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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
JULIANA LUISA CAPPI
Narrativas não-lineares do Korsakow System:
criação e organização de narrativas em um banco de dados interativo
SÃO PAULO
2013
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
JULIANA LUISA CAPPI
Narrativas não-lineares do Korsakow System:
criação e organização de narrativas em um banco de dados interativo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos
Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (COS), linha de
pesquisa 3 – Análise das Mídia, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) para a obtenção do grau de
Mestre em Comunicação e Semiótica.
Orientador: Professor Doutor Arlindo Ribeiro Machado Neto
SÃO PAULO
2013
3
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação
Programa de Comunicação e Semiótica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
4
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo– PUCSP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Mestrado em Comunicação e Semiótica
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertação de Mestrado
Narrativas não-lineares do Korsakow System:
criação e organização de narrativas em um banco de dados interativo
elaborada por
Juliana Luisa Cappi
Como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Comunicação e Semiótica
COMISSÃO EXAMINADORA:
______________________________
Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto (PUC/SP)
Presidente/ Orientador
______________________________
Dra. Jane Mary de Almeida (PUC/SP)
Primeiro membro
_______________________________
Dr. Gilberto dos Santos Prado (USP)
Segundo membro
São Paulo, 14 de outubro de 2013.
5
AOS AMIGOS E FAMILIARES QUE ME APOIARAM
AO LONGO DO PERÍODO DE ELABORAÇÃO DESTE TRABALHO.
6
CAMINANTE, SON TUS HUELLAS
EL CAMINO Y NADA MÁS;
CAMINANTE, NO HAY CAMINO,
SE HACE CAMINO AL ANDAR.
AL ANDAR SE HACE EL CAMINO,
Y AL VOLVER LA VISTA ATRÁS
SE VE LA SENDA QUE NUNCA
SE HA DE VOLVER A PISAR.
CAMINANTE NO HAY CAMINO
SINO ESTELAS EN LA MAR.
ANTONIO MACHADO
7
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Título: Narrativas não-lineares do Korsakow System: criação e organização de
narrativas em um banco de dados interativo.
Autor: Juliana Luisa Cappi
Orientador: Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto
RESUMO
Esta dissertação visa investigar os aspectos formais e poéticos referentes ao programa
de criação de narrativas não-lineares interativas organizadas em um banco de dados, o
Korsakow System. A pesquisa baseia-se em artigos e entrevistas publicados pelo
criador do programa, Florian Thalhofer, que explicitam o contexto no qual o
programa foi criado, o objetivo buscado com a sua criação e as justificativas das
escolhas de divulgação e distribuição do programa. Esses objetivos consistem no
desenvolvimento de um banco de dados interativo formado por objetos audiovisuais
organizados em uma montagem temporal realizada pelo espectador, que seleciona
esses objetos a partir de ligações propostas pelo programador. A pesquisa também
realiza um levantamento das aplicações mais criativas deste programa, realizadas pelo
criador e por outros pesquisadores. Esse levantamento foi organizado em uma
classificação que delimita a produção em quatro categorias criadas na pesquisa e que
definem os objetivos mais populares de utilização do programa: artístico, documental,
cinematográfico e educacional. Ao finalizar esta contextualização, desenvolvemos um
texto crítico sobre a utilização do programa, incluindo os apontamentos das
problemáticas estruturais e conceituais que impedem a criação de narrativas que
alcancem a proposta inicial de Thalhofer. A metodologia desta pesquisa é
estabelecida a partir das teorias sobre as relações entre as novas mídia e o cinema dos
pesquisadores Arlindo Machado e Lev Manovich e pelas discussões sobre criação em
rede e internet propostas por Lucia Leão e Janet Murray. As discussões propostas por
esta pesquisa estão relacionadas à produção contemporânea nas artes visuais e no
cinema interativo na internet, na apropriação de conceitos de interatividade, autoria e
criação de projetos colaborativos presentes em projetos experimentais online.
Palavras-chave: novas mídias, linguagem audiovisual, banco de dados, interatividade,
Korsakow.
8
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Title: Nonlinear narratives of Korsakow System: creation and organization of
narratives in a interactive database.
Author: Juliana Luisa Cappi
Adviser: Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto
ABSTRACT
The purpose of this research is to investigate the formal and poetic aspects concerning
to the program of creation of non-linear narratives, organized in a database system,
the Korsakow System. The research is based on articles and interviews published by
the creator of the program, Florian Thalhofer, and it shows the context on which it
was created, its purpose and the reasons of the choices made for broadcasting and
distribution of the program. These purposes consist of the development of an
interactive database system formed by audiovisual objects organized in a time
schedule by the spectator, who chooses such objects from the connections set by the
programmer. This work also shows a list of the most creative applications of this
program, done by its creator and other researchers. This list was organized according
to a classification that limits the production into four categories that define the most
popular aims of the uses of the program, which are: artistic, documental,
cinematographic and educational. At the end of this explanation, we developed a
critical text about the uses of this program, including on it the structural and
conceptual problems that unable the creation of narratives that reach Thalhofer’s
initial proposal. Our methodology was established based on Arlindo Machado and
Lev Manovich’s theories of the connections between the new media and the cinema
as well as the discussions upon web and internet creation proposed by Lucia Leão and
Janet Murray. This research present a series of issues related to the contemporary
production in visual arts, in the movies and in the internet, and explain the notions of
interactivity, authorship and creation of shared experimental online projects.
Key words: new midia, audiovisual language, database, interactivity, Korsakow.
9
Lista de Imagens
Imagem 1. Interface principal para programação do Korsakow
System
p. 37
Imagem 2. Interface de produção de um SNU p. 38
Imagem 3. Interface de visualização das palavras-chave p. 39
Imagem 4. Programação da interface de interação de um k-film p. 40
Imagem 5. Imagem ilustrativa de um objeto e suas palavras-chave
de entrada e saída
p. 44
Imagem 6. Imagem ilustrativa de objetos e suas ligações p. 44
Imagem 7. Imagem ilustrativa de objetos e suas ligações II p. 45
Imagem 8. Reproduções de três telas de narrativas do filme Small
World (1997)
p. 46
Imagem 9. Reproduções de três telas de narrativas do filme
Korsakow Syndrom (2000)
p. 48
Imagens 10 e 11. Documentação do processo de filmagem e still do
k-film 7 Sons (2003)
p. 48
Imagens 12 e 13. Documentação da videoinstalação 7 Sons (2003)
no Goethe-Institut, Cairo, Egito
p. 49
Imagem 14. Reprodução da interface de interação do k-film
ForgottenFlags (2006)
p. 49
Imagem 15. Reprodução de imagens do k-film Planet Galata (2010) p. 50
Imagem 16. Reprodução de imagens do k-film Money and the
Greeks (2012) I
p. 51
Imagem 17. Reprodução de imagens do k-film Money and the
Greeks (2012) II
p. 51
Imagem 18. Documentação do Korsakow Show Freedom and
Money (2009)
p. 52
10
Sumário
Introdução p. 11
1 – Novas mídia e a linguagem audiovisual p. 13
1.1 – Histórico – sobre o surgimento do conceito de novas mídia p. 13 1.2 – O cinema e as novas mídia p. 22
2 – O Korsakow System e montagem aberta p. 33
2.1 – FlorianThalhofer e o projeto original p. 33 2.2 – Estrutura e possibilidades p. 41 2.3 – K-films p. 45
3 – O Korsakow System e sua utilização p. 55
3.1 – Korsakow e a obra de arte p. 56 3.2 – Korsakow e a educação p. 59 3.3 – Korsakow, cinema e o documentário p. 61 3.4 – Korsakow e a experimentação p. 64
4 – O Korsakow System na rede p. 70
4.1 – A criação processual p. 70 4.2 – O interator colaborador p. 73 4.3 – O potencial do pensamento em rede p. 75
5 – Repensando o Korsakow System p. 78
Considerações finais p. 84
Bibliografia p. 86
Documentos eletrônicos p. 87
Anexo p. 90
11
INTRODUÇÃO
Quando usamos o conceito de “mídia interativa” exclusivamente
em relação às mídias computacionais, existe o perigo de que
iremos interpretar “interação” literalmente, equiparando-a com a
interação física entre um usuário e o objeto midiático
(pressionando um botão, escolhendo um link, movendo o corpo),
em detrimento da interação psicológica. Os processos psicológicos
de autopreenchimento, formação de hipóteses, recordação, e
identificação, os quais são necessários para nós compreendermos
qualquer texto ou imagem, são erroneamente identificados como
uma estrutura de ligação interativa objetivamente existente. 1
(MANOVICH, 2001, p. 57, tradução nossa)
As novas mídia são essencialmente interativas e dão ao espectador a
oportunidade de se relacionar com os objetos comunicacionais de formas cada vez
mais conscientes. O pesquisador Lev Manovich discute ponto a ponto as
características das novas mídia e como elas estão influenciando as outras linguagens.
Mas, ao pensar no ponto mais reconhecido dessa nova mídia, a interação, surgem
alguns questionamentos: o que é esta interação e como ela influencia o autor e o
espectador?
Esta dissertação pretende identificar o funcionamento e os conceitos por trás
do Korsakow System, um programa de computador criado e desenvolvido para
promover e facilitar a criação de narrativas não-lineares em bancos de dados
interativos. Este programa foi selecionado para ser analisado pois ele apresenta
aspectos interessantes em relação aos processos de construção poética envolvendo
programadores e interatores, de organização formal e processual e no modo como ele
é divulgado e distribuído na rede.
1 When we use the concept of “interactive media” exclusively in relation to computer-based media, there is the
danger that we will interpret “interaction” literally, equating it with physical interaction between a user and a
media object (pressing a button, choosing a link, moving the body), at the expense of psychological interaction.
The psychological processes of filling-in, hypothesis formation, recall, and identification, which are required for us
to comprehend any text or image at all, are mistakenly identified with an objectively existing structure of
interactive link. MANOVICH, Lev. The language of new media. (Cambridge: MIT Press.2001), p. 57, tradução
nossa.
12
Para isso, este trabalho será dividido em cinco capítulos. O primeiro será uma
retrospectiva histórica e cronológica das novas mídia, apresentando suas
características e relações com o audiovisual. Em um item, será analisada a
configuração das novas mídia como algo gerado a partir da linguagem
cinematográfica.
No segundo capítulo discorreremos sobre o Korsakow System, tratando
primeiramente do projeto inicial do criador, o alemão Florian Thalhofer, depois da
organização e programação do objeto e finalizando o capítulo com os primeiros
experimentos de Thalhofer e os relatos dos processos de criação.
O terceiro capítulo será o levantamento e a identificação das diferentes
intenções de usuários que utilizaram o Korsakow System: como criação e organização
de obras de arte; para fins de pesquisa e educação; para a produção de filmes e
documentários e como apropriação para o desenvolvimento de projetos
experimentais.
O quarto capítulo é a construção de uma análise sobre o Korsakow System
como um objeto que indica as possibilidades de criação aberta e colaborativa
potencializadas pelas novas mídia.
O quinto capítulo é uma análise crítica sobre as aplicações menos criativas do
programa, em apontamentos sobre o programa percebido como uma ferramenta
limitante ao processo criativo em oposição a um possível despreparo ou
desconhecimento dos programadores em relação ao potencial do Korsakow System.
Outro apontamento é referente aos processos criativos em relação a uma nova mídia,
em uma análise sobre a criação de uma reflexão sobre a criação dentro do próprio
programa ou a possibilidade de apenas reverter uma narrativa estruturalmente linear
em um filme não-linear.
A pesquisa foi desenvolvida com base na investigação dos conceitos que
formam o que entendemos por novas mídias, situando o Korsakow System e sua
entrutura nos meios comunicacionais. Partindo-se dos aspectos formais, a criação
poética neste programa é relacionada às formas de construção de narrativas não-
lineares sugeridas por Janet Murray e Lucia Leão.
A finalização desta dissertação é revelada nas Considerações Finais, que
aponta as conclusões sobre as relações entre forma e conceito do programa Korsakow
e os projetos criados nele, além de indicar os possíveis desdobramentos futuros para
esta pesquisa.
13
1 –NOVAS MÍDIA E A LINGUAGEM AUDIOVISUAL
As novas mídia estão em pleno desenvolvimento desde a segunda metade do
século XX. Este rápido desenvolvimento ocorre pelo crescimento da indústria que
cria programas de computador, o aumento da oferta de produtos que suportam a
utilização desses novos meios e a popularização do acesso a computadores, celulares
e máquinas fotográficas digitais. Assim, em um movimento cíclico, a busca e o acesso
a essas novas mídia incentivam a adaptação e a criação.
Proponho neste capítulo uma forma de arqueologia das novas mídia a partir
das características levantadas pelo pesquisador Lev Manovich, com o intuito de expor
as origens, a configuração e a relação com sua linguagem-irmã: o cinema.
1.1 – Histórico – sobre o surgimento do conceito de novas mídia
Definir o momento ou data específica do surgimento de linguagens ou de
fenômenos culturais é um trabalho árduo e muitas vezes frustrante. Essa frustração
pode ser amenizada quando se compreende como esses fenômenos e linguagens se
desenvolvem. No caso das novas mídia, esse desenvolvimento não é linear e se
assemelha mais a uma imagem de ramificação do que à de uma linha que liga o ponto
inicial ao ponto final.
Se pesquisarmos sobre o termo “novas mídia” na internet, perceberemos que
ele é, na maioria das vezes, associado a aparelhos ultratecnológicos, que agem como
mediadores entre o homem e o mundo, exemplificado através de aplicativos criados
para facilitar a vida do homem e, ao mesmo tempo, potencializar os meios de
comunicação comuns, permitindo que empresas interajam com seus consumidores de
forma mais direta e, consequentemente, mais eficaz. Como Manovich pontuou:
“Como pode ser visto a partir destes exemplos, o entendimento popular de o que seria
uma nova mídia a identifica com o uso de um computador para distribuição e
exibição, em vez de produção” (2001, p. 19) 2.
2 “As can be seen from these examples, the popular understanding of new media identifies it with the use of a
computer for distribution and exhibition rather than production”. MANOVICH, Lev. The language of new media.
(Cambridge: MIT Press, 2001), p. 19, tradução nossa.
14
Esse modo de perceber as novas mídia é resultado de um processo que teve
início em meados do século XIX, quando o que entendemos hoje por novas mídia
seguia por dois caminhos paralelos.
O primeiro caminho surge com a fotografia e a possibilidade de produzir
imagens que reproduzem o visível. O daguerreótipo, considerado o primeiro processo
de captar imagens e reproduzi-las, foi inventado por Louis Daguerre em 1839 e
apresentado em Paris no mesmo ano. Segundo Manovich (2001, p. 21) “Dentro de
cinco meses, mais de 30 descrições diferentes da técnica tinham sido publicadas em
todo o mundo - Barcelona, Edimburgo, Nápoles, Filadélfia, São Petersburgo,
Estocolmo” 3.
O daguerreótipo foi patenteado, mas era tarde: muitos outros inventores já se
haviam apropriado da ideia e desenvolvido suas próprias câmeras, muitas delas com
algumas diferenças no formato, material, quantidade de lentes, definição da imagem,
etc. Muito rapidamente a fotografia tornou-se parte do cotidiano dos grandes centros
europeus e americanos. A fotografia reinou como linguagem de duplicação do real e
construtora do fantástico até 1895, quando uma nova versão da linguagem fotográfica,
que ainda estava se desenvolvendo em relação às técnicas e poéticas, causou mais
uma onda de frenesi: a fotografia em movimento (Manovich, 2001, p. 23).
O segundo caminho também surge por volta de 1830. Em 1833, Charles
Babbage desenvolveu um dispositivo chamado “mecanismo analítico”. Este
mecanismo consistia em cartões perfurados, que eram usados para inserir dados e
instruções na memória do mecanismo. Para isso, Babbage criou uma unidade de
processamento, chamada por ele de Moinho (idem, p. 22). Este proto-processador de
dados realizava operações matemáticas seguindo a programação dos cartões
perfurados e também decidia por outros caminhos a seguir, ao se deparar com
resultados intermediários. O mecanismo criado por Charles Babbage não despertou
tanto espanto e frenesi quanto a máquina de Daguerre, indicação de uma possível
predileção humana pelos produtos prontos, visuais, em detrimento do processo de
produção. Temos, então, no mecanismo de Babbage, uma das primeiras tentativas
documentadas do processo computacional, de criação de dados, leitura,
processamento (transformando cartões perfurados em informação), armazenamento,
3 “Within five months more than thirty different descriptions of the technique had been published around the
world – Barcelona, Edinburgh, Naples, Philadelphia, St. Petersburg, Stockholm”. MANOVICH, Lev. The
language of new media. (Cambridge: MIT Press.2001), p. 21, tradução nossa.
15
seleção de informações armazenadas e reprodução, pois o mecanismo imprimia os
resultados dos cálculos em papel.
Não é de estranhar que a mídia moderna e as primeiras invenções cujos
processos são proto-computacionais tenham seu início no século XIX. A busca pela
informação acessível e a velocidade na produção são reflexos da Revolução
Industrial. Este período provocou mudanças sociais, econômicas e comportamentais,
modificando não apenas a velocidade da produção, mas aumentando a circulação de
produtos midiáticos, desenvolvendo a publicidade e disseminando informação visual
e sonora.
Ainda no início do século XX, de acordo com Manovich (ibidem, p. 24), o ano
mais importante para a história das mídia foi o ano de 1936. Neste ano, o matemático
Alan Turing escreveu um artigo intitulado “On Computable Numbers”, em que
descrevia o funcionamento de seu computador, que posteriormente foi nomeado a
partir de seu inventor. Essa máquina era capaz de apenas quatro operações, mas
conseguia realizar qualquer cálculo que pudesse ser feito por uma pessoa, além de
também conseguir imitar qualquer outra máquina computacional da época. O
funcionamento consistia na gravação de números em uma longa fita, que era
rebobinada a cada novo comando, para que o processador pudesse ler a informação e
imprimir o resultado.
A possibilidade de armazenar dados, sendo eles imagens, sons ou códigos, é a
principal similaridade entre o cinema e o computador. De acordo com Lev Manovich:
Se acreditamos que a palavra cinematógrafo, que significa
“escrevendo o movimento”, a essência do cinema está em gravar e
armazenar dados visíveis em uma forma material. Uma filmadora
registra dados (informações) em filmes: um projetor de filme o lê.
Este aparelho cinemático é semelhante a um computador em um
aspecto fundamental: um programa e os dados de um computador
também devem ser armazenados em algum meio.
(MANOVICH, 2001, p. 24). 4
4 “If we believe the word cinematograph, which means ‘writing movement’, the essence of cinema is recording
and storing visible data in a material form. A film camera records data on film; a film projector reads it off. This
cinematic apparatus is similar to a computer in one key respect: a computer’s program and data also have to be
stored in some medium”. MANOVICH, Lev. The language of new media. (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 24,
tradução nossa.
16
Não demorou muito para que o cinema e o computador convergissem e se
tornassem uma nova mídia. O engenheiro alemão Konrad Zuse criou, em 1936, um
computador digital em pleno funcionamento (ibidem, p. 25). Sua invenção consistia
em uma máquina que armazenava códigos binários5. Esses códigos, à maneira de
Babbage, eram perfurações em uma superfície. A diferença estava no suporte dessas
perfurações: Zuse utilizou uma película de filme 35mm, cinematográfico, no lugar de
um papel comum. Os fragmentos desse filme cinematográfico mostram uma cena:
dois personagens em um ambiente fechado, em ação. Assim, temos informação digital
(o código binário) armazenada em um suporte usualmente cinematográfico. Embora o
processo realizado por Zuse ainda não fosse o que as novas mídia são hoje, uma
formação quase orgânica entre o digital e outras linguagens, ele já indicava a
condição primordial das mídia modernas: portadoras de informação. Como
“moderna”, estamos nos referindo à primeira metade do século XX e a produção de
mídia informativa representada pelo crescimento de publicações periódicas e pelo
alcance do rádio e posteriormente da televisão. A questão a ser definida a seguir é: se
a mídia moderna é um sistema que cria, armazena e reproduz informação, o que torna
uma mídia “nova” hoje?
As características das novas mídia foram enumeradas por Lev Manovich
(2001, p. 27) e nos auxiliam a compreender o que torna uma mídia nova. Podemos, a
partir de agora, definir os limites entre as novas mídia e a moderna. Os princípios das
novas mídia são: a representação numérica; a modularidade; a automação; a
variabilidade e a transcodificação. Algumas mídia dispõem de dois ou mais princípios
dos listados acima, mas esta classificação não deve ser percebida como absoluta, pois
nem todas as novas mídia contêm essas características:
5 O código binário é um sistema de numeração que possui apenas dois algarismos: o “1” e o “0”. É como o
sistema de numeração arábico (usado por nós), que quando chega ao 9, retorna ao 0, mas como o código binário só
possui dois algarismos, quando se aumenta 1 ao valor 1, volta-se ao 0.
17
Representação Numérica
Os objetos midiáticos, sejam eles criados no ambiente digital ou transferidos
de mídia analógicas para as novas mídia, passam por um processo de codificação
digital. São representados numericamente. Para Manovich (2001, p. 27), a
representação numérica tem duas consequências:
1. Um objeto das novas mídia pode ser descrito formal e matematicamente.
2. Um objeto das novas mídia está sujeito à manipulação algorítmica. Ou
seja, podemos interferir no objeto utilizando algoritmos, modificando-o, o
que torna possível a programação digital desta mídia.
A programação de objetos das novas mídia está relacionada à “composição”
deste objeto. Esta composição é a estrutura do objeto. Uma fotografia tradicional, em
papel, é um suporte papel que contém uma imagem. Podemos cortá-la, rasgá-la e até
queimá-la, mas não é possível separar manualmente os componentes que formam a
imagem impressa no papel. Já os objetos das novas mídia são compostos de outro
modo: são informações digitais, em camadas associadas que podem ser
reconfiguradas e reordenadas. Podemos exemplificar esse pensamento através da
manipulação de uma fotografia. Selecionamos uma fotografia produzida de modo
analógico e a convertemos ao digital, inserindo-a em um computador. Para modificá-
la, podemos utilizar meios próximos ao “mundo analógico”, como recortar a imagem
ou colá-la em outra. O meio digital permite uma outra lógica de modificação: por
camadas. O digital compreende as informações de modo descontínuo, com espaços
entre as características que formam o objeto. É neste quadrante, dos espaços, que o
meio digital opera.
Os espaços, citados acima, podem ser erroneamente entendidos como
“vazios”. Na realidade, todos os objetos digitais são repletos de informação e a ideia
de vazio não existe. Há sempre uma informação.
A representação numérica das imagens digitais, por exemplo, nos é
apresentada na tela do computador por meio dos pixels. Pixels são pequenos pontos
de informação que formam a imagem. Quanto mais pixels, maior a resolução da
imagem. Isso significa que a imagem contém mais dados, tornando-amais completa e
complexa em termos informacionais. Mas e se compararmos as imagens digitais com
18
as fotografias analógicas? As fotografias analógicas sofrem processos químicos,
composições sensíveis à luz, que gravam (ou “queimam”) imagens em camadas,
dispostas na película fotossensível dos rolos de filmes. Quando ampliamos uma
dessas imagens e a transformamos na fotografia, essa ampliação necessita de mais
elementos químicos para formar a imagem, como por exemplo o nitrato de prata. Se
examinarmos uma fotografia utilizando um microscópio, poderemos ver claramente
os pequenos sais do nitrato de prata. E quando observamos a mesma imagem a olho
nu, não conseguimos ver os pontos de prata, e sim manchas mais escuras ou claras
que formam a imagem. A diferença entre a imagem de pixels em um computador da
imagem pontilhada por sais de prata de uma fotografia analógica é a representação
numérica da primeira.
Modularidade
A modularidade é a principal característica referente à estrutura dos objetos
das novas mídia e não deve ser entendida como um conceito de divisão ou separação,
e sim considerando que um único objeto é feito de camadas que podem ser
manipuladas, trocadas e duplicadas sem que as características gerais sejam perdidas.
Como Manovich exemplifica:
Outro exemplo de modularidade é o conceito de “objeto” usado em
aplicativos do Microsoft Office. Quando um “objeto” é inserido em
um documento (por exemplo, uma imagem ou símbolo inserido em
um documento do Word), ele continua a manter a sua
independência e sempre poderá ser editado com o programa usado
originalmente para criá-lo. 6
(MANOVICH, 2001, p. 30)
A modularidade permite que objetos sejam “manipulados” mais facilmente,
pois cada característica deste objeto está contida em pequenos módulos. Assim, o
6 Another example of modularity is the concept of “object” used in Microsoft Office applications. When an
“object” is inserted into a document (for instance, a media clip inserted into a Word document), it continues to
maintain its independence and can always be edited with the program originally used to create it. MANOVICH,
Lev. The language of new media. (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 30, tradução nossa.
19
processo de subtrair ou adicionar novas informações se torna mais simples, pois é
possível escolher de modo mais objetivo o que se deseja modificar.
Automação
A automação é um processo que opera apenas quando o objeto foi criado sobre
uma codificação numérica e modular. O processo de automação está conectado à
presença de um algoritmo. O algoritmo é uma operação, que pode ser automática ou
iniciada por um comando e que se assemelha a uma receita: o algoritmo é programado
para executar uma ação específica. A complexidade de automação de um programa
pode ser medida pela quantidade de algoritmos e relações entre eles, e pela divisão
modular. Os algoritmos podem ser codificados para que modifiquem imagens por si
só, façam medições, criem objetos em 3-D ou completem palavras digitadas pela
metade.
Deve-se compreender que a presença de automação em um programa não
significa que ele aja ou decida a próxima ação sozinho, mas sim que a automação só é
possível pela criação de uma programação complexa o suficiente para que o programa
consiga, por si só, identificar problemas e encontrar as melhores soluções dentro da
programação.
Atualmente os jogos eletrônicos são os programas de automação complexa
mais acessíveis ao consumidor. Em desenvolvimento desde os anos 1950, os jogos
eletrônicos (ou video games) são extremamente complexos, pois seus algoritmos
funcionam independentes ou em conjunto, movimentando personagens modulares que
são modificados a cada interação do jogador e que, ao serem manipulados, não
interferem no restante da interface, nem na programação geral. A interação acontece
dentro de uma programação prevista, ampla o bastante para que o jogador possa
explorar todas as possibilidades da programação para que o jogo consiga entreter e
estimular o jogador.
Variabilidade
Assim como a automação, a variabilidade é uma consequência da codificação
numérica e da modularidade.
A variabilidade consiste em um objeto das novas mídia que pode ser
20
reproduzido de diferentes formas. Essa variabilidade está no potencial de criar versões
a partir de um único objeto. Por exemplo, uma película do início do século XX. Ela
poderia ser copiada e reproduzida para que fosse exibida em outras cidades. Teríamos
então uma película matriz, copiada de modo que não houvesse nenhuma mudança em
relação à original.
Nas novas mídia as cópias não precisam ser fiéis à matriz. De um filme
produzido por um grande estúdio podemos copiar apenas o áudio, uma cena
específica, retroceder, transformar em fotografia, em uma animação, gravar em um
DVD para apresentação ou distribuir na internet.
O fato de digitalizarmos tudo (de jornais antigos a livros inteiros) permite que
os objetos sejam modificados quase que automaticamente, pois foram criados
programas para cada espécie de interferência que desejarmos provocar. É importante
salientar que essa facilidade também está no suporte: o mesmo aparato usado para
transformar objetos é o aparato para distribuí-lo, tornando as modificações mais
rápidas e potencializando as trocas, permitindo que um objeto já modificado por nós
seja modificado por outros.
Transcodificação
De acordo com a categorização das características das novas mídia, realizada
por Lev Manovich, a transcodificação é a característica mais influente nos processos
comunicacionais. A transcodificação é o processo de converter o formato de arquivos
digitais. A simplicidade de transcodificar está em apenas modificar a extensão de um
arquivo de um inicial para outro final. Já a complexidade está no momento em que
percebemos que o ambiente digital tem uma estrutura diferente do ambiente natural.
Se observarmos uma fotografia na tela do nosso computador pessoal, conseguimos
identificar a imagem, pois ela é um momento capturado. Esses elementos
identificáveis são representações e são parte da cultura. O outro ponto dessa
identificação é que essas representações também são matemáticas, digitais, e
consistem em números e códigos que representam valores de cor.
A discussão de Manovich (2001, p. 46) está no fato de que uma mesma
imagem digital tem, de um lado, um efeito comunicacional comum às imagens
fotográficas analógicas e tem, por outro lado, uma significação própria do ambiente
computacional em que está inserida. Isto posto, a ação de transcodificar (converter)
21
uma imagem digital alcança dois pontos distintos: a possível permanência da
identificação sígnica da imagem (já que ela permanece similar à imagem analógica,
no caso da fotografia) e a total modificação em valores digitais dela. A imagem
ganha, então, espectros de significados, que alcançam ambientes semióticos
diferentes.
Em relação às novas mídia criadas, arquivadas e distribuídas em e por
computadores, o autor indica a possibilidade de que a forma tradicional com que
lidamos culturalmente com as linguagens seja influenciada, provocando mudanças em
relação ao nosso entendimento dos processos de representação e significação. O
reverso também é uma possibilidade, já que utilizamos linguagens e meios
tradicionais transpostos para o meio digital. Os exemplos estão em programas como
os editores de texto e de imagem, a leitura ocidental ou oriental, a utilização do
alfabeto, os ícones, etc.
A transposição de meios tradicionais para o ambiente digital era, no início do
desenvolvimento do computador, um indicativo da tendência de adaptar o que
conhecemos e convivemos cotidianamente para um novo “espaço”. Com o rápido
interesse e pesquisa das possibilidades que o meio digital possui, a troca de ambientes
também foi invertida. O computador pôde começar, com as novas mídia, a modificar
antigos meios e influenciar o ambiente real, analógico. A influência recíproca
alimenta os ambientes, diminuindo as diferenças entre o que é do meio real e o que
está em um espaço digital, como comenta Manovich:
Na linguagem das novas mídia, “transcodificar” algo é traduzi-lo
em outro formato. A informatização da cultura gradualmente realiza
transcodificações semelhantes em relação a todas as categorias
culturais e conceitos. Ou seja, categorias culturais e conceitos são
substituídos, no nível de significado e / ou de linguagem, por novos
que derivam da ontologia, epistemologia e pragmática do
computador. A nova mídia, portanto, atua como um precursor do
processo de reconceituação cultural mais geral.
(MANOVICH, 2001, p. 47)7
7 In new media lingo, to “transcode” something is to translate it into another format. The computerization of
culture gradually accomplishes similar transcoding in relation to all cultural categories and concepts. That is,
cultural categories and concepts are substituted, on the level of meaning and/or language, by new ones that derive
from the computer’s ontology, epistemology, and pragmatics. New media thus acts as a forerunner of this more
general process of cultural reconceptualization. MANOVICH, Lev. The language of new media. (Cambridge: MIT
Press. 2001), p. 47, tradução nossa.
22
As características que formam as novas mídia, delineadas neste capítulo,
foram expostas utilizando corriqueiramente exemplos analógicos e suas versões
digitais. É prudente utilizar o termo “versão” pois os computadores e,
consequentemente, os meios digitais, são ambientes em que é possível produzir e
reproduzir versões das linguagens analógicas. As mídia digitais, produtos do século
XX, seguem um movimento sincrônico de criação: antigas e novas linguagens
ocupam espaços paralelos ao mesmo tempo, não existindo um pensamento evolutivo
ou o descarte de mídia anteriores8. Estar presente no mesmo espaço e tempo implica
um movimento contínuo de influências que disseminam estéticas híbridas. Em relação
às estéticas visuais, o espaço digital vem absorvendo as formas de representação
tradicionais da fotografia e do cinema e desenvolvendo outras formas de relação com
o espectador. As cinco características das novas mídia estão revendo a forma com que
interagimos com elas, desde a produção dos objetos até a edição, divulgação e
distribuição. No item seguinte, vamos expor as relações entre cinema e novas mídia.
1.2 – O cinema e as novas mídia
A experiência do cinema tradicional é de tempo e espaço: ela implica que o
espectador escolha um filme, uma sala de exibição, se disponha a se locomover,
esperar e assistir ao filme9. O tempo do filme tradicional também está na organização
de todo o desenrolar da narrativa em um espaço de tempo delimitado. Mas o que seria
um cinema tradicional? De acordo com André Parente (2011, p. 39) não podemos
pensar no cinema como uma forma (ou fórmula) fechada. O autor aponta experiências
diversas, de tentativas de repensar a experiência cinema: filmes sem projeção ou
projetados em outros espaços que não a sala de cinema e filmes sem narrativas,
experimentais.
Todos os processos que acontecem neste “tempo cinema” ganharam um
potencial de modificação a partir do momento em que o cinema e o vídeo foram
conectados à informática. As características da experiência tradicional de assistir a um
8 Lucia Santaella discorre sobre a criação de novas versões da fotografia e do cinema, a partir das influências das
novas mídia. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. (São Paulo: Paulus), 2011, p. 264.
9 André Parente comenta o modelo hegemônico de espetáculo da “forma cinema” N.R.I (narrativo-representativo-
industrial). PARENTE, André. Cinema em trânsito: cinema, arte contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro:
Azougue Editorial), 2011, p. 13.
23
filme estão sendo repensadas sob a ótica das novas mídia, que propõe novos
procedimentos e relações. Esses novos procedimentos ganharam uma nomenclatura,
expanded cinema10
, criada por Gene Youngblood, a partir de suas observações sobre
as influências da pintura, do teatro e da música no cinema (Machado, 2011, p. 192).
A seguir, o texto será dividido em dois segmentos do desenvolvimento do
cinema expandido: os procedimentos técnicos e a experiência do espectador. Essa
divisão é uma tentativa de apontar as motivações técnicas e poéticas do ato de fazer
cinema, que por sua vez modificaram a forma com que o espectador, nas novas mídia,
se relaciona com as narrativas.
Procedimentos técnicos
Os cineastas experimentais do cinema expandido das décadas de 1960 e 1970
procuravam novos procedimentos, instigados pelas possibilidades técnicas surgidas
com a televisão e a câmera de vídeo portátil. Para eles, o processo criativo não estava
apenas na construção da narrativa e nos aspectos formais da imagem, mas se
encontrava também nos procedimentos técnicos da linguagem.
A produção experimental em vídeo pode ser observada, por exemplo, nos
artistas Nam June Paik11
e Bill Viola, pioneiros em explorar possibilidades de criação
adicionando efeitos de som e imagem em vídeo. Devemos observar que esses artistas
buscavam se aproximar das novidades técnicas e também desenvolver métodos de
trabalho próprios. Muito do experimentalismo da época já havia sido sinalizado nos
filmes de Dziga Vertov no início do século XX:
(...) a estética do vídeo não faz senão dar consequência a um
conjunto de atitudes conceituais, técnicas e estéticas que remonta às
experiências não narrativas ou não figurativas do cinema de René
Clair e Dziga Vertov no começo do século e às invenções do
10 André Parente utiliza o termo expanded cinema com a intenção de relacioná-lo ao “processo de desocultamento
do dispositivo do cinema e da produção de uma imagem processual, aberta, que envolve o espectador”.
PARENTE, André. Cinema em trânsito: cinema, arte contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro: Azougue
Editorial), 2011, p.31.
11 John G. Hanhardt, atualmente curador do Smithsonian American Art Museum, comenta a contribuição da
produção de Nam June Paink, segundo a qual o artista “transformou a própria instrumentalidade do meio de vídeo
através de um processo que expressa seus profundos insights sobre a tecnologia eletrônica, e sua compreensão de
como repensar a televisão para "transformá-la de dentro para fora" e torná-la inteiramente nova”. HANHARDT,
John G. http://www.paikstudios.com/essay.html. Acesso em 01 de julho de 2013.
24
underground americano (Deren, Brakhage, Jacobs, etc.)
posteriormente.
(MACHADO, 2011, p. 193)
Se na videoarte os artistas dos anos 1970 ainda exploravam a estética de
cineastas experimentais do início do século, no cinema os processos já seguiam outros
caminhos. De acordo com Arlindo Machado, “A incorporação da eletrônica pelo
cinema vem se dando de forma lenta, sobretudo a partir dos anos 70, em geral para
dar resposta a determinados problemas insuperáveis dentro da especificidade da
cinematografia stricto sensu” (2011, p. 193). Foi a computação gráfica a responsável
pela entrada de imagens digitais ou modificadas por computador no cinema. Cineastas
inovadores como Peter Greenaway ou o cinema comercial de George Lucas e sua
franquia Star Wars nos anos 1970, e James Cameron com Terminator 2, já em 1991,
utilizaram os chamados efeitos especiais (Machado, 2011, p. 194). Logo, a utilização
de computação gráfica se popularizou principalmente como alternativa técnica, mas
igualmente trabalhosa, de produzir imagens sofisticadas como a batalha de naves
espaciais nas trincheiras da estrutura da Deathstar de Star Wars (1970), ou os créditos
de abertura de Superman (1978). A simulação da realidade e o potencial de criação
visual e animação, de formas abstratas e imaginadas, são os triunfos da computação
gráfica.
Atualmente, alguns longa-metragens são quase que inteiramente filmados em
estúdio, diante de imensas telas de um verde ou azul intensos, parte de um processo
conhecido como chroma key12
. O chroma key permite que na pós-produção os
cenários sejam inseridos, onde “os mais recentes algoritmos de computação gráfica
prometem simulações absolutamente ‘realistas’, a ponto de poder substituir objetos do
mundo real, cenários naturais e até mesmo atores de carne e osso (...)” (Machado,
2011, p. 211).
Podemos dizer que a entrada da computação gráfica modificou o método de
produzir filmes, pois a pós-produção, antes inteiramente tomada pela inserção da
12 O chroma key é uma técnica de adição de imagens na fase de pós-produção de um objeto audiovisual. Essa
adição de imagens acontece quando, por meio de softwares específicos, uma paisagem é adicionada na imagem
previamente capturada. Com essa técnica, os especialistas podem simular um espaço geográfico, sem que haja
necessidade de que a equipe de filmagem e os atores se desloquem para realizar a captura da imagem in loco.
Atualmente, esta técnica também substitui outros objetos nas cenas de ação, inclusive o corpo humano em cenas
perigosas e custosas. Manovich comenta sobre essa técnica em MANOVICH, Lev. The language of new media.
(Cambridge: MIT Press, 2001), p. 137.
25
sonoplastia e dublagem dos atores, passou a ter mais um processo: a criação de
imagens. Se anteriormente o cinema consistia em parte na captura e reprodução da
realidade, de situações e lugares previstos e selecionados pelo roteiro, atualmente o
cinema é a geração de imagens.
As imagens geradas por computação gráfica não são apenas reproduções de
objetos reais no ambiente virtual, são também textos animados, animações com
fotografias e símbolos. Assim, o mesmo computador pode produzir diferentes tipos de
informação visual. Segundo Manovich (2006e, apud Santaella, 2011, p. 265) “Unidas
dentro de um ambiente comum de software, a cinematografia, a animação
computacional, os efeitos especiais, o design gráfico e a tipografia formam uma nova
metamídia”13
.
A metamídia seria a simulação dos aspectos originais de mídia que foram
transpostos para o meio digital. Esta é uma das problemáticas das novas mídia: os
objetos visuais que temos no computador, embora similares em aparência com os
objetos reais, em sua essência são códigos e fórmulas matemáticas. Esses objetos são
simulacros daquilo que aparentam, dividindo com o cinema o potencial de duplicar e
copiar realidades (Machado, 2011, p. 25). Como Arlindo Machado comenta:
(...) a computação gráfica responde com uma paisagem sóbria,
matematicamente ordenada, em que os jogos de luzes, sombras e
reflexos não passam de dados puramente teóricos, elementos de
uma gramática, de uma sintaxe ou de uma retórica a priori
estabelecidas.
(MACHADO, 2011, p. 211)
A rapidez notável com que o cinema absorveu as possibilidades de criação
estéticas do meio digital deve-se também ao fato do anseio do público por
experiências que os estimulassem, experiências que fossem similares aos sonhos. É
interessante imaginar que os efeitos causados pela computação gráfica no público
atual sejam similares àqueles que os filmes de temática ilusionista e fantástica do
francês Méliès causaram no espectador do início do século XX. Ao contrário do
trabalho criativo quase que autoral de Méliès, a partir dos anos 1970 microempresas
especializadas em animação digital e efeitos especiais surgiram para atender à procura
13 MANOVICH, Lev. “After effects, or velvet revolution in modern culture”. Part 1, 2006e. In: SANTAELLA,
Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2011, p. 265.
26
de cineastas como Steven Spielberg e George Lucas, que fundou sua própria empresa,
a Lucasfilm Ltd.
Se o cinema absorveu as técnicas do meio digital14
, podemos dizer que os
computadores e seus objetos audiovisuais absorveram a estética cinematográfica. Essa
estética pode ser encontrada tanto na essência dos computadores quanto nos produtos
produzidos a partir deles.
Um dos produtos criados em computador que mais se utilizam da estética de
construção de imagem do cinema é o video game. O video game é, independente do
estilo, uma ação que ocorre em um espaço de tempo. Variável, o preenchimento desse
espaço de tempo pode ser com simulações de combate em artes marciais em que cada
luta dura cerca de 60 segundos (as séries Street Fighter ou Tekken, por exemplo), ou
como nos RPGs15
(como a série Final Fantasy), com narrativas elaboradas que podem
ultrapassar 75 horas de jogo. Especialmente nos RPGs, a estética cinematográfica
parece quase completamente transportada para os games. Jogos de câmera, luz e
sombra, a movimentação dos personagens, enquadramento, montagem e trilha sonora
são similares a um filme. Embora esses games tenham uma programação fechada, as
possibilidades de movimentação do jogador são amplas, além da presença de muitos
personagens paralelos que interagem com o personagem do jogador. Os games, então,
assimilaram características do cinema e também dos quadrinhos, dos desenhos
animados, do vídeo e da televisão16
.
O movimento cíclico de influências é reflexo da contemporaneidade, momento
de busca pelo novo, como explica André Parente:
14 André Parente expõe o pensamento de teóricos de cinema contemporâneos, como Deleuze, Foucault e Lyotard,
que veem no cinema um dispositivo onde as imagens estão além da representação e do discurso e que, ao se
encontrar com as imagens eletrônicas e digitais, cria-se o conceito de “entre-imagens”, ou seja, um novo campo
surgido com as novas relações entre o cinema e o digital. PARENTE, André. Cinema em trânsito: cinema, arte
contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro: Azougue Editorial), 2011, p. 35.
15 O termo “role-playing-games” (jogo de interpretação de personagens) teve sua origem em jogos de cartas e
dados, em que os jogadores escolhiam um personagem e suas características, para jogar nas missões propostas por
um mestre. No caso dos video games, os RPGs são jogos com um personagem principal, controlado pelo jogador,
e envolvido em uma série de acontecimentos e missões, com uma missão central e muitas outras paralelas, que
podem ser acessadas ou não. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. (São Paulo:
Paulus), 2011, p. 409.
16 Lucia Santaella comenta o processo de tradução intersemiótica vivida por linguagens que foram assimiladas
pelos video games. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. (São Paulo: Paulus), 2011, p.
408.
27
A contemporaneidade nasce da crise da representação justamente
porque surge com ela, em primeiro plano, a questão da produção do
novo. Este é o que escapa à representação, mas também o que
significa a emergência da imaginação no mundo da razão e,
consequentemente, num mundo que se liberou dos moldes da
verdade. A razão disso é muito simples: o tempo da verdade
(verdades e formas eternas de que o moderno ainda é tributário) é
substituído pela verdade do tempo como processo de produção do
novo.
(PARENTE, 2011, p. 45)
A busca pelo novo, como pensamento contemporâneo, influencia diretamente
as artes visuais. Além da recepção do vídeo como uma nova linguagem, os artistas
dos anos 1970 também quebraram paradigmas da relação do público com a arte. A
nova proposta era a participação do espectador, que perderia a sua atitude passiva e
contemplativa em relação à obra, ganhando incentivo para interagir com ela. A
interatividade com a obra de arte abrangia desde a movimentação do corpo do
espectador pela obra, como a instalação penetrável de Tropicália (1967)17
do
brasileiro Hélio Oiticica, ou as proposições de Lygia Clark, como Baba
Antropofágica (1973)18
.
A interatividade presente nas artes visuais, principalmente a partir dos anos
1970, é um dos indicativos da expansão do espaço e da participação do público nas
artes e no cinema, fato que seria potencializado com as estruturas digitais. André
Parente19
cita a produção do artista australiano Jeffrey Shaw20
, nas décadas de 60 e
70, época em que o artista iniciou propostas artísticas de expansão do cinema, criando
espaços em que o público era inserido em situações imersivas. As situações, além de
imersivas, eram interativas.
Os espaços criados por Jeffrey Shaw indicavam aspectos fundamentais das
novas mídia: a liberdade de circular por um espaço antes engessado, a participação
não mais contemplativa e sim ativa do espectador e a geração de um espaço
convidativo para que toda a ação ocorresse.
17 Informação acessada no site http://www.heliooiticica.org.br/obras/obras.php?idcategoria=4, em 11 de março de
2013.
18 Informação acessada no site http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp, em 11 de março de 2013.
19 PARENTE, André. Cinema em trânsito: cinema, arte contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2011). p. 32.
20 Site oficial do artista Jeffrey Shaw: http://www.jeffrey-shaw.net/. Acesso em 20 de agosto de 2013.
28
Experiência do espectador
A experiência de ir ao cinema é uma experiência passiva. Nós, como público,
nos dispomos a participar da projeção como observadores. Nós nos encontramos ali,
entre o “filme e a imagem projetada, entre a realização do filme e o filme pronto”21
.
Assistimos ao filme, conhecemos a narrativa e, ao final, nos retiramos da sala e da
experiência. A palavra “espectador”, de acordo com o dicionário Houaiss, significa:
1 aquele que assiste a um espetáculo
‹ os e. aplaudiram calorosamente ›
2 aquele que presencia um fato; testemunha, presente
‹ o crime foi na rua, em meio a dezenas de e. ›
3 aquele que observa ou examina (algo); observador.
‹ o ator era observado com muita atenção pelo e. ›
A nomenclatura “espectador” não sustenta as novas relações propostas pelas
novas mídia. Além de modificar os processos de produção de imagens, tanto no
cinema quanto nas artes e na publicidade, o computador propõe outra natureza de
relações entre pessoas e objetos provindos do ambiente digital.
Para pensar nestas relações, devemos primeiramente compreender que as
novas mídia estão inseridas em tecnologias que criam espaços. Espaços para serem
explorados, criados e modificados. Portanto, o termo “espectador”, aquele que
calmamente observa, não é suficiente para nomear este novo público, que é
investigativo e intuitivo.
A palavra interator é o termo mais utilizado para denominar o usuário que se
relaciona ativamente com alguma mídia. Deve-se levar em conta que essa ação
necessita de uma resposta do programa, resposta que indicará a necessidade de mais
uma ação do interator. De acordo com o dicionário Houaiss, a palavra interação
21 André Parente, ao comentar as contribuições da videoarte para o cinema, exemplifica as diferenças de
experiência, citando a situação de “entre-imagens” do espectador. PARENTE, André. Cinema em trânsito:
cinema, arte contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011). p. 30.
29
significa “atividade ou trabalho compartilhado, em que existem trocas e influências
recíprocas”22
.
O interator é o principal sujeito das novas mídia, pois é ele quem dispara as
ações que ocorrem nos objetos deste ambiente. Dessas ações, podemos ressaltar dois
aspectos.
O primeiro é o potencial interativo do usuário, pois as propostas de interação
das novas mídia propiciam que ele, agente ativo, modifique o ambiente onde ocorrem
as ações. Este ambiente está em constante mudança23
, pois ele é resultado das ações
do interator somadas ao ambiente original.
O segundo aspecto está na “multidimensionalidade do dispositivo: os
estímulos que envolvem o visitante são intensos e reforçam a sensação de presença e
de integração do seu corpo ao ambiente” (Parente, 2011, p. 54). Assim, se
transportarmos todos os aspectos físicos do mundo real para o mundo virtual, não
existem muitas diferenças entre viver uma experiência em qualquer um dos dois
espaços. Evidentemente, uma das diferenças é a própria característica sensória de se
relacionar com algo real, aspecto que o ambiente virtual ainda não consegue simular.
A interação reorganiza a relação público-objeto. Essa reorganização se
encontra nas possibilidades criativas da participação ativa do interator. Antes, quando
espectador, o público absorvia as ideias e indicações conceituais dos produtores dos
objetos. Toda a significação do que foi visto, lido e observado era guardada na
intimidade do público. A resposta do espectador estava nos comentários acerca do que
foi visto. Atualmente, com as novas mídia, o espectador tornou-se um co-criador de
ideias e informações. Lucia Santaella (2011, p. 79) comenta que “o espaço aberto para
o receptor é também o espaço da inclusão, quando, por exemplo, o artista convida seu
público a remixar sua proposta na espera curiosa das mutações que podem resultar do
papel performático que o público passa a desempenhar”. A partir do momento em que
na programação de um objeto fruto das novas mídia foi aberta a opção de um
interator/usuário inserir informações, essa ação passa a modificar o ambiente inicial.
De acordo com André Parente:
22 Pesquisa realizada no dicionário Houaiss online, no link
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=intera%25C3%25A7%25C3%25A3o. Acesso em 12 de março de 2013.
23 André Parente define os dois principais aspectos da interação do usuário como ambientes digitais. PARENTE,
André. Cinema em trânsito: cinema, arte contemporânea e novas mídias. (Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2011). p. 30.
30
Nesses termos, o espaço digital se configuraria com um campo de
possíveis, em que o sujeito-enunciador fornece elementos e o
sujeito-atualizador realiza parte de suas possibilidades, podendo o
usuário ser encarado como co-autor de uma obra digital, já que
contribui, de maneira efetiva, para sua formação.
(PARENTE, 2011, p. 55)
Os espaços digitais que comentamos aqui são espaços onde meios diversos se
encontram. Imagens, sons e textos estão no mesmo ambiente, enchendo a tela de tipos
diferentes de informação. É onde todos os meios comunicacionais se encontram, onde
todas as máquinas podem ser simuladas. O cinema, como linguagem construída ao
longo do século XX, foi absorvido e remodelado. As imagens, em movimento ou
fotográficas, sons e textos são dispostos, sobrepostos, transpostos em uma edição
criada em conjunto: proposta pelo programador e acionada pelo interator.
O caráter participativo das novas mídia estimulou cineastas e artistas a criarem
obras/filmes que indicavam possibilidades de mudança da própria linha narrativa. Se
na experiência passiva da sala de cinema o espectador não pode interferir na narrativa
ali apresentada, no cinema das novas mídia o processo é outro: o interator é
convidado a escolher seus próprios caminhos dentro da narrativa.
A interatividade requer a apresentação de possibilidades de interação. Essas
possibilidades podem ser encontradas em um ambiente fechado, chamado de closed
interactivity, ou aberto, chamado de open interactivity24
. A interatividade em
ambiente fechado se refere à opção de selecionar objetos em uma estrutura fechada.
Já a interatividade aberta é mais complexa, e significa a ação construtiva de um
interator que não só seleciona os objetos que já estão em uma estrutura, como também
aciona mudanças na estrutura inicial e nos objetos prévios, ao mesmo tempo que gera
outras organizações de objetos no decorrer da interação.
Um exemplo desse cinema interativo é o projeto Soft Cinema: Navigating the
database, criado por Lev Manovich em 2005. Esse projeto consiste em um DVD que
mantém três filmes em linguagem cinematográfica. A diferença entre o Soft Cinema e
os filmes tradicionais está nas possibilidades de visualização das narrativas: através de
um programa criado pelo próprio autor, as imagens e textos dos filmes foram
organizados em um banco de dados. Esse banco de dados é acessado de uma forma
diferente a cada inicialização, provocando recombinações na sequência de imagens,
24 MANOVICH, Lev. The language of new media. (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 40.
31
apresentações e narrativas. O resultado é sempre inesperado, pois as combinações são
infinitas. Já em Soft Cinema: Ambient Narrative, de Manovich e Andreas Kratky25
,
projeto posterior, as combinações acontecem entre as escolhas da programação, das
imagens cinematográficas e da arquitetura do espaço. Neste projeto, os autores
propõem a construção de instalações que funcionam como ambientes de convivência,
em que o espectador poderia caminhar, conversar, descansar e acompanhar a
narrativa, dividida em imagens projetadas em múltiplas telas espalhadas pelo espaço.
De acordo com Manovich e Kratky, o projeto está relacionado às novas formas de
representação surgidas com o “cinema de software”, que apresentam outros meios de
significação a partir do formato rizomático das tecnologias de informação.
Outro artista que também realiza instalações em que as imagens projetadas são
construídas de modo arquitetônico é o britânico Isaac Julien26
. Julien é cineasta e
fundou sua primeira produtora no início dos anos 1980. Já no final dos anos 1990,
iniciou sua pesquisa em videoinstalações. Isaac Julien constroi espaços desejando que
o público caminhe por entre as telas espalhadas por ele. Os vídeos são divididos em
diferentes telas e são programados de modo a combinar momentos-chave dos filmes
com o acender ou apagar de algumas ou de todas as telas. Assim, ele provoca uma
atenção redobrada do espectador, que percorre a instalação observando e procurando
as telas que mostram as imagens. Essas imagens são captadas em película e depois
digitalizadas para exibição, passando pelos processos indicados por Manovich de
transição de referências analógicas para referências digitais.
Os exemplos de Soft Cinema de Manovich e das videoinstalações
cinematográficas de Isaac Julien são indicativos das novas linguagens que se formam
diante do uso da tecnologia e do pensamento interativo. Sendo esse pensamento de
uma interatividade direta, em que o interator aciona um dispositivo, ou uma
interatividade processual, em que o espectador é transformado em interator subjetivo,
ao precisar preencher por si só as lacunas que surgem entre-imagens, as novas mídia
indicam um novo posicionamento do público.
Os processos de significação realizados pelo público, ao ser convidado a
interagir com uma instalação ou com um software em um computador, são
25 O projeto Soft Cinema pode ser encontrado online pelo link http://www.softcinema.net/?reload. Acesso em 12
de março de 2012.
26 Isaac Julien: Geopoéticas. Associação Cultural Videobrasil. São Paulo: Edições SESCSP, 2012.
32
potencializados quando esses espaços têm em sua arquitetura uma grande quantidade
de oportunidades de escolhas ou caminhos. A interação torna-se mais produtiva
quando existem mais opções, transformando o ato de interagir em algo mais aberto e
complexo.
As opções de imagens e informações que se abrem ao espectador, como vistas
no projeto Soft Cinema de Lev Manovich e nas videoinstalações de Isaac Julien, são
exemplos de como objetos criados entre o cinema e as novas mídia ganham o espaço
real. Mas e no espaço virtual, espaço este de domínio da internet? No capítulo
seguinte conheceremos um programa de computador desenvolvido para criar um
cinema interativo, em que a interatividade acontece como uma espécie de editor dos
objetos audiovisuais pertencentes a um banco de dados.
33
2 – O Korsakow System e montagem aberta
O Korsakow System27
é um programa de computador desenvolvido por
Florian Thalhofer28
em 2000, na Universidade de Artes de Berlim. Na época,
Thalhofer estava interessado em conhecer e pesquisar sobre formas diferentes de se
contar histórias. No mesmo período, o artista estava descobrindo possibilidades de
programação de computadores e, movido por esses dois interesses, criou o programa
Korsakow. O nome, Korsakow, é proveniente da síndrome de Korsakoff, um tipo de
amnésia que causa danos em memórias de curto prazo. Embora o nome do programa
remeta a uma ausência ou à perda de algo, isto não é o que acontece. A intenção de
Thalhofer, como veremos a seguir, é construir histórias com fragmentos que
possibilitem combinações.
2.1 – Florian Thalhofer e o projeto original
Florian Thalhofer nasceu em 1972 na Bavária, e vive e trabalha em Berlim. É
artista e documentarista, tendo realizado aproximadamente 15 filmes com o
Korsakow, quatro instalações-Korsakow e 25 Korsakow-shows. Além das
experimentações e filmes produzidos com o programa, Thalhofer realizou um longa-
metragem29
.
Florian Thalhofer era aluno da Universidade de Berlim quando definiu o seu
projeto para o trabalho de conclusão do curso: um filme não-linear e interativo sobre
alcoolismo. Com o intuito de realizar o filme, chamado de The Korsakow Syndrom, o
então estudante percebeu as dificuldades de realizar o projeto. Movido por interesses
recentes em programação de computadores, Thalhofer decidiu, mesmo sem saber ao
certo como tornar viável seus anseios, produzir um programa de computador que
27 Site oficial do Korsakow System. http://korsakow.org/ .Acesso em 02 de julho de 2013.
28 Florian Thalhofer, nascido em 1972, é documentarista e artista. Recebeu um prêmio Literatur.Digital, um Red
Dot Design Award, uma Werkleitz Award e outros prêmios por seu trabalho. Thalhofer estudou na Universidade
de Artes de Berlim, onde trabalhou por vários anos como professor depois de se formar. Foi professor convidado
da Deutsche Literaturinstitut Leipzig e leciona no Instituto Mediamatic em Amsterdã. GOETHE – INSTITUT,
http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm . Acesso em 02 de julho de 2013.
29 Biografia do artista Florian Thalhofer em seu site oficial, http://www.thalhofer.com/data/03content/bio.html.
Acesso em 04 de julho de 2013.
34
tornasse possível alcançar seus desejos como cineasta. Com muitas dificuldades
durante o processo, o programa e o filme finalizados e apresentados chamaram a
atenção do professor Willem Velthoven, que convidou Florian para lecionar em uma
nova disciplina, chamada “Narração Interativa”30
. Embora o foco de Florian fosse o
filme finalizado, o professor sugeriu que os alunos utilizassem o programa criado por
Thalhofer em seus projetos pessoais, e assim o programa, originalmente uma
ferramenta, foi nomeado tal qual o filme. O programa tem sido atualizado e os
projetos propostos por Thalhofer recebem a supervisão do professor Matt Soar, da
Universidade Concordia em Montreal, Canadá, desde 2008.
Essencialmente, o programa Korsakow é uma ferramenta para a criação de
narrativas não-lineares, como explica Thalhofer:
É um software para fazer filmes baseados em regras, não-lineares e
interativos. Parece complicado, mas é muito simples: O autor
descreve as cenas individuais de um filme Korsakow. Com base
nessas descrições, as cenas são, então, re-arranjadas de uma forma
significativa para cada visualização. Normalmente o telespectador
pode escolher a próxima cena a partir de uma série de sugestões.
Mas há também filmes Korsakow que são executados
automaticamente, onde o computador escolhe a próxima cena. Um
filme como este não pode mais ser visivelmente diferenciado de um
filme “normal”.
(THALHOFER, Florian, 2011)31
A estrutura de um filme criado com o Korsakow, chamado de k-film, se
distancia do conceito de cinema linear. O cinema linear, o tradicional, é construído
por meio de processos de montagem e edição que alinhavam as cenas para sempre.
Para Manovich (2001, p. 143), as antigas mídia baseavam-se na montagem, enquanto
as novas mídia substituem essa estética pela continuidade. Essa continuidade está na
30 Informações sobre o processo de criação do programa Korsakow retiradas do site oficial do artista.
http://thalhofer.com/_data/PAGES/xOther_2000_korsakow_system.html. Acesso em 04 de julho de 2013.
31 It is software for making rule-based, non-linear and interactive films. It sounds complicated but is very simple:
The writer describes the individual scenes of a Korsakow film. Based on these descriptions, the scenes are then re-
arranged for each viewing in a meaningful way. Usually, the viewer can choose the next respective scene from a
series of suggestions. But there are also Korsakow films that run automatically, where the computer chooses the
next scene. A film like this can then no longer be visibly differentiated from an “ordinary” film. Entrevista
realizada em 2011 por Anne-Kathrin Lange, do Goethe-Institut, com Florian Thalhofer, em 21 de maio de 2011.
http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm. Acesso em 04 de julho de 2013, tradução nossa.
35
forma multimídia com que os k-films trabalham, em que pequenos complexos são
interligados de modo não-linear. Para criar um filme não-linear, Thalhofer precisou
repensar a não-linearidade de modo que a ferramenta criada com esse objetivo
conseguisse unir, de forma simples, um programa fácil de ser utilizado a um conceito
elaborado. O discurso de Thalhofer sobre sua criação permeia um sentimento de
frustração em relação ao cinema tradicional. Para o artista, o cinema tradicional tenta
inserir conceitos e direcionar impressões e sentimentos aos espectadores. Essa
observação surge quando o artista compara o cinema às histórias contadas por seu pai
durante a infância de Thalhofer:
Quando eu era criança e meu pai lia histórias de ninar para mim, ele
sempre terminava com a mesma pergunta: “E qual é a moral desta
história?”. Então, ele geralmente respondia a pergunta ele mesmo.
Suspeitosamente, a moral da história era mais frequentemente
relacionada a coisas que vinham acontecendo em nossa família ou
na escola: para ter sucesso na vida, tem que ser bom para os irmãos,
fazer o dever de matemática e ajudar a mãe a lavar a louça.
(THALHOFER, Florian, 2011)32
Florian Thalhofer considera que a moral da história é um truque para que o
narrador consiga com que o espectador (ou leitor) faça ou acredite em algo que ele
mesmo considera válido ou importante. Essa sensação ainda está presente na fala do
artista, que resulta nos caminhos tomados por Florian. Embora ele se considere um
contador de histórias, proclamação utilizada por muitos cineastas, a dificuldade em
aceitar uma possível influência desejada por cineastas sobre seus espectadores fez
surgir em Florian o desejo de produzir filmes que percorressem outros caminhos.
Como documentarista, Florian procurava histórias e entrevistava os protagonistas
dessas narrativas reais. O documentário seria um meio interessante para contrapor
pontos de vista, leituras de acontecimentos e observar fatos, mas o caráter de um
filme finalizado em um tempo fechado, com imagens editadas e combinadas também
32 When I was a child and my father read bedtime stories to me, he always finished with the same question: “And
what is the moral of this story?” Then he usually answered the question himself. Suspiciously, the moral of the
story was most often related to stuff that had been going on in our family, or in school: To succeed in life, one has
to be nice to one’s brothers, do one’s math homework, or help one’s mother do the dishes. Parte de texto
produzido por Florian Thalhofer para o site oficial do programa Korsakow, em 18 de setembro de 2011.
http://korsakow.org/master-vs-medium/. Acesso em 04 de julho de 2013, tradução nossa.
36
desagradava o artista. Ele questiona “Então, por que eu deveria – o sem-noção – ser o
único a explicar a uma audiência como as coisas funcionam?”33
. Florian concluiu que
o ponto que permite uma interpretação aberta das imagens de seu filme não está na
natureza das imagens ali apresentadas, mas sim na forma como elas são exibidas. Se a
leitura e compreensão das imagens está no espaço invisível em que uma cena se liga a
outra, e que o entendimento ou conclusão de um filme depende muito da forma como
as cenas são alinhavadas, como seria então um filme em que essas mesmas cenas
pudessem ser reorganizadas, tornando possível que a cada vez que o espectador
assistisse a esse filme, ele mudasse completamente? Baseado nesta questão, Florian
desenvolveu a programação do Korsakow.
A programação do Korsakow é realizada da seguinte forma:
1a. Fase: A escolha dos objetos audiovisuais que comporão o banco de dados.
2a. Fase: A importação desses objetos para o banco de dados.
3a. Fase: A denominação de palavras-chave que vão organizar esse banco de
dados.
4a. Fase: A organização das palavras-chave em palavras-chave de entrada e
palavras-chave de saída.
5a. Fase: A combinação de cada objeto audiovisual com a sua respectiva
palavra-chave de entrada e palavra-chave de saída.
6a. Fase: Definição se cada objeto audiovisual terá ou não mais de uma
palavra-chave de entrada ou de saída.
7a. Fase: Definição de quantas vezes cada objeto audiovisual pode ser
visualizado em um mesmo acesso – de uma vez a infinitas (∞) vezes.
8a. Fase: Definição do layout da interface que dá acesso ao banco de dados/
objetos audiovisuais.
As fases podem ser visualizadas nas imagens abaixo:
33 So why should I – the clueless one – be the one to explain to an audience how things work?. Parte de texto
produzido por Florian Thalhofer para o site oficial do programa Korsakow, em 18 de setembro de 2011.
http://korsakow.org/master-vs-medium/. Acesso em 04 de julho de 2013, tradução nossa.
37
Imagem 1. Interface principal
para programação do Korsakow System.
Na imagem acima, podemos identificar dois momentos da programação. Em
azul, no lado esquerdo inferior, os objetos audiovisuais como foram originalmente
importados para o programa. Acima deles, acompanhado da imagem de um cubo azul
e vermelho, os mesmos objetos audiovisuais já finalizados, com suas respectivas
palavras-chave de entrada e saída. Ao transformar o objeto audiovisual comum em
um objeto audiovisual programado, Thalhofer renomeia este objeto como um SNU:
Um SNU é uma “Menor Unidade Narrativa”. Por aqui nós
pronunciamos “snoo”. Trata-se de um bloco de construção
fundamental de um filme Korsakow. Com o Korsakow, você está
essencialmente pegando suas mídia (em geral, peças de vídeo
editado, com duração de 20 segundos a 2 minutos) e as SNU-
ficando. Isto é, aplicando palavras-chave e outras regras para cada
peça de mídia que irá aparecer no seu k-film.
(THALHOFER, Florian)34
34 A SNU is a ‘Smallest Narrative Unit’. Around here we pronounce it ‘snoo’. It is the fundamental building block
of a Korsakow Film. With Korsakow, you’re essentially taking your media assets (typically, pieces of edited video
with durations of 20 secs to 2 minutes) and SNU-ifying them. That is, applying keywords and other rules to each
piece of media that will appear in your K-Film. Parte de texto produzido por Florian Thalhofer para o site oficial
do programa Korsakow. http://korsakow.org/learn/faq/#snu. Acesso em 05 de julho de 2013, tradução nossa.
38
O SNU é editado em uma janela especial, como podemos ver abaixo:
Imagem 2. Interface de produção
de um SNU.
A imagem número 2 demonstra as possibilidades de edição de um objeto
audiovisual no Korsakow. Quando ele é editado, recebe o nome de SNU. Essas
possibilidades são: renomear o arquivo; escolher a palavra-chave de saída e a de
entrada; escolher uma imagem ou um frame para ser a imagem de “apresentação” do
vídeo; definir se esse objeto será o objeto inicial de todo o k-film, o final ou nenhum
deles; definir a duração do objeto na tela (incluindo aí a possibilidade de um looping);
inserir ou não um texto na imagem; as dimensões do objeto na interface final e a
possibilidade de haver uma trilha sonora específica para este objeto. Todas essas
especificidades são reconhecidas por Thalhofer como “regras”. São essas regras que
formam o k-film final. Assim, quanto maior a aproximação do programador (ou
criador) com as possibilidades criativas do Korsakow, mais complexo o k-film poderá
ser.
39
A imagem número 3 refere-se a uma outra interface, a interface das palavras-
chave:
Imagem 3. Interface de
visualização das palavras-chave.
Na imagem acima, a interface apresenta a organização das palavras-chave
criadas e organizadas em cada SNU. O cubo vermelho representa as palavras-chave
de entrada e o cubo azul, as palavras-chave de saída. Assim, no primeiro exemplo, a
palavra-chave “couple” é a palavra-chave de entrada do objeto SNU “couple.mov” e a
palavra-chave de saída dos objetos “man04.mov” e “woman04.mov”. Já no segundo
exemplo, a palavra-chave “family” é a palavra-chave de entrada do objeto SNU
“family.mov” e a palavra-chave de saída do objeto “couple_naked.mov”. Nas abas
seguintes, a palavra-chave “kids” é vinculada como palavra-chave de entrada de dois
SNUs e como palavra-chave de saída de um SNU. Já a palavra-chave “man” é a
palavra-chave de entrada de quatro SNUs e a palavra-chave de saída de cinco SNUs.
Essa imagem é um bom exemplo da quantidade de conexões que podem
existir entre diferentes objetos dentro de um mesmo k-film. Essa quantidade define a
complexidade e a dinâmica do filme. Um k-film com poucos objetos e poucas
conexões será mais rapidamente visualizado e finalizado pelo interator. Já um k-film
com maior número de objetos e maiores possibilidades de conexões resulta em mais
caminhos a seguir dentro do k-film. Isto posto, a duração de um k-film é
extremamente variável e resulta de uma operação matemática que envolve a
40
quantidade de objetos no k-film, a quantidade de palavras-chave, a quantidade de
ligações entre um SNU e o outro e o variável: o caminho escolhido pelo interator ao
selecionar o próximo objeto. Essa seleção acontece através de uma interface, também
programada pelo programador, como demonstra a imagem seguinte:
Imagem 4. Programação da interface
de interação de um k-film.
A imagem 4 exibe a estrutura da interface de um k-film. Dividida em quatro
partes, sendo uma de formato maior no topo e outras três de formato menor, a tela
representa o formato do objeto em exibição (o maior) e as três opções seguintes,
sugeridas para que o interator escolha uma. Com a escolha, torna-se impossível que o
interator retorne à tela anterior, e, caso ele deseje visualizar algum objeto que não foi
escolhido anteriormente, este mesmo objeto só poderia reaparecer como possibilidade
se a palavra-chave de entrada dele for a mesma palavra-chave de saída de um objeto
selecionado pelo interator. A falta proposital de um retorno para a tela anterior
somada às relações entre palavras-chave são pontos muito importantes para que a
interação ocorra de modo interessante e instigante. Outro ponto também está no fato
curioso pensado por Thalhofer: se a escolha da interface de interação for como a da
imagem 4, por exemplo, e um dos objetos visualizados contiver mais de três objetos
41
interligados a ele (como é o caso dos objetos que têm como palavra-chave de saída
“man”35
), o k-film selecionará, de forma randômica, apenas 3 dos 5 SNUs
relacionados a ele. Essas duas escolhas, a impossibilidade do retorno e as escolhas
randômicas, são responsáveis também pela complexidade dos k-films, pois se torna
muito difícil percorrer um mesmo caminho duas vezes e, portanto, assistir ao mesmo
filme duas vezes.
2.2 – Estrutura e possibilidades
O Korsakow System foi concebido primeiramente como ferramenta para a
criação de um filme específico. O potencial do programa foi percebido e suas
características repensadas. Não mais como uma ferramenta, mas como uma
linguagem. O modo de criar dentro do Korsakow segue uma estrutura básica, mas, tal
qual outras linguagens, mudanças são permitidas e estimuladas. Pensando em um
público heterogêneo, de estudantes a diretores de cinema, para uso pessoal e para o
mercado, Florian Thalhofer disponibiliza o Korsakow para download gratuito. Em sua
página oficial, o programa está disponível para usuários de sistemas operacionais
Windows e Mac OS X, e é sinalizado como um programa open source. Ser open
source significa que a programação original do Korsakow System pode ser
modificada. Um usuário experiente pode modificar as configurações do programa,
inserindo ações e recriando o programa conforme as suas necessidades.
Para Thalhofer, o programador e o interator têm igual importância dentro do
conceito que cerca o programa. Pensado para o público, a programação de um k-film
deve ser instigante, para que a descoberta de cada elemento seja assimilada com
cuidado. Comparando o papel do programador de um k-film ao de um diretor de um
filme linear tradicional, Thalhofer diz que “o autor predefine e antecipa a experiência
do espectador. Em um filme linear, o autor não pode evitar ser o dono da história
porque, no final, um filme linear tem uma - e apenas uma - ordem concreta, e o autor
tem que assumir a total responsabilidade por isso”36
. A proposta de Thalhofer se
35 Ver imagem 3, p. 39.
36 The author predefines, and pre-thinks the experience of the viewer. In a linear film, the author cannot avoid
being the master of the story because, in the end, a linear film has one – and only one – concrete order, and the
42
distancia do cinema tradicional quando o autor do k-film deixa de ser o “mestre da
história” e passa a ser a “mídia da história”. Aqui, o Korsakow atua como a
ferramenta que tornará possível as ideias do autor. O autor/artista/programador de um
k-film prepara o material que será exibido. Ele seleciona e edita esse material, tal qual
um diretor o faz em um filme convencional. A diferença de um k-film está no fato de
que o autor cria regras de como esse material será exibido, mas não consegue prever o
filme em si. Os diferentes rumos que um k-film pode tomar, a partir da interação,
configuram experiências que podem inspirar diferentes modos de perceber e lidar com
o filme, mas de maneira alguma os k-films apresentam mensagens delimitadas pelo
autor:
Durante a apresentação, os projetos em Korsakow podem se alterar
dinamicamente em reação às escolhas do usuário, tornando-se
verdadeiramente interativos. (...) O usuário pode decidir livremente
qual deles seguir.
(MEIBERGEN, Deborah)37
A liberdade de interagir com um k-film e construir filmes únicos, frutos de
cada interação, se assemelha aos processos de interação com a internet. Assim como
nos k-films, usuários de internet visitam páginas construídas e preenchidas com
conteúdos específicos, definidos por programadores. A alternância entre a atividade e
a passividade, ao nos relacionarmos com um k-film, é, segundo Manovich, “uma
característica estrutural da sociedade moderna” (2001, p. 209). Quando o usuário
inicia uma busca ou visita o seu site preferido, ele está iniciando um processo de
navegação consciente. O seu ponto de partida, na maioria das vezes, já é definido. As
opções de conexões entre sites e conteúdos instigam o usuário a percorrer e conhecer
diferentes pontos da internet, com conteúdos diversos que são interligados por
palavras-chave, assuntos, formatos, etc. Segundo Braga, citado por Santaella:
author has to take full responsibility for it. Parte de texto produzido por Florian Thalhofer para o site oficial do
programa Korsakow. http://korsakow.org/master-vs-medium/. Acesso em 10 de julho de 2013, tradução nossa.
37 During the presentation, Korsakow projects can change dynamically in reaction to user choices, making them
truly interactive. (...) The user can freely decide which one to follow. Trecho de artigo escrito por Deborah
Meibergen sobre o Korsakow System para o site Mediamatic, de Amsterdã. http://www.mediamatic.net/9276/en/
the-korsakow-system. Acesso em 11 de julho de 2013, tradução nossa.
43
O usuário entra em um sistema de co-autoria do material que é
exposto a ele. Ainda que ele não tenha o controle do conteúdo
interno, a maneira com que é definida a sequência dos tópicos,
interligando um conteúdo a outro em diferentes ordens, define e,
por vezes, altera o próprio contexto.
(SANTAELLA, 2011, p. 306)
O contexto da internet, como um imenso banco de dados alimentado e
multiplicado segundo a segundo, se assemelha em possibilidades ao funcionamento
do Korsakow System. Embora a internet sustente a opção de que o usuário também
adicione conteúdo a ela, seja por meio de comentários em sites com essa opção ou por
links entre blogs ou redes sociais, o Korsakow ainda não dá está possibilidade ao
interator/usuário. Ao entrar em contato com um k-film, o interator está dialogando
com um banco de dados fechado para a inserção de novos conteúdos, mas “aberto” o
suficiente para que a experiência se transforme a cada nova interação. Embora, no
geral, a aceitação do público com a experiência de um k-film seja positiva, alguns
espectadores não se tornam entusiastas. Sobre isso, Thalhofer diz que “alguns
criticam que os filmes são chatos e não explicam o que deveríamos pensar. Mas essa é
a força do Korsakow: eu não digo ao público o que pensar, eles têm de pensar por si
mesmos”.38
Formalmente, a programação de um k-film se assemelha a uma ideia de rede,
similar à internet. Florian Thalhofer incentiva os autores que buscam o Korsakow a
não tentar controlar ou desenhar essa rede. Os autores são instruídos a organizar o
programa como um banco de dados, mas não devem tentar visualizar previamente
como se dará essa programação dentro do Korsakow. A estrutura de ligações entre
objetos audiovisuais dentro de um k-film acontece da seguinte forma:
38 Some criticize that the films are boring and don't explain what you've supposed to think. But, that's the strengh
of Korsakow: I don't tell the audience what to think; they have to think for themselves. Trecho de entrevista
concedida por Florian Thalhofer para o Goehte-Institut, em 21 de março de 2011.
http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm. Acesso em 16 de julho de 2013, tradução nossa.
44
Imagem 5. Imagem ilustrativa de um objeto
e suas palavras-chave de entrada e saída.
A imagem acima, retirada do site oficial do Korsakow System, faz parte de um
vídeo tutorial que explica, de forma bastante didática, como as palavras-chave
escolhidas pelo programador podem interligar os objetos gerando uma rede complexa
e que se modifica a cada escolha do interator.
Na imagem número 6, um exemplo da expansão de possibilidades:
Imagem 6. Imagem ilustrativa de objetos
e suas ligações.
A percepção da importância das palavras-chave dentro dos k-films é o grande
triunfo do programa. É através do encontro dessas palavras-chave que a rede de
possibilidades é construída. Thalhofer nomeou esse encontro de palavras-chave de
entrada e saída de POCs (pontos de contato). Quanto mais POCs de diferentes
objetos, maiores as possibilidades de se ciar narrativas únicas a cada interação.
45
Imagem 7. Imagem ilustrativa de objetos
e suas ligações.
A proximidade do Korsakow System com a internet ultrapassa a similaridade
com a construção em rede. É através da internet que o Korsakow System é divulgado
e disponibilizado para download. Thalhofer tem na internet a principal plataforma de
distribuição do seu trabalho e um modelo de comunicação não-linear.
2.3 – K-films
Os k-films de Florian Thalhofer seguem uma linha evolutiva da simplicidade
para a complexidade. Os primeiros k-films do autor eram de organização simples,
pois foram desenvolvidos ao mesmo tempo que o programa era repensado e
aperfeiçoado. Conceitualmente, o Korsakow System tem em seu início o objetivo de
ser um programa que possibilite a criação de narrativas não-lineares, baseadas em um
banco de dados, de forma a representar formalmente o que estava sendo desenvolvido
conceitualmente. O desenvolvimento conceitual do programa foi um incentivo para
que o autor se aprofundasse nas possibilidades do programa, criando k-films que
apresentam de forma expandida questões sociais, econômicas e culturais. Neste item,
selecionei alguns projetos que considerei importantes para exemplificar o
desenvolvimento do programa e os k-films do autor.
46
Small World (1997)
O projeto Small World39
é o primeiro filme produzido por Thalhofer. Small
World é um documentário em que o autor revê a cidade de 27 mil habitantes onde
passou a infância. A cidade alemã de Schwandorf fica próxima à fronteira com a
República Tcheca e era separada deste país pela chamada Cortina de Ferro, uma
divisão territorial do continente europeu durante a Guerra Fria (de 1945 a 1991).
O projeto conta com 54 histórias sobre viver em uma cidade pequena, todas
criadas pelo autor. Baseadas em experiências e lembranças, as histórias são narradas
pelo irmão de Thalhofer, que acrescenta um tom de ironia às narrativas.
O autor se distancia das histórias ao usar lembranças como disparadores
criativos, para depois modificar os acontecimentos acrescentando detalhes e pontos de
vista críticos sobre como é viver em pequenas cidades. Sobre a opção de transformar
lembranças em histórias ficcionais, ele diz “Nós não somos tão responsáveis por
escrever a verdade. Se eu tivesse dito que esta é a verdade, então as pessoas poderiam
me culpar e dizer: 'isso não é verdade’ou ‘ isso é errado’40
.”
Small World participou do Festival Internacional de Linguagem Eletrônica
(FILE), em São Paulo, na edição de 2005.
Imagem 8. Reproduções de três telas
de narrativas do filme Small World (1997).
39 Site oficial do projeto Small World: http://www.kleinewelt.com/.
40 We’re not that responsible for writing the truth. If I’d have said that this is the truth, then people could have
blamed me and said ‘this is not true’ or ‘this is wrong’. Trecho de entrevista concedida por Florian Thalhofer para
Matt Soar, em 18 de julho de 2010. http:// http://nomorepotlucks.org/site/langsamkeit-telling-stories-in-a-small-
world. Acesso em 14 de julho de 2013, tradução nossa.
47
Korsakow Syndrom (2000)
O primeiro k-film realizado por Thalhofer ainda não poderia ser chamado de k-
film. Foi durante a produção de um filme pensado com uma estética de hipermídia
que Florian desenvolveu o programa. A produção, tanto do filme quanto do programa,
foi paralela: enquanto filmava e produzia o material audiovisual, criava-se o
programa. Ao partir do tema do próprio filme, a síndrome de Korsakoff, Florian
experimenta formalmente os aspectos que especificam essa síndrome.
No filme Korsakow Syndrom41
, o autor compila materiais audiovisuais
diversos com um tema em comum: o alcoolismo. As entrevistas foram realizadas em
bares, festas, galerias de arte, salas de concerto e em transportes públicos, em Kuala
Lumpur, Berlim, Nova York e na Finlândia. Quando perguntados sobre bebidas
alcoólicas, todos os entrevistados tinham histórias para compartilhar.
Ao ser questionado sobre a escolha do tema, o autor explica que a síndrome de
Korsakoff é um termo médico para uma consequência cerebral do consumo abusivo
de álcool. Esta consequência é a perda da memória de curto prazo. Os pacientes com
essa síndrome tendem a compensar seus esquecimentos com a criação de histórias que
substituem as lembranças ausentes. Ao descobrir o elo do consumo alcoólico com
formas de construir histórias, o autor relacionou esta condição com o formato de um
banco de dados que contivesse pequenas histórias, e que seria acessado de forma não-
linear, tal qual o funcionamento cerebral de um paciente que necessita conectar
lembranças cujos elos foram perdidos. Foi baseado nesta associação que o autor deu
início ao desenvolvimento do programa Korsakow, para que ele conseguisse uma
aproximação do conceito do vídeo com a forma como ele seria apresentado.
Assim como Small World, Korsakow Syndrom também participou do Festival
Internacional de Linguagem Eletrônica (FILE), em São Paulo, na edição de 2005.
41 Site oficial do k-film Korsakow Syndrom: http://thalhofer.com/korsakow/syndrom/.
48
Imagem 9. Reproduções de três telas
de narrativas do filme Korsakow Syndrom (2000).
7 Sons (2003)
O k-film 7 Sons42
foi realizado por Florian Thalhofer em parceria com o
egípcio Mahmoud Hamdy. Originalmente pensado como uma videoinstalação de duas
telas, foi apresentado pela primeira ver no Cairo, Egito, em outubro de 2003.
Os autores visitaram uma tribo de beduínos no Sinai, uma península
montanhosa, e conheceram o xeque Suellim, a família dele e o seu cotidiano. O título
da obra faz referência aos sete filhos homens do xeque.
No diálogo travado em pequenos filmes, os beduínos apresentam seu mundo e
comentam suas inquietações e dúvidas em relação à sociedade moderna e distante da
qual Thalhofer e Hamdy fazem parte. Essa distância entre mundos é diminuída pelas
pontes de diálogo construídas pelos autores e seus entrevistados.
Este k-film também participou da edição de 2005 do Festival Internacional de
Linguagem Eletrônica em São Paulo.
Imagens 10 e 11. Documentação do processo de
filmagem e still do k-film 7 Sons (2003).
42 Site oficial do k-film 7 Sons: http://www.7sons.com/.
49
Imagens 12 e 13. Documentação da videoinstalação
7 Sons (2003) no Goethe-Institut, Cairo, Egito.
Forgotten Flags (2006)
O k-film Forgotten Flags43
foi realizado em 2006, mesmo ano da Copa do
Mundo de futebol, na Alemanha. Motivado pela onda patriota nas cores vermelho,
preto e amarelo, Thalhofer viajou pela Alemanha acompanhado pela artista Juliane
Henrich. Nos 2526 quilômetros percorridos, Thalhofer conversou com alemães que
mantiveram bandeiras em suas casas após 6 meses do término da Copa do Mundo.
Durante os 11 dias do mês de dezembro em que viajaram, Thalhofer e Henrich
pediram que os entrevistados explicassem as motivações pelas quais escolheram
colocar as bandeiras durante a Copa e mantê-las depois, incluindo em seus relatos as
opiniões de familiares, amigos e vizinhos e os custos das bandeiras simples até a
aquisição de mastros para bandeiras náuticas.
Imagem 14. Reprodução da interface
de interação do k-film Forgotten Flags (2006).
43 Site oficial do k-film Forgotten Flags: http://www.forgotten-flags.com/.
50
Planet Galata: a bridge in Istanbul (2010)
O k-film Planet Galata44
é uma parceria de Florian Thalhofer e do cineasta
turco Berke Baş. Filmado em 2010 em Istambul, o filme documenta o cotidiano de
pessoas que vivem e trabalham nos arredores da ponte de Gálata. Essas entrevistas
incluem comerciantes, moradores e turistas. Thalhofer considera esta região da cidade
um microcosmo que reflete a rica diversidade cultural de Istambul. A ponte tem dois
níveis, sendo o superior para pedestres e carros e o inferior para o comércio e
restaurantes.
Para a realização deste k-film, Thalhofer optou pela produção de um filme
linear tradicional, no qual os lucros com a venda do projeto patrocinado seriam
utilizados para a produção de um k-film.
A realização de um filme tradicional com poucos profissionais envolvidos
levou muito tempo e enfrentou muitos problemas, o que dificultou a produção
paralela do k-film, que foi terminado às pressas.
Imagem 15. Reprodução de imagens
do k-film Planet Galata (2010).
Money and the Greeks (2012)
O k-film Money and the Greeks45
é uma parceria de Thalhofer e Elissavet
Aggou. O projeto teve seu início em 2011, quando os autores viajaram pela Grécia
com o objetivo de descobrir como os gregos estavam lidando com a grave crise
44 Site oficial do k-film Planet Galata: http://planetgalata.com/.
45 Site oficial do k-film Money and the Greeks: http://geld.gr/.
51
econômica. Enquanto viajavam, Thalhofer e Aggou escreveram um blog sobre a
experiência.
Ao final da viagem, eles haviam coletado mais de 30 horas de entrevistas.
Com o apoio do Goethe-Institut de Atenas, todo o material foi traduzido e pré-editado
em 203 clipes com 4 ½ horas de duração. Este material, ainda bruto, foi apresentado
publicamente em Berlim e Atenas com o objetivo de que o público participasse do
processo de edição, avaliando e comentando o material exibido. Baseados nos
apontamentos do público, formado por alemães, gregos e gregos que vivem no
exterior, os autores perceberam que esses grupos tinham opiniões muito diferentes
sobre cada clipe. A controvérsia de cada clipe foi registrada em valores, de acordo
com a opinião específica de cada grupo. A seleção final dos clipes deu ênfase aos
depoimentos mais polêmicos, que agora fazem parte do k-film final, disponibilizado
na internet.
Imagem 16. Reprodução de imagens
do k-film Money and the Greeks (2012) I.
Imagem 17. Reprodução de imagens
do k-film Money and the Greeks (2012) II.
52
Korsakow Show
O Korsakow Show46
é um evento público com formato interativo e
participativo, no qual clipes de vídeo são exibidos e discutidos por especialistas e pelo
público. O formato foi criado por Thalhofer em 2008, em uma série de oito shows em
Munique. Esta série foi bem sucedida e se estendeu por mais sete mostras, produzidas
em 2009 e 2010.
Florian Thalhofer criou mais três shows neste formato, em mostras em Berlim,
Caracas e Praga.
Este show é um acontecimento organizado de forma que o tema da discussão é
dado, clipes de vídeo estão à disposição para serem escolhidos pelo público e dois
especialistas são convidados para dar corpo às discussões. O público participa
selecionando o próximo vídeo a ser discutido, questionando-o e comentando-o. Os
especialistas são convidados pelo público a participar da discussão. No Korsakow
Show, Freedom and Money (2009), o público também participava enviando
mensagens de texto que entrariam em pauta como questões ou comentários. Além do
tema, Thalhofer dá apenas outra direção ao público: “Pense de forma produtiva”47
.
Na imagem seguinte, a organização de um Korsakow Show:
Imagem 18. Documentação do Korsakow Show
Freedom and Money (2009).
46 Para visualizar a estrutura de um Korsakow Show, acesse http://vimeo.com/37592016. Acesso em 15 de julho
de 2013.
47 Think productively. Trecho de entrevista concedida por Florian Thalhofer para Matt Soar, em 6 de janeiro de
2013. http://korsakow.org/interview-with-florian-about-his-korsakow-show-was-ist-geld-gr-athens-greece-
102212/. Acesso em 15 de julho de 2013, tradução nossa.
53
A organização de um evento como este necessita dos seguintes participantes:
os vídeos; o público que assiste e seleciona os vídeos a serem assistidos; os
especialistas convidados e o mediador de toda a ação, papel corriqueiramente
desempenhado por Florian Thalhofer. As participações são totalmente democráticas.
Para a escolha do próximo clipe a ser assistido ou para que um dos especialistas
comente o assunto, eles devem ser escolhidos pela maioria do público presente, que
está munido por canetas a laser ou controles. O público é convidado a escolher o
próximo passo, e o clipe ou participante mais “votado” é o eleito para seguir adiante.
O Korsakow Show torna-se um projeto Korsakow colaborativo, pois neste
acontecimento os limites de um k-film original desaparecem. A grande peculiaridade
de um k-film é o grande volume de possibilidades de histórias, mesmo sendo a
programação por palavras-chave um ponto fechado. No Korsakow Show, o diálogo
existente entre o público presente que seleciona os vídeos e comenta, o público que
participa com mensagens de texto e os especialistas que colocam suas próprias
questões em contato com o tema proposto expandem o k-film em forma e conteúdo.
Assistir a um k-film e discuti-lo em um auditório torna a experiência coletiva e
próxima a um simpósio, em que as questões surgidas sobre o tema ganham
proporções além do contato pessoal com o vídeo. Assistir a um k-film disponibilizado
na internet e selecionar os vídeos sozinho é um processo mais íntimo e autoral, no
qual o que pode surgir da experiência são os resultados de conexões e lembranças
pessoais colocadas em diálogo com os clipes.
Como forma primordial de divulgação de seu trabalho com o Korsakow
System, Florian Thalhofer disponibilizou a sua criação na internet desde a primeira
versão, para que o público pudesse também utilizar e ajudar a desenvolver o
programa. Quando um interator decide tornar-se autor e instala o programa em seu
computador, a proximidade com o meio da programação pode abrir novos caminhos,
pois o programa permite que sejam feitas mudanças em sua programação inicial. O
programa é grátis, mas Thalhofer pede para que produções que custarem mais de
R$6000,00 sejam informadas a ele.
A disponibilidade na rede abriu caminhos para que usuários de diferentes
partes do globo se tornassem também autores. O Korsakow encontrou muitos
profissionais que viram em suas qualidades uma possibilidade de utilização. O
Korsakow tornou-se ferramenta em aulas de criação em hipermídia, meio para a
produção de documentários, banco de dados para armazenamento de arquivos há
54
muito perdidos e linguagem para a criação de obras de arte. No capítulo seguinte,
essas diferentes formas de se utilizar o programa serão apresentadas.
55
3 – O Korsakow System e sua utilização
A internet é um meio que abre possibilidades. A fácil comunicação entre
usuários e o caráter de constante expansão de um repertório quase infinito são o
grande atrativo para uma geração que tem na internet o principal meio de divulgação
de suas ideias. Um dos triunfos da rede é a liberdade de divulgar um trabalho sem a
necessidade de um interlocutor. É possível criar um site próprio onde o conteúdo ali
colocado é de seleção única e exclusiva do autor, ficando a cargo do próprio um
processo curatorial do que será disponibilizado ou não. Essa liberdade também coloca
o autor em contato direto com interessados pelo conteúdo do site, criando diálogos e
fóruns atualizados rapidamente.
Ao disponibilizar o Korsakow System na internet, Florian Thalhofer criou
uma rede paralela: artistas, educadores e curiosos que usaram o programa como
ferramenta para projetos diversos. Os projetos desses usuários, que estão localizados
em diferentes partes do globo, são também disponibilizados no site do Korsakow.
Thalhofer divulga os projetos para que a circulação do programa continue agregando
mais autores e fortalecendo as discussões propostas pelo autor do programa.
A abertura que Thalhofer promove está relacionada às ideias que estimularam
a criação do programa e também à sua atuação como educador. Como ele comenta:
Podemos aprender muito com pontos de vista de outras pessoas
porque os olhos de outros povos veem as coisas de um ângulo
diferente. Outra pessoa pode ver as opções e possibilidades que
você - do seu ponto de vista - não consegue ver. Isto é ainda mais
forte quando você conversa com pessoas de outras culturas ou
experiências. Quanto mais alguém está longe de seu próprio
pensamento, mais radicais são as formas com que você recebe essas
opções em sua própria vida, mas também é mais difícil obter uma
imagem clara do que a pessoa “realmente” quer dizer.
(THALHOFER, 2011)48
48 We can learn so much from other peoples’ views because other peoples’ eyes see things from a different angle.
Another person might see options and possibilities that you—from your point of view—cannot see. This is even
more so, when you talk to people from another culture or background. The further that somebody is away from
your own thinking, the more radical the options you get for your own life, but also the more difficult it is to get a
clear picture of what the person “really” means. Trecho de entrevista concedida por Florian Thalhofer para o
Goethe- Institut, em 21 de maio de 2011. http://www.a-r-c.ca/2010/10/interview-florian-thalhofer-on-his-creative-
approach/. Acesso em 19 de julho de 2013, tradução nossa.
56
O olhar do outro está na base da criação do programa Korsakow, e é essa a
busca de todos os projetos selecionados para serem apresentados neste capítulo.
Apenas no site do Korsakow System são apresentados 66 projetos enviados por
diferentes autores. Pela internet, em sites pessoais, é possível encontrar facilmente
mais uma centena de projetos. Destes foram selecionados 7 para apresentação e
discussão. Essa seleção foi baseada em quatro categorias criadas pela mestranda, que
consistem em: obras de arte; educação; cinema e documentário e experimentação.
Esta categorização é uma tentativa de abranger os objetivos poéticos mais populares
de quem utiliza o programa Korsakow e esta escolha, de selecionar apenas 7 projetos,
foi baseada especificamente na qualidade audiovisual e estrutural destes projetos, que
sobressaíram nesta rede de experiências. Embora seja possível relacionar estes
projetos a outros temas ou formas, esta escolha é organizacional para que seja
possível perceber as formas diferentes de criar narrativas com uma mesma
ferramenta.
3.1 – Korsakow e a obra de arte
A primeira categoria apresentada está relacionada ao Korsakow System como
ferramenta de construção de obras de arte. As intenções dos autores escolhidos neste
item diferem-se de outros principalmente na fundamentação poética da criação desses
projetos.
No primeiro, Archiving R69, a proposta é dar continuidade a um projeto
iniciado em 1969, cujo objetivo inicial era de documentar os processos criativos do
artista canadense Charles Gagnon.
No segundo, O Tempo Não Recuperado, a proposta é transpor imagens de um
arquivo pessoal para formatos de narrativa não-linear, permitindo novos sentidos e
configurações às imagens existentes.
Archiving R69 (2011)
O projeto Archiving R6949
(Arquivamento R69) é uma produção canadense
realizada em 2011 por Monika Kin Gagnon. Monika Kin é filha de Charles Gagnon,
49 Site oficial do projeto Archiving R69. http://www.archivingr69.ca/. Acesso em 22 de julho de 2013.
57
artista canadense que faleceu em 2003. Em 1969, Charles Gagnon começou a
produzir um filme, documentando a produção do artista Yves Gaucher, exposições e
galerias. Depois da morte de seu pai, Monika Kin encontrou este material, que
consistia não só em filmes mas também anotações e gravações de sons e decidiu
reorganizá-lo. O k-film Archiving R69 é um registro sobre a arqueologia de Monika
Kin do espólio de seu pai.
O título deste k-film é referente a uma obra do pintor canadense Yves
Gaucher, com o título de R#69. A letra “R” se refere à palavra red, ou “vermelho”. O
processo de produção desta obra de Yves Gaucher está nas documentações de Charles
Gagnon presentes no k-film.
O filme de Charles Gagnon, produzido de 1969 a meados de 1970, apresenta
experimentos com a câmera, como iluminação, ângulos e efeitos, entrevistas de Yves
Gaucher, a presença em segundo plano de personagens na vida dos artistas,
fotografias, músicas e anotações. De modo experimental e sem um objetivo
específico, Charles Gagnon documentou tudo aquilo que lhe parecia interessante e
que estivesse dentro do contexto artístico da época. A opção de Monika Kin de
utilizar o Korsakow System para organizar o trabalho de seu pai indica a vontade de
deixar a leitura da obra em aberto. Se escolhesse traduzir todo este material em um
filme linear, Monika Kin precisaria reorganizar a pesquisa, criando um método e uma
narração para que este material, capturado de forma aberta, fizesse sentido em uma
construção linear. A escolha do Korsakow System resolve a vontade de não significar
os objetos audiovisuais pelo olhar de Monika Kin, permitindo que o
espectador/interator perceba as ligações entre tantos objetos por si só.
O Tempo Não Recuperado (2003)
A obra O Tempo Não Recuperado é um trabalho em Korsakow System
realizado por Lucas Bambozzi, artista brasileiro, em 2003, através da Bolsa Estímulo
do 4o. Prêmio Sergio Motta.
De acordo com Lucas Bambozzi, a obra O Tempo Não Recuperado é
(...) o resultado de uma busca de imagens videográficas em um
arquivo pessoal transpostas para formatos de narrativa não-linear e
interativa. Na forma de videoinstalação e em formato DVD, o
trabalho foi conduzido de forma a permitir novos sentidos e
58
configurações às imagens existentes, resgatando vestígios dos
propósitos originais que motivaram a captação dessas imagens.
(BAMBOZZI, 2013)50
O título da obra é uma referência ao capítulo final do livro Em busca do tempo
perdido, do escritor francês Marcel Proust. No capítulo citado, intitulado O tempo
recuperado,
(...) o autor compõe um retrato da corrupção trágica de todas as
coisas. As pessoas que o narrador julgara amar voltaram a ser
simplesmente nomes, como outrora e os objetos que buscara
tinham-se desfeito. Constata-se que ‘a vida não passa de tempo já
desaparecido’.
(BAMBOZZI, Idem)
O entendimento de que acontecimentos passados não podem ser revividos da
mesma forma é o mote desta obra. A retomada de imagens antigas, capturadas pelo
artista em diversas mídia como películas de 16mm, fitas Betamax, VHSs e MiniDVs
seriam tentativas de possibilitar que as memórias ali guardadas pudessem ser também
revividas. A coleção de imagens especiais inclui todo tipo de evento e acontecimento,
de devaneios a situações íntimas.
Como no projeto Archiving R69, Bambozzi reencontrou essas imagens e as
digitalizou. Com a digitalização e reorganização destas imagens em um banco de
dados, Bambozzi propõe ao espectador um “percurso imersivo e analítico no universo
visual do autor, proporcionando uma experiência de vasculhamento de emoções,
sentimentos e conceitos impressos nas imagens arquivadas”.51
Bambozzi reorganizou os achados em pequenas coleções, deixando para o
espectador a reinvenção dos sentidos dessas imagens. Para o artista, o espectador
percorre processos subjetivos de edição ao associar, intimamente, os planos,
50 Site oficial do artista Lucas Bambozzi. http://www.lucasbambozzi.net/projetosprojects/o-tempo-nao-
recuperado. Acesso em 23 de julho de 2013.
51 Ibidem.
59
sequência e ideias organizados no banco de dados. Bambozzi, em seu artigo para o
livro Transcinemas52
, explicita que foi
Motivado pela experiência supostamente proporcionada pela
“revisita” a essas imagens, e não por saudosismo ou afirmações
egocêntricas, procurei estabelecer conexões que se perderam.
Buscaria o propósito de determinadas imagens, refazendo percursos
e processos. Daria finalidade a esboços mal traçados, tiraria o mofo
que impede o fluxo da memória.
(BAMBOZZI, p. 343)
Jorge La Ferla, em seu livro Cine (y) digital, comenta a poética de Bambozzi
nesta obra como uma “fina ironia sobre os atos de leitura, de memorizar e recordar
através de traços visuais, sons e imagens gravados com sua própria câmera de vídeo
(...)”53
.
Bambozzi caminha pelo mesmo percurso de Florian Thalhofer, ao perceber
que “dada a natureza subjetiva e íntima das imagens, não se fazia necessário incorrer
num discurso” (ibidem). Para o artista, não há “moral da história”: as sugestões dadas
por ele e a intuição do interator são os elementos que constroem e reconstroem as
memórias.
3.2 – Korsakow e a educação
Esta segunda categoria apresenta dois projetos que utilizam o Korsakow
System em sala de aula, com propósitos educativos. A facilidade em obter o programa
e desenvolver a programação, que obedece quase a uma ordem intuitiva, é o fator
principal para a utilização do Korsakow em disciplinas de estudos básicos de
comunicação, cinema e arte.
52 Katia Maciel organizou uma série de artigos que tratam da expansão do cinema para outros campos, como as
artes visuais e as novas mídia. O artigo de Lucas Bambozzi é uma reflexão sobre os processos poéticos e formais
de sua obra O Tempo Não Recuperado, p.343.
53 Sin embargo, Bambozzi plantea una fina ironía con respecto a los actos de leer, memorizar y recordar a través
de los vestigios audiovisuales, sonidos e imágenes registrados con su propia cámara de video (...).FERLA, Jorge
La. Cine (y) digital. Buenos Aires: Manantial Texturas. 2009, p. 104, tradução nossa.
60
Teaching with Warez: Korsakow and the Database Documentary
O primeiro objeto aqui apresentado é desenvolvido por Jennifer Cool,
presidente executiva e articulista do blog CASTAC.ORG54
, criado para discutir e
trocar estudos de antropologia da ciência e tecnologia. Este blog está ligado ao
Comitê para a Antropologia da Ciência, Tecnologia e Informática, da Associação
Americana de Antropologia.
Jennifer Cool leciona para graduandos em arte digital e em antropologia visual
e teve seu primeiro contato com o Korsakow em 2010, quando utilizou o programa na
disciplina de “Interdisciplinaridade Digital”, com o intuito de desenvolver projetos
focados em criação de redes de mídia digitais. Neste primeiro encontro com o
Korsakow, Cool aplicou o programa em suas aulas sem tê-lo experimentado
previamente, assumindo o risco de aprender o programa junto a seus alunos.
A conclusão de Jennifer Cool sobre o Korsakow está na compreensão de que o
valor de um projeto realizado com o programa está mais no processo do que no
produto final. Durante a experimentação com a programação do Korsakow e com a
exportação de k-films para diferentes sistemas operacionais e navegadores,
descobriram-se muitas falhas no sistema que foram depois organizadas e enviadas a
Florian Thalhofer para serem solucionadas.
Outro ponto salientado por Cool está no entendimento das dificuldades e
limitações em desenvolver programas com pouco ou nenhum orçamento,
principalmente de estudantes de arte que desejam criar seus próprios programas e que
encontram complexidades como a criação de interfaces, usabilidade, acessibilidade e
estruturas e processos específicos da linguagem digital.
Com os estudantes de cinema etnográfico, Jennifer Cool introduziu conceitos
de mídia interativa e não-linear e utilizou como exemplo o projeto de Thalhofer,
Planet Galata. Os estudantes produziram seus próprios objetos audiovisuais, como
entrevistas e filmes, e praticaram técnicas de edição de textos. Nestes projetos, Cool
salientou a oportunidade de obter novas perspectivas sobre o material produzido e
novos caminhos possíveis.
54 Artigo publicado no blog CASTAC.ORG. http://blog.castac.org/tag/korsakow/. Acesso em 24 de julho de 2013.
61
Classworks - interactive online video work by media undergrads
O projeto Classworks foi criado por Adrian Miles55
, conferencista sênior em
Novas Mídia e atualmente o diretor do programa do Bacharelado em Mídia e
Comunicação do Royal Melbourne Institute of Technology em Melbourne, Austrália.
Em sua pesquisa acadêmica, Miles investiga vídeos interativos em rede e foi desse
modo que entrou em contato com o Korsakow System.
Miles propõe a criação de k-films para seus alunos do curso de Bacharelado
em Comunicação desde 2010. Em sua proposta, sugere a introdução de tecnologias
simples para a produção de mídia multilineares, que por sua vez permite aos alunos
“desenvolver uma série de competências e habilidades, e fazer alguns experimentos
preliminares em vídeo em torno de narrativas alternativas (e não narrativas), formas
de ficção e não-ficção”.56
Os alunos são encorajados a experimentar e a utilizar tecnologias simples ou
de uso pessoal, como câmeras, serviços de internet e programas de computador, para
aproximar a pesquisa de um público menos especializado, que representa a maior
parte dos usuários de tecnologia e novas mídia hoje. Miles explica que as escolhas
práticas de suas aulas, em termos de ferramentas e tecnologias, está nos últimos
lançamentos disponíveis no mercado, que as discussões giram em torno da velocidade
com que o mercado de novas mídia se modifica e se recria, e como essas mudanças
influenciam as práticas, as narrativas e as maneiras de fazer e ver filmes.
Em relação aos k-films, Miles diz que os produzidos por seus alunos têm
qualidade variável. Desde 2010 foram produzidos 52 k-films no curso de Adrian
Miles.
3.3 – Korsakow, cinema e o documentário
O Korsakow é uma plataforma para produção de objetos audiovisuais e foi
criado especialmente para o desenvolvimento de narrativas em que o modo de contar
55 Site oficial do pesquisador Adrian Miles. http://vogmae.net.au/. Acesso em 26 de julho de 2013.
56 (...) develop a range of competencies and literacies and to make some preliminary experiments around
alternative narrative (and non narrative) forms for fiction and non fiction video making. Trecho do prospecto de
Adrian Miles sobre a utilização do Korsakow em projetos educacionais no ambiente universitário.
http://vogmae.net.au/classworks/. Acesso em 26 de julho de 2013, tradução nossa.
62
uma história é não-linear e a interatividade faz parte da experiência. O Korsakow
repensa o modo tradicional de se fazer cinema e documentário, e é utilizado por
diretores/autores que procuram enfatizar a participação do interator como um agente
construtor de significados que são apresentados de modo sugestivo ou com sentido
aberto. Dos projetos apresentados no site oficial do Korsakow, foram escolhidos dois:
Gaze, como cinema, e The Border between Us, um documentário.
Gaze (2010)
O k-film Gaze57
(contemplação) foi realizado em 2010, pelos canadenses
Sarah Barrable-Tishauer e Sean Fraser. Em Gaze temos uma personagem feminina
que caminha por uma cidade sob os olhares de alguns moradores. De acordo com os
autores, o enredo de Gaze está no olhar curioso sobre pessoas que não conhecemos,
quando
(...) andamos pelo mundo escondidos daqueles que nos rodeiam,
passando por estranhos sem saber a história deles, os seus
pensamentos ou suas experiências. Podemos nunca realmente
conhecer uma pessoa a partir de um olhar e nunca conseguiremos
nos colocar no lugar dela. Mas isso não nos impede de olhar com
curiosidade para aqueles que nos rodeiam.58
O k-film Gaze contém 20 pequenas narrativas que são as percepções de cada
personagem que observa a passagem da personagem feminina. Ao escolher a próxima
pequena narrativa, o usuário constroi um significado que é baseado na linha narrativa
formada por suas escolhas. A abstração apresentada no filme permite uma maior
interatividade, tanto física quanto mental, para que cada espectador experimente o
filme de uma forma diferente.
A inspiração para Gaze foi o conceito de “conexão não encontrada”, relatada
pelos autores como um tipo de mensagem on-line associado ao site craiglist.com. Este
site é uma página de “classificados” on-line, muito similar aos “classificados” dos
jornais. Na página de “conexões não encontradas”, usuários deixam mensagens para
57 Site oficial do k-film Gaze. http://gazekfilm.com/index.html. Acesso em 28 de julho de 2013.
58 (...) we walk through the world hidden from those around us; passing strangers without knowing their story,
their thoughts or their experiences. One can never truly know a person from a glance and can never quite walk in
their shoes. But that does not stop us from gazing curiously upon those around us. Trecho da sinopse oficial do k-
film Gaze. http://gazekfilm.com/about.html. Acesso em 28 de julho de 2013, tradução nossa.
63
pessoas que não conhecem ou com quem nunca conversaram, esperando uma
mensagem de retorno da pessoa para quem foi “endereçada” ou de outro usuário
qualquer que tenha se interessado. Assim, o usuário que redigiu a mensagem espera
que ela encontre, de algum modo, o endereçado.
Os personagens de Gaze que observam a protagonista são todos homens e
cada um a vê de um modo. Alguns comentam sua aparência e outros relatam histórias
do passado que a presença dela os fez relembrar. Alguns a desejam e outros apenas a
admiram e a percebem passar. O título, de acordo com os autores, faz alusão ao
trabalho teórico de Laura Mulvey, crítica de cinema britânica. Barrable-Tishauer e
Fraser dizem que
As teorias de Mulvey sugerem que o espectador e o olho
cinematográfico são sujeitos masculinos que olham para as
mulheres no cinema como “prostitutas” ou “madonas”. Este sistema
patriarcal de cinema, presente especialmente nos filmes de
Hollywood, torna impossível distanciar-se deste “olhar masculino”.
Nosso filme faz referência a essa metáfora, colocando o espectador
dentro dos pensamentos de homens ao contemplar a nossa
protagonista feminina como objeto.59
O k-film é um bom exemplo de narrativa simples em que as qualidades do
Korsakow foram empregadas de modo convincente. A trama de pequenos filmes pode
ser acessada em qualquer ordem, sem que a ideia geral seja perdida. Uma rede de
ligações é construída, entre o objeto “principal” (a protagonista) e os outros objetos,
ligados a ela. Entre os objetos masculinos, relacionamos a fala à imagem, levantando
também interpretações acerca dos indícios que as falas e as imagens constroem.
Questões como a aparência, a idade, a classe social e os sentimentos em relação à
protagonista formam as redes de possibilidades que a presença dela pode invocar.
59 Mulvey's theories suggest that the viewer and cinematic eye are masculine subjects who gaze upon women in
films as "whores" or "madonnas". This patriarchal system of filmmaking, especially present in Hollywood films,
makes it impossible to distance oneself from this "male gaze." Our film makes reference to this metaphor by
placing the viewer inside the thoughts of men as they gaze upon our objectified female protagonist. Trecho do
relato sobre o processo de realizar o k-film Gaze. http://gazekfilm.com/about.html. Acesso em 28 de julho de
2013, tradução nossa.
64
The Border between Us (2012)
O projeto The Border between Us60
foi concluído em 2012 pela canadense
Nicole Robicheau. Robicheau desenvolveu este k-film como parte de sua dissertação
de mestrado sobre fronteiras e como a divisão de espaços e territórios afeta as
comunidades envolvidas. Ao descobrir o remapeamento entre as cidades de Stanstead
(Quebec, Canadá) e Derby Line (vila incorporada à cidade de Derby, Vermont, EUA),
Robicheau idealizou este documentário. Realizando entrevistas com 11 diferentes
moradores de ambas as cidades, ela mapeou a nova rigidez na fiscalização da
fronteira depois do evento de 11 de setembro de 2001 em Nova York, EUA.
Jornalista e radialista, Robicheau escolheu o modo de construção do
Korsakow; pois acredita que o tipo de arquitetura do programa equilibra61
as vozes de
uma história como a que ela desejou investigar. Caminhamos neste k-film pelas vozes
dos entrevistados, acompanhadas pelos retratos dos próprios personagens, moradores
destas duas cidades divididas. Essas vozes são exibidas de modo independente, a fim
de serem ouvidas e compreendidas em qualquer ordem de seleção.
Como forma, The Border between Us se aproxima do projeto Planet Galata,
de Florian Thalhofer. Um tipo de jornalismo investigativo, em que os entrevistados se
relacionam por estarem em um mesmo espaço. As questões levantadas por Nicole
Robicheau guiam as respostas dos entrevistados, para que eles, com seus relatos,
alcancem os pontos-chave que ela deseja apontar em seu documentário. Embora ela
tenha uma linha de construção poética que deseja seguir, a “forma documentário” é
um segmento de cinema que recebe bem as leituras pessoais dos envolvidos. Essa
pessoalidade também está presente na própria Nicole, que se insere no k-film final
como a 12a. entrevistada.
60 Site oficial do k-film The Border between Us. http://www.theborderbetweenus.org/. Acesso em 29 de julho de
2013.
61 Em entrevista para Matt Soar, Nicole Robicheau explica por que escolheu o Korsakow System como mídia para
seu documentário. http://korsakow.org/interview-robicheau/. Acesso em 29 de julho de 2013.
65
3.4 – Korsakow e a experimentação
Assim como existem muitas formas de contar histórias, também existem
diferentes maneiras de utilizar o Korsakow System. Seja para criar narrativas de
banco de dados como obras de arte, como ferramenta educacional para instigar alunos
a repensar e experimentar processos de criação de narrativas ou ainda como puro e
simples cinema e documentário não-linear, o formato simples do Korsakow abre
possibilidades. Este item é dedicado a um projeto que repensa a ferramenta do
Korsakow para além da criação de filmes.
Saindo do escopo inicial do Korsakow, que consiste em criar narrativas não-
lineares, Noah Springer62
decidiu utilizar o conceito de banco de dados do Korsakow
de outra forma. Essa forma é uma experiência, uma tentativa de aplicar a ferramenta
Korsakow para outros fins.
Springer é doutorando em Estudos de Mídia no Programa de Jornalismo e
Comunicação de Massa da Universidade de Colorado-Boulder, EUA. No início de
2013 criou um projeto em Korsakow com a intenção de questionar o posicionamento
da pesquisadora dra. Marie-Laure Ryan. A área de atuação de Ryan é a
“narratologia”, que consiste no estudo das relações entre narrativas através de suas
diferenças estéticas63
. Na opinião de Ryan, embora o público muitas vezes consiga
construir narrativas vindas de bancos de dados, a narrativa ainda não é percebida
como partes independentes. Pelo contrário, o banco de dados é mediado por uma
interface pela qual os usuários o acessam, sendo essa organização identificada por
eles como um todo. Springer decidiu realizar um projeto que vai de encontro às
colocações de Ryan: “picar” a narrativa em partes e redistribuí-las sob a lógica do
Korsakow.
O projeto foi focado em uma rede social chamada reddit.com64
. Esse site é
uma rede social de entretenimento. Os usuários inserem conteúdos que podem ser
textos, imagens ou links que levam a outras páginas. Outros usuários podem votar
62 Site oficial de Noah Springer, com o relato dos processos que envolveram a sua tentativa de produzir um
projeto em Korsakow System. http://noahspringer.com/?s=korsakow&submit=Search. Acesso em 29 de julho de
2013.
63 Idem.
64 Endereço eletrônico do site. http://www.reddit.com/. Acesso em 29 de julho de 2013.
66
positiva ou negativamente quanto ao conteúdo. Esses votos são somados e realocam
os conteúdos em um ranking. Quanto mais votos positivos um conteúdo tiver, mais
chances de ele ser colocado na página inicial, ou seja, os conteúdos considerados mais
interessantes têm mais chance de serem visualizados por outros usuários. Esses
conteúdos são organizados por áreas de interesse em aproximadamente 24 temas.
Cada tema é considerado um subreddit, isto é, uma categoria dentro do reddit. Dentro
de cada conteúdo os usuários também podem inserir comentários. E esses
comentários, por sua vez, também podem ser comentados.
Neste projeto, o subreddit escolhido por Springer foi o r/hiphopheads (r/hhh).
Atualmente esta categoria mantém 15 moderadores que acompanham os conteúdos de
7 diferentes páginas onde os usuários podem inserir conteúdos, organizados por
subtemas. Dentro deste subreddit, o autor do projeto planejou usar o Korsakow para
reorganizar o sistema de comentários que os usuários podem deixar em cada
conteúdo, podendo assim interligar os comentários aos conteúdos e não um
comentário ao outro, modo proposto pelo site. A pergunta de Springer é: “o Korsakow
pode fornecer um método de análise de sistemas de comentários? Se, como Florian
Thalhofer diz, a “linearidade é supervalorizada”, lógicas não-lineares podem fornecer
insights dentro de sua própria natureza?”65
.
Para responder a essas perguntas, o autor definiu uma estrutura cujo primeiro
passo foi estabelecer quantos videoclipes, entre os mais populares da r/hiphopheads,
seriam utilizados. Primeiramente selecionou 40 vídeos e, ao perceber a dimensão que
o projeto tomaria, diminuiu para 30 e finalizou o projeto com 10 vídeos selecionados.
Em cada um dos vídeos selecionou o comentário que mais havia sido votado como
positivo e recebido, por sua vez, mais respostas. Com esta seleção, o autor pôde ter a
dimensão dos tópicos mais discutidos em cada videoclipe. A seguir, definiu a
popularidade de cada comentário baseado em um ranking que foi delineado a partir da
quantidade de respostas que cada comentário obteve. Esse ranking ia de -20 pontos
até 200 pontos.
65 Can Korsakow provide a method for analysis of comment systems? If, as Florian Thalhoffer says, “linearity is
over(rated),” can non-linear logics provide insight into their nature? http://noahspringer.com/tag/korsakow/.
Acesso em 31 de julho de 2013, tradução nossa.
67
A programação em Korsakow deste projeto está na forma com que o autor
reuniu todas essas informações. Ao inserir os videoclipes na programação, ele criou
três palavras-chave para cada um: o título do videoclipe, o nome do
músico/cantor/artista e uma palavra-chave específica de marcação na primeira página.
Quando um outro rapper surgia como convidado no videoclipe, novas opções de
visualização para comentários relacionados ao rapper surgiam. Se o interator
assistisse ao clipe até o final, as novas opções de visualização que apareciam eram de
comentários que estivessem no mesmo ranking que os comentários originais do
videoclipe assistido, ou seja, o comentário original. Cada comentário contém três
áreas de visualização: uma dedicada aos artistas do videoclipe ao qual o comentário
remetia; uma à própria música e a outras músicas relacionadas que já tinham sido
mencionadas; e a última de comentários que tinham a mesma quantidade de pontos
que o comentário que estava originalmente ligado ao videoclipe.
A complexidade desta programação causou problemas no funcionamento do
k-film, que apresentou diversos erros quando foi exportado. O autor aponta que erros
primários, como a escolha da dimensão da interface, o formato dos vídeos e a
animação que substitui a seta do mouse poderiam ter sido evitados, se ele tivesse
primeiramente testado todas essas escolhas. Ao reiniciar o projeto, o autor testou
novamente toda a programação, mas com menos conteúdo: três videoclipes e três
comentários aleatórios.
O projeto final repensado consiste em 8 vídeos interligados a uma seleção
limitada de comentários. Nesta versão, os comentários seguem a lógica de serem
escolhidos pela maior quantidade de respostas. Os comentários e suas respostas foram
relacionados por temas e por “importância” dentro do ranking. Nesta versão final, o
ranking foi pensado de forma diferente: se no reddit um comentário de 30 pontos for
seguido (em uma organização linear) por um de 10 pontos, no Korsakow este
comentário abrirá todas as opções de visualização de comentários que tiveram de 10 a
20 respostas. Esse tipo de organização é centrada mais na importância desses
comentários-respostas dentro do reddit do que em sua organização linear original.
Springer conclui o relato desta experiência formalizando dois aspectos do
Korsakow. O primeiro está no sentimento de frustração de Springer como
programador, pois o Korsakow requer uma flexibilidade constante do autor, que
precisa adequar suas ideias às limitações do programa. O segundo está no fato de que,
quando um objeto é transformado em um SNU, ou seja, “catalogado” com palavras-
68
chave de entrada e saída, ele desafia o interator a entender como o discurso (ou ideia)
foi construído. De acordo com Springer, “ao desenroscarmos os comentários e
reorganizá-los baseando-se em artistas, músicas e ranks relacionados através do
Korsakow, produzimos novos modelos de entendimento”.66
Finalizando, o autor
aponta a necessidade de expandir o projeto novamente, para que se chegue à
conclusão de que o programa Korsakow poderia ser utilizado para reorganizar
discursos de base narrativa linear, tornando visível a não-linearidade como discurso e
sentido de um mesmo objeto de origem linear.
O Korsakow foi concebido como uma ideia simples: um programa para a
criação de narrativas não-lineares. Como visto neste capítulo, a poética de uma
narrativa-linear pode ter várias formas. Dentro do Korsakow, essas narrativas podem
ser a reorganização de um documentário não finalizado no passado, como no caso do
k-film Archiving R69. Podem ser uma obra de arte que coloca o interator/espectador
como um re-significador de imagens pessoais de arquivo, como em O Tempo Não
Recuperado. Em Teaching with Warex, essas narrativas podem se construídas em
grande quantidade por estudantes que pesquisam a arte digital e a antropologia visual.
Já em Classworks, de Adrian Miles, os alunos experimentam a criação de narrativas
alternativas dando continuidade à pesquisa em vídeos interativos do professor. Essas
narrativas não-lineares também são a recriação de um cinema em que o quebra-cabeça
de cenas é escolhido pelo interator e o sentido do filme torna-se íntimo daquele que
observa, como em Gaze. O cinema documentário é mostrado em The Border between
Us, no qual a forma não-linear auxilia a autora a enfatizar o quanto a quantidade de
perspectivas é proporcional à situação complexa de duas cidades antes unidas. E,
como último exemplo, o ato de experimentar o conceito de narrativa não-linear em
uma tentativa de reorganizar um conteúdo gerado por usuários que complementam o
conteúdo publicado na internet.
As apropriações do Korsakow mostram que a simplicidade do programa pode
ser rearticulada em diferentes formas de contar histórias. Essas formas, das mais
simples como em Classworks, às mais complexas como no projeto de Noah Springer,
66 Unthreading the comments and reorganizing them based on relational artists, songs, and ranks through
Korsakow provides a new patterns of understanding. http://noahspringer.com/tag/korsakow/. Acesso em 01 de
agosto de 2013, tradução nossa.
69
são um indicativo dos desdobramentos que podem surgir de objetos criados nas novas
mídia. A forma e o conceito que resultaram na criação do Korsakow e na sua
consequente distribuição estão inseridos no universo da internet. A rede é o ambiente
onde o Korsakow circula, e é nela que podemos encontrar a base do pensamento não-
linear do Korsakow. Obviamente o pensamento não-linear está presente em outras
linguagens, como na literatura e no cinema, mas é no ambiente hipermidiático que ele
se mostra mais presente. Forma e conteúdo não-linear, construídos em um caminhar
(ou navegar), encontraram na internet um ambiente fértil, onde a construção de ideias
por meio de trechos e informações interrompidas é dominante. Portando, a
aproximação conceitual do Korsakow com a internet não se resume apenas à
divulgação e distribuição. No capítulo seguinte, essas aproximações serão expostas e
clareadas.
70
4 – O Korsakow System na rede
O Korsakow System está ligado ao pensamento de rede em sua forma e
conceito. Formalmente, a ideia rizomática de objetos interligados em um ambiente
flutuante e moldável está em consonância com a organização de informações na
internet. Essa aproximação deve-se ao fato de que a ideia de construção poética do
primeiro k-film realizado por Florian Thalhofer foi acompanhada de seu recente
interesse por programação e pela própria internet. Já no caráter conceitual, a
interpretação de pequenos trechos que ganham sentido quando são realocados em uma
ideia mais ampla também está relacionada ao ato de percorrer a internet, unindo doses
de informação que estão espalhadas pela rede, construindo-se o próprio caminho.
Essas relações podem ser expandidas para três pontos-chave entre o Korsakow
e a internet: a criação processual, a figura do interator colaborador e o potencial
estimulante do pensamento em rede.
4.1 – A criação processual
Podemos dizer que uma das maiores características de um k-film é a sua
criação processual. O processo criativo de criar um filme nesta plataforma envolve o
entendimento de três diferentes aspectos: a ramificação, o multiforme e a pluralidade.
A ramificação está no desenho formado pelos caminhos percorridos pelo
interator dentro de um k-film. Se a interação com um k-film for mapeada,
perceberemos que as propostas mais complexas dentro deste programa têm uma
lógica rizomática, segundo a qual linhas narrativas se desdobram simultaneamente,
formando pequenos eixos conceituais tangenciados por um grande número de objetos
relacionados e relacionáveis. A internet, por sua vez, também é construída de modo
rizomático, onde diferentes propostas, conceitos, ideias e interesses estão dispostos
em um ambiente comum, mais ou menos distantes uns dos outros, e interligados por
proximidade conceitual. Assim como no Korsakow, a interação com a internet pode
construir caminhos “sem saída” e de esgotamento de ideias, ou seja, chegar a um
limite onde nada mais relacionado pode ser encontrado.
71
A programação rizomática67
de um k-film resulta em narrativas multiformes.
Os caminhos escolhidos dentro de um k-film são determinantes para a nossa
impressão final sobre a narrativa. Esses caminhos perpassam objetos audiovisuais que
estão inseridos em uma plataforma específica, a qual permite a interação com o
conteúdo ali exposto mas não possibilita a inserção de conteúdo por parte do interator.
A ausência da opção de inserir conteúdo no k-film é um dos pontos que aproxima essa
experiência da navegação na rede, especialmente na época em que o Korsakow foi
concebido.
Em 2000, ano em que o Korsakow foi criado, a internet era acessada por
conexão discada de baixa velocidade com imagens em baixa resolução, e era utilizada
mais especificamente para pesquisa, navegação em páginas de notícias e sites de
conversa online. Ainda não existiam meios populares de troca de conteúdo
audiovisual e a plataforma para troca de músicas em mp3 “Napster”, por exemplo, foi
criada apenas em 1999. Isto posto, no final dos anos 1990 a rede era popularmente
utilizada para a leitura de conteúdos em sites especializados e a opção de criação de
sites pessoais ainda estava distante. Talvez as dificuldades técnicas da época
indiquem o caráter simples de programação e funcionamento do Korsakow.
Em sua forma, as opções de navegação fazem de um k-film um objeto
multiforme e complexo, pois apresenta variações de navegação e conteúdo, ao mesmo
tempo que o banco de dados de onde surge um k-film é também visto como uma
unidade, pois todo o conteúdo ali inserido não pode ser modificado. Como Janet
Murray (2003, p. 135) comenta, “(...) as histórias multiformes que oferecem várias
releituras de um mesmo acontecimento frequentemente desembocam numa única e
‘verdadeira’ versão”. Essa “verdadeira” versão é o conjunto de objetos ali dispostos
onde independentemente da ordem em que sejam visualizados, a compreensão geral
será a mesma, pois será sempre o mesmo conteúdo apenas visualizado em ordens
distintas.
67 Janet Murray cita o temo “rizoma”, do filósofo Gilles Deleuze, com a intenção de explicar a organização de um
“hipertexto narrativo pós-moderno”. Ela diz: “Sua visão estética é geralmente identificada com o ‘rizoma’ do
filósofo Gilles Deleuze, um sistema de raízes tuberculares no qual qualquer ponto pode estar conectado a qualquer
outro ponto. Deleuze utilizou o sistema de raízes do rizoma como um modelo de conectividade nos sistemas de
ideias; os críticos aplicaram esse conceito a sistemas de textos alusivos não-lineares (...)”. MURRAY, Janet.
Hamlet no Holodeck : O futuro da narrativa no ciberespaço. Tradução Elissa Khouri Daher, Marcelo Fernandez
Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural: UNESP, 2003. p. 132.
72
Para que um k-film de caráter cinematográfico se torne uma experiência mais
complexa, as ramificações e a forma do filme deveriam ser constituídas por uma
grande quantidade de desvios, desdobramentos e finais possíveis. Essas escolhas
acarretariam em processos de criação difíceis e demorados, “por demais densa e
confusa para ser escrita, uma vez que os escritores teriam de trabalhar cada
ramificação separadamente” (idem, p. 189). Essas organizações complexas e
dinâmicas se relacionam aos websites atuais, que indicam o conteúdo específico e
central ao mesmo tempo que abrem opções de expansão baseadas em assuntos
correlatos ao conteúdo principal, dentro do próprio site e para além dele. Essas opções
são colocadas à vista durante toda a interação e estimulam o interator a continuar
navegando.
A criação de desvios e desdobramentos que dinamizam as formas como as
histórias serão construídas também está relacionada a uma qualidade plural de
intenções e significações dos k-films. O programador de um k-film deve,
primordialmente, realizar escolhas poéticas e organizacionais que sejam próximas do
conceito por trás do Korsakow System. Ao observarmos as ideias que resultaram na
criação deste sistema, perceberemos um estímulo à criação de hipóteses e jogos de
interpretação, características de “sistemas de discurso que admitam a pluralidade de
significados” (idem, p. 132). A internet, como espaço aberto, acolhe discursos que se
utilizam de outros discursos, citações e referências, interligando conceitos dentro e
fora de um autor, uma página e até mesmo uma mídia. Isto posto, um k-film deve ser
gerado como um ambiente complexo e plural, que permita que o interator tenha
espaço e liberdade de se relacionar com toda a informação ali disponibilizada. Para
que haja variação nessas interpretações, o sistema deve conter objetos que acionem
níveis de interpretação, que podem partir da presença ou ausência de um sentido de
hierarquização, ideias conflitantes, muitos pontos de vista sobre um mesmo objeto,
dinâmica visual e sonora e detalhes que sejam pontos de conexão entre todos esses
objetos. A pesquisadora Lucia Leão comenta como se dá a organização da
complexidade de websites, mas que cabem perfeitamente no processo de criação de
um k-film:
Assim, as noções de organização e de complexidade dos sistemas
representam momentos de um percurso circular infinito. Ou seja,
para que a complexidade dos sistemas hipermidiáticos seja
operacionalizável e vivida, o sistema deverá ser concebido como
uma organização. Quando falamos em hipermídia, estamos no
73
campo das inter-relações e a organização possibilita que elas
ocorram.
(LEÃO, 2005, p. 71)
É nas interligações que as interpretações começarão a se formar, sendo preciso
que elas conectem ideias ao mesmo tempo que não as limitem, estimulando o
interator a se envolver e percorrer os caminhos abertos, construindo a sua própria
narrativa.
4.2 – O interator colaborador
Como visto no item anterior, é preciso compreender o Korsakow System sob
uma ótica de criação processual. A organização de conteúdos em um banco de dados,
interligados por palavras-chave que podem indicar aproximações e/ou afastamentos,
necessita da presença de um terceiro elemento, além do programador e do objeto em
si. Neste processo, o interator se faz presente como um colaborador. É desejado, ao
realizar um k-film, que o interator se disponha a agir, perceber e repensar o que está
sendo visto e ouvido, desenvolvendo em si mesmo um outro processo de costura de
ideias, surgidas na medida em que se caminha dentro de um k-film. Essa costura de
ideias é um processo de estruturação, no qual “o navegador pode se fazer autor de
maneira mais profunda do que percorrendo uma rede preestabelecida: participando da
estruturação do hipertexto, criando novas ligações” (Levy, p. 47). Pierre Levy
comenta também que
(...) quem atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto
da reserva documental contribui para a redação, conclui
momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e
remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa
podem ser incorporados à estrutura mesma do corpus. A partir do
hipertexto, toda leitura tornou-se um ato de escrita.
(LEVY, 2011, p. 46)
Levy está comentando sobre o usuário que, ao percorrer caminhos próprios
dentro da internet, acaba se transformando em um escritor. Podemos levar em
consideração que a internet e o Korsakow são hipermídia, ou seja, herdeiros da forma
74
e dinâmica do hipertexto, e portanto são ambientes onde nos tornamos criadores a
partir dos caminhos que percorremos.
A criação a partir da leitura, delineada acima, torna-se mais complexa quando
consideramos que essa leitura é uma rede de interpretações. Na internet e nos k-films
essas interpretações surgem em um ambiente que está em movimento e que se renova.
Cabe ao interator de ambas as plataformas percorrer seus próprios caminhos e
desenvolver significações singulares.
O espaço aberto da internet e o banco de dados de um k-film convidam o
usuário a torna-se um interator, a agir, criar e compartilhar conteúdos. Lucia
Santaella, em Linguagens líquidas na era da mobilidade, explica que
O espaço aberto para o receptor é também espaço de inclusão,
quando, por exemplo, o artista convida seu público a remixar sua
proposta na espera curiosa das mutações que podem resultar do
papel performático que o público passa a desempenhar. Além disso,
trabalhos colaborativos e generativos engajam não apenas
indivíduos, mas comunidades inteiras, que projetam suas existências
nas redes por meio de agenciamento coletivo.
(SANTAELLA, 2011 p. 79)
A inclusão do interator como personagem que “remixa” as propostas do
programador demanda atenções físicas, conceituais e sensíveis, que transformam o
interator. Essa transformação é dita por Santaella como “o princípio que rege a
interatividade nas redes, seja em equipamentos fixos, seja em móveis, é o da
mutabilidade, da efemeridade, do vir-a-ser em processos que demandam a
reciprocidade, a colaboração, a partilha” (2011, p. 80). Os k-films são regidos pela
mutabilidade, pois os caminhos sempre são diferentes, e pela efemeridade, já que em
uma interação nem sempre teremos a oportunidade de rever um ponto específico do
caminho.
Sobre o “agenciamento coletivo” que a pesquisadora cita, podemos dizer que
foi criada uma rede de k-films na internet onde pesquisadores, cineastas e entusiastas
de todo o mundo podem criar seus próprios k-films e disponibilizá-los para interação
na rede. Thalhofer organizou em seu site os principais projetos desenvolvidos em
Korsakow System, tanto para que seja mais simples encontrá-los organizados em um
mesmo lugar quanto para dar a nós, usuários/interatores/interessados, uma ideia das
formas com que o programa foi absorvido pelos programadores.
75
Podemos concluir este item afirmando a simbiose que existe entre um
pensamento k-film e o interator. Esses processos de relação invocam o discurso de
Mikhail Bakhtin acerca do sentido de pensar. Para Bakhtin, pensar sobre um
pensamento, sobre algo e estar disposto a pensar sobre, está inserido na ideia de ato.
Já um comportamento mecânico ou impensado diante de um pensamento ou uma
ideia é a ação. Marilia Amorim comenta que “o ato é um gesto ético no qual o sujeito
se revela e se arrisca inteiro” (Brait, 2012, p. 23). Assim, a todo momento, em
qualquer interação, podemos escolher o modo como nos relacionaremos com o que
está posto. Podemos realizar o “ato”, e realmente nos envolvermos com o que estamos
nos relacionando, ou podemos simplesmente agir, e selecionar o próximo passo pois é
isto que o objeto nos indica a fazer. O conteúdo dos pensamentos é estável. Ele só é
modificado e adquire um sentido quando ele é apropriado pelo sujeito. Assim,
perceber as nuances de cada ponto da interação com um k-film é delinear um
processo de construção de sentido, tornando os pensamentos ali colocados pelo
programador, em pensamentos singulares e reais. Portanto, para que o processo de
criação de um k-film se torne completo, a narrativa precisa ser criada a partir do
envolvimento do sujeito com os objetos dispostos no banco de dados em questão. Isto
posto, temos dois momentos de construção de sentido de um k-film. Temos o
momento do pensamento do programador/autor e o interator, que completam um ao
outro os sentidos ali colocados. E temos o momento do todo, que é perceber que todas
essas vozes colocadas em um k-film conferem um sentido complexo do todo, onde
suas pequenas partes são indissociáveis. Adail Sobral complementa “que o autor está
na unidade da obra, não no trecho isolado, mas que, ao mesmo tempo, cada parte do
todo orgânico, de sua unidade de sentido, traz holograficamente, hipertextualmente,
esse todo – que assim permanece maior que suas partes” (Brait, 2012, p. 184).
4.3 – O potencial do pensamento em rede
Este último item é uma reflexão sobre como o desenvolvimento da internet e
do computador como meio comunicacional pode despertar um interesse por uma meio
como o Korsakow System.
O computador pessoal tornou-se um aparelho doméstico que sintetiza muitos
aspectos de nossa vida real. Através de um computador com acesso à internet,
76
podemos realizar uma infinidade de ações utilizando um único dispositivo, novidade
que modificou desde a nossa noção espacial, já que para muitas atividades como
realizar transações bancárias simples ou fazer compras não precisamos mais nos
locomover, até uma noção temporal, pois todos os estímulos visuais e interesses
podem ocupar muito tempo sem que se perceba a passagem dele. Esta nova maneira
de alcançar objetivos, tendo a interface do programa em questão como um mediador
que muitas vezes substitui a outra parte humana, está criando formas de se relacionar
corporal e intelectualmente com os meios comunicacionais. Existe uma busca pela
modificação do que estamos vendo, pela opção de voltar atrás, trocar rapidamente de
assunto e interesse, poder realizar uma pesquisa ao mesmo tempo que outra atividade.
De acordo com Janet Murray, as formas de contar histórias também estão sendo
influenciadas por essas novas tecnologias. Para ela,
(...) no computador, podemos reiniciar a história e vivenciar mais de
uma vez a mesma simulação. Podemos encenar todos os papéis,
esgotar todos os efeitos possíveis. Podemos construir uma visão
composta do mundo narrativo que não se esclarece numa história
única, mas, ao invés disso, compõe-se num sistema coerente de
ações inter-relacionadas. Porque, cada vez mais, vemos o mundo e
até nossa própria identidade como sistemas tão complexos,
descentralizados e com finais em aberto, precisamos de um
ambiente de história que nos permita compreendê-los seduzindo-nos
a explorar um denso mundo narrativo de todas as perspectivas
possíveis.
(MURRAY, 2003, p. 175)
A criação de um programa como o Korsakow System é um indício dessa
busca por narrativas que se relacionem de modo formal e poético com as mudanças na
esfera da comunicação. A internet, principalmente em relação à divulgação e
distribuição de objetos, impulsiona e estimula novas formas de se aproximar e
interagir com objetos como os k-films.
As novas propostas tornam o leitor um agente ativo, que se transforma e
modifica o meio onde está inserido. Talvez a popularidade do Korsakow System seja
um reflexo dessa busca da sociedade atual por algo que estimule a participação ativa,
e Thalhofer simplifica essa ação corporal, transformando o interator em um agente
que seleciona o próximo vídeo. Para Thalhofer, o Korsakow foi criado para ir além da
questão física de apenas acionar um dispositivo para que a história continue a ser
mostrada. A ideia do autor é que seu programa seja um estímulo à percepção e à
77
criação de um olhar. Em uma metáfora durante uma entrevista para o site da
Universidade de Concórdia, Montreal, o autor comenta sobre o que considera
interessante em seus k-films e na proposta de criação do Korsakow System:
Trocar ideias sobre a realidade é uma necessidade humana. É como
olhar para uma escultura: você vê o que você vê a partir do seu
ângulo. Quando você fala com alguém ao seu lado sobre o que ele
vê, você pode imaginar muito bem. Mas quando você fala com
alguém do outro lado da escultura e ele descreve o que vê, é difícil
para você imaginar exatamente o que ele vê. Mas é claro que a
visão do outro lado lhe diz muito mais sobre a escultura.68
Poder observar um objeto de vários ângulos e assim desenvolver a sua própria
percepção da narrativa é o objetivo do Korsakow. Essa percepção modificável
também foi facilitada com a expansão da internet. Assim como os meios de
comunicação como o rádio e a televisão apresentam tendências discursivas conforme
a estação ou canal escolhido, a internet é o ambiente onde essas diferenças foram
multiplicadas. Sites saem do pensamento binário em que só existiriam duas
possibilidades de verdade para um assunto e expandem para uma rede de opiniões
pessoais, grandes empresas, páginas de jornais e fóruns onde todo e qualquer assunto
pode ser discutido e visto sob muitos ângulos. Constantemente existe um embate entre
oposições que, ao mesmo tempo que enriquecem as discussões, podem também
exauri-las rapidamente. Thalhofer deseja que os k-films estejam em um movimento
crescente de ressignificações, movimento no qual as aparências e opiniões são
remodeladas conforme nos inserimos mais profundamente nas relações ali colocadas.
68 It is a human need to exchange ideas about reality. It is like looking at a sculpture: you see what you see from
your angle. When you talk to someone right next to you about what he sees, you can imagine it quite well. But
when you talk to someone at the other side of the sculpture and he describes what he sees, it is hard for you to
imagine exactly what he sees. But of course the view from the other side tells you so much more about the
sculpture. Trecho de entrevista retirada do site http://www.a-r-c.ca/author/m-e/. Acesso em 15 de agosto de 2013,
tradução nossa.
78
5 – Repensando o Korsakow System
Como observado em alguns k-films criados por estudantes no projeto
Classworks69
e também na narrativa Gaze70
, projetos muito simples em sua
concepção poética e na disposição de poucos objetos para visualização não
possibilitam a complexidade que o objetivo proposto por Thalhofer institui. É comum
se deparar com k-films repetitivos, com narrativas pouco imaginativas ou
estimulantes. Nota-se rapidamente que em alguns k-films, principalmente naqueles
em que a proposta é a de criação de histórias por meio da não-linearidade, houve
pouco cuidado em definir os objetos audiovisuais, o que eles comunicariam, o que
poderia surgir da combinação deles e como eles seriam organizados em um banco de
dados. De antemão, encontrar um k-film na internet nos provoca a interagir, mas
muitas vezes o “labirinto é traiçoeiro, cheio de becos sem saída, incertezas, perguntas
sem respostas” (MURRAY, p. 168).
O contexto em que o Korsakow System foi criado é atualmente o ponto
principal de divulgação para produtos de outros meios, como o cinema e os video
games. A intersecção de linguagens promovida pelas novas mídia e a internet como
ponto de contato entre esses meios é também um estímulo para o interesse nas
novidades surgidas nestas esferas. Assim, a popularidade do Korsakow como meio
para a criação de obras de arte, documentários e instrumento educacional seria um
reflexo desse interesse crescente sobre tudo o que surge na rede? Como apontado por
Manovich, os problemas que acontecem no discurso sobre o Korsakow, ou seja, como
meio para criação de narrativas não-lineares interativas, inserem-se na ideia de que
“narrativas interativas” são aquelas onde é possível percorrer mais de uma trajetória
através das ligações entre bancos de dados” (MANOVICH, p. 228).
Para Manovich, essas possíveis trajetórias não são suficientes para definir o
que de fato é uma narrativa interativa. Para ele, “o autor também tem que controlar a
semântica dos elementos e a lógica de suas conexões para que o objeto resultante
69 Ver página 61.
70 Ver página 62.
79
cumpra os critérios da narrativa”71
. Assim, embora a simplicidade de criar um k-film
e interagir com ele seja estimulante, é preciso que esses projetos sejam longamente
avaliados e repensados antes de serem distribuídos.
Manovich aponta outra problemática relacionada a trajetórias e interatividade:
o mito da narrativa pessoal única, pois “se o utilizador simplesmente acessa elementos
diferentes, um após o outro, geralmente em uma ordem aleatória, não há razão para
supor que estes elementos formem uma narrativa de todo” (2001, p. 228).
Embora Manovich não esteja se referindo aos k-films, seus apontamentos
evidenciam os principais problemas encontrados nesta pesquisa, principalmente em
relação a histórias que apresentam um caráter mais narrativo do que documental. Nos
documentários, o formato de banco de dados do Korsakow facilita a percepção de
diferentes pontos de vista de uma história, assim como testemunhos e contextos
apresentados ao público. Mas e em relação a histórias contadas através de bancos de
dados interativos? O que precisa ser pensado para que a proposta de criar diferentes
histórias a partir de um único banco de dados tenha resultados criativos? Segundo
Janet Murray,
(...) o autor deve ser capaz de especificar todos os elementos da
estrutura abstrata: as prerrogativas de participação – como um
interator se move, age, conversa; a segmentação da história em
temas ou morfemas – os tipos de encontros, desafios, etc. que
compõem os blocos de construção da história: todos os elementos
de substituição – instâncias de categorias de personagens, perigos,
recompensas, lugares, experiências de viagens, etc. – e todos os
modos pelos quais cada instância variará.
(MURRAY, 2003, p. 194)
Realizar um longa-metragem comum para as telas do cinema ou organizar
minifilmes em um banco de dados como o Korsakow requerem uma busca por
maneiras mais eficazes para que se alcance o objetivo final desse filme, seja ele qual
for. O que Janet Murray propõe é que as narrativas multiformes apresentem a maior
quantidade de variação possível, para que o interator tenha informação suficiente para
alinhavar sua narrativa no momento em que os elementos são recombinados. Para que 71 “(...) the author also has to control the semantics of the elements and the logic of their connection so that the
resulting object will meet the criteria of narrative as outlined above.” MANOVICH, Lev. The language of new
media. (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 228, tradução nossa.
80
a narrativa seja minimamente plausível, cada elemento deve poder ser lido de formas
diferentes, enriquecendo a interação e adicionando conteúdo à narrativa que está
sendo criada.
A forma complexa com que um k-film pode ser olhado indica a presença de
informações em grande quantidade. Podemos comparar um k-film bem estruturado a
uma enciclopédia que guarda não todo o conhecimento humano, mas sim tudo o que
há para ser lido, observado e repensado sobre aquela narrativa. Mas, diferentemente
das antigas enciclopédias em livros ou mesmo as disponibilizadas em CD-ROMs no
início dos anos 1990, a enciclopédia que forma um k-film se modifica. Se modifica
pois os espaços “vazios” entre-imagens são preenchidos pelo interator, que adiciona a
essa “enciclopédia” suas próprias informações.
É nos espaços “entre-imagens” que as significações acontecem, já que a linha
narrativa é criada pelo interator nesses espaços abertos. E é também nesses espaços
que reside a melhor qualidade e a maior falha de alguns k-films. A qualidade está na
abertura deste espaço, capaz de receber todo e qualquer interator, especialista ou não,
conhecedor ou não. Ali, o interator cria seu próprio lugar dentro da narrativa,
tomando-a para si, conceitual e sensivelmente. O que pode surgir é amplitude e, para
um projeto que se propõe a agregar, essa é a sua maior qualidade. Mas essa grande
qualidade também é um problema. Como a estrutura é modificada continuamente,
ideias e percepções são esquecidas ou recicladas a todo o momento, permitindo que o
interator se perca totalmente tanto dentro da estrutura do k-film quanto dentro da
narrativa que ele mesmo está criando. Corre-se então o risco da inconclusão, que é
chegar ao final de uma interação sem que tivesse sido possível criar, por parte do
interator, uma narrativa baseada na combinação de suas interpretações pessoais com
os objetos audiovisuais ali dispostos. A inconclusão, por um lado, pode ser positiva
quando convida a uma ideia ou reflexão que será “resolvida” fora do k-film ou em
outro momento além da interação. O problema está na inconclusão que nada constroi,
que termina em um k-film onde se percebe que não houve uma pesquisa bem
fundamentada por parte do programador em relação à estrutura, às ligações entre os
objetos ou na qualidade dos objetos dispostos.
Outro problema percebido em alguns k-films está na tentativa de criar k-films
deliberadamente, sem que houvesse antes uma análise do Korsakow como uma
linguagem. Partindo-se do princípio de que o Korsakow está inserido no contexto das
novas mídia, e que as novas mídia, por sua vez, estão modificando as linguagens e os
81
modelos comunicacionais, utilizar o Korsakow para reorganizar imagens em uma
não-linearidade é trabalhar aquém do potencial como linguagem do programa. Assim,
identifiquei que em muitos k-films o Korsakow foi utilizado para a replicação de
objetos audiovisuais cujos “trechos” narrativos não apresentavam uma poética bem
desenvolvida. Isso demonstra a necessidade de perceber o Korsakow como uma
linguagem, para que as narrativas sejam criadas a partir dele. Os projetos menos
criativos demonstram uma tentativa de adaptar o programa a uma história, em vez de
criar narrativas que exploram o formato do programa.
Acredito que o que torna o Korsakow interessante é realmente a experiência
de programar um k-film, sendo cuidadoso em relação a cada etapa, encarando-o como
uma grande estrutura que precisa ser bem organizada, para que daí possa surgir o
objeto final, um k-film elaborado e aplicado criativamente. André Parente, em
Tramas da rede, identifica essa visão das novas tecnologias como algo “artístico” e
indica a necessidade de se perceber as novas mídia como “um novo campo estético,
do sublime tecnológico, que será necessário, nos anos futuros, conhecer e explorar”
(2010, p. 252).
Também devemos observar que em seus 13 anos de desenvolvimento, os
autores que criaram filmes através do Korsakow se concentraram mais em criar k-
films documentários do que em narrativas não-lineares propriamente dias. Assim, é
visível a diferença dos níveis de qualidade entre os k-films desenvolvidos pelo
próprio criador do programa, Florian Thalhofer, e estudantes que estavam em contato
com o programa pela primeira vez.
Acredito que o formato do Korsakow facilita a criação de documentários, pois
uma ideia de continuidade não é imprescindível para se entender uma ideia geral de
algo que está sendo discutido. Em relação a narrativas mais romanceadas, em que é
preciso identificar personagens e ações para que uma história seja construída, o
Korsakow ainda está caminhando. Isto posto, percebo que os k-films que apresentam
um movimento de repetição de imagens pouco construtivas nos passam a impressão
de que o programa talvez limite os processos criativos.
Artistas e diretores precisam encontrar os caminhos de construção narrativa de
modo não-linear formado por objetos que construam histórias independentemente da
ordem em que serão vistos, pontuando que esses objetos devem ser complementares e
suplementares, para que seja possível então essa construção de histórias propriamente
ditas, renováveis a cada interação.
82
Em O Chip e o Caleidoscópio, série de artigos organizada por Lucia Leão, o
pesquisador Peter Lunenfeld desenvolve um texto intitulado “Os Mitos do Cinema
Interativo”. O autor aproxima cinema e computador desde a publicidade, aos CD-
ROMs interativos, a filmes cujas imagens respondem à presença de um espectador e
ao trabalho nas artes de Sam Taylor-Wood e das irmãs Jane e Louise Wilson, e de
forma crítica desmistifica o cinema interativo ao exemplificar o uso tecnológico como
aparato para o deslumbre visual. Ao finalizar o seu texto, ele diz:
Escrevi em outra ocasião que foi justamente porque o vídeo como
meio passou por sua fase utópica que os artistas de instalações da
década passada puderam ser considerados por direito próprio; eles
foram libertados dos fardos psicológicos impostos pelas
expectativas impossivelmente grandiosas dos primeiros anos dos
vídeos. Da mesma maneira, quando os tecnólogos, artistas e
luftmenschen hollywoodianos esgotarem os mitos do “cinema
interativo”, sínteses instigantes entre o cinema e o digital poderão
surgir. (LUNENFELD, in LEÃO, 2005, p. 383)
O que Lunenfeld nos diz é que é preciso existir um afastamento temporal do
que é novo. Existe um desejo de que a tecnologia possibilite a realização de todos os
nossos sonhos, torne possível a nossa vontade de controlar o que vemos e o que
sentimos. No Korsakow, este desejo transparece na fala de Thalhofer, que anseia
libertar poeticamente o interator ao mesmo tempo que o próprio autor seleciona e
organiza o todo, ambiente de onde o interator vai apenas escolher algumas pequenas
partes. É preciso repensar o que essa liberdade que o Korsakow proporciona ao
interator e o que realmente essas escolhas poéticas significam acerca dos objetos
audiovisuais e das possibilidades de interpretação. O que pode neste caso ser visto
como interação e qual o conteúdo que estes k-films devem ter para que realmente seja
possível criar algo com eles?
Como citado acima, a palavra luftmenschen72
significa “pessoa sonhadora com
a cabeça nas nuvens, mais preocupada com ideias do que com as praticidades da
vida”, e pode ser parcialmente aplicável aos autores de k-films. Ainda que estejam nas
72 Do iídiche, luftmenschen é o plural de luftmensch. Pesquisado no dicionário online Merriam-webster.
http://www.merriam-webster.com/dictionary/luftmensch. Acesso em 19 de agosto de 2013.
83
nuvens de ideias e desejos da união entre cinema e tecnologia, os k-films aqui
mostrados já indicam caminhos a serem percorridos com atenção.
84
Considerações finais
Esta dissertação de mestrado teve como objetivo principal a investigação de
um programa de criação de narrativas não-lineares hipermidiáticas interativas
chamado Korsakow System. Dentro desta investigação, os seguintes objetivos:
contextualizar o programa como uma linguagem das novas mídia; realizar um
levantamento das motivações e processos de criação do autor do programa, Florian
Thalhofer; apresentar os principais projetos de Thalhofer criados com o seu programa;
selecionar aplicações diferentes e criativas de outros autores, que pudessem
demonstrar as possibilidades criativas dentro do programa e finalizar a pesquisa com
uma leitura crítica sobre as descobertas acerca das aplicações.
Consideramos que esta pesquisa alcançou seu objetivo de investigação e
compilação de informações sobre o programa em questão, organizando em um
mesmo volume as intenções do autor, seus projetos, criações de outros autores e uma
análise crítica. Esta organização é importante, pois permite encontrar em uma mesma
pesquisa as informações que estão distribuídas de modo disperso em diferentes pontos
da internet, em sites de língua estrangeira, fator que pode dificultar o acesso de alguns
pesquisadores.
Durante a pesquisa do discurso do autor do programa, Florian Thalhofer, e de
autores que criaram k-films, foram levantadas duas questões pertinentes para a
reflexão sobre a utilização do Korsakow.
A primeira consiste nas inquietações resultantes da interação com k-films que
apresentam narrativas frágeis e repetitivas, gerando o questionamento de um potencial
limite criado pelo Korsakow System como ferramenta debilitante, indicando também
um possível desconhecimento dos autores sobre a própria linha construtiva do
programa. Sobre esta hipótese, concluiu-se que ainda é preciso exercitar a construção
de narrativas complexas, baseando-se na proposta inicial do Korsakow, construções
que não ocorreram de modo produtivo por uma imaturidade de percepção dessas
possibilidades, impossibilitando experimentações mais criativas.
A segunda questão se refere ao processo criativo efetivo dentro deste
programa, considerando-o como ponto inicial de todo o processo ou apenas
utilizando-o para reverter uma narrativa originalmente linear. Em relação a essa
hipótese, foi concluído que é preciso perceber o Korsakow System como linguagem e
85
meio comunicacional, com características próprias que indicam a estrutura do
processo criativo e, consequentemente, a concepção de um k-film dentro dessas
características não-lineares ricas em interpretações.
Esta pesquisa foi finalizada ao mesmo tempo que instiga a criação de projetos
paralelos, relacionados às áreas de conhecimento aqui apresentadas. O Korsakow
invoca questões do processo cinematográfico como edição e montagem,
conceitualmente próximos às experimentações de cineastas russos do início do século
XX, como Dziga Vertov e Lev Kuleshov. O programa também pode ser relacionado à
pesquisa de Mikhail Bakhtin, no conceito de polifonia e na percepção do “eu” a partir
do “outro”. A experiência de realizar um k-film poderá indicar outros pontos do
processo criativo não explorados, sugerindo discussões sobre a metodologia mais
eficaz a ser aplicada, dificuldades técnicas e depoimentos qualitativos de interatores
entrevistados.
A pesquisa persiste nos interesses em relação à forma e à poética de se contar
histórias por meios não-lineares, construindo narrativas que convidam a participação
do outro.
86
BIBLIOGRAFIA
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2012.
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3.ed. São Paulo: Iluminuras, 2005
LÉVY, Pierre. O que é virtual? Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.
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Paulus, 2011.
87
DOCUMENTOS ELETRÔNICOS
Artigo na revista Mediamatic sobre o Korsakow System. Disponível em
<http://www.mediamatic.net/9276/en/ the-korsakow-system>. Acesso em 11
de julho de 2013.
Artigo sobre as dúvidas mais frequentes em relação à produção de SNUs, as pequenas
unidades narrativas dentro do Korsakow System. Disponível em
<http://korsakow. org/learn/faq/#snu>. Acesso em 05 de julho de 2013.
Biografia do artista Florian Thalhofer no seu principal parceiro e patrocinador, o.
Goethe- Institut. Disponível em
<http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm>. Acesso em 02 de julho de
2013.
Depoimentos do artista Florian Thalhofer sobre os conceitos envolvendo a criação do
Korsakow System. Disponível em <http://korsakow.org/master-vs-medium/>.
Acesso em 04 de julho de 2013.
Entrevista com Florian Thalhofer sobre seus projetos com o Korsakow System.
Disponível em <http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm>. Acesso em
16 de julho de 2013.
Entrevista concedida por Florian Thalhofer sobre seu processo criativo, para o
Goethe- Institut, em 21 de maio de 2011. Disponível em <http://www.a-r-
c.ca/2010/10/interview-florian-thalhofer-on-his-creative-approach/>. Acesso
em 19 de julho de 2013.
Entrevista realizada em 2011 por Anne-Kathrin Lange, do Goethe-Institut, com
Florian Thalhofer, em 21 de maio de 2011. Disponível em
<http://www.goethe.de/uun/bdu/en7654604.htm>. Acesso em 04 de julho de
2013.
Entrevista realizada por Matt Soar, parceiro de Florian Thalhofer em alguns projetos
com o Korsakoe System, com o mesmo. Disponível em
<http://nomorepotlucks. org/site/langsamkeit-telling-stories-in-a-small-world>
. Acesso em 14 de julho de 2013.
Site oficial do artista Florian Thalhofer. Disponível em <http://www.thalhofer.com/
data/03content/bio.html>. Acesso em 04 de julho de 2013.
88
Site oficial do artista Helio Oiticica. Disponível em
<http://www.heliooiticica.org.br>. Acesso em 11 de março de 2013.
Site oficial do artista Jeffrey Shaw. Disponível em <http://www.jeffrey-shaw.net/>.
Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial da artista Lygia Clark. Disponível em
<http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>. Acesso em 11 de março de
2013.
Site oficial do artista Nam June Paik. Disponível em <http://www.paikstudios.com/>.
Acesso em 01 de julho de 2013.
Site oficial do programa Korsakow System. Disponível em <http://korsakow.org/> .
Acesso em 02 de julho de 2013.
Site oficial do programa Korsakow System, contendo informações sobre o processo
de criação do programa. Disponível em
<http://thalhofer.com/_data/PAGES/xOther_2000 _korsakow_system.html> .
Acesso em 04 de julho de 2013.
Site oficial do projeto Soft Cinema. Disponível em <://www.softcinema.net/?reload>.
Acesso em 12 de março de 2012.
Site oficial do projeto em Korsakow, Forgotten Flags. Disponível em
<http://www.forgotten-flags.com/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial do projeto em Korsakow, Money and the Greeks. Disponível em
<http://geld.gr/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial do projeto em Korsakow, Planet Galata. Disponível em
<http://planetgalata.com/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial do projeto em Korsakow, Small World. Disponível em <
http://www.kleinewelt.com/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial do projeto em Korsakow, Korsakow Syndrom. Disponível em
<http://thalhofer.com/korsakow/syndrom/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site oficial do projeto em Korsakow, 7 Sons. Disponível em
<http://www.7sons.com/>. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Site contendo um vídeo explicativo da estrutura de um Korsakow Show. Disponível
em <http://vimeo.com/37592016>. Acesso em 15 de julho de 2013.
89
Site contendo um vídeo explicativo da estrutura de um Korsakow Show e entrevista
com o criador, Florian Thalhofer. Disponível em
<http://korsakow.org/interview-with-florian-about-his-korsakow-show-was-
ist-geld-gr-athens-greece-102212/>. Acesso em 15 de julho de 2013.
90
ANEXO
Neste DVD-R podemos encontrar a seleção de projetos de narrativas não-
lineares criadas no Korsakow System que foram citados na dissertação. Esta seleção
está organizada na ordem em que os k-films foram citados.
A lista inclui os k-films:
- 7 Sons (2003)
- Money and the Greeks (2012)
- Archiving69 (2011)
- Gaze (2010)
- The Border Between Us (2012)
- Forgotten Flags (2006)
- Planet Galata (2010)
- Classworks – Lego Man (2010)
- Classworks – Nostalgia (2010)
- Classworks – Exquisite corpse (2011)
- Classworks – Dreamcatcher (2011)
- Classworks – Life is a musical (2012)
- Classworks – Kitchen stories (2012)
Este DVD-R não inclui os seguintes projetos:
- Small World (1997) e The Korsakow Syndrom (2000) – o autor, Florian
Thalhofer, não disponibiliza estes projetos na internet.
- O tempo não recuperado (2003) – o artista Lucas Bambozzi não
disponibiliza esta obra na internet.
- Teaching with Warez – os projetos dos alunos não estão disponíveis na
internet.
O projeto de Noah Springer, que utiliza o reedit.com como base para a
programação de um k-film, não está disponibilizado na internet para visualização.