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“Não portamos armas, bebemos cachaça”: discursos sobre violência na Torcida Cangaceiros Alvinegros. Artur Alves de Vasconcelos 1 Domingos Sávio Abreu 2 RESUMO A Torcida Cangaceiros Alvinegros (C.A.) é formada por um grupo de fãs do Ceará Sporting Club. Além de apoiar seu time do coração, os Cangaceiros se apresentam como uma torcida organizada (T.O.) “diferente” das outras. Uma das distintinções é o fato de os C.A. se definirem como um “movimento cultural” que fala sobre identidade nordestina nas arquibancadas. Outra peculiaridade é a recusa de práticas de violência contra rivais. Esse distanciamento da violência é trazido em forma de discurso pelos C.A. através de lemas, camisas, mascote, gesto de saudação e outras formas de discurso. O objetivo deste trabalho é identificar qual a visão de violência que esses torcedores possuem. Para isso, foram observados quais os símbolos acionados, excluídos ou ressignificados; quais práticas violentas são criticadas e eventualmente quais são exercidas. Foram realizadas entrevistas com três diretores dos C.A., além de aplicados 24 questionários com integrantes diversos da torcida. Percebeu-se que os C.A., ao falarem de violência, estão se referindo essencialmente à física, às brigas entre torcidas. A violência simbólica contida em xingamentos não é problematizada. A maioria dos integrantes afirma se recusar a participar de atos violentos junto com a torcida ou em nome do time. Alguns símbolos usados, que poderiam criar uma imagem indesejada de violência, são ressignificados. O cangaceiro não porta armas; o mascote não possui músculos avantajados nem faz posições de combate; a bebida alcoólica não é reconhecida como estimulador de práticas violentas. Eles compreendem que existem atitudes violentas em boa parte das T.O., mas ressaltam que esses atos seriam praticados por uma minoria dos integrantes, já que a maioria seria formada por pessoas pacíficas. O desejo de se afastar de uma imagem de violência é uma das estratégias dos Cangaceiros para se mostrarem “diferentes” da maioria das demais T.O., ocupando um outro lugar no campo das torcidas. Palavras-chave: Nordeste, torcedores, violência. INTRODUÇÃO A equipe de futebol Ceará Sporting Club (Ceará SC), sediada na cidade de Fortaleza-CE, é um dos clubes de futebol mais importantes do seu estado. Seus fãs representam uma parcela relevante do número de torcedores de futebol cearenses, 1 Mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. 2 Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidde Federal do Ceará.

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“Não portamos armas, bebemos cachaça”: discursos sobre violência na Torcida

Cangaceiros Alvinegros.

Artur Alves de Vasconcelos1

Domingos Sávio Abreu2

RESUMO

A Torcida Cangaceiros Alvinegros (C.A.) é formada por um grupo de fãs do Ceará Sporting Club. Além de apoiar seu time do coração, os Cangaceiros se apresentam como uma torcida organizada (T.O.) “diferente” das outras. Uma das distintinções é o fato de os C.A. se definirem como um “movimento cultural” que fala sobre identidade nordestina nas arquibancadas. Outra peculiaridade é a recusa de práticas de violência contra rivais. Esse distanciamento da violência é trazido em forma de discurso pelos C.A. através de lemas, camisas, mascote, gesto de saudação e outras formas de discurso.

O objetivo deste trabalho é identificar qual a visão de violência que esses torcedores possuem. Para isso, foram observados quais os símbolos acionados, excluídos ou ressignificados; quais práticas violentas são criticadas e eventualmente quais são exercidas. Foram realizadas entrevistas com três diretores dos C.A., além de aplicados 24 questionários com integrantes diversos da torcida.

Percebeu-se que os C.A., ao falarem de violência, estão se referindo essencialmente à física, às brigas entre torcidas. A violência simbólica contida em xingamentos não é problematizada. A maioria dos integrantes afirma se recusar a participar de atos violentos junto com a torcida ou em nome do time.

Alguns símbolos usados, que poderiam criar uma imagem indesejada de violência, são ressignificados. O cangaceiro não porta armas; o mascote não possui músculos avantajados nem faz posições de combate; a bebida alcoólica não é reconhecida como estimulador de práticas violentas.

Eles compreendem que existem atitudes violentas em boa parte das T.O., mas ressaltam que esses atos seriam praticados por uma minoria dos integrantes, já que a maioria seria formada por pessoas pacíficas.

O desejo de se afastar de uma imagem de violência é uma das estratégias dos Cangaceiros para se mostrarem “diferentes” da maioria das demais T.O., ocupando um outro lugar no campo das torcidas.

Palavras-chave: Nordeste, torcedores, violência.

INTRODUÇÃO

A equipe de futebol Ceará Sporting Club (Ceará SC), sediada na cidade de

Fortaleza-CE, é um dos clubes de futebol mais importantes do seu estado. Seus fãs

representam uma parcela relevante do número de torcedores de futebol cearenses,

1 Mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. 2 Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidde Federal do Ceará.

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disputando com seu rival, o Fortaleza Esporte Clube, o time com maior torcida no

estado3.

Assim como ocorre com quase todo clube de futebol “de massa”, o Ceará SC

possui algumas Torcidas Organizadas (T.O.). Atualmente, as principais são: Torcida

Organizada Cearamor (a maior e mais famosa), Movimento Organizado Força

Independente (M.O.F.I.), Torcida Ceará Chopp, Setor Alvinegro e a mais recente delas:

a Torcida Organizada Cangaceiros Alvinegros.

Esta última busca se apresentar como uma torcida diferente das outras. Uma

dessas distinções estaria no seu objetivo de não apenas apoiar o time da maneira mais

criativa e vibrante possível – algo que é comum a qualquer T.O. – mas também falar

sobre o Nordeste. Outra característica distintiva em relação à maioria das outras T.O. é

o discurso de não-violência, de se mostrar uma torcida que não se envolve em brigas e

outras situações violentas que comumente envolvem T.O.4

O objetivo deste trabalho é identificar qual a visão de violência que esses

torcedores possuem. Para isso, foram observados os símbolos que são acionados,

excluídos ou ressignificados; quais práticas violentas são criticadas e eventualmente

quais são exercidas. Foram realizadas entrevistas com três diretores dos C.A., além de

aplicados 24 questionários com integrantes diversos da torcida.

RESSIGNIFICANDO O CANGAÇO

O nome da Torcida Cangaceiros Alvinegros é uma referência explícita ao

movimento do cangaço. O mascote e alguns materiais dos C.A. também remetem a esse

movimento histórico. É necessário, então, um melhor conhecimento sobre o Cangaço,

seus integrantes, as imagens que a sociedade fez e faz deles, bem como seu vínculo com

atos violentos.

3 Uma pesquisa da empresa Pluri Consultoria, divulgada em janeiro de 2014, estima o Ceará SC com um milhão de torcedores e o Fortaleza com 900 mil. http://esportes.opovo.com.br/app/esportes/clubes/ceara/2014/01/03/noticiasceara,2693189/segundo-pesquisa-ceara-tem-maior-a-torcida-no-estado.shtml 4 Essa postura diante da violência não é exclusiva dos C.A., estando presentes em algumas outras torcidas. Uma delas, também vinculada ao Ceará SC, é o Setor Alvinegro. Para mais detalhes sobre ela, ver MORAIS 2015. A escolha pelos C.A. se deve ao fato de ser esta a torcia que estou estudando em minha pesquisa de tese de doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.

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Djacir Menezes afirma que as figuras históricas conhecidas como cangaceiros

surgiram na região caatinga do que hoje chamamos de Nordeste no século XIX. “Tipo

habitual dos nossos sertões”, eram homens que formavam grupos armados particulares a

serviço de grandes coronéis. As brigas entre famílias e as disputas por terras eram as

maiores motivações para aquele tipo de “tropa” particular.

Emergindo entre lutas de famílias aguerridas, entre rivalidades de donos de terra, na qualidade de guarda-costas, capangas ou agregados (...). Eram homens do pastoreio, que dormiam de trabuco na mão.

(...) Os acontecimentos violentos, que refletiam o ambiente colonial, seriam infindáveis. As lutas de famílias poderosas exigem a transformação das fazendas em verdadeiros feudos armados (...). O “coronelismo político” da república aparece, de início, rodeado de tropas singulares, com vestes de couro e rifles (MENEZES, 1995, p. 73, grifos meus).

Estas palavras de Menezes nos apontam duas características que, desde seu

princípio, marcariam a imagem do cangaceiro: a intensa posse de armas, a violência e a

estética das roupas de couro.

Com o passar dos anos, esses grupos começaram a adquirir cada vez mais uma

postura autônoma, independente das ordens dos coronéis. Os cangaceiros assumem uma

luta que é vista como algo que poderia pôr em risco a estrutura de propriedades privadas

e o status quo (“a ordem social”, nas palavras de Menezes): “Tornam-se forças

autônomas que, por uma espécie de cissiparidade social, se desligam do feudo e iniciam

a luta por conta própria, contra a propriedade, contra a ordem social” (ibid, p. 78).

O autor estabelece um vínculo entre o movimento do cangaço e as dificuldades

de vida do homem pobre sertanejo:

Diante da injustiça social e econômica, levantam-se dois protestos de tipos inteiramente diversos. O do homem que toma a arma e decide fazer sua reparação; o do homem que pega do rosário e apela para o céu. Um protesto viril e violento, um protesto resignado e místico. Um cai no cangaço e no crime; outro, se ajoelha e reza. Mas não são dois grupos estranhos, são os mesmos sertanejos, com duas formas de inconformação, nos mesmos sentimentos de insegurança (...). O mesmo ser humano esquecido, desentendido, incompreendido, explorado, jogado entre forças sociais crescentes, imolado por um desenvolvimento cego, que parece absurdo aos seus olhos (MENEZES, p. 190).

Deste modo, o cangaceiro seria o homem sertanejo pobre que tomou esse modo

de vida como forma de protesto violento ao contexto social que o excluiu. Parece haver

aqui um atenuante àquela imagem do cangaceiro violento. Ele também é, em certa

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medida, uma vítima de determinados tipos de violência social. Talvez essa

lembrança de que o cangaceiro também é um sertanejo contribua na gênese dos valores

positivos que também o marcam: valentia, bravura, destemor, dignidade, coragem e até

mesmo justiça, que o fazem simpático a setores da população (VIEIRA, 2012, p. 228).

Assim, vemos a construção social dicotômica da imagem do cangaceiro: ora

vilão violento, ora justiceiro digno. Ora como assassino frio, ora como sertanejo sofrido

que reagiu às injustiças.

A partir dessa dualidade, os “cangaceiros” torcedores adotaram claramente o

lado positivo dessa imagem. Nas palavras de um dos integrantes,

...Lampião foi realmente uma figura muito... que fez muita guerra nas terras do Nordeste. Mas nossa torcida não tá pra isso, não. Se espelha nele em outras coisas, como conquistas as marias-bonitas, né? (risos). Aí sim5.

A apropriação positiva da imagem do cangaceiro fica perceptível também em

alguns dos materiais produzidos pela torcida.

Imagem 01: o mascote da torcida

A imagem 01 nos mostra o atual escudo dos C.A. Nele encontramos o nome da

torcida e o seu mascote. Este é um velhinho vestindo um chapéu de cangaceiro.

Levando-se em conta que o Vovô é o mascote do Ceará Sporting Club, percebe-se que a

figura-símbolo da torcida é o mascote do time ao estilo do cangaço.

5 Virgulino Ferreira “Lampião” foi por 16 anos o líder do “mais célebre e fugidio bando de

cangaceiros da toda a história do banditismo brasileiro”, situação que lhe valeu a alcunha de “Rei do Cangaço” (VILLELA, 1997, p. 82). Sua companheira, conhecida como Maria Bonita, teve o nome adotado pelos C.A. para se referir às mulheres integrantes da torcida.

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O Vovô Cangaceiro, além de seu chapéu, veste a camisa do clube. É

representado de maneira sorridente e descontraída. Não se percebe nele traços de

músculos avantajados, tampouco demonstrações de força física ou raiva. Isso vai de

encontro a uma prática comum a várias T.O.: a de representar o seu mascote por meio

de desenhos que ressaltam grade vigor físico, feições sisudas e, por vezes, usam roupas

características de artes marciais como judô e jiu-jitsu. A referência a esses esportes de

combate sugere um talento e disposição para a luta por parte do mascote e, por

consequência, da torcida e seus integrantes.

Neste ponto, Joseane Ribeiro chama a atenção para a ironia do fato de que boa

parte dos torcedores que vestem camisas estampadas por esses mascotes ostenta um

porte físico magro, distante daquelas imagens de força6. Isso sugere como a figura-

símbolo de uma torcida simboliza, muitas vezes, mais uma identidade desejada do que a

representação de uma realidade (RIBEIRO, 2010, p. 55).

Os C.A. abriram mão das imagens de músculos, raiva e agressividade para

conceber seu símbolo. Não inseriram nele elementos que, na concepção dessa torcida,

seriam vinculados à violência. Nas palavras de um dos diretores:

Você pode ver que o vovozinho é uma cara bem alegre, e tal, não passa nada de negativo, Isso aí já é um ponto de aproximação de gentes positivas, boas pra torcida.

Nota-se que o cuidado em preservar uma imagem da não-violência tem, além do

desejo da torcida de ser “bem vista”, o objetivo de evitar a chegada de torcedores

“indesejados”, atraídos por representações de agressividade.

Outra característica do Vovô Cangaceiro é aparecer no escudo repetindo o gesto

de saudação da equipe: uma mão à altura da boca, representando o ato de beber; a outra

com o dedo indicador e o polegar esticados, simulando o formato de um revolver ou

espingarda. Esta é a apresentação gestual do lema “Não portamos armas, bebemos

cachaça”. Os armamentos, ferramentas comuns aos cangaceiros históricos, são

substituídos a cachaça, no seu sentido de alegria e confraternização. Outro exemplo

dessa adaptação está em uma das primeiras camisas lançadas pela torcida, ainda em seu

ano de fundação:

6 Ribeiro, em seu trabalho, estudou duas T.O. ligadas ao Ceará Sporting Club: a Torcida

Organizada Cearamor e o Movimento Organizado Força Independente (MOFI).

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Imagem 02: camisa oficial dos C.A. lançada em 2011.

A parte frontal traz um enorme escudo do time “vestindo” em seu topo um

chapéu de cangaceiro. O símbolo está entrelaçado com suportes de couro que eram

usados pelos soldados do cangaço como local para guardar suas munições. Entretanto,

esses suportes, na camisa da torcida, não guardam balas, mas sim pequenas garrafas de

cachaça, comumente conhecidas como “celulares”. A explicação para isso encontra-se

na parte de trás da camisa. Nela, podemos ler na parte inferior o já citado leme “Não

portamos armas, bebemos cachaça!”.

Vê-se, após a observação desses materiais, como parte da estética cangaceira foi

mantida: o couro, o chapéu e o característico suporte para munição. Há, entretanto,

algumas mudanças. Apesar de os cangaceiros históricos terem sua imagem fortemente

vinculada ao uso de armas, é notável que elas trazem uma mensagem de bravura, mas

também de violência e crime. Os C.A., fugindo dessas representações negativas,

recusam o uso de armamentos, mesmo estando estes fortemente ligadas ao imaginário

do cangaço. Apenas os aspectos positivos, não-violentos do cangaço devem ser

rememorados.

CACHAÇA

As bebidas alcoólicas são um tema recorrente nos discursos dos C.A. Além das

referências já mencionadas, elas são citadas pelos torcedores em grande parte de suas

músicas, como exemplificam esses versos:

Vodca, whisky, cerveja e cachaça Com minha cachaça na mão Sou cangaceiro, sou, sou cangaceiro Vou beber de montão Vodca, whisky, cerveja e cachaça Vai, meu vozão Sou cangaceiro, sou, sou alvinegro (Música “Pout Porri – Cachaça”) (Música “Sou é cangaceiro”) Vou dar um gole na cachaça

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Eu sou é cangaceiro Eu fico bebo mas não passa Torço pro Ceará O meu amor ao Ceará Nem que eu morra bebo (Música “Eu vim mostrar minha alegria”) Eu vou é sacudir a arquibancada (Música “Cangaço só na gelada”) Sou cangaceiro Alvinegro A vida aqui só é ruim Já tô é bebo Quando não ganha o vozão Quero mais o quê? Mas se ganhar dá de tudo (Música “Pout Porri – Cachaça”) Cachaça tem de montão Tomara que ganhe logo Balança a cachaça no mei do corredo Tomara, meu deus, tomara Cangaceiro e Cearamor Não deixo o meu Ceará (Música “As torcidas estão unidas”) Nem se a cachaça acabar. (Música “Não deixo o meu Ceará nem se a Vamos beber todas cachaça acabar)” Pro vozão vamos torcer Ceará Chopp e Cangaceiros Vamos derrubar o litrão Fazem o estádio tremer E torcer pro vozão (Música “As torcidas estão unidas”) de coração

Há uma referência especial à cachaça dentre as demais bebidas. Esse destilado é

fabricado a partir da cana-de-açúcar, um tipo de planta que foi largamente cultivado em

terras brasileiras desde os primeiros séculos de sua colonização. Isso se deu modo mais

intenso em locais hoje compreendidos como parte da região nordestina: um trecho que

vai de Ceará a Sergipe, além do recôncavo baiano (FREIRE, 1967, p. 10). O modo de

produção açucareiro teve enorme influência na formação social naquelas terras. Gilberto

Freyre destaca um modelo de família aristocrático mais forte que em qualquer outra

parte do Brasil, dotado de características “quase feudais”. A base dessa estrutura social

da zona canavieira era composta também pelos negros escravizados e pelos homens

livres pobres – os sertanejos (ibid., p. 102-104).

Durante as primeiras décadas do século XX foram criados alguns órgãos

estatais voltados ao Nordeste, como o IAA – Instituto do açúcar e do Álcool; e a

SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste. Deve-se entender

por “desenvolvimento” uma maior inserção na dinâmica da produção capitalista e em

novos modelos de industrialização (PENNA, 1992, p. 29). A chegada desses projetos

modernizantes não foi suficiente para alterar as formas de reprodução do capital e

desigualdades no Nordeste. Pelo contrário, essas medidas acabaram por reforçar aquele

status quo. (OLIVEIRA, p. 67).

Os projetos de industrialização do Nordeste não extinguiram a produção agrária

do açúcar, mas sim a intensificaram. A partir da década de 70 foi expandida a área

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ocupada pela plantação de cana-de-açúcar, arroz, cacau, feijão, laranja e milho

(ARAÚJO, 1995, p. 129).

Esse vínculo histórico da cana com o Nordeste poderia ser uma pista para a

escolha da cachaça como bebida preferencial dos C.A., isso não é, contudo, citado pelos

entrevistados. Quando perguntados o motivo da torcida falar tanto sobre cachaça, as

razões apontadas são a predileção desses torcedores pela bebida.

A lei federal Nº 10.671, conhecida como Estatuto do Torcedor, foi sancionada

pelo então presidente Lula da Silva. Este conjunto de normas dispõe sobre a proteção e

defesa dos espectadores de eventos esportivos. Dentre suas várias resoluções, destaco a

que proíbe a entrada e o consumo de bebidas alcoólicas dentro das praças esportivas:

CAPÍTULO IV

DA SEGURANÇA DO TORCEDOR PARTÍCIPE DO EVENTO ESPORTIVO (...) Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: (...) II - não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência (BRASIL, 2003).

A ingestão de álcool é tratada, nesta lei, como questão de segurança. Esse tipo de

bebida é considerado oficialmente como um potencial estimulador de práticas violentas

dentro dos estádios.

Neste ponto, chama a atenção o fato de os C.A. sustentarem dois discursos que

em certa medida podem ser vistos como conflitantes: de um lado, a crítica à violência;

do outro, a ode ao consumo de bebidas alcoólicas, que seriam “suscetíveis de gerar a

prática de atos violentos”. Essa teórica contradição não parece ser problemática a esses

torcedores. Não identifiquei nenhum tipo de música, lema, documento ou nota oficial na

qual o C.A. tratassem desse vínculo álcool/violência, nem mesmo como forma de

crítica. O único momento em que vi os torcedores falando disso foi na situação de

entrevista, quando os indaguei diretamente sobre o assunto. As respostas sustentam a

ideia de que essa ligação entre álcool e bebida não seria correta, conforme ilustra a fala

de outro integrante:

Eu acho que isso não existe. Até porque, se for gerar violência com a bebida, hoje é proibida a venda dentro do estádio de bebida alcoólica, mas muitos

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torcedores chega duas horas antes de jogo, mete o pau na cachaça, como a gente chama aqui, e depois lá dentro do jogo ele... mas na minha concepção [creio] que não seja esse fato, relacionado bebida com violência, não, até mesmo porque a violência hoje infelizmente tá no mundo, e não é por conta só da bebida. Às vezes fica até chato, eu acho que tá afastando um pouco o torcedor do futebol também (...). Eu acho que a bebida não aumenta o caso de violência dentro do estádio. Nem fora, ao redor. Acho que isso já vem de outras ocasiões.

Deste modo, a ligação entre álcool e violência, reconhecida pelo Estatuto do

Torcedor, não é compartilhada pelos C.A. Entretanto, também não há por parte deles a

tentativa de desconstrução desse vínculo.

VISÕES SOBRE VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS

Aplicamos questionários com integrantes dos C.A. durante os dias 18 e 29 de

abril de 2015, quando das partidas Ceará x Guarani de Juazeiro (Campeonato Cearense)

e Ceará x Bahia (Copa do Nordeste), chegando a um total de 24 perfis. As aplicações

aconteceram no entorno dos estádios, algumas horas antes do início das partidas.

Esses questionários fizeram parte das atividades da disciplina Sociologia do

Esporte, ministrada pelo prof. Domingos Abreu durante o primeiro semestre de 2015 no

Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Foram ouvidos

integrantes de três T.O., duas delas são as maiores do estado: Torcida Organizada

Cearamor e Torcida Uniformizada do Fortaleza (TUF), respectivamente ligadas ao

Ceará Sporting Club e ao Fortaleza Esporte Clube. Além delas, também foram

consultados os Cangaceiros Alvinegros. Todas essas aplicações foram feitas pelos

alunos da disciplina, além do aluno de estágio docente Artur Alves e do prof. Domingos

Abreu.

Dentre as 23 perguntas que compuseram os questionários, selecionamos algumas

de interesse específico deste artigo. Uma delas foi perguntada exatamente deste modo:

Quadro 01 - Pergunta: O que está disposto a fazer junto com sua Torcida Organizada? Dê uma

nota de 1 a 5 para cada resposta. 1 é o menos importante e 5 é o mais importante na sua escolha.

“Estou

disposto a...”

Pessoas que

deram nota 1

Pessoas que

deram nota 2

Pessoas que

deram nota 3

Pessoas que

deram nota 4

Pessoas que

deram nota 5

Cantar 0 0 2 2 20

Fazer

coreografia

0 1 1 6 16

Gritar 0 0 1 1 22

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Brigar 20 1 0 1 2

Chorar 2 0 2 1 19

Ajudar com

dinheiro

0 2 0 6 16

Nota-se como a maioria dos cangaceiros deu nota 5 para quase todas as opções,

mostrando que eles estão muito dispostos a fazer cada uma delas. As alternativas bem

avaliadas são, em geral, bem vistas dentro do habitus torcedor, como cantar, gritar,

chorar, fazer coreografia e ajudar o clube financeiramente. A exceção fica para “brigar”,

que recebeu 21 notas baixas. Isso demonstra que, pelo menos no discurso, esses

torcedores não desejam brigar junto com seus companheiros de torcida. Mesmo assim, é

válido ressaltar que três pessoas deram notas altas, acima de 3. Isso faz crer que o

discurso da não-violência, embora realmente hegemônico na torcida, não é

unanimidade.

Quadro 02 – Qual sua motivação para ir ao estádio? Dê uma nota de 1 a 5 para cada resposta. 1 é o

menos importante e 5 é o mais importante na sua escolha.

Opção Pessoas que

deram nota

1

Pessoas que

deram nota

2

Pessoas que

deram nota

3

Pessoas que

deram nota

4

Pessoas que

deram nota

5

Fazer parte da T.O. 2 1 3 2 16

É o meu momento de

lazer.

0 0 1 5 18

Gosto de ver o jogo ao

vivo

0 0 0 3 21

Gosto de participar da

festa e da vibração da

torcida

0 1 0 2 21

A fase vitoriosa do

clube

11 0 0 1 12

Incentivar meu time 0 0 0 0 24

Brigar pelo meu time 18 1 0 1 4

A exemplo da pergunta tratada no Quadro 01, nesta também vemos como todas

as opções que podem ser consideradas positivas receberam notas altas pela maioria

daqueles torcedores. Novamente a única alternativa que recebem notas baixas foi aquela

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ligada ao ato de brigar. Contudo, dentro dela chamam a atenção as cinco pessoas que

consideraram “brigar pelo time” uma motivação forte para ir ao estádio. Sabemos que

essa expressão pode gerar mais de uma interpretação: “brigar pelo time” pode ter um

sentido metafórico, a briga enquanto ato de gritar, pular, ou mesmo discutir em defesa

do seu clube; mas pode também ter a compreensão de confronto físico. Mesmo assim,

essas cinco respostas somam-se àquelas três citadas no quadro anterior, mais uma vez

mostrando como a ideia de briga com a torcida e/ou pelo time não é completamente

descartada dentro dos C.A.

Quadro 03 – Pergunta: o que você acha das torcidas organizadas em geral? Dê uma nota de 1 a 5

para cada resposta. 1 é o menos importante e 5 é o mais importante na sua escolha.

Opção Pessoas que

deram nota 1

Pessoas que

deram nota 2

Pessoas que

deram nota 3

Pessoas que

deram nota 4

Pessoas que

deram nota 5

São uma família 10 6 3 3 2

São os que mais têm

o time do coração

5 3 7 1 8

São bagunceiros 0 2 9 0 13

São briguentos 0 3 9 2 10

São pacíficos 12 3 5 3 1

Os cangaceiros entrevistados têm uma visão negativa das T.O. em geral. As

alternativas consideradas negativas (“bagunceiros” e “briguentos”) receberam notas

altas da maior parte dos entrevistados, respectivamente 13 e 12. Aqui, vale ressaltar a

quantidade de torcedores que optaram pelo meio termo: 9 deles responderam nota 3

para essas opções negativas. Isso sugere que, em sua maioria, os C.A. consideram as

T.O. bagunceiras e briguentas, mas esse julgamento com predomínio absoluto. Uma

minoria expressiva tem uma visão mais moderada.

Por sua vez, as opções de imagem positiva tiveram notas baixas. 16 cangaceiros

não concordam que as T.O. são uma família, e 15 deles não consideram que as

organizadas sejam pacíficas A opção “são os que mais têm o time no coração” recebeu

número expressivo de notas altas, ainda que sendo a minoria do total: foram 09. Isso

mostra que, para mais de 1/3 dos entrevistados, os torcedores organizados têm um

vínculo emotivo com o time superior aos demais fãs.

Quadro 04 – Pergunta: o que você acha da sua Torcida Organizada? Dê uma nota de 1 a 5 para

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cada resposta. 1 é o menos importante e 5 é o mais importante na sua escolha.

Opção Pessoas que

deram nota 1

Pessoas que

deram nota 2

Pessoas que

deram nota 3

Pessoas que

deram nota 4

Pessoas que

deram nota 5

É uma família 0 0 0 0 24

É a que mais têm o

time no coração

0 0 4 3 17

E bagunceira 16 1 2 1 4

É briguenta 22 0 1 0 1

É pacífica 0 0 1 0 23

A visão que os C.A. conservam sobre sua torcida é bem diferente daquela que

eles tem a respeito das demais. Enquanto o julgamento sobre as outras T.O. é

predominado pelas características negativas, a análise sobre eles próprios é amplamente

marcada por aspectos positivos.

As opções “é uma família”, “é a que mais tem o time no coração” e “é pacífica”

receberam, todas, 20 ou mais notas altas. Já “é bagunceira” (17) e “é briguenta” (20)

tiveram em sua maioria notas baixas. Vale destacar como cinco pessoas ainda deram

notas altas para “é bagunceira”. A experiência do ato da aplicação dos questionários

sugere que alguns desses entrevistados interpretaram “bagunceira” em um sentido não-

depreciativo, mas de bagunça enquanto fazer festa, fazer brincadeiras. Essa

ambiguidade de interpretações deve ter influenciado algumas respostas.

Os diretores que concederam entrevista para a pesquisa também foram

solicitados a dar suas opiniões a respeito da relação entre T.O. e violência.

Eu acho o seguinte, que o pessoal generaliza muito. Muitas vezes o cara não conhece o que é a torcida por dentro, e tal, o que é que os cara passam, e às vezes julgam sem saber. Tá certo que tem muita vagabundagem em torcida, isso aí é fato, não tenho como negar isso. Sendo que tem muita gente boa também (...).E eu acho isso uma tremenda duma injustiça, porque nas torcidas, principalmente nas maiores, porque elas cresceram duma maneira descontrolada, elas tem muita gente infiltrada lá dentro que usa as torcidas pra realmente cometer atos criminosos. E eu acho que isso cresceu duma forma que eles não têm como ter esse controle.

O pessoal generaliza. “Ah, aquela pessoa tá com camisa de torcida organizada, é vagabundo!”, “ah, tem tatuagem, é vagabundo”. É uma coisa que eu sou muito cri-cri. “Ah, torcida organizada tem muita vagabundagem”, tem. Tava até falando: “torcida é organizada”, temo organizador. Agora, tem os baderneiro (...). Mas lembrem-se, no meio daquela vagabundagem tem criança, tem idoso, tem pai de família, tem aquela família que vai pai, mãe e filho. Tem um tio que quer levar um sobrinho pela primeira vez.

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Os entrevistados reconhecem que nas T.O. existem integrantes “criminosos” e

“vagabundos” que seriam, podemos inferir, os responsáveis pelos atos violentos

envolvendo torcidas. Ressaltam ainda que esse perfil de torcedor seria uma minoria

dentro das T.O., que por sua vez teriam a predominância de “gente boa”, “criança”,

“idoso”, “pai de família”, pessoas que não promoveriam práticas negativas. Entretanto,

aquela minoria teria força o suficiente para realizar suas atitudes violentas, imprimindo

uma imagem negativa generalizada para toda a T.O. Essa generalização, para os

entrevistados, seria injusta.

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Durante jogos do Ceará no estádio Presidente Vargas7, não é raro ouvir

integrantes da torcida cantando músicas direcionadas a atletas do time adversário que,

em trabalhos de aquecimento às bordas do gramado, ficam a uma pequena distância dos

C.A., curta o suficiente para que consigam ouvir aqueles torcedores. Quando os

jogadores correm, alguns cangaceiros cantam:

Corre, veado! Corre, veado! Senão eu te como cozido ou assado.

Quando os atletas dão saltos, também são alvo de versos: “Pula viadinho! Pula

viadinho!”

Duas das músicas que compõem o CD da torcida também apresentam trechos

em que o adversário é “xingado” de homossexual:

Sou alvinegro apaixonado Meu Vozão é o terror Ceará até morrer Leão gay tu passa é mal Lê lê lê, lê lê lê Cangaceiros e o Setor Alvinegro Eu vou botando é pra fuder têm moral Lê lê lê, lê lê lê (Música “As Torcidas Estão Unidas”) E o leão gay na Série C8 Lê lê lê, lê lê lê

7 O Estádio Presidente Vargas (PV) tem atualmente capacidade para pouco mais de 20 mil pessoas. É uma praça esportiva de estrutura bem menor que o principal estádio cearense, a Arena Castelão, que comporta mais de 60 mil pessoas. Os C.A., no PV, localizam-se a uma distância curta para o campo em relação ao Castelão, onde ficam no anel superior do estádio. 8 O leão é o mascote do Fortaleza Esporte Clube, principal rival do Ceará SC, e também símbolo da Torcida Uniformizada do Fortaleza (TUF), a principal TO ligada àquele time.

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Se eu te pegar você vai ver (Música “Lê lê lê alvinegro”) É perceptível como as palavras “gay” e “veado” são usadas para se referir de

maneira depreciativa aos adversários. Esse tipo de “xingamento” contribui na percepção

de como o campo do futebol, do mesmo modo que outras esferas da vida social, é

marcado por certo ideais de masculinidade e virilidade.

A cultura comum ao futebol é sabidamente androcêntrica, sendo o estádio um espaço privilegiado de experimentação e, também, celebração da virilidade. Para tanto, a desqualificação do oponente, seja ele o time, o torcedor, ou mesmo um outro profissional do esporte, tradicionalmente se baseou na imputação de uma suposta feminilidade – relacionada tanto às mulheres como aos homossexuais. Este é o universo cultural e simbólico que os jovens torcedores irão encontrar e integrar. Integrar de fato, posto que passarão a compartilhar e manusear determinados códigos, na busca do pertencimento e da diluição no espaço físico e simbólico do futebol (RIBEIRO, p. 134).

A visão do futebol como algo masculino não é recente, tampouco se fez apenas

no âmbito das representações sociais. Tomando como exemplo o Brasil, em 1942 foi

sancionado, pelo presidente Getúlio Vargas, o decreto 3.199, que em seu artigo 54

anunciou ser proibida às mulheres a prática de esportes “incompatíveis com a sua

natureza” (CASTELLANI FILHO, 2012). Esta resolução foi reforçada em 1965, já

durante o período militar, com a deliberação 7/65. Nela, o Conselho Nacional de

Desporto especificou quais eram as atividades esportivas não-condizentes com a

natureza feminina: “lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de

praia, pólo, halterofilismo e baseball” (ibid.). A proibição se estendeu até 1979.

Há uma visão de que o futebol é um lugar de masculinidade e virilidade. A

afirmação de que o oponente é feminino ou homossexual mostra-se uma estratégia

discursiva para desqualificar, inferiorizar. É possível identificar nessa postura

características do que Bourdieu conceitua como violência simbólica. De acordo com o

autor, existem maneiras de falar, agir, pensar e sentir que são “arbitrários culturais”

(BOURDIEU, 2002a, p. 8). Significa dizer que são elementos socialmente construídos

em um campo de lutas no qual os dominantes tentam fazer prevalecer seus valores e

visões de mundo, enquanto os dominados incorporam esses sistemas simbólicos, muitas

vezes de maneira não consciente, reconhecendo-os como naturais (BOURDIEU, 2002b,

p. 12). É exatamente nessa incorporação naturalizada de sistemas socialmente

construídos que Bourdieu identifica a violência simbólica, marcada por ser:

...suave, insensível, invisível ás suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas de comunicação e do

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conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do desconhecimento (BOURDIEU 2002a, p. 7-8).

Deste modo, percebemos que há por parte dos C.A., assim como em boa parte

das T.O., práticas que podem ser compreendidas como violentas, não do ponto de vista

físico, mas do moral, simbólico. Isso se dá, sobretudo, no uso de palavras que têm como

objetivo desqualificar ou agredir o oponente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Torcida Cangaceiros Alvinegros procura se diferenciar de outras Torcidas

Organizadas em alguns aspectos. Dentre eles, está a sua postura diante da questão da

violência. Os C.A. buscam desvincular sua imagem como a de uma torcida envolvida

em confrontos e rivalidades sangrentas entre torcedores. Essa posição se dá, enquanto

discurso, na recusa em usar certos símbolos comuns a muitas T.O., como mascotes

musculosos ou músicas que fazem referência a brigas contra rivais. Também está

presente na ressignificação de alguns elementos socialmente vinculados à violência: as

armas e munição do cangaço dão lugar à cachaça, à festa e ao namoro; o consumo de

álcool, reconhecido pelo Estatuto do Torcedor como algo que pode levar pessoas a

práticas violentas, perde esse vínculo na visão dos C.A.

A fala dos integrantes, quando perguntados sobre o tema da violência, também

reforça esse desejo de afastamento. Deve-se ressaltar, entretanto, que a recusa completa

à violência não está presente em 100% das falas dos integrantes. Há uma minoria que

afirma estar disposta a brigar pelo time e/ou junto com sua torcida.

O tipo de violência da qual o C.A. desejam se afastar é fundamentalmente a

violência física: brigas, conflitos e agressões sangrentas contra oponentes. Entretanto há

outro tipo de violência, a simbólica, que não parece estar no centro das atenções desses

torcedores. Agressões verbais e o uso do feminino/homossexual como desqualificadores

são encontrados em algumas músicas do CD da torcida e em versos improvisados nas

arquibancadas, mesmo sendo estas manifestações minoritárias em relação ao total das

performances produzidas por essa torcida.

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n. 10.671 – Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras

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___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002b.

CASTELLANI FILHO, Lino. Esporte e mulher em perspectiva. [online] Disponível em: <http://www.universidadedofutebol.com.br/Coluna/11747/Esporte-e-Mulher-em-perspectiva> Acessado em: 01/06/2015. FREIRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de janeiro: José Olympio Editora, 1967.

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