28
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO... 7 ATOS Pantoja Ramos

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

  • Upload
    lelien

  • View
    241

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE

INVERNO...

7 ATOS

Pantoja Ramos

Page 2: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

2

Colaboraram com o texto sobre a extração de palmito no

Marajó:

Teofro Lacerda – Portel

Eliana Barbosa – Gurupá

Dedicado à luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais do

Marajó pela terra.

Inspirado em relatos do Sindicato dos Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais de Afuá, companheiros bravos e

idealistas.

Ê Suprimo Erivelton, Suprimo Cuca, Suprimo Vitoriano,

Suprimo Antônio Batista, Suprima Vanda!! Um Abraço!

Page 3: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

3

“O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”.

Jean Jacques Rosseau – Do Contrato Social.

Page 4: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

4

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE

INVERNO...

7 ATOS

Pantoja Ramos

Belém, 09 de janeiro de 2015.

ATO 1 – CALMA, ELE TÁ ASSUSTADO

Senhora??? Num entendi senhora??? Não, não, num posso

falar do que num me deixam. Seu Boiadeiro pode num gostar.

Eh me solta, eh me solta, macho! Ai! Rummmmm! Rummmmmmm!

Ai! Deixa eu ir, deixa? Cadê meus netos?? Quêde? Onde? Com

quem? O Beto meu filho foi junto? Foi todo mundo? Me

solta!! Impinge, o João Impinge, cadê ele? Hum, tu estás

aí! Solta ele, solta ele que ele mesmo é que num vai falar

nada! Só sobrou nós dois? Bora, me solta! Num falo, num

falo, seu Boiadeiro me pega, hum. Deixa eu ir Dona,

pelamordeDeus! Quê que vocês quer?? pelamordeDeus! Isso é

água? Tão limpinha assim? Me dá água, quero água Dona.

Água. Ahhhh.

Deus lhe pague.

Seu Boiadeiro tá por aí?? Ai se me pega! Ai se me

pega! Solta eu, solta? Rumm! Deixa eu ir pro meu Tapiri,

deixa, Dona? Dá água pro João, Dona. Ele tá te agradecendo.

Me solta!!!! Solta!!! Ai! PelamordeDeus!!! Me deixa...

Você tem bolacha? Me dá uma? Deus lhe pague. Deixa eu

ir pro meu Tapiri! Deixa? Já te falei que num quero

falar...

Posso dormir? Deixa Dona? Deus lhe pague... Te arreda

daí João Impinge.

Senhora? De novo? Qué-que isso? Remédio? É sim,

senhora, sofro dos nervos. Vou melhorar? Tu diz? É água?

Deus lhe pague Dona. Meu nome? Nicanor do Divino Ferreira.

Quantos anos? Não sei, uns setenta pra cima. Nascido e

criado no Cajari, é sim, perto do Beiradão, sabe chegar?

Num conhece? Ahh, é Laranjal do Jari agora? Mas lá nem tem

laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas

paragens me chamam Seu Nico Caduco. Sei lá porquê? Num ri

João, senão falo de ti. O porquê de João Impinge? É nome

mesmo dele, aí João Impinge de Oliveira Pano Branco. Homem

azarado esse suprimo João Impinge tu nem sabe Dona.

Panema...

Porquê Nico Caduco? Sei lá, só sei que fico pensando,

pensando e falando, falando, caducando quando se fica velho

Page 5: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

5

né? Homem novo pensa, velho caduca, né? Rá! Não, Dona, me

chamaram de Nico Caduco quando vim pra cá. Quando? Acho que

já era no tempo do Sarney. Não, senhora, desde que cheguei

não saí daqui. Seu Boiadeiro não deixa. Eh tu não vai

contar pra ele né? Se me pega? Ai se me pega falando

dele... Quê? Me arranca o couro na certa e pendura lá no

alto das copa da sumaumeira pra humilhar. Arranca sim, João

Impinge já até teve essa dor, né Impinge? Quando? De surra

de corda de nailom. Tropeçou no assoalho do barco, queimou

os dedos no cano da descarga e no pular da dor derrubou

umas 3 rasas de açaí por ali empilhada perto da janela do

barco do homem, thibum. Nessa dita hora Seu Boiadeiro tinha

acabado de acordar da pipira da tarde, naquela dor de

moleira do sol quente. Aí já viu né? Por isso não conto

nada. O que me garante Dona? A senhora? Seu Boiadeiro tá

preso? Mas quando já? Potoca sua. Potoca. Não é potoca!

Fiuuuuuu! Cadê ele? Tá preso? Num pode. Cês são daonde?

polícia daonde? Federal? Fiuuuuuu! Se eu disser, Seu

Boiadeiro vai saber? Olha... Dona, eu já estou bem velho,

num tenho força mais pra pegar pisa de ninguém. Quêde meus

netos? Quando eles voltam de Macapá? Eu vou pra lá também?

Mas quando, Não vou não. Mas vou poder vê eles? Tá bom, tá

bom. Quando o Beto vem me buscar? Na sexta, tá bom. Vou pra

onde me tratar? Faz muitos anos que não piso em Macapá. Não

é mais ponte de madeira? Rá! Mas tu sabe, eu volto pro meu

Tapiri né?

Se eu falar não vai acontecer nada comigo? Tu diz? Não

adianta, se tiver que falar tem que ser eu, o João Impinge

não expressa nada. Eu mesmo nunca ouvi síbala dessa quase

boca. Quase boca? É que num tem dente, Dona, pode vê, abre

aí João Impinge. Coisa feia. Rá! Foi queda. Caiu com o

queixo bem no meio de tronqueira que tava num igarapé lá de

cima. Lá de cima do pé de açaí. Cortava palmito pulando de

rama em rama, parecia um capelão. Ele fazia isso sim. Pra

não perder tempo e cortar mais palmito. Um pessoal de Boa

Vista tinha ensinado pra ele essa arte. Ó, já tô falando

muito. Se o seu Boiadeiro descobre, ai se me pega! Se pega!

Melhor parar. Tem merenda? Sardinha? Serve sim, Dona. Tem

farinha? Daqui que eu faço uma farofada. Hummm. Deus lhe dê

sustento. Ó, o João Impinge, já cortou o beiço na lata de

sardinha. Parece cachorro do Mazagão. Mas tu é besta, hein?

Rá! Tô com uns tremeliques Dona, me dá daquele remédio? A

senhora é uma santa.

ATO 2 – ELE DISSE COMO FORAM PARAR ALI

O que me mata essa boca que não se quieta, peste! Se a

senhora quer me ajudar, não me faz essas pregunta, não. Se

Page 6: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

6

tá tudo resolvido, pregunta pras pessoas que moravam aqui.

Quantas? Trinta famílias. Sim, tudo moradora desta ilha dos

Catitus. Trabalhavam uns na fábrica que tinha de palmito

aqui, outros no corte do palmito. Quê? A maioria na derruba

de açaí. Eu? Ficava no palmital, cortando, cortando...

aonde? No centro, eu mais uns vinte machos. Quando? Sempre

Dona, sempre. A gente ficava mesmo era no inverno, que ali

rimava com inferno. Hum? Tu não sabe Dona o que é

aperreio... ó, já tô falando muito. A senhora tá me

enrolando.

Tem café? Tem? Dá um pouquinho? Tem bolacha? Eu gosto

dessa aí de água e sal. A doce, não? Aumenta meu treme-

treme? Tá bom. Ó, eu vim com meu filho e minha nora os dois

novinhos ainda do Mazagão, não sei, acho que os dois tinham

uns vinte e poucos anos. Eram moços os dois. Eu já era

veterano, mas ainda vivia na sacanagem por aí, Rá! Não

estufa os peito João Impinge, tu ainda mijava nos cueiros.

Sabia, Dona, que no dia que ele estreiou nos puteiros do

Beiradão, foi logo pegar a Maria-Rasga-Bunda? Rá! Coitado!

A senhora não acredita que tem mulher assim? Pois o João

Impinge viu hum-hum. Rá! Deixa pra lá. A senhora parece

daquelas que não merece esse tipo de conto. Me discurpa. Ah

tá! Nos três viemos no convidado de seu Hilário pra vim pro

trampo da fábrica daqui. A senhora sabe, em inverno é

difícil arrumar bóia e o trabalho era justamente neste

tempo. De empregado em firma já tinha trabalhado, lá no

Jari e bora que vai dar certo. Meu filho Beto era o único

que me acompanhava, os outro, Cláudio, Maria, Pedro e Diane

era tudo espalhado, uns pra Belém, outros pra Santarém.

Diane foi pra Portel. Minha mulher? Se chamava Antonieta.

Morreu, Dona, ainda nova, doença de mulher, saia muito

sangue, uma lavagem de sangue coitada dela. Sabecomoé, a

gente não tinha condição de procurar um bom médico. Demorou

muito pra gente saber o que era. Não teve jeito. Ah,

Antonieta, Antonieta que Deus a tenha... chega minha vista

quase escureceu agora. Bom, era Deus e chá que curavam a

gente. Hoje, mudou né? Não? Tu diz que saúde ainda tá

encruada! Rá!

Chegamos Beto, minha nora Valéria e eu num meio de uma

chuvada medonha. Hilário estava ali esperando a gente no

porto da casa dele. Lembro que molhou toda a nossa boroca.

É muito ruim dormir em rede molhada. A senhora já dormiu?

Nunca? É agonia e frio no espinhaço, que vai tudo pras

bacia, numa vontade medonha do mijo. João Impinge conhece

isso de dormir no molhado. Uma vez ele arrumou de caçar,

né, João, nas terras alta do rio Jaburu. Pra evitar a onça,

armou a rede bem nos alto de uma pracuubeira. Mas quando,

ispia que deu uma saída da lua que danou-se a encharcar e

tudo e quando João Impinge percebeu, tinha inundado quase

tudo, era balde, rede boiando, onça boiando bem no ladinho

Page 7: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

7

dele? Ele ali deitado na rede boiada no rio, de noite, no

escuro, escutando aquele esporro de onça afogada que

resolveu se prender na rede dele. Foi arranho pra todo

lado. Fechou a madrugada molhado e todo ferido da bichona.

A onça? Quando encostou nele pegou a panemice do João

Impinge e morreu afogada na hora. Pá-tche-béi. Esse Lepra

me atrapalha a conversa.

No outro dia fomo apresentado na fábrica. Tinha ali

uns trinta empregados. Seu Boiadeiro, tava ali, chapéu de

fazendeiro, eu mal podia ver a vista dele, era escura do

chapéu que não dava pra ver direito a beirada de baixo do

olho. Passava malvadeza naquela sombra. Tinha uns outro

ali, cara feia, diziam ser o Espinho, o Fogoió e o

Jacuraru. Nunca soube o nome deles Dona. De nenhum deles.

Sebastião Cardoso dos Santos, esse era o nome do Seu

Boadeiro? Fiuuuuuuuuu!!! O tal gerente da fábrica era Chico

Santos, irmão do seu Boiadeiro, esse eu sabia. Trampamos

ali no primeiro dia, botando palmito nos vidro. O palmito

vinha numa polia porruda e nós botava rápido nos potes. Ali

ficamos os três uma semana mais ou menos. Aí eu velho,

quebrava de vez em quando uns potes e meu filho era fortão

do jeito que eu era quando molecão. Olhando tal jeito, Seu

Chico Santos mandou nós dois pro palmital e a Valéria ficou

na fábrica.

O João Impinge? Quando chegou? Humm, acho que foi uns

cinco anos depois. Foi né, João? Foi. No pouco que falou na

vida para mim disse que tinha vindo lá de Tabatinga

descendo o rio Amazonas. Diz alguma coisa peste!! Viu só,

nada. É muito difícil mesmo este macho falar. Até brinco

que só fala quando tem briga de jabuti. A senhora já viu

briga de jabuti? É uma desgraça de barulheira! E quase

ninguém neste mundo de Deus viu bestial coisa. Mas quem vê?

Hum-hum, Eu hein? Mas sim, ele me falou que estava indo pra

Belém, mas deu discunforme cole, sabe o que é Dona? Cólera?

Prefiro falar Cole. Pois é, deu Cole no barco quando tava

em Almeirim. Ele mesmo pegou a praga e teve que ir tomar

soro sem parar naquela cidade. Se vazava todo naquele fedor

de dentro do bucho. Quase bateu o cacau. Ali acabou o

dinheiro da passagem. O Impinge teve que ficar por ali

mesmo, mas uns garimpeiros daquelas bandas juraram ele de

morte e ele caiu no primeiro barco que ia pra Santana. Sem

as condição, escutou que tinha uma boa fábrica em Afuá e

veio pra aqui em busca de sorte. Se lascou! Rá!

Só sei que as coisas de repente ficaram mais feias

ainda. O Seu Hilário sumiu. Sumiu mesmo. E foi meu susto

quando voltei na casa dele pra visitar, a gente costuma

visita os amigos, vocês fazem isso? Poisé, não vi ninguém

na morada. Tudo esquisito, fiquei umas quantas horas ali

esperando, aporrinhado já. Nada de Hilário, a mulher e as

duas filhas aparecerem. Já com fome, saí pra varrida e dei

Page 8: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

8

de cara ali, Dona, ali, com duas cruzes fincadas no chão.

Naquele meio breu de seis horas no mato. Ali, Dona, ali! Me

subiu um arrepio no cangote do que podia ser e saí no

disparo de volta. Até parecia que escutava o gemido das

almas a me pedir ajuda lá de longe onde estavam as cruz.

Pra lá ficaram as visagens. Acho que foi coisa dos três do

Boiadeiro. Quando cheguei perto da casa do Hilário vi de

longe Fogoió olhando pro meu casco. Deitei na lama mesmo,

no meio dos açaizeiros. Putamerda! O peste subiu no porto e

depois pro mato com uma espingarda. Dona, eu num ia trocar

tiro com ele, pois também tinha minha cartucheira fiel. Me

bateu o medo. Sou medroso, sou de paz. Me escondi no pé de

um mututizeiro que tava por ali por horas até que Fogoió se

foi. Acho que foi buscar alguém, o sacana. No que tomei

coragem, dei a volta na posse do Hilário até chegar na

costa da Ilha dos Catitus. Lá longe vinha um barco. Fiquei

quieto e vi o dito Fogoió com mais dois olhando pro mato.

Eu ali no meio do aturiá. Ainda bem que tava escurecido. E

lacraia me ferrando chega eu chorava fino. Larguei o casco

de mão. Voltei pelo palmital. Como achei de volta Dona?

Olha, eu tinha que achar senão iam desconfiar que eu tinha

sumido. Nestas horas nasce até inteligência na gente. Vixe,

deu até uns beribéris em mim agora falando nisso. Você tem

aquele remédio Dona? Deus lhe pague. João Impinge, calma

João, deita aí na tua rede. Acho que é fome Dona, tem aí o

que comer?

ATO 3 – ELE DISSE COMO ERAM TRATADOS

Nem sei como abri boca dessas coisas Dona. A senhora

conseguiu arrancar de mim a fala né? Ó, lembra da promessa,

Seu Boiadeiro não pode saber que te falei viu? Se me pega,

tu num sabe...Como era o palmital? Bom ali tinha uns

Tapiris pra gente quietar, só os esteios de virola, palha

de buçu como coberta pra chuva e sereno, assoalhado de

açaizeiro. Encerado, o que é isso? Hum-hum. Só nossas

redes, corda de cipó, o Tapiri, o facão, uma espingarda, a

poronga e a guarnição levantada dos bichos. O que tinha lá

na guarnição? Charque, sal, açúcar, café. Só. Carne a gente

tinha que arrumar no mato, uma cutia, um jacaré, um

camaleão, uma galinha d´água quando a gente via. Umas

pacas. Hummmm. Umas pacas. Dona que eu tinha faro pra caçar

paca gorda. Era eu meter a cabeça no mato, que elas se

aperriavam, saiam doidas pra lá Pei! Pra cá Pei! Eita,

eita. Era num tempo que tinha muita, mas aí a gente não

pensava nas prenhas. Como sabia? Num sabia, desconfiava que

tinha paca prenha quando dava fevereiro, inverno crescendo.

Mas a fome a senhora já viu né? Não dava pra ficar com

Page 9: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

9

murrinha de ir fazer varrida nem pensar nas pacas que a

gente caçava. Tinha que brigar pelo de comer. Mas não era

complicado, tinha muita paca. Muita cutia. Peixe então, nem

te falo! A gente fazia a tapagem dos igarapés com pano de

pari, na maré alta. Depois era só fiu!! Muito jaraqui,

jiju, jacundá. Era o que salvava a gente naquele tempo. A

senhora já trabalhou com fome e ter que contar que ia

arrumar algum de comer? Poisé, os macho sempre butucava

sobre isso. Cachorro que estava com a gente, o Saliente,

era o melhor dos narizes e era quem eu mais botava fé.

Saliente? Sim, era o nome do cachorro que a gente tinha.

Bom, demos o nome de Saliente porque gostava de montar nas

caça abatida e tentar fazer filho nelas, desde mirradinho o

pulguento. Pois foi: Saliente. Era preto e branco, seco,

mas forte que nem eu fui a vida toda. João Impinge bom

caçador? Que nada. Uma vez conseguiu, tu acredita, pegar

uma peia de um mutum. Bicho brabo, mas não é pra tanto

quando se é macho. Mas João Impinge neste dia foi mexer no

ninho da fêmea e pegou bicada até não querer mais. Olhe

Dona, correu tanto que escorregou e descambou de um

barranco em cima de um pé de murumuru, foi espinho bem no

meio da moleira. Rá! Com a mão na cabeça em minha direção

pra eu catar o espinho. Abri a cabeça do danado e estavam

ali o espinho, o piolho, a pulga e uma tucandera. Valha-me-

Deus! Que dei com o sumo de anhinga na cabeça do infeliz

pra espantar aquelas bichas. Só faltava dar tapuru, hum não

falta muito pra esse panema. Olha a cara dele aí, senhora,

todo desconfiado. Rá!

Dona, não pede pra respondê isso. Não quero. Chega me

deu beribéri. Tá na hora do meu remédio, né? Tô com sono.

Posso dormir?

Bom dia senhora. Bom dia. Bom dinha pra cá João

Impinge, Rá! Hein Dona, esses homi aí contigo não tem casa

não? A senhora não tem casa não? Eu tenho. Meu Tapiri. Fica

ali no centro de Ilha dos Catitus. Lá eu tenho minhas

coisas, retrato de Antonieta, minha Antonieta.

Donzela, minha donzela,

No dia que fui pra guerra

Jurei voltar pra sua terra

Pra gente ter que casar...

Ah Antonieta, que saudade. A senhora é casada? Pudera.

Muito bonita. Eu fui casado. Sim, no tempo de Antonieta não

tinha outra mulher na história. Fui cabra direito. Depois.

Bom. Depois fui viver nas quebradas até chegar no Beiradão

do Jari. Ah, bons tempos de sacanagem. Quase me ajunto com

Dinéia. Foi quase. Eu até podia ter tirado ela daquela

lida, mas num fui homem de guerrear com os outros. A dona

do puteiro, como chamava ela? Como chamava? Paloma! Isso,

Page 10: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

10

Paloma. A porra da Paloma tinha uma ciumeira da Dinéia,

acho que era enrabichada por ela. Mandou recado que seu

fosse tirar a Dinéia de lá, uns maranhenses facudo ia

visitar minha rede e a dela. Larguei dela, que chorou, me

arranhou todo no peito pra eu ficar. Não dava. Me fui. Sou

muito medroso. Não. Outra vez mulher minha morrendo não dá.

Purquê digo? Vai que puxei pra panemice do outro aí, o

Impinge pra num ter sorte. Esse aí teve mulher sim, umas

quatro, mas foi corno de todas. Pra você vê, Impinge foi

bom, não batia, trabalhador, mas foi corno da ocasião.

Pensa que ficou cuíra e quis matança, que nada. Foi sempre

pegando seus panos de bunda e se mandando. João Impinge de

Oliveira Pano Branco. Aqui se juntou duas vezes o praga.

Não diz isso, moça, num tô enrolando a senhora não. Só não

gosto de falar daqui.

Na fábrica, Valéria começou a recramar do trabalho.

Dizia que não davam nem água pra ela. Começava o trampo às

sete da manhã, almoçava um pouco e já caía na tarefa.

Terminava de noite a lida começada de manhã, deitando na

rede bem lascada do cansaço. Não sei nem se aguentava meu

filho precisado. Ô vida das mulhé! Hoje eu entendo, hum.

Seu Boiadeiro? Tinha montado uma vila de um primeiro

trapiche, e disso moravam lá os funcionário. Pagamento? A

gente recebia, mas devolvia para pagar a comida que deixava

em casa. Meus netos, Mário e Mariana, já estavam correndo

pela morada e precisavam de roupa e comida. Passarinho quer

comer, não quer saber. E Valéria tava fininha, fininha como

uma taboca. Foi quando teve os nenéns que aproveitou o

resguardo pra descansar. E ali ficou mufina a Valéria de

tanto trabalhar. Ganhava 100, devia 300 pro armazém do Seu

Boiadeiro. Foi se enrolando, enrolando. Tinha que trabalhar

mais e mais pra saldar a dívida. Aquilo num findava. Quanto

tempo durava um resguardo Dona? Na cidade é isso? O nosso

durava uns 90 dias no costume. Mas na terra de Seu

Boiadeiro, era só de um culto pra outro. E só.

O pessoal da vila também estava todo endividado. Não

tinham nada. Seu Carlos se emputeceu daquilo e tentou sair.

Disse que ia cair no mundo. Pegou os filhos e a mulher e

saiu numa casco dentro do igarapé do Hilário. Pegaram eles

já na praia do Visconde no outro lado. Os filhos ficaram. A

mulher também. Mas seu Carlos sumiu. Acho que fincaram mais

uma cruz por aí. Vixe! Daí tiraram a televisão da vila e a

partir disso a gente não sabia do mundo. Foi por isso que

me apelidaram Nico Caduco. A senhora vê, eu era a pessoa

mais velha e que tinha rodado. Conhecia uma mina de cidade.

Quando eu falava de uma fábrica que tinha o tamanho aqui ó

da ponta da vila até a dobrada naquela ponta ali ó, eles

falavam que eu ia caducando. Devia tá. Mas eu vi atracar

aquela balsona lá no Jari. Quando falei isso, que ela veio

de balsa diz-que do Japão, aí que me chamaram de Caduco. Só

Page 11: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

11

eu dizia as coisas do Brasil, os presidente, Médici,

Gaisel, Figueredo, Tancredo morreu coitado, Sarney, até

quando eu pude saber. Dali em diante fiquei fora do mundo.

Pensa naquelas crianças. Meu neto tem 14 anos. Minha neta

tem 13. Nunca botaram a vista numa televisão, acredita

senhora? Não estudavam, não sabem lê até hoje. Como é que

eu podia ajudar? Mal sei lê. Sei desenhar meu nome. Até

comecei, mas eu mesmo não sei direito escrever Mário e

Mariana. Ô peste ... só falava pra eles pra sonhar com a

escola. Que iam virar doutô. Ele professor. Ela enfermeira.

Ah, quem odera. Mas eu pedia, sonha tu, sonha ela, sonha

tu, sonha ele. Pior. Já estava Mariana na fábrica. Já

estava Mário no centro cortando palmito. Foi quando vocês

apareceram.

Se o trabalho do palmito era ruim? Deixa eu te dizer

como era mais ou menos, é pusquê suprima, desculpe a

intimidade, Senhora, deixa eu te dizer, a gente vivia

molhado. Era uma vida na água. Da barriga da perna e da

barriga sempre com frio. Uma sensação insossa da vida,

sabia? Vez em quando uma beliscada na batata da perna, da

friagem. Seu Boiadeiro juntava os homens no trapiche da

fábrica dele, dava a guarnição naquela miséria, e nós a

amolar o facão. A gente amolava o facão enquanto ele

falava. Nós de cabeça baixa amolando. Jurando. Jurando. A

gente sempre jurava, mas não cumpria o que vinha na cabeça.

Ele escrotiava com a gente, chamava de tiricentos, pra ele

todo mundo era preguiçoso ou corno. O Bixuga, coitado, já

tinha o pobrema da cara cheia daquela bolotas, ainda tinha

que ouvir quieto o Boiadeiro falar do jeito dele. Dizia que

era veado, o que a gente já sabia e nem ligava, pois era

pessoa boa e muito, mas muito trabalhadora. Seu Boiadeiro

fazia questão de humilhar ele. O disgrama do Espinho,

jagunço fedido, vivia batendo no Bixuga, sei lá porque. Sem

motivo. Te digo que teve vez que ele foi lá no Tapiri só

pra judiar no Bixuga, cê credita? A gente amolava o

terçado. Aquele Jacuraru com o revólver olhando pra gente,

reinando. Fogoió olhando pra mim, eu de cabeça baixa,

amolando, percebia. Beto sentado no porto com as pernas

balançando bestava olhando pro mato, vivia assim.

Do porto a gente caía no mato, tinha que ir lá pro

centro. A gente acordava antes no cagá-dos-pinto no alerta

do Jacuraru, dependendo da maré pra pegar de enchente até

chegar no palmital. Os cascos tudo ali na boca do igarapé

do Hilário. Até lá a gente andava. Seguia na fila, sempre

tinha uns dez armados andando conosco. Quantos? Éramos

vinte. Diabo do Boiadeiro contava um armado pra dois com

terçado, só pra ter certeza quem ganhava no caso de um

pára-pra-acertá. Se tinha bota? Rá! O nosso sapato era o pé

mesmo, vê aqui a grossura da sola do meu pé, viu? Ó!

Murumuru é brinquedo pra mim. Mas o João Impinge coitado,

Page 12: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

12

mostra pra ela macho? Deu nojo? Isso é tudo buraco de bicho

que deu nele. Cabra com pezinho de moça. A Dona acredita

que ele pisou até em carataí?? Sei lá como se deu, só vi

quando o peste correu pra mim deu um pé só como saci. Rá!

Esse Impinge... mas o complicado era as cobras. Tem medo de

cobra? Nós também. Eu tenho um medo, medo, medonho.

Combóia. Coral. Surucucu. Jararaquinha. Vixe!

A combóia é bicho traiçoeiro. Tá sempre na espreita

nos pé de açaí, naquela ramada de baixo. Veneno forte

daqueles que apodrece onde pega. Se enrola de tal maneira

que num se percebe. Fica da cor de tudo a desgraçada. Na

lama do chão, na touceira, debaixo da paxiúba, ali no

mututizeiro, dificilmente no aturiá, num gosta muito eu

acho. Seu Lau, um dos nossos, quando estava pegando pela

folha do açaí pra cortar, foi batido ainda bem que na ponta

do dedo fura-bolo, foi rápido Tchá e saiu dali sem contar

conversa, pegou o facão, torou a cabeça da bicha e ponta do

dedo envenenado. Vap. Andiroba aqui. Pracaxi ali, uma reza

do Xarles, nosso pajé, o fogo pra terminar de queimar o

dedo pra num dá tetanu e o homem ficava bom. Só que com o

dedo que parecia uma cabeça de jiju de tão feia. Remédio

pra cobra se a gente tinha? Rá! Hospital? Rá! No máximo a

gente mandava recado pro agente de saúde, o Ramalho, que

mandava pra gente ampola com negócio dentro. Não, ele não

vinha aplicar, paresque que seu Boiadeiro num deixava. Dava

pro Xarles e ele se virava. Mas isso quando chegava a

notícia pra ele.

Coral era fogo. Tu num dá nada. Pequena, nem tem dente

pra fora. Anda quieta e nem te pula. Graças a Deus num te

pula. Tchá!Rá! Te assutei Dona? Rá! Tu acredita que o João

Impinge conseguiu se picado de coral? Num morreu num sei

porquê, achou uma rastejando em cima do short pendurado no

varal e começou a desafiar a coragem, brincou com ela,

atazanou, frescou com a cobrinha, dava beijo na cabeça da

sujeita. Tava porre? Pior que tava. Aliás, taí um homem que

gosta de uma cachaça! Nós gosta, mas ele quando vê uma cana

cai de boca. Nesse dia ele estava bem boneco mesmo. Bem

boneco. Dançou com a coralzinha, já emputecida se me

permite pensar. Eu ficaria. A senhora ficaria? Pois é, e

num dormiu ali desbundado com a cobrinha perto? Joguei

longe. Mas acho que a coral tinha pegado tanta corda do

Impinge que veio devagar, devagar, veio pelo cipó que

amarrava a rede, desceu pelo punho e foi chupar bem devagar

o pobre do Impinge. Só de raiva. Dona, esse homem quase

morreu. Deu febre. Popocou braço do cabra. Olhava pra

cima, pra cima, queimando, queimando, os olhos tavam

branquejado. Achei que o sacana ia bater o cacau desta vez.

Xarles começou umas reza, uma folha, uns chás, uns restos

de ampola na veia do homi e foi e foi. A chuva pegava forte

nesse tempo, a gente chegou a cobrir o João Impinge com um

Page 13: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

13

ajuntamento de tururis que acabou virando um porrudo

lençol. Depois de sete dias começou a melhorar. A febre

indo, indo. Taí o peste se mostrando pra senhora. Vai

brincar com coral de novo, vai?

A surucucu, Dona? Ahh, aquela sim que mete medo. Eu

diria que a mãe das cobras. Peçonhenta! Filha duma água!

Ela persegue o caboclo. Num acredita? Pois digo e digo de

novo, ela te marca, te pega raiva, ela corre atrás de ti.

Tava eu e o Valdo no rastro de um tatu, quando escutamo se

mexendo lá dum buraco uma coisa. Valdo disse que o tatu

escondia ali. Tá não, tá não, foi pra ali. Bora? Ele

teimou. Tá, dá uma cutucada com vareta que eu vou ispiá lá

por trás daquele pau-mulato ali. Valdo pegou da vareta.

Cutucou, mexeu. Cutucou. Mexeu. Resolveu pegar o tatu na

unha e lá no meio do esforço de chegar no fundo, um troço

pegou na chave da mão dele e puxou ele pra dentro. Ficou no

buraco até o ombro. Puxou, repuxou, lutou. No grito dele eu

vim correndo e ele tirou o braço de dentro nas últimas.

Perguntei que foi Homi? Ele só disse que um troço mordeu e

puxou ele. Nessa hora saiu a bichona lá de dentro, Dona?

Como é grande, amarelona, pitú, pitiú que só a senhora

vendo. E veio pra cima da gente. Veio mesmo. E haja nós

tentar dá com o facão. A espingarda? Estava tudo já no chão

e começamos a correr, quando olhei pra trás, a maldita ali

no nosso rastro. Deus que carrera a minha e fumo embora que

nem dois tijubina! Dizem que a cobra quando não pega alguém

fica com tanta raiva que começa a se morder toda. Deve tá

lá até hoje me esperando. Mas o Valdo, coitado, levou

mordida demais. A mão foi apodrecendo, apodrecendo... ficou

por ali com a gente cotoco do braço, aqui no ombro. Ah, a

Senhora conheceu ele? Pois é, aquilo foi surucucu.

Jararaquinha era o que mais pegava no pé. Pegava

mesmo. Havaiana, coitada, num tem como segurar e quase tudo

nós tinha fisgada de jararaquinha no calcanhar, no dedão. É

pequena a bichinha mas dá um prejuízo... Num dá pra

brincar. Se não cuidar morre mesmo sendo pequena a cobra. O

filho do Miguel, coitadinho, coitadinho Dona, coitadinho.

Brincando no terreiro de casa, num tinha nem dois anos. Num

pode deixar pequeninho andar pelo barro, num tem sustança

pra essas coisas. Ninguém entendia a febre, só a mãe olhou

aqueles furinhos no pezinho da criança. O bichinho gemia,

Dona. Gemia até quietar o suspiro. Ai meu Deus! Meu Deus!

Ai que o mundo vira carambela se as crianças se vão. Ai que

tudo é só uma tristeza medonha. Sem fim. Ai que o Miguel

sofreu muito, ai que Dona Marlene gritou, gritou chega a

gente tapava as orelhas. Miguel dava com a cabeça no esteio

da casinha deles na vila com tanta força que quase veio

abaixo. Ai Dona, que dor. É assim mesmo Dona, num chora.

Era assim que eram as coisas. Tô com sono, posso dormir?

Deus lhe pague.

Page 14: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

14

Bom dia, senhora. Bom dia Impinge, eita, que chuva que

num pára, né? Daquelas cor-de-rato, passa agora não, Dona,

melhor continua quieta na rede. Rá! Como a gente aguenta? A

gente se acostuma. É muita chuva na moleira. A gente pegava

a canoa de manhã e saía pro palmital. Tudo quieto, uma

encarnada aqui, outra piada alí. E a gente remando. Era pra

passar o tempo. Uma hora e meia de remada. Aquele frio que

num passava, haja café pra esquentar por dentro. Haja

baforada da porronca nossa. Eu remava com meu parceiro

aqui, o Impinge, devagar, só na manha pra poder reparar a

lama no pé das plantas, como tem planta nessa mata, tudo de

um jeito diferente, nunca repetia. Pra senhora repete, só

que pra nós não. Tudo é novidade. Aquele mulateiro

esgalhado pra buscar o sol, por isso cambou pro lado assim

ó. Aquele assacuzeiro enorme que tinha um furo no meio. Uma

árvore deitada quem nem uma fêmea jeitosa. Desculpa o

atrevimento, Dona. A gente remava quieto depois da piada

pra guardar força pro trampo, cada um dos vinte pensando

sei-lá-num-sei-quê. Xarles pensava acho que nos remédio alí

no mato e vez em quando reparava um chicuã que só ele via,

mais ninguém. Se benzia. Dizia que era agouro. Mas aí

olhava pro João Impinge e ria. Valdo remava capenga de seu

só braço, acho que ele invejava os outros remando de cada

lado, mas juro que a puxada da água dele era mais forte.

Ele Num queria perder pro outro. Era a peconha mais segura.

Era a melhor terçadada no palmital. Sei lá, era meio que

com raiva. Bixuga era calado, mas sempre a oferecer café

pra esquentar a gente, vez ou outra pegava ele olhando para

a cor dos tajás, as flor que dá pro ali. Bromélia, Dona?

Pra nós, tajá. Rá! Ele olhava, olhava, como se quisesse

tirar mais cor daquelas flor eu digo até bonita. Ele sempre

catava e plantava no Tapiri. No início a gente brigava com

ele pra num empatar nossa ida pro palmital, mas ele ia

assim mesmo e caia na água e de lá um jeito de trepar nas

árvore. Trazia na camisa aquele mato velho. Mas num é que

dava uma florada bonita, como é qui pode daquele musgo saí

uma flor daquela? Só Deus. Só Deus mesmo. Paramo de pegar

no pé dele depois disso. Num fazia mal pra ninguém e o

porra do Espinho a atazanar ele.

Osmar era outro que pegava coisa do mato. Tava sempre

na parceria com seu Lau, o do dedo torado da combóia,

lembra? Mas Osmar pegava peixe. Era um bom pescador. Sempre

na linha, no caminho das canoas estava ali na busca pela

jatuarana. Eita peixe gostoso. Num gostava de tapagem,

dizia ser uma covardia no enfrentar do peixe, ele queria

té-ti-a-té-ti. Contava prosa que lá em Almeirim, era terra

de jatuarana graúda. Lá dos igarapés que chegam no Lago

Branco. Eu concordava com ele. Comi muito desse peixe por

lá quando fui mais novo. João Impinge fazia cara de fome

quando a gente falava desse pescado. Rá! Ispia, que nem

Page 15: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

15

essa. Tem bolacha, Dona? Dá uma pra ele. Rá! Sei lá, não

tinha a mesma graça. A jatuarana quando se pegava ia pro

casco e do casco pro fogo, moqueado. Mas num tinha o mesmo

sal. Lá em Almeirim quando lembro a gente ria no comer,

pois depois da bóia, cada um rumava pro seu destino, como

apontava na venta. Aqui não, sempre meio tristeza e esse

frio nas pernas. É de perder o sal. Nem vento chega na

testa da gente por aqui. Nós tudo pensando na família da

gente sem uma vida que prestasse. Naquele silêncio a turma

remava. Naquele molhado sem fim. Naquela toada plóft, plóft

de remo sem alegria. Vez em quando pulava o macaco de

cheiro por entre as cabeças nossas, nem prestavam a atenção

na gente. O pé nosso sempre friorento, esbarrando na cuia

que tirava a água da canoa. A bunda sempre aguada do limo

do sentador da montaria. Saliente naquela tremedeira de

frio de cachorro. Cabelo da gente sempre lavado da galhada

batida por nossa cabeça e vinha aquelas muitas gotas de

água a nos benzer. E tinha um ingazeiro no meio do rio, uma

ucuúba, mututi. Quando o facão não liberava aquele

impedimento, os machos iam pra água pra acertar de machado

ou até pra botar em riba das tronqueiras nossas canoas. O

Flaviano tinha uma gripe que num passava o abençoado. Era

aquela tosse de cão perdido. Sabe quem é? Aquele mesmo que

vocês levaram com passamento. Hum, tuberculose? A Senhora

diz que ele tinha? Bem que ele tossia muito. É mesmo, mais

tossia do que falava. Quando começou? Por causa desse aí, o

Impinge. Numa das viagens, a gente se viu olhando aquele

veado grandão, vermelhão ali por cima de uma restinga.

Saímos com a cartucheira, pulamos dos cascos pra cercar o

bicho. O cachorro Saliente combinou conosco que iria pelo

outro lado trazer ele pra essa banda. Nós concordamos. O

seu Lau, de cá, o Impinge de acolá por dentro do igarapé, a

água malmente aparecendo a boca dele. Quando percebemo tava

o João ali parado no pé da paxiubeira inundada, olhão

aberto, quando o Valdo chegou perto gritou Puraquêêê!! Olha

o sacana pretão ali por perto dando choque no Impinge. Ele

ali preso ó disgraça no meio daquela raiz toda pontuda. Eu

fico hoje imaginando como esse piolho do João se mete

nessas coisas? Tentamos espantar, jogamos o remo pro peste

fugir e nada! O Saliente veio desembestado latir, e ficou

por ali na redondeza né, já na proa do casco, num é besta

né? Foi quando Flaviano deu com terçado no cocorote do

Puraquê, que foi ele voar como se uma maresia de navio

tivesse jogado ele oitos braças pra trás. O danado rabiou e

saiu por dentro duma caída. Pegamos o João. Por pouco não

bateu o cacau. De novo! Flaviano ficou na febre. Na febre,

uma fraqueza no peito. Deu uns pigarros sempre por ali a

partir daquele susto. Até parou da porronca. Tosse. Tosse.

Tosse. Eu bem que achava ele meio magrelo depois disso,

chega aparecia as costelas todas pra contagem. E molhado.

Page 16: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

16

Encharcado. Como todos nós sempre naquela labuta. Viu o que

tu fizeste João? Impinge de Oliveira Pano Branco. Mas quê

Dona? Como num brigar com ele, é cheio de arrumação. Vai

ficando com dó, vai? Ele te passa a chaga dele. Rá!

Aí Senhora, quando enxergava o Tapiri, ai que festa.

Era ficar menos molhado, até seco por umas horas. Dormir

cansado da lida, ali naquele ajuntamento de redes, de

toalha e roupas ali penduradas, tudo com pouca cor,

retiradas por tanta água. Eram quatro casinhas, cada cinco

num Tapiri. Mas a gente repartia tudo. Era uma turma unida.

Nunca puxamos briga um com outro. Não. Minto pra Senhora.

Teve só um caso, quando o Valdo se estranhou com o Mundico.

Mundico era muito bafento. Daquele tamanho, queria ser

patrão de nós. Faz isso, faz aquilo. E um dia soltou um

porra quando o Valdo deixou cair a água da panela no fogo

que cozinhava. Sabe aquela cara de Ei-seu-aleijado! Vê se

olha! Pois o Valdo olhou sério pra ele e foi cortar lenha.

Pegou o machado e veio de um jeito que a gente se arrumou

pra evitar o pior, mas o homem passou pelo Mundico, que

ficou ali parado, todo cagado. Valdo parou perto de cepo de

um matamatá. Cada braçada era uma lenha! Cada braçada uma

lenha pro fogo. Valdo mirava Mundico. Mundico não mexeu

mais. Tirando isso, todo mundo trabalhava em paz. Nossa

bronca era com o Espinho, Fogoió e Jacuraru. Eu por eles

amolava o terçado.

Nossa matemática era assim, muito palmito. Cada três

de nós tinha que fazer um milheiro por dia. Vap. Vap. Do

sol saindo até noite. Os três homem do Seu Boiadeiro

espiavam se a gente estava matando rancho. Quando, Dona?

Ali mesmo no inverno. É quando as água fazia chegar nos

centros. Um imenso dum açaizal a perder de vista, parecia

que era uma vida inteira para cortar. Vap. Vap. Cortava o

açaizeiro ali caindo um por cima do outro. Vap. Vap. Tirava

a cabeça, fazia o descasco e com o facão mesmo empurrava

num canto o resto daquele refugo. Os pés de açaí maiores,

os mais criados, a gente torava de machado. João Impinge

arrumava as pilhas de palmito. Quando eu cansava, trocava

com ele ou com o Valdo, nós formava nosso trio. Trezentos

pra mim, trezentos pra João, trezentos pra Valdo no mínimo,

depois a gente metia lenha pra mais cem, fechava o

milheiro. Era cota feita. No outro dia, a gente só fazia se

benzer e de novo e de novo. Muitos anos assim foi a vida.

Tudo por causa de um troço que nem é bom de comer! A

senhora gosta de palmito, Dona? Eu não! Nenhum de nós comia

palmito. E vivia nas portas da morte por ele. Nunca entendi

nem pra onde ia. Pra São Paulo? Hum. Às vezes o Osmar

mascava um, sei lá, era uma misura dele.

Como se trabalhava muito naquele tempo. Milheiro e

mais milheiro. E quando chegava o tempo das carapanãs?

Quando era? O ano todo! Rá! É por isso que a gente fumava

Page 17: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

17

tanto. Pra espantar aquelas praga do mal. Zunindo. Ai meu

Deus, como cantava no ouvido Tá ali!! Tá ali!! Nico! Nico!

Peste de carapanã naquele canto lá dentro da alma. Aquilo

não é bicho de Deus não. Deve ter saído de um buraco para

azucrinar Adão quando saiu do Paraíso, só pode! Uma vez

Dona, deu tanto carapanã, mas tanto que num dava pra abri a

boca! Miséria! Foi quando eu vi, naquele bando de açaizeiro

cortado aqueles copos que a gente deixou nos açaizeiros

abandonados, ó que dançavam os filhote de carapanã. Olhei

pra frente e vi aquele mundo de açaí cortado. Um mundo de

copinhos naquelas touças cortadas. Muito carapanã pra

nascer ali. Combinou a gente que o corte do palmito seria

pra fazer um bico de gaita, pra escorrer a águinha nas

touceiras mortas, isso pra tentar diminuir aquelas fera.

Nesse dia que a gente não abriu a boca, o João Impinge

achou de trampar com camisa preta. Eita que ficou aperreado

mais ainda. E corria e corria, e aquela nuvem perseguindo

ele. O Saliente latindo atrás. Todo mundo rindo. Naquela

noite foi dormir todo pirento, popocado. Nossa sorte é que

eu sabia fazer fumaça com o bagaço da semente da andiroba.

Ela espanta carapanã. Quem me ensinou? Uma senhora lá do

rio Ipixuna, lá pra banda do Lontra da Pedreira, no Amapá.

Muito carapanã. E muita malária dava lá. Tive, Senhora,

tive uma dez malária. Toda gente tinha malária aqui no

palmital. Foi o que matou a Glorinha, Oh meu pai, tão

bonitinha a pequena. Foi no tempo que as mulheres começaram

a vir pro palmital. E se vinha mulher? Vinha... depois

conto pra Senhora.

Mas quando não era moriçoca, era mutuca. Ahh, desgraça

é mutuca. Ah dialho de sujeita. É mosca sem vergonha, vai

ali, te ferra, e sai. Te ferra de novo, e sai. Tu ralha.

Ela volta na cara-de-macaco. E dói a danada. A Senhora já

pensou no meio daquele sono bom, de costela com quem a

gente se enrabicha, no bom no bom, e vem aquela agulha por

debaixo da tua rede te ferra bem na costa, eita dialho. Mas

tem coisa pior... Quando o Mundico morreu... é Dona,

morreu. Foi um negócio esquisito. Começou a babar, a

golfar, uma alta febre. Xarles disse que aquilo era veneno

de sapo. Só se ele lambeu a costa dum, disse o Valdo. Nada.

Nada. Foi mutuca que passou veneno de sapo pra ele. O

enterro foi ali na posse do Hilário. Fizemos daquilo nosso

cemitério. Que Deus tenha todos eles. No dia do funeral do

Mundico, tinha acabado a porronca que a gente fumava.

Olhando pra cova e se batendo todo pelas muriçocas, seu Lau

disse que aquilo num era vida. Nesta hora, Todos nós

puxamos fundo ar pro peito com um punhado de inseto junto.

Page 18: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

18

ATO 4 – ELES NÃO SABIAM DOS ROUBOS

A senhora gosta mesmo de anotar as coisas, né? E eu

falando todo tempo nesse meio jeito cabocão. A senhora me

perdoa tá? Queria ter estudado mais, mas você vê que aqui o

pessoal me achava sabido. Vem cá, quando a gente vai pra

Macapá mesmo? Humm, atrasou né? Num carece pedir perdão, a

gente entende, né João? A Senhora é boa pessoa. O quê?

Cadeira de roda? Que é isso? Pra eu usar? Rá! Num carece,

num carece. É por isso o atraso? Dona Sílvia, posso ter

chamar pelo nome? Posso? A senhora é uma santa de verdade.

Eita café porreta. Sabe quem fazia um café assim? Seu

Apóstolo. Ele tinha umas mistura com erva-doce. Dona Sílvia

sabe quem é? Pois é. A gente conheceu aquele justo homem.

Num dia, todo mundo ali danado no corte do palmito.

Vap. Vap. Lá no meio da tarde, veio os capangas do Seu

Boiadeiro chamar a turma pro Tapiri. Pensei que era um dia

de cobrança da guarnição, só pra endividar mais ainda.

Quando chegamos lá tinha mais uns sete cabras, tudo armado

de revólver. Disse o Fogoió Olha esses homem aqui vão ficar

com vocês uns dia aí viu? Num pergunta quem é pra quê nem

qual foi que num interessa entendido estamos?? E deixaram

eles ali, com uma penca de rancho a Senhora imagina?

Sardinha, conserva, margarina, mortadela, bolachona

salgada, doce. Hummm. Só pra eles. Enxotaram oito de suas

casinhas e nós tivemos que ficar amontoado nas outras.

Ficaram ali uns sete dias. Nós cortando palmito e eles nos

Tapiris só ali, fumando, conversando baixinho, parece que

bolando arrumação ruim pro mundo inteiro. Vixe! No dia que

o Espinho e o Jacuraru vieram falar com eles, mandaram nós

ir pra casa da fábrica também. Fizeram questão de passar

conosco na posse do Hilário, ai meu Deus do céu, que

arrepiava. Chegando perto da fábrica deram umas pás pra uns

cinco da gente e os outros foram lá pro porto. E haja força

suprimo, traziam uns motor de embarcação, dois, três,

quatro, cinco... nove motor. Pediram pra enterrar essas

máquinas. Hunf, que fiquei com medo de uma pazada dar em

defunto lá embaixo na terra. A gente só fazia enterrar. E

falaram pra num preguntar o que era. Logo nós... os sete

homem se foram. Aliás, iam e vinham sempre. Se tocaiava ali

com a gente e aparecia mais motor. Vez em quando o pessoal

desenterrava uns dois ou três, acho que pra vender, só

pode.

Num desses dias de trampo, percebemos alguém se

aproximando. Pensamos que era os sete mal encarados mais os

três do Boiadeiro. Não. Era só um. Um homem alto, de

barbona branca até chegar por aqui no meio do peito, pele

escura, rosto sério com um par de olhinhos e cabelo da cor

da barba. Tossindo, Flaviano falou olha lá, será um dos

apóstolos? Eu ri, mas ri meio desconfiado que poderia ser

Page 19: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

19

mesmo naquele nosso fim e do mundo trazida a notícia por um

profeta. Ele chegou e disse Êh, a gente Êh. Fumo puxando

prosa. Ele disse que seu nome era Belquior e tinha achado o

barco dele sem motor parado lá na praia do outro lado,

quando viu um pedaço de camisa amarrado na rama de um

aturiá e decidiu seguir o igarapé até bater no nosso

Tapiri. Tu é doido, seu Apóstolo? Se espantou o Bixuga.

Pronto, ficou o apelido de Apóstolo. Vaitimbora que se os

homem te pega... avisou seu Lau. Mas o João Impinge estava

tão empolgado e eu também tamanho velho veja só que

começamos a perguntar das coisas que nem a Senhora faz com

a gente. De noite, foi ele quem começou a nos tirar a

resposta. Seu Apóstolo mostrou uma cara braba quando soube

como a gente vivia no Tapiri. Mais ainda quando soube de

mulher e criança que vivia presa na vila da fábrica.

Dormimos tarde essa noite. De manhã fez seu primeiro café

com aquele cheiro cheiroso. Hum. Disse que era erva-doce.

Que sempre carregava o próprio café, encomendado de um

senhor morador das bandas que reparte o Pará do Maranhão,

terra quilombola. Ispia que queria um daquele. A senhora já

provou café assim? Seu Apóstolo aparecia quando a gente

menos esperava. Acho que ele vinha umas quatro vezes por

ano. É sim. Eu falei que o Seu Apóstolo parecia Papai Noel.

Os outros me perguntaram quem é esse Papai Noel. Quando

disse quem era, disseram que eu era caduco, onde já alguém

espalhar brinquedo de graça pra criança? Aquilo não

existia. Perguntaram se eu vi. Disse que não. Taí. Nunca

vi. Uma vez Seu Apóstolo varou com a mulher dele, Dona

Estela. Uma senhora muito bonita mesmo com a idade madura

que já tinha. Os dois traziam mortadela pra gente, tabaco

do bom, isqueiro novo, uma vez trouxeram até feijão. Mas ah

que João Impinge num queimou a comida na primeira e única

vez que fizeram de cozinheiro. Ah credo, que o Valdo pegou

Impinge cozinhado e coçando o saco, cozinhando e coçando.

Ainda bem que o feijão queimou. Imagina a pimenta cominho

de onde vinha, disse o Bixuga. Rá! Seu Apóstolo dava cada

gaitada. Dona Estela duma panelada fez um negócio com

macarrão, com mais conserva, que juntamos rapidinho com um

jacaré desfiado pegado pelo Osmar. Humm. Que bóia boa

naquele dia, né João? Seu Apóstolo era um homem da lei do

céu. Aconselhava, dava força. Falava umas frases bonitas

que só a Senhora vendo. Não, não parecia ser pregação de

igreja. Dizia que a felicidade é quando a alma nela mesmo

se ajeita. A gente ouvia quieto, parado. Beto meu filho

parecia abobado naquela prosa. A liberdade vem de dentro,

não é questão de capricho, falava. Quando ele vinha, a

gente ficava mais leve. Mas Seu Apóstolo e Dona Estela se

iam deixando sempre saudade. Bixuga repetia, a felicidade é

quando a alma nela mesmo se ajeita e começou a fazer um

jiral ali numa canoa velha, haja cebolinha, chicória,

Page 20: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

20

ervacidreira, hortelãzinha, essas plantas, que ele cuidava,

cuidava.

ATO 5 – GANÂNCIA, GENTE, GANÂNCIA

Os sete cabra dos motores de repente ficaram passando

mais tempo com a gente. Iam pra vila e ali ficavam. Eu acho

que eles eram parente do Seu Boiadeiro, porque um deles

pedia benção, vê se pode uma peste daquela pedir bença o

desnaturado de tão ruim! Chamavam de tio. Tio Boiadeiro. E

foram ficando. Piorou até pra gente beber açaí. Antes até

que sobrava metade pra gente beber, a outra metade das

rasas era do seu Boiadeiro. Mas aí com a chegada dos sete,

nem isso. Quando se ficava com uma rasa era sorte, os

pestes botavam no barco da fábrica e iam vender longe. Acho

que pra Santana, não sei direito. Não era bom. Cortava

palmito, não tinha fruto, chegava safra, mal tinha fruto e

ainda tinha que dá assim ó pra aqueles sujeitos! Vivia

tomando açaí parau escondido. Mas tomava! Rá!

Numa época o palmital começou a diminuir na Ilha dos

Catitus. Pudera né? Tanto anos cortando. Desta feita,

começaram a levar uns da gente pra cortar em outro lugar,

na Ilha do Paraíba. Eu mesmo nunca fui. Osmar foi. João

Impinge foi. Mambira foi. Mambira? Mambira era um cara

esperto daqueles, era o melhor de ficar ali por cima dos

açaizeiros cortando lá por cima. O apelido era pra ser

guariba. Tem vez que passava uma tarde inteira sem pisar no

barro, vinha limpo. Sempre falava que avistava longe os

barcos passando pra lá e pra cá. E até um barco de ferro

dos grandes avistou. Olhava para os periquitos que passavam

por cima, e ralhava com eles, numa conversa que via bem ao

lado dele, mas não entendia o que passava. Depois paresque

que já entendia a prosa daquele finalzinho de sol. Mambira

e os periquitos a conversar ali naquela cor-de-céu

alaranjada, nem frio, nem quente, do jeito que a vista da

gente gostava. Mas olha, Mambira preferia ficar lá em riba.

Porque Dona? Algum de nós invadia a posse dos outros lá na

Ilha do Paraíba, forçado pelo Seu Boiadeiro. Coitados, só

iam cortar. Os sete e o Jacuraru mandavam bilhete pra

pessoa avisando que iam cortar palmito lá e que não era pra

ter reação. A Senhora imagina? Eu penso nos pai de família

enraivado de querer mandar fogo naqueles safados. Já pensou

se pega no João, no Osmar, no Mambira que num tem nada a

ver com a reza? Estão a mando. Pra senhora ver. Era muito o

abuso. Mandavam bilhete que iam roubar o palmito e tudo que

tinha na casa de valor. Só que um dia um senhor lá da

divisa com Breves não contou conversa e Pei!, mandou chumbo

neles. Morreu um pelo que eu soube depois, ao menos não

Page 21: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

21

nenhum de nós. Piratas? Era isso que chamavam eles? Eu ia

botar um apelido desse neles, mas aí iam me chamar de

caduco de novo.

É Dona Sílvia. Ganância. Botaram as mulheres pro

palmital. As crianças. Desembestou o seu Boiadeiro. Eu via

Mário e Mariana no suor dos dias sem poder fazer nada. O

fel me vinha na língua quando eu pegava um dos sete menos

um que morreu em Breves, acho que chamavam de Cutelo,

olhando pra minha neta com aqueles olhos de urubu, chega eu

reinava. Ele olhava pra ela toda, do fio de cabelo ao

dedinho do pé, quem nem uma envira rasgando devagar.

Valéria puxava ela pra perto e o Beto chegava junto. Por

mais que eles tivessem arma, mexer na alma de um pai pro

causa da filha não é bom negócio de mexer.

Pra num ter a confusão de macho precisado, Seu

Boiadeiro mandava trazer umas pequenas de Macapá, Santarém,

até de Belém. Juntou uma vez quatros moças para os seis

levar pro Tapiri. Glorinha, Dalva, Nicéia e Solange. Se

eram mulher da vida? Duas eu digo que sim, a Dalva e

Nicéia, mas Solange e a Glorinha eu duvidava que fosse, mas

sei lá. Só sei que duas se fartavam nos homem do seu

Boiadeiro, não pelo apego, mas pelo dinheiro que mostravam

pra elas. Escancaram uma boca de poucos dentes de gosto e

pediam pra gente botar música no rádio. Eu só fazia mudar a

estação xiiii-xiiii pra uma que só tocava lambada do

Caribe. Como eu sei?? Ih, Dona, as lambada de hoje vieram

de Caiena tu não sabe?. Ó Impinge, dança aí,

Ipithipithiiiiiii. Esse Impinge! Rá! E os homem dos motor

e as mulher ficavam ali na sacanagem. João Impinge até

tentou dá uma, mas a Dalva e o Fogoió lhe deram uma remada

de lá que teve que se esvaziar na mão mesmo. Rá! Nós tudo

vendo, Glorinha e Solange tudo vendo. Solange fazia mais na

calada da noite, no hu-hu do jacaré. Glorinha era arisca.

Acho que não era do ramo.

Não, Senhora, Glorinha era moça direita. Tava ali não

sei porque. Ela se deu com o Mambira. Até deixou o peste de

conversar com os periquitos. Mambira ficava ali amuado de

ver o Jacuraru levar ela pro meio do mato. Dizia ela que ia

pegar cacau para não ofender o Mambira. Êta homem bobo que

não entendia nada. Ele até me contou que a pequena veio da

cidade de Belém, fugida de outras confusão por lá por causa

dos irmãos. Como foi prometida de morte por conta dos manos

dela, pediu ajuda pra uma amiga, que disse a uma comadre,

que indicou pra uma vizinha, que a destinou para uma

madame, que ofereceu à mulher oficial de Seu Boiadeiro os

préstimos de Glorinha, ela ali toda durinha a provocar os

caboclos. Quando se espantou, a moça tava embarcando pra

nossa ilha, no jeito de pagar as dívidas de comida e roupa

que lhe davam. Esse Boiadeiro é o filho do cão!

Page 22: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

22

Os seis homem e o três capangas já não saiam do

Tapiri, tudo de pimba desembestada pras mulher. Quer dizer,

nem tanto o Espinho, que parecia mais dar surra nelas do

que se fartar. Teve dia que a gente ralhou com o Bixuga,

que falhava no comer da gente quando voltava da empreita

por causa que estava cuidando do olho roxo da Solange.

Nicéia e Dalva não falavam nada. Apanhavam. Ali quietas

ficavam. E deu a febre nelas, a febre certinha de poente.

Era maleita. Foi nisso que Glorinha morreu, abobando

palavra, palavra abobando. Ai mano, ai mãe, ai pai que a

gente vai quando andar de carrossel?? Olha o cavalinho azul

que roda que roda! Vai mano, joga a peteca lá, lá. Pai e

mãe tão vindo aí? Êêêêê... todo dia a falar mais baixo,

mais baixinho de bater os dentes do falso frio da febre.

Mambira ali no lado dela foi testemunha de seu riso

derradeiro, olhando pra ele com aquele olhão de gratidão,

parecia duas sementes de olho-de-boi viajantes da baía do

Vieira. Foi mufinando, mufinando. E morreu aquela flor.

Mambira, Osmar e seu Lau ajudaram no enterro. Depois dessa

morte, Seu Boiadeiro deu sumiço nas pequenas. Mambira

voltou a ficar lá em cima nos pé de açaí, chorando ao lado

dos periquitos, que retribuíam o choro do amigo. Era de

arrepiar a espinha aquela lamúria de fim de dia. Ó Dona,

deu moleza no corpo, posso me deitar? Agradecido Dona.

Mas eu esqueci de falar ontem, Dona, a Solange foi

levada por seu Apóstolo e Dona Estela. Como? Quando ele

veio nos visitar, encontrou a mulher ali na rede ardendo na

malária. Perguntou quem era ela? Dissemos Solange e só.

Como Boiadeiro tinha levado primeiro a Dalva e depois a

Nicéia para não atrapalhar algum curioso do bater de dentes

delas em dizer da morte da Glorinha, na vez da terceira seu

Apóstolo veio ver a gente, justo quando os seis tinham

caído na patifania de mais roubo. Perguntou De onde veio a

Solange? Ela mesmo disse no febril lascado, de Macapá, das

bandas que vinham do Oiapoque, acho que da estrada. Dona

Estela agasalhou a moça em duas redes mais um lençol da

gente, aprumaram-se na canoa e seguiram adiante pro rumo da

Ilha deles. Seu Apóstolo disse que tava na hora de alguém

tomar uma posição daquilo tudo. Meu filho Beto até quis ir

com ele, mas achou melhor não ir pra não me deixar só ali.

Por mim ele sumia e levava meus netos.

Dona Sílvia, o tempo depois do fato da Glorinha ficou

muito pior. Os machos não só cortavam palmito e enterravam

assalto de motor, já escondia também outros pertences dos

outros. Quando voltava pra fábrica, era o aumentar da

tristeza do pessoal que tava nos potes de palmito mais

magro, mais necessitado. Valéria e algumas outras senhoras

reclamavam já de falta de comida pra elas, pros meninos,

pros machos do palmital. Só que ali tava o Jacuraru

Page 23: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

23

mostrando o dente de ouro, a pulseira de ouro. Fogoió era

até discreto. Mas tava lá o Espinho com um relojão

daqueles, camisa pra dentro da calça, de botão, sapato

fino. Só não dava a coragem nele de botar chapelão, porque

aí o próprio Boiadeiro ia ficar enciumado de sua gabolice,

querendo ser mais patrão do que o patrão. Tanta pavulagem e

perdia tempo fazendo maldade nos outros, no Bixuga o alvo.

João Impinge tá rindo olha a cara do sacana. Porque Dona?

Ahhhhh, sei lá se conto. Conto Impinge? Conto. E num dia

desses de vap vap de palmito, veio o João Impinge numa cara

abestalhada, do tipo que viu briga de jabutis. O que foi

Impinge? Apontou pro rumo do rio Canhoto, veio de água que

passa uns cem passos de caminhada do Tapiri, onde a gente

costuma fazer tapagem para pescar. Lá o Bixuga costuma

lavar as louça, pois diz que a modo que a água é mais

limpa. Pois foi Impinge atrás de uma paca que tinha topado

pelo caminho do palmital. Olha se eu não digo pra ele ir

atrás da bichinha, tinha perdido a história! Impinge vem

devagar no silencioso dele viu de longe aquele movimento de

roupa lá longe, veio de butuca, desconfiado. Rá! Desenhou e

fez os gestos que quando eu entendi cai na gargalhada, eu e

mais o resto dos machos do palmital. Até os carapanãs

pararam pra escutar. Mostrou Impinge que o Bixuga tava

montando até o toco no Espinho, ajeitado numa sapopema de

mututi. Rá! Soube de onde vinha o teima-teima do Espinho

com o Bixuga! Rá! Impinge fez gesto que o Espinho suava!Rá!

Quando voltamos, tudo tava normal. Tudo no seu costume. O

Espinho tinha caído fora. Bixuga ali com cara desconfiada.

Disfarçada. Perguntamos E aí? Bixuga disse com a cara

avermelhada de bolotas: A comida foi feita do jeito. Osmar

disse Aposto que sim. Todos riram. Rá! Ó Dona Silvia, o

Impinge chorando de rir.

São essas coisa, Senhora, o que fazia a vida ter um

gosto mais de mel, menos de fel. A encarnação, a

brincadeira, ninguém pegava desavença, tudo na paz. Só não

teve paz pro seu Apóstolo. Não deviam ter levado a Solange.

Deviam era tá até hoje com a gente, contando prosa,

ensinando as palavras bonitas. A gente falava que ele era

um homem sabido. Só dizia assim Tudo que sei é que nada

sei. Seu Lau repetia, todo pavo. Dizia que a liberdade era

o nosso destino e depois a nossa desgraça, como pode? Ser

livre é ser marcado na vida? Ele dizia que é um fardo

pesado ser livre, era bom, era preciso ser livre, mas

também era carga decidir sozinho o caminho, sem ninguém pra

levar a canoa, sem um leme, era nós todos desembestados

nesse mundão, sem eira nem beira. Mambira lá de cima do

açaizeiro até esquecia um pouco da Glorinha. Até ria de

canto de boca. Voltava depois pros os periquitos dele.

Seu Apóstolo foi homem de fato. Depois do acontecido,

soubemos que ele foi até Macapá levar a Solange e dar

Page 24: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

24

denúncia da situação da moça largada a morrer de sezão na

terra do Boiadeiro. Quem contou? O Ramalho, lembra? Depois

do Belquior Apóstolo era o que mais dava as notícias. E nos

contou que Apóstolo tava marcado, ai que já tinha ido na

delegacia falar dos roubo de palmito em outras posses. Ai

que delatou a venda dos motores e da pirataria dos seis. Ai

que encontrou na rua passando o Boiadeiro no lado do

Fogoió, que esbarraram no seu ombro e disseram com aquele

ódio dos traidores pra ele, Sim, Tu tá queimado! Ai que

Apóstolo foi pra casa na enchente da maré das seis, levando

rancho da venda do camarão naquela safra de agosto. Ai.

Ai que Belquior tava na janta com a Estela, mais

netinha Lucinha, mais a Solange que tinham se afeiçoado e

tido como filha mais velha. Ai que os cabras e o Fogoió

chegaram de mansinho, combóias se esgueirando pela lama da

maré vazante, por meio da anhinga fedida de terra, nem os

tralhotos tinham coragem de chegar perto naquele deslizar

da folha de mamorana no meio para não fazer o barulho e

assim espantar os que moravam naquela casa de Deus. Ai que

os seis subiram como onças cheio das fomes, esgalamidos no

dentar das pacas, boca babando na carne dos jacarés na

brecha que acharam no couro. Malditos. Ai que chutaram a

porta velha de madeira, entrando pelo salão da casa,

batendo em todas as paredes, o oco, o oco, oco, cai o

motorádio, cai o retrato de sua mãe, Belquior, ai que caiu

de cara pro chão, graças por ela não ver o que se passaria.

No que se espantou Apóstolo, não deu nem tempo de pegar a

cartucheira, já estavam todos os braços maus por cima de

sua goela, num suor de gente ruim a se engatar no seu

Belquior. Pega perna. Pega pé. Pega braço. Segura cabeça.

Ai que as mulheres correram pro mato porque seu Apóstolo

pediu naquele derradeiro grito Corre mal saído de sua goela

esprimida! Ai que ali mesmo bateram nele, judiaram mesmo,

deram um tiro no queixo dele, lá vai a boca de lado de dor,

ai que deram nele com o cabo de um machado, sangraram a

cabeça dele até o homem desmaiar. Ai que deram mais um tiro

por dentro da boca dele. O sangue deixou Fogoió porre

daquele cheiro, parecia que tinha cheirado tóxico. Amalucou

ou já era assim como vai sabê? Resolveu pegar gasolina, se

deu o trabalho de ir no porto do homem procurar e achar o

petróleo, empapou a barba de seu Apóstolo ali no morre-num-

morre. Ai, ai, ai, tacaram fogo naquela cabeleira, naquela

barbona, numa arribação de fogaréu que botou a casa toda a

arder, começou pelo calendário de Jesus Cristo e de Nossa

Senhora ali no testemunho dos mártires. já não era mais o

corpo do Belquior, mas um bicho judiado por aqueles pestes.

Não isso não. Nem caça morta tem aquele fim sem respeito.

Ai.

E as mulheres? Fizeram o que seu Apóstolo pediu e

sumiram por entre o mato, no pique que podia, caíram numa

Page 25: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

25

ribanceira até a lama quase afogar suas caras. A pequena

Lucinha chorava, Solange e Dona Estela tapavam a boca da

menina e vejam o que é a precisão: arrumaram um jeito e

ficaram deitadas por vários dias ali por dentro de um

burutizeiro junto com as aranhas, as lacraias e as cobras

cipós, graças ao bom Deus era só cobra cipó. Quietas

enxergavam passar de vez em quando um homem por ali

procurando por elas, as vezes viam que era um dos seis, mas

nunca o Fogoió, ó bom Deus graças! Se fosse esse, ia de

bater o olho nelas, sujeito de pacto do mal que a tudo via.

Acho que foi dar sumiço no corpo de Seu Apóstolo. Ai, ai,

ai.

Ramalho nos contou tudo depressa, Dona, sem disse-me-

disse, foi matando a gente com as palavras. Quanta

judiação! Achou as três balançando a camisa pro barco dele,

no medonho jeito de contar com a sorte que podia ser gente

não do Boiadeiro. E se fosse o Jacuraru? Ou Espinho? E se

fosse um dos seis? Não foi, era Ramalho. Contaram o fato

pra ele, chorosas, a menina se tremendo, Solange quieta a

contar com a voz tremida. Como elas sabiam do jeito que

Apóstolo morreu? Dona Estela ouviu de longe os gritos,

parava no correr, olhava pra trás, escutava naquelas braças

corridas Queima a Barba Dele! Queima a Barba Dele!! Ai que

queria voltar, morrer e matar por seu amor, ali espocado a

nuca dos chumbos, queimado na covardia. Ali passou num

repente aquela lembrança do jovem Belquior catando a flor

do jambeiro para lhe colocar na beira da orelha presa

naquele cabelo liso de índia moça dos olhinhos miúdos e

cabelo dos graúdos, ali pegou a mão dela pra passear por

aquele caminho de flor avermelhado, parecia Estela a rainha

do mundo e era. Ali ficou sua fotografia pro resto dos

dias. Disse ela a Ramalho isso, sem mais a vergonha das

coisas do amor. Agora, só homenagem.

E nisso, Senhora Sílvia, nós adoecemos todos por

dentro. Foi um quebranto geral, até o Impinge ficou sem

comer ou fazer perturbação, todo mundo mofinou. Eu lhe

digo, Dona, que a vida ficou com gosto de lima daquelas bem

sem graça. Ali eu comecei a adoecer. Me começou os

beribéri. Uns tempos depois, a fraqueza chegou nas pernas,

chegou nos braços, só fiquei no Tapiri. Nem dava pra chegar

um e dizer Ei Macho, levanta! Tudo mundo tava baquiado.

Nunca vi o jiral do Bixuga cheio de mato como ficou depois

disso, nem tajá, nem as cebolinha. Tudo acabou. Desde

agosto foi essa terminação. Calado acordava, calado a gente

dormia. Eu sei, Dona, eu sei, a gente devia de ter força

pra reação, mas o Boiadeiro acertou em cheio. Passamos

meses nesse medo, palmito, palmito. Lá na fábrica, as

mulher tudo humilhada naquele abrir de pote e fechar de

pote sem fim, as crianças sem futuro, a salmoura a ferver a

derreter a vida. Nem o Ramalho apareceu mais, acho que por

Page 26: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

26

desconfiança de morrer, eu não condeno o amigo. Eu sem

poder mais nada do doente que estava, ali fiquei largado no

Tapiri, nem ia mais pra fábrica, acho que tavam me matando

aos poucos. O pessoal me carregava no caso das situações,

melhor do que cagar todo o Tapiri. Um dia Osmar me levava,

outro dia, Seu Lau, outro dia o Bixuga, O Beto ali sempre

fiel meu filho também no trabalho de me depositar naquele

buritizeiro de bubuia. Lá ficava e me lavava. Saliente me

reparava. Foi quando o Beto sumiu.

O que aconteceu Dona? Ah que a gente foi apontado de

tudo quanto é jeito pelos seis, pelo Fogoió, cadê o Beto?

Cadê o Beto? Pior que não sabia. Eu via ele sempre olhar o

mato ali quieto, butucando e de momento fiuuuuu. Seu

Boiadeiro se destacou de lá pra tomar satisfação. Ficamo

sem o rancho que já não tinha. Aí a fome apertou. Mas quer

saber a senhora, demos um jeito assim mesmo. Discunforme.

Valdo zagaiava. Osmar caçava. Mambira mariscava. Seu Lau

cozinhava junto com Bixuga. Xarles preparava os chás pras

caganeras. Todo mundo se virava. Até eu de cartucheira lá

da minha rede matei umas e outras galinhas d´água que

ciscavam por ali. Era garça. Era mutum. Tudo ave por que eu

só mirava pra cima. Rá! Saliente vinha com bicho do tamanho

da brabeza dele, um tijubina, um camaleão, um filhote de

jacaré-tinga. a gente cozinhava. João Impinge deu de pegar

poraquê, já tinha virado macho mesmo e senhor de sua

panemice, cacetava os bichos sem medo nenhum. Nós comia.

Breu não faltava para continuar o fogo. Nem coragem. E isso

foi crescendo na gente, começou pequeno e foi aumentando

tal o rasgo da envira preta. E veio a lembrança do seu

Apóstolo. E a lembrança da Glorinha. E do Hilário. E Dona

Estela. E Valdo olhava pro braço dele. E Mambira se

convencia da raiva. E Seu Lau do dedo dele. E Osmar

lembrava da Jatuarana. E Bixuga se revoltava. E Xarles

rezava. E nós com a pergunta sobre o Beto, o que de repente

sem combinação geral ficou a ter a resposta na mente que

podia ter ele podido buscar ajuda. Eu não tava caducando

sozinho, começou a nascer esperança!!

ATO 6 – NÓS CHEGAMOS TARDE

Dona Sílvia, quando vocês vieram rapiscobra todo mundo

saiu da rede apressado naquela barulheira de motor de

avião. Eu não sei se era trovão ou se era o fim do mundo!

No meio daquele céu cinzento de maio veio umas pázona do

nada! Não era avião? Era o quê? Licópi? Poisé, esse bichão

aí jogou vento pra tudo quanto é lado, eita a pororoca dos

céus eu gritei! E foi o corre-corre que nem um bando de

catitu perdido do chefe, Rá! João Impinge deu com a cabeça

Page 27: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

27

numa paxiubeira, a mesma que prendeu ele lá pro poraquê,

não gosta dele mesmo Rá! Saliente se mandou pra banda da

fábrica.

Mas olha daqui eu vi o Valdo, o Osmar, o Mambira, o

Bixuga e o Seu Lau não saírem de susto, cada um pegou o

terçado e se espalharam na ilha. De lá do Tapiri eu vi,

deitado naquela minha rede velha fedida de mijo. Me

imaginei indo, e peguei o terçado ao menos pra amolar.

Sabia o que era, queria ir com eles. O que Dona Sílvia? Me

diz como o pessoal do Boiadeiro reagiu? Quê?? Só de

cueca??!! Saco de dinheiro?? Boiadeiro ofereceu?? E vocês??

Toma-te!! Cadeia! Queria ter visto a humilhação? E os

outros? Quantos morreram? Só dois dos seis? Foi tiro? Não?

Terçadada? Soltaram o Valdo? Não sabe? Ele é boa pessoa.

Não merece. E o Jacuraru? Não acharam? Vocês viram o

Mambira? Não? Hummmm... entendi.

E o Espinho? Rá! Como é? Vocês pegaram ele pegando uma

surra do Osmar e do Bixuga. Com a chapa do terçado? Pelado?

Vixe!

E o Fogoió? Não entendi. E o Fogoió? O quê? Atrás do

Beto meu filho?? Queéisso!! Ele não tava com vocês?? Meu

Deus! Como foi isso?? Ele tá bem?? Tá bem?? Meu Deus que

homem do tinhoso! Agarrados no mesmo facão, quem sangrou?

Os dois? Ai que Beto morreu? Não? E quem acudiu ele?

Arrastando pro lado dele? Cobra, é uma cobra este peste! O

Seu Lau chegou? A Valéria? Na hora!! Cortaram a cabeça do

Fogoió? Fiuuuuuuuuuuuuu... a senhora vai fazer o quê com

eles? Não sabe? Hum-hum.

Como tão meus netos? Quietos? Não falam nada.

Assustados? Ô, meu Deus! Vocês chegaram tarde...

ATO 7 – O QUE APRENDI COM ELES

Dona, é assim, a senhora me leva pra ver meu filho,

minha nora e meus netos e eu volto pro meu Tapiri, tá?

Cadeira de roda, coisa bacana... mas não acostumo. Por que

voltar? Sei lá, ficar com minhas coisas, em paz agora,

lembrar das pessoas, de Antonieta, quietar com minhas

caduquices naquele silêncio da mata que enche e vaza. Pra

mim basta o barulho do quiquió. Só vou dar trabalho pra

onde for. Chega. Sim, Dona Sílvia, pode ficar com o

Saliente... O Impinge? Sei lá, onde ele ficar tá bom pra

ele. Ele é um cabra que tem felicidade. Não é isso que o

seu Apóstolo falava? A felicidade é quando a alma nela

mesmo se ajeita. Esse tem jeito próprio do querer bem das

coisas. Onde é aquilo? Macapá? Aquilo é um homem? Quem é

aquele homem lá longe no meio do rio senhora?? É santo?? É

São José?? Um Santo no meio das águas!1 Não tô caduco! Não

Tô caduco! Acena também Dona Sílvia!

Page 28: NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/5322244.pdf laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

28

João Impinge, acena!!

Olha só a boca sem dente escancarada dele!! Rá!

Ispia que Céu Azul Impinge! Má Rapá que Sol de Deus!

Quié Impinge? Larga meu braço! Quié macho?

João? Vai falar João? João? Vai Homi!

NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE

INVERNO...