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Núcleo de Estudantes de Economia da AAC Índice Parte I – O filme.…………………………………………………………………………………….….…….2 1. Recensões sobre o filme 2. Realizador 3. Personagem principal Parte II – Caracterização do modelo Social do Congo…… … … … …...… … … .14 Parte III – A fortuna de Mobutu e dívida odiosa… … … … … … … … … … … … … … … .30 Textos traduzidos, montados e compilados por: Professor Doutor Júlio Mota; Professor Doutor Luís Peres Lopes; Professora Doutora Margarida Antunes. Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de publicações que compõem parte destes cadernos. O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos e da Fundação Calouste Gulbenkian. 1

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Índice

Parte I – O filme.… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …. ….… ….2

1. Recensões sobre o filme

2. Realizador

3. Personagem principal

Parte II – Caracterização do modelo Social do Congo…… … … … …...… … … .14

Parte III – A fortuna de Mobutu e dívida odiosa…… … … … … … … … … … … … … … .30

Textos traduzidos, montados e compilados por:

Professor Doutor Júlio Mota;

Professor Doutor Luís Peres Lopes;

Professora Doutora Margarida Antunes.

Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de

publicações que compõem parte destes cadernos.

O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se

insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos e da

Fundação Calouste Gulbenkian.

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Parte I – O filme

1. Recensões sobre o filme

Mobutu, Rei do Zaire Sete semanas após a morte de Gnassingbé Eyadéma, o canal France 2 apresenta um formidável documentário de Thierry Michel sobre um outro ditador africano, o marechal Mobutu, ex-presidente do Zaire, que morreu no exílio em Marrocos, a 7 de Setembro de 1997, alguns meses depois de ter fugido do seu país, devido à chegada à capital das tropas rebeldes de Laurent-Desiré Kabila. Tendo como sub-título “Uma tragédia africana”, o documentário descreve o perfil de Joseph-Désiré Mobutu, filho de um cozinheiro ao serviço dos missionários, que trai Patrice Lumumba para atingir o topo do Estado e que se torna Mobutu Sese Seko Wa Zabanga, “o guerreiro todo poderoso que tudo arrasta na sua passagem e que, de conquista em conquista, continua a ser invencível”. Vinte e cinco anos de reinado sem oposição, de seguida a transição e depois a doença e o exílio. Thierry Michel consagrou vários anos a este filme, a um poder que utiliza todos os meios (exército, diplomacia, propaganda, repressão, pilhagem, corrupção). Subtil montagem de arquivos excepcionais e de testemunhos daqueles que apoiaram o “Unificador” (CIA, conselheiros belgas, ministros e colaboradores do presidente), este filme desmonta o sistema Mobutu, que era uma formidável máquina de poder que se apoiava ao mesmo tempo na tradição paternalista belga e na tradição africana do chefe, utilizando indiferentemente a sedução, a autoridade, a religião, o culto da personalidade, o terror.

Fonte: Thérèse-Marie Deffontaines, “Mobutu, roi du Zaire”, Le Monde, 20 de Março de 2005.

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Como um Soldado Veio a Dar um Monstro O filme, montado com milhares e milhares de diapositivos, é o testemunho devastador que põe a nu a tirania homicida, corrupta e vangloriosa de Mobutu Sese Seko, o ditador do Congo por muito tempo, no documentário produzido na Bélgica Mobutu, King of Zaire. As 2 horas e 15 minutos do filme sobre este governante da época da guerra fria, que morreu aos 66 anos de idade no exílio em Marrocos em 1997, são notáveis não tanto por contar de novo uma história bem conhecida, mas pelo monte de detalhes visíveis que dão um suporte a toda a prova do que é conhecido sobre o homem que emergiu da relativa obscuridade para tomar o poder numa vasta nação de cerca de 40 milhões e que manteve o poder com pulso brutal durante quase uma geração. O documentário rejeita a acusação estridente em favor de uma revelação cumulativa da história através de filmes de arquivo e do testemunho de conhecidos colaboradores próximos de Mobutu e de outras pessoas qualificadas. Eis, uma vez mais, Joseph Mobutu o jovem soldado, Mobutu o jovem jornalista, Mobutu o jovem secretário pessoal do nacionalista africano Patrice Lumumba nas negociações de Bruxelas que conduziram à independência do Congo do colonialismo Belga em 1960. E eis também Mobutu a trair o primeiro-ministro Lumumba, que o nomeou para Secretário de Estado e Comandante das Forças Armadas; Mobutu ascendendo pela hierarquia militar, acumulando títulos, envergando o seu conhecido gorro de pele de leopardo, atribuindo a si próprio e ao seu país um novo nome, Zaire, e impondo a sua tirania. Embora a narrativa não deixe de ter descontinuidades, o filme toca os mais relevantes acontecimentos da ascensão de Mobutu ao topo do poder no início de 1965. É uma crónica recheada de assassinatos, de predação financeira e sexual, de falta de rigor económico, de corrupção desregrada e de uma diplomacia adaptada aos anos de guerra fria que mereceram a Mobutu o favor e o apoio dos líderes ocidentais na França e nos Estados Unidos. No meio do filme, depois de ilustradas as perfídias, assassinatos e manipulações de Mobutu, vê-se o presidente George Bush numa cerimónia na Casa Branca exprimindo admiração profunda e amizade pelo ditador a seu lado. Aqui como nas outras sequências, o uso por Thierry Michel de registos filmados explica tudo. Acrescentar mais alguma coisa seria redundante. Fonte: Lawrence Van Gelder, New York Times, 9 de Outubro de 1999.

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Mobutu, o Rei do Zaire “Mobutu, o Rei do Zaire” é uma obra centrífuga que une retrospectivamente, num longo período, um personagem fora do comum, e que se interroga sobre os mecanismos do seu poder, recorrendo essencialmente à montagem de arquivos e ao comentário em voz-off. OS HOMENS E A SELVA A vida de Mobutu é fundada sobre dois elementos: a focalização sobre o personagem e a dimensão mitológica do seu destino. Entre a eliminação cínica de Patrice Lumumba que levará Mobutu ao mais alto cargo do Estado em 1965 e a sua fuga, penosa, no final do seu reinado em 1997, este filme descreve uma primeira tragédia de uma enorme dimensão sobre a vaidade do poder, que, à traição e à morte do seu benfeitor e rival, faz corresponder a maldição de um velho corroído pela doença e abandonado por todos. É igualmente uma lição de moral política que evoca o que o mundo dos homens deve ao da selva, quando o velho leão enfraquecido é sitiado por hienas que, pouco antes, ficavam todas cheios de medo com os seus rugidos. Entre estes dois termos, estamos perante um dos mais fascinantes retratos de um ditador que o cinema nos ofereceu desde Chaplin, mostrando que a legitimidade do tirano emana apenas da encenação que o faz nascer. Grande mestre das palavras e das cerimónias, manipulador da História e da sua própria cultura, “descendente” improvável do rei Balduíno e de Adolf Hitler (ver a este respeito o episódio do "zairezação"), Mobutu não é assim tão temível porque é um fantoche persuadido da bem fundamentada justificação para a sua megalomania, com a bênção das grandes potências deste mundo. Os testemunhos de um antigo responsável da CIA ou do conselheiro belga não são a esse respeito menos arrasadores que as espantosas declarações de amizade de Jean- Christophe Mitterrand, Valéry Giscard de Estaing, Raymond Barre ou Jacques Chirac. PERMANÊNCIA DA UTOPIA O sucesso do filme assenta também num colossal trabalho de apropriação do olhar pela montagem, cuja subtil organização consiste em encontrar o justo equilíbrio entre diversas abordagens (vida íntima, vida pública, referências psicanalíticas, historiais, políticas...), entre imagens de arquivos, testemunhos e comentário pessoal do autor. O belga Thierry Michel assina assim, sobre uma antiga colónia do seu reino, uma obra cujo equivalente se continua ainda à espera em França. Excertos de: Jacques Mandelbaum, Le Monde, 6 de Outubro de 1999.

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Mobutu, Rei do Zaire

Um Filme em Três Partes Realizado por Thierry Michel É o definitivo registo visual da ascensão e queda de Joseph Désiré Mobutu, governante do Zaire (o Congo), durante mais de 30 anos. A partir de 140 horas de material de arquivo raro encontrado em Kinshasa e de 50 horas de entrevistas com aqueles que privaram com ele, o filme “MOBUTU, REI DO ZAIRE” conta a vida do homem no âmago da história pós-colonial da África Central. O filme divide-se em três partes: Primeira Parte – A BUSCA DE PODER Cobrindo os anos desde o nascimento de Mobutu até 1969, a Primeira Parte documenta o seu percurso desde filho de cozinheiro, passando por jornalista militar, por Secretário de Estado e finalmente Presidente. O filme mostra Mobutu como jovem jornalista na Exposição Mundial em Bruxelas, em 1958, e no encontro com Patrice Lumumba durante as negociações para a independência do Congo em 1960. Numa entrevista, Larry Devlin, um responsável da CIA na altura, conta como, mesmo nos primeiros tempos da independência, Mobutu era visto como um possível substituto do seu patrocinador Patrice Lumumba. Devlin relata como ele próprio recebeu a ordem para fazer eliminar Lumumba, e o filme inclui os passos do golpe de Estado em 1965, bem como os de Lumumba no cativeiro com Mobutu a observar, e da sequente guerra civil de quatro anos. Segunda Parte – UMA TRAGÉDIA AFRICANA Cobrindo os anos de 1969 a 1988, a Segunda Parte documenta como por volta de 1970 Mobutu era o governante indisputável do Zaire, controlando as suas riquezas, propriedades e pessoas. A resistência era brutalmente reprimida, como mostra a sequência relativa a uma manifestação Universitária que termina num banho de sangue, e outras sequências de julgamentos e execuções de pretensos traidores. Neste período, surgiu uma crise económica, a que Mobutu respondeu com a designada “Zairezação”. Brandon Grove, o Embaixador dos EUA na altura, vê isto como o princípio da “cleptocracia” – o governo confiscou empresas e propriedades, que Mobutu tomou como pessoalmente suas ou distribuiu aos seus apaniguados. Terceira Parte – O FIM DE UM REINADO Quando terminava a Guerra Fria, Mobutu convivia na costa mediterrânica com responsáveis oficiais franceses e belgas e outros dignitários. Cobrindo os anos de 1988 a 1997, a Terceira Parte inclui sequências destes faustosos eventos mesmo quando o seu amigo chegado Nicolai Ceausescu estava a ser julgado e executado. Um aviso que não preocupou Mobutu. Apesar das afirmações do Presidente dos E.U.A. George Bush, uma vez mais registadas em filme, de que Mobutu era “o nosso mais valioso amigo em África”, com o fim da Guerra Fria, Mobutu sentiu

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uma pressão crescente do Ocidente para pagar a factura a seu cargo (concedeu abertura política à oposição). O filme documenta a emergência de um movimento oposicionista liderado por Etienne Tshisekedi, o desenrolar da Conferência Nacional entre 1990 e 1992, e a rebelião liderada por Laurent Desiré Kabila em 1996. Em Maio de 1997, Kabila, Mobutu e o Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, reuniram-se em Kinshasa; semanas depois, Kabila conquistou a cidade, Mobutu fugiu e morreu no exílio em Setembro desse ano. O filme utiliza o melhor material documental contemporâneo de todos estes eventos. “Um documentário espantoso da vida de Mobutu… um dos mais notórios déspotas da era pós-colonial da África.” – American Historical Review “Rejeita a acusação estridente em favor de uma revelação cumulativa da história através de filmes de arquivo e do testemunho de conhecidos colaboradores de Mobutu e de outras pessoas qualificadas. [Este filme] é o testemunho devastador que põe a descoberto a vangloriosa tirania homicida e corrupta de Mobutu Sese Seko.” – The New York Times “Notável! Um filme de uma montagem quase literalmente fantástica e de entrevistas reveladoras. Os estudantes deviam vê-lo… Excelente!” – David Moore, University of Natal, Durban, for H-SAfrica “Com filmes de arquivo não antes vistos, intercalados com entrevistas de sobreviventes dos círculos íntimos de Mobutu resultou um grande drama cinematográfico. Uma raridade.” – Mail e Guardian “Um documentário tremendo sobre a loucura do poder” – Le Monde

Fonte: www.frif.com/new2000/mob.html.

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Retrato de um Tirano Uma frase emblemática utilizada por Richard III, figura histórica do império britânico, introduz-nos no gigantesco retrato, rico em cores, que Thierry Michel consagra a Mobutu: “atingir o topo, é rolar para o abismo”. Com um sentido agudo da precisão e do detalhe, os traços distintivos de um bom retratista, o realizador liga, com base numa documentação rica colhida na memória dispersa de um país em fracasso, os testemunhos dos companheiros e dos colaboradores de Mobutu sobre as épocas mais importantes do reinado de um tirano com as mãos ensanguentadas. A história começa em 1960, com a independência da ex-colónia belga rebaptizada como Congo por Patrice Emery Lumumba, o seu presidente, decidido a cortar a ligação com os antigos senhores. Um jovem sargento do exército, Joseph-Desiré Mobutu, reconvertido em jornalista, cruza-se com Lumumba que o convida para seu secretário particular. As suas ambições políticas são detectadas pela CIA que o incentiva a matar Lumumba, julgado prejudicial para as intenções geopolíticas americanas em África. Da emergência do jovem sargento Mobutu à cena política congolesa, em 1960, até ao seu exílio forçado em 1997, imagens de arquivos alternam tanto com as confidências dos seus cúmplices, como com os testemunhos das suas vítimas: factos que o documentarista passa a pente fino. No fim de uma pesquisa meticulosa nos registos arquivados, extrai as imagens onde estão inseridas a violência, a repressão, a demagogia, a corrupção, para ilustrar a tirania de um presidente que se tornou num monarca sanguinário com a cumplicidade dos seus parentes e bênção da muito poderosa América. Deste excepcional documento emerge o espelho de uma estratégia de duplicidade digna de um déspota maquiavélico. O filme reconstitui nos seus mínimos detalhes o seu percurso excepcional. A imagem que nós retemos dele é a de um monarca imbuído de um espírito maquiavélico e possuído pela sua sede desmesurada de poder.

Fonte: Jean Servais Bakyono, Le Monde, 22 de Janeiro de 2002.

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2. O realizador

Thierry Michel: biografia Nasceu em 1952 em Charleroi na Bélgica, e, das minas de carvão às prisões, do Brasil ao Magrebe, à África negra, misturando às vezes ficção e realidade, Thierry Michel interroga e denuncia as misérias do mundo. Na bacia mineira e siderúrgica da sua infância, realiza os seus primeiros filmes documentários (Pays Noir, Pays Rouge e Chronique des Saisons d’Acier), e conta-nos na sua primeira longa-metragem a greve insurreccional belga em 1960 (Inverno de 60). Imediatamente a seguir, consegue introduzir uma câmara pungente e cúmplice numa prisão, para um hino à liberdade (Hotel Particulier). Após uma procura de identidade e enraizamento regional e político, parte para outros continentes. Realiza em Marrocos a sua segunda longa-metragem, uma obra poética no coração do deserto (Issue de Secours). No fim dos anos 80, volta a um regresso ao real com o Brasil perturbante das crianças das ruas (Gosses de Rio, A fleur de Terre). Aí descobre a cultura africana, uma cultura à qual faz uma homenagem no seu filme (Zaire, le cycle du serpent), um retrato impiedoso da nomenclatura e dos abandonados no Zaire. Volta ao seu país com (La grace perdue de Alain Van der Biest), um documentário sobre um escândalo político-policial antes de se interrogar sobre as boas intenções da caridade internacional armada na Somália (L’humanitarisme va-t-en guerre). Volta em seguida ao Zaire para fazer um filme sobre a herança colonial após 35 anos de independência (Les derniers colons e Nostalgies post — coloniales), e realiza uma grande filme sobre o hospital Conakry na Guiné (Donka, radioscopie d’un hospital africain). Depois da queda do ditador zairense, Thierry Michel empenha-se na realização de um documentário histórico, Mobutu, rei do Zaire. O seu último filme (Le Iran, sous le voile des apparences), é um documentário caleidoscópio, à imagem de um país onde o fervor religioso de uns contrasta com o desejo de liberdade de outros. Filmografia: Iran, sous le voile des apparences, Documentário, 2002 Mobutu, roi du Zaire, Documentário, 1999 Donka, radioscopie d'un hôpital africai, Documentário, 1996 Nostalgies post coloniales, Documentário, 1995 Les derniers colons, Documentário, 1995 Somalie, l'humanitaire s'en va t en guerre, Documentário, 1994 La grâce perdue d'Alain Van der Biest, Documentário, 1993 Zaire, le cycle du serpent, Documentário, 1992 A fleur de terre, Documentário, 1990

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Gosses de Rio, Documentário, 1990 Issue de secours, Ficção, 1987 Hôtel particulier, Documentário, 1985 Hiver 60, Ficção, 1982 Chronique des Saisons d'Acier, Documentário, 1980 Pays Noir, Pays Rouge, Documentário, 1975 Portrait d'un autoportrait, Documentário, 1973 Ferme du Fir, Documentário, 1982 Fonte: Resistences, 7’ème Festival International de Films; Foix.

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3. Personagem principal

Mobutu Sese Seko

Joseph-Desiré Mobutu nasceu a 14 de Outubro de 1930 em Lisala no Congo belga, alguns meses depois do rei dos belgas, Balduíno I. O seu pai, Albéric Gbemani, cozinheiro de um magistrado colonial de Lisala, morreu quando ele tinha 8 anos e, a partir daí, é criado pelo seu avô e pelo seu tio. Prossegue os seus estudos numa escola católica. Com a idade de 15 anos, alistou-se na Força pública, o exército colonial belga, onde oficiais brancos comandam os soldados negros. Com 16 anos, casa-se com uma jovem rapariga de 14 anos. Obtém o certificado de contabilista em Luluabourg e é, em seguida, colocado no Estado-maior da Força Pública em Léopoldville, em 1953. Após a sua passagem pelo exército, do qual sai oficial, torna-se jornalista no diário liberal de Léopoldville O Futuro, em 1957. Viaja primeira vez pela Europa aquando de um congresso de imprensa em Bruxelas, onde permanecerá alguns tempos para fazer um curso de formação. É neste mesmo momento que os representantes congoleses negociam a independência do seu país, e, quando chegam a Bruxelas para a realização da conferência “Mesa Redonda”, ele coloca-se à disposição deles. A ascensão Em Julho de 1960, torna-se secretário de Estado do governo independente de Patrice Lumumba. Devido a ser um dos únicos apoiantes de Lumumba com alguma experiência militar, aproveita-se do desacordo entre os diferentes políticos para evoluir muito rapidamente na hierarquia militar. É assim, como chefe de Estado-Maior, que manda prender Lumumba em 1960, sob o impulso do embaixador da Bélgica. Lumumba é preso com residência fixa. Mobutu, em frente das câmaras de televisão, acusa então Lumumba de simpatia pró-comunista para ganhar o apoio dos Estados Unidos. Lumumba tentará fugir para Stanleyville, mas é preso no caminho pelo exército. Mobutu manda-o para a prisão, onde Lumumba receberá apenas uma banana. Será enviado seguidamente para o Katanga de Moïse Tshombé onde será assassinado e o seu corpo perdido “na mata”, de acordo com os documentos oficiais. Sob a direcção de Pierre Mulele, os rebeldes partidários de Lumumba revoltam-se contra Mobutu. Ocupam rapidamente dois terços do Congo, mas com a ajuda dos Estados Unidos e de Israel, Mobutu volta a reconquistar o conjunto do território. Esta “vitória” que não teria sido possível sem a ajuda ocidental é habilmente utilizada para seu proveito interno por um Mobutu que se quer fazer passar como sendo o pacificador. Assenta assim o seu poder em dois pilares: para fora, o contexto da guerra fria, e para dentro o contexto da estabilidade. Um outro meio de reforçar o seu poder é a tomada de controlo do poder político, e deste, o seu corolário é a repressão de uma parte dos cidadãos congoleses. Após ter reorganizado o exército, comanda em 25 de Novembro de 1965 um golpe de Estado contra Joseph Kasa-Vubu, primeiro presidente do antigo Congo belga. Na sequência de uma crise política aguda entre o presidente Kasa-Vubu e o governo de Tshombe, este golpe de Estado é aclamado e aceite por todos, Kasa-Vubu agradece-o, Tshombe fica “absolutamente” deleitado, os sindicatos CSLC, UTC e FGTK apoiam o novo poder assim como as organizações estudantis UGEC e AGL. A população tanto congolesa como estrangeira aplaude o golpe. No estrangeiro, a Bélgica e os Estados Unidos são os primeiros a reconhecerem o novo presidente. Só a China e a URSS mostram reservas.

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Em 1969, esmaga uma revolta de estudantes. Os cadáveres dos estudantes abatidos são lançados nas fossas comuns e 12 estudantes serão condenados à morte. A universidade será fechada durante um ano e os seus 2000 estudantes são alistados no exército onde, de acordo com a televisão nacional, "aprendem a obedecer e fecharem a boca”. Instaura um regime autoritário de partido único, “o Movimento Popular da Revolução” e torna-se o marechal-presidente. Um dos seus desejos era que o país reencontrasse a sua cultura profunda, e é então a “zairezação” (descolonização cultural). Em 1971, “o ano dos 3 Z”, rebaptiza, ao mesmo tempo, o país, o rio e a moeda sob o nome do Zaire. No mesmo ano, impõe um fato tradicional, cria uma versão zairense do fato ocidental: “o abacost” (abaixo o fato ocidental) e obriga os zairenses a escolherem um nome africano (não cristão), o que faz ele próprio ao passar a chamar-se Mobutu Sese Seko Kuku Ngbendu Wa Zabanga, ou seja, “Mobutu guerreiro que vai de vitória em vitória sem que ninguém o possa parar”. Mobutu também impôs que o lingala, a sua língua materna, fosse ensinada nas escolas em Kinshasa. Anteriormente, a língua africana maioritária na capital era o kikongo. Esta “revolução cultural” bem como o culto da personalidade são claramente inspirados nos regimes comunistas (Mobutu será de resto um dos últimos líderes a ser convidado por Ceausescu, e manterá o culto da personalidade após visitas instrutivas à China maoïsta e à Coreia do Norte). Nos primeiros anos, no plano internacional (nomeadamente pelos Estados Unidos), o regime será muito bem visto, e a personalidade amável do presidente assim como os recursos naturais do país também ajudaram um pouco. O Zaire é então considerado como um exemplo para toda a África. Os investidores estrangeiros precipitam-se sobre os recursos naturais de que o Zaire é ricamente dotado. O Estado do Zaire lança então uma política de grandes trabalhos, os "elefantes brancos", que dão lugar a uma importante corrupção das elites políticas e administrativas. A queda Pouco a pouco, os métodos do regime e a violação dos direitos do homem fazem com que passe a ser desconsiderado aos olhos das democracias. Baseando o desenvolvimento do Zaire no modelo de uma economia assente na apropriação de rendas, Mobutu não pode mais do que constatar os seus inconvenientes quando se produz uma súbita queda das cotações do cobre. As finanças públicas ficaram de imediato esgotadas. Mobutu lança o Zaire numa política suicida de “zairezação” da economia. Esta nacionalização brutal da economia levou os dirigentes das empresas estrangeiras a entregarem as suas chaves aos membros do exército zairense que se apresentavam para fazer aplicar o decreto de “zairezação”. As empresas tornavam-se assim para um regime à beira da ruptura um bom meio para se comprarem fidelidades políticas. Numerosos beneficiários da “zairezação”, todos os próximos do regime, assumiram estas empresas como suas propriedades pessoais sem se estarem sequer a preocupar com a sua gestão. A corrupção tornou-se assim cada vez mais endémica (ao regime de Mobutu também se chama o regime da “cleptocracia”, literalmente “governo pelo roubo”), degradando dramaticamente a situação económica e social da esmagadora maioria dos zairenses. Em 1986, uma grave crise económica agita o Zaire e acentua uma crise política e uma revolta latente de um povo que sofre de fome contra um chefe multimilionário e megalómano que utilizou a corrupção como modo de governo. O fosso é cada vez maior entre a pequena tribo de fiéis (à qual o

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chefe oferecia prebendas) e o resto do país. Mas é o fim inesperado da guerra fria que vai acabar com o regime de Mobutu. Privado dos seus generosos apoios externos que o apoiavam como “protecção contra o comunismo” desde a sua ascensão ao poder, Mobutu encontra-se em certa medida isolado perante a sua oposição interna. Em 1990, como em muitos outros países da África central, o descontentamento popular é crescente e, em Abril de 1990, Mobutu autoriza o multipartidarismo (a oposição poderá forçá-lo a sair). A conferência nacional organizada nesta altura torna-se um verdadeiro tribunal popular que denuncia as derivas flagrantes do sistema mobutista. As intervenções de Etienne Tshisekedi e de outros opositores políticos marcam um momento decisivo essencial, dado que estas não são seguidas de repressão contra os seus autores. No entender dos zairenses, “O Marechal do Zaire sozinho” já não tinha mais o poder de oprimir o seu povo para assegurar o seu poder. O estado desastroso das finanças públicas do país, causado pela inépcia das políticas económicas de Mobutu, faz com que o sistema perca, pouco a pouco, os meios para se alimentar financeiramente. Vilipendiado em Kinshasa, Mobutu retira-se para o seu sumptuoso palácio, no meio da selva tropical e perto da sua aldeia natal. A sua solidão é cada vez mais evidente, quer no Zaire quer no estrangeiro onde já só beneficia do apoio da França. A sua doença vai ainda reforçar esta impressão de fraqueza, incitando os seus oponentes internos e os seus inimigos externos a intensificarem as suas acções. Em 1994, apesar da partilha do poder com o presidente do Parlamento, o país afunda-se na crise. Esta ainda se agrava mais com a chegada de refugiados ruandeses responsáveis pelo genocídio no Ruanda, fugindo desde 1996 da progressão da Aliança das Forças democráticas para a Liberação do Congo, braço armado congolês da Frente patriótica do Ruanda e do Uganda, chefiados por Laurent-Desejar Kabila. Estes entram em Kinshasa em 17 de Maio de 1997, provocando a queda definitiva do poder e a fuga de Mobutu Sese Seko, apesar de uma última tentativa de negociação para a partilha do poder apadrinhada por Nelson Mandela. Após ter sido tratado durante longos meses na Suíça e na França, Mobutu Sese Seko morre a 7 de Setembro de 1997, em Rabat, de um cancro na próstata, quatro meses após a sua queda e da ascensão ao poder de Laurent-Desejar Kabila, pai do actual chefe do Estado congolês (2006), Joseph Kabila. Deixa um país economicamente exangue, em conflito com numerosos países vizinhos e em plena guerra civil. Os herdeiros O marechal Mobutu casou-se duas vezes. Depois da morte da sua primeira mulher, Marie-Antoinette Mobutu, a 22 de Outubro de 1977, casou com Bobi Ladawa, em 1 Maio 1980. Quatro dos seus filhos do primeiro casamento morreram: Niwa, Konga, Kongulu, em Setembro de 1998, e Manda, em Dezembro de 2004. Outro dos seus filhos, nascido do seu segundo casamento, Nzanga Mobutu, anunciou em Dezembro de 2005 a sua candidatura às eleições presidenciais de Junho de 2006, enquanto Guy Alain se apresenta nas legislativas. Uma das suas filhas, Yaki, é casada com Pierre Janssen, um belga, de quem teve filhos. Como irmão de uma nora de Mobutu, Jean-Pierre Bemba assegurou, durante a Segunda guerra do Congo, a sua herança política, e acolheu no Movimento de Liberação do Congo numerosos antigos militares e altos dignitários do regime de Mobutu. Anedotas Em 1984, a sua fortuna tinha sido avaliada em 4 mil milhões de dólares, superior à dívida externa do seu país.

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Alguns dos seus colaboradores mais próximos, contaram, mais tarde, que a generosidade de Mobutu era tal que, aquando de festas nocturnas, teria deixado à livre disposição dos seus convidados saladeiras cheias de diamantes. Outros testemunhos contam que Mobutu teria sido um adepto da magia negra (e teria bebido sangue humano aquando de uma cerimónia). Alguns dos seus antigos colaboradores contam que Mobutu utilizava as mulheres dos seus ministros como um instrumento político. Grande sedutor, não hesitava em fazer corte às mulheres dos seus colaboradores, e muitas vezes atingia os seus fins devido ao seu grande poder. Este permitia-lhe enfraquecê-los humilhando-os, a fim de mostrar que era o chefe. Em 1978, opositores políticos marxistas refugiados em Angola lançam uma ofensiva contra a província mais rica em minérios, o Shaba (o actual Katanga). As tropas de Mobutu serão vencidas e este último será salvo pela legião estrangeira francesa que intervêm para proteger os seus cidadãos. Conta-se depois que nesse dia, no Katanga, os próprios serviços secretos de Mobutu teriam fomentado o massacre de uns 100 engenheiros franceses e das suas famílias em Kolwezi para provocarem a intervenção francesa. Uma profunda amizade ligava Mobutu ao rei Balduíno. Nos anos 60, Mobutu tentava imitá-lo no vestuário e na maneira de cumprimentar a multidão. As duas personagens escreviam-se muitas vezes. O gorro em pele de leopardo é uma espécie de coroa bantou, o atributo dos reis, de imperadores ou de outros aristocratas. Na tradição bantou, o leopardo é considerado como um animal esperto e a sua pele é sagrada. Mobutu foi proprietário do castelo Fond' Roy, em Uccle na região de Bruxelas, desde 1973 até à sua morte. A construção do castelo foi encomendada por Leopold II e terminada em 1910.

Fonte: Wikipédia, l'encyclopédie libre.

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Parte II – Caracterização do modelo social do Congo

O Contexto Político e Económico da República Democrática do Congo Introdução O Congo actual herda uma situação política caracterizada por um Estado que deixou de preencher as suas funções e que deixa um vazio, uma ausência de quadro regulamentar e institucional, situação esta que é um dos factores de guerra no sentido em que permite aos exércitos estrangeiros desenvolver as suas actividades militares e económicas no Congo. Aliás, o Congo herda uma longa crise económica cujas raízes vêm dos anos 70, da época do presidente Mobutu. Esta crise económica levou a elite política a adoptar, por um lado, um comportamento de predador e a levar, por outro, a uma utilização criminosa do Estado e da economia. A guerra, a exploração e a pilhagem dos recursos da República do Congo inscrevem-se neste fundo de vazio estatal e de recessão económica profunda. Os interesses económicos que suscitam os últimos recursos exploráveis num tal contexto dão lugar a uma comercialização militar pelas tropas estrangeiras e a continuação da pilhagem dos recursos do Congo pelos exércitos “convidados”. O papel da comunidade internacional na região é ambíguo e tenderá sobretudo a favorecer a continuação do conflito e a exploração dos recursos da República Democrática do Congo pelos exércitos estrangeiros. Sob Mobutu: Estado predador, clientelismo e tráfico de influências No que se refere ao quadro institucional não se pode falar de três poderes independentes no Congo: o governo, o parlamento e o poder judicial, pois estão enfeudados ao Chefe de Estado ou são os seus elementos de protecção. O poder de decisão pertence ao chefe de Estado, mas as instituições existem. Desde então é preferível distinguir dois círculos do poder: o primeiro (o gabinete e seus, mais próximos colaboradores) que contribuem com o chefe de Estado para a tomada das decisões; o segundo, visível e público, é a classe política, os “barões do regime” e é no seio deste círculo que as facções se degladiam. Relativamente às práticas destes actores, há primeiramente a predação, depois o clientelismo. O Congo é um Estado predador, isto é, onde “há pura e simplesmente desvio das receitas para as delapidarem em todos os tipos de despesas de ostentação e onde não há praticamente nada que seja reinvestido na economia nacional. Ao lado do desvio das receitas do Estado, o clientelismo é uma segunda prática importante no Congo, erigida como sistema de gestão do sistema político, entendendo-se como clientelismo “um conjunto de fileiras que partem do cimo da pirâmide política e descem de escalão em escalão até à base da pirâmide nacional, num sistema de trocas personalizadas, determinadas a partir do topo. O clientelismo tornou-se um sistema de redistribuição em cascata e constituiu realmente os fundamentos do sistema político durante todo um longo período. Este sistema só funciona desde que haja um mínimo de recursos disponíveis. Esta estrutura política degradou-se ao ritmo do afundamento da economia. Uma vez o Estado arruinado, certas fileiras de clientelismo tendem a deslocarem-se, o primeiro círculo em volta do chefe de Estado reduz-se, a área de exercício do poder também se reduz e a partir desta redução chega-se ao desaparecimento quase completo do Estado: o Estado deixa de cumprir as suas funções e deixa um “vazio” tanto ao nível nacional como ao nível local.

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Este vazio é preenchido por outros actores, tais como a igrejas, as organizações não governamentais, mas igualmente os senhores da guerra, as milícias étnicas ou os intervenientes estrangeiros que se aproveitam do vazio existente para desenvolverem as suas actividades extra territoriais, militares ou económicas. As consequências violentas, tais como as guerras civis, guerras económicas ou de segurança regional actual, ou de guerras entre regiões, são a expressão desta procura de poder, do caos político e da reacção dos diferentes redes de influência e facções que resultam da contracção da economia e da reacção perversa da elite que continua a querer apropriar-se dos rendimentos. O Estado predador torna-se criminoso quando procura ficar com os rendimentos dos recursos, pela violência e em detrimento dos interesses da população. Há utilização criminosa dos Estados mas também das economias. Evolução e consequências da situação económica congolesa O Congo dispõe de um potencial económico importante. Todavia, após um período de crescimento económico até 1974, sofreu uma forte recessão económica até aos anos 90 que se acentuou no último decénio. Particularmente a seguir à suspensão da cooperação e da ajuda bilateral e multilateral mas também devido à utilização criminosa da economia e às duas guerras sucessivas. Potencial económico Para além dos recursos mineiros tradicionais (cobre, cobalto, ouro, estanho, combalite-coltan), o Congo dispõe de um potencial importante em madeira, água, energia, terras agrícolas, petróleo e minerais. De facto, 40% do território do Congo está coberto por floresta tropical primária, a maior de África; o Congo representa a primeira fonte de água doce para África e a segunda ao nível mundial; graças às suas barragens, o Congo representa um potencial em energia renovável importante na região. As suas terras agrícolas estendem-se sobre uma superfície de 900.000 Km2 de que só 10% são utilizadas por uma agricultura de subsistência, mas nunca foram encaradas como terras exploráveis industrialmente para exportação. O Congo dispõe igualmente de minas exploráveis industrialmente, de reservas de petróleo que se estendem do lago Alberto ao lago Tanganika e de minerais exportáveis, como o combalite-coltan, de que detém 2/3 das reservas mundiais. Evolução da economia do Congo

a) Os grandes momentos da economia congolesa No decurso do período de 1967 a 1974, o crescimento económico atingiu 7,6% e o crescimento da indústria transformadora é estimado em 8,6% ao ano. O Congo é então a terceira potência de África. O motor da sua economia é a empresa Gecaminas (ex-União Mineira do Alto do Katanga, sexta empresa mundial e terceira em África) com a exploração de minerais. Esta empresa apoia-se sobre duas outras empresas públicas de transporte: a ONATRA e a CNCZ, assim como na sociedade nacional de electricidade, de que a Inga é uma das centrais com linha de alta tensão para o Katanga. O poder económico do Congo advém então dos rendimentos obtidos na extracção, tratamento e exportação de minerais.

b) Factores de recessão a partir de meados dos anos 70

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A partir de 1974, e até agora, o Congo entra num período de forte recessão. São vários os factores a explicarem esta contracção económica brutal. Primeiramente, ao nível internacional, a queda do preço do cobre em 50% e de outros minerais e a alta do preço do petróleo na altura da primeira crise mundial do petróleo. No plano regional, a guerra em Angola traz consigo a rotura das vias de exportação dos produtos do Katanga via Angola para o Atlântico. No plano nacional, a política de nacionalização das grandes empresas, a “zairezação” conduzida por Mobutu e que consiste em redistribuir por uma elite político-comercial uma larga parte dos activos congoleses, traduz-se por uma sucessão de medidas de política económica improvisadas e contraditórias. Enfim, as duas guerras do Sahaba (Katanga) e a partida de estrangeiros em particular da Gecamines arrastam consigo um afundamento das estruturas tecno-administrativas desta empresa. As grandes consequências desta política de zairezação combinada com um ambiente económico mundial desfavorável geram um período de recessão de 6% ao ano entre 1976 e 1978, acompanhada de inflação. A corrupção generaliza-se. Sucede-se um período de desinvestimento e de não investimento. A capacidade de uma economia de criar, gerar rendimentos e valor acrescentado deixa de existir. De facto, para uma capacidade de 10 milhares de milhões de dólares de valor acrescentado, o sector moderno só gerou 3,8 milhares de milhões. Entre 1976 e 1990, a economia congolesa conhece uma descida aos infernos, a saber a uma contracção económica brutal acompanhada de inflação. Em 20 anos, a produção desceu para 30% do seu valor, enquanto a população dobrou! O sector formal contraiu-se, a massa salarial diminuiu e o nível de salários não foi reajustado ou muito raramente, mas mesmo assim só parcialmente. O emprego formal passa de 2,7 da população total em 1967 para 1,7 em 1999 e o nível de salários passa de 1500 USD para 50 USD no decorrer do mesmo período. A inflação ou a hiper-inflação acompanharam a recessão económica. Sob a presidência de Mobutu, entre 1978 e 1996, três choques monetários foram induzidos politicamente. Nenhuma das reformas levadas à prática deu os resultados que eram pressuposto esperar, principalmente devido às dificuldades do Estado fragilizado em aplicar estas medidas numa sociedade fragmentada. Contudo, serviram os interesses das elites e permitiram-lhes gerar mais lucros do que os rendimentos públicos então em baixa. Cada nova emissão de moeda provocava, junto da elite que controlava a economia moderna, uma procura acrescida de notas que transformava imediatamente em dólares e, por repercussão, uma subida dos preços dos bens na economia informal e, a prazo, uma baixa do valor das notas. Estas políticas podem ser consideradas de criminosas. Cada um dos choques monetários provocou uma redistribuição de rendimentos da população para a elite político-comercial e uma pauperização da população que não dispunha nem de meios nem de oportunidades para mudar rapidamente da sua moeda para outras moedas. O resultado desta hiper-inflação foi, sem dúvida, a marginalização da moeda nacional e a dolarização da economia assim como a fragmentação do território do Congo em várias zonas monetárias. Face à regressão económica, ao afundamento da economia formal, ao declínio contínuo do emprego formal e à redução da importância do orçamento do Estado, duas reacções se observaram. A primeira provém da população que sofre esta evolução política e económica. Trata-se sobretudo de

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uma estratégia de sobrevivência que favorece o desenvolvimento de actividades informais de sobrevivência e de pequena produção doméstica. A outra reacção, perversa e violenta, provém da elite política e comercial: esta categoria da população “criminaliza” o Estado e a economia.

c) Contracção económica e desenvolvimento da economia informal Na sequência da contracção económica, e, em particular, contracção da economia formal, desenvolve-se a economia informal ou economia dos pobres. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência da população ou de alternativa à violência face ao desaparecimento do Estado. Pouco a pouco, a forma de exploração industrial desaparece e é substituída pelo carácter informal da exploração, graças à liberalização da exploração artesanal, quer seja dos diamantes, do ouro ou da heterogenite (mineral misto em que se misturam o cobre o cobalto). Esta economia informal é actualmente dominante pois assegura 2/3 do PIB. Trata-se de uma economia que engloba muitíssimas actividades extremamente precárias e cuja característica fundamental reside no facto de ser uma economia de mercado ancorada nas redes de solidariedade fundadas nas ligações familiares, étnicas e outras, com contactos locais e depois transfronteiriços. Esta economia não é regulamentada mas é parcialmente estruturada e pode ser definida como “o conjunto de actividades que escapam ao quadro institucional e regulamentar oficial da economia, que são não controladas e não registadas e, em diversos graus, apesar de serem praticadas à vista de toda a gente, são frequentemente não legais ou mesmo ilegais (tendo um objecto contrário à lei, com por exemplo o câmbio de moedas fora dos bancos).

d) Efeitos da mundialização sobre a economia congolesa A mundialização induz mudanças estruturais ao nível nacional. De facto, o sistema dos Estados nacionais, com estruturas governamentais hierarquizadas, é substituído por estruturas horizontais ou estruturas multipolares de poder no seio das quais o Estado nacional é apenas um elemento. Nos países do Norte, a multiplicação de centros de poder é contrabalançada pela formação de estruturas de integração regional como a União Europeia. A mundialização levou a que as grandes empresas se situem acima dos Estados e instituições nacionais. Em África, a liberalização mundial acelerou a destruição das estruturas estatais e acelerou a utilização criminosa do Estado assim como, no plano local, o desenvolvimento da economia informal. De facto, o Estado cumpre as funções de intermediário entre os níveis locais e os mundiais. Ora, em vários países africanos, os detentores do poder tentam exercer o seu poder controlando as ligações económicas entre os níveis internacional e local, isto é, as importações e as exportações. No Congo, desde há uma vintena de anos, as instituições nacionais cederam o seu lugar a redes de influência pessoais. Na presidência de Mobutu, estas redes eram constituídas por aqueles que lhes estavam próximos: uma série de patrões locais procuravam ser os intermediários entre os níveis locais e o internacional. Sob a presidência de Laurent Desiré, os militares tomaram o seu lugar com a diferença agora de que estes não são congoleses. No Congo, os militares e as redes de influência local gerem e arbitram a liberalização económica e a mundialização das trocas. O Congo não optou por uma abertura face às oportunidades económicas novas oferecidas pela mundialização das trocas. Pelo contrário, o Congo adoptou uma atitude de fecho face à mundialização. A elite optou por uma atitude perversa, criminosa, a saber, tentar controlar, monopolizar e desviar os fluxos para seu proveito próprio na sequência de um longo período de recessão ou mesmo de regressão económica e de afundamento do Estado, utilizando, quando necessário, a violência.

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Face ao leque de possibilidades de investimento que representa a abertura aos mercados mundiais, as grandes empresas privadas, outrora ligadas durante muito tempo ao Congo, deslocalizam ou optam por investimentos relativamente pouco importantes, rentáveis e financiáveis a curto prazo. Esta política das grandes empresas responde, por um lado, à multiplicação de possibilidades de investimentos à escala mundial e às deslocalizações, mas igualmente às exigências dos financeiros (accionistas) que exercem uma pressão para lucros rápidos. O sector mineiro é um bom exemplo. As grandes empresas recusam assumir riscos e deixam o lugar para as “juniores” que os assumem principalmente no sector mineiro. Estas empresas encarregam-se da prospecção, tentam obter os direitos de propriedade quando uma concessão se afigura rentável e depois revendem a posição a empresas maiores. Sob a pressão do Banco Mundial, o Congo lança um movimento de privatizações das suas empresas públicas que é adoptado em 1994, sob o governo de Kengo, governo este que não está em posição de força para negociar com as empresas estrangeiras depois do afundamento da Gecaminas1.

e) Utilização criminosa da economia pela elite político-militar A combinação destes dois processos, a marginalização da economia africana e a redução da ajuda deixam vazios os cofres do Estado, geram uma “utilização criminosa do Estado”. Esta é tanto mais importante quanto o Estado é menos presente e o país potencialmente rico: a classe política, militar e comercial procura ainda mais reforçar a sua posição. A guerra e a violência são os meios utilizados pelas facções para reforçarem a sua posição e a sua autonomia. Segundo Kennes, esta utilização criminosa é conjugada com uma mundialização da economia assente em organizações criminosas internacionais, uma zona de sombra da economia mundial difícil de controlar. A utilização criminosa da economia O fenómeno da utilização criminosa dos Estados e das economias é perceptível em África e resulta do vazio geopolítico criado em toda a África na sequência da queda do muro de Berlim e que se caracteriza por uma redução da ajuda ao desenvolvimento e da marginalização económica de toda a 1 O Banco Mundial também tem uma grande parte de responsabilidade na situação do sector mineiro. Com efeito, desde há cinco anos, o Banco supervisiona e financia a reestruturação da Gecamines. No entanto, a ideia que este relatório transmite sobre a maneira como os gigantescos activos mineiros da Gecamines em KOV e Kamoto foram transferidos para sociedades privadas mostra claramente que o Banco não pode ignorar o modo como as reformas mineiras que ele próprio definiu são na verdade levadas à prática. A política de gestão dos recursos do Banco Mundial na RDC tem levantado graves preocupações em várias ONG e junto de outros observadores. O Banco Mundial foi criticado por diversas razões, em especial pela sua abordagem imposta de cima para baixo e sem uma verdadeira participação e pela sua negligência do papel que os recursos naturais desempenham no alimentar do conflito, apesar das linhas directrizes do seu próprio Conflict Prevention and Reconstruction Unit. Censura-se-lhe igualmente a incapacidade institucional da RDC em regular o sistema de mercado livre em que se encontra actualmente o sector mineiro e que é um resultado da privatização das empresas para-estatais. Uma outra crítica é o facto de o Banco minimizar a má governança e as práticas de corrupção actuais que claramente entravam uma redistribuição equitativa dos benefícios deste sector. Sobre este assunto, veja-se o relatório L’Etat contre le peuple. La gouvernance, l’exploitation minière et le régime transitoire en République démocratique du Congo, Institut néerlandais pour l’Afrique australe (NIZA), Amesterdão, 2006, em especial pp. 32 e 33 (N. do T).

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África. O Congo, como muitos países africanos, não ganharam com a mundialização: eles integraram muito pouco as vantagens da mundialização. Face a esta contracção interna da economia, à redução da ajuda externa e ao afundamento do Estado e do movimento democratização, a reacção das elites político-comerciais foi a de reagir violentamente como predadores para tentar monopolizar as fracas receitas que ficavam no país. É isto que se pode entender como utilização criminosa do Estado: a violência ilegítima e a delinquência económica articulam-se com as estratégias políticas, as transformações sociais e económicas, as reconfigurações internacionais que lhes conferem um sentido inédito e que as fazem, talvez, participar numa grande mudança no sub-continente. No caso da República Democrática do Congo, dois períodos aparecem como distintos: um primeiro período de utilização criminosa do Estado e da economia situa-se entre os anos 80 e 90. Leclercq descreve bem esta evolução no sentido de um Estado predador: “é então que se vê, em reacção, pôr em marcha um outro modo de gestão política, não mais através de uma administração e de instituições formais como entre 1972 e 1973, mas através de elites político-comerciais com fileiras dominantes trabalhando única e simplesmente através das redes de influência. Desde então, o poder pertence a uma cadeia de instituições dominadas pelas elites: banco central, Gecamines, instituições de segurança. Com o falhanço da economia formal, o próprio presidente Mobutu, os membros da sua família e os seus colaboradores vão mesmo procurar tirar proveito da economia informal, participando activamente no comércio dos diamantes (mesmo conjuntamente com a UNITA), assim como em transacções cambiais fraudulentas ou ainda em tráfico de droga. O Estado deixa de assegurar as suas próprias despesas. A elite, agindo como predador, mina a base financeira do Estado que se torna pouco a pouco incapaz de remunerar os seus funcionários e de oferecer os bens públicos de base. Assiste-se a uma privatização da sua função fiscal: os indivíduos arrecadam os impostos e as taxas um pouco por todo o lado. O Estado congolês deixou de financiar o seu exército e deixou de assegurar os serviços de segurança. Esta função de manutenção do direito, da ordem e da segurança passa a ser do domínio privado, das milícias étnicas, dos movimentos rebeldes e dos exércitos estrangeiros, que mantêm uma certa ordem no Congo e que lhes permite a exploração económica do território. As firmas privadas de segurança asseguram igualmente a segurança, tais como a Executive Outcommes ou a Sandline (britânicas) e a IDAS (belga) etc. Interesses dos países vizinhos e comercialização militar e económica de guerra Os países vizinhos obtêm vantagens do afundamento do Estado congolês, com a cumplicidade directa e indirecta de actores locais. Desde então, para além das questões ligadas à segurança das fronteiras, para além das questões de controle de vastos territórios ou de interesses geo-políticos de certos países ocidentais, a guerra e a instabilidade permitem a grupos militar-comerciais aceder a recursos económicos, ao controle de zonas ou fileiras, de praticarem actividades económicas ilícitas. A ausência de Estado e a situação de guerra e de instabilidade criam uma oportunidade de predação (Ruanda, Uganda, Zimbabué). Estas práticas são conhecidas por comercialismo militar e por este entende-se a implicação cada vez maior de militares nas actividades económicas. Os países implicados e os seus exércitos baseiam cada vez mais as suas decisões em considerações comerciais, em vez de estratégicas ou tácticas, e os exércitos são posicionados nas regiões, nas cidades e nas zonas que têm a ver com matérias-primas. Neste contexto, as actividades económicas e

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militares rendem-lhes mais do que numa situação de paz e de estabilidade e a retirada das suas tropas destas regiões implica para estes mesmos países um custo e uma perda de rendimentos. O Zimbabué e o Ruanda são muito activos na exploração dos recursos. Estes dois países puseram em funcionamento instituições com a finalidade de controlar as suas actividades e rendimentos. No caso do Zimbabué, uma organização no seio do exército (OSLEG) concluiu contratos de exploração de concessões em contrapartida de créditos destinados a financiarem a guerra. Apesar de centralizada, esta exploração beneficia mais as pessoas privadas que o próprio Estado. Pilhagem, lucros e pauperização A pilhagem realiza-se em detrimento da população. Aqui aparecem claramente dois tipos de pilhagem: a que resulta do vazio político e de uma contracção da actividade económica (apareceu no tempo de Mobutu) e a que é praticada (principalmente pelos militares) para financiarem a guerra no Congo. As duas têm consequências semelhantes ao nível da pauperização da população e do agravamento da recessão: Todavia a responsabilidade dos actores é diferente. A pilhagem não se traduz por um reforço do Estado: a pilhagem do Congo não serve para alimentar os cofres do Estado. Existe uma forma de “joint-venture” entre a nomenclatura de todos estes países, neles incluindo os rebeldes, e as potências convidadas e os agressores, em suma, entre todas as elites, para pilharem a população congolesa. A pilhagem serve de objectivo, é mais do que um nervo da guerra. Um dos motivos é o enriquecimento pessoal. Consequências sociais No plano social e cultural, assiste-se a um desmantelamento sócio-familiar, ao ressurgimento do sagrado, com o fenómeno da multiplicação das igrejas, ao desenvolvimento do sectarismo. Há uma espécie de fragmentação nos planos social e cultural assim com uma profunda destruturação social e o desaparecimento dos princípios morais. A pauperização é já perceptível no decorrer dos anos 80, agrava-se nos anos 90 e atinge limites dramáticos em certas regiões no decorrer da guerra. As estruturas hospitalares e de saúde estão completamente estragadas, vazias, porque o Estado deixou de financiar o sector da saúde. Por um lado, a oferta de serviços de saúde e de medicamentos foi fortemente reduzida desde os anos 80 e só a ajuda humanitária subsiste depois da suspensão da ajuda bilateral e multilateral. Por outro lado, a população não dispõem de meios para aceder aos cuidados de saúde (falta de estradas, meios de transporte, meios financeiros, etc.): a acessibilidade aos cuidados médicos é extremamente reduzida. O problema é sobretudo estrutural. A violência e a guerra têm um impacte directo sobre a taxa de mortalidade. Nas zonas da frente, a taxa de mortalidade atinge níveis intoleráveis. Nas zonas de isolamento e de motivações económicas, que são as zonas em que a insegurança é maior, a situação sanitária e a mortalidade são críticas e a situação humanitária arrisca-se a transformar-se em catástrofe. Nestas zonas, a concentração de tropas é importante e há poucos recursos alimentares. A circulação monetária é limitada ou mesmo inexistente. A população é usada pelos militares. Epidemias novas estão a aparecer e são devidas ao facto de as pessoas procurarem alimentar-se na floresta. Aproximadamente 85% das populações próximas das linhas da frente são atingidas pela violência: destruição das suas casas, das suas colheitas, pilhagens, incêndios, roubos, espancamentos, recrutamentos forçados mesmo de crianças, etc. A violência está ligada à situação de sobrevivência das populações e dos militares. De facto, estes deixam de ser pagos, roubam, pilham, utilizam a população para diferentes serviços: estão sem qualquer controle. A população resiste. Com excepção das povoações que põem em prática os

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grupos de auto-defesa, os Mayi-Mayi, a população acaba por não poder escapar à violência e foge. Certos aspectos da guerra terão consequências e efeitos psicológicos e também sanitários a longo prazo (como os efeitos da poluição que representam certos produtos utilizados ou os detritos da actividade mineira devido à exploração selvagem ou ainda à radioactividade da heterogenite explorada em locais de urânio). A situação humanitária deteriora-se e o custo humano da guerra é importante: calcula-se em mais de 2,5 milhões que teriam sido directa ou indirectamente vítimas da guerra e das violências no Congo.

Excertos de: Senado Belga, sessão de 2002-2003, Comissão de Inquérito Parlamentar, 20 de Fevereiro de 2003.

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Patrimonialismo e implosão do Estado na RDC: que futuro para a economia

François Kabuya Kalala e Tshiunza Mbiye

O ano de 1990 marcou, na história da República Democrática do Congo, o início de um longo período de fortíssimas turbulências políticas. Na sequência dos ventos da Perestroika que sopraram sobre o continente africano, o Presidente Mobutu Seso Seko, até aí a única autoridade incontestada do Congo, decidiu, num discurso marcante pronunciado a 24 de Abril de 1990, democratizar o seu regime político. Querendo dar uma forte garantia da sua vontade de mudança, aboliu o estatuto de partido único, conferido ao Movimento Popular da Revolução (MPR), e retirou-se de chefe desta estrutura política. Nos dias que se seguiram, o presidente Mobutu procedeu à alteração da Constituição e decretou unilateralmente um período de transição de 12 meses. Encarou mesmo a hipótese de limitar o jogo político com a introdução do multipartidarismo a 3 partidos. Longe de acalmar os espíritos, estas decisões mergulharam o país em convulsões políticas sem precedentes. O período de transição, à partida muito curto, vai-se transformar num período de 7 anos, período que ele habilmente extorquiu à classe política graças a incessantes manobras de divisões no seu seio. Paralelamente, a economia formal já muito fragilizada e atingida fortemente pela dimensão da crise reflectida na longa sucessão de taxas de crescimento negativas do PIB real, vai ainda, a partir de 1975, afundar-se mais no abismo. Por um lado, por causa da “negligência benigna” de um governo que estava mais preocupado com a sua sobrevivência diária do que com uma gestão previsional da economia; e, por outro, na sequência da paragem em cascata da ajuda da cooperação bilateral e multilateral ao desenvolvimento, em reacção aos incidentes sangrentos e trágicos de Maio de 1990 no campus da universidade de Lubumbashi. No plano monetário, assiste-se a uma fortíssima expansão da liquidez interna impulsionada em parte pelos défices crescentes. A desordem monetária atingiu o seu limite com o desencadear da hiper-inflação, a extensão da dolarização e o afundamento do sistema bancário, devendo-se ainda acrescentar a própria recusa de duas das províncias do Kasai em aceitarem o poder monetário do governo central. Estes anos, com uma taxa de variação negativa acumulada do PIB, em termos reais, na ordem dos 48,7% entre 1990 e 1997, são considerados, por vezes, como o “custo do ajustamento político” que o país deveria suportar. Uma tal leitura dos acontecimentos tende, todavia, a fazer aparecer este período da história nacional como um simples acidente de percurso, quando na verdade, pelo facto de se agravar a crise, já nos anos 80 apareceram cada vez mais desilusões sobre a eficácia do poder público no Congo. Durante estes mesmos anos, as tentativas da comunidade internacional, através dos programas de ajustamento acordados com as instituições de Bretton Woods não mudaram o patrimonialismo do regime em vigor. Desqualificado pela sua gestão económica, enfraquecido politicamente no interior e isolado no exterior, Mobutu não pôde resistir durante muito tempo à guerra desencadeada por uma coligação de rebeldes que levou a 17 de Novembro de 1997 à queda do seu regime. O seu sucessor, Laurent-Desiré Kabila foi confrontado, por sua vez, a partir de Agosto de 1998 com uma outra guerra conduzida pelos novos movimentos rebeldes apoiados pelo Ruanda e pelo Uganda, seus antigos aliados. Com o seu trágico desaparecimento, em Janeiro de 2001, o seu filho Joseph Kabila assumiu os comandos do Estado e herdou não só um país dividido em três mas também um país cujas capacidades de mudança foram quase que completamente aniquiladas pelo dirigismo extremo do seu antecessor.

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A importância e a necessidade de uma reflexão teórica clara sobre a crise do Estado é agora mais urgente do que nunca. Por um lado, interroguemo-nos em saber se os acordos de Pretória sobre a partilha do poder durante a transição poderia levar a uma verdadeira reconstrução do Estado. E, por outro, não é certo que o novo contexto em gestação possa permitir manter entreaberta a janela de oportunidade — entreaberta em 2002 junto das instituições de Bretton Woods, graças à política de saneamento do quadro económico e de abertura ao mundo iniciada com Joseph Kabila. Levar a crise do Estado a sério e fazer dela objecto de estudo é postular a existência, no Congo, de uma ligação de causalidade entre o mau exercício do poder público e a desagregação da economia nacional; é também procurar prevenir que as mesmas causas não produzam amanhã os mesmos efeitos. Uma tese largamente explorada sugere que “é necessário procurar a origem das crises de Estado africanas na lógica singular de acumulação e redistribuição que presidia ao seu funcionamento e que podia impedir o Estado de realizar as responsabilidades que pretendia assumir”. Até uma certa época, a Africa sub-sahariana conheceu um ciclo de crescimento assente na apropriação de rendas, extensiva e neo-mercantilista, de recursos primários: agrícolas, mineiros ou petrolíferos. Este modelo económico transposto para o Zaire permitiu a certos investigadores mostrarem como é que a crise económica se desenhou e se prolongou neste país. Por pertinentes que sejam estas análises, elas privilegiam a explicação da crise pelas falhas dos mecanismos económicos. Ora, negligenciando o estudo da natureza do Estado zairense da época e o do seu funcionamento deixou-se totalmente de lado o papel negativo exercido sobre a gestão da economia e da moeda pelas “redes de influência” que estavam por dentro do próprio poder. Propomo-nos estudar a importância do exercício personalizado do poder pelo presidente Mobutu, de 1965 a 1990, de modo a melhor esclarecer a ineficiência programada do Estado durante o seu reinado. Em seguida, estudaremos as consequências, sobre a economia e sobre a moeda, de uma gestão neo-patrimonial de um poder a desfazer-se. Enfim, à luz desta análise parece prudente, hoje, não minimizar os obstáculos que se levantam nos caminhos da reconstrução do Estado e da economia. A presença — muito numerosa no seio da classe política — dos actores que procuram instrumentalizar a seu proveito os mecanismos da economia constitui uma indicação suficiente de um tal risco. A degenerescência programada do Estado O Estado moderno assenta em quatro elementos fundamentais: um poder institucionalizado, um aparelho administrativo, leis universais e um monopólio legítimo do exercício da coerção. É necessário aí acrescentar mais um elemento: a base financeira para financiar precisamente as quatro funções precedentes. Para outros autores, a formação do Estado pressupõe o fim do patrimonialismo, ou, por outras palavras, uma ruptura nítida com situações de eventuais apropriações em benefício exclusivo dos detentores do poder. “Estado-de-um-só-Chefe”2

O estudo da formação do Estado ganhou um maior interesse a partir dos anos 70. O essencial deste debate está centrado na natureza do Estado e nas suas relações concretas com a sociedade civil e com as forças e actores externos.

2 Nota do Tradutor: “Etat-chefferie” no original.

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Será necessário lembrar que foi com um golpe de Estado, em Novembro de 1965, que Mobutu chegou ao poder, como reacção à situação de crise que tinha prevalecido durante os últimos cinco anos de independência. O seu poder, tipicamente militar e autocrático à partida, rapidamente se esvaziou dos seus ares bonapartistas e se transformou numa versão africana de um Estado absoluto. Para manter a sua autoridade, Mobutu remodelou a seu favor as estruturas administrativas herdadas da época colonial e inspirou-se nos símbolos tradicionais de poder. Por esta razão há quem qualifique este regime de Estado como pré-moderno, neo-tradicional e burocrático-patrimonial. Na nossa opinião, a etiqueta mais adequada será a “Estado-de-um-só-Chefe”,, tanto que Mobutu, ele próprio, quando interrogado sobre o seu autoritarismo tinha como resposta: “Eu sou o Chefe: Diga-me um exemplo, diga-me uma só aldeia ou vila no Zaire onde haja dois chefes, sendo um da oposição. Isto não existe. Para os zairenses, isto é uma monstruosidade tal como ter duas cabeças no mesmo corpo. A noção de Chefe é indiscutível”. Deste ponto de vista, Mobutu arrogava-se de um poder discricionário absoluto, à boa maneira de Luís XIV. Na mesma ordem de ideias, Mobutu dispunha não só dos recursos do país mas também dos homens que ele substituía e colocava continuamente em lugares de responsabilidade pública ou de gestão económica. Em suma, ele tinha de “direito e de facto mais poder que todas as outras instituições… O preâmbulo da Constituição, revista em 1983 sublinhava mesmo que todo o povo era ‘guiado pelo Mobutismo’, uma sacralização do poder de Mobutu”. Três grandes etapas marcam a construção do Mobutismo: De 1965 a 1967, o poder procura consolidar-se. Foram utilizados métodos duros indo desde a interdição de partidos políticos ao esmagamento dos opositores, verdadeiros ou supostos como tal. De 1967 a 1970, assiste-se à afirmação da personagem “Mobutu, homem só” que, usando de uma mistura de carisma pessoal e de astúcias jurídicas, centraliza até ao limite o poder e impõe o bonapartismo. A partir de 1974, aparecerá claramente o verdadeiro estilo pessoal de Mobutu, o de uma gestão neo-tradicional e patrimonial. Instrumentalização do Estado e clientelismo político A palavra poder estava no centro da própria personalidade de Mobutu. Adquirir, aumentar e conservar o poder o mais tempo possível, era o programa que a si próprio tinha jurado: “nunca enquanto for vivo, ninguém se me referirá como sendo ex-presidente”. Esta foi uma aposta que quase ganhou, estando 32 anos à frente do poder, perdendo-o apenas já no final da sua vida. A que se deve esta longevidade? Como se sabe, o poder é uma relação de dominação fundada na posse de meios permitindo a certos indivíduos ditarem o comportamento a outros. Segundo Alain Tofler, o poder implica, por definição, a combinação da violência, da riqueza e da informação. A sombra da violência ou da força poderosa está sempre presente por detrás de qualquer acção do Estado. Mas a principal fraqueza do poder da força é a sua absoluta falta de flexibilidade: ela só pode servir para punir, daí que seja um poder de baixa qualidade. Pelo contrário, a riqueza é um instrumento muito melhor, isto é, um poder de qualidade média, porque permite simultaneamente compensar ou penalizar alguém. Todavia, a qualidade superior do poder obtém-se pela utilização do saber. Nada disto impede que no caso particular de Mobutu, a utilização da riqueza, no sentido mais lato do termo, tenha sido mais importante. Com o dinheiro (a riqueza), estava de facto em condições de criar uma força coerciva (a violência) e os serviços de informação à sua maneira (o saber). Ele não se poupava a manifestações grandiosas e caras, o que tende a mostrar que Mobutu estava consciente do poder dos símbolos.

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De forma muito notável e constante, Mobutu preocupou-se em suscitar a lealdade dos seus colaboradores, encorajando explícita ou implicitamente o seu enriquecimento pela ocupação de postos nos órgãos do Estado, nas empresas públicas e nas empresas mistas. Esta estratégia deu azo a que se criasse uma verdadeira “burguesia política” e um clientelismo, tudo bem rodado por incessantes rotações do pessoal político e pela impunidade praticamente assegurada dos gestores corruptos. Medidas aparentemente nacionalistas (tais como a criação de Gecamines, sobre as cinzas da antiga União Mineira do Alto Katanga, o aumento do número de empresas públicas, a “zairezação” e a “radialização”) foram utilizadas na política de apropriação dos recursos para proveito do regime e da criação de nichos confortáveis para os altos dignitários e seus protegidos. A crise da economia

1. A crise do sistema económico assente na apropriação de rendas A crise da economia congolesa prestou-se a diversas interpretações diferentes consoantes os períodos considerados. Apoiando-se complementarmente na abordagem marxista, certos analistas interessaram-se pela natureza das relações entre o Estado e as classes sociais quando se está perante a acumulação económica, partindo da época colonial até aos primeiros anos da independência do país. A tese nesse quadro defendida é que “a crise económica é uma crise do modelo de acumulação existente no Congo.” Segundo estes analistas, tinha-se estabelecido uma coligação privilegiada entre a administração colonial e o capital financeiro que dava prioridade às actividades mineiras e às actividades de infra-estruturas de transporte de que se ocupavam as grandes empresas concessionárias. O Estado, por seu lado, encarregava-se, por um lado, de mobilizar a mão-de-obra de que tinham necessidade as empresas mineiras controladas pelo capital financeiro; e, por outro, facilitava a criação de um excedente agrícola pelo jogo combinado de culturas obrigatórias, de preços impostos, de normas de produção fixas pela administração e pelo pagamento de impostos. Na lógica colonial, a prioridade tinha sido dada à exploração dos recursos mineiros e este sector desenvolveu-se tão rapidamente que se impôs como a principal nova fonte de criação de excedente económico. O excedente agrícola era transferido para o Estado e para o capital financeiro: primeiramente através dos impostos e em segundo plano pelos mecanismos dos preços impostos e pela prática de baixos salários que os baixos preços dos produtos agrícolas por seu lado impunham. O excedente mineiro era obtido pelo Estado pelo mecanismo da fiscalidade e dos dividendos distribuídos, mas era sobretudo apropriado pelo capital financeiro que o utilizava em grande parte no exterior do país. Ainda de acordo com estes autores, a independência deveria ser a ocasião para pôr em causa este modelo e de praticar uma politica de crescimento dos rendimentos dos camponeses e de alargamento do mercado de bens de consumo de massa. Não se tendo introduzido esta mudança, continuou-se a praticar o modelo colonial num contexto marcado por um outro tipo de relações entre o Estado, o capital e os camponeses. Mas este novo aparelho de Estado não tem nem os mesmos meios nem os mesmo métodos de coerção que o anterior Estado colonial. Economicamente fraco, alia-se à partida com o grande capital estrangeiro. É neste contexto que se devem compreender as nacionalizações e as tomadas de participação ulteriores nos sectores chave, entre 1973 e 74. A agricultura e a exploração mineira continuaram a ser a chave da acumulação. O excedente gerado pelas actividades mineiras sofre diversas punções ao nível comercial, financeiro e tecnológico. A gestão centralizada da economia do país é organizada a favor de uma burguesia de Estado gravitando em volta do poder e tendo investido principalmente no comércio. A expansão das receitas de exportação, provenientes

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principalmente do cobre, vai levar durante muito tempo a um clima de euforia e ao aumento do consumo — frequentemente de bens de luxo — e do endividamento externo. Quando vêm os anos de vacas magras torna-se então difícil, para o Estado e para certos grupos, reduzir o nível de vida e de fazer face ao serviço da dívida externa. Por exemplo, de 68 a 74 o crescimento foi de 7,5% ao ano. “A fraqueza do modelo colonial, o reduzido excedente criado e apropriado pelo poder do Estado e do capital nacional, assim como a sua utilização mais para o sector dos serviços comerciais e especulativos, vão-se combinar para abafar o modelo”. Depois de 1975, a economia do Congo regrediu 1,8% ao ano. Em 1983, o consumo privado representava apenas 60% do seu nível de 1970. A queda da produção interna acelerou a dependência face ao exterior, a balança de pagamentos deteriorou-se sensivelmente. Para fazer face ao défice externo, o Estado recorreu a vários reescalonamentos da sua dívida externa, a uma ajuda do FMI e, mais tarde, ao não cumprimento dos pagamento da sua dívida. A depreciação da moeda nacional acelerou-se.

2. Governança e crise da economia Na literatura sobre a crise do Congo apareceu uma segunda corrente, qualificada de neo-liberal e que assentou a sua tónica na intervenção excessiva do Estado na economia e na sua incompetência para gerir bem os recursos do Estado. “A má gestão dos recursos públicos estão no centro dos problemas económicos de que sofre o Zaire desde a independência… As políticas macroeconómicas foram marcadas por uma ausência de rigor, de previsibilidade e de transparência”. Este diagnóstico recorrente nos relatórios do Banco Mundial e retomado por especialistas belgas da cooperação dá o fundamento ao princípio da “ingerência pragmática” e dos programas de ajustamento acordados, nos anos 80, com as instituições de Bretton Woods. E justifica deste modo a privatização a todos os níveis. Como se sabe muito bem, os programas de ajustamento estrutural iniciados no Congo deviam-se, em parte, ao facto de as relações entre o Congo e as instituições de Bretton Woods serem fundadas num enorme equívoco. O acesso aos recursos do FMI e do Banco Mundial era condicionado pela realização de critérios de desempenho estabelecidos na altura da elaboração do programa. Para o FMI, a severidade da condicionalidade parece necessária quer para dar confiança aos credores quer para incitar o país a um maior rigor na gestão da sua economia. Se na altura os dirigentes congoleses aderiram rapidamente à condicionalidade dos programas é porque, no seu íntimo, eles pensavam recolher o mais rapidamente possível os dividendos. Mas, à medida que os programas de ajustamento se executavam, apareciam novas exigências em matéria de reformas, desencorajando assim o seu ardor de partida. A disciplina exigida na gestão económica era insustentável por muito mais tempo. Nós pensamos que uma outra razão, nada insignificante, do falhanço dos programas seja a própria natureza, neo-patrimonial, do poder de Estado, apoiado por certas redes de influências. Se assim não for, como é que se concilia teoricamente a tripla crise do poder de Estado, da economia e da moeda? Neo-patrimonialismo e crise da economia Em concordância com o modelo de acumulação económica, a perspectiva de leitura da abordagem neo-liberal permanece essencialmente económica. Afirmar que a má gestão dos recursos públicos está no centro da crise económica no Congo é apenas um epifenómeno de uma realidade mais complexa, reenviando-nos para a categoria de um Estado patrimonial, o oposto de um Estado moderno. É escamotear a clivagem fundamental em matéria de legitimação do poder. “No quadro de um verdadeiro Estado, no sentido weberiano do termo, as pessoas no poder perdem todos os direitos

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de propriedade sobre os bens públicos de que têm única e simplesmente o encargo de gerir: daqui resulta um outro tipo de legitimidade, completamente novo, e que não tem nada a ver com o regime patrimonial. Fora deste caso, é essencialmente a capacidade de responder às expectativas da comunidade ou grupo de corregelionários que permanece a fonte primordial: daí, no limite, a pilhagem sistemática dos recursos de um país para satisfazer os seus indispensáveis apoiantes”. Isto explica, sem dúvida, ainda uma vez mais, por que é que o uso da riqueza por Mobutu tinha sido tão importante na sua estratégia de poder. “De facto, com o tempo foi evidente que a capacidade do presidente Mobutu de se manter no poder esteve, entre outras coisas, ligada ao seu domínio em constituir, diversificar e manter numerosos sistemas de redes verticais de influências, em que se dependia, em última instância, do seu livre-arbítrio para o acesso às funções públicas e aos meios de enriquecimento privado daí decorrentes. Estes sistemas de redes constituíram-se por sequências sucessivas, correspondendo às diferentes fases de expansão, consolidação e crise do regime”. A fase de 1965-74 corresponde à constituição dos sistemas de redes de intermediação modernizadora, baseados na selecção de militares, políticos da primeira República, sindicalistas, intelectuais e quadros arregimentados nas instituições existentes. A fase de 1974-80 vê ao mesmo tempo o fim do crescimento económico e uma diversificação da natureza dos sistemas de redes de influência: a “zaireficação” permite a redistribuição selectiva dos bens a diversas categorias de apropriadores, o poder do Presidente consolida-se assim pela multiplicação dos sistemas de redes com dimensão regional e étnica. Durante os anos 80, a capacidade de mobilização da redistribuição de recursos diminui devido às restrições dos programas de ajustamento. Seguro do seu papel de interlocutor junto dos dirigentes ocidentais e do seu papel internacional, Mobutu goza ainda dos fluxos de ajuda internacional graças aos apoios periódicos do Banco Mundial e do FMI e isto permite-lhe controlar certas veleidades de autonomia dos sistemas de redes de influência. Durante os anos 90, assiste-se à perda de legitimidade do poder de Mobutu, infligida, do interior, pelo afundamento da Gecamines e pela autonomização crescente dos sistemas de redes de influência política sob o efeito do processo de democratização e, do exterior, pelo facto de se ter colocado o regime em isolamento face aos fornecedores de fundos. Crise de Estado e utilização crimininosa da moeda Lembremos: violência, dinheiro e informação são os três ingredientes do poder que Mobutu tinha habilmente muito bem combinados, ao longo do seu reinado, para criar e consolidar o seu regime. A base do seu poder começou a ser minada pelo seu discurso de 24 de Abril de 1990 decretando a democratização do regime. Mobutu vai então tentar, como já o tinha feito no seu início, exercer a violência, para ao mesmo tempo para punir os políticos que o abandonaram e para dissuadir outros que seriam tentados também a fazê-lo. Por exemplo, as pilhagens de 1991, em Kinshasa, não tinham nada de uma revolta popular repentina contra um regime odiado, mas foram antes uma estratégia deliberadamente montada pelos serviços de Mobutu e visando inicialmente os antigos barões do regime. A violência não é apenas física, ela pode também exercer-se através da moeda. Neste contexto, sob o falacioso argumento de dar uma oportunidade a uma população em estado de miséria, o regime tolera e encoraja mesmo os jogos ditos “Bindo”3 4. Esta vasta vigarice precipitou a

3 “São jogos de aplicações financeiras para populares, que apareceram no primeiro trimestre de 1990. Com durações muito curtas, indo de três dias a um mês, os promotores destes jogos ofereciam aos subscritores taxas de juro reais muito atraentes, relativamente às taxas credoras largamente negativas oferecidas pelos bancos de depósitos. A apetência por estas aplicações deslocou imensas somas de dinheiro para estes circuitos especulativos. Os depósitos bancários literalmente desapareceram. Os promotores eram cada vez menos capazes de manter as suas promessas. Muitas pessoas,

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implosão do sistema bancário. Na mesma linha, aumentou os salários dos funcionários públicos, professores e militares de 1 para 10, colocando, de um ápice, toda a gente na situação de milionário de papel. Foi o início da hiper-inflação. Durante este período de transição política, a moeda não foi usada somente para punir os ex-zairences, por se terem afastado de Mobutu, foi distribuída também em abundância para comprar consciências entre os políticos, e de todas as tendências. A vilanagem política atingiu todos os limites. A emissão monetária serviu para financiar o jogo geral dos actores políticos num ambiente em que os partidos ditos “alimentares” nasciam como cogumelos. Para explicar a lógica deste jogo Ntalaja utilizou o conceito muito interessante de “coligação de interesses políticos”, assimilando uma tal coligação a uma indústria composta por partidos políticos que agem como as empresas. E cujos dirigentes, sem nenhuma legitimidade real, são apenas políticos à espera de tirarem ganhos monetários pessoais. Para se assegurarem desse ganho, a coligação política procura a todo o custo aceder ao poder, fonte última do rendimento da emissão monetária. Assiste-se a duras batalhas na luta pelo controle do banco central. Por detrás das manipulações monetárias, deram-se outras batalhas políticas. A vida política era caracterizada, nessa época, pela bipolarização entre a gente da presidência e a oposição radical. Foi neste contexto que o governo procedeu a uma reforma monetária a que faltava completamente a adesão popular. Se oficialmente o primeiro-ministro Birindwa, iniciador desta operação, aí via a oportunidade de conseguir os meios da sua acção política, ele dispunha, porém, de uma agenda escondida, a saber: punir com esta reforma precipitada os seus adversários políticos. Por falta de divisas, o governo Birindwa recorreu a certos operadores privados para lhe financiarem a produção de notas no estrangeiro com a garantia da sua entrega no Congo dessas mesmas notas. Este mercado bem singular tinha permitido a homens de negócios desonestos enriquecerem-se indevidamente procedendo à duplicação das séries numeradas de notas, as quais foram fraudulentamente injectadas nos circuitos económicos através dos mercados de câmbios. Assim, carregamentos inteiros destas notas de contrafacção foram confiscados e o governo não teve pruridos em se servir ulteriormente deles para o pagamento dos salários, em particular da função pública. Os autores deste negócio, dito de “verdadeira-falsa moeda” nunca foram inquietados pela justiça graças aos seus poderosos protectores nos meios políticos e militares do país. Ao mesmo tempo que os particulares se entregavam à utilização criminosa da moeda, os responsáveis no seio dos serviços do Estado privatizavam, para proveito das suas redes de influência, os circuitos de criação monetária debitando indevidamente a conta geral do Tesouro Público. Uma tal desordem monetária generalizada teve como consequência a recusa, nas duas províncias do Kasai, em aceitarem a nova moeda posta em circulação pelo governo Birindwa. A situação das finanças públicas no decorrer deste período foi caracterizada por importantes défices cobertos, em grande parte, pelos créditos do banco central ao Tesouro. Sob a influência do crédito ao Estado, aumentou fortemente a liquidez monetária e sem qualquer relação com as necessidades da economia real, o que provocou uma situação de hiper-inflação. O nível recorde de inflação foi atingido em 1994 com uma taxa de 9.796,9%. Entre 1999 e 2000, a taxa anual média de inflação foi de 500%. No plano externo, o país apresentava um défice insustentável, assim como uma acumulação do serviço da dívida externa. Nesta data, a dívida externa atingiu 280% do PIB, ou seja,

apressadas para enriquecerem rapidamente, ficaram completamente arruinadas e aí perderam todas as suas economias ou os produtos de venda de activos imobiliários” (Nota no original). 4 Espécie de “Donas Brancas” (N. do T.)

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perto de 13 milhares de milhões de dólares, dos quais um pouco mais de dois terços constituíam encargos resultantes de dívida externa passada.

Kinshasa, 12 de Março de 2003

Mobutu e Nixon

Mobutu e o Primeiro-ministro

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Parte III – A fortuna de Mobutu e dívida odiosa

A verdadeira história do marechal Mobutu que construiu uma fortuna de quatro milhares de milhões de dólares a roubar o seu país

Considerado um aliado indispensável dos Ocidentais para lutar contra o comunismo na África, o presidente do Zaire beneficiou durante muito tempo do apoio financeiro maciço dos Americanos, antes de organizar o seu próprio sistema de desvio dos fundos públicos e das riquezas do seu país. A sua manutenção no poder custou-lhe uma parte da sua fortuna, que ascendia, em meados dos anos 80, a quase 22 mil milhões de francos. No caminho privado que leva à casa de verão del Mar, logo no início, uma pedra honra a memória de Winston Churchill, cidadão de honra de Cabo-Martin. É na avenida Churchill que a casa se situa. Na sua extremidade, está a residência que o presidente zairense Mobutu Sese Seko possui na Côte d’Azur, e que é outro monumento. No portão, um cartaz avisa o visitante da presença de cães de guarda. O muro do recinto esconde a casa de verão, que um agente imobiliário da região avalia entre 25 milhões e 30 milhões de francos. “São as crianças que vemos mais vezes, diz o vendedor de jornais vizinho. Têm entre sete e oito anos, com maços de notas de 500 francos, e que compram tudo. Mesmo eles têm mais dinheiro do que eu. Mas sabe-se de onde vem todo este dinheiro, e em França não se gostaria que Mobutu viesse viver para aqui. O povo francês opor-se-ia”. Uma história de venalidades e de corrupção como a de Mobutu, a de um dos ditadores mais extravagantes da África que durante trinta e dois anos de poder teve êxito, a obter ajudas do estrangeiro. É a história do seu enriquecimento pessoal e da sua pilhagem da nação, bem como das cumplicidades internacionais que a tornaram possível. O inquérito do Financial Times mostra-o: apesar das provas evidentes segundo as quais, desde o início do regime, Mobutu desviou e delapidou os fundos que lhe eram atribuídos, as instituições financeiras, com a bênção dos seus governos, continuaram a dar-lhe subvenções, das quais bem pouco chegou ao povo zairense. Os bens imobiliários constituem a parte mais visível dos activos no estrangeiro de Mobutu. A casa de verão del Mar faz parte de um conjunto luxuoso de várias residências das quais ela é a maior na encosta que dá para o mar. Da Bélgica à Costa do Marfim, da Suíça a Marrocos, é uma das vinte propriedades das quais se sabe pertencerem a Mobutu ou ao seu grupo. O seu valor anda pelos 23 milhões de libras esterlinas de acordo com as estimativas de agentes imobiliários e dos registos de venda obtidos pelo Financial Times. A este número de bens imobiliários da família, há que acrescentar um hotel e residências na África do Sul e uma plantação de café no Brasil. Disfarçando a extensão dos investimentos essencialmente financiados pelos fundos do Estado zairense, muitos dos bens são detidos por sociedades ecrãs, por sócios ou por membros do clã que

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não levam o nome de Mobutu. Para o Financial Times, estes activos imobiliários concentram-se sobretudo em zonas caras da capital belga. Uma fortuna, alcançada em trinta anos de pilhagem que, de acordo com o Tesouro americano e o FMI, representava quase 4 mil milhões de dólares (22 mil milhões de francos) a meio dos anos 80. Mas o dinheiro foi todo derretido quando o preço a pagar para permanecer no poder subiu vertiginosamente. Mobutu é fruto da guerra fria. Em 1960, Patrice Lumumba, que se tornou o primeiro primeiro-ministro do antigo Congo belga, pôs-se a procurar apoios no bloco de Leste. Os serviços secretos americanos projectam assassiná-lo, e procuram-lhe um substituto para barrar o caminho para o comunismo. Encontram-no na pessoa de Joseph-Desiré Mobutu, chefe militar de trinta anos, cujos companheiros de armas vão prender e executar Lumumba neste mesmo ano, sem qualquer intervenção em contrário dos Estados Unidos. “Os Americanos intervieram aquando da independência porque o país era financeiramente um bom filão, explica John Stockwell, antigo chefe da CIA no Zaire. À época, Mobutu impressionava. Ninguém, em 1960, teria imaginado o que iria acontecer”. Durante mais de vinte anos, presidentes, generais, espiões e banqueiros ocidentais viram nele um aliado indispensável contra o comunismo, e ninguém se atreveria a pôr travão aos seus excessos. E logo que a guerra fria terminou, Mobutu considerou a sua fortuna insuficiente para lhe permitir manter-se no poder. Joseph-Desiré Mobutu ascende, em 1965, ao topo do poder de um país cujas reservas de cobre, cobalto, diamante e madeiras são imensas; cujas terras, cobrindo vastas extensões, são boas para a cultura do café e do cacau. Entre 1970 e 1994, o Zaire recebeu do Ocidente 8,5 mil milhões de dólares de subsídios e de empréstimos. Ora, durante este período, com excepção de cinco anos para os quais os números não estão disponíveis, as receitas de exportação não atingiram, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mais de 10,7 mil milhões de dólares “Perante tais resultados, dificilmente se pode crer que foi feito muito no Zaire no plano económico ou social, tendo em conta a ajuda atribuída”, indica um relatório interno muito recente do Banco Mundial. Desde sempre que o presidente zairense se servia das riquezas do país para subornar os oponentes, calar as críticas e recompensar os servidores. “Mobutu soube construir todo um sistema de protecções. Distribuiu muito dinheiro para permanecer no poder. As suas necessidades de dinheiro eram enormes”, comenta um antigo subsecretário de Estado americano para os negócios africanos. “Manteve uma guarda presidencial forte de dez mil homens. E muitos daqueles em quem confiava, segundo parece, roubaram-no e até os seus filhos o terão feito. Se este lhes desse 5 milhões de dólares em notas para investirem, era certo que o dinheiro desaparecia”. Antes e depois da sua chegada ao poder “Mobutu recebeu da CIA milhões de dólares durante os primeiros anos”, afirma John Stockwell. “Assim, entre 20 milhões e 25 milhões de dólares passaram entre as suas mãos sob a forma de ajudas dos serviços secretos e do governo americanos”. Quando, em 1975, a guerra civil estoira em Angola, o dinheiro que a CIA destina às forças da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) é confiado a Mobutu de modo a que o entregasse aos rebeldes em luta contra o Movimento Popular para a Liberação da Angola (MPLA), que apoiava

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Moscovo. “Seguidamente, Angola passou para a influência cubana, e o Zaire apareceu como ponto de apoio com o qual se podia contar. A política ocidental, conduzida pelos Estados Unidos, consistiu em prestar toda a ajuda possível a Mobutu”, declara Léo Tindemans, que foi primeiro-ministro belga de 1974 a 1978. Mobutu soube explorar muito rapidamente a sua posição estratégica, instaurando um esquema de desvio de fundos. “Imediatamente, fizemos passar por Mobutu 1 milhão de dólares destinados a Angola. Mas pouco tempo depois, a UNITA veio queixar-se de que os seus homens tinham fome, que os meios faltavam. Nem um cêntimo tinha chegado aos angolanos. Os nossos pedidos junto de Mobutu para que ele entregasse o dinheiro continuaram a ser vãos”, indica John Stockwell, que dirigiu a operação secreta de apoio às forças da UNITA. “A CIA sempre soube que iam para os seus bolsos enormes somas de dinheiro.” Mas Mobutu recebeu montantes muito mais importantes do que os oferecidos pelos serviços secretos americanos, dos quais recusa um dia um donativo de 25.000 dólares das mãos de Lawrence Devlin, o seu representante em Kinshasa. As espoliações feitas pelo presidente, a partir do fim dos anos 60, com o acordo do Parlamento, ascendem oficialmente a um valor entre 30% e 50% do total dos investimentos públicos, atingindo num só ano (1988) a quantia de 65 milhões de dólares. Para além destes desvios, sobre os quais o Parlamento já não exerce nenhum controlo, recebeu fundos destinados às “instituições políticas”, entre as quais a Fundação Mama Mobutu e o partido no poder, o Movimento Popular para a Revolução. Um relatório do Banco Mundial, para os anos de 1980 a 1987, publicou informações obtidas por dois investigadores americanos, Steve Askin e Carole Collins, segundo as quais, em 1986, a presidência desviou assim 15 milhões de dólares. Contudo, de acordo com o mesmo documento, Mobutu gastou nesse mesmo ano 94 milhões de dólares e as instituições políticas 172 milhões, o que dá uma ideia da extensão das outras fontes financeiras. Para 1989, um estudo, sempre do Banco Mundial, indica que 209 milhões de dólares desviados dos créditos ao Estado foram inscritos pelo banco central do Zaire na rúbrica “outros bens e serviços”. “Os numerosos credores do Zaire não têm a mínima possibilidade, digo-o efectivamente, de reaverem o seu dinheiro... Mobutu e o seu governo não se incomodam por não reembolsarem os empréstimos e não ligam sequer à dívida pública... Sempre houve e haverá ainda um maior obstáculo que bloqueia toda e qualquer saída: a corrupção da equipa no poder”, declarava num relatório secreto do FMI, que circulou em 1982, um banqueiro alemão, Erwin Blumenthal, destacado em 1978 para junto do banco central do Zaire. Três anos antes, numa carta de 11 de Junho de 1979, dirigida a Jacques de Larosière, então Director Geral do FMI, Blumenthal escrevia: “A situação no Zaire foi no sentido que eu temia. A confiança entre o regime e o FMI parece fortemente abalada.” Mas a pilhagem sistemática dos dinheiros públicos, que Blumenthal denuncia em termos arrasadores, não afecta nem os doadores nem os governos estrangeiros. O seu relatório coincide com a chegada das tropas cubanas a Angola, cuja presença vai cimentar o apoio americano a Mobutu. É, sem dúvida, a razão pela qual os avisos do banqueiro alemão não foram atendidos. A partir de 1988,

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cinquenta mil soldados cubanos encontram-se em solo angolano para combater a UNITA ao lado do governo marxista de Luanda. De acordo com as suas próprias informações, o Fundo Monetário Internacional atribuiu ao Zaire nove empréstimos de um valor de 231 milhões em direitos de saque especiais, entre 1967 e 1982, e isto precisamente na altura em que Blumenthal concluía o seu relatório. O triplo deste montante viria a ser, nesta sequência, atribuído entre o ano do relatório e 1989. Erwin Blumenthal descobriu contas bancárias especiais abertas em nome do banco central do Zaire, junto de sete instituições financeiras no estrangeiro, Bruxelas, Paris, Genebra, Londres e Nova Iorque, onde se encontram milhões de dólares de receitas de exportações, desaparecidos do erário público. Os pagamentos efectuados sobre estas contas indicam bem as somas em questão. Em 1978, a empresa do Estado Gecamines, gigante do cobre e do cobalto, recebe ordem para transferir para uma conta presidencial a totalidade das suas receitas de exportação que ascenderão a partir de 1989 a 1,2 mil milhões de dólares. “Pensávamos, ao início, que Mobutu era o único a poder governar o Zaire, diz-nos Tindemans. Ele tinha, do nosso ponto de vista, o talento, o poder, a inteligência... seguidamente tudo mudou. Só passou a interessar-se pelo dinheiro, viesse ele de onde viesse, das sociedades privadas, dos governos estrangeiros. Não tinha sequer nenhuma ideia do que é uma política financeira; mas que importava isso, dado que o dinheiro continuaria a fluir. Não era fácil encontrar quem comungasse de uma mesma opinião em relação a Mobutu. Havia aqueles que investiam no Zaire e adulavam o presidente, e os que se mostravam hostis. Nenhuma dúvida quanto ao lado para o qual a balança se inclinava”. Um antigo agente dos serviços secretos zairenses, Emmanuel Dungia, recorda-se que “o dinheiro que gastava Mobutu a seduzir e a corromper os grandes deste mundo dava-lhe uma grande satisfação”. Mamadou Touré, que dirigiu no FMI o departamento respeitante a África, conhecia a existência das contas especiais para as quais o regime desviava as receitas das exportações. “No fim dos anos 70 e no início dos anos 80, diz, passaram-se no Zaire coisas muito esquisitas. Tínhamos descoberto que certas receitas de exportações do país não eram registadas pelo banco central, mas transferidas para contas especiais abertas junto de entidades bancárias fora do país. Em vez de serem reembolsados, os empréstimos obtidos no estrangeiro eram assim desviados. Quando tinha necessidade de dinheiro para uma viagem, Mobutu enviava um funcionário à Europa retirar de uma conta especial a soma necessária. Os responsáveis do banco central zairense viviam cheios de medo. Tinham que fazer o que Mobutu pedia”. No entanto, nem tudo se passou sempre como o presidente zairense teria desejado. “Dois acontecimentos marcaram-no, comenta um elevado funcionário americano”. Em 1978, o mercado do cobre tinha-se desmoronado, e os seus protegidos tinham exigido serem pagos em dólares, e não na moeda do país. Depois, em 1990, pondo termo ao sistema de partido único, criou quarenta e cinco partidos, que tinha que financiar para manter o seu controlo do poder. Isto custou-lhe muito dinheiro, que subtraiu ao sector produtivo, às minas do cobre, em primeiro lugar, e depois às minas dos diamantes. Mais recentemente, milhões de dólares foram absorvidos na desastrosa operação que consistia em recorrer a mercenários sérvios da Bósnia Herzegovina para enfrentar as forças rebeldes de Laurent-Desejar Kabila. Contudo, se a sua fortuna se reduziu nestes últimos anos, Mobutu continua a ser extremamente rico. Possui quotas em sociedades suíças e alemãs, muito dinheiro nos bancos e uma carteira imobiliária cujo centro é Bruxelas.

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No Zaire, é proprietário de um vasto domínio em Gbadolite, no norte do país. Fez aí construir um palácio de mármore, piscina olímpica e uma pista de aeroporto capaz de acolher aviões Concorde. Não distante de Kinshasa, o domínio presidencial de Nsele orgulha-se de ter um imponente pagode chinês decorado de malaquite. Sobre o rio vizinho, está ancorado o Kamanyola, um steamer com três pontes, preparado de acordo com os gostos de luxo do Mobutu. Sofás em seda rosa decoram as salas, e o emblema com a forma de uma cabeça de leopardo, de que tanto gosta, está gravado nas pratas bem como nas toalhas de mesa e na roupa doméstica. No total, possui em Bruxelas nove propriedades, desde edifícios de escritórios ao castelo no meio de um parque, nos bairros residenciais de Uccle e de Rhode-Saint-Genèse. Uma destas propriedades encontra-se perto do Museu da África Central, edificado para comemorar as proezas do primeiro depredador das imensas riquezas do Zaire, o rei da Bélgica Leopold II. Em Paris, a alguns passos do Arco do Triunfo e da Etoile, no finíssimo 16.º bairro de Paris, Mobutu dispõe de um apartamento de 800 m2 no primeiro andar do n.º 20 da avenida Foch, perto do peleiro que lhe confeccionou as suas sete togas de leopardo. Um local cómodo para as visitas aos sucessivos presidentes franceses, que foram os seus fiéis aliados. Para variar da casa de Cabo-Martin, Mobutu Sese Seko dispõe, entre outros lugares de veraneio, da casa Agricola Solear, uma residência que conta doze quartos e oito hectares de terreno nas Areias de Porches, no Algarve, em Portugal. A sua adega conta com catorze mil garrafas, às quais se acrescentam os muitos dispendiosos, dizem-nos no próprio local, vinhos de Porto velhos com sessenta e seis anos, que aprecia ao mais elevado grau, dado que têm a sua idade. Este imóvel, adquirido por conta de Mobutu em 1985, mas registado em nome de uma sociedade anónima cujo presidente é Jaime de Cunha Viana, está actualmente avaliado em 400 milhões de escudos antigos portugueses. Homem de negócios, Cunha Viana foi o chefe de fila da importante comunidade portuguesa no Zaire; e hoje é considerado como o representante de Mobutu em Portugal. Em Espanha, o presidente zairense possui uma casa de campo luxuosa e hotéis em Marbella. No subúrbio madrileno de Las Lomas, possui uma magnífica residência na Boadilla del Monte que foi adquirida, em 1983, por 200 milhões de pesetas antigas espanholas, em nome da sua cunhada. As suas contas bancárias contudo continuam a ser difíceis de localizar. Os governos ocidentais preocuparam-se apenas uma só vez, em 1991, quando os Estados Unidos, a França e a Bélgica inquiriram as holdings detidas nos seus países. A França e os Estados Unidos abandonaram a ideia de congelar os activos de Mobutu no seu território, sob o pretexto que eram aí muito limitados. A Bélgica, por seu lado, lamentou não dispor de meios legais suficientes para efectuar a apreensão dos bens. Entre os bancos dos quais se sabe que negociaram com Mobutu e através dos seus nomes falsos figuram no relatório Blumenthal de 1982 o Banco Bruxelas Lambert, Paribas, o Crédito Comercial, Indosuez, o Midland Bank e a União de Bancos Suíços. Interrogados sobre as suas eventuais relações de negócios com o Sr. Mobutu, todos se protegeram por detrás do sigilo bancário. Só o Midland aceitou dizer mais: “Não detemos nenhuma conta aberta em nome de Mobutu. Temos uma conta com um banco do Zaire que está inactiva desde há um ano. ”

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O nome de Mobutu tem sido citado ultimamente num relatório interno do governo belga redigido por Hendrijk Van Dijk, membro da embaixada da Bélgica no Luxemburgo. O presidente zairense faz parte dos chefes de Estado que branqueiam neste país somas de dinheiro “fantásticas”. Ele figura ao lado do líbio Muammar Kadhafi, do iraquiano Saddam Hussein e do imperador centro-africano recentemente desaparecido, Jean-Bedel Bokassa. Um banqueiro suíço declarou que seria “muito surpreendente” se se descobrissem somas importantes ainda investidas em bancos suíços pertencendo a Mobutu. “O mais elementar bom-senso tê-lo-á, desde há muito tempo, levado a retirar o essencial do seu dinheiro do país, a fim de evitar os desaires como os que ocorreram com os herdeiros do presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos, cujas contas bancárias foram bloqueadas durante mais de dez anos.” A Comissão federal dos bancos suíços, em Abril, perguntou aos doze grandes estabelecimentos bancários do país se detinham contas em nome do Sr. Mobutu. Todos responderam pela negativa, mas um dos colaboradores mais próximo do presidente zairense confirmou ao Financial Times que o importante das suas disponibilidades esteve sempre em contas na Suíça. O deputado socialista Jean Ziegler, adversário desde há muito tempo do segredo bancário suíço, recusa a ideia de que o essencial da fortuna do Sr. Mobutu teria já deixado o país. “Não falamos de 1 milhão de dólares depositado numa conta de um banco, mas de todo um império financeiro que se construiu em todo o mundo em trinta anos”, precisa Ziegler, que considera que “vários milhares de milhões de dólares” da fortuna de Mobutu foram investidos na Suíça. Na sua opinião, no entanto, quanto mais o governo adiar o congelamento destes activos, mais corre o risco de o ver esfumar-se. “Se isto acontecesse, a Suíça seria então culpada de cumplicidade num gigantesco desvio de fundos.” O governo, prossegue Jean Ziegler, agiu com “uma grande ligeireza”. A sua atitude é “típica da hipocrisia suíça”, na qual baseou as suas relações com o Zaire desde há anos. Em Novembro passado, Genebra recusou renovar o visto de entrada de Mobutu. Nem sempre foi assim. O homem político suíço que manteve as relações mais estreitas com Mobutu foi Nello Celio, membro do Partido Radical Democrata e presidente da Confederação Suíça em 1972. Tendo morrido em 1995, Celio, que pertencia ao conselho de administração do Crédito Suíço, tinha presidido à Alusuisse, a única sociedade de alumínio do país. Tinha participado de muito perto no projecto de instalação de uma fundição no Zaire e era presidente de Eurotrust, importante fundo de investimentos que mantêm relações com Kinshasa. Hoje, o Sr. Mobutu tem um cancro e a incerteza reside nos herdeiros da sua fortuna. Não faltarão certamente familiares, colaboradores e aliados a tentarem apropriar-se de uma parte daquilo que resta. Mas o povo zairense, que o poder mobutista deixou no extremo da pobreza, vai, ele também, querer recuperar o que lhe foi roubado. A pergunta é agora a de saber se os países que, actualmente, acolhem estes activos estão prontos para levantar o véu do segredo por detrás do qual se escondem, com Mobutu, desde há tanto anos. Fonte: Jimmy Burns e Mark Huband, Finantial Times e Le Monde, 18 de Maio de 1997.

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Ilegalizar a “dívida odiosa” — um imperativo moral e político

Citado por Patricia Adams Odious Debts, Earthscan, Londres (1991). Ilegalizar a “dívida odiosa” “A dívida externa, no essencial, tem sido contraída por ditadores que enriqueceram graças ao petróleo, aos diamantes e aos outros recursos dos seus países e que, durante a “guerra-fria”, beneficiaram do apoio dos países que hoje são os beneficiários do reembolso da dívida. Muitos daqueles dirigentes pilharam milhares de milhões de dólares aos seus países, servindo-se dos sistemas financeiros dos países desenvolvidos”. Tony Blair, Gordon Brown, Michel Camdessus, Trevor Manuel e outros. Fonte: “Our commom interest, Report of the Comission for Africa”, Março de 2005. Pensava-se que estas práticas eram reservadas à China. Ora, fazer pagar às vítimas o custo das armas que os visam é uma prática corrente nos países ocidentais. Lembremo-nos dos familiares das vítimas de Tianamen, em Maio de 1989, forçados a pagarem ao Estado Chinês as balas que serviram para a execução dos seus filhos. Porém, sabe-se menos que as populações de vários dos países mais pobres do mundo sacrificam quotidianamente, e por muitos anos, uma parte importante dos seus recursos públicos para reembolsarem uma dívida contraída contra a sua vontade para financiar regimes opressivos ou belicosos, de que elas são a primeira vítima. Em ambos os cenários as vítimas são obrigadas a pagar duplamente. Face ao cinismo de Estado, resta um recurso aos povos oprimidos: o direito. Ao longo da história, vários governos recusaram pagar a dívida que herdaram de governos ilegítimos que os tinham precedido, argumentando que esta dívida só responsabilizava o governo em questão que a tinha contraído. Este princípio é formalizado pela doutrina da “dívida odiosa”, que precisa os critérios de nulidade de um crédito nestas circunstâncias. Assentando sobre alguns dos princípios mais comummente aceites a nível internacional, esta doutrina não tem, contudo, o valor de uma lei. Cabe pois aos Estados fazerem um tratado internacional, para que, pelo menos, funcione o princípio preventivo: que o apoio financeiro aos ditadores deixe de ser uma prática aceite nas relações internacionais. A doutrina da “divida odiosa” De um ponto de vista moral ou político, alguns autores pensam que a dívida dos países do Sul é odiosa na sua totalidade. Preferimos qualificá-la de “ilegítima”, uma vez que reservamos a utilização

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do termo odiosa na sua acepção jurídica. É neste sentido que este vocábulo é aqui utilizado. A expressão “dívida dos ditadores” é, sem dúvida, de mais fácil e mais imediata apreensão pelo não jurista, mas não é rigorosamente equivalente à “divida odiosa”. Foi Nahum Sack quem primeiramente formulou a doutrina da dívida odiosa, na sequência das práticas estatais que, na altura, observou: “se um poder despótico contrai uma dívida, não para satisfazer os interesses do Estado, mas para fortificar o seu regime despótico, para reprimir a população que o combate, etc., esta dívida é odiosa para a população do Estado como um todo. Esta dívida não é uma responsabilidade para a nação, é uma dívida de regime, dívida pessoal do poder que a contraiu, e, por consequência, anula-se com a queda do poder que a contraiu.” Esta doutrina opõe-se ao princípio de sucessão do Estado, enunciado pela convenção sobre a sucessão dos Estados em matéria de bens, arquivos e de dívidas de Estados, de 1983 (Viena). Para Sack, o governo sucessor pode subtrair-se às obrigações do seu antecessor que lhe incumbiriam normalmente, porque: “[Estas] dívidas não respondem a nenhuma das condições que determinam a regularidade das dívidas do Estado, a saber: os fundos disponibilizados pelas dívidas contraídas pelo Estado devem ser utilizados na satisfação das necessidades e dos interesses do Estado.” A doutrina de Sack procura igualmente responsabilizar os credores. Se estes conhecem as intenções do devedor, cometem então, segundo este autor, “um acto hostil ao povo” e expõem-se eles próprios ao risco de não reembolso. Segundo King, Khalfan e Bryan Thomas, uma dívida é odiosa se ela é simultaneamente caracterizada pelos três critérios seguintes: a) Ausência de consentimento: a dívida foi contraída contra a vontade do povo. b) Ausência de benefícios: os fundos foram gastos de forma contrária aos interesses da população. c) Conhecimento pelos credores das intenções do devedor. Se não se verifica um qualquer destes três critérios então a dívida não é odiosa. Assim acontece quando os créditos são utilizados na construção de hospitais mesmo em ditadura, ou são fundos malbaratados num regime democrático. Porém, se uma dívida é odiosa, é nula e não poderá ser reclamada ao respectivo Estado, quando o regime que a contraiu tenha caído. 1. A existência de precedentes A doutrina da “dívida odiosa” não é oponível aos países credores. Uma doutrina não tem, de facto, força de lei, ela é apenas uma fonte subsidiária do direito. A sua não aplicação explica-se essencialmente por dois factores: a oposição das grandes potências que herdam as “dívidas odiosas”, e o temor de que um repúdio das suas dívidas os isolem da comunidade financeira internacional. É por esta razão que se defende (a plataforma “Dette et Développement”) um reconhecimento desta doutrina por um tratado internacional a que se vinculem os Estados. Contudo, o direito internacional fundamenta-se também noutras fontes (a jurisprudência, o direito consuetudinário, os princípios gerais do direito) que reforçam a doutrina da “dívida odiosa”. Em 1998, o Comité de Desenvolvimento Internacional do Parlamento Britânico evocou explicitamente o carácter odioso da dívida do Ruanda, para defender a sua anulação: “Uma grande

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parte da dívida externa do Ruanda foi contraída por um regime gerador de um genocídio... Defende-se que estes créditos foram utilizados para a compra de armas e que a administração actual, em última instância a população do Ruanda, não deve pagar estas “dívidas odiosas.” Recomendamos ao governo que envide esforços para que todos os credores bilaterais e, em particular a França, anulem a dívida contraída pelo regime anterior”. Em 2003, pensando ter ganho a guerra do Iraque e preocupado em que a nova administração iraquiana não se venha a tornar insolvente, para financiar a reconstrução, os Estados Unidos pediram a anulação da dívida iraquiana, uma vez que uma dívida contraída por um ditador não deveria ser reclamada à população, depois da queda do regime. Tomando consciência do risco (para eles) de criarem um precedente, deixaram, posteriormente, de invocar esta doutrina e obtiveram do Clube de Paris, em Novembro de 2004, a anulação de 80% da dívida, sem referência ao seu carácter odioso. No início de 2005, quando a subida do preço do petróleo colocava a Nigéria numa certa posição de força face aos seus credores, o parlamento da Nigéria pediu ao governo que repudiasse a sua dívida, em grande parte herdada da junta militar5. Obasanjo preferiu negociar com o Clube de Paris, do qual obteve a redução de 60% da dívida nigeriana, em contrapartida de um reembolso antecipado. Mesmo se a prática habitual em matéria de “dívida odiosa” está bem fornecida de exemplos, a imensa maioria dos regimes decidiu honrar as dívidas dos seus governos anteriores, qualquer que tenha sido a sua origem. Para caracterizar esta realidade, conviria estudar se os regimes que assim decidiram o fizeram porque se sentiam legalmente responsabilizados por estas dívidas ou se o fizeram por medo das consequências possíveis de tal repúdio, nomeadamente da sanção dos mercados financeiros. 2. Uma questão em aberto A doutrina da “dívida odiosa” deixa uma questão em aberto: quem deve pagar por uma “dívida odiosa”. Quanto a esta questão, os promotores da doutrina da “dívida odiosa” deixam o campo aberto a duas interpretações possíveis: Ou o contrato é declarado nulo e o peso da dívida recai sobre o credor ou, então, o contrato não vincula o credor ao Estado devedor mas sim ao regime que caiu. Nesta segunda acepção, a que nós preferimos, cabe ao governo que caiu honrar as suas dívidas. Para os credores, públicos ou privados, reclamarem a fortuna acumulada pelo clã Mobutu, que alguns autores já estimam em 6 milhares de milhões de dólares6 ou pelo clã Ferdinand Marcos, que poderá ultrapassar os 20 milhares de milhões de dólares, não seria então um exercício em vão.

5 Segundo informação do jornal Le Monde Diplomatique, de 21 de Fevereiro de 2001: “dos 3 a 4 milhares de milhões de euros desviados pelo ditador Sani Abacha, entre 1993 e a sua morte em 1998, e colocados em 19 bancos suíços, somente 730 milhões foram encontrados e destes foram devolvidos 115 milhões às autoridades de Lagos”. Abacha foi em 2004 considerado pela Transparency International como o quarto líder mais corrupto da história recente. 6 Patricia Adams, Odious Debt, Earthscan, Londres, 1991. O Fundo Monetário Internacional, pelo seu lado, fala em 4 milhares de milhões de dólares. Veja-se igualmente Raghuram Rajan, “Odieuse ou insidieuse?”, Finances et Développement, Dezembro, 2004.

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3. O caso do Congo Para ilustrar a pertinência da doutrina da “dívida odiosa”, não faltam, infelizmente, candidatos. Das juntas militares latino-americanas à Indonésia de Suharto, do apartheid da África do Sul às Filipinas de Marcos, da zona africana de influência francesa à Moldávia, os torcionários do planeta têm em comum o facto de terem legado às suas vítimas uma dívida frequentemente descomunal. Como ilustração desta realidade, utilizemos os dados da Transparency International, publicados no seu relatório de 2004, dedicado completamente à corrupção, que segundo esta organização consiste no “abuso do poder pelos dirigentes políticos para fins pessoais, com a finalidade de aumentarem o seu poder ou a sua riqueza pessoal. A corrupção política não implica obrigatoriamente que o dinheiro passe de mão em mão. Pode inclusive assumir a forma de tráfico de influência. ...A corrupção política é um abuso do sistema político, da confiança e dos princípios de funcionamento das sociedades democráticas.” Continuemos a citar a Transparency International: “O quadro abaixo dá uma ideia da extensão do problema político, na base das estimativas do dinheiro que teria sido “roubado” por alguns dos mais conhecidos dirigentes políticos que exerceram o poder nos últimos vinte anos. Para se ter uma melhor perspectiva destes valores, a coluna da direita indica o PIB per capita de cada país. Os dez primeiros dirigentes da lista não são necessariamente os mais corruptos do período em questão e as estimativas publicadas representam apenas valores por aproximação. Este quadro foi realizado na base de dados provenientes de fontes fiáveis e acessíveis. Geralmente sabe-se muito pouco sobre os montantes que muitos dos dirigentes políticos “desviam”.

Para onde foi o dinheiro? A lista dos dez mais

Chefes de Governo Estimativa dos valores “desviados”

PIB per capita (2001)

1. Mohamed Suharto Presidente da Indonesia, 1967-98 US$ 15 a 35 milhares de milhões US$ 695

2. Ferdinand Marcos Presidente das Filipinas, 1972-86 US$ 5 a 10 milhares de milhões US$ 912

3. Mobutu Sese Seko Presidente do Zaire, 1965-97 US$ 5 milhares de milhões US$ 99

4. Sani Abacha Presidente da Nigéria, 1993-98 US$ 2 a 5 milhares de milhões US$ 319

5. Slobodan Milosevic Presidente da Sérvia/Jugoslávia, 1989-2000 6. Jean

US$ 1 milhar de milhão n/a

-Claude Duvalier -86 US$ 300 a 800 milhões US$ 460

1990-2000 US$ 600 milhões US$ 2.051

a Ucrânia, 1996-97 US$ 114 a 200 milhões US$ 766

água, 1997-2002 US$ 100 milhões US$ 490

ipinas, 1998-2001 US$ 78 a 80 milhões US$ 912

Presidente do Haiti, 19717. Alberto Fujimori Presidente do Peru, 8. Pavlo Lazarenko Primeiro-ministro d9. Arnoldo Alemán Presidente da Nicar10. Joseph Estrada Presidente das Fil

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A dívida de Mobutu A República Democrática do Congo foi um dos quarenta países beneficiados com a iniciativa de “países pobres sobre-endividados” (PPTE) e, desde 2005, beneficiário da iniciativa “Redução da Dívida Multilateral” (IADM). Mas um país só pode beneficiar da iniciativa “Redução da Dívida” se não houver pagamentos em atraso para com o FMI e o Banco Mundial: a primeira tarefa foi pois a de pedirem ao governo do Congo a liquidação dos valores em falta de pagamento. Como este não tinha possibilidades de pagar, os países, entre os quais a França e a Bélgica, assim como o Banco Mundial, emprestaram à RDC o necessário para que ela pudesse reembolsar os valores em atraso e, depois, os credores bilaterais foram reembolsados através de um crédito do FMI à RDC do mesmo montante. Adicionalmente, para se ser elegível no âmbito da iniciativa “Redução da Dívida”, um país deve também aceitar ficar obrigado a um “Plano de Ajustamento Estrutural” (PAS), pelo menos durante três anos. Joseph Kabila decidiu, pois, aceitar abrir economicamente o seu país, o que facilitou evidentemente o acesso das multinacionais aos seus incalculáveis recursos naturais (cobre, coltan, urânio, diamantes, oiro, agricultura, pesca) e aos seus recursos humanos. Em Julho de 2003 atingiu-se a fase de decisão (a etapa intermédia da iniciativa “Redução da Dívida”). Os credores assumiram anular 6,3 milhares de milhões de dólares quando a RDC atingir o final da iniciativa (a fase de conclusão), provavelmente em 2006. Como 78% desta dívida era serviço da dívida relativa a pagamentos em atraso, o serviço da dívida pago pela RDC, relativamente ao que estava em situação de falta de pagamento, será, na verdade, mais elevado depois do que antes da iniciativa “Redução da Dívida”! Num país em que mais de três milhões de pessoas têm sido vítimas da guerra desde há dez anos e 80% da população vive com menos de 0,2 dólares por dia, o reembolso da dívida permanecerá como um peso insuportável, mesmo depois da iniciativa “Redução da Dívida”. Na verdade, a iniciativa “Redução da Dívida” pode interpretar-se, no caso da RDC, como um mero jogo contabilístico que permite sobretudo aos credores passar uma esponja sobre os créditos incobráveis e de eliminar os vestígios de uma dívida que cada um está de acordo em qualificar de odiosa. Deste modo, pode afirmar-se que, apesar de ter alcançado este acordo em Julho, à custa de um “Plano de Ajustamento Estrutural” (PAS), os benefícios para a RDC são incertos: obrigada primeiramente a liquidar os seus encargos da dívida em atraso para com o FMI e o Banco Mundial, Kinshasa foi obrigada a contrair novos empréstimos junto dos países ocidentais, do Banco Mundial e do FMI. Aliás, o serviço da dívida em atraso pago pelo Congo corre o risco de não se reduzir muito face aos valores anteriores a esta iniciativa. 3.1 A história da dívida do Congo Não há dúvida que Patrice Lumumba, o pai da independência do Congo, por não ter sido suficientemente dócil aos olhos das grandes potências, teria que ser eliminado a partir de Janeiro de 1961. Em 1965, um dos instigadores deste assalto ao poder, Joseph-Desiré Mobutu, assume o poder na sequência de um golpe de Estado. No contexto da guerra fria, impõe uma ditadura de terror durante mais de 30 anos, com o apoio dos países Ocidentais. Entre Angola, defendida pelos cubanos, e o Congo-Brazaville marxista dos anos 70, o Congo, baptizado Zaire por Mobutu, representa um aliado estratégico face ao bloco soviético. Os Estados Unidos e os seus aliados coniventes com as práticas despóticas de Mobutu não recuam diante de nenhum obstáculo para manterem no Zaire a sua influência. A ajuda “ao desenvolvimento” e os créditos ao tirano foram enormes e pouco importava o uso que lhes era dado. A dívida do Zaire e a fortuna de Mobutu aumentam consideravelmente e em simultâneo. O valor da dívida passa de 32 a 300 milhões de dólares entre

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1965 e 1970, para perto de 5 milhares de milhões em 1980 e cerca de 13 milhares de milhões em 1998! No princípio dos anos 90, depois da queda do muro de Berlim, Mobutu deixa de ter interesse estratégico para os países ricos. Ele simula então uma democratização do regime, instituindo o multipartidarismo em 1990 e, depois, reúne uma Conferência Nacional Soberana. Abandonado pelos Estados Unidos, pelo Banco Mundial e pelo FMI deixa de dispor de dinheiro suficiente para satisfazer o reembolso da dívida e suspende o seu pagamento. Os juros e as penalizações por incumprimento são capitalizados, aumentando assim o valor da dívida, e começa a agonia do regime. Foi derrubado por Laurent-Desiré Kabila, em Maio de 1997. Assassinado este último, é o seu filho Joseph que o substitui, em Janeiro de 2001. No final de 2003, o valor da dívida externa da RDC atingia o valor de 10,6 milhares de milhões, segundo o FMI. Os créditos são bilaterais, em cerca de dois terços, e o restante é multilateral. De forma mais precisa, a decomposição da dívida é a seguinte:

Credores Stock da dívida

(em milhares de milhões de dólares)

Parte da dívida

P A 2

a

detida Multilaterais 3,7 34,8 %

Banco Mundial 1,6 15,5 % FMI 0,7 6,2 % Banco Africano para o Desenvolvimento 1,1 10,6 %

Outros 0,3 2,5 % Bilaterais 6,5 62,6 %

Clube de Paris 6,2 58,5 % Outros (clube de Kinshasa) 0,3 4,1 %

Privados 0,4 2,6 % TOTAL 10,6 100 %

No que se refere à dívida do Clube de Paris, a repartição entre os Estados é a seguinte:

Créditos bilaterais do Clube de Paris EU

arte da dívida detida pelo Clube de Paris2,6 %

França 17,7 % Japão 16,1 % Itália 11,3 % Bélgica 9,7 % Alemanh 6,5 % Holanda 3,2 % Outros 12,9 % TOTAL 100,0 %

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3.2 Uma “dívida odiosa”

) A ausência de consentimento

dívida da RDC provém, na sua maior parte, do período de Mobutu e dos valores não pagos do

A ausência de benefícios

m conjunto de elementos leva-nos a concluir que a dívida contraída pelo regime não foi em nada

m sistema de corrupção institucionalizado: O primeiro beneficiário dos fundos públicos do Zaire

vestimentos de fachada: Nos anos setenta, quando a subida rápida das cotações do cobre e de

nçado

licando uma dupla situação de

a Aúltimo decénio devido à interrupção de pagamentos. Na época, todas as instituições congolesas estavam sob o controlo de Mobutu. Tendo chegado ao poder com um golpe de Estado, em 1965, elimina rapidamente toda a oposição política em nome “da unidade do país”, não hesitando sequer em mandar executar, em público, os seus principais detractores (os enforcados de Pentecostes, em 1966). Interdita os partidos, suspende o direito de greve, e, para fortalecer um pouco mais o seu poder, cria, em 1967, o partido único. O seu regime despótico é essencialmente fundado na corrupção e no terror. As violações dos direitos humanos são sistemáticas. Mesmo depois de ter autorizado o multipartidarismo, em Abril de 1990, ele elimina imediatamente qualquer esboço de contestação, como o atesta o massacre de estudantes em Lumbumbashi, em Maio do mesmo ano. b) Uproveitosa para a população congolesa. Ufoi o próprio Mobutu. Em 1997, a sua fortuna era estimada em 6 milhares de milhões de dólares, cerca de dois terços da dívida externa, na época. Na realidade a história do seu reinado confunde-se largamente com a da pilhagem dos recursos do Zaire. Ao chegar ao poder e muito rapidamente, sob o pretexto de dotar o país de capital nacional, Mobutu inicia o processo da “zairezição” do património detido pelos investidores estrangeiros, com maior intensidade em 1973. Num contexto de independência, esta reforma foi bastante popular mas os beneficiários foram cuidadosamente escolhidos. Os primeiros a serem servidos foram o próprio Mobutu e a esposa: assim, em 1974, o casal presidencial torna-se o proprietário de um consórcio reagrupando 14 sociedades de criação de gado e de plantações, assim como de empresas agro-industriais. Esta pilhagem foi assim multiforme: nacionalizações, com proveito para o clã Mobutu dos activos detidos pelos investidores estrangeiros, dotações presidenciais (oficialmente 15 a 20% do orçamento corrente do Estado), transferências ilícitas para contas pessoais no estrangeiro, despesas misteriosas (as despesas sumptuárias e a compra de material militar teriam representado cerca de 18% do orçamento de 1989, segundo o Banco Mundial) ou, ainda, o desvio lucrativo das receitas de exportações de minerais (150 a 400 milhões de dólares em rendimentos anuais, segundo o Banco Mundial). Inoutras matérias-primas incitavam a um certo optimismo, Mobutu endivida maciçamente o Zaire. Os grandes países industrializados lançam-se, então, em grandes projectos de investimento que, de forma alguma, correspondem às necessidades da população. Alguns projectos eram fictícios. Nalguns casos, uma vez passada a fronteira, o material era abandonado, por vezes mesmo lapara o fundo do rio Zaire. Por exemplo, as 30 máquinas de tratamento do algodão compradas em 1972 a uma empresa americana, por 7.7 milhões de dólares, pelo Ministério da Agricultura, foram abandonadas, ainda embaladas, nas gares e aeroportos do Zaire. Certas infra-estruturas tiveram um custo exorbitante, impdependência, de funcionamento e de manutenção, como é o caso da Cité de la Voix du Zaire, reagrupando as infra-estruturas da rádio e da televisão públicas, que, após um ano de funcionamento,

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não utilizavam sequer 20 % da sua capacidade, devido ao material inadaptado e à falta de manutenção por falta de dinheiro. Citemos ainda o caso da barragem de Ingra. Enquanto a região mineira do Sahaba dispunha de suficientes recursos energéticos para fazer face às suas próprias necessidades, foi tomada a decisão, contra toda a lógica económica, de se fazer uma linha eléctrica de 1900 quilómetros de comprimento, ligando a central hidroeléctrica de Ingra à região do Sahaba. Na época, este projecto tinha como ambição construir a linha de alta tensão mais comprida do mundo. Com esta linha, o governo podia controlar a alimentação energética desta região e com este facto podia contrariar as tensões de secessão do ex-Katanga, que de resto já tinha tido algumas veleidades neste sentido. O custo final desta barragem foi calculado em 850 milhões de dólares, sem contar com os juros e os encargos financeiros, ou seja, um quinto da dívida externa do Congo na época. Mobutu ter-se-ia largamente aproveitado deste projecto, embolsando 7% do valor total. Em contrapartida, o custo suportado pela população é brutal, para um tão baixo contributo para a melhoria do seu quotidiano: a maior parte das terras por onde passa a linha de alta tensão não têm energia eléctrica e, em 2004, 6 das 14 turbinas estavam em condições de funcionamento. Os frequentes cortes de energia que daí decorrem deterioram numerosos aparelhos eléctricos, como é o caso, por exemplo, dos aparelhos dos 250 mil lares de Kinshasa que apenas teoricamente têm corrente eléctrica. Um outro exemplo financiado pela dívida externa: a siderurgia de Maluku que importa de Itália a

m país arruinado: Rico em inúmeros recursos naturais e humanos, a RDC está hoje entre os

) Os credores sabiam

uando o Banco Central do Zaire era sujeito a fortes punções pelos dirigentes no poder, o FMI

ras palavras, desde 1979, os principais fornecedores de fundos do regime, muito ligados

sucata, ao dobro do preço da matéria-prima que serve para a fabricação do aço, tem uma produção completamente desadaptada do mercado local. Hoje, as ferramentas utilizadas pelos camponeses do Congo, que deveriam ser provenientes de Maluku, são importados do Brasil. Upaíses de mais baixo índice de desenvolvimento humano, segundo o PNUD. Trinta anos de ditadura, seguidos de duas guerras, arruinaram o país e condenaram a grande maioria da população à miséria. O rendimento nacional bruto per capita não ultrapassa 0,25 dólares por dia, enquanto, em 1965, o nível de desenvolvimento do Zaire equivalia ao da Coreia do Sul. c Qdecidiu, em 1978, aí colocar um dos seus representantes, Erwin Blumenthal, antigo membro da Direcção do Bundesbank. Em Julho de 1979, este decidiu deixar precipitadamente o seu lugar, na sequência de ameaças de morte a que tinha sido sujeito pelos generais de Mobutu e, em particular, por M. Eluki, chefe da guarda pessoal do ditador. Blumenthal redigiu um relatório descrevendo as práticas mafiosas da “burguesia político-comercial zairense”. Tornado público em 1982, este relatório denunciava “a corrupção erigida em sistema, característico do Zaire”, indicando mesmo o nome de certas empresas estrangeiras ligadas à pilhagem do Zaire e avisava já a comunidade internacional que “haveria novas promessas de Mobutu e dos membros do seu governo para reescalonariam ainda e ainda mais uma dívida externa sempre a crescer, mas nenhuma perspectiva seria oferecida aos credores do Zaire para recuperarem num futuro previsível o dinheiro que tinham investido”. Dito por outao FMI, tinham conhecimento das práticas fraudulentas e dos riscos que corriam ao continuarem a conceder empréstimos ao regime. A dívida ascendia então a 5 milhares de milhões de dólares. Nos anos 80, o FMI, o Banco Mundial, os Estados Unidos, a Inglaterra e a França continuaram conscientemente a emprestar dinheiro a um regime insolvente, concedendo ao regime Mobutu ainda mais 8.5 milhares de milhões de dólares em empréstimos suplementares. Alguns encontraram aí

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benefícios pessoais ou partidários, e o dinheiro emprestado era frequentemente repatriado directamente para as contas pessoais do clã Mobutu e dos seus amigos. Segundo Jean Ziegler, o sistema das luvas de que beneficiou Mobutu necessitava de “uma engenharia financeira que nenhum país do Sul e que nenhum dos seus governos poderia dispor”. E conclui que “sem a assistência técnica das potências financeiras ocidentais (bancos, intermediários financeiros), o sistema não poderia funcionar”. O presidente do Tribunal de Contas do Congo, em 2004, é ainda mais claro: “pensa-se que 30% da dívida externa do Congo foi canalizada para a corrupção. …Quem a embolsou? Os fornecedores de fundos e os beneficiários dos créditos”.

707 de Mobutu a ser desmantelado

Excertos de:

frican Forum and Network on Debt and Development (AFRODAD) “The Illegitimacy of External

ibling, Elongo et Vandendaelen, “Et si le Congo-Zaïre refusait de payer sa dette?”, Document de

illet, Damien, “République démocratique du Congo: La dette de Mobutu”, Document de travail de

lataforma Dette & Développement, Rapport 2005-2006.

ransparency International, Global Corruption Report 2004, Março de 2004 (actualizado em Press Release de 22 de Abril de 2005).

ADebt: The Case of the Democratic Republic of Congo, Final Report”, 2005 Dtravail de (CADTM), apresentado num seminário internacional em Kinshasa, Abril de 2004 M(CADTM), Julho de 2004 P T

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