Upload
vodang
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“NEGRA SOU”: IDENTIDADE COMO FORMA DE EXISTIR NAS
INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO
Érika Costa1
Luciana de Oliveira Dias2
Resumo: De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, o processo de aprendizagem inclui
práticas que vão além da execução de disciplinas obrigatórias. As práticas pedagógicas envolvem
também a relação, e interação, entre professoras/es e estudantes. Uma conjuntura como essa
colabora com a construção de subjetividades e de identidades dos/as estudantes. No Brasil é
desafiador acessar, ou consolidar, uma educação anti-racista e anti-machista, que inclua questões de
gênero e de raça. A população negra brasileira, em especial as mulheres negras, encontra uma
barreira consideravelmente mais alta, já que a precariedade com que essas questões são inseridas na
educação impacta em sua própria existência nos espaços educativos. A partir dessa premissa,
buscamos compreender algumas trajetórias identitárias de estudantes negras (faixa etária de 20 a 29
anos) da Universidade Federal de Goiás, por meio da produção de narrativas. O objetivo foi analisar
como as relações e interações sociais no campo da educação formal interferem na afirmação de suas
identidades raciais e de gênero. O exercício analítico permitiu compreender uma trajetória
identitária que fora empreendida pelas estudantes negras, de acordo com suas vivências narradas,
que abrange o período que vai da escola à universidade. Foram evidenciados indicativos de
possibilidade de ressignificação das identidades, o que por sua vez é vivenciado por elas como uma
valorização das diferenças que marcam a própria existência.
Palavras-chave: Identidades. Gênero. Raça. Resignificação.
O presente estudo apresenta os resultados de uma pesquisa3 feita anteriormente na qual
analisamos os processos identitários de jovens universitárias negras na Universidade Federal de
Goiás - UFG. Nosso intuito foi analisar as trajetórias identitárias das estudantes, buscando entender
como as identidades de mulheres negras são construídas. Conseguimos enfatizar esse processo por
meio de dois momentos significativos: a infância no espaço escolar, e, a juventude e o tempo
presente na universidade. Nosso objetivo esteve centrado na analise de como as instituições de
ensino podem interferir nos processos identitários de jovens mulheres negras, cujas vivências são
marcadas pelo racismo e pelo machismo.
Utilizamos como recurso metodológico a entrevista que contou com um roteiro semi-
estruturado. Realizamos entrevistas com cinco mulheres negras, na faixa etária de 20 (vinte) a 29
(vinte e nove) anos de idade. Essas jovens encontravam-se em distintos cursos de graduação e em
1 Mestranda em Sociologia pela Universidade de Brasília, Brasil. 2 Professora Adjunta da Educação Intercultural e do Mestrado Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade
Federal de Goiás, coordenadora do Coletivo Rosa Parks: Estudos e Pesquisas sobre Raça, Etnia, Gênero, Sexualidade e
Interseccionalidades, Goiânia, Brasil. 3 A pesquisa é fruto do Trabalho Final de Curso da graduação em Ciências Sociais bacharelado com habilitação em
Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás, com orientação de Drª. Luciana de Oliveira Dias.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
diferentes etapas da formação graduada. Nas entrevistas elas revelaram diferentes dimensões de
suas identidades, todavia tendo como eixos o pertencimento racial e de gênero.
O presente artigo está dividido em duas partes. Na primeira parte são discutidas algumas
questões sobre colonialidade e as questões identitárias para mulheres negras no Brasil. Discutimos
também sobre como o processo histórico de dominação colonial deixou marcas específicas que
impactam a vida da população negra, sobretudo das mulheres negras. Na segunda parte,
apresentamos as vozes das estudantes que falam de suas trajetórias. Todo esse material discursivo é
cotejado com esforços interpretativos nossos. Uma constatação que merece destaque é a percepção
do cabelo como elemento que fora bastante realçado nas narrativas das estudantes e que expressam
potência consolidadora das identidades daquelas estudantes.
Concluímos, após o desenvolvimento do estudo, que as identidades das estudantes,
anteriormente crianças e agora mulheres, são resignificadas de acordo com os diferentes espaços
que foram por elas acessados. Essa consideração final nos habilitar afirmar que tanto a escola,
quanto a universidade exercem importante papel na constituição das identidades das mulheres
negras no Brasil. Desta forma, são espaços que precisam ser repensados e inseridos em perspectivas
anti-racistas e anti-machistas, se o objetivo é a construção de um mundo livre de preconceitos e
discriminações de raça ou de gênero.
Aspectos da colonialidade e as identidades
O Brasil foi um dos países que tem como traço da história a colonização e a escravidão,
esses dois eixos históricos perpassam a expressão cultural e a identidade nacional brasileira, o que
também nos define como um dos países pertencentes da diáspora negra4.
Desde os primórdios da instauração da colonização e escravização as configurações culturais
dos povos indígenas e africanos foram reduzidas ao exótico e o mítico. O etnocentrismo da relação
entre colonizadores e colonizados/as criou a ordem eurocêntrica de valorização da cultura européia
e a desvalorização dos sistemas culturais dos povos indígenas e africanos.
Embora a colonização não seja mais um modelo para a administração política, econômica e
cultural no Brasil, os resquícios históricos ainda fazem-se presentes na contemporaneidade, não
apenas na apresentação de padrões eurocêntricos acerca das subjetividades e identidades, mas como
4 A partir da ideia de “Atlântico negro”, Paul Gilroy (2001) define diáspora negra a dispersão de grupos culturais do
continente africano pelas demais regiões do mundo. No Brasil a diáspora ocorre por meio da colonização europeia aqui
instaurada.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
sistemas de racionalização que trazem caracteres do passado colonial reconfigurados na
modernidade, denominado de colonialidade do poder (QUIJANO, 2005).
A colonialidade apresenta-se nas mais variadas esferas sociais, para as mulheres negras e
indígenas configura-se também nas relações sociais de gênero, que María Lugones(2014) define
como colonialidade de gênero (LUGONES, 2014). Os desdobramentos históricos por essa
perspectiva engendraram o apagamento histórico das mulheres negras e indígenas na formação da
cultura nacional. Como pontua Sueli Carneiro (2003, p.49), a violência cometida pelos
colonizadores – homens brancos – contra as mulheres negras e indígenas trouxe consequências para
a identidade nacional ao arquitetar o mito da democracia racial e as hierarquias de gênero e raça.
Essas consequências se desdobram nas relações sociais cotidianas e outros processos, como
a socialização. Um exemplo é o modo de socialização de martinicanos/as negros/as encontrados/as
na análise psiquiátrica desenvolvida por Frantz Fanon (2008), concretizada por um arranjo de
inferioridade as identidades dos/as negros/as martinicanos/as eram constituídas em relação ao
“homem branco”, que por sua vez era o modelo a ser seguido. Toda essa conjuntura evidencia o
quanto as subjetividades e identidades em contextos de desigualdade racial é assinalada por essa
relação de alteridade na qual o homem branco figura como modelo.
Segundo Kathryn Woodward (2012, p.13) as construções das identidades5 se constituem a
partir do “outro”. É na relação estabelecida com o “outro” que as identidades são produzidas, sendo
sublinhada pela diferença que se torna materializada pelos sistemas de representações.
Os sistemas de representação são importantes, pois são eles que informam aos sujeitos as
possibilidades de elementos para a constituição identitária. Ao optarem por um determinado
elemento simbólico, o sujeito exclui outras possibilidades. A colonialidade do poder institui
representações hegemônicas, os sujeitos que optam por elementos contrários a essa lógica
constroem assim a diferença. Além da escolha de elementos, a corporalidade do sujeito assinala
também uma diferença, quando esse corpo não está em conformidade com os padrões hegemônicos
também se constitui como diferente.
De acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2012) a escola integra um dos meios de transmitir as
representações sociais, nesse espaço crianças e adolescentes passam a conviver e interagir com a
5 As identidades, a partir da definição de Stuart Hall (2014), não são fixas e/ou estáveis, mas plurais. Para esse
estudioso, as identidades são móveis, podendo ser contraditórias e fragmentadas. Elas não são formas unificadas, fixas e
imutáveis, mas sim processos contínuos, passíveis de mudança constante, o sujeito conforme vai sendo interpelado, vai
produzindo – posicionando – identidades.
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
diferença, assim a questão do “outro” torna-se uma complicação na pedagogia do currículo, não
podemos negligenciar essa questão, onde o “outro” é sempre o diferente, de acordo com ele:
É um problema pedagógico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens, em uma
sociedade atravessada pela diferença, forçosamente interagem com o outro no próprio
espaço da escola, mas também porque a questão do outro e da diferença não podem deixar
de ser matéria de preocupação pedagógica e curricular. (SILVA, 2012, p.97)
Para as mulheres negras as construções das identidades e subjetividades estão relacionadas
às dinâmicas de uma sociedade em que as reminiscências do colonial se faz presente, e que
opressões de gênero, raça, sexualidade e classe se entrecruzam, marcando a experiência social das
mulheres negras desde a infância a idade adulta.
Da escola à universidade: o que pensam, percebem e dizem as universitárias negras da UFG
Foram realizadas entrevistas6 com cinco estudantes negras de diferentes cursos de graduação
da UFG. Cada uma das entrevistadas teve o seu nome preservado para assegurar-lhes o anonimato.
Para cada uma delas foi conferido um codinome gerado a partir do sentimento que nós sentimos no
momento da entrevista. Partindo do pressuposto de que Maria é um nome muito comum no Brasil e
que é exclusivamente dado às mulheres, fizemos a opção por chamá-las Marias, conjugando com
aquele sentimento despertado durante a entrevista.
A escola é compreendida como um espaço que promove uma segunda etapa da socialização
(BERGER e BERGER, 1975, p.213). A fase escolar é marcada pelas descobertas do mundo, das
palavras e números, da natureza e da história. É um momento importante na vida de qualquer
criança. Na maioria das vezes o momento escolar deveria ser alegre e empolgante, com abertura
para as descobertas, porém para as estudantes negras esse ambiente é lembrado por algumas
violências, ao falarem da escola, foram unânimes em relatar as situações de racismo vivenciadas.
Assim se lembram da escola:
Maria Afeição: Daí rolava alguns apelidinhos bem maldosos né, e racistas na verdade, tipo
cabelo ruim, beiço de casabe, e por aí vai.
Maria Fortaleza: Cantavam aquela música, como é que é: “cabelo duro de...” Como é que é
(fazendo gesto de relembrar, cantando): “nega de cabelo duro que não gosta de pentear,
passa na porta do clube o negão começa a gritar pega ela pega ela pra quê, passa batom
que cor...” Então assim essa era uma das músicas que eu mais ouvia na escola.
6 Na referida instituição existe um espaço destinado aos/as estudantes cotistas (negros, indígenas, quilombolas), é um
espaço para estudo e realização de monitorias acadêmicas, intitulado “Espaço de Convivência”. Foi por meio desse
espaço que entramos em contato com as estudantes e realizamos as entrevistas. Devido à multiplicidade de estudantes
que frequenta o espaço, as escolhas das entrevistadas foram aleatórias. Das cinco estudantes entrevistadas, três são
pertencentes de comunidades quilombolas da região norte do Estado de Goiás, e duas são migrantes da região Norte e
Nordeste do Brasil.
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Maria Alegria: Já tive muito apelido. “Botijão”, “Joana doida”, por causa do cabelo, são
esses dois apelidos que eu lembro que eles me chamavam muito.
Maria da Paz: Fátima era branca, ela (silêncio) era loira né. E uma vez, não sei qual o
objetivo da professora, ela foi falar sobre negro, e ela falou que uma amizade como a minha
e a da Fátima não poderia acontecer no passado, porque ela seria uma fidalga e eu a escrava
dela né (silêncio).
Para as estudantes negras a escola constituiu um espaço inapto para lidar com a diferença,
como o cabelo, a cor da pele, a boca, a estrutura corporal conferiu àquelas meninas negras durante
sua infância a vivência de situações racistas manifestadas pelos colegas de classe ou pela
professora.
O despreparo, e insensibilidade para as interações raciais, da professora colaboraram com
uma fala que inferioriza a estudante. A escola também colabora com a perpetuação de um racismo
institucional, por exemplo, quando conta a história dos negros apenas relembrando a escravidão. As
crianças negras recebem uma representação negativa e estereotipada, que colabora para a
internalização da inferioridade. Eliane Cavalleiro (2013) afirma que a escola é um lugar em que a
construção da identidade racial da criança negra é construída, mas ao mesmo tempo acentua o
caráter da inferioridade para crianças negras, forçando por vezes no embraquecimento expresso no
corpo ou atitude a serem aceitas pelos/as colegas e professores/as (CAVALLEIRO, 2013, p.287).
As manifestações de racismo perverso vivenciado pelas estudantes e a verbalização negativa
das características físicas relembra o estudo do sociólogo Oracy Nogueira (2006) que afirma que no
Brasil o preconceito é de “marca”, é estético, são as características das estudantes que são
manifestadas de forma negativa pelo viés do racismo (NOGUEIRA, 2006).
Do ponto de vista antropológico, cada sociedade possui modos de manipular o corpo. Neste
sentido, o corpo é um “instrumento” do ser humano, que manipula esse corpo por meio das
“técnicas corporais” (MAUSS, 1974, p.217-218). Essa assertiva possibilita compreender o corpo
como ferramenta em que pode expressar a cultura e a materialização das identidades. É por meio do
corpo que o sujeito se apresenta ao mundo, ao outro. É por meio da utilização de elementos no
corpo que o sujeito vai exteriorizar seus traços identitários.
Os padrões estéticos e corporais que tem prevalecido na sociedade brasileira são altamente
eurocêntricos. Para as mulheres negras essa norma consolida uma contradição em relação à estética
negra e ao modo que elas podem exprimir através da corporalidade sua identidade. As estudantes
negras que foram entrevistadas, informam o seguinte acercada estética corporal no período da
adolescência:
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Maria da Paz: Porque a sociedade que é branca de pele escura, ela tem o cabelo crespo.
Mas para a sociedade é cabelo ruim. Você vai lá, minha tia era cabeleireira, você vai lá,
você faz a escova. Eu ia, eu morava na mesma rua dela, eu morava numa esquina e ela na
outra. Aí eu ia pra lá, passava o dia inteirinho no sábado né. O dia que passava Raul Gil.
Escovando o meu cabelo, pra eu sair na rua e o povo falar: “nossa o cabelo dela era uma
bucha” (silêncio).
Maria Afeição: Aos onze anos minha tia começou a alisar meu cabelo. E eu não sabia qual
era. Eu não sabia como era o meu cabelo.
Maria Amizade: Eu tinha um problema com o meu cabelo. Eu acho que eu comecei alisar
eu tinha uns treze. Não, primeiro eu fiz um alisamento com treze anos, aí eu não gostei. Aí,
mas mesmo assim quando você faz o primeiro alisamento fica uma coisa muito estranha né.
Aí você fica “eu não vou querer meu cabelo feio” “mas também eu num vou querer
alisado” “ai meu Deus o que é que eu vou fazer?”.
Maria Fortaleza: Aí onde eu trabalhava as pessoas não aceitavam queriam que eu tirasse as
tranças sabe e eu: “não tiro, porque eu gosto assim e se quiser me mandar embora que
mande.” Mas não me mandaram ainda bem (risos) então assim. E na minha cidade todo
mundo, quando eu falei, eu tentei assumir o cabelo há quase dez anos atrás, e eu não pude
assumir por causa do serviço, sabe. Todo dia eles falavam assim: “que juba é essa!” “Tá
parecendo aqueles, é peru de trem pra cima.” Sabe tanta coisa: “que nada para com isso,
seu cabelo não é isso.” Então assim era muito complicado, muito complicado mesmo, mas
já passou, porque agora eu me assumi, não estou nem aí para o resto (risos).
Maria Alegria: Quando eu comecei a alisar meu cabelo eu tinha doze anos de idade, minha
mãe que alisou né. [...] Aí foi à vida toda com o cabelo alisado.
A depreciação da corporalidade das crianças negras pode gerar na adolescente a adequação
dos padrões hegemônicos, passando pelo processo de alisamento do cabelo, ou seja, o processo de
embranquecer, aproximar-se da brancura. As narrativas das estudantes traduzem esse processo ao:
ver a contradição em estar com o cabelo alisado, mas ainda assim o cabelo é desqualificado, não
conhecer a própria textura do cabelo, considerar o cabelo como um problema.
Embranquecer constitui uma violência para as mulheres negras, um genocídio estético. A
negação dos seus traços físicos numa tentativa de aceitação, pois a identidade é relacional, é
necessário o olhar do outro para confirmar o reconhecimento das afirmações identitárias. As vozes
das estudantes negras evidenciam a negação do reconhecimento identitário via dupla, quando busca
aproximar do padrão hegemônico ou quando busca afirmar a identidade racial através do uso do
cabelo trançado, como nos afirmou Maria Fortaleza.
Stuart Hall (2014) afirma que a construção das identidades são processos contínuos, o que
significa que é possível alterar as identidades ao decorrer da vida, o processo de construção de
identidades não se esgota. É possível que as adolescentes negras possam alterar as afirmações
identitárias. Acerca da ruptura com a prática de alisamento, nossas interlocutoras afirmam:
Maria da Paz: Começou bem antes né, esse processo assim de, de enegrecer-se, né. Porque,
foi assim, meu cabelo. Meu cabelo não era só o meu cabelo, era meu o cabelo, era o cabelo
da minha tia, que era cabelereira, e era o cabelo da minha mãe. Eu estava cansada disso
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
sabe, por que: “a não cuida do cabelo, não hidrata” E as três ali. As duas brigando sobre o
meu cabelo. Era um cabelo grande assim, alisado, minha tia alisava, fazia progressiva.
Então era um cabelo crespo alisado, mas muito bem tratado. Só que aí eu já estava cansada
de gente mandando até no meu cabelo, eu estava cansada de ser mandada. [...] E aí eu
peguei e fui cortando cabelo, sem ninguém perceber, cortando, cortando. Porque assim,
acho que, eu imagino que no caso da mulher negra, a questão é uma estética. Porque são
anos, são anos né de construções, assim de construções que dizem que ela é feia, que é uma
estética feia, de que né. Só aparece no Carnaval, só serve para ser usada, questões assim.
Então pra mim o que começou foi pelo meu cabelo, aí eu fui cortando, cortando, e ninguém
percebia, fui cortando, cortando né.
Maria Afeição: E daí a gente estava assistindo novela, eu e minha tia tínhamos o hábito de
assistir juntas. Ela chegava do cursinho e eu chegava da escola e daí a gente ia assistir e
ficar discutindo. E na época estava passando uma novela, que eu não lembro o nome e que
a Sheron Menezes era uma das atrizes principais, e Sheron é fantástica, né! E aí minha tia
sempre enchia o meu saco né: “Maria da Paz para de alisar esse cabelo, isso é ridículo,
assumi suas raízes, olha essa moça que linda, ela é maravilhosa, seu cabelo vai ficar igual
o dela e não sei o quê.” E eu nem dava moral pra minha tia. Aí eu peguei e pensei assim:
“a cara, eu vou deixar esse cabelo crescer”! Aí um dia eu não lembro como, o contexto ao
certo, mas eu tinha vergonha de usar o cabelo, natural. Eu tinha vergonha daquela raiz alta,
e o resto do cabelo alisado. [...] A transição é muito sofrível. Aí um dia eu acordei, só falei
assim: “tia eu tô indo ali.” [...] Aí eu fui no salão, pedi pra a cabelereira tirar tudo de
alisado, tudo, tudo, tudo! E daí eu olhei no espelho aquilo não me agradou muito. Mas eu
falei assim: “a cara já está assim eu vou ver como é esse cabelo natural”.
Maria Amizade: Quando eu lavei assim, ficou bem liso e eu comecei a chorar e falando pra
mãe que “estava ruim, que eu não queria daquele jeito, que eu não queria o cabelo liso
estava ruim” (risos). Ela olhou pra mim começou a rir e falou: “você quer que eu te dê
dinheiro pra você fazer lá de novo?” Aí depois dessa vez nunca mais eu fiz, eu parei e tá
assim saindo aos poucos meu cabelo.
Maria Fortaleza: Minha mãe é negra, e meu pai parece índio [...] ele sempre falava: “eu
acho lindo, eu acho lindo!” Aí eu fui no mês de Maio do ano passado pra minha cidade e
eu pensando assim: “eu só vou cortar em Julho pra voltar pra sala e ninguém perceber,
nem reparar muito.” Eu fui passar um fim de semana, fomos no rio lá e aí eu molhei o
cabelo, no meio da família. O cabelo ficou metade lisa e metade crespa, as duas texturas,
natural crespa, aí meu pai virou pra mim assim: “chegando em casa nos vamos cortar o
cabelo!” [...] Aí chegou em casa ele falou: “pega lá a tesoura!” Ele nunca tinha cortado
cabelo, ele falou assim: “senta aqui, vamos cortar esse cabelo, é seu sonho vamos realizar
ele logo.” Gente ele começou assim, ele pegava onde que tinha cabelo liso, o cabelo
amaciado ele cortava, meu cabelo ficou curtinho, eu falei: “ pai eu não estou preparada
não!” E ele falou: “está linda! Tira foto aqui, tira foto!”
Maria Alegria: Eu participei de roda de conversa do Encrespa Geral. Aí que eu fui me
assumindo mais, eu vi que aquela não era a minha realidade, que o cabelo alisado não é
(silêncio) não era eu.
A ruptura com o processo de alisamento ocorre por diversos motivos nas narrativas é
possível constatar: o cansaço quanto às técnicas de cuidado com o cabelo e autonomia em relação
ao corpo, a identificação com a atriz da novela, a insatisfação com o resultado do tratamento
capilar, o incentivo familiar para o uso do cabelo natural e as rodas de conversa sobre o cabelo
crespo. Tais motivos configuraram possibilidades para as estudantes negras negociarem novas
formas de cuidado e manipulação dos cabelos, assumindo a forma natural, como também: adquirir
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
uma nova concepção de estética, conhecer a si mesma, realização de um desejo e a vivenciar a
verdadeira realidade do cabelo, como de si mesma. Todos esses elementos estão relacionados às
subjetividades e identidades afirmadas pelas estudantes.
Acreditando que conforme o sujeito é interpelado vai produzindo identidades (HALL,
2014), perguntamos às estudantes qual a percepção de identidade elas tinham anteriormente a fase
presente. De acordo com suas respostas, elas não tinham uma percepção das suas identidades,
principalmente com relação à questão racial. Podemos notar nos excertos abaixo:
Maria da Paz: [...] Não tinha identidade, assim estava num processo de formação, assim
assumir minha identidade como? Minha identidade como negra e tal?[...] Não, não tinha
não, uma vez eu estava voltando da escola aí eu perguntei pra minha mãe de que cor eu era,
me falou um monte de nome, “mulata”, falou mais “não sei o quê”, “mestiça”. Falou mais
“não sei o quê”, mas negro não, entendeu?
Maria Afeição: [...] mas eu não tinha consciência de que eu era negra, porque eu não sabia
que eu era negra, tipo eu não me via. Como eu nunca tinha olhado meu corpo e olhado o
corpo das outras crianças.
Maria Amizade: Eu não tinha muita noção disso. Eu fui criando isso depois que eu já estava
bem, depois que eu já tinha mais uma noção das coisas. Que aí eu via que eu, eu não tinha
muita convivência com as pessoas, como eu nasci e fui criada na fazenda, então eu não via
pessoas que eram diferentes. Só quando vinha alguém para fazenda, ou quando eu
deslocava pra ir à cidade.
Maria Fortaleza: Então assim era muito complicado, eu não tinha alguém pra me espelhar
né. Minha mãe tinha que usar o cabelo liso, tinha que está ali colocando um aplique pra ela
também se identificar. Tanto que ela tá entrando no processo de transição agora depois que
eu entrei, então assim nem ela tinha uma identidade e acaba que isso também passa pros
filhos. Então assim a gente está fazendo uma identidade reversa né, eu pra depois ela
entender.
Maria Alegria: Não, eu não pensava nessas coisas, pra mim eu sempre tive o pensamento
que todo mundo era igual. Nunca tive essa opção de caracterizar, eu sou preta eu sou
branca. Na minha família nunca teve isso, entendeu.
Para as estudantes negras a auto-imagem de si mesmas enquanto pessoas negras não era algo
totalmente evidenciado. No âmbito familiar havia o silêncio sobre a questão racial, a falta de
percepção da corporalidade e representatividade e a convivência apenas com pessoas semelhantes
destacam como obstáculos para a consolidação da identidade racial das estudantes.
Eliane Cavalleiro (2013, p.38) afirma que existe no interior das famílias negras um
despreparo relativo às questões raciais e o racismo na sociedade brasileira. Assim sendo, as crianças
negras são socializadas desconhecendo o pertencimento racial. Para Erving Goffman (1988, p.42)
sujeitos estigmatizados por vezes são socializados dentro da “cápsula protetora”, desconhecendo
por completo o estigma que ele carrega. As narrativas das estudantes revelam esse caráter de
silenciamento e uma proteção sobre a questão racial no seio familiar. Ressaltamos que tantos as
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
estudantes negras que cresceram na comunidade quilombolas quanto as do interior do norte e
nordeste experimentaram situações similares quanto a percepção da auto-imagem acerca do
pertencimento racial.
As trajetórias de vida das estudantes negras demonstram as dificuldades que as mulheres
negras encontram no decorrer da vida para identificar-se, para afirmar-se enquanto mulher negra.
Para a antropóloga brasileira Lélia Gonzalez: “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha
dentre outras coisas, mas tornar-se negra é uma conquista.” (GONZALEZ apud SOUZA, 2013).
Perguntamos às estudantes qual o momento de percepção acerca da auto-imagem como mulheres
negras e elas narram esse momento, sobremaneira, por meio do processo de transição capilar:
Maria Afeição: Então quando eu olhei no espelho, e vi aquela parte alisada e a outra com a
raiz enorme, eu falei assim: “quem é essa pessoa que está aí?” Olhei no espelho tentei ver
quem era a pessoa, e falei assim: “cara essa pessoa não sei quem é. Eu tenho que saber
quem eu sou.” E daí foi a partir do momento, aí partir desse momento que eu me preparei.
E no dia seguinte cortei o cabelo. E comecei a usar, comecei, comecei a me sentir mais
bonita. E vindo pra Goiânia, e quando eu me inseri. Quando eu me aproximei do
movimento negro, aí a situação ficou melhor ainda, porque a minha estima era um pouco
baixa. Aí depois de eu aprender a me olhar no espelho, de conhecer várias pessoas, várias
mulheres lindas, de começar a ler autoras, e ver mais mulheres bonitas negras, e que a
mulher negra, tem mulheres bonitas, assim como feias, assim como em qualquer outro
padrão étnico, e daí eu: “cara é isso, eu sou isso!” Desde então eu não aliso meu cabelo,
não escovo, por opção.
Maria Amizade: No Faz Arte e eu tinha muito contato com a UFG também, porque como
eu ia pro Faz Arte e era aqui né, eu sempre estava aqui na UFG. Sempre vinha aqui, sempre
olhava eu via “nossa que cabelo lindo”. “O meu é desse jeito, porque o meu não está
assim?”.
Maria Fortaleza: [...] Pra falar a verdade depois que eu assumi o meu cabelo todas as
minhas relações com amigos, com colegas melhoraram. Sabe, eu li um texto uma vez que
falava assim “que parece que tudo fluiu depois que cortou aquilo que não era dela”. Uma
mulher relatando e parece que ela (pausa) tudo fluiu: vida emocional, vida profissional,
tudo. E eu senti isso. Parece que depois que eu cortei o meu cabelo, e que eu assumi quem
eu sou. Que eu me conheci. Me encontrei. Quem eu sou. Quem eu quero ser, sabe. Que eu
nunca vou ser serei igual a ninguém. Que eu não pareço com ninguém. Que nós somos
pessoas únicas (silêncio). Depois disso pra mim foi sensacional! Mudou, o meu
relacionamento dentro da faculdade. As pessoas têm alguns que olham tipo assim (fazendo
gesto de olhar estranho). Gente não tem nenhuma mulher com black power dentro da
faculdade. As que tiveram não eram brasileiras, era caboverdiana, era de Guiné. Eu sou a
primeira brasileira que assume o cabelo crespo dentro da Faculdade de Odontologia na
UFG.
Essa nova postura adotada pelas estudantes negras pode sofrer a interferência dos espaços
educacionais em que elas transitavam durante esse processo. Assim o espaço da militância, do
cursinho preparatório e o Encrespa Geral, constituíram lugares onde foi possível um
empoderamento e afirmação de suas identidades negras. Também podemos desprender aqui a
relação de se “reconhecer” no outro, e esse reconhecer é realizado através do outro. A partir do
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
momento em que as estudantes negras passam afirmar enquanto mulheres negras suas
corporalidades se comunicam com outras mulheres negras. Seus corpos se convertem em corpos
que inspiram outras pessoas negras.
Considerações finais
A antropóloga e ex-ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos
Nilma Lino Gomes (2006, p.26) afirma que para mulheres negras e homens negros o corpo e o
cabelo são símbolos que significam e representam a negritude, sendo assim, o corpo e o cabelo
podem ser compreendidos como “a síntese do complexo e fragmentado processo de construção da
identidade negra”.
As narrativas das estudantes negras expressam a afirmativa de Nilma Lino Gomes (2006), o
cabelo foi elemento e símbolo que em primeira instância foi acionado na operação do racismo
institucional por meio da escola. Quando adolescentes as estudantes relataram a complexa relação
com o cabelo ao passo de realizarem o alisamento capilar. Em diferentes espaços as estudantes
negras puderam ressignificar as identidades: como a universidade, o cursinho preparatório e a
militância, proporcionaram as estudantes transformar as suas afirmações identitárias por meio do
processo de transição capilar.
As trajetórias das cinco estudantes negras relembra o poema musicado da compositora,
coreografa e desenhista Vitória Santa Cruz, “Gritaram-me negra7”: em que a mulher negra
inicialmente nega a sua condição, mas que aos poucos vai ressignificando o próprio pertencimento e
vai afirmando positivamente um ser, ao ponto de em algum momento gritar fortemente e de maneira
positivada: “Negra Sou!”.
Referências
BERGER, Peter; BERGER, Brigitte. Socialização: como ser um membro da sociedade. In:
FORRACCHI, Marialice Mencarini, MARTINS, José de Souza (orgs). Sociologia e sociedade. Rio
de Janeiro: LTC, 1978, p. 200-214.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir
de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Tanako,
2003.p.49-58.
7 UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA. Me gritaram negra, poema de Victoria Santa Cruz. Disponível em:
<http://feminismo.org.br/me-gritaram-negra-poema-de-victoria-santa-cruz/> Acesso: 28 jun. 2016.
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CAVALLEIRO, Eliane. Veredas das noites sem fim: socialização e pertencimento racial em
gerações sucessivas de famílias negras. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFA, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro: Editora
34/UCAM Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
GOFFMANN, Erving. Estigma e Identidade Social. In: ______.Estigma: Notas sobre a
Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª Ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 11-50.
GOMES, Nilma, Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo
Horizonte: Editora Autêntica. 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas. Florianópolis. v.22,
n.3.set/dez 2014. p.935-952.
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU. 1974. p.
209-233.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e Preconceito racial de origem. Tempo Social.
São Paulo. v.19. n.1. nov 2006. p.287-308.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina In: LANDER,
Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
Latinoamericanas. Bueno Aires: CLASCO, 2005.p.117-142.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e
Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 12. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2012.p.73-102.
SOUZA, Fernanda. Tornar-se uma mulher negra: uma identidade em processo. Disponível em: <
http://blogueirasnegras.org/2013/07/29/tornar-se-uma-mulher-negra/> Acesso em: 24 jun. 2017.
WOOWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Trad. Tomaz
Tadeu da Silva. 12.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.p.7-72.
“Yes, blak woman I am”: identity as way of existing in the educational institutions
Astract: According to the National Curricular Parameters, the learning process includes practices
that go beyond the execution of compulsory subjects. Pedagogical practices also involve the
relationship and interaction between teachers and students. Such a situation contributes to the
students' subjectivities and identities construction. In Brazil it is challenging to access or
consolidate an anti-racist and anti-chauvinism education which covers gender and race issues. The
Brazilian black population, especially black women find a considerably higher barrier, since the
precariousness with which these issues are inserted in the education impacts on their own existence
in the educational spaces. Based on this premise, we sought to understand some identitarian
trajectories of black students (age group 20 to 29 years) from the Federal University of Goiás,
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
through the production of narratives. The aim was to analyze how social relations and interactions
in the formal education's field interfere in the affirmation of their racial and gender identities. The
analytical exercise allowed us to understand an identity trajectory that had been undertaken by the
black students, according to their narrated experiences, which covers the period from school to
university. Indications of possibility re-signification of identities were evidenced, which in turn is
experienced by them as a valuation of the differences that mark the existence itself.
Keywords: Identities. Gender. Race. Resignification.