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Não nego minhas feridas e fragilidades,

a elas dedico esse livro

“Na verdade, em comparação com a agonia da alma, que é um aperto, um afogamento, uma aflição tão intensa,

unida a um descontentamento tão desesperado e angustioso, que palavras não podem descrever [...]

Não sei como fazer jus com palavras ao fogo interior e ao desespero que se sobrepõem a gravíssimos

tor�entos e dores.Eu não via quem os provocava, mas os sentia

queimando-me e retalhando.”(Santa Teresa de Ávila – Vida, XXXII.2.)

INTRODUÇÃO

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

Anos atrás fiz uma viagem à Espanha e pas-sei um mês naquele país fazendo um curso de espiritualidade. A experiência era itinerante, e a primeira cidade que visitei foi Vic, na região da Catalunha, cidade perto de Barcelona.

Foi neste local que ouvi pela primeira vez a frase “Onde estão tuas feridas, aí está tua salva-ção”, pensamento atribuído por tradição a Santo Antônio Maria Claret.

Vic é a cidade onde Claret fundou a Con-gregação dos Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos), Congregação Missionária à qual pertenço.

Assim que ouvi essa frase, percebi a riqueza de tal afirmação e passei dias meditando na pro-fundidade e verdade dessa sabedoria.

Ainda em Vic, num momento livre que tive, fui visitar um sebo (local onde se vendem livros usados). Sempre que viajo, procuro esses lugares em busca de raridades.

Visitei as estantes de filosofia, teologia, poe-sia, literatura e comunicação social, temas que gosto de estudar. Meus olhos porém, fixaram--se numa pilha de livros que estavam num canto amontoados.

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Introdução

Repassando um por um, encontrei um livri-nho de 1908, chamado El Cocinero Español, come-cei a folheá-lo por curiosidade e descobri entre suas páginas um papel antigo com um texto escrito em letra cursiva bem caprichada.

Quando li o papelzinho, percebi que eu esta-va com uma oração em forma de poesia em minhas mãos e logo pensei: – É providência! Complemento à frase de Claret, mais que isso talvez até uma cha-ve de interpretação.

Comprei o livro com o papelzinho dentro. Transcrevo aqui (com livre tradução) o poe-

ma (oração) Encontro com Cristo, desse autor(a) que desconheço, do qual sei apenas as iniciais de seu nome, J.M., mas que gostaria muito de ter conhecido:

Cristo, meu maior amigo. Tapa meus olhos para tudo o que vejo agora.

Que diante de mim só exista teus olhos me olhando. Escureça tudo [...]

Para que teus olhos se destaquem na escuridão. Agora sim, somos você e eu, no silêncio mais profundo.

Desnuda-me com seu olhar... Estar completamente nu à tua frente [...]

Diante de teus olhos sinto segurança.

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

Olha, observas o que sou. Veja meus pecados, como são grandes minhas feridas.

As chagas me chegam à alma. Mas, diante de ti, nada me perturba.

Não sinto dor alguma, pois teu olhar com olhos de compreensão

não fita a aparência. Vai além de mim mesmo.

Nada te é oculto. Estou nu, porém vestido de amor.

Tenho agora um pouco de vergonha Comparando o que sou com tua perfeição.

Nada te peço, simplesmente desejo que nunca me deixes de olhar.

( J.M. – 1933)

FERIDAS

Meu filho, faze o que fazes com doçura e, mais do que a estima dos homens,

ganhará o afeto deles.Quanto mais fores elevado, mais te humilharás em tudo,

e perante Deus acharás misericórdia. (Eclesiástico 3,19.20)

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

Ferida é uma palavra utilizada (originalmente) para sinalizar uma violência cometida contra o corpo.

O nosso corpo é uma unidade, somos uma máquina perfeita, os órgãos cada um com sua fun-ção, os ossos sustentando tudo, os músculos agru-pando essa unidade e a pele que nos engloba e deter-mina nosso espaço.

Nosso corpo é o principal lugar onde habita-mos, não podemos viver biologicamente distantes de nossa massa corpórea; mais que isso, nosso cor-po é um limite para nosso ser.

O ser é a totalidade do que somos, corpo e alma, porém a alma não se prende aos limites cor-póreos: temos a capacidade de viajar racionalmente mesmo estando “plantados” em determinado lugar.

Embora eu esteja aqui neste exato momento, e não posso estar em outro local (em virtude de uma imposição física, corporal), posso imaginar, por força da razão e da alma, estar a metros de distância de onde estou, ou até bem longe em outro país, posso voltar para o passado e posso até me projetar no futuro.

Embora o que de concreto exista possa pare-cer tão somente a realidade que envolve nosso cor-po, nossos sonhos, aspirações, saudades e assim por diante também existem, mesmo que não palpáveis.

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O que nos faz ser mais que um paralelepípe-do é essa liberdade conferida a nós pela alma, de ir e vir, mesmo que deitados em uma cama. É por essa razão que simbolicamente atribuímos à pala-vra ferir (ou ferida) algo tão corporal à realidade extramatéria.

A palavra ferida tem origem no particípio feminino do verbo ferir, que procede do latim ferire (ferir, golpear, bater). Sua compreensão, porém extrapola o emprego material e ganha co-notações metafóricas. Concretamente, a ferida é uma chaga que afeta o corpo, mas, de forma simbólica, a palavra ferida é usada para sinalizar os golpes e machucados que sofremos na alma, no coração.

A alma não sente dor, pois é imaterial, porém atribuímos essa palavra para expressar nossas an-gústias, traumas e sofrimentos que não são visíveis e que não são palpáveis; da mesma forma, a pala-vra ferida é empregada para caracterizar os diversos males da alma, mesmo sabendo-se que a ferida é própria do corpo.

Vários poetas e artistas se debruçaram sobre “as feridas” para expressar aquilo que não se pode dizer de outra forma que não seja por essa metáfora.

Feridas

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

Algumas feridas nos acompanham por dias, outras permanecem conosco por anos, porém al-gumas levaremos para o túmulo. Muitas conse-guimos curá-las, porém algumas latejarão todos os dias nos lembrando de que elas habitam em nossa alma.

Poderíamos, neste livro, fazer uma lista das principais feridas que assolam a humanidade, mas elas são muito particulares e pessoais, e uma mes-ma “chaga” pode ter efeitos diferentes, dependendo de cada pessoa, de sua história e da forma como ela encara a vida.

Muitas dessas feridas estão escondidas, não de nós mesmos, pois sabemos a dor que elas nos causam. Estão escondidas, sim, dos outros. Muitas pessoas conversam conosco durante um dia, po-rém nenhuma delas consegue ler nossa alma, a não ser que forneçamos pistas sobre o que se passa em nosso interior. Na maioria das vezes, a luta, na ten-tativa de aliviar essa dor, é solitária.

Mesmo que encontremos um amigo, um pa-rente para conversar e partilhar, a responsabilidade de lidar com essa chaga cotidianamente será nossa, só nossa.

Ninguém pode fazer curativos na alma aba-tida do outro.

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Os curativos que os outros fazem em nossa alma são paliativos, não servem para curar... sim-plesmente aliviam. Cada um tem suas próprias fe-ridas secretas, ninguém está livre delas.

Por mais que partilhemos a dor que nos afli-ge, o outro nunca compreenderá o tamanho e a ex-tensão do nosso sofrer. Por isso não podemos julgar os outros por não nos entenderem; por mais que explicitemos nosso problema, ele continuará sendo nosso. Só nosso!

As feridas da alma são intransferíveis. Quando conversamos com alguma pessoa e

abrimos nossa vida para ela, geralmente ela nos diz: – Eu sei o que você está sentido.

Essa resposta pode ser uma tentativa de ser al-truísta, mas, em realidade, ninguém sabe o que de fato estamos sentindo, assim como não sabemos o que os demais sentem. Por isso, existe uma inten-ção de apoio no momento da dor partilhada, mas, com o passar do tempo, o outro logo se esquece e se ocupará de suas próprias chagas, de seus próprios sofrimentos. E isso é natural, não é maldade.

Compensa repetir que somente nós sabemos o grau de dor que nossa ferida nos provoca.

O Apóstolo Paulo é contundente ao revelar que ele (aos olhos do mundo) teria todas as razões

Feridas

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

para se vangloriar: pela experiência de Deus em sua vida e pelas grandes obras que realizou. Porém um espinho cravado em sua carne o feria dia após dia, mostrando sua fraqueza. Paulo não diz qual era esse espinho, mas, pela profundidade com que escreve, percebe-se que era uma chaga incurável.

Vamos ler esse texto nos detendo na humil-dade do grande apóstolo e fazer uma análise de como lidamos com nossas próprias chagas.

“Importa que me glorie? Na verdade, não con-vém! Passarei, entretanto, às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há qua-torze anos foi arrebatado até o terceiro céu. Se foi no corpo, não sei. Se fora do corpo, também não sei; Deus o sabe. E sei que esse homem – se no corpo ou se fora do corpo, não sei; Deus o sabe – foi arrebatado ao pa-raíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não são permiti-das a um homem repetir.” (2Coríntios 12,1-4).

Paulo inicia relatando sua experiência com Deus, o verdadeiro milagre de ser arrebatado, de estar junto com o Altíssimo. Quando Paulo diz: “Eu conheço um homem em Cristo que há quator-ze anos foi arrebatado”, esse homem que Paulo co-nhece é ele mesmo, e por essa razão Paulo começa o texto se perguntando: “Importa que me glorie?”

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Quais são as glórias que podemos ter ou atribuir a nós mesmos, se em consciência nos co-nhecemos verdadeiramente e provamos do barro com que fomos feitos?

“Desse homem eu me gloriarei, mas de mim mesmo não me gloriarei, a não ser das minhas fra-quezas. Pois, ainda que me quisesse gloriar, não seria insensato, porque diria a verdade. Mas abste-nho-me, para que ninguém me tenha em conta de mais do que vê em mim ou ouve dizer de mim.” (2Coríntios 12,5.6).

Paulo, por se conhecer, não se gloria de si mesmo, mas se gloria daquele homem que fez a ex-periência de Deus, ou seja, ele tem plena consciên-cia de que, mesmo tendo “tocado o Altíssimo”, sua natureza ainda precisava ser aperfeiçoada, ou seja, ele não se acha pronto.

Essa atitude de Paulo é um verdadeiro teste-munho para cada um de nós, que muitas vezes nos sentimos superiores ou mais santos que os outros pelo simples fato de termos recebido alguns favores de Deus.

O apóstolo se gloria também de suas fraque-zas, pois são justamente por essas fraquezas, espi-nhos e feridas que ele sente a consolação divina.

Feridas

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

“Demais, para que a grandeza das revelações não me levasse ao orgulho, foi-me dado um espi-nho na carne, um anjo de Satanás para me esbo-fetear e me livrar do perigo da vaidade. Três ve-zes roguei ao Senhor que o apartasse de mim. Mas ele me disse: ‘Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força’. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas ne-cessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sin-to fraco, então é que sou forte.” (2Coríntios 12,7-10)

Paulo percebe, enfim que essa ferida o torna mais humilde, o afasta do orgulho. O espinho na carne de Paulo não foi aceito de imediato: ele lu-tou, pediu em oração para que Deus afastasse dele essa chaga, e o próprio Deus disse que queria ma-nifestar sua força para Paulo através dessa ferida.

Estamos diante de um texto bíblico reconfor-tante, talvez um dos mais emblemáticos da vida de Paulo, mas, também tomo a liberdade de afirmar, um dos textos mais humanos da Sagrada Escritura.

Ser humano é justamente isso, saber de onde viemos: nossa origem é divina, e Deus, em sua

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Feridas

bondade, durante o percurso de nossa existência, constantemente se revela através de sinais e graças.

Mas não somos Deus, não temos o pleno domínio de nossa história. Esse espinho na carne, essa ferida que lateja em nosso peito, é para nos lembrar que somos criaturas de Deus.

Oxalá, assim como Paulo, nos sintamos for-tes em nossas fraquezas.

A fraqueza, neste caso, não é sinal de debi-lidade, de resignação. Essa fraqueza de que fala Paulo é sinal de força, pois ela afasta de nós o pe-rigo de uma imagem inflada que podemos ter a nosso respeito.

Ninguém vai para o céu simplesmente com a imagem que fabricou de si mesmo.

Os cemitérios estão cheios de corpos que se-guram currículos perfeitamente escritos pelos que chegaram às portas do paraíso se apresentando como santos. Não que sejam santos, ou perfeitos, mas porque se imaginaram assim.

O primeiro passo para a santidade é o pleno conhecimento de si mesmo, é a não negação da dor de ser quem somos, por mais que isso seja difícil.

Se nego a essência que sou, por mais dolorida que ela seja, crio uma fantasia, imaginando-me em

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Onde estão tuas feridas, aí está a tua salvação

um castelo de faz de conta, e corro o risco de passar toda uma vida representando papéis.

A força de Cristo, de que fala Paulo, não ha-bita num coração arrogante e orgulhoso.