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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Graduação em Psicologia Nadya Miranda Santos MULHERES NEGRAS DE CLASSE MÉDIA E RACISMO: Impactos e consequências sob a ótica da psicanálise Belo Horizonte 2021 1

Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAISGraduação em Psicologia

Nadya Miranda Santos

MULHERES NEGRAS DE CLASSE MÉDIA E RACISMO:Impactos e consequências sob a ótica da psicanálise

Belo Horizonte

20211

Page 2: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

Nadya Miranda Santos

MULHERES NEGRAS DE CLASSE MÉDIA E RACISMO:Impactos e consequências sob a ótica da psicanálise

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

curso de graduação em Psicologia da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais como

requisito para obtenção do título de bacharelado.

Orientador: João Leite Ferreira Neto

Belo Horizonte

2021

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Nadya Miranda Santos

MULHERES NEGRAS DE CLASSE MÉDIA E RACISMO:Impactos e consequências sob a ótica da psicanálise

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

curso de graduação em Psicologia da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais como

requisito para obtenção do título de bacharelado.

____________________________________________________________

Prof. Dr. João Leite Ferreira Neto - PUC Minas (Orientador)

____________________________________________________________

Prof. Dra. Maria Auxiliadora da Silva - PUC Minas (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 08 de novembro de 2021.

Page 4: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. João Leite Ferreira Neto, pelos ensinamentos e

por me acompanhar com maestria nessa jornada.

A minha leitora, Prof. Dra. Maria Auxiliadora da Silva, pela disponibilidade e atenção

dedicada.

As entrevistadas nesta pesquisa, por disponibilizarem suas histórias de vida, o que

permitiu a realização deste trabalho.

A minha família, pelo apoio e amor incondicional.

Ao meu namorado, pelo companheirismo e paciência nos meus dias de ausência.

A todas as mulheres negras que lutaram antes de mim e tornaram possível que eu

chegasse aqui.

Por fim, agradeço a mim mesma pela coragem para explorar um tema que tanto me

sensibiliza e por não desistir diante do cansaço.

Page 5: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

“Pode me atirar palavras afiadas,dilacerar-me com seu olhar,

Você pode me matar em nome do ódio,Mas ainda assim, como o ar,

eu vou me levantar.

[...]

Da humilhação imposta pela corEu me levanto

De um passado enraizado na dorEu me levanto

Sou um oceano negro, profundo na fé,Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidadeEu me levanto

Em direção a um novo dia de intensa claridadeEu me levanto

Trazendo comigo o dom de meus antepassados,Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.

E assim, eu me levantoEu me levanto

Eu me levanto.”

(MAYA ANGELOU, Ainda assim eu me levanto, 1978)

Page 6: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

RESUMO

A presente pesquisa objetiva o estudo do racismo no cotidiano de mulheresnegras de classe média, assim como seus efeitos e consequências pela óticada psicanálise. A metodologia baseou-se na abordagem qualitativa e quatromulheres negras de classe média foram entrevistadas por meio da entrevistanarrativa. Os dados obtidos com as entrevistas foram submetidos à análisetemática de conteúdo e confrontados com o referencial teórico investigado,com o objetivo de compreender a construção das relações raciais no Brasil,como o racismo se manifesta no cotidiano de mulheres negras de classemédia e os impactos decorrentes desse, assim como a interpretação dapsicanálise sobre o tema. Atingidos esses objetivos, foi possível constatar pormeio das entrevistas que o racismo se expressa através da ridicularização dosfenótipos negros e da associação dos mesmos a estereotipos negativos, assimcomo do não reconhecimento do sujeito em espaços mais elevados nahierarquia social e da hipersexualização do corpo negro. Em relação àsconsequências, foi identificada a busca por embranquecimento através daalteração corporal por meios mecânicos, o hiper esforço como forma decompensação e o estabelecimento do afeto como trauma.

Palavras-chave: Racismo; Psicanálise; Mulheres negras de classe média;Relações raciais no Brasil.

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ABSTRACTThis study aims to study racism in the daily lives of middle-class black women, as

well as its effects and consequences from the perspective of psychoanalysis. The

methodology was based on the qualitative approach and interviewed four

middle-class black women through a narrative interview. The data obtained from the

interviews were subjected to thematic content analysis and confronted with the

investigated theoretical framework, in order to understand the construction of racial

relations in Brazil, how racism manifests itself in the daily life of black and

middle-class women and the impacts resulting from this, as well as the interpretation

of psychoanalysis on the subject. Having achieved these goals, it was possible to

see through the interviews that racism is expressed through the ridicule of black

phenotypes and their association with negative stereotypes, the non-recognition of

the subject in higher spaces in the social hierarchy and the hypersexualization of her

body. Regarding the consequences, it was identified the search for whitening through

body alteration by mechanical means, hyper effort as a form of compensation and the

establishment of affection as trauma.

Keywords: Racism; Psychoanalysis; Middle-class black women; Race relations inBrazil.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 12

2 RACISMO, INTERSECCIONALIDADE E PSICANÁLISE 14

3 METODOLOGIA 19

4 ANÁLISE DE DADOS 214.1 Racismo no cotidiano de mulheres negras de classe média 214.2 A dupla discriminação 244.3 O afeto como trauma, a busca pelo embranquecimento e ohiper esforço 28

5 CONCLUSÃO 33

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 36

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como principal objetivo levantar debates e reflexões acerca

da vivência das mulheres negras de classe média, pela ótica da psicanálise. Visa

compreender a construção histórica das relações étnicas no Brasil articulando-a aos

trabalhos psicanalíticos a respeito dos fatores de raça e gênero irá permitir uma

análise sobre como o racismo se manifesta no cotidiano de mulheres negras de

classe média, além de contribuir para um maior entendimento sobre os impactos da

falta de representatividade negra nesses espaços.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada pelo

IBGE em 2019, 56,2% da população brasileira pode ser considerada negra, se

considerarmos a soma de pessoas pretas e pardas. O informativo Desigualdades

Sociais por Cor ou Raça no Brasil (2018) também publicado pelo IBGE apontou pela

primeira vez a participação majoritária dos negros e negras no ensino superior

público, representando 50,3% das matriculas. O estabelecimento deste novo cenário

social, aponta para a necessidade de se olhar de forma mais atenta para essa

parcela da população que, lutando contra as estatísticas, têm conseguido

transformar sua própria realidade e alcançar novos horizontes.

Nas últimas décadas a produção científica voltada para este público tem crescido. O

fortalecimento dos movimentos sociais identitários contribuem para isso, trazendo

novas reflexões e chamando a atenção para a importância de se debater sobre o

tema. Contudo, na grande maioria dessas produções a pobreza é escolhida como

um dos eixos centrais, limitando grandemente o entendimento e análise sobre a

vivência das demais classes sociais no que diz respeito ao racismo e à participação

social.

Para ilustrar essa questão, foi feita uma busca no portal Capes utilizando diferentes

descritores. A busca por racismo e pobreza resultou em 1.949 resultados, enquanto

a busca por racismo e classe média resultou somente em 764, número que

representa uma produção 60% menor em comparação com o primeiro tema. Ainda

assim, a grande maioria dos artigos encontrados com o descritor de classe média

dissertam sobre o racismo sofrido por pessoas negras pobres em relação a uma

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classe média majoritariamente branca. Percebe-se portanto, um baixo número de

artigos que tratam sobre a experiência de negros e negras de classe média. Logo,

no que diz respeito à justificativa científica, pode-se identificar uma lacuna em

relação à produção de materiais sobre este tema e a presente pesquisa surge como

uma forma de contribuir para a redução deste cenário.

Para além da relevância científica do tema, é possível identificar a importância

social. Nos últimos três anos várias tragédias ao redor do mundo, como o assasinato

do afro-americano George Floyd, do brasileiro João Alberto da Silveira Freitas e da

socióloga e vereadora Marielle Franco mobilizaram e sensibilizaram o movimento

anti racista, relembrando mais uma vez a urgência da criação de uma nova

mentalidade social, onde a raça deixe de ser um fator de risco para a vida. Nesse

sentido, a pesquisa visa contribuir para o estabelecimento de reflexões mais

profundas que concorram para promover transformações pessoais e culturais, a

partir do conhecimento do relato de mulheres negras sobre sua vivência e a análise

dos impactos do racismo sob a ótica da psicanálise.

Por fim, a presente pesquisa será norteada também pela justificativa pessoal da

autora que, como mulher negra de classe média, se viu em muitos momentos

provocada por situações e acontecimentos que a impeliram a buscar mais sobre o

tema, desejando contribuir ativamente para uma análise sobre o impacto das

relações raciais sobre ela e sobre a sociedade que a cerca.

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2 RACISMO, INTERSECCIONALIDADE E PSICANÁLISE

Historicamente falando, desde o regime escravocrata, o negro teve o seu lugar

demarcado e delimitado na sociedade. Ao serem retirados da Africa, os negros e

negras escravizadas deixam para trás sua cultura, sua religião e toda sua

concepção de sociedade construida até ali. Com a sua chegada no Brasil, são

obrigados a aceitar uma nova religião e cultura, ocasionando no apagamento e

demonização dos seus costumes e de sua experiência constituinte enquanto sujeito.

A partir da escravização o homem branco define raça e passa a organizar a

sociedade de forma a diminuir e descredibilizar tudo aquilo que difere dos seus

ideais, da sua cultura e de si mesmo. Ser negro e negra em uma sociedade

estruturalmente desenhada pela e para a branquitude implica em um apagamento

histórico e cultural de sua identidade e de tudo aquilo que remete as suas raízes.

(SOUZA, 1983, p.18)

É justamente neste cenário que estrutura-se o racismo, sendo este uma ferramenta

de internalização da superioridade do colonizador pelos colonizados. Gonzalez

(1988), defende a existência de uma dupla face no racismo. A autora denomina a

primeira face como “racismo aberto”, característica de países de origem

anglo-saxonica, germânica ou holandesa. Essa tática atua de forma declarada e

diretiva através da segregação de povos não-brancos. Em contrapartida, nos países

de origem latina, predomina-se um racismo de caráter mais sutil e disfarçado, para o

qual a autora cunha o termo “racismo por denegação”. Nesse último prevalecem os

discursos de miscigenação e o mito da democracia racial, como uma eficaz

estratégia alienatória. Ainda que estruturadas de formas distintas, ambas as faces

possuem o mesmo objetivo, a opressão e exploração de povos não brancos,

partindo de uma hierarquização racial.

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Importante também ressaltar que os privilégios da branquitude vão muito além das

concepções sociais. Esses agem diretamente sobre o acesso de bens materiais,

essenciais para a manutenção da vida em uma sociedade capitalista. Ao chegarem

ao Brasil, os imigrantes europeus automaticamente passaram a ter direito sobre

terras e valores financeiros, permitindo que aqui se estruturassem com maior

conforto e facilidade. Em contrapartida a isso, na abolição da escravização dos

povos africanos nada lhes foi ofertado além do direito à liberdade. Dessa forma,

desempregados e sem fonte de renda e sustento, foi possível mantê-los em uma

posição de submissão e dependência frente aos povos brancos. Esse recorte mostra

claramente o desprezo enfrentado pelos negros e negras no Brasil, que desde o

principio tiveram sua humanidade negada. (OLIVEIRA, 2017, p.31)

Os reflexos dessa construção histórica que se baseou no racismo e na

desigualdade, podem ser vistos em nossa sociedade de forma clara ainda nos dias

atuais, conforme podemos verificar no trecho abaixo do informativo “Desigualdade

Social por Cor ou Raça no Brasil” publicado pelo IBGE em 2018:Assim como no total da população brasileira, as pessoas de cor ouraça preta ou parda constituem, também, a maior parte da força detrabalho no País. Em 2018, tal contingente correspondeu a 57,7milhões de pessoas, ou seja, 25,2% a mais do que a população decor ou raça branca na força de trabalho, que totalizava 46,1 milhões.Entretanto, em relação à população desocupada e à populaçãosubutilizada, que inclui, além dos desocupados, os subocupados e aforça de trabalho potencial, as pessoas pretas ou pardas sãosubstancialmente mais representadas – apesar de serem pouco maisda metade da força de trabalho (54,9%), elas formavam cerca de ⅔dos desocupados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%) na força detrabalho em 2018. (IBGE, 2018, p. 2)

Essa desigualdade e dívida social se torna mais alarmante quando analisamos

exclusivamente mulheres negras:As razões de rendimentos combinadas por cor ou raça e sexomostram diferentes resultados comparativos. Destaca-se a vantagemdos homens brancos sobre os demais grupos populacionais, sendoque a maior distância de rendimentos ocorre quando comparados àsmulheres pretas ou pardas, que recebem menos da metade do queos homens brancos auferem (44,4%). (IBGE, 2018, p. 3)

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Ainda que inseridos em um cenário composto por diversas desigualdades e

barreiras, os negros e negras tem sido capazes de ascender economicamente,

mesmo que de forma vagarosa, e passam a ocupar locais nunca antes ocupados.

Em 2009 Barack Obama se tornou o primeiro presidente negro dos Estados Unidos

das Américas. Shonda Rhimes se tornou a afro-americana mais bem paga da TV

Americana. Machado de Assis foi um dos fundadores e primeiro presidente da

Academia Brasileira de Letras. Milton Nascimento é o único geógrafo

latino-americano a ser homenageado com o prêmio Vautrin Lud, considerado o

Nobel da Geografia. Angela Davis é considerada uma das principais mulheres

negras na luta pelos direitos civis na década de 1960 - 1970 e em 1977-1078

recebeu o prêmio Lênin da Paz. Esses são apenas alguns dos inúmeros casos de

pessoas negras que, através de uma história de luta e resistência conseguiram

“nadar contra a maré” e, além de trazerem contribuições de grande valia a

sociedade, atingiram a ascensão socioeconômica.

Contudo, na busca pela ascensão, essas mesmas pessoas se vêem diante de um

conflito. Em uma sociedade em que o negro é subjulgado e somente o branco é

valorizado, para atingir a ascensão, são pressionados a abdicar de sua cultura e

passam a buscar o embranquecimento.A inexistência de barreiras de cor e de segregação racial – baluartesda democracia racial – associada à ideologia do embranquecimento,resultava num crescente desestímulo à solidariedade do negro quepercebia seu grupo de origem como referência negativa, lugar deonde teria que escapar para realizar, individualmente, as expectativasde mobilidade vertical ascendente (...) A história da ascensão socialdo negro brasileiro é assim a historia de suas assimilação aospadrões brancos de relações sociais. É a história da submissãoideológica de um estoque racial em presença de outro que se lhe fazhegemônico. É a história de uma identidade renunciada, em atençãoas circunstancias que estipulam o preço do reconhecimento ao negrocom base na intensidade de sua negação. (SOUZA, 1983, p. 22-23)

Para além dos fatores de classe, existem também opressões que irão atingir

exclusivamente às mulheres, demonstrando que a vivência do racismo será

experienciada de maneiras distintas entre homens e mulheres negras. Passamos a

trabalhar então o conceito de “interseccionalidade”, criado por Crenshaw (2002).

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Os exemplos mais conhecidos de opressão interseccional sãogeralmente os mais trágicos: a violência contra as mulheres baseadana raça ou na etnia. Essa violência pode ser concebida como umasubordinação interseccional intencional, já que o racismo e o sexismomanifestados em tais violações refletem um enquadramento racial ouétnico das mulheres, a fim de concretizar uma violência explícita degênero. Tragédias recentes na Bósnia, em Ruanda, no Burundi e emKosovo ilustram tristemente o fato de que a longa história de violênciaétnica contra as mulheres não está relegada a um passado distante.(CRENSHAW, 2002, p. 178)

Essa subordinação interseccional, caracterizada por uma dupla discriminação (raça

e genêro), se torna então a produtora de uma vulnerabilidade marcada por múltiplas

formas de opressão. Dentre elas, destaca-se (1) estupros motivados por questões

raciais, (2) estereotipos sexuais racializados de genêro, (3) tendência de

descredibilização das suas denúncias pela justiça, (4) subordinação política, (5, 6 e

7) dificuldade de se inserir no mercado de trabalho devido a uma discriminação

composta, (8) menos oportunidades de estudo e maior evasão escolar e por fim (9)

subordinação interseccional estrutural, na qual a politica e as bases da desigualdade

se encontram, criando uma mescla de opressões em determinadas circunstâncias.

(CRENSHAW, 2002, p. 178)

As opressões vivenciadas devido a essa interseccionalidade pelas mulheres negras

de classe média, deixa uma série de marcas no seu psiquismo. Como primeira

consequência direta das vivências em uma estrutura hierarquizada racialmente

tem-se os impactos sob o Ideal do Ego. A título de contextualização, faz-se

necessária uma breve conceituação.

Essa é a instância responsável por vincular a Lei e à Ordem, estruturando o sujeito

psíquico a partir do domínio simbólico. Para a mulher negra, e também para o

homem negro, o seu Ideal do ego será branco. O modelo escolhido a ser atingido é,

justamente, a imagem do seu colonizador. (SOUZA, 1983, p. 34)O ideal de Ego é um produto da decantação destas experiências. Produtoformado a partir de imagens e palavras, representações e afetos quecirculam incessantemente entre a criança e o adulto, entre o sujeito e acultura. Sua função, no caso ideal, é a de favorecer o surgimento de 4 umaidentidade do sujeito, compatível com o investimento erótico de seu corpo ede seu pensamento, via indispensável a sua relação harmoniosa com osoutros e com o mundo. Ao sujeito negro, esta possibilidade é, em grandeparte, sonegada. O modelo de ideal de Ego que lhe é oferecido em troca daantiga aspiração narcísico-imaginária não é um modelo humano deexistência psíquica concreta, histórica e, consequentemente, realizável ouatingível. O modelo de identificação normativo estruturante com o qual elese defronta é o de um fetiche: o fetiche do branco, da brancura. (COSTA,1984, p.3)

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A primeira estratégia para atingir esse objetivo se torna, então, a negação da sua

negritude, de forma familiar, física e cultural. Além da negação, outra tática utilizada

pelo Ego é a busca pela excelência em uma aplicação de esforços constantes de

forma a compensar o “defeito” e ser aceito. Ainda assim, jamais terá esse Ideal do

Ego atingido, já que ser branco lhe é impossível. (SOUZA, 1983, p. 34) Essa

descoberta causará uma melancolia ou mais uma vez um redobramento de esforços

em busca de novas saídas. Tudo isso nos mostra que o racismo opera tão

fortemente no sujeito que é capaz de alterar e estruturar consequências até mesmo

em seu inconsciente e nas instâncias presentes neste, definindo a branquitude como

ponto de partida da sua subjetividade.

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3 METODOLOGIA

Para o presente trabalho foi selecionada a entrevista narrativa como técnica de

pesquisa. Essa ferramenta está baseada nas orientações de Jovchelovitch e Bauer

(2002) e tem como intuito estudar as experiências formativas dos fenômenos

pesquisados, além de permitir a obtenção de um relato mais livre de influências, por

se tratar de uma forma de pesquisa qualitativa não estruturada.

Nesse tipo de entrevista, a pessoa entrevistada relata a respeito de alguma história

que seja relevante em sua vida e em seu contexto social, a partir de um estímulo

criado pelo entrevistador. Esse processo, tão intrínseco à natureza humana, permitiu

a compreensão e reconstrução dos fenômenos sociais estudados na presente

pesquisa, além de promover também efeitos terapêuticos, conforme relatado por

Jovchelovitch e Bauer (2002):

Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade decontar; contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana e,independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é umacapacidade universal. Através da narrativa, as pessoas lembram o queaconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveisexplicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos queconstroem a vida individual e social. Contar histórias implica estadosintencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos esentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. (JOVCHELOVITCH,S.; BAUER, M. W.; 2002, p. 91)

Segundo Rosenthal (2014), o processo de entrevista narrativa é constituído por duas

etapas. A primeira delas acontece através de uma grande narrativa autônoma, onde

a pesquisadora não interferiu no relato. A solicitação se deu da seguinte forma:

“Estou interessada na história de vida de mulheres negras de classe média. Você

pode relatar as experiências de discriminação racial que se lembrar, utilizando o

tempo que julgar necessário. No início eu não vou fazer nenhuma interrupção,

apenas tomarei notas e mais tarde, caso seja necessário, retornarei com alguns

temas.”

Passado este primeiro momento, foi iniciada a segunda fase, na qual a pesquisadora

retomou com temas mais relevantes que podem ter sido abordados de forma

superficial e/ou para esclarecer possíveis dúvidas que surgiram durante a grande

narrativa.

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Em relação aos critérios de seleção, foram entrevistadas ao todo 4 mulheres negras

de idades variadas, de classe média (seguindo os critérios do IBGE) que estão

cursando ou já finalizaram algum curso superior. As entrevistas ocorreram de forma

online, devido ao cenário da pandemia da COVID-19 no país. Em respeito a

privacidade das entrevistadas, os nomes reais foram ocultados, assim, serão

utilizados pseudônimos para a identificação dos depoimentos, conforme quadro

identificativo abaixo:

Pseudônimo Idade Curso Superior Status civil

Dandara 26 Serviço Social Solteira

Ruth 21 Psicologia Solteira

Antonieta 24 Engenharia Industrial e

Madeireira

Solteira

Neusa 25 Engenharia Hídrica Em um relacionamento

Todas as entrevistas foram gravadas, mediante permissão das entrevistadas e

assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Devido a um problema

técnico no computador da pesquisadora, duas dessas gravações foram perdidas.

Dessa forma, para a explicitação dos conteúdos dessas entrevistas serão utilizadas

citações indiretas, de acordo com o registro feito pela pesquisadora após a coleta

dos dados.

O trabalho analítico dos relatos coletados foi feito através da análise temática.

Sendo assim, a pesquisadora identificou três categorias que aparecem como

conteúdos relevantes nas entrevistas realizadas. O recorte dos trechos e de citações

diretas e indiretas dos dados coletados, assim como seu agrupamento em três

unidades temáticas, permitirá a formação de proposições e a criação de hipóteses

acerca dos conteúdos, tendo como base os referenciais teóricos da pesquisa.

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4 ANÁLISE DE DADOSEste capítulo investigará como o racismo se expressa no cotidiano de mulheres

negras de classe média, assim como as consequências decorrentes deste pela ótica

da psicanálise. Para isso, serão utilizados os relatos das entrevistadas e a

articulação dos mesmos ao referencial teórico, de forma a analisar seu conteúdo.

Com o intuito de facilitar a compreensão do conteúdo, o capítulo foi dividido em três

subcategorias.

4.1 O racismo no cotidiano de mulheres negras de classe média

A primeira categoria investiga como o racismo se expressa no cotidiano de mulheres

negras de classe média. O primeiro ponto importante de se ressaltar é que a

desvalorização do fenótipo negro foi observada no relato de todas as entrevistadas.

“Na infância era muito complicada a questão do cabelo né, principalmenteporque eu tenho o cabelo crespo. Na época era eu e mais uma menina sóna sala que tinha cabelo crespo, inclusive eu e ela alisávamos o cabelo.Depois de um certo tempo, na época eu não sabia que isso era um tipo depreconceito, mas a forma que a gente era tratada na escola, os professoresnão sabiam lidar com isso, então na hora de fazer apresentação porexemplo às vezes o professor queria que o cabelo estivesse de um jeito X,mas o nosso cabelo não era para aquilo, não ficava do jeito x que queria.”(Neusa)

“O que eu trato até em terapia mesmo é mais no ensino médio, da infância,pequenas coisas que eu fazia que depois eu entendi que eram expressõesdo racismo. Principalmente relacionado ao cabelo que alisei muito cedo, aonariz que tinha uma época que eu colocava pregador no nariz para tentarafinar, também tenho refletido muito assim sobre a questão das amizades ede que forma eu era tratada.” (Dandara)

Assim como Dandara e Neusa, Ruth e Antonieta também relataram situações em

que sentiram que os seus cabelos e traços eram tidos como algo feio e ruim.

Page 19: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

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Antonieta relatou a respeito do dia da sua sessão de fotos de colação de grau.

Comentou que o capelo não cabia no seu cabelo black e por isso ela optou por tirar

as fotos sem ele. Se sentiu desconfortável, pois a empresa de fotos tentou a todo

momento induzi-la a usar, mesmo que o acessório não fosse projetado para ela e

reforçou que a situação a deixou indignada, já que havia pago aquele serviço e eles

sequer se prepararam para ela. Antonieta acrescentou também que para ela foi

natural escolher essa opção, pois do contrário, caso optasse por usar o item, teria

que atrapalhar o cabelo ao amassar seus cachos, perdendo assim a definição. Ao

postar as fotos relatou receber dois tipos de reações: de um lado pessoas que a

parabenizaram por ter coragem de negar usar algo que não era pensado para ela e

relatos de vivências parecidas e por outro pessoas que diziam que ela deveria ter

usado o item para não ficar destoante do restante de sua turma, já que todos

estavam usando.

Já Ruth, ao explicar o seu contexto familiar, disse que dentro de sua família sempre

existiu um sentimento de que ser chamada de negra era visto como algo ruim e

pejorativo e por isso ninguém se reconhecia desta forma.

Estes relatos de subjugamento de características negras foram comuns durante as

entrevistas e estiveram presentes em todos os períodos de vida das entrevistadas,

perpassando pela infância, pela adolescência e pela vida adulta, surgindo inclusive

durante a graduação.

“Já na época que eu lembro em seguida disso, na faculdade mesmo, euestava passando pela transição e aí era muito alvo de comentários deoutras pessoas o cabelo cacheado, nossa seu cabelo parece cabelo demiojo, denegrindo a imagem da pessoa por ter o cabelo cacheado. Emesmo eu estando na transição eu sabia que meu cabelo ficaria parecidocom aquilo, então aquilo me atingia de uma forma muito ruim, muito ruimmesmo.” (Neusa)

Tudo isso demonstra que o corpo negro é subjulgado e visto como inferior ainda

atualmente. Em uma sociedade em que o padrão de beleza estabelecido e almejado

é o branco europeu, ser negro te coloca automaticamente a margem.

“(...) o mito negro constrói-se às expensas de uma desvalorizaçãosistemática dos atributos físicos do sujeito negro. É com desprezo, vergonhaou hostilidade que os depoentes referem-se ao “beiço grosso” do negro,“nariz chato e grosso” do negro, “cabelo ruim” do negro, “bundão” o negro,“primitivismo” sexual do negro e assim por diante. O segundo traço daviolência racista, não duvidamos, é o de estabelecer por meio dopreconceito de cor, uma relação persecutória entre o sujeito negro e seucorpo.” (COSTA, 1985, p. 5)

Page 20: Nadya Miranda Santos Graduação em Psicologia PONTIFÍCIA

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Há também a expressão deste racismo que trata os traços negros como exóticos e

incomuns, ocasionando em uma curiosidade que desconcerta e constrage. Neusa

relata que já foi questionada como lava o seu cabelo, enquanto Dandara diz “Aí tem

muito isso do cabelo crespo, dos olhares, de acharem diferente, uns acham

estranho, uns perguntam e tudo mais”. Foi possível identificar também estereotipos

que irão relacionar ao corpo negro comportamentos e caracteristicas vistas como

negativas socialmente:

“Eu acho que outra coisa também que eu sempre noto é que as pessoasassumem que eu sou maconheira né e eu nem fumo maconha. Tem essacoisa de esperar, eu não sei se é com todas as mulheres negras no geral,mas às vezes por um cabelo crespo ou uma roupa que eu visto as pessoasolham e falam "nossa essa daí é a que vai dar o show quando a gentelevantar uma pauta né, não posso falar isso perto dela porque talvez ela vaidiscutir, vai causar alguma situação aqui.” (Dandara)

Para além da questão estética, foi identificado também o racismo expresso por meio

de um tratamento diferente no cotidiano entre pessoas negras e brancas. Dandara

foi a única entrevistada com vivência no mercado de trabalho, já que todas as outras

estavam iniciando sua primeira experiência profissional. Neste campo, ela relata:

“Eu formei, fiz estágio primeiro da PBH de 2016 a 2018, fechando dois anoslá e depois entrei no tribunal da justiça né. (...) E aí a princípio eu ficava"nossa será que eu tenho que ir bem vestida?" E isso é uma coisa inclusiveque uma amiga minha que trabalha lá que é negra comentou um dia "olhase eu viesse vestida às vezes igual a uma pessoa branca que trabalha lámas não é tão bem arrumada por assim dizer talvez poderiam não medeixar entrar.” (Dandara)

“Uma coisa que eu pensei bastante, até nos seguranças se eles veem queuma pessoa está mais bem arrumada ou que cumpre determinadoestereótipo ali eles dão boa tarde, bom dia e já pra um outro tipo de pessoanão rola isso. E isso são pequenas coisas do dia a dia que a gente vainotando, as vezes de não me ver como uma pessoa que poderia, porque eufiz estágio e depois fui contratada né, e tem muito disso de não me vercomo uma profissional daquele espaço, de não tratar como uma pessoa queestá ali trabalhando e fazendo um serviço.” (Dandara)

Este racismo, que se apresenta através de um tratamento diferenciado, irá dificultar

o senso de pertencimento àquele local. Além disso, é o que torna a experiência

profissional mais cansativa e desgastante, já que lhes é cobrado um maior gasto de

energia para que exista uma evolução profissional.

“Na questão da autoestima influencia bastante né, especialmente naquestão de comparação, quando a gente se compara a uma pessoa brancaou quando a gente nota que pra conseguir uma coisa ou outra a gente temque dar o dobro de si em questão do reconhecimento que não vem fácil pragente e aí às vezes pra uma pessoa branca ela faz o mínimo ali e éaplaudida.” (Dandara)

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Este não reconhecimento das pessoas negras em posições mais elevadas nos

mostra que a ascensão financeira não erradica o racismo. Pelo contrário, ainda que

a mulher negra, contrariando a estrutura social, consiga se elevar economicamente

não lhe é possível uma aceitação plena naquele espaço conquistado, já que ela

então passa a estar em um local que não é comum para pessoas como ela.

Podemos entender a partir disso como a teoria da democracia racial é um mito e

enxergar que sua existência não se sustenta em nosso país. “Ao sujeito negro não

adianta ter educação, casas de tijolo e ascensão social, pois quando adquirir tudo

isto, a raça será o fator de interdição do sujeito a este grupo da elite” (SCHUCMAN,

2012, p. 97)

4.2 A dupla discriminação

A segunda categoria diz respeito ao estudo da interseccionalidade em que as

mulheres negras são alvos do sexismo e do racismo, simultaneamente. Através dos

relatos das entrevistadas foi possível identificar um padrão. Neusa e Antonieta,

estudantes de engenharia, relataram um ambiente hostil e machista.

“Onde eu estudo hoje eu sinto uma discriminação não por ser uma mulherpreta, mas por ser mulher mesmo já ouvi muitos comentários comentáriosde professores falando que "isso mulher não consegue fazer", "as meninassão assim, assim assim". Enfim coisas mais desse tipo que eu ouvi agoranesse último ambiente que estive vivendo na faculdade, tem muitopreconceito mais em relação à mulheres, porque é um ambientemajoritariamente masculino, então eles tendem a ser muito preconceituosose não sabem lidar com o fato da gente estar entrando no mercado detrabalho, de estar em expansão as mulheres no mercado, principalmente naengenharia. É muito comum isso lá, apesar de ser errado, todo mundo sabe,mas infelizmente é muito comum e não sou só eu que sofro, várias outrasmeninas também sofrem.” (Neusa)

Antonieta trouxe um relato semelhante, ao dizer que por muitas vezes por ser

mulher em um curso majoritariamente masculino, vivenciou experiências machistas

e sexistas em que ela era tida como incapaz de executar alguma atividade

profissional.

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Crenshaw (2002) ao estudar e definir o que é interseccionalidade sinaliza que essa

dupla discriminação a qual mulheres não brancas estão expostas as expõe a uma

vulnerabilidade marcada por múltiplas formas de opressão. Das nove formas

sinalizadas quatro referem-se diretamente ao campo profissional e/ou acadêmico,

destacando as dificuldades geradas e os impactos negativos desta discriminação

para as mulheres. É possível verificar uma maior dificuldade de se inserir e se

manter no mercado de trabalho e o mesmo se aplica aos estudos, uma vez que a

permanência nesses ambientes se torna traumática. Além disso, pode prejudicar a

qualidade do ensino ofertado e dificultar possíveis ascensões profissionais.

Em contrapartida a isso, Ruth e Dandara afirmaram que tiveram vivências mais livres

de preconceitos no ensino superior e associaram a isso o fato de cursarem cursos

de humanas (psicologia e serviço social), onde existe um maior envolvimento com

causas sociais e um entendimento prévio de temas como machismo e racismo.

“Mas como a maioria das pessoas eram negras e também já com essaconsciência prévia já de movimentos sociais e já tinham entrado em contatocom esses debates eu não vejo que vivi, pelo menos nos pares assim umracismo tão escancarado né.” (Dandara)

Ruth da mesma forma relata que não sofreu experiências explícitas de racismo

durante o curso e acredita ser por se tratar de um curso de humanas em uma

Universidade Federal, onde grande parte dos estudantes tem conhecimento sobre

os temas. Ela acrescenta ainda que acredita que em outros cursos essa vivência

seja muito mais difícil do que foi para ela.

Outro relevante ponto identificado diz respeito à esfera amorosa em

relacionamentos. Em todas as entrevistas foi necessário questionar as entrevistadas

sobre essa área de suas vidas, já que nenhuma delas a citou de forma espontânea.

Ruth, Dandara e Antonieta são solteiras e relataram que apesar de já terem tido

diversas relações casuais nunca estiveram em relações sérias, com um maior grau

de comprometimento e envolvimento.

“Eu não tenho muitas experiências, tive muitas relações casuais, mas deaprofundamento assim, de conhecer uma pessoa e falar "nossa" não. Só naadolescência mesmo, mas como eu era bem novinha assim eu tenhodificuldade em considerar isso um relacionamento. Mas realmente não teme acho que sim o racismo diz muito disso, de não ser muito acessível ou deser mais difícil acessar para gente o campo amoroso.” (Dandara)

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Somente Neusa está em um relacionamento estável atualmente. Ela namora um

homem também negro e ao dizer do relacionamento conta que se sente bem na

relação e que o parceiro constantemente a elogia por suas caracteristicas enquanto

mulher negra.

“É uma pessoa que me empodera muito, sempre me ajuda a manter minhaautoestima alta que é algo que depende muito mais de mim, mas a gentegosta de ouvir um elogio, de ouvir "nossa seu black tá bonito", então elesempre exalta muito a minha beleza, principalmente quando fala dosaspectos de uma mulher negra. E isso é até novo em questão derelacionamento para mim, porque antes eu não ouvia isso.” (Neusa)

Ao dizer que essa experiência é nova para ela, Neusa nos mostra que encontrar

parceiros que a considerassem bonita e que se dispusessem a estar em uma

relação com ela também não foi algo simples. É possível relacionar esta dificuldade

em acessar a esfera amorosa a construção social do que é a mulher negra e para

quais tipos de relacionamento ela serve. Neusa e Dandara trazem comentários que

permitem que entendamos melhor essa questão.

“Já ouvi comentários do tipo "mulher preta transa bem" de um jeito bemexpondo o corpo da mulher preta, não pelo feito do ato mesmo, mas falandoda mulher preta mesmo, sabe?” (Neusa)

“Tá presente especialmente na forma que as pessoas enxergam a gente ecomo a gente tá no imaginário das pessoas, no Brasil mesmo né, nesseentendimento do que é a mulher negra, do corpo né, de que não precisapedir licença para chegar, que elas são acessíveis, são quentes, eu sintomuito isso às vezes, de achar que é bagunça mesmo e não quereraprofundar muito, não querer conhecer.” (Dandara)

Neste quesito, podemos entender a hipersexualização da mulher negra como uma

consequência direta do sistema escravocrata, onde foi necessário desumanizar as

escravizadas como forma de justificar a exploração sexual e os estupros que ali

ocorriam.

“A designação de todas as mulheres negras como depravadas, imorais esexualmente desinibidas surgiu no sistema de escravidão. Mulheres ehomens brancos justificaram a exploração sexual de mulheres negrasescravizadas, argumentando que elas iniciavam o envolvimento sexual comhomens. Desse pensamento, emergiu o estereótipo de mulheres negrascomo selvagens sexuais e, em termos sexistas, uma serlavegem sexual nãohumana, animal não é estuprada (...) a maioria das pessoas tende a ver adesvalorização da mulheridade negra como algo que ocorreu somente nocontexto da escravidão. Na verdade, a exploração sexual das mulheresnegras continuou por muito tempo depois do fim do período da escravidão efoi institucionalizada por outras práticas opressivas. A desvalorização damulheridade negra depois do término da escrevidão foi um esforçoconsciente e deliberado dos brancos para sabotar a construção daautoconfiança e do auto respeito da mulher negra.” (HOOKS, 2019, p;93-103)

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Esta união do sexismo e do racismo apresenta-se como mais uma forma de

opressão sinalizada por Crenshaw (2002), o que contribui para a ocorrência de

estupros motivados por questões raciais e estereótipos sexuais racializados de

gênero. Esse estereótipo afeta mulheres negras independente de qual seja sua

classe e a ascensão financeira pode se tornar até mesmo um agravante nestes

casos, já que pode ser vista como uma afronta à permanência da mulher naquele

espaço.

“Uma mulher negra bem vestida e limpa, portando-se de maneira digna, era,com frequência, objeto de insultos vindos de homens brancos queridicularizavam e zombavam de seus esforços para progredir. Eles alembrava de que, aos olhos das pessoas brancas em geral, ela jamais seriadigna de consideração ou respeito. (...) Mesmo que uma mulher negra setornasse advogada, médica ou professora, era provável que ela fosserotulada, por brancos, de meretriz, prostituta. Todas as mulheres negras,independente de sua circunstância, eram agrupadas na categoria de objetossexuais disponíveis.” (HOOKS, 2019, p. 97-102)

Essa interseccionalidade junto aos seus efeitos colaterais e as violênciasdecorrentes deste ocasiona o surgimento de traumas psicológicos nas vítimas. E éjustamente esses traumas que são o objeto de estudo e análise em nossa próximacategoria.

“São tantos traumas que às vezes a gente nem entende que são traumas,mas estão ali pela forma que a gente foi criada. O machismo afeta, oracismo afeta.” (Dandara)

4.3 O afeto como trauma, a busca pelo embranquecimento e o hiper esforço

Esta categoria identifica algumas das consequências do racismo na psique das

mulheres negras de classe média. A primeira questão identificada diz respeito a

vivência amorosa e as relações construídas. Conforme explicitado na categoria

anterior, nenhuma das entrevistadas abordou o tema de forma espontânea e

somente uma delas está em um relacionamento sério no momento.

Ruth afirma que atualmente não se imagina em um relacionamento com um homem

branco, já que para ela estar com alguém que não entende o que é ser negro e

negra no Brasil está fora de questão. Antonieta diz que durante sua adolescência

começou a perceber que era vista somente como a amiga, nunca sendo escolhida

para relacionamentos pelos meninos. Dandara acerca do tema alega:

“Eu acredito que também tem um pouco disso na área de relacionamento deter muitas barreiras, de ter muitos traumas que eu não sei de ondeexatamente eles vem, mas estão ali. Então pra mim é muito difícil confiarnas pessoas e até mesmo de expor uma vulnerabilidade que essa pessoapossa explorar depois.” (Dandara)

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Diante disso, é possível identificar um distanciamento das mulheres em relação ao

tema, decorrente dos traumas criados quando em contato a este. A dor e o desejo

de evitá-la a todo custo passa então a ocupar a posição central neste discurso. É o

que Costa (1985) identifica como o terceiro elemento constitutivo da violência

racista, capaz de tirar do sujeito a possibilidade de pensar o prazer.

“Este é o terceiro elemento constitutivo da violência racista. O racismo que,através da estigmatização da cor, amputa a dimensão de prazer do corponegro, também perverte o pensamento do sujeito, privando-o dapossibilidade de pensar o prazer e do prazer de funcionar em liberdade. Opensamento do negro é um pensamento sitiado, acuado e acossado pelador da pressão racista. Como consequência, a dinâmica da organizaçãomental é subvertida. Um dos princípios régios do funcionamento psíquico, oprincípio do prazer, perde a hegemonia de que goza na organização dosprocessos mentais. A economia psíquica passa a gravitar em torno da dor,deslocando o prazer do centro do pensamento.” (COSTA, 1985, p. 7)

A esfera amorosa, ao ser perpassada pelo racismo, se constitui como algo

traumático. Como forma de defesa, passa a existir então uma abdicação desta área

e uma resignação em relação ao tema.

“Então pra entrar nessa área de relacionamento assim, eu já parto meio quedaí, dá autossuficiência e dos traumas também e de entender que tem essapossibilidade de contar com pessoas irresponsáveis e aí eu começo apensar na questão do machismo, de como os homens são criados né, essaquestão do amadurecimento né, que não tem e aí eu acho que isso vaicriando uma resistência né, algumas barreiras mesmo nas relações e àsvezes a gente até prefere ficar sozinha né?” (Dandara)

Ao dizer que prefere ficar sozinha, Dandara demonstra que prefere abrir mão de ter

um parceiro a sentir novamente a dor do racismo que a expõe à hipersexualização e

a rejeição. É possível ver uma rigidificação do movimento psíquico, que busca evitar

novamente o estímulo excessivo que machuca e traumatiza.

“A dor não é um fenômeno pertencente à série de elementos que compõemo regime erótico. A experiência da dor inscreve-se no registro dasrepresentações e afetos adscritos à ordem da morte da destruição. Dianteda dor, o que interessa é recompor a integridade do aparelho psíquicoesgarçado pelo estímulo excessivo. Na “experiência de dor”, ao contrário da“experiência de satisfação”, o movimento do psiquismo rigidifica-se.Reduz-se a acionar defesas cujo único objetivo é controlar, dominar, fazerdesaparecer a excitação dolorosa. O modelo de compreensão das reaçõespsíquicas em face da dor é o da compulsão de repetição, como Freuddemonstra a propósito das neuroses traumáticas.” (COSTA, 1985, p. 8)

Outro ponto observado diz respeito à busca pelo embranquecimento. Três das

entrevistadas afirmaram que alisavam o cabelo e Dandara afirmou que além disso,

tentava também afinar o seu nariz utilizando de pregadores de roupa.

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“Na infância era muito complicada a questão do cabelo né, principalmenteporque eu tenho o cabelo crespo. Na época era eu e mais uma menina sóna sala que tinha cabelo crespo, inclusive eu e ela alisávamos o cabelo.”(Neusa)

“O que eu trato até em terapia mesmo é mais no ensino médio, da infância,pequenas coisas que eu fazia que depois eu entendi que eram expressõesdo racismo. Principalmente relacionado ao cabelo que alisei muito cedo, aonariz que tinha uma época que eu colocava pregador no nariz para tentarafinar (...)” (Dandara)

Ao primeiro contato com um meio social feito para e composto por pessoas brancas,

o individuo percebe que é negro.

“Já pretenderam apressadamente: o preto se inferioriza. A verdade é queele é inferiorizado. (...) O preto, diante da atitude subjetiva do branco,percebe a irrealidade de muitas proposições que tinha absorvido comosuas. Ele começa então a verdadeira aprendizagem. E a realidade se revelaextremamente resistente... Mas alguém poderá pretender que descrevo umfenômeno universal, – o critério da virilidade sendo justamente a adaptaçãoao social. Responderemos então que esta crítica é inadequada, poismostramos justamente que, para o preto, há um mito a ser enfrentado. Ummito solidamente enraizado. O preto o ignora enquanto sua existência sedesenvolve no meio dos seus; mas ao primeiro olhar branco, ele sente opeso da melanina.” (FANON, 2008, p. 133)

Diante de um padrão europeu que enxerga os atributos físicos do negro como feios

e indevidos, o sujeito irá buscar extinguir de si tudo que o associe ao negro. Neste

movimento, inicia-se uma verdadeira batalha, que faz com que ao repudiar a sua

cor, o sujeito repudie radicalmente também o seu corpo.

“Um corpo que não consegue ser absolvido do sofrimento que inflige aosujeito tornar-se um corpo perseguidor, odiado, visto como foco permanentede ameaça de morte e de dor. A relação persecutória com o corpo expõe osujeito a uma tensão mental cujo desfecho, como seria previsível, é atentativa de eliminar o epicentro do conflito. A partir do momento em que onegro toma consciência do racismo, seu psiquismo é marcado com o seloda perseguição pelo corpo próprio. Daí por diante, o sujeito vai controlar,observar, vigiar este corpo que se opõe à construção da identidade brancaque ele foi coagido a desejar. A amargura, desespero ou revolta resultantesda diferença em relação ao branco vão traduzir-se em ódio ao corpo negro.”(COSTA, 1985, p. 6)

Foi possível identificar que o contrário também ocorre. Ao tomar consciência do

racismo a que foi exposto e se aceitar enquanto negro inicia-se um movimento de

resgaste aos atributos outrora repudiados, como forma de resistência em um

processo de libertação.

“Na adolescência quando eu tava mais velha eu comecei a ter contato commovimentos feministas, movimentos anti racistas, alguns movimentossociais aqui de Belo Horizonte e eu comecei a compreender. E aí vemaquela coisa toda de assumir o cabelo crespo e tudo mais e a partir disso eufui meio que me desenhando.” (Dandara)

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A respeito deste processo de recuperação de sua identidade, Fanon (2008), ao

analisar o poema “Diário de um retorno ao país Natal” de Aimé Césaire (1939), diz:

“Tendo reencontrado a noite, ou seja, o sentido de sua identidade, Césaireconstata inicialmente que: “Não adianta pintar de branco o pé da árvore, aforça da casca por baixo grita”. Depois, uma vez descoberto o branco dentrode si, ele o mata. (...) Que acrescentar ainda? Após ter sido levado aoslimites da autodestruição, o preto, meticulosa ou tempestuosamente, vaisaltar no “buraco negro” de onde partirá “com tal vigor o grande grito negroque estremecerá os assentamentos do mundo.” (FANON, 2008, p. 167)

Matar o branco dentro de si representa a recuperação da sua negritude e rejeição

dos padrões brancos que lhes foram impostos durante toda sua vida. Podemos

perceber, portanto, que no processo de identificação racial, o corpo assume um

papel simbólico que irá refletir não só o que está acontecendo internamente no

sujeito, mas também como ele se comporta diante a sociedade racista na qual está

inserido.

Por fim, no campo profissional, Dandara chama a atenção para um outro fenômeno.

“E aí eu acho que junto a isso com o entendimento de que mulher negra éforte, de que a gente tá aí pra amparar todo mundo, eu meio que internalizeiisso e no ambiente de trabalho mesmo para mim é muito difícil distinguiruma ajuda que eu ofereço de um desvio de função. Eu vejo isso muito issona área de trabalho de receber muitas demandas, e aceitar todas e atémesmo querer mostrar que eu consigo dar conta dessa demanda, terdificuldade de dizer não, acho que tá muito ligado assim tanto com essafase onde eu tive que cuidar muito cedo de uma pessoa adulta junto comminha mãe e desse entendimento de quais são as funções da mulher negrade tipo "nossa já que ela tá aceitando tudo vamos continuar delegandofunções que não são dela para ela." (Dandara)

Este fenômeno é identificado por Souza (1985) como uma estratégia de ascensão a

qual ela nomeia como “Ser o melhor”. Importante relembrar aqui que o Ideal do Ego

do sujeito negro será branco. É por isso que este desejo de demonstrar que é capaz

constitui-se uma estratégia de aproximação do Ego em relação ao Ideal do Ego. O

sujeito busca provar não só ao outro, mas a si mesmo, que é digno de

reconhecimento e capaz de alcançar um ideal de exigências inalcançáveis, como

forma de compensar o seu defeito maior: ser negro.

“Esta é a expressão fidedigna daquilo que identificamos como a tentativa deaproximação do ego em relação ao Ideal do Ego. Nesta tentativa derealização - tão imperiosa quanto impossível - O Ego lança mão de táticasdiversas, cujo denominador comum se faz representar por um redobrarpermanente de esforços, por uma potencialização obrigatória de suascapacidades.” (SOUZA, 1985, p. 39)

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5 CONCLUSÃOAtravés da presente pesquisa foi possível identificar como o racismo se

manifesta no cotidiano de mulheres negras de classe média, assim como as

consequências decorrentes deste. A partir do momento em que mulheres negras

passam a conquistar posições mais elevadas na hierarquia social a vivência em

espaços majoritariamente brancos se torna comum. Nestes ambientes, o racismo

assumirá diversas faces, se manifestando por meio da desvalorização do fenotipo

negro, ao julga-lo como feio, inadequado e/ou exotico. Identificamos também a

existência de estereótipos que buscam associar pessoas negras a comportamentos

lidos como negativos socialmente. Por fim, o racismo também irá se manifestar

através do não reconhecimento das mulheres naquele espaço, por meio de um

tratamento diferenciado entre pessoas brancas e negras, uma maior cobrança em

relação às atividades profissionais diárias e o estabelecimento de patamares mais

altos para reconhecimento profissional.

A experiência no ensino superior se mostrou diferente para discentes de cursos de

ciências exatas e ciências humanas. As estudantes de engenharia, por estarem

inseridas em ambientes majoritariamente masculinos, com pouco conhecimento

prévio de causas e movimentos sociais, são alvo de um sexismo frequente que as

subjuga como inferior e incapaz no meio acadêmico. Foi possível identificar também

uma hipersexualização da mulher negra, sendo esta enxergada como um objeto

sexual e um corpo público, no qual se pode tocar sem consentimento. Este

fenômeno, consequência direta do sistema escravocrata, foi utilizado como

estratégia para justificar a exploração sexual, uma vez que desumanizava as

escravizadas.

A esta união do sexismo e do racismo definimos interseccionalidade (Crenshaw,

2002). Essa forma de opressão contribui para a ocorrência de estupros motivados

por questões raciais e estereótipos sexuais racializados de gênero, além de gerar

uma maior dificuldade de se inserir, se manter e ascender no mercado de trabalho,

assim como afetar negativamente a trajetória acadêmica e a qualidade do ensino

ofertado.

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Em relação aos efeitos negativos do racismo foi possível identificar três

consequências diretas nas entrevistadas. A primeira diz respeito ao afeto como

trauma, uma vez que a hipersexualização das mulheres negras e a rejeição para

relacionamentos, fez com que as entrevistadas se distanciassem do tema,

preferindo abdicar de vivê-lo ou construindo barreiras nesta área. A dor e o desejo

de evitá-la a todo custo passou a ocupar a posição central no discurso, sendo este

um elemento constitutivo da violência racista, capaz de tirar do sujeito a

possibilidade de pensar o prazer.

A segunda consequência identificada foi o desejo de ser o melhor. Ao se ver inserida

em uma sociedade onde ser negro é ruim, o Ego da pessoa negra buscará se

aproximar do seu Ideal de Ego, branco. Uma das estratégias para isso consiste em

buscar ser o melhor em tudo que se faz como forma de compensar o seu “defeito”.

Outra estratégia será a busca pelo embranquecimento, sendo esta a terceira e

última consequência identificada. Foi possível ver que as entrevistadas vivenciaram

uma luta contra o seu próprio corpo, buscando apagar seus fenótipos negros, em

uma tentativa de embranquecer, através do desejo de alisar o seu cabelo e afinar o

nariz, por exemplo. Esta luta contra o próprio corpo somente teve fim quando as

entrevistadas tomaram consciência do racismo a que foram expostas e passaram a

se aceitar enquanto negras, iniciando um movimento de resgate aos atributos

outrora repudiados, como forma de resistência em um processo de libertação.

Tudo isso comprovou que a teoria da democracia racial não se sustenta em nosso

país. Ainda hoje podemos ver que o racismo continua operando e dificultando a

ascensão profissional, o senso de pertencimento e o reconhecimento de pessoas

negras em posições sociais mais elevadas. É este racismo que irá tornar a vivência

em ambientes educacionais e profissionais mais hostil e desgastante e resistirá até

mesmo a ascensão financeira, não sendo esta suficiente para fazê-lo desaparecer. É

este racismo que irá além, afetando também a construção de identidade e o

processo identificatório do sujeito, a autoestima e sua relação com o afeto e com o

prazer.

Para além das análises realizadas, a pesquisadora identificou que as relações

familiares e a identificação racial neste contexto também terão impacto na

construção do processo identificatório e em como o sujeito irá lidar com o racismo a

que é exposto. Tal tópico não foi explorado na presente pesquisa, sendo portanto

uma interessante possibilidade de estudo e aprofundamento futuramente.

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O estudo do tema se mostrou de grande relevância, uma vez que é escassa a

produção de conteúdo científico psicanalítico em relação a ele. Através da presente

pesquisa, foi possível compreender melhor como as relações raciais, de gênero e

classe ocorrem em nossa sociedade, assim como os impactos que elas geram aos

sujeitos. Este conhecimento faz-se necessário para a construção de uma clinica

psicanálitica mais efetiva quando se trata da análise de pacientes negros e negras,

uma vez que o racismo irá imprimir consequências também no inconsciente do

sujeito. Para além da psicanálise, o estudo do tema permite também a construção

de uma escuta clínica mais sensível, que leve em consideração como este fator irá

atravessar o sujeito que está ali, assim como o sofrimento e as implicações

decorrentes deste atravessamento. Esta atualização da psicoterapia considerando

fatores de gênero, raça e classe faz-se urgente e permite a abertura de novas

possibilidades de escuta, garantindo uma atuação profissional mais direcionada e

efetiva.

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