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Nas Profundezas de Deus - Calvin Miller

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  • A Barbara, companheira amorosa e amiga, que h mais de quarenta anos

    tem-se dedicado a meu bem-estar e

    me inspirado a ser o melhor

    cristo possvel.

  • AGRADECIMENTOS

    Acredito que sei muito pouco a respeito de buscar as riquezas que se encontram na profundidade da devoo! Entretanto, muitos tm-me orientado nessa busca. Alguns so

    escritores e pensadores, outros, mestres leigos que estavam na mesma busca. Muitos foram

    alunos meus. Vieram para o seminrio a fim de preparar-se para o ministrio e ser ensinados por

    professores como eu e, de repente, transformaram-se em mestres que me orientavam nos

    momentos silenciosos de orao e no ardor da vida de adorao. Vrios colegas professores, pastores e ministros leigos uniram-se a mim no anseio de servir vontade de Deus e viajaram pelas mesmas disciplinas espirituais em busca do Senhor. O principal entre aqueles a quem tanto devo Deron Spoo. Muitas vezes, me perguntei por que

    Deus d um anseio especial por sua presena a alguns, enquanto parece que outros no tm esse

    sentimento. Deron um amigo muito alegre e sedento das profundezas de Deus. Contagia, com

    essa alegria, a todos que conhece. Aguardo com ansiedade o dia em que ele escrever sobre seu

    relacionamento com Cristo. Enquanto isso, seu amor inabalvel por Jesus nos serve de

    inspirao. Seria falta minha deixar de homenagear a Steve Laube, meu redator e amigo, que tem um

    profundo e bem embasado amor pelo Senhor. Confio em Laube para esclarecimentos sobre esse

    assunto e dependo completamente dele para capacitar-me a saber quando o que escrevo

    inteligvel ou no. Tenho o mau hbito de achar que outras pessoas devem entender conceitos

    com os quais no esto familiarizadas. Ele sempre me orienta a voltar para uma base firme e

    explicar melhor o que quero dizer. Meu agente, Greg Johnson, me telefona pelo menos uma vez por semana para ter certeza de que

    estou trabalhando e, quando lhe garanto que sim, ele promete que no vai me perturbar mais, at

    a semana seguinte. Greg tem sido um amigo genuno, que deseja muito que as pessoas por motivos que ele entende mais do que eu entrem em contato com meu pensamento. Sem ele, eu nunca conseguiria a motivao necessria para dar importncia s minhas ideias. David Shepherd tambm me mantm pensando e trabalhando. A mente dele pra raras vezes e

    sempre desperta a minha para perceber as maravilhas das Escrituras. Finalmente, tenho um crculo de amigos e colegas professores Bill Tolar, Wallace Williams, Fisher Humphries, Bob Smith, Jerry Batson, Denise George que me incentivam constantemente. As realizaes de um indivduo so diretamente proporcionais qualidade de

    seus amigos. Somos todos produto daqueles cuja vida nos instrui de modo formal ou informal.

    Todos somos devedores queles cuja amizade nos proporciona segurana e apreo.

  • SUMRIO

    Prefcio edio brasileira 11 Introduo: Sede de espiritualidade 13

    A VIDA DISCIPLINADA

    1. Rompendo a escravido dos desejos 21 2. Rompendo a escravido do materialismo 30 3. Rompendo a tirania da urgncia 37

    A VIDA ATENTA

    4. Esttica: desfrutar a beleza de Deus 45 5. Cristo: o desejo do corao 57 6. Expresso: o lugar do louvor 65 7. Centralizao: evitar o fascnio estril por Deus 72 8. Misticismo: manter contato com o Esprito Santo 83

    A VIDA SABIA

    9. Chegar s profundezas descobrindo nosso chamado 93 10. A disciplina que produz o carter piedoso 103 11. Chegar autocompreenso 113

    A VIDA DE CONFISSO

    12. A confisso e a glria de nossa necessidade 122 13. A confisso e o discipulado livre de culpa 130 14. Princpios de confisso para o crescimento pessoal 140 15. Habitando na eternidade 147

    Eplogo: Nas profundezas 154

    Sobre o Autor 156

  • O olho no consegue ver, nem a lngua dizer,

    nem o corao imaginar quantos caminhos

    e mtodos eu tenho para os levar s por amor

    de volta graa, para que a minha verdade se realize neles.1

    CATARINA DE SIENA

    A alma do homem no de forma alguma

    limitada pelo espao nem pela matria.

    Tambm consegue enxergar os fatos atravs

    da escurido e a grandes distncias, como se

    ocorressem bem perto. Ns que no damos

    poder e impulso a essa capacidade de nossa

    alma e a esmagamos debaixo dos grilhes e da

    carnalidade de nosso corpo e de nossos

    pensamentos confusos e idias dispersas.

    Quando, porm, focalizamos a ateno em

    nosso ntimo, desviamos nossa concentrao de

    todas as coisas externas e refinamos a mente.

    Desse modo, a alma encontra sua realizao

    mais genuna e exerce seus poderes mais

    sublimes, o que muito natural.2

    THE WAY OF A PILGRIM

    Quem dera nossa conversa fosse mais

    celestial. Quem dera nos ocupssemos mais

    com a pessoa, a obra e a beleza do nosso

    Senhor encarnado. Na meditao,

    a beleza do Rei rebrilha sobre

    ns com resplendor.3

    CHARLES HADDON SPURGEON

    ______________________________________________________________________ 1Cit. Anne B. JOHNSON, Catherine of Siena, Huntingdon:

    Our Sunday Visitor Publishing House, 1987, p. 167. 2Autor desconhecido, The way of a pilgrim,

    trad. Olga Savin, Boston: Shambhala, 1991, p. 141. 3Charles Haddon SPURGEON, em Morning and evening, Nashville:

    Thomas Nelson, 1994, da leitura do dia 16 de novembro.

  • Profundeza" no um local que

    Visitamos em nossa busca de Deus;

    o que nos acontece quando o encontramos.

    Que diferenas surpreendentes h entre os homens!

    s vezes, somos tentados a atribuir seus poderes e su-

    cessos especiais a suas circunstncias, seu tempo,

    seus pais e mestres. Mas existe uma explicao mais

    profunda e satisfatria. Adotando as palavras dos

    precursores, os homens nada tm que no receberam

    do cu, mediante determinao e decreto diretos de

    Deus.

    Eis uma frase de ouro: "Ningum pode receber nada a

    no ser que lhe seja dado do cu"! Voc tem muito

    sucesso no trabalho? As multides se aglomeram e

    lotam auditrios por onde voc passa? No atribua

    isso a voc mesmo. So ddivas da graa de Deus.

    Voc no possui nada que Deus no lhe tenha dado.

    Seja grato, mas nunca vaidoso, porque aquele que deu

    pode tomar de volta. Grandes talentos outorgados im-

    plicam grande responsabilidade no dia da prestao

    de contas.4

    F. B. MEYER

    _______________________________________________________________ 4Cit. em Changed by the Master's touch, Springdale: Whitaker House, 1985, p. 54-5.

  • PREFCIO EDIO BRASILEIRA

    Prepare-se para encontrar-se com Deus e desfrutar os tesouros de suas profundezas! S o fato de voc se interessar por um livro como este nos dias de hoje diz muito a seu respeito, seus

    desejos, valores e prioridades. Fico feliz por seu interesse e tenho certeza de que no vai ficar

    decepcionado com o investimento nesta obra. Sei que no ser em vo. Voc vai sentir-se

    recompensado, frase por frase, durante a leitura, pois creio que vai ouvir o chamado de Deus

    para um dilogo exclusivo entre voc e ele. Este no apenas mais um livro sobre

    espiritualidade; algo especial de Deus para ns. Em fevereiro de 2001, eu estava no Canad. Num culto de domingo de manh, na Igreja Batista

    Central em Oackville, nos arredores de Toronto, Deus me surpreendeu com o impacto de uma

    mensagem poderosa. Nessa manh, o Senhor falou comigo por intermdio do pastor, exortando-

    me a um relacionamento profundo com ele. Durante a mensagem, o pastor foi relatando um

    pouco de sua experincia com Deus na leitura deste livro e como tambm lhe causou impacto.

    Por isso, Deus lhe tocou o corao para desenvolver uma srie de mensagens baseadas neste

    livro para sua igreja. Imediatamente comprei meu exemplar e o trouxe para o Brasil. Na

    primeira oportunidade, indiquei-o aos editores da Vida, que pela graa do Senhor acreditaram

    no projeto e nos brindam com este magnfico lanamento em portugus de uma obra que vai

    abenoar milhares de falantes da lngua portuguesa. Nas profundezas de Deus um livro abenoado. Miller foi muito feliz na analogia das

    profundezas do oceano com a nossa vida espiritual. Com isso, visa a tirar-nos da

    superficialidade da cultura ps-moderna e guiar-nos diretamente para o mago das profundezas

    de Deus. Esta obra instiga a nos rendermos necessidade de um encontro com Deus, resgatando

    o que muitos de ns no tivemos na formao crist devido falta de discipulado verdadeiro.

    Nas profundezas de Deus um chamado divino para nossa vida neste tempo to corrido da ps-

    modernidade. Numa poca em que as linhas do estar, ser e jazer podem-se distanciar de nossa

    vida e de nosso ministrio, este livro um refrigrio do cu para sua vida. um alento para que,

    conectado a Deus, voc continue uma pessoa muito usada por ele para ampliar seu Reino aqui

    na terra. Como disse o autor: "Precisamos abandonar o hbito de guardar nossos tesouros e criar

    o hbito de entesourar a riqueza da graa de Deus". Calvin Miller no nos convida simplesmente a mergulhar na presena de Deus para assim

    descobrir suas profundezas, porque Deus est muito mais interessado em ns do que em nossa

    programao ou nossos cronogramas. Ningum que deseja ter comunho com Deus chegar a

    v-lo enquanto insistir que ele diga exatamente o que vai acontecer na sua vida. Atravs do

    livro, Miller nos chama a uma vida disciplinada que rompa a escravido dos sentidos, do

    materialismo e da to emergente tirania da urgncia, levando-nos a uma sria e profunda

    reflexo para desfrutarmos a beleza de Deus com equilbrio, evitando o fascnio intil por Deus

    e tambm mantendo-nos em con-tato com o Esprito Santo, louvando a Cristo com

    profundidade, dando o lugar certo ao louvor. Segundo Calvin Miller, precisamos desenvolver uma vida inconformada, chegar s profundezas

    e descobrir nosso chamado e a disciplina que produz o carter piedoso. Chegando desse modo a

    nos entender a ns mesmos, com uma vida livre de culpa, esvaziada do ego e cheia da glria de

    Deus, no crescente desejo de maturidade e santidade. Estou totalmente convencido por Deus de que este livro ser uma chamada a um encontro srio

    com Deus, como foi para mim e minha esposa. Acredite: voc vai precisar rever algumas coisas

    em sua vida depois da leitura desta obra, para desfrutar essa vida transformada e plena nas

    profundezas de Deus, certamente uma vida melhor para voc e todos os seus.

    Termino esta apresentao com um texto de Paulo, citado por Miller no livro: "Olho nenhum

    viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o

    amam" ( CO 2.9B)!

    Vamos l! Carlito M. Paes,

    pastor-titular da Primeira Igreja Batista em So Jos dos Campos, SP, autor de

  • Igrejas que prevalecem e co-autor de Ministrio de adorao na igreja contempornea,

    ambos publicados pela Editora Vida.

  • INTRODUO

    SEDE DE ESPIRITUALIDADE

    Conheci uma das minhas melhores amigas no dia em que ela descobriu que lhe restavam menos de seis meses de vida. S quando os limites da vida so demarcados claramente que a

    amizade comemora com entendimento todas as suas ddivas. Nossa amizade no conheceu um

    s dia de folga nem de frivolidade. No houve espao para nenhum jogo de baralho meia-

    noite, nenhuma excurso de esqui ou passeio martimo. Ningum deveria viver sem uma

    amizade como essa. Seu nome era Anne e, embora como ela confessou seus ltimos meses estivessem longe de ser sombrios, passava os dias "se-lecionando". Tendo em vista a curta durao de vida que

    sobrara para Anne; tivemos tempo somente para contemplar e desfrutar os aspectos

    absolutamente essenciais do nosso relacionamento. Os ponteiros implacveis do relgio

    avanavam com tanta velocidade que as coisas insignificantes e passageiras no nos

    fascinavam. Anne era bonita. Passara boa parte da vida realando sua beleza com cosmticos. Sua pele era

    branca e fresca, mas os cuidados com a pele perdem a importncia quando os aspectos internos

    e viscerais do ser humano vo mal. No fundo, onde os cremes e leos no conseguem penetrar,

    o corpo s vezes precisa lidar com juzos severos. Ento, as questes profundas da vida exercem

    o domnio final sobre todas as coisas superficiais. Quase todos ns vestimos a f crist com um discipulado que no nos assenta bem no corpo,

    como um terno barato, que nos deixa desconfortveis durante a maior parte da vida. Entre os

    amigos da igreja, fazemos grande esforo para manter a fama de piedosos. Gostaramos de

    parecer semelhantes a Cristo, mas sem a disciplina necessria para ser realmente como ele.

    Lendo dezenas de manuais de auto-ajuda do tipo "preencha as lacunas", conseguimos uma

    distino espiritual da boca para fora, sem t-la merecido de fato. Continuamos vivendo na

    superfcie, e a vida mais profunda s discurso. Preguei no funeral de Anne e senti-me completamente dominado pela necessidade de contar

    mais do que era possvel a respeito de seu caminhar com Cristo. No mago de tudo em que se

    transformara, sua vida de amor a Cristo desafiava toda e qualquer forma de comunicao. Como

    ocorre com tudo que profundo. Na primeira carta de Paulo aos corntios, no entanto, nossa falsa espiritualidade fica

    desmascarada para todos observarem. "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente

    nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam" (ICo 2.9b), diz o apstolo. Paulo est falando da eternidade e de tudo que se relaciona com o futuro. Nesse trecho, ele d

    uma viso rpida daquilo que possuiremos quando abrirmos os olhos para nossa primeira viso

    do cu. Tambm h um aspecto imediatista nesse versculo. No nenhuma violao do texto

    interpret-lo assim: "Olho nenhum pode ver, ouvido nenhum pode ouvir, mente nenhuma pode

    imaginar o que Deus preparou para aqueles que o amam". A espiritualidade um meio de ter o

    cu pelo menos parte dele agora1. O caminho a trilhar para a espiritualidade por demais real para ser medido somente pelos sentidos. Os olhos, os ouvidos e os dedos tm suas

    limitaes. So instrumentos frgeis e limitados demais para medir a imensido da existncia

    que Deus pretende para ns. intil procurar aproximar-se de Deus apenas com os sentidos,

    pois isso inevitavelmente entra em coliso com a plenitude divina. como tentar medir o

    volume das guas do Oceano Pacfico com um dedal ou uma xcara. Que sensatez gloriosa a da descrio que Paulo faz de nossa espiritualidade] Aqueles que a

    desfrutam vem o invisvel, ouvem o inaudvel e imaginam o inimaginvel. A verdadeira

    espiritualidade no extra-sensorial; ultra-sensorial. Quando o espao do nosso corao

    finalmente se esvazia do prprio eu, nasce um novo tipo de ser, um ser que se emociona diante

    da presena de Deus. Ali, no mais ntimo do nosso ser, descobrimos que nosso corao no

    uma cmara, mas a porta de entrada. Basta subir ao portal do corao, pr a mo no trinco e

    entrar para o nosso encontro secreto com Deus. Depois de fechar a porta do lado da realidade,

    podemos abri-la do lado divino.

  • Andar de braos dados com a profundeza de Deus ficar constantemente atnito com sua

    vastido. Lembro-me de certa ocasio em que sobrevoei o estado de Montana com um

    negociante japons de Tquio. Mora algum em todo esse espao vazio? perguntou. No muita gente respondi. E o vo continuou. Ningum? perguntou. Acenei com a cabea. E voamos mais algum tempo. To enorme, to belo, to vasto! ele exclamou. Eu sabia o que ele estava querendo dizer. Essas palavras eram-me bem conhecidas: to enorme,

    to belo, to vasto. o que sinto cada vez que me encontro com Deus. Deito-me para dormir,

    mas no oro: "Senhor, guarda a minha alma". Em vez disso, busco uma dimenso maior num

    ritual de adorao quase todas as noites. Suas bnos aglomeram-se em torno de mim numa

    leveza maravilhosa da existncia. uma insnia estranha, patrocinada pela mais pura alegria.

    Minha mente comea, primeiro, a chapinhar num riacho minsculo da graa de Deus. Pouco a

    pouco, o riacho vai crescendo e ... Glrias ao Altssimo! Estou num oceano amplo demais para

    medir, profundo demais para sondar. Fico delirante e deriva no mar da existncia eterna de

    Deus. Porm, sempre da frgil fortaleza da praia do meu corao que dou o passo decisivo

    para dentro desse oceano. Fico perplexo com o fato de, do centro da minha alma de guas rasas,

    ter esse acesso imediato ao vasto oceano da presena de Deus. O corao uma porta simples; porm, sua estrutura etrea se abre para o majestoso panorama

    da realidade. Aparentemente seria o contrrio. As nuvens abobadadas acima das escarpadas

    montanhas no seriam lugar melhor para procurar a Deus do que os portais terrenos de nossa

    alma? No. A vastido natural inspira, mas raramente resulta em comunho ntima com Deus. O

    arrebatamento que sentimos ao deparar com as cataratas do Iguau tem maior probabilidade de

    provocar um brado que uma conversa. As galxias que pairam nas alturas tendem mais a desviar

    nossos olhos do cu e perguntar: "Pai, ests a?". As melhores respostas no vm de lugar algum

    alm de ns. Por qu? Porque Deus se revela melhor de nosso ntimo. Deus se faz visvel aos que o procuram no lugar certo. Portanto, nenhum olho literalmente nenhum olho pode v-lo! Nenhum ouvido pode ouvi-lo! Mente nenhuma pode imagin-lo! somente nas dimenses mais profundas do nosso ntimo que ele oculta sua vastido. O mundo ao nosso redor o mundo dos relacionamentos "externos". Nele, cultivamos

    amizades, conquistamos sucesso progredimos. Nesse mundo de sobrecargas e preocupaes temos compromissos, sofremos decepes e obrigamos nossa alma, impulsionada pelo ego, a

    tentar conquistar o poder. Na superfcie de nossa vida, somos dominados pelas coisas frenticas

    e indigestas. Mas em nosso corao a questo bem diferente. Em 1 Corntios 2.10, h uma palavrinha que nos prope um desafio: "Mas Deus o revelou a ns

    por meio do Esprito. O Esprito sonda todas as coisas, at mesmo as coisas mais profundas de

    Deus" (grifo do autor). O apstolo emprega aqui a palavra bathos no sentido de "profundo". Esse o conceito que

    desejo manter em posio central neste livro. Profundeza a habitao de Deus. Profunda a natureza do oceano. Pense nessa metfora um

    momento e saboreie sua lio adiante.

    A profundeza, pois, onde a suprflua e barulhenta superfcie do oceano torna-se quieta e

    serena. Nenhum som rompe o silncio inspirador de temor reverente que existe no corao do

    oceano. A maioria dos cristos, no entanto, passa a vida sendo aoitada com violncia pelas

    circunstncias da superfcie de sua existncia. O estilo de vida vazio marca a natureza

    superficial de sua vida. Entretanto, os que sondam as profundezas de Deus descobrem a paz

    verdadeira. A profundeza a ddiva da disciplina. Bathos uma palavra que entendi realmente quando estive no recife da Grande Barreira. Da

    mesma forma que todos os outros visitantes do lugar, fiquei de incio assombrado pela sensao

    estranha de ficar em p com a gua chegando apenas aos tornozelos no meio do oceano, entre 110 e 140 quilmetros da praia. Era uma sensao muito estranha, talvez como a que

    Pedro deve ter tido quando andou sobre o mar da Galilia.

  • Entretanto, passada minha admirao de ficar com a gua pelos tornozelos, lembrei-me do

    motivo por que fizera a viagem. Estava com minha mulher e meu filho. Ele viera para fazer

    mergulho com garrafa de oxignio enquanto eu e minha mulher amos mergulhar com

    esnrquel. O esnrquel mais passatempo do que esporte. Isso porque, enquanto meu filho

    mergulhava nas profundas guas cristalinas, afundando-se nas maravilhas das profundezas

    misteriosas do oceano, minha mulher e eu, com as mscaras, apenas flutuvamos na superfcie,

    com o rosto dentro da gua. De certo modo, o que ns e ele vamos tinha a mesma aparncia. Mas minha mulher e eu

    ficamos com queimaduras nas costas durante nosso estudo superficial do recife, enquanto nosso

    filho sondava suas maravilhas. Houve outras diferenas naquele dia. Nosso filho passara muitos anos aprendendo a mergulhar

    nas profundezas, pois descer a lugares profundos requer muitos anos de prtica. No se pode

    atingir as profundezas instantaneamente no primeiro mergulho. A presso nos snus cranianos e

    faciais precisa ser igualada aos poucos, pois chegar a grandes profundidades perigoso, pode

    at ser fatal.

    O que me deixa mais atnito como relatamos essa experincia depois que voltamos do recife

    da Grande Barreira. Se me perguntarem se fui at l, responderei rapidamente que sim. Meu

    filho tambm. No entanto, a verdade que o contedo da nossa experincia foi completamente

    diferente. Ns trs vamos passar o resto da vida falando com muito entusiasmo daquela

    experincia. Mas somente nosso filho conheceu o recife de fato, s ele compreendeu a questo

    da profundeza. Abraham Maslow criou o conceito da pirmide das prioridades. Segundo ele, apenas poucas

    pessoas conseguem realmente se realizar. Poucas se conhecem e vivem a vida de modo pleno.

    Poucas vivem uma vida ajustada no pico da pirmide que ele desenvolveu. Na verdade, segundo

    Maslow, o mundo inteiro se compe de pessoas que no esto no vrtice falando a outras que

    tambm no esto sobre experincias do vrtice da pirmide. De alguma maneira, pa-rece-me

    que boa parte do cristianismo uma conversa entre praticantes do esnrquel que falam sobre

    experincias de mergulho profundo. Se meras conversas ou grupos de estudo fossem o caminho

    para a experincia em profundidade, a igreja mergulharia realmente fundo. Mas so aqueles que

    lem e oram, no os que filosofam e tagarelam, que alcanam vida de poder verdadeiro. A questo ir ao fundo. A profundeza revela a realidade de Deus. Mesmo assim, os praticantes

    do esnrquel podem empregar a linguagem dos mergulhadores, pois existe certa proximidade

    entre as metforas. Mas elas no so idnticas. estranho saber que esse estado de realidade

    fica to prximo de ns. totalmente acessvel, porm, bem poucos chegam a conhec-lo ou a

    atravessar seus portes com alguma regularidade. A orao a entrada que permite vislumbrar

    as profundezas. Por que evitamos os portais de acesso a Deus? O excesso de tarefas a melhor resposta. Mas s

    vezes duvidamos que a orao realmente surte efeito. s vezes, nosso corao est zangado com

    Deus, e nossa resistncia a orar nosso modo de dizer: "Ele vai-se ver comigo. Vou deixar de

    orar". Seramos muito mais sbios se deixssemos de lado nossas crises de mau humor e nos

    dirigssemos diretamen-te s profundezas. 5

    O tesouro reside nas profundezas da verdadeira espiritualidade. No h proveito em nos gabar

    da posio que julgamos ocupar em Cristo. A riqueza est em sentirmos sede de ser semelhantes

    a ele. O paradoxo mais estranho talvez seja que as conferncias "prticas" sobre espiritualidade

    correm o risco de falar mais que a experincia.

    Os verdadeiros mergulhadores espirituais so to apaixonados pelas profundezas que no

    perdem muito tempo procurando transformar a

    oceanografia em realidade num mundo em que as banheiras de passarinho definem paixes

    menores. A palavra bathos (do grego) entra na composio do vocbulo "batisfera". Batisfera uma

    _________________________________________________________________________ 5Emilie GRIFFIN, Clinging, New York: McCracken Press, 1984, p. 7.

  • esfera metlica revestida de paredes de ao dentro da qual os oceangrafos ficam protegidos

    contra a presso esmagadora do mar e podem descer com segurana para estudar suas

    profundezas. As profundezas no so apenas silenciosas e tranquilas, mas tambm escondem

    um mistrio maravilhoso. Pense nos pesquisadores que descem ao corao do oceano na

    Batisfera. Essas almas tm uma curiosidade apaixonada. Precisam desvendar mistrios! Ou, se

    no conseguem desvend-los, precisam expor-se a sua luz at que a total transcendncia as

    banhe com a nica realidade que pode satisfaz-las. Silenciadas pela vastido aqutica,

    descobrem um esplendor que nunca podero comunicar turma do esnrquel. As glrias

    inescrutveis das profundezas no podem ser descritas queles que esto presos segurana da

    superficialidade. Mas esses mergulhadores entram no mundo profundo e silencioso para esclarecer ou para

    experimentar o mistrio? Em 1 Corntios 2.7 e mais outras vinte ocorrncias no Novo

    Testamento, Paulo fala do mistrio de Deus. No vamos s profundezas a fim de estudar Deus,

    mas para experimentar a sua realidade. No podemos definir Deus numa experincia como essa,

    pois ele no pode ser definido. Mas podemos, em ltima anlise, definir a ns mesmos. Nas

    profundezas, reconhecemos nossa pequenez, nossa incapacidade e nossa necessidade. Pelo lado

    positivo, descobrimos a tolice de buscar satisfao nos relacionamentos superficiais.

    Aprendemos para nosso bem que Deus no revela sua grandeza nem a compreenso de ns

    mesmos em trs minutos apressados de leitura bblica diria. De repente, ficamos conscientes de

    que a grandiosidade de Deus jamais se manifesta empacotada em conhecidas oraes

    cuidadosamente escritas, pelas quais muitos consciente ou inconscientemente procuram obter aprovao de seus ouvintes meramente humanos. A nobreza de muita intercesso

    superficial encalha nesse ponto. Grande parte de nossa intercesso, bem como de nossa vida

    espiritual, no passa de evidncia de quanto estamos viciados na paixo por ns mesmos. Nossa

    sede profunda de conhecer a Deus frustrada pelo contentamento de brincar nas guas rasas de

    nossos "pedidos" insignificantes. Diferentemente dos mestres de mergulho submarino, temos

    medo das profundezas. Ou pior: somos apticos a elas. Percebemos que as lagoinhas formadas

    pela mar alta no tm nenhuma aventura profunda. At podemos ser seduzidos pelo azul-es-

    curo do oceano. Mesmo assim, recuamos diante de uma aventura ntima verdadeira. Nossa

    espiritualidade no tem nada de profundo, mas nos sentimos seguros. Pois, quem conhece os pensamentos do homem, a no ser o esprito do homem que nele est?

    Da mesma forma, ningum conhece os pensamentos de Deus, a no ser o Esprito de Deus. Ns,

    porm, no recebemos o esprito do mundo, mas o Esprito procedente de Deus, para que

    entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente (ICo 2.11,12). Deixemos que nossos sentidos nos levem a descobertas. Deixemos que confessem suas

    limitaes. Que os ouvidos fiquem envergonhados pelo rico silncio. Que os olhos descubram o

    que no se pode ver. Que a mente seja desafiada pelo muro impenetrvel do mistrio da

    piedade. Enxerguemos a importncia de Deus virando as costas para nossa insignificncia.

    Desse modo, nossa pequenez passa a ser nossa glria! Melhor, a glria de Deus! Sentimos o

    gosto das profundezas, e o nosso interesse pelas guas rasas desapareceu para sempre. Agora

    estamos em busca do Deus vivo.

    uma busca maravilhosa e urgente! A espiritualidade no uma coisa distante pela qual temos

    de lutar durante toda nossa vida. Na realidade, a situao bem diferente. Considera-se que a

    vida mais profunda possvel porque Deus est perto. No somente est perto, mas tambm

    anseia por revestir-nos de poder mais profundo e atrair-nos, de maneira cada vez mais

    irresistvel, para o esplendor de uma vida de amor a ele. Entretanto, para receber a plenitude de Cristo, preciso esvaziar-nos daquilo que nos enche a

    vida. como o caso do professor que estava servindo uma xcara de ch ao aluno. Encheu a

    xcara e ainda continuou despejando ch at transbordar. Finalmente, o aluno exclamou: O Senhor est enchendo muito a minha xcara! O professor respondeu: Ora, s voc esvazi-la que eu encho de coisa melhor que essa. Ns apenas continuamos enchendo nossa vida com o mesmo velho apetite de expresso

    espiritual e raramente estendemos nosso interesse ou ampliamos nossos horizontes. Mas o caminho das profundezas melhor. Quando estendemos os braos a Deus com amor, e

    Deus nos estende os seus, ele se encontra conosco nas profundezas do centro da nossa

  • existncia, onde "olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que

    Deus preparou para aqueles que o amam". Venha, ento; vamos entrar nas profundezas.

  • Digitalizado por: Luis Carlos

    Lanamento

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    Nossos e-books so disponibilizados gratuitamente, com a nica

    finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que no tem condies

    econmicas para comprar.

    Se voc financeiramente privilegiado, ento utilize nosso acervo apenas

    para avaliao, e, se gostar, abenoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os

    livros.

    Semeadores da Palavra

    Senhor Deus, como nos sentimos bem!

    To perfeitamente complacentes!

    Maravilhosamente confortados!

    Ns, a tua igreja, nos reclinamos

    sonolentos em nossos privilgios.

    Tratamos nossos tesouros espirituais

    como coisa de pouco valor, como

    se os possuir em abundncia

    fosse uma condio natural,

    sempre esperada.1

    RAYMOND C. ORTLUND JR.

    Certa noite escura, inspirado por ansioso amor

    ventura feliz! sa sem ser observado, estando minha casa em repouso.

    (Resumindo, pois, a alma quer dizer nessa

    estrofe que foi saindo dirigida por Deus por amor a ele somente, incendiada de amor

    por ele, numa noite escura, que a privao e

    a purificao de todos os seus desejos

    sensuais, no que diz respeito a todas

    as coisas exteriores do mundo e

    s que eram deleitveis carne

    e aos desejos da sua vontade).

    JOO DA CRUZ

  • Renunciar ao que temos de

    somenos; renunciar ao que somos,

    isso pedir muito.2

    GREGRIO MAGNO

    ____________________________________________ A passion for God, Wheaton: Crossway Books, 1994, p. 148.

    2Cit. Woodene Koenig-Bricker, 365 Saints, San Francisco: Harper

    San Francisco, 1995, da leitura do dia 3 de setembro.

    No devemos todos ser flexveis antes de

    conhecer a vontade de Deus? No

    devemos todos permanecer imveis

    depois de compreender o que Deus

    quer que seja feito?

    Ele nos colocou como uma esttua no devido lugar.

    Quando se acrescenta a essa permanncia simples algum

    sentimento de que pertencemos totalmente a Deus e de que ele

    o nosso tudo, devemos com efeito dar graas por sua bondade. Se

    algum perguntasse a uma esttua colocada em algum lugar

    numa sala:

    Por que voc est a? Ela responderia: Porque meu senhor me colocou aqui. Por que voc no sai da? Porque ele quer que eu permanea imvel. Qual sua utilidade a? O que voc ganha por ficar a? No para meu benefcio que estou aqui; para servir e obedecer vontade do meu senhor.

  • Mas voc nem o v. No, mas ele me v e tem prazer em me observar onde me colocou.

    Voc no gostaria de ter movimentos para poder chegar mais perto dele?

    Certamente que no, a no ser que ele ordenasse isso. Voc no quer mais nada, ento? No, porque estou onde meu senhor me colocou, e sua satisfao o nico contentamento da minha existncia.

    3

    FRANCISCO DE SALES

    ________________________________________________________________________________________

    3Thy will be done, trad. Henry Benedict Mackey, Manchester: Sophia

    Institute Press, 1955, p. 34-5. (Publicado pela primeira vez em 1894.)

    ROMPENDO A ESCRAVIDO DOS

    DESEJOS

    Oapetite um sinal de vida. As pessoas saudveis sentem fome. Em ltima anlise, nosso apetite pode nos definir. Os cristos devem ser pessoas que tm fome e sede de justia (v. Mt

    5.6). Em outras palavras, os cristos devem ser definidos como pessoas que tm sede de Deus.

    Sede de agradar a Cristo. Os mrtires no so aqueles que tm sede de morrer. So os que vivem

    com imenso anseio de agradar a Cristo. Preferem agrad-lo entregando-lhe a vida a decepcion-

    lo com traio nas questes fundamentais da obedincia. A maioria de ns no sente esse tipo de sede. Talvez tenhamos um pouco de sede de Cristo,

    porm perseguimos com mais frequncia valores triviais: abrigo, comida, segurana, poder e

    realizao sexual.4 Todos esses so apetites humanos perfeitamente normais, mas podem se

    tornar muito perigosos se perdermos o domnio sobre eles e permitirmos que nos governem a

    vida. H um nico meio de equilibrar todos os nossos apetites. Trata-se daquela palavra que

    preferimos no aceitar ou, pelo menos, afastar para o mais longe possvel: "abnegao". Sem

    abnegao, todo aquele que come gluto, todo assalariado ladro e todo apaixonado

    estuprador. Por isso, quando Jesus nos chama para segui-lo, faz o apelo severo, porm gracioso: "Se algum quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz

    e siga-me" (Lc 9.23). Como num piscar de olhos, acabou a brincadeira, e com ela tambm se foi qualquer direito

    segunda poro de sobremesa. Todo desejo egosta foi suplantado pela caridade. Toda fantasia

  • sexual foi golpeada pela integridade moral. Quando as pessoas se negam a si mesmas, o

    casamento duradouro, pois nenhum cnjuge ser capaz de trair. Banqueiro nenhum jamais

    usurpar nem desviar dinheiro. Ningum ficar viciado em nada. Por que, ento, no pomos a abnegao em prtica? Por que no negamos a ns mesmos? No

    conseguimos o desprendimento, a renncia de ns mesmos, por trs razes: primeiro, nosso

    enfoque normalmente recai mais nos freios que na direo; segundo, vivemos muito

    distanciados do grande Capacitador e, finalmente, no conseguimos ter a perspectiva celestial

    dos valores reais. Ouo algumas pessoas levantarem objees a um caminho to bem delineado para a abnegao.

    E a objeo justa. A abnegao seria assim to simplista? Ser que se pode dizer "um, dois,

    trs" e encontrar o caminho para a moderao e o bem-estar espiritual? Vamos andar um pouco

    juntos e avaliar a vitria. A vitria sempre alcanada quando temos sede de intimidade em nossa unio com Cristo. Em

    certo sentido, mais do que sede; ficar espreita seguir Deus como num safari se seguem

    os rastros da caa. Contudo, mais do que seguir os rastros de Deus. Deus tambm est nos cercando na sua realidade intangvel. Assim como as crianas tremem numa casa velha, vazia e

    escura, os amantes de Deus estremecem diante da realidade do silncio na sua presena. Por que

    as crianas tremem numa casa grande e vazia? Porque tm medo de que ela no esteja vazia,

    mas cheia de algum pressgio de terror. Assim tambm estremecemos, por saber que h uma

    realidade ao nosso redor to presente que sentimos aquilo que no conseguimos ver a atemorizante realidade de Deus. No medo de que ele nos destrua. medo do que pode exigir

    de ns.

    Estamos to sedentos de conhec-lo na sua plenitude que exclamamos, como Catarina de Siena:

    "O profundeza de amor! Que corao pode deixar de partir-se diante da viso da tua grandeza

    descendo inferioridade de nossa condio humana! Somos a tua imagem, e agora, ao te fazeres

    um conosco, tu te tornaste a nossa imagem [...] Tu, Deus, te fizeste humano, e ns nos

    _____________________________________________________________________ 4Abraham Maslow, destacado psiclogo, foi o primeiro a identificar essas cinco necessidades bsicas. tornamos divinos!".

    5 Essa a glria da imagem espiritual: a fuso de duas semelhanas.

    Melhor de tudo, nosso foco passou a ser os novos apetites. Esse anseio incessante pede mais de

    Cristo e mais alm, a imitao de Cristo. Teresa de Lisieux escreveu sobre a unio com Cristo como um apetite todo-consumidor a que chamava de obra de amor. Que expresso

    estranha e ao mesmo tempo espiritual! Ela escreveu: "Ora, desejo apenas uma coisa amar Jesus at ficar boba! Somente o amor me atrai [...] minha nica diretriz a abnegao, no

    tenho outra bssola".6 Teresa de Lisieux reconhecia que sua obra de amor era idntica de Joo

    da Cruz, que escreveu: "Bebi profundamente na adega do meu amado [...] Minha alma contenta-

    se em servi-lo com todas as foras. Terminei todas as outras obras, menos a obra do amor".7

    FOCALIZAR O FREIO ANTES DA DIREO

    Considere a metfora do freio e da direo. Pareceria estranho ao examinador do Departamento

    de Trnsito se, no momento do nosso exame de direo, chegssemos ao local com um pedal de

    freio de 45 centmetros e um volante de 15 centmetros. Mas com frequncia esse o nosso

    perfil espiritual. Muitas pessoas relutam em se tornar crists porque acham que "seus freios no

    so suficientemente grandes". Ficam pensando: "Ser que vou conseguir abrandar meus apetites

    para ser um cristo de boa moral?".

    Para a maioria dos no-crentes, o cristianismo um calhambeque velho, no um carro esportivo.

    em geral considerado sem atrativos e no muito bom para a imagem pblica do indivduo.

    Para os de fora da igreja, parece que o freio tudo que importa para os cristos. Mas esse freio

    no se aplica apenas no aspecto moral. Tambm se aplica culturalmente. Em todo perodo de

    progresso, parece que so sempre os cristos que voltam aos tempos passados e pem freios no

    futuro de todos os avanos culturais. Alm disso, os evangelistas sempre esto procurando arregimentar para a f os pecadores

    orgulhosos com perguntas intimidadoras, como: "Se voc morresse agora, saberia com certeza

    se iria para o cu?", ou: "Voc consegue parar de pecar? Como vai seu sistema de freagem?".

  • Essa mstica do tipo "nada de alegria" leva os possveis convertidos a duvidar que tm freios

    suficientes para ser cristos. No se deve perguntar a esses convertidos relutantes: "Voc conse-

    gue frear sua vida de pecado?", mas: "Para onde voc quer ir na vida?". Deve-se dizer a eles que

    Cristo est presente para conduzi-los ao futuro que Deus tem para eles. Os evanglicos, na maior parte de sua histria, tm enfatizado curiosamente mais o freio que a

    direo. Esto sempre abandonando isso ou aquilo. com certa vergonha que devo confessar

    que, durante a maior parte da minha vida crist, tenho tentado abandonar o que considerava

    barreira na minha devoo a Cristo. Na verdade, passaram-se dcadas da minha vida em Cristo

    at que me ocorresse a sria conscincia de que no nos tornamos crentes vibrantes por causa do

    que abandonamos. Os cristos no tm tanto que abandonar, mas, sim, tm muito que comear.

    No se fazem agradveis a Deus por tudo que deixaram de lado na converso. Pelo contrrio,

    so as novas atividades em que se engajam que cativam a estima do cu. a novidade de vida

    que os leva a bendizer cada novo amanhecer e o possvel incio de um andar renovado mais per-

    to de Deus. O crescimento espiritual ocorre no constante comear e comear, comeando cada

    dia com algo novo e criativo que produza um caminhar criativo, nunca enfadonho, com Cristo. De onde, ento, tiramos essa doutrina estranha do deixar de fazer? Essa opinio equivocada surgiu cedo em minha vida, devido a rea-vivamentos contnuos que

    chegavam em nossa igreja e comunidade. O irmo "Labareda" (e tinha muitos outros nomes)

    nos visitava at duas vezes por ano, com duas semanas de reavivamentos. Exortava os perdidos

    a buscar a salvao e, claro, eles buscavam. Isso por si s trazia alegria igreja. A motivao

    _________________________________________________________________________ 5 Mary Ann FATULA, Catherine of Siena's way, Collegeville: The Liturgical Press, 1987, p. 186. 6The story of a soul, trad. John Beevers, New York: Doubleday, 1957, p. 109. Tbid.

    com que desafiava o povo era, porm, uma bomba neurotizante. Em todo sermo, o fogo caa (e

    com uma boa quantidade de enxofre), e pelo menos um dos piores viles da cidade chorava e

    abandonava seu pecado. Com o tempo, acabava sendo o principal dos diconos severos. Apesar

    de todo o melodrama deles, s vezes sinto saudades desses incendiados arautos interioranos. Todavia, o foco da mensagem deles era sempre a conclamao desistncia. "Pare de beber desista do seu mpio usque e venha frente entregar-se", era a exortao tpica. "Se Deus

    quisesse que voc fumasse, teria colocado uma chamin na sua cabea", exclamava um desses

    evangelistas. Alguns iam frente e deixavam o cigarro no altar. Todos viam que essas ex-

    chamins ambulantes estavam limpando os pulmes e se aperfeioando na f. Aleluia pelos

    freios! Alguns prometeram que nunca mais seriam culpados de "ter na mesma perna um p

    danarino e um joelho de orao". Alguns abandonaram o baralho e para a glria de Deus

    deixaram a canastra para sempre. Outros, no entanto, voltaram a jogar baralho para deleite dos

    demnios. Eu era jovem e amava a Jesus mais do que se imaginava. Queria "abandonar coisas" como os

    outros faziam. Mas sempre me sentia culpado por ter to pouca para abandonar. Queria

    conhecer aquela espiritualidade devota e neurtica gerada pela desistncia de beber, danar e

    fumar. Para minha tristeza, fui impedido desse conhecimento, pois era grande a ausncia de

    pecado grave em minha vida. Para um menino de nove anos de idade, eu vivia uma vida

    razoavelmente limpa.

    Foi quando meu pastor, notando que eu estava sem grandes pecados e muito satisfeito por isso,

    comeou a condenar o cinema. Graas a Deus! Finalmente havia algo de que eu podia desistir.

    Eu adorava os filmes de faroeste: Hopalong Cassidy, Lash LaRue e Gene Autry estavam entre

    meus personagens prediletos. Infelizmente, no eram os prediletos de Deus, pois eram astros do

    cinema. Deus gostava dos cristos, mas no dos astros do cinema. O pastor me explicou que

    Deus desprezava esses vis sedutores de coraes. Alm disso, se eu quisesse ter comunho com

    Deus, teria de confessar minha afeio mundana por eles. A praga de Hoppy, Lash e Gene! Eu

    ia me livrar dessa trindade infernal de heris condenveis. Foi o que fiz desisti do cinema. Agora enfim eu era cristo de primeira categoria. Foi difcil esperar a chegada do domingo para

    anunciar diante da igreja meu recm-adquirido ascetismo. O domingo foi chegando lentamente.

    Quando finalmente chegou, meu delrio espiritual estava no auge. No momento do apelo,

    enquanto a congregao cantava "Tal qual estou", fui para a frente da igreja. Visualizava-me

    oferecendo Hoppy, Lash e Gene no altar, por amor a Jesus. Os cus ficaram atentos minha

  • nova ao gloriosa de abnegao. Os anjos choraram. Os demnios malignos de Hollywood

    fugiram, totalmente excludos da minha vida. Fiquei livre. Agora, quando meu pastor dissesse: Voc vai querer estar num cinema mpio quando Jesus voltar? eu podia gritar: No, pois separei-me do mundo e abandonei a impureza. De vez em quando, eu ficava intrigado com o alegado grau de degradao dos faroestes da

    dcada de 1940. Mas eu aceitava o juzo daqueles evangelistas, pois sabia que eu no era to

    adulto nem to sbio quanto eles. Achava que eles andavam to perto de Jesus que eram capazes

    de avaliar a corrupo sutil que eu no enxergava de imediato. Quando, portanto, chegou ao fim

    a quinzena de reavivamento, fiquei destitudo dos cowboys mpios de Hollywood e passei a

    viver uma vida mais profunda, conforme entendia. Meus amigos no-santificados procuravam

    seduzir-me de volta ao pecado, dizendo: Voc quer assistir aos Cavaleiros da Slvia Roxa? De incio eu respondia: No, obrigado, desisti de tudo isso! Mesmo assim, o cinema era um atrativo forte. Eu no conseguia resistir! Costumava voltar a

    frequentar as sesses de faroeste assim que o reavivamento terminava. Caa das minhas grandes

    declaraes de f com a mesma frequncia que me apegava a elas. Mas persistia, at sofrer uma

    recada e voltar aos meus velhos hbitos. Minhas intenes firmes eram to secas quanto

    aquelas velhas massas endurecidas de chiclete de hortel grudadas embaixo das poltronas

    daquela sala pag. Eu nem conseguia curtir os filmes de verdade, pois, afinal, Jesus poderia

    voltar, e ali estaria eu, "cavalgando pela salvia roxa" para dentro do abismo onde todos os infiis desviados pereciam por no terem mantido os compromissos assumidos no

    reavivamento. Ai de mim! Cara de novo, e nada mais podia ser feito at o prximo

    reavivamento ento quem sabe poderia purificar minha alma e desistir do cinema novamente, antes de me desviar outra vez e voltar a desistir em seguida. Passaram-se muitos anos at que me desse conta de que raras vezes me centrava em Jesus, mas,

    sim, em todas as coisas que precisava largar. Senti-me culpado do complexo de "quem dera que

    o pecado no fosse to divertido". Muitos cristos, talvez a maioria, passam a vida pensando:

    "Queria mesmo seguir a Jesus, mas tambm queria me divertir". No possvel, diziam. Assim

    fui levado a acreditar que Jesus e a diverso eram antteses entre si. As atuais pulseirinhas e os

    adesivos de carro "O Que Jesus Faria?"8 podem alimentar essa mesma neurose. Jesus iria ver

    Hoppy, Lash e Gene? No final do sculo XX, quem sabe, mas no em 1948. A estranheza desse

    novo OQJF quase sempre me levava a dizer "no". Mas, na realidade, era sempre difcil para

    mim principalmente como jovem enxergar Jesus no meu mundo. Para mim, era difcil imaginar, mesmo com todo o esforo mental, Jesus em Enid, Oklahoma, andando pelo frum

    vestido com a longa tnica branca. Como ele poderia evitar os carrapichos nas sandlias? E eu

    jamais conseguia imaginar sua aurola luminosa no escuro do cinema local, vendo filmes de

    Hoppy, Lash e Gene. Fiquei preso nessas imagens. No final da adolescncia, aprendi a praticar esqui aqutico. Foi

    dos esquiadores que finalmente obtive uma resposta pergunta: "Eu gostaria de estar num

    cinema em Oklahoma quando Jesus voltasse?". Eu gostava muito de esquiar era divertido. Jesus faria esqui aqutico? Claro que no. Jesus nunca se divertiu. Gostava muito de reunies de

    orao. Ento, o velho reavivamento avultava-se alm da corda que me puxava. Jesus estava

    dirigindo o barquinho a motor e fazendo sinal de advertncia com o dedo para mim, acima das

    guas espumantes. "Voc quer estar montado nesses esquis quando eu voltar?", dizia. Eu desconfiava que esquiar devia ser pecado, pois era to divertido! O que Jesus faria? Oraria e

    distribuiria folhetos de reavivamento, no verdade? Ainda que no achasse ruim divertir-se,

    sua aurola e suas sandlias o obrigariam a se comportar, a permanecer firme e controlado e,

    claro, profundamente batista. Jesus? Fazer esqui aqutico? Claro que no sua longa tnica branca seria um empecilho na gua. Ento, pela primeira vez concentrei-me no no que Cristo poderia fazer (na verdade, pelo texto

    bblico, parece que se divertia, visto que sempre ia a festas) mas no que ele santificava. Em

    outras palavras, pode haver de fato diferena entre o que Jesus realmente faria e aquilo que ele

    santificou. Ele era o carpinteiro que abenoava os pescadores, embora ele prprio talvez no tivesse

    nenhuma preferncia pela pesca. Quem pode saber se ele teria praticado esqui ou no ou

  • mesmo ido ao cinema? Se o contedo moral de algo que fazemos no menospreza a santidade, a

    presena de Cristo em nossa vida pode realmente santificar essa atividade. Entretanto, a principal lio que aprendi nessa rea que eu precisava largar mo de largar.

    Largar, ou abandonar, implica concen-trar-se num nico objetivo: o que deve ou no ser

    abandonado. Os que focalizam a ateno em Cristo raramente so obrigados a largar alguma

    coisa, pois o desejo de unio com Cristo os probe de comear algo que depois precisem

    abandonar.

    O PECADO DE VIVER LONGE DO GRANDE CAPACITADOR

    As tolerncias que nos acabam prendendo em suas malhas de vcio so de incio bem fracas no

    encantamento sobre ns. As pessoas nem sempre comeam a beber por desejar ficar bbadas.

    Muitas vezes elas se embriagam por hbito de uma vida vazia. Isso no se aplica somente

    embriaguez, mas tambm a todos os nossos vcios. A glutonaria destri da mesma forma que a inveja irrefreada ou a concupiscncia descontrolada.

    Mas os sete pecados capitais raramente criam razes numa vida ocupada e com propsitos.

    Todos eles vicejam melhor no solo do vazio humano. O vazio a neurose principal que gera muitos vcios menores. Conheci vrios pastores que

    comprometeram a vida e o ministrio com casos ilcitos. Sem exceo, todos confessaram que ________________________________________________________________________ 5OQFJ (O Que Jesus Faria?) Adaptao em portugus de WWJD, What Would Jesus Do?, campanha que

    comeou nos Estados Unidos, cujo tema foi inspirado no livro Em seus passos, que faria Jesus? de

    Charles M. Sheldon, publicado originalmente em 1896.

    no foi o apetite pelo ato ilcito que primeiro os atraiu para o testemunho decado. Achavam que

    a igreja os abandonara e deixara sozinhos, com o esprito vazio e sem ningum com quem

    pudessem falar. O adultrio brotou da fraqueza da comunho deles com Cristo. A infidelidade

    crescia medida que a necessidade deles guerreava com o vazio que tinham por dentro. O vazio pode nos deixar levianos, a ponto de o preenchermos com a satisfao de qualquer

    apetite secundrio que aparentemente sacie a fome da nossa alma. Um dos cristos mais

    solitrios que j conheci era executivo de uma grande empresa. Ele comandava uma grande rede

    de empresas, mas confessava que se sentia sozinho, sentado numa poltrona de couro atrs de

    uma grande mesa de vidro. Em casa, a mulher vivia ocupada cuidando dos quatro filhos. Desse

    modo, paulatinamente os horrios noturnos dele e a fadiga dela fizeram o relacionamento entre

    eles fenecer. Ele comeou a beber para conseguir dormir e acabou dependente do lcool.

    Quando levantei a hiptese de que talvez ele fosse alcolatra, protestou. Devagar, no entanto,

    foi convencido a entrar num programa de desintoxicao que, ao lado dos Alcolatras

    Annimos, livrou-o para sempre do vcio um dia por vez. Eu no teria levantado esse caso aqui se no fosse um exemplo claro de algum que era cristo e

    se tornou alcolatra. O vazio desse homem antecedeu seus vcios. Revi nele a verdade do

    provrbio de Jung: "A ausncia de espiritualidade a neurose central dos nossos tempos". A

    ausncia de espiritualidade a liberdade perdida que trocamos por nossos vcios. Pascal tinha

    razo. Existe em ns um espao vazio na forma de Deus que somente Deus pode preencher.

    Nessa altura, devo perguntar: Voc um cristo em cuja vida ainda existe um vazio no

    preenchido? At os cristos podem ter vazio existencial. Como chegaram a criar esse vazio?

    Pela simples negligncia de seu relacionamento com Deus. Quando Deus preenche nosso vazio interior com o Esprito Santo, a vida funciona. Quando

    Deus no o preenche, uma multido de apetites devoradores destri nossas melhores intenes.

    Pessoas brilhantes que deveriam dominar seus apetites acabam dominadas por algum demnio

    pavoroso que a princpio no era bem-vindo na vida delas. Em seguida, o demnio passou a ser

    bem-vindo. Depois a presena dele tornou-se habitual. Finalmente era o vcio, e no o cristo,

    que dominava. Pense em quantas neuroses inundam a vida de vrios viciados. A me de Gilbert Grape (personagem de Aprendiz de sonhador, filme adaptado do romance de

    Peter Hedges) permitiu que a glutonaria a destrusse dentro de uma casa cujas vigas mal podiam

    sus-tentar-lhe o peso. O livro de Upton Sinclair intitulado Cup of jury [Clice de fria] trata do

    alcoolismo, bem como The lost weekend [O fim de semana perdido] (de Billy Wilder e outros)

  • ou Ironweed (filme de Hector Babenco, baseado no livro homnimo) e muitos outros ttulos. Os

    livros e filmes, assim como a poltica nacional, contm histrias que abordam vcios sexuais. A

    cobia irrefreada do poder o tema de Segredos do poder, Mera coincidncia, da srie de filmes

    O poderoso chefo e de praticamente metade dos filmes e novelas produzidos. O sexo um habitante frequente de nossa vida interior. Pode entrar com tanta regularidade em

    nossa mente que capaz de usurpar o lugar dos pensamentos e do tempo que deveramos

    dedicar a Deus. Frederick Buechner referiu-se ao sexo como "o macaco que fica chiando em

    nossas costas". Chama-o de "o grande segredo" que mantemos dentro de ns a ponto de

    produzir uma patologia espiritual destrutiva. "Suponho que o sexo o segredo que, em menor

    ou maior grau, cada um de ns esconde dos demais [...] o grande segredo aberto que, no

    importa o que mais possamos ser, somos corpos, e, como tais, precisamos tocar e ser tocados

    [...] Quando pecaram, Ado e Eva procuraram esconder a nudez um do outro e de Deus. Em

    maior ou menor grau, ns a escondemos desde ento porque, suponho, sabemos que nossa

    sexualidade uma boa ddiva de Deus, e ns, pecadores, podemos us-la para desumanizar

    tanto o prximo quanto a ns mesmos".9

    Os filmes e as novelas mais populares so histrias de perdas diante dos apetites. Porm, o

    comentrio mais triste referente ao cristianismo contemporneo que tambm estamos

    envolvidos nesses relatos. Muitos cristos, seja em editoras ou em igrejas, esto dominados por

    um esprito de concorrncia mpia. As megaigrejas apresentam um aspecto altrusta (e at

    evangelstico) enquanto o tempo todo guerreiam com as tticas de relaes pblicas e

    publicidade. Embora muitos telogos e pensadores tenham procurado cham-las de volta dessa _______________________________________________ 9Telling secrets, San Francisco: Harper San Francisco, 1991, p. 74-5.

    posio, a corrida para ver quem maior, melhor e mais famosa continua. Usando outros nomes

    para santidade fingida, esses cristos rivais raras vezes deixam de lado a poltica de intimidao

    santa.

    Isso tudo se soma a um tipo de impotncia, que sempre resulta de se afastar do Grande

    Capacitador. Quando no queremos dar lugar orientao vinda do Cristo que habita em ns,

    tudo o que resta a atribulada e neurotizante programao do nosso difcil discipulado. O triste

    de tudo isso que o verdadeiro discipulado nunca pode ser neurotizante, pois deve seguir o

    exemplo do Mestre e desviar-se da turbulncia para abraar a devoo convicta e a adorao

    silenciosa.

    DEIXAR DE PROCURAR A PERSPECTIVA CELESTIAL

    DOS VALORES REAIS

    Para o crente, s existe uma pergunta digna de ateno: Como Deus v o meu discipulado? Na poca do escndalo que envolvia o presidente Clinton, fiquei aptico e entediado com a

    opinio pblica. Os noticirios e os programas de entrevistas da TV apresentavam pontos de

    vista que nada contribuam para a resoluo do problema; eram ura amontoado de fofocas. Os

    lderes eclesisticos e os telogos tambm manifestavam suas opinies e teorias. Raras vezes,

    algum expunha sua opinio do ponto de vista divino. Creio que as pessoas que se mantiveram

    mais caladas agiram assim porque viram o problema com os olhos de Deus e avaliaram o

    pecado nacional de acordo com o padro das expectativas divinas. No h cultura mais cega que aquela que no quer ver. No h cristo mais morto que aquele

    cuja vitalidade se esgotou por falta de contato com Deus. As instituies (e a maioria delas foi

    estabelecida a fim de prestar servios nobres e sacrificiais a Deus, conforme o entendiam)

    acabam degenerando em pouco mais que escadas para a autopromoo egosta. Denominaes

    que se formaram para o altrusmo das misses acabam transformando-se em pouco mais que

    clubes religiosos empenhados na proteo dos interesses dos membros. Catarina de Siena

    escreveu que os lderes eclesisticos de seus dias viviam presos ao luxo. No sabiam latim, de

    modo que no conseguiam celebrar uma missa sensata. Eram bares do poder sem nada, alm

    de espiritualidade vazia e pregao dbil, que lhes definisse a vida competitiva e sem

    compaixo. Seu servio a Deus era apressado e fingido.10

  • Talvez a mais relevante de todas as vises pessoais seja a que enxerga com os olhos de Deus.

    Saber o que Deus deseja de uma nao, mas no ter capacidade alguma para fazer isso

    acontecer, inevitavelmente causa destruio. O primeiro passo em direo cura sempre reconhecer a enfermidade. Israel, nos momentos

    de declnio, no considerava mpios seus prprios caminhos, de modo que a cura no era

    possvel. Oswald Chambers dizia que devemos sentir a dor dos nossos pecados se realmente

    quisermos lev-los a srio. "O indivduo entra no Reino quando as dores atrozes do

    arrependimento colidem com sua dignidade.

    Em seguida, o Esprito Santo, que gera essa agonia, comea a formao do Filho de Deus na

    vida desse indivduo".11

    As enxurradas de opinies durante a poca do escndalo do presidente Clinton levaram poucos a

    perguntar: "Deus tem algo a dizer sobre isso?". Caso tenha, talvez devamos alterar nossa

    opinio para concordar com a dele. Talvez seja a maior das hipocrisias empossar presidentes

    que prestam juramento com a mo sobre a Bblia, visto que eles nunca mais a abrem para

    promover os objetivos morais de Deus. Entre os cristos, no h muita vida nobre, mas s vezes surge um homem ou uma mulher cuja

    disciplina inicia o dia perguntando: "Senhor, o que queres que eu faa?". Essa pergunta

    preceitua um modo de viver para esse dia, e esse modo de viver define um estilo de vida.

    Dietrich Bonhoeffer, perto de morrer, tomou conscincia de que sua vida no tinha nenhuma

    definio firme, a no ser a que Deus lhe dava. Escreveu primorosamente: Suportei os dias do infortnio de modo equnime, sorridente e orgulhoso, como quem est ____________________________________________________________________________________________________________________

    11Tudo para ele, Venda Nova: Betnia, 1988, da leitura do dia 7 de dezembro.

    12The cost of dscipleship, trad, para o ingls R. H. Fuller, New York: Touchstone Books, 1959, p. 20.

    acostumado a vencer. Sou eu mesmo, ento, aquele a respeito de quem falam outros homens?

    Ou sou apenas o que sei a respeito de mim? Inquieto, ansioso e doente. Quem quer que sejamos,

    somos de Deus.12

    Como dar o devido valor ao fato de que, em ltima anlise, Deus domina nossa vida? Devo

    confessar que minha vida est dividida entre meu desejo de ser um escritor importante e meu

    anseio de ser apenas uma alma que deseja descobrir o plano de Deus para si um timo na eternidade. A ambio brota em quase todos os coraes. Naturalmente, pode servir de

    combustvel para nossa carreira, mas por demais intrinsecamente egosta para ser um guia de

    confiana. Somente o ponto de vista do cu nos guiar obedincia jubilosa e livre de erros. S

    uma vida piedosa nos capacitar a enxergar como temos de viver, desejando que tudo seja como

    deve ser. Na densamente povoada Tquio, existe um acordo geral (na realidade uma lei municipal) para

    que ningum levante arranha-cu nem prdio algum que obstrua a vista do sol de outra pessoa.

    Os japoneses acreditam que em algum perodo do dia todos tm o direito de ver o sol. H muito

    tempo, Deus me deu a convico de que preciso tentar ajudar as pessoas a preencher o vazio

    delas. Acredito que todos tm o direito de "ver o Filho". Desse modo, todos os apetites

    puramente humanos perderiam seu poder. Vamos ento avanar para o apetite majestoso.

    Teremos Jesus no ntimo do nosso corao e no precisaremos usar nenhuma jia crist para

    contar ao mundo os nossos anseios. As pessoas enxergaro alm das nossas jias, dentro da

    nossa vida.

    CONCLUSO

    A diferena entre o que Deus quer para ns e aquilo em que acabamos nos transformando

    depende de derrotarmos o domnio dos apetites que nos acorrentam ao modo de vida egosta e

    aos alvos egostas da vida. Os passos para a liberdade so simples, mas sempre exigentes. Em

    primeiro lugar, nosso foco precisa ser a sede do que Deus deseja para ns, em vez de meramente

    tentar desistir daquilo que ele no quer. Segundo, devemos concordar em viver mais prximos

    do grande Capacitador. Finalmente, devemos viver em espiritualidade abundante para enxergar

    o tipo de mundo que Deus quer que exista e nos esforar para ser o tipo de cristo que Deus

    quer que sejamos. Oswald Chambers achava que quase todos ns no renunciamos deliberadamente a viso de

    Deus para nossa vida. Perdemos essa viso por negligncia. Quando nascemos de novo, parece

  • que captamos um vislumbre do nosso valor, tanto para Deus quanto para ns mesmos.

    Tornamo-nos desobedientes a essa viso quando comeamos a viver como se ela no pudesse

    ser alcanada.13

    raro negarmos a viso ou discutirmos o sonho de Deus para ns. "Perdemos

    a viso por meio do vazamento espiritual", diz Chambers.14

    Isso lastimvel, visto que nunca

    conheceremos a felicidade espiritual sem ter aceitado a viso de Deus para nossa vida. Quando aceitamos essa viso de Deus, oramos. Mas talvez esperemos revelaes instantneas

    demais quando oramos. Queremos orar de manh por um carro de fogo e j ao entardecer ir

    igreja montados nele. raro orarmos pedindo fogo e ao abrir os olhos ver uma caixa de fsforos

    em nossa mo. Raios e troves so muito improvveis. melhor comear de forma modesta e discreta. No h

    necessidade de contar aos nossos amigos e conhecidos. No h necessidade de planejar jejuns

    hericos nem viglias que duram a noite inteira [...] a orao no nem para impressionar os

    outros, nem para impressionar Deus. No deve ser empreendida com mentalidade de sucesso. O

    alvo, na orao, doar-se a si mesmo.15

    A questo pode ser resolvida de modo to simples assim? Sim. Viver a vida segundo Deus a

    nica atitude que nos pode satisfazer. Naturalmente, aqueles que enxergam e sabem o que Deus

    deseja devem chorar de tempos em tempos. Chorar por causa da inconstncia daqueles que

    criou a natureza do nosso Deus vivo e amoroso. Foi por amor que ele enviou seu Filho. O

    Calvrio no uma soluo muito complexa para o pecado humano, mas custou a Deus tudo

    quanto tinha. E o Calvrio foi o lugar de Deus chorar. Mudar o mundo gastar tudo e depois

    esperar e chorar.

    ______________________________________________ 13CHAMBERS, da leitura do dia 24 de janeiro. 14Ibid., 11 de maro.

    15Emilie GRIFFIN, Clinging, p. 15.

    Venha, em minha labuta encontrar

    lugar de repouso

    E nas minhas dores recostar a cabea,

    Ou ento tome minha vida e meu sangue

    E compre uma cama melhor Ou tome meu flego e minha morte

    E compre um descanso melhor. 1

    THOMAS MERTON

    Empregue o que tem.

    Os cinco pes de cevada e os dois peixinhos

    vo aumentar quando forem distribudos.

    Mo inveje quem tem mais sucesso

    que voc, seno ser condenado

    por murmurar contra a determinao

    de nosso Senhor.2

    F. B. MEYER

    Estou porventura permitindo que minha

    vida natural seja pouco a pouco transfigurada

    pela vida do Filho de Deus que habita em mim?

    O objetivo supremo de Deus que seu Filho

    seja manifestado em nosso corpo mortal.3

    OSWALD CHAMBERS

  • ______________________________________________________________ 1The seven-story mountain, New York: Harcourt, Brace e Jovanovich, 1948, p. 404.

    2Cit. Changed by the Master's touch, p. 55.

    3Tudo para ele, da leitura do dia 31 de maio.

    Como nos libertaremos do mundo

    presente se no pensarmos

    no mundo futuro?

    No foi mediante a orao que Paulo, Agostinho, Toms de

    Aquino, Joo da Cruz, Teresa e tantos outros amigos de Deus

    encontraram o conhecimento maravilhoso que deixou extasiados

    os maiores intelectos? Arquimedes disse: "Dem-me um ponto

    de apoio e com uma alavanca moverei o mundo". O que ele no

    conseguiu obter, os santos receberam. O Onipotente deu-lhes um

    ponto de apoio: ele mesmo, somente ele. Como alavanca, eles

    tinham a orao ardente do amor. Assim moveram o mundo, e

    com essa alavanca que aqueles que continuam batalhando no

    mundo o movero e continuaro movendo at o fim dos tempos.4

    Teresa de Lisieux

  • 4The story of a soul, p. 148.

    ROMPENDO A

    ESCRAVIDO DO MATERIALISMO

    Os Pais do Deserto foram para l a fim de ser "libertos da fartura". Ter fartura no condio abominvel, mas ser controlado por ela, sim. Deus quer que seu povo viva livre do apego ao

    dinheiro. No deseja que as pessoas fiquem miserveis por causa da avareza. Muito pelo

    contrrio. As pessoas mais miserveis so aquelas possudas pelo materialismo. Na lngua

    corrente, "miservel" tambm sinnimo de "sovina", "avarento". Logo, "misria" significa

    tambm "avareza". Catarina de Siena estava convicta de que a privao melhor amiga do materialismo do que as

    riquezas. Os ricos em geral no tm tanto ardor por seus bens nem pela conservao deles

    quanto os necessitados. Estes (talvez porque precisem fazer mais sacrifcios para conseguir

    alguma coisa) quase sempre ficam mais apegados a seus pequenos tesouros do que os ricos. Catarina aconselhava seus amigos prsperos a viver unidos com a vontade de Deus. Ressaltava

    tambm que existe virtude nas posses materiais, pois Deus quer que desfrutemos as suas

    ddivas. Mas Catarina tambm nos recomendou que no amssemos tanto essas ddivas de

    modo que, em vez de as possuirmos, passem a nos possuir.

    Em Lucas 18, Jesus encontra-se com um jovem rico e importante. O fato de o jovem possuir

    muitos bens materiais no era pecado, mas, sim, seu apego a eles. Barnab tambm tinha riquezas, mas "vendeu um campo que possua, trouxe o dinheiro e o

    colocou aos ps dos apstolos" (At 4.36,37). O que Barnab fez que o jovem rico e importante

    no conseguia fazer? Livrou-se de um grande apego. O jovem importante era escravo da paixo

    chamada ter. Alm disso, no se exercitara na arte do desprendimento. Os monges antigos

    interpretavam o desprendimento como "no permisso aos valores terrenos nem ao

    egocentrismo de nos distrair do essencial no nosso relacionamento com Deus e com o

    prximo".5

  • AS POSSES E O PECADO DO MATERIALISMO

    Annie Dillard escreveu um poema breve que exemplifica a insensatez de tentar conservar Jesus

    e o dinheiro na mesma caixa: Conservamos nosso papel-moeda trancado numa caixa por medo do fogo. Certa vez, abrimos a caixa e saiu Jesus, o cordeiro, deixando seu rastro de chamas por todo o assoalho.

    6 "Ter" no o primeiro pecado dos materialistas. O pecado que o antecede considerar nosso o

    que temos. A maioria dos crentes re-cm-convertidos comea a acumular posses numa atitude

    de quem no enxerga os bens como de importncia mxima, de modo que esto dispostos a dar

    a Deus a glria por lhes ter dado o que possuem. Porm, mais cedo ou mais tarde, alguns

    esquecem a origem de suas bnos materiais. Para os que esquecem, "ter" no o que Deus lhes faz possvel adquirir, mas o que eles mesmos acham que conseguiram e, portanto, tm

    direito de usufruir.

    Em duas viagens missionrias recentes por vrios pases, tive a oportunidade de pr prova

    uma frase materialista muito comum nos adesivos de carro nos Estados Unidos: "Quem tiver

    mais brinquedos, ganha". Ganha o qu? Pontos na bolsa de valores? Talvez no mais do que

    ___________________________________________________________________________ 5Kathleen NORRIS, Amazing grace, New York: Riverhead Books, 1998, p. 32.

    6Tickets for a prayer wheel, New York: Harper & Row, 1974, p. 125.

    isso. As pessoas mais felizes que conheci em geral moravam em lugares como Calcut, onde

    no havia possibilidade de riquezas. Existem poucos jovens ricos e importantes em Calcut. O

    nico objetivo razovel de algum naquele enxame humano acordar vivo no dia seguinte. Viajei por aldeias e cidades onde os habitantes nem imaginam o que um carto de crdito.

    Qualquer proposta de sair para fazer compras impossvel. "Comprar at no aguentar mais"

    um lema condenvel criado por quem j tem as despensas abarrotadas e cujas garagens imensas

    so redutos evidentes de veculos desnecessrios. Em Calcut, muitas outras frases de pra-choques perderam o sentido, como, por exemplo,

    "Tenho dvida na praa logo, tenho de trabalhar muito" ou "Meu filho e meus cheques esto na universidade". Estranhamente ausentes eram perguntas como "Quantos metros quadrados...?"

    ou "Qual seu segundo carro?". Fomos avisados muitas e muitas vezes para no elogiar

    nenhum objeto nos lares que visitvamos, porque os cristos de l seriam capazes de nos dar de

    presente. Os editores da revista Leadership [Liderana] propuseram nove medidas drsticas que os norte-

    americanos ricos teriam de adotar para se identificar de fato com o mundo em desenvolvimento: Primeira, remova os mveis: deixe apenas alguns cobertores velhos, uma mesa de cozinha e

    talvez uma cadeira de madeira. Voc nunca teve cama, lembra? Segunda, jogue fora as roupas. Cada pessoa da famlia pode ficar com seu terno ou vestido mais

    velho e uma camiseta ou blusa. O nico par de sapatos o do chefe da famlia. Terceira, os eletrodomsticos sumiram da cozinha. Voc tem direito a uma caixa de fsforos,

    um saco de farinha, um pouco de acar e de sal, algumas cebolas e uma tigela de feijo seco.

    Recupere as batatas emboloradas da lata de lixo: so a refeio de hoje noite. Quarta, desmonte o banheiro, corte a gua corrente, remova os fios e as lmpadas e tudo que

    funciona com eletricidade. Quinta, desmanche a casa e mude-se com a famlia para o galpo das ferramentas. Sexta, nada de carteiro, bombeiro ou servios pblicos. A escola, com duas salas de aula, fica a

    seis quilmetros. Apenas dois dos seus sete filhos a frequentam de verdade, e vo a p. Stima, jogue fora os tales de cheques, as aes da bolsa, os planos de aposentadoria. Seu

    dinheiro acumulado e guardado agora no passa de alguns trocados. Oitava, saia e comece a cultivar seus trs acres. Esforce-se para levantar alguma quantia com a

    venda da colheita, pois o proprietrio vai querer um tero desse dinheiro, e o agiota, dez por

    cento.

  • Nona, descubra alguma maneira de seus filhos conseguirem um dinheirinho para vocs terem o

    que comer na maior parte dos dias. Mas isso no basta para manter o organismo saudvel por isso, reduza de 25% a 30% da expectativa de vida.

    7 O materialismo a cosmoviso dos que tm os olhos focalizados no "progresso" no mundo

    presente. Cristo defendeu um alvo mais sublime. Jesus nos incentiva em Mateus 6.33 a valorizar

    o reino de Deus e a sua justia, e os valores deste mundo sero desmascarados por si mesmos. O

    materialismo patrocina muitos valores falsos. O tesouro que Deus deseja que consideremos

    interior e espiritual. Somente quando compreendemos o ponto de vista de Deus a respeito das

    coisas que conseguimos escapar de ficar perpetuamente presos s necessidades materiais

    secundrias e aos valores superficiais. A graa o antdoto do materialismo, no um chamariz que atrai a ateno para si mesmo. A

    maravilha impressionante de tudo que Deus nos d e faz por ns inunda-nos de gratido

    silenciosa. Ento suas visitaes de fartura espiritual adquirem ritmo, regularidade. Sua graa

    vem e vai, abastecendo-nos de tudo que belo na vida. De repente, acordamos diante da

    maravilha e nos sentimos envergonhados por ter vivido tanto tempo sem nunca lhe agradecer

    pela fartura. O materialismo em geral assume o controle na mesma velocidade com que nossa espiritualidade

    entra em decadncia. Percebi que, medida que as pessoas envelhecem, o brilho que antes

    tinham nos olhos comea a morrer. As vezes, o zelo delas tambm vai morrendo, e elas

    comeam a economizar dinheiro para os "anos dourados" a terceira idade. Deixam de confiar _________________________________________________ 7

    leadership, vero 1988, p. 81.

    em Deus e comeam a acumular bens. J se foram os dias do primeiro amor, quando lhes era

    fcil dar e contribuir. Voc se lembra dos tempos de seu primeiro amor? Francisco de Sales provou do elixir do

    primeiro amor e recusou-se a deixar que ele passasse a ser secundrio: "Ai de ns! Todos os

    dias pedimos a Deus que sua vontade seja feita, mas, quando se trata de pratic-la, temos muita

    dificuldade. Oferecemo-nos a Deus tantas e tantas vezes, dizendo-lhe a cada passo: 'Senhor, sou

    teu. Toma meu corao!'".8 Foi isso que dissemos quando nos tornamos cristos. E o que ainda

    devemos dizer para demonstrar nossa f. Quando Jesus Cristo entra em nossa vida com poder, nasce algo em ns que diz: "Posso fazer

    diferena. Posso alcanar o meu mundo. Posso viver para Cristo sacrificando-me por ele". Mas

    a velha ambio desmedida permanece conosco e nunca estamos livres de perigo. A qualquer

    momento, podemos voltar aos nossos valores antigos e nos tornar compradores compulsivos,

    encostados em nosso automvel predileto. Quando trocamos nossos tesouros espirituais por

    bagatelas, o grande sonho que tnhamos de servir a Deus escoa-se pelos poros cintilantes da

    nossa cobia.

    A SUBSTNCIA DA ESPIRITUALIDADE

    Precisamos abandonar o hbito de acumular tesouros e criar o hbito de acumular a copiosidade

    da graa de Deus. Precisamos acalentar o que Francois Fnelon chamava de "estado de f

    exposta". A f exposta tem Deus na mais alta estima, pois todos os demais valores no passam

    de nudez e pobreza. Quando se sentir na sequido, na obscuridade, na pobreza e quase sem foras na alma,

    permanea humilde debaixo da mo de Deus, em estado de f exposta, reconhea sua prpria

    indigncia, volte-se para o Deus todo-poderoso e nunca duvide da sua assistncia [...] Toda a

    sofreguido desaparece diante da perseverana.9

    Paulo diz que nossa vida interior uma busca muito perseverante a busca de Cristo. Em 1 Corntios 6.12, o apstolo nos lembra de que, embora tudo nos seja permitido, nem tudo

    bom para ns. Tudo que furta minha viso de Deus no bom para mim. No me submeterei ao

    poder de nenhum desses obstculos. Considere o materialismo o principal desses poderes

    viciantes. Submeter-se ao poder do qu? Lembre-se desta lista: "No se deixem enganar: nem imorais,

    nem idlatras, nem adlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladres, nem

  • avarentos, nem alcolatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdaro o Reino de Deus" (ICo

    6.9b,10). Qual seria a origem desses vrios estados? Como o adltero torna-se adltero? Como

    o alcolatra torna-se alcolatra? Como o imoral torna-se imoral? possvel transformar-se

    nesses tipos de pecadores quando se perde o domnio sobre os prprios apetites. Se todos tivssemos a maturidade espiritual necessria, conseguiramos enxergar isso. Quando

    Deus nos nega algo, jamais faz isso por sovinice. Ele retm tudo quanto no necessitamos a fim

    de que aquilo que deseja para ns fique a nosso alcance. E o que ele quer? Nossa conformidade

    com a imagem de seu Filho. Portanto, jamais sejamos culpados de pensar que nossa sede de

    coisas materiais chegar a produzir alguma semelhana com Cristo em nossa vida. No pode ser

    assim, pois o prprio Cristo repudiou o vazio do mundo material. Quando morreu na cruz,

    completamente destitudo de todos os bens, mostrou-nos exatamente at onde temos de ir para

    ser to altrustas quanto ele. O melhor momento para lidar com qualquer tipo de tentao apesar do materialismo resistir seduo logo no incio. Guardar no corao qualquer desejo contrrio vocao sincera dividir nossa ateno entre Jesus e qualquer outro que exija

    o primeiro lugar da nossa lealdade.

    Um dos companheiros ntimos do materialismo o ativismo. um tipo de corre-corre

    santificado em que os cristos concorrem entre si para ser os mais importantes, mediante a

    comparao entre suas atividades e a velocidade com que atendem aos vrios programas da

    comunidade religiosa. A idia que quanto mais fizermos por Jesus, mais os anjos ficaro

    impressionados. Desse modo, orgu-lhamo-nos de estar em certo lugar na tera-feira e em outro,

    _________________________________________________________________________ 8Thy will be done, p. 8.

    9 Talking with God, p. 86.

    na quarta. Fazemos parte de meia-dzia de departamentos ou vamos igreja dia e noite, como

    se houvesse algum tipo de vida inerente na velocidade santificada. A vida agitada e o consumo

    desenfreado caminham juntos. A agenda cheia de compromissos e o total egosmo que provm

    da gastana desmedida so companheiros ntimos. O materialismo e o excesso de atividades podem nos fazer alegar que estamos vivendo a "vida

    plena". Paulo, depois de nos lembrar de que somos o templo de Deus, diz: "Acaso no sabem

    [...] que vocs no so de si mesmos? Vocs foram comprados por alto preo. Portanto,

    glorifiquem a Deus com o seu prprio corpo" (ICo 6.19,20). Ora, quando Deus nos resgatou,

    tirou-nos desse tipo de vida. Transformou nossas preferncias morais e o modo que consi-

    deramos o ter e o apressar-se para conseguir a falsa reputao de uma vida sincera. Teresa de Lisieux disse que a chave para lidar com todos os nossos apetites, quer materiais, quer

    no, imitar a Cristo. Ela criava numa gaiola um pintarroxo desde filhote. Tinha tambm um

    canrio que cantava constantemente. O pintarroxo, mais quieto, comeou com o passar do

    tempo a tentar imitar o canrio. No era fcil, mas ele persistia. "Era encantador observar o

    empenho da criaturinha", escreveu. "Obviamente, achava difcil harmonizar seu canto com as

    notas vibrantes do seu mestre, mas, para surpresa minha, o canto do pintarroxo acabou ficando

    exatamente igual ao do canrio".10

    Deixar de imitar a Cristo entristecer o Esprito Santo (v. Ef 4.30). Como fazemos isso? O

    segredo para entender isso lembrar que "entristecer" uma palavra afetiva. Quando no

    vivemos altura do propsito para o qual Deus nos salvou, o Senhor no fica furioso conosco,

    nem procura meios de se vingar de ns. Ao contrrio, Deus se aflige por nossa causa. No me lembro de termos recebido muitos mveis novos em nossa casa em Oklahoma quando

    ramos crianas, mas certamente me lembro de quando adquirimos duas cadeiras novinhas em

    folha. Minha me deve ter empregado suas ltimas economias para compr-las. No que no

    precisssemos das cadeiras, mas raramente tnhamos dinheiro para mveis. A maior parte de

    nossos gastos domsticos era para coisas mais fundamentais. Lembro-me de ter pensado, de

    incio, como aquelas cadeiras novas pareciam indecentes. Eram lustrosas e belas, reinando como

    tronos sobre o restante da nossa moblia. Algum tempo depois, acabaram ficando na varanda da

    frente da casa (quando se tem trs quartos para nove filhos, passa-se muito tempo na varanda da

    frente). Um amiguinho meu veio do outro lado da rua. Ele tambm tinha uma coisa novinha em folha um canivete! Ainda me lembro de v-lo pegando o canivete novinho em folha e entalhando

  • aquelas cadeiras novinhas enquanto conversvamos. Nem por um momento sequer, pensei em

    faz-lo parar. Para mim, parecia mais criativo do que maligno. Mas certamente me lembro de ter

    visto a fasca acusatria no rosto de minha me quando ela saiu na varanda. Sua expresso era

    de clera e hostilidade francas. Mas os filhos que conhecem bem seus pais tambm conseguem

    olhar alm da hostilidade e ver que por trs dela existe uma mgoa profunda. Algo precioso se

    estragara. Tive vontade de chorar.

    Quando Paulo diz: "No entristeam o Esprito Santo de Deus", est dizendo em outras

    palavras: "Voc, como cristo, no consegue deixar Deus ficar com raiva de voc, mas

    consegue magoar o corao dele". Para evitar que isso acontea, Cristo habita em ns. Fomos

    comprados. Fomos resgatados no dia que Jesus ficou pendurado na cruz. Foi uma experincia

    dolorosa e angustiante. Custou espinhos! Custou sangue! Custou a crucificao total de Jesus

    Cristo! Mas ele foi pendurado no madeiro para adquirir, comprar, pagar e escrever "totalmente

    pago" para todas as nossas necessidades!

    Acho que sei a dor que Jesus deve ter sentido quando levantou os olhos, no tendo cometido

    nenhum mal, e exclamou: "Pai, per-doa-os!". Depois, exclamou: "Est acabado!". No "Eu

    estou acabado", mas "A obra est acabada! Paguei o preo do resgate", Cristo clamou nossa

    alma. "Vocs foram comprados por alto preo. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de

    vocs". Visto que fomos comprados por alto preo, seria muito bom deixar de lado a busca infrutfera

    do nosso superficial ganhar e gastar. Quem sabe o domnio de Cristo sobre ns seja muito mais

    importante do que nossa posse de qualquer bem material.

    _______________________________________________________________ 10

    Teresa de LlSIEUX, p. 72.

    O melhor de tudo que o domnio de Cristo estabelece o rico senso de espiritualidade integridade de vida e de atitude que torna nosso acesso a Deus imediato. Aceitar o senhorio de

    Cristo um passo gigantesco na nossa tentativa de parar de amar os bens materiais e valorizar

    nosso amor a Deus. Em certo sentido, tambm um passo na direo de abolir a escravido do materialismo. Isso

    se faz escondendo os tesouros do cu no os nossos prprios em nossa vida interior. Com esse ato to singelo, ocorre um deslocamento macio. O apetite de ter substitudo pelo apetite

    de ser. O corao entregue a Cristo no vai s lojas procurar brinquedos. Ele nos deixa livres

    para am-lo, e o amor ao Senhor desvia a adorao de meros bens materiais. Fomos comprados

    pelo seu precioso sangue. As bugigangas que nosso miservel dinheiro consegue comprar

    devem ser consideradas insignificantes. Para ns, jamais pode ser "quem tem mais brinquedos

    vence", mas "quem foi comprado pelo sangue de Cristo vence" e continuar vencendo para

    todo o sempre.

  • Os tempos mudam, e, para nos

    manter em dia, devemos modificar

    nossos mtodos.'

    MADELEINE SOPHIE BARAT

    Bem-aventurados aqueles que se

    entregam a Deus! So libertos

    de suas prprias paixes, do julgamento

    dos outros, da perfdia deles e da tirania do

    que dizem, da sua zombaria fria e miservel,

    dos infortnios que o mundo atribui s riquezas,

    da infidelidade e inconstncia dos amigos,

    das artimanhas e dos laos do inimigo,

    da fraqueza, das desventuras e da

    brevidade da vida, dos horrores de uma morte

    profana, do remorso vinculado

    aos prazeres mpios e, no fim,

    da condenao eterna de Deus.2

    FRANOIS FNELON

    Senhor, sou teu. Rendo-me inteiramente

    a ti e creio que tu me recebes.

    Entrego-me nas tuas mos.

    Opera em mim todo o prazer da tua

    vontade, e descansarei tranquilo nas

    tuas mos confiando em ti.3

  • HANNAH WHITALL SMITH

    _________________________________________________________ 'Cit. Woodene KOENIG-BRICKER, 365 Saints, da leitura para 5 de agosto. 2Cit. Richard FOSTER, org., Devotional classics, San Francisco: Harper SanFrancisco, 1989, p. 46.

    3Cit. Richard FOSTER, A Spiritual Formation Journal, San Francisco: Harper SanFrancisco, 1989,

    pgina sem numerao.

    estarrecedor constatar que levamos nossos

    pianos individuais to a srio que

    nunca desejamos saber se Deus tem

    outra coisa para fazermos.

    J se observou, por exemplo, que se os ltimos 50 mil

    anos de existncia do homem fossem divididos em

    geraes de aproximadamente 62 anos cada, ter havido

    cerca de 800 geraes. Dessas 800, 650 foram passadas

    nas cavernas.

    Somente durante as ltimas 70 geraes foi possvel

    haver uma comunicao efetiva de uma gerao para

    outra porque a escrita a tornou possvel. Somente durante as ltimas seis geraes que as massas de

    indivduos chegaram a ver uma palavra impressa.

    Somente durante as ltimas quatro foi possvel medir o

    tempo com alguma preciso. Somente nas duas ltimas

    que algum, em algum lugar, fez uso de um motor

    eltrico. E a esmagadora maioria de todos os bens

    materiais que usamos na vida diria de hoje foram

    desenvolvidos dentro da atual, a 800a gerao.

    4

    ALVIN TOFFLER

  • ______________________________________________________________________ 40 choque do futuro, trad. Eduardo Francisco Alves, Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 2001, p. 25.

    ROMPENDO A TIRANIA

    DA URGNCIA Uma das primeiras mquinas foi o relgio. Primeiro, movido a gua, depois por molas e pndulos e finalmente a quartzo, continua sendo uma mquina controladora, cujo tque-taque s

    vezes nos deixa neurticos. O relgio foi inventado para nos permitir administrar o tempo, mas

    s vezes acaba nos deixando nervosos. De todas as ddivas que Deus nos d, certamente a mais preciosa o tempo. Os segundos, os minutos e os anos so todos peas da vida, montadas e prontas para nosso uso

    no servio de Deus. A areia de nossa vida escorre pela nossa ampulheta rpida, firme, preciosa. to preciosa que, quando a devolvemos a Deus, os anjos se pem a exultar "aleluia!"

    Mesmo assim, no podemos dedicar nossa vida inteira a Deus num s momento e ter o assunto

    resolvido de uma vez para sempre. Precisamos entregar-lhe nossa vida segundo aps segundo.

    SANTIFICANDO OS DIAS DA NOSSA VIDA

    Portanto, a principal pergunta inicial a fazer ao Cristo que vive em ns no "Que queres que

    eu faa na vida?", mas "Que queres que eu faa

    Qual a sua profisso, meu amigo? Sou sapateiro veio a resposta entusiasmada. Todos os dias, pego minha caixa de ferramentas e circulo pela cidade, consertando os sapatos das pessoas. Elas me do algumas

    moedas, que guardo no bolso. Findo o dia, gasto tudo para comprar minha refeio da noite.

    Voc gasta todo o seu dinheiro, todos os dias? perguntou incrdulo o rei. No faz poupana para o futuro? Como ser seu amanh?

    O amanh, meu amigo, est nas mos de Deus disse o sapateiro, rindo feliz. Ele prover, e eu o louvarei dia aps dia.

    Antes de partir naquela mesma noite, o rei pediu licena para voltar na noite seguinte.

  • Voc sempre ser bem-vindo, meu amigo respondeu o sapateiro amigavelmente. No caminho para casa, o rei elaborou um plano para pr prova o humilde sapateir