa divisão quilométrica...” Intervim por Sandra. Roguei ao inspetor. Falei da miséria, da luta, do sacrifício daquelas crianças para se manterem no estudo. – Não, não e não! – respondeu-me o sapiento. Foi quando Sandra soube do resultado, e caiu em desespero: "Juro, juro por Deus! Vou me jogar no poço!” Que dias de apreensão e desassossego que passei. Nos dias subsequentes Sandra não comparecia às aulas. Um belo dia, eis que surge. Entrou quieta e triste. – “Venha cá, Sandra.” Ela obedeceu. Eu estava sentado à mesa. Puxei-a para bem perto de mim, e com o braço esquerdo abracei o seu pequenino corpo. – Eu sei por que você não se matou. Gosta do papai. Da mamãe. Dos irmãos. Do professor. E eles de você. – Não é isso, não, professor. Não me matei só por uma coisa. – Então qual foi a coisa?

– Cheguei na boca do poço, olhei lá embaixo. Olhei outras vezes e fiquei com medo. Medo de que lá havia sapos... (03.04.1972) O PRESENTE O menino morava longe da escola. Lá na serra, do outro lado do rio Grande. Levantava-se de madrugada. Friorento. Descalço. Caminhava, caminhava. Seu uniforme sempre encardido. Era a poeira vermelha do caminho. Resolvia mecanicamente suas tarefas de classe. Ao meio-dia, regressava. Calor. Fome. Fraqueza. Chegava em casa às duas horas da tarde, quando não ficava de castigo, porque não fazia a lição. É que a luz da lamparina era fraca. Ele dormia quase em cima da chama. Por isso o apelido de “Sujão”. É que a fumaça entrava pelas narinas, sujava-lhe os olhos, os dedos e, quantas vezes ele chegasse tão perto da lamparina, que a chama sapecava-lhe as sobrancelhas ou a ponta dos cabelos. – Vagabundo! Burro! Sujão! Faça a tarefa durante o dia... Acontece que Eurípedes nem bem chegava a sua tapera e ia ajudar o pai que estava destocando um pedacinho de terra... A mãe sempre doente. Naquele ano, perdeu um irmão. Deu peste nas galinhas – elas caíam do poleiro, puf! Batiam no chão, A mãe cuidou disso. Fez uma promessa a São Roque: – São Roque, amigo dos animais, se minhas galinhas sará, o galo vermeio é seu. – Um dia o galo amanheceu mortinho: peste. E o pai? “Tava” meio louco. Ouviu falar de uma tal de reforma agrária. Se ganhasse um pedaço da fazenda Primavera, do Dr. Bráulio, era bom. Lá já estava tudo plantado... bonito... Coitado do pai, tinha o apelido de “Joaquim Gamela”. É que aproveitava o tempo para fazer peças de madeira, tipo tigela, mas não gostava de “trabaiá” muito: – Dano pra gente comê hoje, pra aminhâ Deus arruma... – dizia sempre. Um dia, Euripidinho desmaiou na classe. Levaram-no ao médico. O médico aconselhou para sua alimentação: leite, ovos, carne, verduras, fortificantes e, por fim, um vermífugo. – Óia, Ambrosina – disse Joaquim a sua mulher –, só se isto é pra comê uma vez pru ano; por dia num percisa nem pensá... e cadê o Eurípede? – Hoje ele tá cuma desanda danada. Mais já fiz um chá de broto de goiaba...

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– Se não meiorá, manda benzê – disse Joaquim e olhou longe. Enxergou Eurípedes que saía ajeitando as calças detrás de uma bananeira. Veio bamboleando. Pernas fracas. Rostinho sem cor. – Fio, a mãe vai fazê um mingau de fubá; tu deita, qui aminhã percisa ajudá o pai, sinão nós não come este ano... Eurípedes deitou-se. Sua mãe percebeu. Ardia em febre. Veio a benzedeira. Colocou um paninho úmido de querosene em seu nariz. Ele tinha lombriga “arvoroçada”. Benzeu-o com galhinhos de arruda. Foi embora. – Pai! – Que é, meu fio? – Vô esperá Papai Noé. – Tu tá bestando; onde ouviu falar isso? – Pai, a professora falô que Papai Noé é um véio bom. Trais presente, doce, comida, rapa... e hoje é dia dele vim... É só colocá um sapato na jinela... Coloca, pai, coloca... – Ô fio, só se fô a chinelinha; vancê nunca gostô de sapato, por isso o pai nunca comprô... Aconteceu. A febre aumentara. – Pai!! – Que é, fio?... – Papai Noé vem numa carrocinha. Vem do Céu. Quem puxa é um burrinho. Põe água prele perto da chinelinha... – Quá Euripe, tu tá bestando. Papai Noé num vem na casa de pobre. – Vem, pai, vem. A professora falô. E eu pedi para ele uma bicicleta pra i pra escola... Ele vai me trazê... – Vou fazê um chá de foia de laranja com açúcar queimado – disse sua mãe e saiu. – Pai! – Se aquieta, menino. – Papai Noé vem vindo. O senhor pois água pro burrinho? – Puis. – Põe capim também... – Já ponho, mas se aquiete. – Óia Papai Noé, pai!!! Que bonito! É barbudo. Tem ropa vermelha. Vem rindo pra mim. Quanto presente que trais... To vendo minha bicicleta. O burrinho dele vem cum sede e fome... Puxa a carrocinha e dos seus cascos saem estrelinhas... Óia, pai, lá num tem poeira pra sujar

a camisa da gente. Me bana a mão. Ri pra mim. Mostra minha bicicleta... Quanto presente... quanto doce... quanta comida... Tá chegando, pai, vô pedi um presente também pro sinhô e outro pra mãe, pra mãe... pra mãe... Joaquim Gamela caiu soluçando sobre o filho... Lá de fora, chegava da vila distante, trazido pelo vento, o vozeiro dos sinos: – Feliz Natal! Feliz Natal!... (04.11.1973) UMA VIDA POR OUTRA VIDA (Para Cesário) Tinha eu meus nove anos. Passeava montando um cavalo de corrida puro-sangue. São animais manhosos. Não atendem muito ao freio. Marcham com o corpo de lado. Pra virá-los basta dar-lhes tapinhas no pescoço e conversar carinhosamente com eles... Quando eu voltava pela General Carneiro, na altura da saída para Guariba, vem um cãozinho e “nhac”, mordeu a pata traseira do cavalo. Este deu um salto. Um golpe de pescoço. Tirou-me as rédeas das mãos e partiu como um raio rua afora. Terra, pedras, matos, buracos nada era respeitado. Encolhi-me, segurando firme no selote e abri a boca: “Socorro! Socorro!” Quanto mais eu gritava, mais o animal corria. Gente começou a surgir de todo canto. Uns tentavam parar o animal com gestos. Ficavam na frente, mas viam a coisa feia, e fugiam. Alguém atravessou uma carroça no meio da rua e o puro-sangue virou no esbarrão. Agora, assustado e furioso, quase que voava. Mais dois quarteirões e eu estaria morto. A rua terminava na Juca Quito. Naquele tempo, não era como hoje. Ao invés de garagens para automóveis, havia cocheiras para tratar cavalos. Meu pai era dono de uma, enorme. Nós, todos os dias, íamos cortar capim, preparar alfafa, ração, etc. Aos domingos, era uma beleza: cavalos gordos e escovados. Charretes. Troles. Semitroles. Carroças. Carroções. A diversão predileta eram as “barganhas” e as “raias” para corrida, lá nos Verri. – Olha a égua esporca!! – Gritava o saudoso Felício Lastória, ao vender seu refresco de capilé. Meu tio Genaro era quem trazia os puros-sangues para descansar das grandes corridas de São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, ou para fazer alguma domingueira em Jaboticabal mesmo. Meu irmão, o Nila, era um excelente jóquei. Foi num

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desses raçudos que resolvi dar o passeio e ... aconteceu o acidente e a grande largada. Continuava eu gritando quando o animal, como ventania, cruzou a rua Rui Barbosa, diante de uma pequena multidão que acudia aos gritos. Tropel, latidos... Quase na esquina da General Carneiro com a Mimi Alemanha, num areal branco e fofo, divisei um vulto. Estava só. Encostados nas paredes ou atrás de refúgio, havia muitos espectadores. O vulto, plantado no meio da rua, trazia os dois braços em forma de V. Num deles, agitava o chapéu. Previa a fatalidade. O animal, abaixou a cabeça. Ergueu a cauda e aprumou. Desta vez, havia alguém decidido a não recuar. Esperou firme. O embate foi de gigantes. Rocha contra rocha. Velocidade animalesca contra a muralha do Amor. Com o encontro, o cavalo, caiu de um lado. Eu espirrei longe, sentado na areia. O cavalo, que levou um galeio de corpo no pescoço, do vulto, caiu com ele do outro lado. O vulto era meu Pai. Ele se ergueu, branco. Meio arcado, trazia uma das mãos no abdômen e a outra, no peito. Mesmo assim, levantou-me. Examinou-me. Com as faces ainda oprimidas, tomou firmemente as rédeas do animal e seguiu rumo às cocheiras... (21.09.1971) ASTÚCIA CABOCLA – Professor, não se mexa!!! Olhei e percebi que Minervino apontava a espingarda na altura da minha cabeça. Deu no gatilho. Minervino era um desses mineiros de falar cantado. Olhos cinzas. Piscar lento. Queimava um cigarrão de palha – fumo urutu – e ia com a unha do dedão acertando a cinza da ponta. Dava uma chupada, assoprava outra vez a cinza da ponta e pluf, cuspia. Sempre descalço e com calos entre os dedões do pé, de tanto andar a cavalo com eles fincados nos estribos. Sua morada ficava no alto do chapadão do Zagaia. Serra da Mantiqueira. Era de paus e coberta com socas de capim barba-de-bode. Dormia em estrado rústico. “Esses tar de cochão diz que dá dor de iscadeira...” Achava o animal pelo rastro. Os companheiros perdidos nas macegas, pelo jeito do capim tombado. Previa a chuva. Na época das mutucas, não procurava animais nas baixadas: eles se escondiam dos impertinentes insetos na parte mais alta da serra. Do alto daquele chapadão, eu gostava de me plantar. Corpo ereto. Perdigueiro aos pés. Espingarda com a coronha no chão. Uma das

mãos presa no cano. A outra, segurando o chapéu. Assim eu ficava tempão. Olhando ao longe: grutas. Depressões. Faixas verdes e planícies peladas. Chamava-me a atenção o pio distante da perdiz, o vôo rasante de um gavião ou o “tric” de um grilo. Batido pela brisa. Batido pelo sol, eu firmava meus olhos num cruzeiro. Antigo. Desafiando o tempo. Guardando histórias. Negros velhos. Malfeitos. Benzeções. Segredos. Medos... Em sua volta, santos quebrados ou sem cabeça. Flores de papel, desbotadas. Dinheiro, até!... Quando Mineivino me admoestou, eu me encontrava no chão; ele, a cavalo. Caçávamos perdizes. Eu extraía um espinho da pata de meu perdigueiro. O tiro passou a dois palmos da minha cabeça. Acertou, em cheio, uma cascavel que se preparava para dar um bote certo, do meio da macega. Levantei-a pela cauda. Seu corpo remexia-se. Embora a cabeça estivesse esfacelada, abria a boca. Minervino apeou e foi dizendo: – Quatro anos. (Tirou um canivetão-corneta, abriu-o e destacou o guizo do réptil.) – Este é meu, professô. Tenho uns 10. Eles dá força pra gente podê enxergá os animais daninho... (24.12.1970) ENFORCADO PELA CONSCIÊNCIA Encontraram o corpo dependurado pelo pescoço no meio do cerrado, só porque os urubus já o rodeavam. Naquelas bandas, moravam Pedro e Marcolino. Pedro, caboclo forte. Robusto. Trabalhador e honesto. Marcolino, alto. Magro. Quieto e de olhar sempre distante. Era pai de quatro filhos. Pedro namorava Rosinha, a mais velha, com apenas 15 anos de idade. Cabelos fartos, longos e negros. Mais negros que as penas da graúna. Olhos grandes. Brilhantes, lapidados e incrustados na paisagem do seu rosto moreno e alegre, onde a própria beleza se orgulhava de existir... Seus lábios, dum colorido rubro natural, não escondiam a fileira de dentes sadios e brancos, alinhados como se fossem pérolas de braços dados... Qualquer vestido. Feio ou bonito. De seda ou chita. Roto ou novo. Qualquer que fosse, não conseguia desfigurar seu corpo de menina-moça, moldado pela própria mão da Natureza. Seus seios já se despontavam “em forma de espinhos de paineira”... Gostava de cantar. Brincar com as flores dos caminhos. Molhar seus pés nas águas brancas dos regatos.

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De dançar. Rir, e rindo, gargalhava atirando seus cabelos e a cabeça para trás. Se encontrasse um filhote de passarinho ou de qualquer animal, sem mãe, tratava-o com um carinho imenso... exagerado. Agora Rosinha está com certa responsabilidade. Sua mãe falecera. Doença de Chagas. Aquela choupana na beira do caminho, que leva a gente de Macedônia a Indiaporã, ficou um tempão triste, até que uma trepadeira “cipó-de-São-João” encheu de flores vermelhas seu telhado coberto de sapé. Rosinha gostava de colocar aquelas flores nos seus cabelos. Ela que cuidava agora de seus irmãozinhos e de Marcolino, seu pai. Este, quando saía de madrugada para o serviço, já levava a “bóia” pronta. Pedro namorava em casa. O rapaz era bom e respeitador... – Se gostemo, “seu” Marcolino. Vou me casá cum Rosinha. – Tem minha bênção, Pedro, mas juízo... Passou o tempo. Veio o noivado. A colheita andou mal... o casamento precisou ser adiado... Naquele dia... Pedro foi chegando como de costume. Rosinha chorava aos soluços... – Vancê se vai, Pedro. Te amo mas num quero mais ocê. – Rosinha... Que foi? Fala! Eu num vivo sem vancê... – Vai embora, Pedro. Tá acabado e pronto. Passou-se um mês... Marcolino percebeu que a filha estava grávida... Rangeu os dentes. Suou frio. Tremeu da cabeça aos pés... – Pedro, vancê tem que casá com Rosinha. Faço o casório. Dou-lhe pedaço de minhas terras... – Seu Marcolino, Rosinha num quer me explicar nada. Num caso cum ela. – Se não casá, te mando prendê ou te mato... Rosinha f'oi definhando... definhando... Onde se escondeu tua beleza. Tua graça, teus risos de menina”. Rosinha fica feia na tristeza! – Meu Deus! Acende os olhos de Rosinha... Vieram as dores do parto. Nasceu um menino-monstro, sem vida. Rosinha, a pobre Rosinha Não se foi, nem se escureceu Encarnou-se nas flores dos caminhos É o choro das águas limpinhas Vive no canto dos passarinhos

Por isso Rosinha não morreu... Quando avistaram aquele corpo dependurado, pelo pescoço, no meio do cerrado... chamaram a polícia. No bolso do suicida, foi encontrado um bilhete com linhas mal traçadas... – “Tenho o inferno dentro de mim. Dia-a-dia matei minha Rosinha. O monstro que nasceu sem vida... era eu. Que nem Deus me perdoe. Num a mereço. Marcolino.” (24.06.1972) NÃO CASO. CASO. NÃO CASAM A partida de baralho ia ao meio. O calor na pequena sala estava insuportável. Seis homens em volta da pequena mesa. Um cobertor desses “cobre a cabeça, descobre os pés” servia de forro. A fumaça dos cigarros de palha pairava no ar. Olhei o “juiz de casamento”, como ele era conhecido lá naqueles cafundós de Goiás. Rosto cheio, barba por fazer. Cigarro caído no canto da boca. Quando a cinza caía no cobertor, ele instintivamente... Fuuuuuu... dava-lhe um assoprão. Alguém disse que aquela camisa que usava era branca... – Casamento à espera! – Alguém que pôs a cabeça na porta, gritou e retirou-se. O juiz de casamento resmungou. Xingou. Fungou, e se foi. O pequeno cartório estava apinhado de gente. – Quem vai casar? – Nóis. O juiz carrancudo molhou a pena “bico-de-pato”no tinteiro e pôs-se a encher uma enorme folha. – Pronto! O Sr. Belmiro deseja por legítima esposa a Srta. Rosa? – Olha, seu juiz, ela já qué me mandá desde hoje, por isso arresolvi: não caso. – O problema é dele, seu juiz. Ele não pensa que vai arruaçá comigo, que num vai mesmo. O juiz fungou. Pensou na partida de baralho quase ganha. Fechou o livro e saiu como uma bala. Os noivos passaram a se xingar. Os convidados começaram a se retirar. O juiz de casamento já ia no meio das outras partidas quando... – Casamento à espera! – A mesma cabeça na janela. Os mesmos resmungos do juiz. Xingos e fungações. Quando chegou ao cartório, quase morreu de raiva. Na sua frente lá estavam outra vez o Belmiro e a Rosa. Rangeu os dentes e fez a pergunta:

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– Sr. Belmiro deseja, agora, por legítima esposa a Srta. Rosa? – Entremo num acordo. Agora desejo a Rosa, seu juiz. – Srta. Rosa, deseja por legítimo esposo o Sr. Belmiro? – Não, seu juiz. Agora quem não qué sou eu. Isto que pague o desafeto que ele me feis... O juiz deu um soco na mesa. Pensou no jogo e gritou: – Vão às favas!!! Outra vez a partida. A fumaça. O calor. A cinza do cigarro no cobertor. A cabeça na janela: – Casamento à espera! O juiz tremeu. Pensou um pouco. Sorriu de raiva e caminhou para o cartório. – Outra vez vocês dois? Perguntou quase gritando. Abriu o livrão. – Seu Belmiro, deseja por legítima esposa a Srta. Rosa? – Agora desejo. – Dona Rosa, deseja por legítimo esposo o Sr. Belmiro? – Agora desejo. – Pois fiquem sabendo que agora quem não deseja sou eu! – gritou colericamente o juiz. Puxem daqui! Arrancou o bruto 38 e começou a dar tiros para cima. Convidados e noivos se atropelaram na pequena saída. E tem mais: não fiquei sabendo se já pararam de correr... (09.06.1973) NATAL Eta pretinho danado! Em seus nove anos já recebera uma escola de pilantragem. Outro dia, sua mãe deu uma carreira atrás dele. Ditinho foi ligeiro. O pior é que com o dedinho polegar na boca, mantendo uma certa distância, fazia pique: – Pito, pitô, não me pegô!!! Pito, pitô... Saiu novamente em disparada. Sua mãe ameaçou pegar uma pedra... As reclamações eram sempre as mesmas. Ditinho roubou o sorvete de Antônio. Ditinho tocou uma pedra no José. Ditinho... Até em sua casa ele era o preferido: – Vá buscar a roupa do “dotô” pra lavá. – Vem cá, “desperdício”. Lave a mão e entregue a roupa lavada... Naquela tarde, ele brincava com vagalumes pegos na noite anterior, gritando: “Vagalume tentém, teu pai tá qui, tua mãe também...” Esfregou muitos na roupa para enfeitá-la com riscos luminosos. Com os que sobraram, agora, colocava-os de costas só

para apreciar o “tic” do desvirar do bichinho. O Ditinho levantou a cabeça. Ouvira o ronco de um avião. Avistou-o. Colocou suas mãos em forma de concha na boca, estufou seu peito e gritou aos céus: – Avião, avião, fala pra Papai Noé me traze bastante presente. Bastante presente, viu? Óia, manda Papai Noé conversa comigo! Seguiu o avião até que o mesmo desaparecesse entre as nuvens. Abaixou a cabecinha e... meteu o pé no vidro com os vagalumes... – Ai, ai, ai! – saiu pulando com uma perna só. Machucara o dedão do pé. – Ditinho!!! – Sua mãe o viu pulando com as duas mãos segurando a canela. Agora ele estava sentado, puxando o dedo para perto de sua boca, e assoprava-o furiosamente... Lá se foi Ditinho. Trouxa de roupa na cabeça. Pedaço de tira no dedão, e maneando. Sua imaginação funcionava... – Será que o avião escutou meu pedido‘? – Ele ia pedir mais uma coisa. Um par de sapatos. Assim não machucaria mais o pé. Mas como ia conversar? No ano passado ele não pediu nada e depois tinha que brincar com os vizinhos... – Não deixe esse negrinho pegar nada! Ele quebra e acaba com tudo! Com a espingarda de Joãozinho, ele deu um tiro de rolha na bunda gorda da dona Dodó, apanhou e perdeu a espingarda. Agora, sem brinquedo e sem amigos, só Papai Noel para salvá-la. Quando já voltava para casa, ó surpresa! Ouviram seu pedido. Papai Noel estava ali, bem ali, entre os meninos. Falava, gesticulava, ria... Era meio banguela. De vez em quando um meninão sujo puxava o saco das costas de Papai Noel e ele ficava bravo... Mas Ditinho não se fez esperar. Entrou correndo num bar. – Moço, seu moço! – puxou a camisa de um senhor que bebia cerveja –, me escreve um pedido de presente prá Papai Noé? – Vá pentear macaco, menino! – E recebeu um empurrão no peito. Ia saindo desapontado, quando: – Vem cá menino, eu escrevo. – Era um senhor de cabelos grisalhos que estava lendo jornal ao lado. Tirou a caneta esferográfica do bolso. Rasgou meia folha de papel almaço e foi dizendo:

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– Pronto, o que você quer? Ditinho tremia: – Óia, eu quero um artomove, uma espingarda, uma bola... – Espere, vamos devagar... "Papai Noel, o Ditinho ... – Fala que é aquele que chamou ele pelo avião... – Papai Noel, o Ditinho, aquele garoto que mandou recado pelo avião, quer, nesta noite, um automóvel, uma espingarda, uma bola, bastante doces, roupa... e um sapatão para ele não machucar mais o dedão. – Pronto. – Dobrou o papel e entregou-o a Ditinho. Ditinho nem agradeceu. Saiu como um tiro. Lá estava Papai Noel com um cornetão na boca: “Lojas Pernambucanas, é o Papai Noel, peça e ganhe presentes e mais presentes!!!” Ditinho tremia. Já nem maneava e, com todo o cuidado, colocou o papel no bolso traseiro do Papai Noel da propaganda... Disparou para sua casa. Anoiteceu. Não contou nada a ninguém. Abriu a janela velha da parede de barro do seu quarto e de seus outros seis irmãozinhos. Deitou-se de costas. Puxou com as duas mãos o cobertor “sapeca-negrinho” até a altura do pescoço. De olhos vivos e bem abertos ficou esperando Papai Noel... Esperando... esperando... esperando... adormeceu. Lá fora, os vagalumes riscavam de ouro a escuridão. (22.09.1973) TUPÃ Não era um deus. Era um cachorro. O céu estava negro, com nuvens baixas. Era de tardezinha. Eu atravessava os 200 metros de largura do rio Grande, em Rifaina, SP. Pressenti a tempestade. O vento rio acima encrespava as águas. Por mais que eu remasse, a canoa não rendia. Estava eu de chapéu. Botas. Camisa rústica. Calça rancheira e um cinturão carregado de cartuchos 28. Minha espingarda trazia-a às costas, presa a tiracolo. Enfrentava a ventania bico acima. Os pingos da chuva grossa me ardiam no rosto. Meu coração batia acelerado. Medo e terror irmanavam-se. O uivo do vento era tenebroso. Perdigueiro, meu cão Tupã estava em pé no bico da canoa. Também pressentia o perigo e chorava baixinho. Mais um golpe de água e a canoa virou-se de uma vez. A margem estava distante. Senti meu corpo pesado e meus nervos enfraquecidos.

Ganhei o Tupã ainda filhote. Criei-o com carinho. Tornou-se meu amigo inseparável. Viajava nas férias, comigo. Dormia dentro de casa. Quando eu seguia para a escola, ele se deitava na calçada e me seguia até perdê-lo de vista. Quando regressava, ei-lo a minha espera. Durante o dia ou à noite, andando pelas macegas, beiras de rio. chapadões ou brejos, ele seguia à frente. Percebendo o perigo, latia e eriçava o pêlo. Uma vez, fazíamos um piquenique nas areias brancas do rio Grande. Muita criança esparramada. Tupã latiu. Olhei. Ele estava de pêlo eriçado, entre uma jararaca e meu filho, pequeno ainda. A víbora preparava-se para o bote. Fui mais rápido. Acertei-lhe um tiro na cabeça. Tupã morreu no ano de 1962, em Jaboticabal, atropelado por uma camioneta. Mandei sepultá-lo. Chorei. Pus luto por determinado tempo. Encostei de uma vez minha espingarda. Quando o golpe de água afundou minha canoa, desesperadamente comecei a lutar para manter-me à tona d'água. Tupã nadava em círculo a minha procura. Percebi-o entre o negrume. A chuva. As ondas revoltas. Dei um assobio arme. Num segundo, ele estava ao meu lado. Eu me achava exausto. Tupã era forte. Treinado. Agarrei arme em sua cauda e... – Vai, Tupã!!! (Meu grito de guerra.) Ele se pôs a nadar à margem. A luta foi gigantesca. Bebemos água e nos engasgamos várias vezes. Tupã bufava. Ajudava-o com os pés pesados e o braço esquerdo. Conseguimos sair. Deitei-me na margem e deixei que a tempestade me surrasse à vontade. Ofegante ainda, levei minha mão e comecei a acariciar a cabeça do perdigueiro que, deitado junto a mim, estava como eu, mais morto que vivo. Depois, beijei-lhe a testa e pela sua alegria percebi que ele me compreendeu. Para mim, Tupã não era um cachorro. Era um deus. (04.03.1971) ALMAS INFANTIS Um grito cortou o vasto corredor do pequeno Grupo Escolar dos confins. A ele se unia o som do estalar de tapas e do arrastar de um corpo. Uma criança vinha presa pelos cabelos e foi-me atirada aos pés. Eu respondia pela diretoria. Já me achava em pé quando a mestra furiosa apareceu com o

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pequeno escolar. Oito anos. Segundo ano. Magricela. Cabelos cor de cera. Olhos tristes. Camisinha de saco branco, ainda poder-se-ia ler numa manga “Fari...”. Calça de um azul corroído. Pés descalços e sujos. Levantava-se às cinco horas da manhã. Vinha à escola sentindo no pisar o caminho molhado e frio. Depois as pedras, depois o pó, depois a terra quente, por isso o esfriar dos pés, nos regatos dos caminhos. Uma sacolinha encardida dependurada em seu pescoço guardava um pedacinho de rapadura – seu lanche e desjejum. Seu caderno de capa verde e pontas enroladas, encardido, agitava-se na mão da professora como bandeira em dia de festa e descia com fúria na pequenina cabeça. O garoto chorava. As lágrimas abriam um caminho claro em suas faces. Não tinha mãe. – Olhe este dorminhoco, vagabundo e sujo! Veja que letra, parece arame farpado! – A mestra quase me enfiava o caderno no rosto. Olhei o caderno. Uma sujeira de esferográfica vermelha, numa correção mecânica, insensível, material... é o que eu vi. Os ditados eram de palavras incompreendidas: “Xenofontes, perspectiva...” E a professora falava, falava, falava... até que: – Fique com esse traste! – E buf, outro safanão. Fiquei. Sentei-o ao meu lado e comecei a chupar uma bala. Dei-lhe outra. Relutou em pegar. Pegou. Seus suspiros ainda faziam o pequeno tórax dar arranquinhos. Mostrei-lhe vários cadernos de professores. Fiz-lhe observar as letras redondinhas, claras, bonitas, cheirosas até... Mostrei-lhe outro caderno com letras corridas, espichadas, disformes, nervosas e ... – São feias perto daquelas, ou não? – Perguntei-lhe. O garotinho olhou, olhou e com a cabeça disse que “sim”. – Pois é, estas são as minhas letras e uma vez também apanhei por causa delas. – Ele sorriu. Arrumei-lhe os cabelos eriçados. A camisa sem botões. Coloquei no embornal o pedaço de rapadura que havia caído. Entreguei-lhe o seu caderno e disse: – Toda vez que você tirar notas boas, venha buscar uma bala. Um dia, a professora perguntou-me o que fiz com o garoto, que mudara tanto. – Nada, professora. Absolutamente nada – respondi-lhe. (08.11.1970)

O FILHO ERA MEU Em Macedônia, para se conseguir uma escola, lá pelos idos de 52, era preciso “jogar bola”. O prefeito achou-me com panca de jogador. Ganhei uma escola onde o “judas perdeu as botas”. No primeiro treino... fui dispensado do jogo. Logo... perdi a escola. Era época de política. Descobriram-me como orador. Voltei para a escola. Nas minhas andanças, fui conhecendo aquela gente simples. Gente que só falava em macumbas. Encostos. Benzeções. Malfeitos. Eu ouvia e me calava. Helena começou a faltar às aulas. Era uma garotinha de 9 anos. Olhos tristes. Bem pobrezinha mesmo. Resolvi saber o que acontecia. Visitei sua casa. Casebre eu encontrei. Feito de lasca de coqueiro. Piso de terra vermelha. Fogão ruído. Pane-las de latas de banha. Um lugar triste, úmido, feio mesmo. Quatro crianças semivestidas. Amarelinhas e barrigudas. O pai sempre bêbado. A mãe adoecera no dia em que Helena começou a faltar. Estava tomando conta da casa, dos irmãos, da mãe e do pai... O recém-nascido pareceu-me inchado. A mãe, gemendo e ardendo em febre, amamentava-o. Nisto chegou a parteira. Velha como o tempo. Pegou a criança. Despejou água fria numa bacia de corar roupa. Começou a dar banho no bebê. Deu-me uma olhadinha. Cuspiu do lado e começou a murmurar: – Eta menino-home sadio! Com este intero 80, É claro, juntado com as menina-muié. Mas quá essas mãe não sabe cuidá, morre muitos de mal-de-sete-dias. Já cansei de ensiná, umbigo de menino se cura com ólio, sal e picuniã. A esta altura, o bebê abre a boca no mundo. Chora angustiado. Perdeu o fôlego. Ela o levantou e plaf, uma palmadinha nas suas nádegas e o fôlego voltou ... Enrolou-o numa toalha encardida e colocou-o no colo de Helena. Os gemidos da mulher gestante haviam aumentado. Olhei a criança. Olhei a parteira. Olhei Helena. – É, professor – dizia-me o Dr. Alberto Senra, pediatra de Fernandópolis, a quem levei marido, mulher e bebê –, a infecção é grande. Mas vejamos o que posso fazer... A mulher sarou. O bebê ficou forte. Entrei em campanha para a pobre família: remédios, roupas, alimentos e tanta coisa consegui para a casa da pequenina Helena, que seria difícil enumerar. Certo dia, fiz uma visita à família. Tudo bem. A mulher humilde e simples, quando me via, chorava. Ao sair. Sentindo na alma uma alegria, uma felicidade dessas difíceis de se descrever, uma voz chamou-me. Atendi.

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– Cuidado, professor! Muito cuidado! Já estão falando por aí que o filho é seu... Fazia dois meses que eu lecionava em Macedônia. (11.08.1971) ROSELY, MEU PINGO DE SAUDADE Por que morrem as criancinhas? Ah! Minha bonequinha loira. Loira corno um pedacinho do sol que entra pela janela, numa manhã preguiçosa. De olhos azuis. Azuis como os olhos de cristal das bonecas granfinas. Era um rostinho de anjo. De alegria. De vivacidade. De serelepe. – O senhor que é o professor de meu irmão? – Sou sim, minha bonequinha, por quê? – Então me conta uma coisa... – Perguntou e ela com altivez. Agachei-me com um riso e segurando-a pelas mãozinhas esperei que aquele pingo de gente, com quatro anos, me fizesse a pergunta. – Pronto, bonequinha, pergunte... – Quem acende o sol e o apaga todos os dias? – Lá em cima – mostrei-lhe as nuvens no céu –, mora Deus. Ele é quem apaga e acende o sol todos os dias. – Então por que eu não vejo Deus? – Porque ele está muito alto... mas você pode conversar com Ele, rezando... – Ela fez um ar de tristeza. – Eu rezo, mas ele não responde... Ah! Professor, outra pergunta: Para onde vão as águas dos rios? – Vão para o mar, que é um rio grande, tamanho do céu... – E as águas do mar para onde vão? Senão enche tudo... – Escuta, bonequinha, não enche, porque o sol carrega as águas lá para o céu. – Então por que os rios e o mar não secam? – Porque Deus está lá em cima e antes dos rios e mar secarem, ele despeja tudo de novo na terra. São as chuvas quando caem. Rosely deu uma risada, saltou para trás e saiu correndo e gritando: – Que mentira, que lorota boa! Que mentira, que lorota boa!... O pai de Rosely era gente humilde. Empregado de açougue. Roseli jamais poderia compreender que quando ela e seu irmãozinho ajudavam o pai na matança de capados, lá no fundo do quintal, era porque Salim, o dono do açougue, não queria pagar impostos... E os pais, às vezes, são preguiçosos, heim Rosely? Não podem ver os filhos por perto que... "Rosely, vá com o Carlinhos buscar a faca de ponta!” "Vá buscar palhas de milho.” (Você era fogo e sapeca, não?)

– Vamos logo! – gritava seu pai. -- Daqui a pouco vou aí e pego os dois de porrete! É que você e seu irmãozinho brigavam: “Carlinhos, você leva menos que eu, né? Então fico sentada e não ajuda!" – Papai, a Rosely não quer ajudar!!! (Lá vinha a bronca...) Naquela tarde... – Rosely, vamos brincar de "matar porco”. – Vamos, Carlinhos; eu sou o porco e você, o papai, tá”. Rosely deitou-se. Carlinhos pegou um pauzinho podre. Fingiu que estava furando e... – Grite, Rosely! – Gui. gui, gui, gui! – fez ela. – Morreu? – Morri, Carlinhos cobriu seu corpo com um montão de palhas e... pôs fogo. (23.09.1972) HIPNOSE O1hou a arma. Um Taurus 38. Uma sensação gelada perpassou-lhe o corpo. Sentiu a cabeça zonza. Um enjôo no estômago. Pernas frágeis. Agora era tarde demais. Trêmulo, entrou silenciosamente no quarto. Sua mulher estava imóvel na cama. O homem, que já se achava sem camisa ao seu lado, não teve tempo de se defender. Recebeu três balaços nas costas. A mulher... outros três no peito. – Fitem este homem, senhores jurados! – dizia o advogado de defesa com voz firme e exclamativa. – Trabalhador! Via-jante! Permanecia fora de casa até 10 dias! Saudoso dos carinhos da esposa, dos agrados dos filhos, regressa! A esposa, fria! Os filhos, distantes! Surge-lhe a desconfiança! O desassossego! Já não é o bom empregado! Já não é o homem virtuoso! Ficou sabendo de tudo! É um homem traído! A mancha que se forma na alma dos justos... somente com sangue se lava! Naquela noite não viajou! Ficou de emboscada! – Meu Deus!! Estaria sonhando?? O “Cafajeste”... bem, o “Cafajeste”, entrando sorrateiro em sua própria casa? Era um pesadelo, meu Deus!! Um pesadelo! Maria Rita não lhe podia fazer isso, nunca! Em que espécie de mulher se transformou para tão baixo indivíduo? Não, não! Queria ver para crer. Usou uma segunda chave... Agora a cabeça virava-lhe a alma! Estava louco! Desvairado! Fitem, senhores jurados, o semblante

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cadavérico deste homem! Ele agiu através de um impulso de defesa, que é reflexivo em todo ser... De nada se recorda!! Após o crime... caiu na sala e foi encontrado pelos vizinhos que acudiram aos gritos das crianças!!! Senhores jurados, ponham-se no lugar deste homem, sem uma mancha no passado. Cometeu um crime porque amava. Quem ama não quer que seu carinho seja repartido com outrem... Isto observamos no próprio instinto dos animais... Como perdoar a esposa, se naquele momento ela aguardava um ordinário, qual uma megera, qual uma vulgar prostituta? Peço, pois, senhores jurados, a absolvição deste réu!!! Um vozeiro, da assistência que lotava a sala do fórum, percorreu o ambiente. O réu gritando: – Não! Não! Não me absolvam! Sou um assassino! Caiu em prantos e, segurando com as duas mãos o rosto, abaixou-o entre as pernas. – Com a palavra, o promotor de acusação – disse o juiz, depois de pedir silêncio, tocando com o dedo indicador a pequena campainha. – Senhores jurados – diz o promotor com voz passiva –. quanta infâmia acabo de ouvir da defesa. O réu, sim, ele mesmo confessou-se culpado! Maria Rita morreu. O povo todo prestou-lhe homenagem e presta-lhe, desejando ao réu sua prisão. Uma cidade chorou, senhores jurados. Quem não conhecia Maria Rita? Mulher ideal. Religiosa. Dedicada ao esposo e filhos. De personalidade invejável. Estimada. Comunicativa. Decente. Seu marido, viajante sim. Dez dias fora de casa; 20 ou trinta, que importa? Importa que nem sentia saudades da esposa ou dos agrados dos filhos. Estes passavam necessidades... Maria Rita costurava dia e noite para que nada faltasse aos filhos! Ele... belo mimoso. deleitando-se nos braços de Adriana, sua amante. Sua amante sim, senhores jurados!! O que aconteceu naquela noite, não sei. Não sei como foi acontecer. Só Deus sabe. Só Deus e este monstro (apontou o réu) a quem eu, senhores jurados, peço condenação, peço porque não creio no pecado de Maria Rita!!! – O RÉU FOI ABSOLVIDO. Já não era o mesmo homem. Perambulando. Bebia e fumava exageradamente... Foi encontrado morto. Suicidou-se. Ao seu lado uma carta. Na carta, o segredo que a mim o Dr. Maluf; delegado de polícia, confiou: – Doutor, preciso me desabafar em vida, para minha alma ter o perdão de Maria Rita, no além.

Fui um frio assassino. Minha esposa foi sempre fiel e honrada. Apaixonei-me perdidamente por Adriana. Maria Rita me era um empecilho. Armei uni plano diabólico para eliminá-la. Ela nada percebeu. Com jeito e carinhos eu, como fazia antes brincadeiras familiares. hipnotizei-a. Mandei que ela se deitasse. Ordenei que somente deveria acordar, sob minhas ordens. Foi fácil encontrar “Cafajeste". Disse-lhe que minha mulher sofria de ataque histérico e eu não era homem... Ele atendeu ao convite mais que depressa. Mandei-o entrar bem devagarinho no quarto, Maria Rita dormia... Arrependi-me. Aí era tarde. Tarde demais. Fuzilei os dois. Engenhei um adultério perfeito, mas... minha consciência e coração... não me perdoaram... Vivi dias de loucura até que escolhi este caminho, o único que poderá trazer-me o sossego merecido... (23.06.1973) OS MILAGRES Eu vi um cego enxegar. Um aleijado andar. Um canceroso curar-se. Um leproso ficar são. Eu vi... Eram incontáveis os milagres da “Santa de Frutal”, contados pelos motoristas de peruas kombis que lá faziam lotação. Muitos que desejavam seguir para o local milagroso, mas não possuíam dinheiro, vieram ao meu encontro. Levei-os. Um estava quase cego por catarata. Outro, uma infecção na perna com risco de ser amputada. Os que desejavam largar as muletas. Um bobo. Uma garota que o “Hospital das Clínicas” desejava operá-la de um tumor no cérebro. Tantos outros esperançosos faziam minha lotação. Chegamos. O local, limpo, sobressaía-se no meio de um cerrado. Uma multidão ocupa todos os cantos e recantos. Conduções de todos os tipos e vindas dos mais diversos e longínquos lugares. Centenas de acampamentos levantados. Barracas de mascates. Bancas de camelôs. Balcões vendendo comes-e-bebes (a mosquitada saboreava livremente as guloseimas). Mendigos e aleijados que não haviam ainda recebido a cura... esmolavam. Meus olhos percorreram o ambiente. Duas criancinhas, gêmeas, sem pernas e braços, acima de cinco anos, estavam amarradas, pelas cinturas, em duas cadeiras altas, num sol ardente. Gemiam e babavam com a cabeça pendida. Em seus colos, latinhas que colhiam esmolas. Num cômodo mais longe. divisei centenas de muletas. Óculos. Aparelhos diversos. Fotos. Peças de cera.

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Flores plásticas, velas, santos... Em frente à bica de "água milagrosa", de minuto em minuto, caía um pingo. ali formava-se uma fila de dezenas de pessoas com garrafas, garrafões. galões, latas... aguardando a vez de poder enchê-lo. Paralela a esta, outra bica, mais jeitosa, com muita água mesmo e bem cristalina. Também exercia o poder da cura. Pessoas com todo tamanho de doenças banhavam-se nela com roupa e tudo. Na lama preta, pisoteada pelos banhistas, outros se emporcalhavam. Um foi além, começou a saboreá-la. Meu estomago não agüentou ao ver tanta miséria. Retirei-me dali. Achei-me diante de uma enorme barraca de ciganos. Somente um garotinho de uns 9 anos, com o corpo cheio de feridas, deitado numa rede, chorava com dor de dente: – Aiaiaiaiaiãããããã. – Avistou-me, parou de chorar. Pulou da rede. Rápido, veio ao meu encontro e ... – Moço, compra o retrato da Santa. Dá sorte. Faz milagres. Traz dinheiro, saúde e felicidade. Compra. compra. -- Não! – respondi-lhe secamente. Virei-lhe as costas. O ciganinho pulou novamente na rede. – Ai mio dente! Aiaiaiaiaiãããã! Quatro horas da tarde. A multidão começa aglomerar-se diante da capela. A "Santa” vinha chegando. Acompanhava-a um cordeiro branco e quatro caboclos fortes. Estes traziam nas mãos sacolas para os donativos que seriam destinados à pobreza. A "Santa" não recebia dinheiro. A multidão abriu-lhe caminho. Uns tocavam-na de leve. Outros caíam, de joelhos, a seus pés. Muitos oravam em voz alta. A "Santa" subiu no ponto mais alto da escadaria da capela. Levantou seus braços magros em forma de V. Um súbito silêncio dominou o local e sua voz ganhou ouvidos: – Em nome de Nossa Senhora Aparecida, eu vou falar com vocês. Ela me veio num caminho de Luz e cheio de rosas. Pediu orações. Todos rezem com bastante fé, me acompanhando. Ave Maria, cheia de graça... (Milhares de vozes se fizeram uma só.) Padre Nosso que estais no céus... Salve Rainha... Agora – continuou ela –, vou benzer as águas, e os que aqui não puderem vir, mas dela beberem, se curarão. Orou em silêncio. Fez gesto em cruzes. Atirou água na multidão. Levantou os olhos para os Céus. Com as mãos postas, numa quietude sepulcral, tremeu, chorou. – Os que têm dores! Males! Demônios! Pensem! Rezem! Creiam em mim! Creiam em mim! Pronto, estão curados. Estão curados!

Da multidão, gritos disformes ecoaram. Muletas. Óculos. Vidros de remédios foram atirados ao chão. Todos estavam curados. Fez-se o fabuloso milagre da auto-sugestão. Na volta, dentro da perua, havia euforia: “Larguei minhas muletas!” “Eu, meus óculos!” “Minhas pernas é outra!” “Não tenho mais dores!” Passaram-se alguns dias... Muletas foram compradas. Óculos aviados. A perna infeccionada... amputada. O bobo continuou mais bobo. Ah! E a garotinha com tumor no cérebro? – Sua netinha melhorou, Euzébio? – Perguntei-lhe. – Graças a Deus, professô! Levei ela no “Hospitá das Clínicas”, foi operada e sarô pruque todo dia faço ela tomá daquela água benta... Ia quase me esquecendo, Quando voltei da “Santa de Frutal”, e não vi milagres, porque milagre é aparecer braço a quem não tem braço, perna a quem não tem perna, vida a quem morreu. Milagre, só Jesus fez. Quando voltei, fui procurar os motoristas das lotações kombis e interpelei-os: – Como é, moçada, onde é que estão os milagres que vocês tanto propalam? – Fique quieto, professor – respondeu um deles –, fala que viu, senão você acaba com nossas viagens. (23.08.1972) PERIGA, POBRE PERIGA Nem sei de onde lhe adveio este apelido. Conheci-a na minha infância. – Periga quer casar!!! Periga quer casar!!! A molecada gritava às escondidas, e a mulher, enlouquecida, jogava sua trouxa de roupas sujas no chão e punha-se a correr atrás dos “gritos”. Usava um vestido esfarrapado sobre um corpo envelhecido. Descalça. Cabelos revoltos, sujos e embaraçados. Viam-se neles fios de capim ou pequenos carrapichos. Carregava sempre urna latinha onde alguma alma boa punha-lhe o que comer. Se não mexessem com ela, não era violenta. Ria, e rindo mostrava uma pobre carcaça dentária. Seus olhos injetados de sangue não escondiam que outrora foram verdes... Foi encontrada morta naquela madrugada. Trazia bem apertada nas mãos uma fotografia suja, amassada, quase irreconhecível. Era de um jovem. Lá vem meu amor chegando, Chegando devagarinho. Ouço que seu coração Vem trazendo carinho... – Mãe, precisa de mais ovos e leite!!!

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– Você, cantando e fazendo bolos, não sei o que vai sair, menina! – Ele vem hoje, mamãe. Estou feliz. Feliz! – Pegou sua mãe pela cintura e pôs-se a rodopiar com ela. Seus cabelos abundantes e negros se esvoaçavam, enquanto nos seus olhos verdes e no mais lindo sorriso de menina-moça, cantava o amor. – Chega de palhaçadas, Cibele! – Gritava sua mãe. – Você precisa criar juízo! Fugindo do rodopio, sua mãe tentava alcançá-la para lhe dar umas palmadas. Cibele, rindo. segurava-a pelos braços e, enchendo-lhe o rosto de beijos, dizia: – Minha velhinha encantada! Você é a eterna primavera do meu coração... – Quá, você não tem jeito mesmo, é moleca e quer se casar... Cibele estava noiva de Ricardo. Moço, médico, e já havia montado seu consultório na vila. – Vamos atender a nossa gente sofrida, e dando para nós dois e nossos filhos viverem, basta, não é, minha bonequinha? – Dizia Ricardo, prendendo nas mãos o rosto de Cibele. – É! – respondia ela e voava de braços abertos em seu pescoço; apertando seu corpo no dele, suspirava e saía pulando de alegria, depois de dar-lhe um apaixonado beijo. – Meu saci-pererê! – dizia Ricardo, rindo e abanando a cabeça. A casa já estava alugada. Parecia de bonecas. Cibele pintou pelas paredes bichinhos, flores... O chão, um lustro. Gostava de mexer no jardim, e quando notava alguma plantinha triste... – Coitadinha! Você tá doentinha, ta?” Cibele vai tratar de você, viu? – Com todo carinho ia visitá-la várias vezes ao dia, levando-lhe água, esterco... Se a plantinha ficasse boa, fazia-lhe uma festa. Se morresse, chorava de tristeza. Seus pais moravam numa chácara. Mandaram limpar embaixo das grandes mangueiras, onde seria realizada a festa.

Dona Benta. Camerlinda. Francisca e a comadre Maris já estavam preparando os doces caseiros... Levantou-se cedo naquele dia. Ricardo viria para combinarem os últimos preparativos do casamento. – Que delícia, mamãe! Que delícia! – E pôs-se a rodopiar com a mãe, mas esta escapuliu e ameaçou-lhe uma chinelada. Cibele, rindo, saiu pulando... – Cabritinha... – Disse baixinho sua mãe, com os olhos cheios das lágrimas de alegria... O sol declinou atrás de nuvens escuras. Tarde abafada. Para o lado da vila, uma nuvem negro-avermelhada erguia-se, anunciado um temporal. – Pronto. Ricardo pode chegar atrasado! – pensou Cibele. Que ansiosa aquela espera. Havia escurecido há tempo. De repente, Cibele ouviu algo. Deu um pulo, assustando até sua mãe que, sentada ao seu lado, marcava numa toalha de banho as letras "C.R.". – Escute, mamãe! Meu amor vem chegando... Correu. Voou. Abriu a janela com rapidez. Bateram na porta. Voltou-se rápida e quando já ia pular no pescoço de Ricardo... – Aqui mora a senhorita Cibele? – Sim. Sou eu. – Incumbiram-me de avisá-la de que o Dr. Ricardo após salvar criança e mãe num complicado parto, na fazenda Santa Ana, de volta à vila, no meio do caminho, foi vítima de uma faísca elétrica... (29.03.1973) PALAVRAS PARA A ANGÚSTIA Estávamos em Ribeirão Preto. O papo ia normal, em torno de um “Old Parr”. O telefone tocou. Coube a mim e a duas sobrinhas irmos buscar a pessoa que precisava de companhia. Estava com angústia. Sua casa, um palacete de dois andares, sobressaía-se pelo estilo colonial sofisticado. No jardim, cercas vivas, conjuntos, gramados, enormes vasos com folhagens pelo varandão, arranjos, xaxins com avencas e samambaias por

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todos os cantos e paredes, tudo em perfeito acordo com a harmonia das cores. Entrei pelos fundos. Já na área de refeições que fica entre o palacete e outra moradia de caseiros, surpreendeu-me a limpeza, um agradável frescor e o silêncio quebrado algumas vezes por pardais. Chamei pelo nome. Responderam-me do andar de cima que se comunica com o de baixo por enorme escadaria, Entrei! Meus olhos percorreram... enormes quadros de parede, peças antigas ou de artesanato, pilões, peças coloniais ou barrocas, conjuntos de bacia e jarra em porcelana, tudo em posição de bom gosto. Imagens de Cristo, Buda, tapetes persas, cortinas portuguesas; enfim, um primor de capricho. Pelo ruído da escada, percebi sua chegada. Vestido azul de tecido grosso, com botões à vista em toda a frente. Cabelos dourados. Olhos verdes, 1.70 de altura, 70 quilos, 55 anos, aparentando 47. Trazia um sorriso e marcas do tempo tentando desvirtuar aquele rosto que, na sua juventude, abrasou tantos corações... Morava só com a empregada. Viúva há muitos anos, não tivera filhos. Somente acaram-lhe de herança terras, terras e mais terras. Ninguém mais lhe interessou. Lisonjeios, propostas, cobiças, recebeu e recebe... Preferiu cuidar de seus pais. Trouxe-os contigo. Deu-lhes cuidados, carinhos e desvelo. Amou-os com preocupações e medo. O medo de perdê-los. Perdeu-os. Agora ficou só. Só no casarão. A saudade, as lembranças, o tempo bom, alegre, feliz, de vazes, algazarras de crianças, bateção de portas... Tudo passou. Ficou a angústia. Abriu a geladeira. Serviu a mim e às sobrinhas, em taças de cristal, vinho licoroso. Ela não bebia. Percebi que a paz demais, a quietude, o dinheiro, com finalidade de juros, a vida cheia de vida, sem meio de transbordar... traz angústia. Então falei. Quem tem angústia é porque não se descobriu. Você procura lá fora o que está dentro de si e de sua casa. O seu mundo. O “homem feliz” não usava camisa, por isso o rei não pôde usá-la... É que o “homem feliz” havia se encontrado. Não vivia do ontem, nem do hoje, nem do amanha, mas do agora. Saudades, lembranças deverão ser estímulo, não desânimo. O passado só foi. Mas existe no presente a consciência tranqüila de um dever cumprido. Seus entes queridos se foram, você os fez felizes. Por isto é feliz. Agora viva o seu inundo. Converse com as fotos, plantas. as flores, os arranjos. Abra as janelas. Deixe entrar o sol. É o calor deles que você vai sentir. Desde cedo. coloque um riso em seus lábios. O riso é o 1axante da alma. Viva o agora. O já. Não sofra por si. Nem pelos outros. Não mostre suas lágrimas nem

queixumes. Os homens são sádicos, rirão deles. Aprenda a nadar contra as correntezas, depois nos remansos e corredeiras... Nada mie tira o direito de ser ou de agir. Já fizeram de mim um Deus e um Diabo. Nem por isso virei santo. Nem por isso sou demônio. Não abençôo, nem espraguejo. As pessoas que ajuda podem me reencontrar. Eu não. Aparo os rastros do ontem. Vivo o agora como se fosse: o ontem, o hoje e o depois. Protegendo as árvores, aves, crianças e estendendo as mãos, sem preconceito social, de raça, cor ou costume. Minha igreja é minha consciência. Minha oração, meus atos. Ninguém deve procurar a felicidade. Ela está sempre onde estamos. Ela é o meio de ser, tratar, corresponder, ajudar, amar, estender as mãos. Trabalhar, rir e até odiar. Vamos... Você tem tudo o que queria ter, se nada tivesse; tendo tudo, não sabe o que tem. Tem até aquilo que procurou encontrar: a angústia. Levantei a taça de cristal para o último gole e reparei que o branco de seus olhos verdes tornou-se vermelho... Ela chorou dissimuladamente e, disfarçando, limpou os olhos com as costas dos dedos. Depois riu. Levantou-se. Abriu a janela. Deixou o sol entrar. Falou qualquer coisa para as plantas do jardim e seguimos. No caminho, pediu-me que eu escrevesse o que falei. Assim... outras angústias desapareceriam. (03.09.1977) O LADRÃO "Pega o ladrão!” Alguém abriu os braços e as pernas para o “pega”. O garoto deu um galeio de corpo. Sentiu uma mão pesada nas suas costas. Abaixou. Enfiou-se por baixo das pernas e escorregou. O homem sentiu o pequeno escapar, mas ficou com sua camisa nas mãos. No dia seguinte, chegou ao Grupo Escolar. A notícia veio como vento. – Professor, prenderam o Messias. Deram em cima dele, ele escapou de uns dez. Por fim, machucado, caiu e foi preso. Messias tinha 11 anos. Cabelos fartos e negros. Sobrancelhas grossas. Dentadura alva e perfeita. Olhos grandes, tristes. Pouco sorria. Era, na classe, o monitor da horta escolar e do jardim. Seu uniforme e material que recebia da Caixa eram bem conservados. No início, muitos da classe não

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gostavam dele. Era briguento. Revoltado. Por último, todos ficaram seus amigos. No aniversário de Messias, fizeram uma festança. Cada aluno colaborou com doces, refrescos, balas, salgados... Fui o orador. Quando cantaram “Parabéns prá Você”. Messias bufou, parecia um pequeno príncipe. Agora ele está preso. Ladrão. Faz quinze dias que sua mãe morreu. Tuberculose galopanté. Pai não tinha. Lá estava o velório. Um calor medonho. Um amontoado de gente simples e crianças curiosas. Uma fragrância de velas queimadas e rosas murchas. Um mosquito bobo ia de nariz em nariz, até que “plaf”, foi prensado por duas mãos. Messias não chorava e nem tirava os olhos de mim. Após o enterro, voltei a sua casa. Uma senhora dizia: – Fico com Messias. O padre Marcos, com José. Dona Gabriela, com Maria, e o Joaquim, para quem vamos dar? Coitado, tão miudinho... Bem, amanha vamos levar todo mundo ao posto de saúde; é possível que alguém tenha pegado a tuberculose... Messias faltou uma semana. Voltou dizendo que não queria sair do Grupo nem morar com aquela “bruxa”. Foi morar com o tio. Este estava sem emprego e bebia dia inteiro. Quando a fome apertava, Messias era obrigado a pedir comida. Poucos lhe davam. Muitos lhe diziam: – Vá trabalhar, marmanjo, vagabundo! – Queria conseguir um emprego na prefeitura. Limpador de rua. Já sonhava até em comprar uma bicicleta e ajudar sua tia. Recebeu a resposta do prefeito, de que, no momento, não havia possibilidade. Naquela noite, ele perambulava meio faminto. Espiou por um muro. Viu um caquizeiro carregado. Sua boca encheu-se de água. Eram as frutas que mais cobiçava nas bancas do mercado. Entrou no quintal. Subiu no pé. O dono apareceu e... – Pega o ladrão!!! Agora Messias estava preso. Teve vontade de comer um caqui. Virou ladrão. Mas um gosto ele teve. Escapou de uns dez, e senão caísse machucado, garanto que não iria preso. Conversei com o delegado, Entregou-me Messias. Arrumaram-lhe um emprego nunca oficina mecânica. Comprou uma bicicleta. Ajuda sua tia. Compra do que gosta.

Fiquei doente e comecei a faltar às aulas. Um dia. deitado no sofá, tocam a campainha. - Pode entrar – gritei. Era Messias. Entrou. Estava sujo de graxa. Veio me visitar. Pus-me em pé para recebê-lo. Disse que sentiu minha falta. Deu saudades e veio me visitar. Trouxe-me, de presente, uma caixa da caquis. Meus olhos se umedeceram. – Está sentindo alguma dor, mestre? – Não. Messias. (Mas falei para mim mesmo: - Sim, Messias, muita dor. Dor na alma ao ver crianças corno você e a gente pouco pode fazer; ou melhor, NADA.) (29.05.1972) CASTIGO E MILAGRE A faísca rachou o céu no meio. Um clarão surgiu na tarde escura. Seguiu-se um medonho estalo de chicote. Um grito de pavor ressoou pelo casarão. Em seguida, o ronco de um trovão fez os vidros das janelas e o assoalho tremerem. Uma forte rajada de vento, acompanhada de grossos pingos, foi de encontro às paredes externas e forçava furiosamente as janelas. O menino, deitado na cama, fechou os olhos, tapou os ouvidos e colocou a cabeça debaixo do travesseiro. Queria gritar por sua mãe, mas o medo o impedia. Começou a tremer da cabeça aos pés. Encolhido, levou as duas mãos e prendeu-as entre as pernas; percebeu que um líquido quente molhou suas cobertas. Agora ficou estático. Mexer-se, era sair da umidade aquecida e ficar numa indesejável e fria... Tinha a impressão de que o casarão vinha abaixo. Outra vez, pensou em chamar a mãe. Faltavam-lhe forças. Outra faísca. Outro clarão. Outro estalo. Outro estrondo. Outro tremor de vidros e janelas. Outra rajada de chuva e vento. Agora o temporal ganhava sua força máxima. Parecia que o mundo vinha abaixo. Uma goteira começou a cair em cima do garoto, mas ele não tinha forças para fugir dela. De repente a porta abriu-se. Percebeu que duas mãos firmes levantaram seu corpo. Depois apertou-o contra o seio. Sentiu que lhe beijavam a testa e o rosto. Abriu os olhos devagarinho. Que alívio!!! Era a sua mãe. Ela se sentou numa cadeira na grande sala e ajeitou o trilho no colo. Agora ele não mais tremia. Os trovões. Faíscas. Vento e chuva... nada mais o amedrontava... – Mamãe... – Que é, meu anjinho.”...

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– Esse foi um castigo que Deus mandou para mim... – Não fale assim... Deus é amigo das crianças... – É que hoje, de manhã, eu encontrei um ninho de pássaros com dois filhotes empenadinhos e quando me viram, começaram a pedir comida de bicos abertos... Na garganta de um, enfiei uma pedrinha e ria enquanto ele se engasgava. Quando o pobrezinho morreu, quis agarrar o outro filhote, mas ele voou para um galho mais alto. Atirei-lhe pedras. paus, sacudi seu galho. Não conseguindo agarrá-lo. Destruí seu ninho. Somente agora, percebo quanto sofreu o infeliz. Daí a pouco, seus pais chegaram com alimentos. Começaram a gritar, bicando seu filhote morto. Voaram para o ninho destruído. De lá, perceberam minha crueldade e me atacaram a bicadas. Fiquei com medo e corri... Agora, mamãe, passado o que passei – lágrimas desceram-lhe pelo rosto – tenho remorso pelo que fiz e morro de piedade do filhotinho que escapou. Como eu, enfrentou a tempestade. Eu em casa. Ele sem ninho. Eu no seu colo quente e seguro. Ele perdido, sem é proteção de seus pais... Juro, mamãe, que nunca mais vou fazer mal aos passarinhos... Agora peça, mamãe, a Deus para me perdoar... Peça, mamãe... Sua mamãe levantou os olhos e rezou: – Raios, trovões e chuva Não assustem mais meu filhinho... Deus sabe que ele se arrependeu Agora é amigo dos passarinhos... Nisto a tempestade acalmou-se. Uma janela da grande sala abriu-se. Dois passarinhos e um filhotinho entraram e foram buscar abrigo no colo do garotinho... (19.03.1973) A PEQUENA MORTA Chovia. Chuva grossa. Chuva fina. Houve quem falas-se: – Precisa substituir São Pedro. O velho não regula mais as torneiras do céu. Para Aristides a coisa ficava pior. Gotejava por todo canto do casebre. As paredes de barro já estavam úmidas. Uma fumaça que ardia nos olhos, invadia tudo. É que usavam pra fogo, lenha molhada. Puxaram a cama da menina para um lugar onde só uma goteira perturbava; mesmo assim, ela pingava dentro de uma bacia. Batia no fundo com tanta força, que respingava no meu rosto, pois eu me achava sentado nos pés da cama da garotinha. Estava ela no 2º ano do Grupo.

Respirava ofegantemente. Trazia os olhos semicerrados. Gemia baixinho. – É, Aristides – disse o farmacêutico –, sua filha precisa ser levada com urgência para um médico. Tem pneumonia, há mais de 15 dias. Ela é fraquinha, tenho medo até que seja tarde demais... Aristides pensou outra vez na curandeira, mas parece que ouviu sua voz: – Onde otro põe mão, benzê não resorve mais... – Ela dizia que a menina tinha “lumbriga assustada”. Benzeu com “ramos de murta”, deu-lhe “chá-de-alho” com “chifre-de-carneiro queimado”. Ele notou uma “meioria”, mas deram tanto “parpites” que acabou chamando o farmacêutico. E agora a cidade mais próxima ficava a 90 quilômetros: Votuporanga. Veio o “pé-de-bode” e a estrada a ser rasgada estava medonhamente com lama, barro, buracos... Aristides sentou-se no banco de trás com a filha no colo, enrolada num cobertorzinho cinzento, desses “sapeca-negrinho”. O chofer tocou. A noite triste. Feia. Molhada, caiu. Os gemidos da menina aumentaram. De segundo em segundo, Aristides encostava seus lábios no rostinho quente da filha e deixava pousar um beijo umedecido por lágrimas... Quantas vezes teve de pô-la deitada no banco, descer e empurrar o fordeco. A chuva havia recomeçado. O barro vermelho fazia o carro mais deslizar-se que rodar. De repente, uma derrapada e zás. Aristides protegeu com seu corpo, o da filha. O carro caiu quase tombado numa enorme valeta. – E agora, Aristides, bem que eu não queria vir. Pelo jeito por aqui não mora uma alma. O jeito é esperar até amanha; não sei como já rodamos 40 quilômetros nesta estrada... (saiu um palavrão). Os gemidos da menina desapareceram. A respiração parece que diminuía... Aristides encostou seus lábios no rosto da filha. A febre também abaixava... “Dormiu, pobrezinha”, pensou ele. Levantou os olhos e implorou: – Chuva, não faça barulho, minha vida está dormindo... Aristides estava feliz. Mais um pouquinho e levemente foi depositar outro beijo naquele rostinho lindo e ...

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– FILHA, FILHA! OH! MINHA VIDA!!! Um misto de dor e ódio acordou na imensidão da noite os trovões... O dia clareou. Aristides foi chegando no povoado. Seus pés descalços pisavam firmes no barro e este saía exprimido entre os dedos dos pés... A roupa molhada e cheia de respingos vermelhos... Seu chapelão trazia as abas derrubadas pela chuva da noite inteira. Aristides olhava longe. Parecia uma estátua. Uma figura lendária. Trazia os olhos grandes, vermelhos, esbugalhados. Ao passar, os que já estavam na rua, lhe davam carinho, os das portas dos bares, os das janelas das casas, todos faziam o sinal da cruz. Aristides tomou o rumo do seu casebre. Trazia nos braços, apertado junto ao peito, protegido contra a chuva, o corpo da pequenina morta. (08.10.1971) O FISCAL O pescador cuspiu. Continuou a olhar o rio e percebeu que ele não abaixava suas águas. Estava bom de peixe. Não tinha tralha de pesca que adiantava? Fazia tempão que dava à sua família, com oito bacuris, um arroz quirera com farinha de mandioca. E só. De roupa andava minguado, Pras doenças, cadê remédios? Lembrou-se que o “Jerominho tinha umas dor de barriga...”. Bem, isso não é nada, cura-se com chá de hortelã... Ânimo? Pra que ânimo? Deus assim quer, Deus deu assim, assim se vive... Plantou umas frutas, as formigas comeram. O mandiocalzinho... o mato cobriu. Com essa chuvarada, a coisa ia mais mal. Sua casa havia escorado um pé de vento que deu medo. Passado o susto, viu o estrago. A parede de barro e lascas de coqueiro da sala rachou e inclinou-se uns dois palmos. Pra escorá-la, do lado de fora, meteu uma forquilha de grossa aroeira. A mulher não confiou nisso, não. Na testa da lasca, grudou uma santinha – Nossa Senhora Aparecida. – Tu não vai aprumá a parede, cumpadre? – Pra quê? Tá mais que garantida, – A lasca garante, mais infeia... – Deixa pra lá, cumpadre, lasca num sigura parede; não é a santa que a mulher grudou lá que arresolve...

Um dia, a coisa melhorou. Apareceu um "cara” por lá e propôs a Simão bom negócio. – Simão, vou-lhe arrumar 12 covas. Sete são de náilon e cinco de cobre. Puro cobre, ouviu? Os de náilon não dou valor, mas os de cobre, pelo amor de Deus, valem uma fortuna. Cuidado com eles, me custaram CrS 300,00 cada um. A primeira pescaria foi um colosso! Com a parte que lhe tocou, Simão colocou roupas, comida e remédios em sua casa. Na segunda, quando estava levantando os covas... o fiscal de pesca chegou. Vinha acompanhado de um soldado que o tempo todo ficou em pé, olhando Simão e segurando o cabo do revólver 38 ... – O senhor sabe que a pesca está proibida? Que o senhor está praticando uma infração contra a lei??? – Num sei não, sinhô... – respondeu humildemente o velho Simão. – E tem mais: poderia lhe aplicar um processo e uma multa, mas serei benevolente. Quantos covos têm armado? – Doze, seu dotô. – Onde estão? – Aqui, seu dotô. – Lá foi Simão, levantando um a um para que o fiscal os conferisse. – O senhor sabe que está errado e a lei é severa? Tenho que cumpri-la. Me dói o coração, mas é a lei. Sendo a primeira vez que o pego em flagrante, por represália, prenderei alguns covos. Da próxima vez, todos; ouviu? Apareci para uma visita ao Simão. Gostava de levar balas às suas crianças. Pescar e beber uma pinguinha com ele. – Então, Simão, tem, pego muito peixe? – Tava bom, professô. Mas o fiscá chegou e me aproibiu. Ele tava certo e até foi bom pra gente, pudia ter me prendido... foi a primeira vez... por represália só me levou os cinco covos de cobre... e nem quis lavrá a murta... (20.05.1972)

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A NOITE DAS ASSOMBRAÇÕES Passava da meia-noite. Caçávamos de espera. Achava-me no alto de uma árvore, sentado num jirau. O vento era frio. Cobri meus ombros com um saco de estopa. O local chamava-se “Furnas das Onças”, em Rifaina. Pra chegar naquele fim de mundo, viajávamos – eu e João Borges – três horas no lombo de dois cavalos. João Borges sumia mato adentro e só de madrugada regressava. Antes, dava um forte assovio. Aí aprendi a escutar o conversar da noite. Um mistério perpassava silenciosamente. Folhas que caíam. Estalar de galhos secos. Pisar macio. O canto do curiango trincava a noite: “amanhã eu vou”, parecia dizer. Numa dessas noites, o mistério foi maior. Um forte ruído invadiu tudo. Briga a dentes de cavalos. Briga de cachorros. De animais selvagens. Choro de crianças. Risos. Bumbos e cornetas em repiques... Acendi minha lanterna. Corri o facho em volta. Nada. Engatilhei os dois “cães” da minha “trouxada damasco, calibre 24”. O coração disparou-me e um tremor frio percorreu meu corpo. Quis assobiar ao João Borges. Pensei um pouco. Eu não podia passar por medroso. Depois, o João Borges era o caboclo mais macho que já conheci até hoje. Pastor protestante. Tinha 73 anos. Pele bronzeada. Resoluto. Forte, bom atirador. Trato com ele era contrato com firma reconhecida. Em chuvas bravas, andava pelo descampado no meio dos relâmpagos e faíscas com a cartucheira nos ombros. “Tire esse pára-raios das costas, homem!" – Gritava-lhe eu. Ele ria. De uma feita, combinamos uma caçada. Ele, ao montar seu cavalo, caiu. Antes foi arrastado pela besta uns 20 metros. “Trato é trato”, disse-me ele. Saímos para a caçada. Ia arcado no animal e gemendo o tempo todo. Naquela noite, matou uma paca. No dia seguinte, procurou o médico: três costelas quebradas e o pulmão quase perfurado... João Borges era quem fazia os jiraus para mim. Não me esqueço da ceva que fizemos na serra da Mantiqueira. Escolheu a maior árvore. Subiu. Por uma corda ele puxava cipós e varas que eu cortava no chão. Fez o jirau. Sentou-se no mesmo e começou a balançar seu corpo. “O que eu faço está garantido”, gritava ele lá do alto. De repente, um estalo e João Borges despencou. Fechei os olhos e aguardei o baque do seu corpo no chão. Não caiu. Olhei para cima. Ele estava dependurado com seu sapatão direito enroscado numa forquilha... cabeça para baixo e a camisa desceu até seu pescoço. Conseguiu descer. “Seu

moleza – esbravejou ele –, você não soube escolher os cipós para o amarrio.” Ele mesmo pôs-se a cortá-los. Subiu outra vez. Fez novo jirau. Sentou-se novamente no mesmo e começou a balançar-se violentamente. “Agora quero ver se quebra”, gritava ele. Não quebrou. Mas os ruídos que eu vinha ouvindo na caçada da “Furnas das Onças” aumentaram. Eram macabros. Sombrios. Por alívio, naquela noite sem fim, ouvi bem distante o assobio de João Borges. Pus os dois dedos na boca respondi. Depois de uns 10 minutos ele se aproximou. Assobiou outra vez. Respondi. Acendeu sua lanterna. Isto é necessário nessas noites pra gente não confundir o companheiro com a caça... Desci da árvore. Partimos. Disse-lhe nada. Ele nada me disse. Quando amanheceu o dia, contei-lhe o acontecido. Para surpresa minha, João Borges também havia ouvido a mesma coisa. “Depois de amanhã, voltaremos para desvendar esse mistério...” Tremi que nem vara verde! Mas se não volto, era medroso. Voltamos. Ficamos os dois no mesmo jirau. Meia-noite, ou mais. O vento. Os ruídos. As brigas a dentadas. As cornetas... Tudo, tudo outra vez. Descemos. Lanternas acesas. Espingardas prevenidas. Começamos a andar em direção do barulho. O mesmo foi se modificando. Foi se esclarecendo... Saímos numa queda de água. Paramos. Ouvimos. Um riso perpassou em nossos lábios. Nas noites seguintes, quando ventava, percebíamos claramente o cair das águas e o vento percorrendo entre furnas, grutas e arvoredos fazendo a “noite das assombrações”. (15.06.1972) CERTO JOAQUIM MARTINS DE CASTRO (Para Iracê) O velho Joaquim Martins de Castro, de cima do seu alazão, com os dois pés no estribo, levantou seu corpo. Uma das mãos apoiava a cabeceira do arreio enquanto a outra segurava firme as rédeas. O animal rejeitou a posição, mas um puxão firme no abridão, fê-lo acalmar-se. Ainda gostava de, vez ou outra, passear pela fazenda Santa Cruz, dar umas voltas e observar o que os “meninos” estavam arrumando. De onde estava, tinha uma visão geral e dali até algumas casas de “Cândia” podiam ser vistas. O sol pendia para a linha do horizonte. Pássaros pretos estridentes buscavam abrigo nas poucas árvores copudas. O mugido

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lerdo de um boi e o latido de um cão, ao longe, misturavam-se, como notas no canto do entardecer. Projetado naquele cenário, o cavaleiro permanecia imóvel. Iria completar 88 anos de idade. Uma vida dedicada ao trabalho e à família. Assim, pensativo, dava a impressão de um vulto projetado na posteridade (de chapéu aba larga, paletó, calças com suspensórios, botinas de couro de bezerro), ou de uma estátua, esculpida pelo buril da raça, do costume, da tradição, do trabalho, da inteligência, da honestidade, da perseverança, do caráter, do sangue, do suor, da religião... Impávido, corria seus olhos, já cansados, à sua volta, procurava o colorido, os ruídos, cantos, matas, roças, árvores, arbustos, córregos, riachos e pelos caminhos da lembrança... Chegou no distante passado e, de lá, parece que longe, muito longe, vinha o martelar de um monjolo... Um casarão... e... Cigana, cigana, cigana!!! Seus pés de menino de roça iam, pelo curral, apertando o barro e espremendo-o, entre os dedos, misturado com estrume. O sol nunca o pegou dormindo. Nas madrugadas, em que se divisavam somente as sombras, já estava de pé, Nem era preciso chamá-lo. Também. cada "menina” sabia suas obrigações. Dos “meninos”, ou rapazes, os mais chegados à labuta da roça eram ele, Augusto, Zeca, João, Raul, Heráclides. Pedro já preferia mais o caminho do estudo. Seu sonho era ser “doutor”. Antônio era o que dava um pouco mais de trabalho. Trabalho assim: sempre que podia, descarregava o peso nos ombros dos outros. Mas era divertido, passeador, rueiro como ninguém. “Quanto a mim – pensou –, que não havia enveredado pelo caminho das formaturas, mas fui bem aplicado na escola.” Nunca se descurou do bem falar. Preferiu sempre o carreto. A concordância. Nada de “nóis vai”. Embora apreciasse as músicas caboclas, não aprovava erros na expressão... E assim a vida passava. Mas era tempo de construir sua choupa-na, casar, ampliar a família e, para isso, seria preciso seguir a tradição de seus pais: fineza nas tomadas de posição, clareza nas atitudes e rigidez nas repreensões, se houvesse necessidade... Filho não se cria com os cuidados que se têm com o “vaso de cristal”. É no tempo, no vento. No longe dos olhos: “o diabo pode tentar que a boa criaçào cuida...” Sua experiência na vida, embora rapazola ainda, já era grande. N ao havia animal bravo que não domasse. Água turva ou em rebojo dos rios que o amedrontasse. Bezerro teimoso que, na disparada, não fosse parado no laço. Não era de brigas, mas também não fugia delas. Cobras? Ah!

Agora se lembra! Duas vezes fora picado por elas, na perna, por isso que ainda repuxava uma delas. Tuchou um ferro, em brasas, na picada... Fogo mata até veneno... Na redondeza‘? Era querido por todos, mesmo em casa. Era apenas metódico e sistemático. E tinha que ser assim: quer no levantar, alimentar-se, no vestir... O Joaquim é “granfino”. diziam... Nem pra capar porcas na lama, se suja... Bem, ruas no divertir-se, mudava um pouco suas regras: às vezes uma sanfona, urna cachaça e uma mulher faziam-no perder a noite... Mas nunca a hora das obrigações. A fazenda requeria muito. O casarão, além da grande irmandade. abrigava ainda: parentes, amigos, viajantes. Os colonos nem sempre iam bem, era preciso vigilância. E o gado, as galinhas, porcos, colheitas, roçada de pasto, derrubadas de matas e cerrados ou limpeza dos córregos, a feitura ou reparos nas cercas... Enfim, até as mínimas coisas ocupavam O Seu tempo: espantar as maritacas do arrozal, sacar arroz no pilão, soltar água pro monjolo, trocar pavios das lamparinas ou botar óleo de mamona nas candeias... As "meninas”, como lembrou, tinham que ajudar nos afazeres da casa: nas fachadas de doce, feitio do queijo, requeijão, na costura, remendas ou bordados. As obrigações eram exigidas com ordem. Além do mais, sempre nos cuidados da mãe. Depois que seu pai falecera, aí então, as responsabilidades aumentaram. Ah! Sua mãe, olhos miúdos, gostava de ler biografias de santos, bons livros, o “Estadão de São Paulo"... Parece que enxergava, que adivinhava tudo... “Levante aquele pau, seu pamonha, que está lá embaixo...” “Você não descascou todo o milho ontem, a criação não se satisfez...” “Não quero que você ande com aquele rapaz.” “Vá limpar o córrego, que está vindo pouca água para o batedor...” “Procure o animal pro lado do córrego... tem capim verde.” “Tem arreio que precisa ser ensebado...” As “meninas”, além do mais, tinham que ir ao catecismo, missa, terços. A educação do corpo e da alma. A fé era a luz que guiava a todos. A falta da religião transforma o indivíduo em animal. A religião ensina o respeito, a formação da família, a criação dos filhos, o amor para com o próximo, com os animais, plantas, enfim, é a chama da moral, da vicissitude, da dignidade e do respeito. Todos têm que respeitar a Deus, aos santos protetores e, deste respeito, surge a personalidade do indivíduo. Namoro? Nada de namoricos pra pouca vergonha! É gostar logo de uma pessoa de boa formação e pronto. Esse negócio de ficar de abraços, beijinhos e cantos escuros, não dá

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certo... E é preciso dobrar a vigilância... As coisas estão mudadas. O diabo anda solto... O CASAMENTO No seu quinhão de terra, lembrou de quando levantou sua morada. A “Fazenda Pintassilgo” foi crescendo, crescendo. Agora foi dividida em quinhões de terra. Terra!!! Num ímpeto, quase apeou do cavalo para beijar a terra. Beijar aquela terra que lhe pertenceu e agora pertence aos filhos. A terra que foi conquistada na luta com as armas da economia e do trabalho. A terra que foi berço e haverá de ser túmulo. A terra bendita que, do seu ventre, faz nascer os frutos da vida e da existência. “Terra de Santa Cruz!!!” Sempre achou majestoso esse nome. A cruz é o símbolo do sacrifício, do calvário, mas leva à ressurreição. Leva à plenitude da vida eterna. Terra de Santa Cruz, “Fazenda Santa Cruz”, este, este seu nome de batismo. “Aqui, do ventre da terra, como do ventre da minha amada, haverei de tirar os frutos da família, perpetuar a herança dos meus antepassados e implantar o sistema dos meus costumes...” O lugar escolhido foi às margens de um córrego. Num instante, os firmes esteios de aroeira, trazidos pelos carros de boi, formaram o esqueleto da morada. Ao lado conservou-se um espinhudo pé de macaúba, típica araucária daquela região, onde, além do aproveitamento de seu tronco em construções caseiras, também era aproveitado seu palmito para gostosas refeições. Ah! As refeições daquele tempo... Pimenta malagueta, farinha de mandioca... Um torresminho e uma pinga... A casa haveria de ter tudo: curral, mangueirão, água em abundância, uma boa bica, o galinheiro. pasto perto da casa, cachorros e outras necessidades. O casamento estava marcado. Com tanta coisa pra fazer, por falta de sorte, deu diarréia de sangue nos bezerros e peste nas galinhas. Bem, pra aqueles. já havia colhido “carquejo” e, quanto às galinhas, era tentar a simpatia: dar um galo pra São Roque... O protetor dos animais. Não que o serviço todo sobrasse para ele, mas era justamente o que mais se interessava por tudo. Mesmo seu sistema de agir, quer na escrituração como no controle geral. Nada lhe passava. Casado, haveriam de continuar seu serviço o Zeca, João, Augusto e mesmo o Antônio. Nem a rês que morria tinha que deixar de ser registrada. O dinheiro que se empresta, a mercadoria, a colheita, enfim, os débitos e créditos. A colheita

tinha que ser controlada, pois os arrendatários eram muitos, mesmo os empregados da própria fazenda também exigiam cuidados. Para eles, além das casas da colônia, não podia faltar a escolinha... E o dia sonhado aconteceu. Até que a vila de Pontal estava bonita! Cavaleiros para todo lado. Alguns carros de boi e troles. Um sol brilhante anunciava o dia feliz. Uma boiada, na rua do Desengano, ia sendo puxada por um berrante. Ele parou um pouco para ouvir e sentiu um arrepio no corpo. A poeira vermelha levantava-se do chão, a cada passada de animal ou carroça. Batidas de latões de leite, no chão acimentado da pequena estação de trenó, anunciavam a entrega e a vinda da “fodoca”. A igreja estava repleta. Seus irmãos com ternos cáqui, ou de "cachemira”; as irmãs com vestidos longos, cabelos em tranças e colares brilhantes; ninguém escondia sua alegria naquele 14 de dezembro de 1921. Sua mãe já lhe havia dado a bênção. Estava ali, ajoelhada. com os olhos fixos em Nossa Senhora Aparecida. Ele, de terno “azul marinho", uni lenço branco no bolsinho. Uma gravata vermelha, que dado ao calor ou nervosismo, precisava ser “frouxada” no nó. A igreja estava repleta. A noite entrou e ele teve a impressão de que um anjo de branco dirigia-se para seu lado. A grinalda imitando flores de laranjeira e uma pintura simples davam na palidez de seu rosto uni certo clarão de felicidade. Seus olhos, grandes, com olheiras escuras, parece que mais ainda brilhavam os olhos quando dirigidos para ele. O padre entrou. Todos se puseram de pé. Iniciou a cerimônia religiosa até que... – Sr. Joaquim Martins de Castro, deseja receber por legítima esposa a Srta. Anália Pereira?... – Sim. – Srta. Anália Pereira, deseja receber por legítimo esposo o Sr. Joaquim Marins de Castro?... – Sim. ...Até que a morte os separe... O LAR Como era bom ter seu próprio lar. Ser dono dos seus negócios. Depois, Anália era uma companheira ideal! Além de todos os afazeres da casa, ainda o ajudava muito no cuidado com as criações, a tirar leite... Era preciso avisar Sá Rita (Ritinha) que o segundo filho estava para nascer. Sá Rita era a parteira daquela região. Embora

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pessoa simples, humilde, tinha uma prática que punha a perder, em todos, até a confiança nos médicos. – Sá Rita, meu íìlho está com “vômito”. – É “bucho virado”, meu “fio". Traz ele pra nós benzê. E tinha remédio pra tudo: "cheiro de querosene, alho e raspa de chifre de bode queimado, para lombrigas’; “teia de aranha ou picumã, sal, fumo ou mijo, pra machucados ou cortes”; “chá de broto de goiaba, pra diarréia”; “água de chapadinha ou losna, para o fígado”; “sabugueiro, para sarampo”. Até tosse de cachorro ou engasgo, curava com colar de sabugo no pescoço do animal. Ataque? Era só na hora do acesso passar três grãos de milho na baba e jogar pra trás. para uma galinha “comer”. Sá Rita era assim. E não cobrava nada. Mas todo mundo lhe fazia uma “matulinha” com um pedaço de toucinho, arroz, café, feijão e, às vezes, algumas roupas usadas. Ela levava uma fé enorme em Nossa Senhora Aparecida: “A pretinha é madrinha minha...”, dizia sempre. De fato, Sá Rita tinha coisas que a gente não sabia entender: quando faltava fôlego numa criança que nascia, enfiava no ânus o bico de uma galinha choca e pronto... uá, uá, uá... berrava o nenê. Ela sabia dos perigos da infecção, por isso cortava o umbigo com a tesoura passada na labareda e depois era só amarrar com pinga, fumo e mijo. Naquele dia, quando foi buscar Sá Rita, ela estava sentada num degrau da escada de chão batido que dava da sala para a cozinha, e acendia um cigarro de palha. Deu uma tragada. Bateu a unha na ponta, amassando a cinza, cuspiu no chão, passou o pé e... “Já tô pronta, compadre Joaquim!” E assim passou a ser tia de mais e mais crianças... Nadir, Maria Zuleica, José Valdo, Rubens Liberal, Edson Osis, Iracê Mirian, Joaquim Etevaldo, Helena Eufélia. Arma Zélia, Pedro Adalberto, Cândida Teresinha, Esmeraldo Ary, Anália Inês e Maria Nadir. Espere um pouco. Mesmo que nem todos tivessem nascido das suas mãos, não tinha importância: ela ajudou a criá-los. E a vida continuou. A criançada crescia, mas sempre debaixo dos seus cuidados e carinhos; ou melhor, mais da mãe. Anália não perdia oportunidade para vigiar, ensinar, orientar e repreender; cada menino tinha que cumprir uma tarefa. Quando a coisa era mais grave, é que ele era avisado; aí tinha que dar a correção necessária. Se preciso... apelava para o castigo ou

chicote... Briga entre irmãos, nunca permitiu. Uma família tem que crescer unida. Ah! Lembrou-se de Maria Zuleica, o braço direito da mãe. Uma mimosidade de criança. Amorosa. Caseira. Muito meiga e religiosa. Casou-se. Bom casamento. Mas... Que noite aquela... Como já não bastasse a perda de Nadir, aos 45 dias de vida, agora a segunda filha... Maria Zuleica... Recebeu o recado. Não quis ainda avisar Anália. A chuva. Os trovões. A dor. Esperou amanhecer. A filha não fora feliz no parto. A criança, também, falecera com a mãe. Oh! Meu Deus, pensou por muito tempo depois... “Se o parto tivesse sido por Sá Rita... Mas foi médico.” O sepultamento deu-se em Morro Agudo. Toda a família vai para lá... Mas foi duro enfrentar a realidade. Sepultar um filho é o mesmo que, vivo, ir arrancando o coração e enterrando-o junto. É sentir a dor que punge, dilacera. Um desespero incontido que tem que ser contido. Um rasgar a alma que sangra. Uma vontade de gritar, blasfemar até contra Deus! E depois? Depois... Pensa-se que aquilo não aconteceu. Foi um sonho... E Anália chorando pelos cantos, não querendo demonstrar-lhe seu sofrimento para mais ainda aumentar-lhe a dor... O homem não se controla muito. Chora. Bebe. A mulher é mais forte. Apega-se a Deus. Reza. E deixa que sua vontade seja feita. E os filhos foram crescendo. A fazenda requeria melhoramentos. Os meninos ajudavam, mas... Já havia a escola. Era distante. Iam de carroça. Charrete ou a cavalo. Mesmo assim, tudo ia bem. As plantações, criações. Compras e vendas de gado. Feitios de cerca. Sal para os animais. Derrubada de cerrados. Combate às pragas e formigas. Conforme a economia, juntava um pouco de dinheiro e comprava terra. Um pouco comprada, outro pouco ganha por herança... Ia formando seu grande patrimônio. A “Lagoa do Papagaio” havia se incorporado às terras dele, graças à herança de Anália. Sempre procurou viver em paz com seus vizinhos, mas desde que estes não procurassem tirar-lhe a paz. O que era seu, era seu. O direito. era direito. Não tinha reconsiderações, medo ou recuo. Seu irmão resolveu, certa vez, fechar-lhe o "veio de água”. Não lhe pertencia. Nem era direito. Havia é implicância. Não fechou. Fizeram de suas divisas, barreiras intransponíveis. Distanciaram suas vidas. Mas não recuou. Não cedeu. Não abriu mão. Nem ao Sebastião Sóssio que veio com a mesma coisa. Brigou. Fez uma represa. Hoje a água continua correndo da mesma maneira. Mansa. Já não serve para aquelas terras

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de litígio. Por isso, hoje, ali, sobre o dorso do alazão (fez uma mudança de posição, o pelego estava um pouco quente e isto sempre o incomodou), estava relembrando... As brigas nada resolvem. Principalmente em família. Há necessidade de entrosamento, diálogo, acordo, troca de idéias, ajuda mútua, compreensão. Aquele que foge destas regras foge do convívio, se desune. E ele, até na velhice, está com a família unida. Isso é felicidade. Não há festas que não se unam. Olha, os aniversários, suas bodas de ouro... Outro casamento... E agora não são mais 14 filhos ... São 20... E com eles ... Netos e bisnetos... É uma algazarra de crianças! Como é bom ficar entre elas. Reinaldo, às vezes: “Menino que deixar se beijar vira mulher”. Dá cada pau... Treina os bichinhos a serem ligeiros... Anália é que vem chegando e brava, não só acaba com a brincadeira, como dá-lhe pito... Dá um leve sorriso... Está com a consciência tranqüila. Trabalhou. Lutou. Sofreu. Mas venceu. Amparou todos os filhos por igual. Deu a todos a mesma oportunidade de estudo. Estudou quem quis, vejamos lá: o Zé Valdo, casado com a Nina, é contador, possui quatro filhos. O Edinho, casado com Aurora, sempre administrou mais de perto seus negócios; está com a séde, tem sete filhos. Iracê, professora, casada com o professor Waldemar Martins; residem em Jaboticabal; ele é escritor-poeta, escreve o que sente. vê aquilo que o sexto sentido da vida lhe conta... Tem cinco filhos. Eufélia, casada com o Bruno Munari, mecânico e lavrador. italianinho bom mas... teimoso como a peste; tem três filhos. O Rubinho, Nego Mandioca, é dentista. mas morando no Paraná, resolveu comprar fazenda e criar gado; é casado com a professora Ebe; tem cinco filhos. Teresinha, professora, casada com o Pinho, funcionário da prefeitura, arrojado negociante; tem dois filhos. Etevaldo, casado com a professora Neide; ela leciona, ele ajeita seu sítio; tem oito filhos. Pedro, também sitiante, casado com Dê; tem quatro filhos. Esmeraldo. casado com a Bete, tem uma filha; moram em fazenda própria, em Cravinhos. Maria Nadir, professora, casada com o João Minto, gerente da G.E., em São Paulo; tem três filhos. Ana Zélia, professora, solteira. Anália Inês, também professora, solteira. Ah! O Arnaldo, também, foi seu filho de criação. Deu-lhe o mesmo trato. O mesmo carinho. O mesmo ritmo de vida; hoje ele é doutor em veterinária; isto enche a todos de orgulho. Bem, não vai se esquecer do Gláucio e de dona Maria. Ele é cria aqui de Ribeirão e sua mãe, uma empregada que já se ajeitou bem com os costumes da casa. Assim estão seus filhos. Já vê netos doutores, estudantes

universitários, escritores; ainda, de vez em quando, vê a meninada reunida nas “peladas” ou nos currais. caindo de bezerros ligeiros... E, assim, estão os filhos e também suas noras, genros. Ele e Anália são queridos por todos. Sabe que alguns ainda enfrentam péssimas situações financeiras, mas ele, quando pode. ajuda. Empresta quando tem. Dividiu suas terras. na maior parte. Todos receberam seu quinhão. Está querendo fazer até a última divisão, Não quer que, após sua morte, haja desavenças, desentendimentos. Tem exemplo ali próximo... Entre irmãos... Bem, não é pela idade que está pensando assim, nem por medo da morte. A morte acontece a meninos, jovens, velhos... Está em todos. Feliz quem envelhece como ele. Junto da esposa. Cercado de carinho e de atenções. Mas ele não está velho. Seu espírito é jovem. Ainda dá ordens. Manobra. Tem lucidez. Conversa, joga, brinca, fuma um palheiro ou fila um de papel de alguém; bebe uma pinguinha de leve ou um uisquezinho; se quiser repetir, tem que ser escondido da Anália... Sua atenção agora está voltada para a "chácara”, ali mesmo em Ribeirão. Cria umas cabeças de gado. Trata de porcos. galinhas, mata formigas... Tem um casal lá, mas qual o que, são fracos. Esta chácara, acho que não vai incluir na partilha: “Tudo sim”, parece que ouviu a voz de Anália ressoando como da última reunião em família. Da última, quis dizer, do mês passado. Foi ótima a idéia de Ana Zélia. Todo fim de mês reunir a família. Acertar contas. Trocar idéias e constar tudo, tudinho em ata. Nesse dia, a mansão da Olavo Bilac, 108, fica alegre com os filhos, filhas, genros, noras, netos... Mansão, sim. Ali está, onde gosta. Quando se mudou do sítio da Santa Cruz, foi para ali que foi. Quase comprou em Sertãozinho. Mas o que tem de ser do lobo, a onça não come. A casa é grande, espaçosa, bem repartida, bom quintal, onde se fazem umas reuniões festivas, embaixo de uma mangueira e um pé de pêssego. Análiajá espalhou semente de manga para todo lado, mas, de fato, a fruta é deliciosa. Ele mesmo providencia a pintura da casa. Escolhe a gosto. Houve ampliação nos fundos. Gosta de área, é arejada e por ali passam carros. ônibus e muita gente simples. de bom papo, de boa conversa. E tem ótimos vizinhos e uma “bomba da prefeitura” que embala seu sono. Como da velha “bica d'água”, da fazenda, bem do lado da janela do seu quarto. Naquele chuá gostoso... Muita gente que chegava para pouso pensava que estava chovendo.

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A REALIDADE O velho Joaquim Martins de Castro, assim levado pelos pensamentos, nem notou que a noite caíra. Pus.ou as rédeas do animal e seguiu rumo à casa, donde já se avistava uma janela com a claridade de uma lâmpada acesa. Ao passar pelo "rego de água". o animal baixou a cabeça e andando. andando, foi procurando com a boca a corredeira e o lugar mais fundo até parar rente a algumas moitas de flores de São José. O perfume chegou-lhe de leve e ele sentiu uma saudade leve, nem sabe do que... O cavalo assoprou forte as narinas. Começou a escavar a água com o pé direito. O cavaleiro puxou firme as rédeas. Apertou as esporas e o animal, num trote, seguiu rumo à casa. Anoiteceu. Pensou ele: “Em meu corpo, há também o entardecer, mas em minha alma, um anoitecer – cheiro de luar e estrelas – que se prepara para um novo alvorecer, o alvorecer que se transpõe de alma em alma, distribuindo, na personalidade dos filhos, uma centelha de cada um, uma nobreza...” Sente que venceu na vida, ao lado de uma companheira que foi seu bastião. A prece de seus lábios. O conselho dos doutores. A mão que cura a chaga. O soldado que, incógnito, não sabe escolher a luta, mas lutar e vencer. Anália... Nem a morte os separara. Formam união. Amor. Compreensão. Carinho. Dores e alegrias tragados no mesmo cálice... Duas alianças... Duas preces... Vidas que foram povoando com sementes uma geração, onde tudo haverá novamente de recomeçar., re-nascer em cada ser, em cada corpo e alma, agora, na mistura de outras raças, têmperas, costumes, credos, religiões... Mas na mesma bandeira de exemplo, o exemplo que eles semearam. O JANTAR Ao chegar perto do portão da moradia, uma pequena mão segurou o animal pelas rédeas: “Vovô! Seis horas, o jantar está na mesa.” Apeando, Joaquim Martins de Castro puxou do bolsinho seu relógio. preso em antiga corrente e procurou a claridade de uma luz. Confirmou a hora. Procurou o chão e firmou o pé; depois, caminhando, foi lavar as mãos na velha bica. Lembrou que de madrugada ia tomar um banho debaixo daquele jorro; há 88 anos curava resfriados assim.

(A propósito do seu 88º aniversário) O DRAMA – Você matou meu filho, Alemão? – Não sei, Alzira. Você me pediu para acertar contas com ele a respeito daquele terreno que nos pertence... Discutimos... Ele me agrediu... Só me lembro de ter puxado a arma... Alzira sentiu um mal-estar. Estava com ânsia de vômito. Afinal, seu filho vivia provocando Alemão... Coitado! Que infância triste... Ela sempre ocupada com homens e mulheres... Esqueceu-se dele. Mas era seu filho. Gerado em seu ventre. Que direito tinha Alemão, esse réptil, de tirar a vida de seu filho? Espere. Talvez não tenha morrido... Ela está com dor de cabeça... É um pesadelo, meu Deus!... É mesmo. Que bobagem, seu filho não morreu, Antes morresse. Ultimamente, estava muito malcriado. Cada uma que Alemão agüentou. Ainda parece que escutava a última briga. seu filho ofendendo Alemão... “Baixinho. Corpo de cuíca. Cara de caju. Barriga de sapo. Boca de curimbatá. Pai do capeta. Desgraça pelada...” E Alemão agüentando tudo... Agora brigaram. Alemão puxou a arma, Cabeção não morreu, mas com esse gênio que tem... Não vai durar muito... Sentiu o coração disparar. Um leve suor frio descer pela testa. Enxugou-o com as costas da mão. É melhor deitar um pouco. Jogou seu corpo na cama, já desarrumada, pois ela já havia deitado e se levantado umas cinco vezes. A noite ia alta. “Olha lá meu filho!” Vinha a seu encontro. Bem que ela sabia que nada havia acontecido... “Vem, filho! Vem. Isso, abraça-me. Beija sua mamãe, beija. Ele ficou pequenino...” Levantou-o no colo... “Coitadinho do meu bebê... Bebezinho da mamãe... Está dormindo... Isso, filho, dorme... A mamãe vai colocá-lo no seu berço...” Foi levando-o, levando-o... O berço transformou-se num caixão de defunto. Alzira acordou num sobressalto. Sentou-se na cama. Um mal-estar geral tomou conta de seu corpo. Alemão roncava ao seu lado.Um cheiro desagradável inundava o quarto. Porco! Porco! Porco e assassino! Maquinalmente dirigiu-se para a copa. Pegou o telefone. Discou para Jaboticabal... – Quem fala?

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– Cidona... – Aqui é Alzira... Não consigo dormir... Como vai meu filho?... Está fora de perigo? Você sabe, ele insultou Alemão... Era terrível... Foi criado com o pai... O pai nunca prestou... Cidona – num bocejo profundo, meio dopada – foi respondendo... – O enterro foi às cinco... Tinha muita gente... O menino era benquisto... Tá todo mundo revoltado... Plaf. – Desligou. Alzira tremeu. Agora é fugir. Gastar com advogados. Vender as casas de putaria... Gastar tudo que ganhou durante anos em noites e noites de vigília, desgastes, tóxicos, misérias, surras, polícia... Polícia... Temia a polícia... Cambaleante, dirigiu-se para o quarto... Já não sentia o mau-cheiro que aumentara nem ouvia os roncos que eram bruscos e repetitivos com paradas de engasgos... – Você, bruxo, matou meu filho, meu filho... Mas vai me pagar... Vou matá-lo. Matá-lo... Cortar seu pescoço... Retalhá-lo... – Abriu a gaveta da penteadeira e puxou uma navalha... Abriu-a. – Porco. Assassino... Monstro... (Ergueu o braço... Um grito assustado fez tudo estremecer... O relógio havia despertado repentinamente... A navalha foi parar longe...) Alemão, que havia acordado, olhou Alzira pálida de terror e gritou: – Vê se dorme, filha da puta!!! Me mandou matar seu filho, me atiçou, me chamou de cagão, medroso e agora fica aí com esse drama... Vou acabar também te matando, sua puta megera... e plaf! – desferiu violento tapa no rosto de Alzira, que estirou no chão... – Te mato! Porco! Assassino! – E saltou para pegar a navalha, mas foi contida com um chute nos rins. Gritou e caiu desmaiada. O PADRE VIROU DIABO A pensão do Otacílio, em Brasiléia, Estado do Acre, é boa, mas a turma é que parodiava enfim arroz com colorau, macarrão branco, feijão e água com

hipoclorito (arrotava-se Qboa), preventivo contra contaminação, todo o dia no almoço e janta não era bolinho. De vez em quando, vinha carne de animal selvagem; nas mais vezes, um pouquinho da bovina num paredão de ossos. A turma gritava logo: – Joguem os ossos fora. senão eles voltam na janta... E que controle tremendo o do Otacílio... – Otacílio, falta prato! – Vinha um prato. – Otacílio, falta copo! – Vinha um copo. – Otacílio, falta outro copo e outro prato! – Otacílio, falta água! Falta arroz... A verdade é que o Otacílio contava e recostava e sempre faltava qualquer coisa. Um dia, resolvemos fazer comida fora. Tudo amimado. Seria na casa do padre. Tudo arrasado. O prato seria camarão à paulista acompanhado de um sal adão. Naquele dia, chegou o padre Edmundo, de Xapuri, especialista em batidinha de limão. Compramos os ingredientes, e para quem quiser a receita, ei-la: 250 gramas de manteiga. alho, sal, pimenta-do-reino, pimentões picadinhos. Refoga-se e junta 10 pimentas malaguetas e 15 olhos-de-peixe (ardem só no olhar). Junta-se o camarão (meio quilo) e água com uma lata pequena de massa de tomate já diluída na mesma. Arroz branco e o saladão do lado... Nesse dia, o prefeito do lugar foi convidado e agraciou a camaronzada com uma dúzia de Brahmas geladíssimas. A turma comia assoprando. No dia seguinte, alguém veio comendo à pensão e trouxe a notícia. – O padre virou diabo, acudam! – Mas o que é que aconteceu? – Espantou os assistentes da reza das seis horas, pois cada vez que falava, saía fogo!... (20.06.1970)

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