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1
nekropolis
por roberto alvim – 2008
2
I
(Luz abre em 1)
1.
lindo
o olho molhando
dos de nós até chorar
lindo
lindo
no depois
6 baqui todos daqui
correr do estacionamento
6 por nós a ESTIRPE
caralhando a merda toda nas estripadas de eles
11 corpses no delivery
a alma saindo pelo cu e boca das orelhas
escorre
cor de vermelho lama oleando
escorre e pinta a cara dos corpses o que a terra funda talhou
nariz esfrangando pele papel molhado pero o cu da boca ainda soltando peido
peido alto do cu da boca dos corpses que só os de nós ouvia até hoje
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA eles peidava no silêncio
que só de ouvir dá vontade de peidar também + de outro peido
que sai do cu da boca de nós cum mud de caralhar caralhar caralhar a merda toda
peido forte que faz os eles tremer + jumpar + desmamar desfazer intêro na frente de nós
ESTIRPE
ESTIRPE
EEEEEEESTIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIRPEEEE
no mais de agora é só
(Escuridão)
3
II
(Luz abre em 2)
2.
se fosse de o todo nós falava
de o porque nenhumas coisa são
pero do que o eles necessita no agora de saber
vou talkar no modo fast
6 baquis da ESTIRPE
cedo ainda no reino de apolo
quando o breu chegou os de nós correu no mud
pá na mão picareta + enxada
pra desenterrá os corpses e fazê o delivery
delivery de corpses os de nós na carreta com as entrega
na Ágora amada de nós
quem não existiu em vida
agora na morte tem sua imagem
quem em vida sem voz morreu
agora na morte pode parlá ao seu jeitinho
MOSCA E PELE VERDE É A LÍNGUA DOS CORPSES
os corpses grita e goza e peida na mudez da morte
o que não gritou gozou peidou no antes
assim falou a ESTIRPE
(Escuridão)
4
III
(Luz abre em 3)
3.
de tudo o que de nós fez de tudo o que de nós viu + verá no depois agora
cada peido que sai do cu da boca é só vestígio
que os corpses é como semente
em tumor no útero do eles se transforma
tubérculo na porra da mãe terra
e cresce + se espalha
na epidemia do câncer novo diferente sem cura
que mata
e mata
e mata
só pra matar o eles mais uma vez
e mais uma vez
uma vez +
pra sempre
(Escuridão)
5
IV
(Luz abre em JUÍZA e 4)
JUÍZA.
Sente-se por favor
Sente-se por favor
Sente-se por favor
4.
os de nós já talkar no antes de tudo o que o eles necessita anssim de saber
JUÍZA.
Sente-se por favor
Note-se que o réu recusa-se a sentar
___________________
(Luz abre em JUÍZA e 5)
JUÍZA.
Por favor informe a este tribunal os seus dados pessoais
Por favor informe a este tribunal o seu nome
Idade
Ocupação
Função na célula terrorista
Note-se que a ré recusa-se a responder
___________________
(Luz abre em JUÍZA e 6)
JUÍZA.
Você fala a nossa língua?
Você fala a nossa língua?
6.
Sim
6
JUÍZA.
Você fala a nossa língua?
6.
Sim
Sim eu falo
JUÍZA.
Sente-se por favor
(6 se senta)
Levante-se por favor
(6 se levanta)
Obrigada por cooperar com este tribunal
6.
Eu quero um julgamento político
JUÍZA.
Por favor forneça os seus dados pessoais
6.
Eu não aceito que nossas ações sejam qualificadas como atos criminais
JUÍZA.
Nome
6.
Não há criminosos aqui
JUÍZA.
Idade
6.
Foi um ato político
JUÍZA.
Ocupação
6.
Nós exigimos um julgamento político
7
JUÍZA.
Função na célula terrorista
6.
Porca
JUÍZA.
Sente-se por favor
6.
Porca
JUÍZA.
Note-se que a ré recusa-se a sentar
6.
Porca
PORCA
POOOORCAAAA
JUÍZA.
Que conste nos autos do processo que este tribunal foi incapaz de confirmar os dados
pessoais dos acusados
(Luz apenas na JUÍZA, que acende um cigarro)
As informações oriundas da investigação criminal apontam para uma série de –
inconsistências – relativas à identidade dos terroristas
(Luz abre no rosto de 1)
Indivíduo do sexo masculino
Negro
Idade presumida: 30 anos
Origem desconhecida
Ocupação indefinida
Sem registro civil
(Luz abre no rosto de 2)
Indivíduo do sexo feminino
Negra
Idade presumida: 23 anos
Origem desconhecida
Ocupação indefinida
Sem registro civil
8
(Luz abre no rosto de 3)
Indivíduo do sexo masculino
Pardo
Idade presumida: 25 anos
Origem desconhecida
Ocupação indefinida
Sem registro civil
(Luz abre no rosto de 4)
Indivíduo do sexo masculino
Branco
Idade presumida: 28 anos
Origem desconhecida
Ocupação indefinida
Sem registro civil
(Luz abre no rosto de 5)
Indivíduo do sexo feminino
Parda
Idade presumida: 30 anos
Origem desconhecida
Ocupação indefinida
Sem registro civil
(Luz abre no rosto de 6)
Ana Maria Garcia
(Luz sai do rosto dos outros, permanecendo apenas no rosto de 6)
Ana Maria Garcia
Branca
33 anos
Professora voluntária da ONG Cimento Social
Antes de ser presa, lecionava alfabetização para adultos em comunidades na periferia da
cidade
(JUÍZA traga seu cigarro)
E tem até RG
(Escuridão)
9
V
(Aplausos. JOANA fala em um microfone)
JOANA.
Jovens bacharéis de direito, formandos de 2003 da Pontifícia Universidade Católica – foi
com grande orgulho que aceitei a honrosa função de paraninfa desta turma. Como deve ser
do conhecimento de todos, chamo-me Joana Motta de Abreu, doutora em Direito
Internacional, professora emérita desta casa e atual Secretária de Educação do Estado.
Formei-me em Sociologia na Sorbonne em 1968, e tive a honra de dividir os bancos
universitários com nosso estimado ex-presidente da República.
(Aplausos)
Ao lado de colegas como ele, lutamos, minha geração, contra a ditadura militar, lutamos e
sofremos juntos durante um período negro de nossa história; sofremos diante do
autoritarismo, mas perseveramos e por fim vencemos, conseguindo estabelecer, à custa de
sangue, suor e lágrimas, a democracia em nosso país.
(Aplausos)
Os últimos 8 anos de governo foram tempos de imensos, fundamentais e, diria eu,
irreversíveis progressos na consolidação de uma nação soberana: a conquista de uma
economia estável, a aprovação irrestrita da comunidade internacional, 8 anos de avanços
inexoráveis rumo ao fim das desigualdades sociais neste continente chamado Brasil.
(Aplausos)
E agora, depois do processo de transição mais maduro que já presenciamos, vemos um
sonho, talvez o maior de nossa geração, se realizar: a chegada do povo ao poder.
Com nosso estimado companheiro, também ele, de tantas lutas, um operário se torna
presidente em nosso país, consagrando de modo inequívoco o processo democrático.
Saímos fortalecidos, a América Latina sai fortalecida. Portanto, é com grande alegria que
afirmo a vocês, estimados novos bacharéis: nestas terras de além-mar, neste ano de 2003,
somos todos privilegiados; usufruam, jovens formandos, deste novo Brasil!
A esperança venceu o medo!
(Aplausos frenéticos; luz cai sobre JOANA)
10
VI
(Luz abre em PROMOTORA e Sr. BATISTA, este sentado)
BATISTA.
Justiça
Quero justiça
Saber o que vai acontecer com esses
Que penduraram o corpo da minha mulher num poste
PROMOTORA.
Sr. Batista, há quanto tempo a Sra. Josenilde de Souza trabalhava na referida empresa?
BATISTA.
20
Quase 20
Era costureira
Lá gostavam do trabalho dela lá
PROMOTORA.
Em algum momento nestes quase 20 anos sua esposa pensou em protestar por melhores
condições de trabalho?
BATISTA.
Nunca não
Não
PROMOTORA.
O Sr. tem filhos?
BATISTA.
3 tenho
PROMOTORA.
Como o Sr. e a Sra. Josenilde criaram estas crianças?
BATISTA.
Muita
Muita
Muita dificuldade a luta
Hoje tão aí
Criados
Trabalhando
Procurando trabalho
11
PROMOTORA.
Como o Sr. tomou conhecimento que o cadáver da Sra. Josenilde de Souza, sua esposa,
mãe de seus 3 filhos, havia sido desenterrado e exposto em frente à referida empresa na
qual ela havia trabalhado por quase 20 anos?
BATISTA.
Pessoal da reportagem
Tão atrás de mim
Até hoje
PROMOTORA.
O Sr. está vivendo no inferno até hoje. O que acha disso?
BATISTA.
O que eu vou achar?
Minha casa desabou perdi tudo minha mulher morreu eu tô morando numa escola vem a
TV me leva mostra o corpo da Josenilde dependurado num poste o que eu vou achar acho
um
Mãe de família
Filhos da puta
Saber se fosse a mãe de vocês
Saber se vocês não tivessem mais nada
Perdido tudo sem emprego sem lugar pra morar
E aí
PROMOTORA.
O Sr. está desempregado.
BATISTA.
Patrão disse que depois do acontecido não dá mais
Trabalhar lá 15 anos naquela padaria
PROMOTORA.
Em algum momento a organização terrorista autodenominada ESTIRPE perguntou ao Sr. se
poderia expor o corpo em decomposição de sua esposa? Uma carta, um telegrama,
telefonema?
BATISTA.
Nem sabia que isso existia
PROMOTORA.
O Sr. viu neste ato algum proveito para ela ou para o Sr.?
BATISTA.
Não
12
PROMOTORA.
O Sr. ...
BATISTA.
A IMAGEM DA JOSENILDE MORTA EM JORNAL REVISTA PROGRAMA DE TV
PROMOTORA.
O Sr. acredita que a ação com o cadáver de sua esposa foi perpetrada em nome de uma
causa maior?
BATISTA.
Não
Não
Que causa?
PROMOTORA.
Sem mais perguntas, Meritíssima.
(Escuridão)
13
VII
(Luz abre lentamente no cadáver de Josenilde, pendurado num poste. A morta está em
rigor cadavérico. Os 6 membros da ESTIRPE observam a morta. Escuridão, lentamente)
14
VIII
(Luz abre em DEFENSOR e Sr. BATISTA, este sentado)
DEFENSOR.
Sr. Batista, o Sr. poderia nos dizer qual era o salário mensal da Sra. Josenilde de Souza, sua
esposa, na referida empresa em que ela trabalhou por quase 20 anos?
BATISTA.
500
DEFENSOR.
E eram bonitos os vestidos que ela confeccionava?
BATISTA.
Lindo tudo
Era costureira
Lá gostavam do trabalho dela lá
DEFENSOR.
Sr. Batista, alguma vez ao longo de todo este tempo a Sra. Josenilde adquiriu algum dos
vestidos confeccionados por ela mesma?
BATISTA.
Vestido era três quatro cinco mil
Jeito nenhum
Mais até ela dizia
DEFENSOR.
Onde o Sr. e sua esposa moravam?
BATISTA.
Boa Esperança
DEFENSOR.
Onde?
BATISTA.
Favela comunidade
Boa Esperança
DEFENSOR.
E o Sr. poderia descrever para nós as condições de vida no local?
15
BATISTA.
Andar 20 minuto até a condução rua sem asfalto necessidade é na fossa desculpe
Sem luz quase 2 hora pra Josenilde até a firma quando voltava era noite alta
Chove e desce tudo o morro
Esgoto alagava até o joelho de fossa céu aberto aí as criança
Perigoso muito
Gente rato
DEFENSOR.
O Sr., sua esposa, sua família, eram felizes morando lá?
BATISTA.
É o que dava pra pagar
DEFENSOR.
Por que não se mudavam?
BATISTA.
É O QUE DAVA PRA PAGAR
DEFENSOR.
Sr. Batista, como sua esposa veio a falecer?
BATISTA.
Soterrada
DEFENSOR.
Em que circunstâncias?
BATISTA.
Morro desceu desabou
Que chovia muito
DEFENSOR.
Deslizamento de terra.
BATISTA.
Isso morreu
DEFENSOR.
Esses deslizamentos eram comuns na comunidade de Boa Esperança?
BATISTA.
Antes já tinha morrido outros
DEFENSOR.
Quantas vezes a Prefeitura foi chamada para resolver o problema?
16
BATISTA.
20 30 100
DEFENSOR.
Quantas vezes os técnicos da municipalidade estiveram no local?
BATISTA.
Nenhuma
DEFENSOR.
A referida empresa na qual a Sra. Josenilde trabalhou como costureira durante quase 20
anos por 500 por mês auxiliou de alguma forma a sua família após o acidente que vitimou
sua esposa?
BATISTA.
Não
DEFENSOR.
Ajuda financeira, um telegrama, flores no enterro?
BATISTA.
...
DEFENSOR.
Sr. Batista, o Sr. conhece a Sra. Ana Maria Garcia?
BATISTA.
Sim
DEFENSOR.
O Sr. acredita que a Sra. Ana Maria Garcia seria capaz de fazer algum mal ao Sr. ou à Sra.
Josenilde?
BATISTA.
Não
Não não
Dona Ana era professora nossa
Professora da minha mulher
Professora de ler escrever
DEFENSOR.
Mas ela faz parte da suposta organização terrorista conhecida como ESTIRPE, o Sr. não
sabia?
(Silêncio)
17
BATISTA.
Não entendo
Eu não entendo
DEFENSOR.
Sem mais perguntas.
(Escuridão)
18
IX
(Luz abre em 4)
4.
os de nós
6 HOJE PERO MUITO MAIS NO DEPOIS
os de nós
7 VEZES 7 LEGIÃO MULTIDÃODENÓS NO TEMPO DO AMANHÃ
os de nós
não vingança não destroyer mas pra salvar SALVAR
os de nós
que a ESTIRPE não é bando de gente
que a ESTIRPE é um cu
cagapeida de volta o que no antes o eles enfiou no goela abaixo
dos de nós
os de nós
os de nós
(Escuridão)
19
X
(Luz abre em JOANA e ANA MARIA)
JOANA.
O que significa isso tudo?
(Silêncio)
JOANA.
Onde vocês querem chegar?
ANA MARIA.
Não aí.
JOANA.
Quê?
ANA MARIA.
Aí. Onde você está. Aí não.
JOANA.
E onde eu estou?
ANA MARIA.
No poder.
Não é?
(Silêncio)
JOANA.
Também já fui como você.
ANA MARIA.
E acreditava na luta armada.
JOANA.
Sim.
ANA MARIA.
E abandonou sua família.
JOANA.
Foi preciso.
ANA MARIA.
E trocou de nome. Clandestinidade, exílio.
20
(Silêncio)
JOANA.
As coisas mudaram.
ANA MARIA.
Secretária de Educação.
JOANA.
O País mudou.
ANA MARIA.
A troca de um Estado autoritário por um Estado ausente.
(Silêncio)
JOANA.
Você não faz idéia, idéia nenhuma. O período militar. Não poder ir ao enterro dos seus
amigos. Viver fugindo, com medo da própria sombra. Tortura, assassinatos. Isso pra que
você, PRA QUE A SUA GERAÇÃO PUDESSE VIVER NUM MUNDO LIVRE.
ANA MARIA.
500 mortos durante a ditadura.
JOANA.
Quê?
ANA MARIA.
288 no registro oficial. Somando desaparecidos, os casos encobertos, com uma margem
larga de erro: 500 mortos pela ditadura militar.
JOANA.
Acha pouco?
500 VIDAS?
ANA MARIA.
4.000 assassinatos por semestre nos grandes centros urbanos, hoje. Dezenas de milhares de
assassinatos por ano em nosso mundo livre: tiroteios, assaltos, negligência médica, doenças
por falta de saneamento, balas perdidas. 70% dos casos não são nem investigados. Medo?
Isso é pânico. Perseguição? Isso é exílio dentro do próprio país. Tortura? Isso é tortura
como forma de vida.
(Silêncio)
JOANA.
O sujeito da revolução é o povo.
21
Para que o processo revolucionário se consolide, é preciso apoio popular,
e isso vocês não têm.
ANA MARIA.
Vocês não tinham o apoio do povo durante a luta contra a ditadura militar.
O povo delatava vocês.
Porque eles tinham medo.
Medo dos militares.
E hoje eles também têm medo.
Medo da exclusão absoluta.
JOANA.
PELO AMOR DE DEUS, NOSSO PRESIDENTE É UM TORNEIRO MECÂNICO! Se
isso não significa que as coisas estão mudando...
ANA MARIA.
Quantas vidas enquanto isso?
JOANA.
Aos poucos, como em qualquer processo democrático, as mudanças...
ANA MARIA.
QUANTAS VIDAS PERDIDAS ENQUANTO ISSO?
JOANA.
COMO EM QUALQUER PROCESSO DEMOCRÁTICO...
ANA MARIA.
QUANTO TEMPO MAIS NÓS VAMOS TER QUE ESPERAR?
(Silêncio)
JOANA.
Aos poucos... As mudanças, a democracia. O exercício do poder...
ANA MARIA.
5 anos? 6? Mais 8? 10 anos? 20?
Quantas vidas? Quanto tempo?
30? 40 anos? Mais 50? 60?
(Silêncio)
ANA MARIA.
60 segundos.
(Luz sai de JOANA, ficando apenas em ANA MARIA)
22
XI
(Luz permanece apenas em ANA MARIA)
ANA MARIA.
60 SEGUNDOS
(Luz abre tênue no palco. Na penumbra, vê-se os outros 5 membros da ESTIRPE; eles
cantam lentamente e caminham lentamente com sacos pretos para dentro da cena. Tiram
três pequenos corpos (bonecos) de dentro dos sacos e os colocam cuidadosamente no
palco. Enquanto realizam estas ações, Ana Maria marca o tempo com sua voz)
ANA MARIA.
40
30 segundos
20
15
10
9
8
7
6 segundos
3
2
1
(Eles param, observando o trabalho concluído. Tempo imóvel, em silêncio. Escuridão)
23
XII
(Luz abre em REPÓRTER 1, que fala ao microfone)
REPÓRTER 1.
Foram encontrados esta manhã 3 cadáveres na área de fitness de um dos maiores parques da
cidade. Os cadáveres
(Luz abre em REPÓRTER 2, que fala ao microfone)
REPÓRTER 2.
3 cadáveres na área de fitness de um dos maiores parques
(Luz abre em REPÓRTER 3, que fala ao microfone)
REPÓRTER 3.
encontrados esta manhã na área de fitness de um dos mais freqüentados parques de nossa
cidade. Os 3 cadáveres
REPÓRTER 1.
corpos de crianças
REPÓRTER 2.
crianças
REPÓRTER 3.
corpos de crianças com idades que variam aparentemente entre 4 e 10 anos
REPÓRTER 2.
o menor dos 3
REPÓRTER 1.
aproximadamente 4 anos de idade
REPÓRTER 3.
o maior de uma criança de 10
REPÓRTER 2.
falecida aos 10 anos, em avançado estágio de decomposição
REPÓRTER 3.
putrefação
REPÓRTER 1.
em avançado estágio, foram dispostos
24
(Luz abre no primeiro boneco)
REPÓRTER 3.
na barra de flexões
(Luz abre no segundo boneco)
REPÓRTER 2.
na prancha de abdominais
(Luz abre no terceiro boneco)
REPÓRTER 1.
na pista de corrida.
REPÓRTER 3.
A polícia ainda não sabe como os cadáveres foram parar no local, a identidade das crianças
mortas, quem as colocou no parque e qual o objetivo deste ato monstruoso
REPÓRTER 1.
insano
REPÓRTER 2.
hediondo
REPÓRTERES 1, 2, 3.
que chocou profundamente a sociedade.
(Luz sai dos REPÓRTERES 1, 2 e 3, mas permanece nos bonecos)
25
XIII
(Luz abre em PROMOTORA, JUÍZA, DEFENSOR e PEDRO)
PROMOTORA.
Pedro.
É um nome bonito. Muito significativo.
São crianças como você que formam a base de nossa sociedade.
Posso te chamar de Pedrinho?
PEDRO.
Pode.
PROMOTORA.
Eu vou fazer algumas perguntas e gostaria que você respondesse. Acha que pode fazer
isso?
(PEDRO assente com a cabeça)
PROMOTORA.
Ótimo. É um menino corajoso.
Quantos anos você tem?
PEDRO.
10.
PROMOTORA.
10 anos, a idade do meu filho. Pedrinho, o que você mais gosta de fazer?
PEDRO.
Faltar na escola.
PROMOTORA.
E por que?
PEDRO.
Pra jogar videogame.
(Pausa)
PROMOTORA.
Pode contar para nós o que aconteceu naquela manhã no parque onde você e sua mãe
passeavam?
PEDRO.
Tinha um corpo onde meu pai corre. Um pendurado, com uma cara feia. O outro tava sem
braço.
26
PROMOTORA.
Eles estavam...
PEDRO.
Mortos. Crianças mortas.
PROMOTORA.
Você já tinha visto crianças mortas antes daquele dia?
PEDRO.
Já.
(Pausa)
PROMOTORA.
Onde?
PEDRO.
No jogo.
PROMOTORA.
Não é a mesma coisa, Pedrinho.
PEDRO.
Pra mim é.
PROMOTORA.
Só que não é a mesma coisa.
PEDRO.
É parecido.
(Pausa)
PROMOTORA.
Seus pais informaram a este tribunal que você não tem ido à escola depois do incidente no
parque, isso é verdade?
PEDRO.
Eu fiquei com medo.
PROMOTORA.
Com medo. E por que? Pode nos dizer?
PEDRO.
27
Lá na escola também tem brinquedo, pista de corrida. Fiquei com medo de ver os mortos
outra vez.
PROMOTORA.
Qual é o nome do seu melhor amiguinho?
PEDRO.
Lucas.
PROMOTORA.
Você imaginou o Lucas morto lá, foi isso?
PEDRO.
O Lucas, não. O Marquinhos. O Marquinhos morto lá. Eu imagino.
PROMOTORA.
E por que o Marquinhos e não o Lucas?
PEDRO.
O Lucas é fraco. O Marquinhos me bate às vezes.
(Pausa)
PROMOTORA.
Em sua imaginação infantil, quem teria colocado os corpos das crianças no parque?
PEDRO.
Brucie.
PROMOTORA.
Quem?
PEDRO.
BRUCIE! O viciado em esteróides. Do jogo, porra! Ele é inimigo.
(Pausa)
PROMOTORA.
E o que acontece se o Brucie ganha o jogo?
PEDRO.
Ele mata a gente. Mata todo mundo. Transforma todo mundo em zumbi.
PROMOTORA.
Sem mais perguntas, Meritíssima.
___________________
28
DEFENSOR.
Pedro.
Pode contar para nós qual é o game de que você mais gosta?
PEDRO.
GRAND THEFT AUTO IV.
DEFENSOR.
E quantas horas por dia você costuma jogar?
PEDRO.
6 10 14 horas. Fiquei em terceiro no Campeonato Estadual.
DEFENSOR.
Seus pais permitem que você jogue por tanto tempo?
PEDRO.
Eles deixam.
DEFENSOR.
Por que?
PEDRO.
Me acalma.
(Pausa)
DEFENSOR.
Como é o jogo, pode contar um pouco?
PEDRO.
Claro.
Desenvolvido pela Rockstar North, engenharia RAGE, o hype dos gráficos e da
jogabilidade superou de longe o Resident Evil e até o Counter Stryke. De 1 a 16 jogadores,
pra completar uma missão são 50 horas de jogo. Pra Playstation 3 ou Xbox 360. Você é
Niko Bellic, NIKO BELLIC!, imigrante do Leste Europeu que foge da sua terra em busca
de uma vida melhor – e agora tá aqui, na CIDADE DA LIBERDADE! Pode matar,
seqüestrar, estuprar, roubar, vender pessoas, espancar à vontade. Atropelar carrinho de bebê
vale 1.000 pontos.
DEFENSOR.
Você mata crianças no jogo?
PEDRO.
Criança, velho, puta. Todo mundo, qualquer um.
29
DEFENSOR.
Quando você viu as crianças mortas no parque...
PEDRO.
Tive medo.
DEFENSOR.
E por que?
PEDRO.
TIVE MEDO, JÁ DISSE!
(Pausa)
DEFENSOR.
Medo dos mortos?
PEDRO.
EU TAVA SEM MINHA ARMA!
DEFENSOR.
Se estivesse com sua arma, o que você faria?
PEDRO.
Ia atirar nelas. Na cabeça.
DEFENSOR.
Na cabeça?
PEDRO.
É onde vale mais pontos.
(Pausa)
DEFENSOR.
Você não está indo à escola.
PEDRO.
Minha mãe tá deixando eu ficar em casa. Tô traumatizado, ela disse.
DEFENSOR.
E o que você faz em casa?
PEDRO.
Jogo.
30
DEFENSOR.
GRAND THEFT AUTO IV?
PEDRO.
GRAND THEFT AUTO V. Tem que matar as pessoas do mal.
DEFENSOR.
Quem explica a você a diferença entre o bem e o mal?
PEDRO.
Minha mãe.
DEFENSOR.
E quem lhe dá os jogos?
PEDRO.
Minha mãe.
(Silêncio)
DEFENSOR.
Sem mais perguntas.
Meritíssima?
JUÍZA.
Obrigado por sua colaboração.
(A criança aponta uma arma imaginária para a JUÍZA)
JUÍZA.
Pode se retirar agora.
(A criança aponta a arma imaginária para a platéia)
JUÍZA.
Por favor, conduzam o menino para fora do Tribunal.
(A criança aponta a arma imaginária para a própria cabeça e sorri. Luz se apaga
lentamente sobre Pedro, que permanece imóvel, sorrindo com a arma imaginária voltada
para a própria cabeça. Luz abre em 5, permanecendo no DEFENSOR, na JUÍZA e na
PROMOTORA)
5.
de o porque fez o que fez os que de nós no aquiagora vos parla
o eles vão um dia perguntar por necessário
que até o hoje não teve nunca o eles um perguntar de + precisão
e se isso não enxerga é cegosurdocambada
31
DEFENSOR.
O que “chocou profundamente a sociedade”, nas palavras da mídia impressa e televisiva,
foi o fato dos corpos terem sido expostos num parque público cuja freqüência é
basicamente composta pelas classes abastadas em seus momentos de lazer.
5.
por que?, o eles pergunta
DEFENSOR.
Mas o fato que é realmente relevante diz respeito à identidade das crianças mortas e às
circunstâncias de suas mortes.
5.
POR QUE?
DEFENSOR.
Uma das crianças, a mais nova, morreu por disparo de arma de fogo de origem não-
identificada durante operação policial na comunidade onde residia.
5.
perguntar no aquiagora o eles nem devia porque resposta no aquiagora é tarde demais pra
se dar tarde demais pros baqui daqui tarde demaisdemaisazarpiorpior pro eles de lá
DEFENSOR.
A outra vítima, a menina de 6 anos, faleceu devido a erro médico em circunstâncias nunca
esclarecidas numa unidade de saúde pública; o garoto de 10 anos foi encontrado num
depósito de lixo, morto por overdose de crack.
5.
QUE OS DE NÓS NÃO TEM EXPLICAÇÃO
DEFENSOR.
Não foi aberta investigação criminal para apontar quem depositou o corpo do menino ainda
agonizante no lixão referido.
5.
os de nós só sabe o que sabe
PROMOTORA.
Protesto.
5.
E O QUE NÓS FEZ E FAZ É TUDO O QUE OS DE NÓS É
32
PROMOTORA.
Não há relação entre os fatos discriminados pela Defensoria e o crime de violação e
exposição de cadáveres em julgamento aqui.
5.
o eles não pode entender
DEFENSOR.
3 crianças.
5.
entender nãonão pode o eles não
PROMOTORA.
Protesto, Meritíssima.
5.
QUE É COMO OS CORPSES: QUEM ENTENDE?, QUEM PODE?
DEFENSOR.
Bala perdida, erro médico, overdose de drogas.
5.
se o eles entender o que os de nós é se pudesse entender
o eles não seria eles
seria ESTIRPE
JUÍZA.
Protesto aceito.
5.
seria nós
(Escuridão)
33
XIV
(Luz sobre o Ombudsman, que fala para uma câmera)
OMBUDSMAN.
Violência, violência, violência.
Bombardeados por todos os lados, estamos expostos à barbárie como rotina.
Sangue. Morte. Destruição. E agora,
como se já não tivéssemos o bastante disso tudo,
um grupo de desocupados começa a agir com estardalhaço:
em lugar de trabalharem pela construção de um PAÍS MELHOR, dedicam seu tempo a
DESENTERRAR CADÁVERES,
violentando as famílias dos mortos e degradando a todos nós, testemunhas inocentes.
NADA
justifica o horror destes atos.
O que nós, a sociedade, queremos, é um julgamento rápido, exemplar. Que o Ministério
Público se manifeste prontamente e erradique esse cancro de nosso convívio.
Porque é de PAZ
que estamos falando aqui.
Paz para viver, paz para trabalhar.
Esse o nosso pedido, esse
o nosso apelo:
Nós
– o povo brasileiro –
nós
queremos PAZ.
(Escuridão)
34
XV
(Luz, lentamente. Vê-se a imagem de 11 cadáveres, em rigor mortis, dispostos de maneira
a desenhar uma cena que remete à A ESCOLA DE ATENAS (1510-1511), quadro do pintor
renascentista Raffaelo Sanzio, com Platão e Aristóteles discutindo ao centro e tendo à
volta seus discípulos. Na pintura, caminham por uma sala ampla, símbolo talvez da
vastidão da civilização grega. Platão aponta para o alto; Aristóteles indica, com a palma
da mão voltada para baixo, a terra. Escuridão, lentamente)
35
XVI
(Luz sobre a PROMOTORA, que fala à JUÍZA – talvez ainda com a imagem dos mortos
visível ao fundo)
PROMOTORA.
11 corpos, encontrados na manhã do dia 7 de setembro do corrente, um domingo, no
estacionamento de um dos maiores shoppings da cidade. Em diferentes estágios de
decomposição, os 11 cadáveres foram meticulosamente dispostos durante a noite, numa
ação planejada friamente e executada com requintes de sadismo, visando causar nas
incautas testemunhas nada mais, nada menos, que o horror em sua máxima extensão.
JUÍZA.
Com o poder a mim conferido por este Estado Democrático de Direito, solicito que os réus
sejam conduzidos à presença deste tribunal.
(Luz: o tribunal. Os 6 membros da ESTIRPE encontram-se sentados em cadeiras para eles
designadas, vigiados por guardas armados. Ou então, como numa procissão, são
conduzidos (algemados) por estes guardas às referidas cadeiras. Luz abre sobre o
DEFENSOR)
DEFENSOR.
A Defesa gostaria de convocar – Lázaro e Judite – Gomes Freire.
JUÍZA.
Que entrem as testemunhas.
(Luz abre sobre um casal de idosos: LÁZARO e JUDITE)
DEFENSOR.
Sr. Lázaro. Sra. Judite.
(LÁZARO faz um cumprimento, acenando com a cabeça)
JUDITE.
Boa noite a todos.
(Pausa)
DEFENSOR.
Formam um belo casal. Um lindo casal, se me permitem.
LÁZARO.
Obrigado.
JUDITE.
Muito obrigada.
36
DEFENSOR.
Se me permitem – há quanto tempo estão juntos?
JUDITE.
Casados. Há 52 anos.
DEFENSOR.
52?
LÁZARO.
52 anos.
JUDITE.
Casados.
DEFENSOR.
Feito raro hoje em dia.
JUDITE.
Com certeza.
DEFENSOR.
Digno de aplausos.
JUDITE.
Com certeza.
DEFENSOR.
Têm filhos?
LÁZARO.
Não.
(Silêncio)
LÁZARO.
Não.
DEFENSOR.
Sr. Lázaro...
LÁZARO.
Sim?
37
DEFENSOR.
O senhor é aposentado?
LÁZARO.
Isso. 25 anos, trabalhei por 25 anos nas Forças Aéreas Brasileiras.
DEFENSOR.
Piloto?
LÁZARO.
Piloto, sim. Na FAB. Com muito orgulho.
DEFENSOR.
Os senhores poderiam dizer a este tribunal quem é – Ulisses Gomes Freire?
(Silêncio)
JUDITE.
Sim.
(Pausa)
Sim...
(Pausa)
É nosso filho.
DEFENSOR.
Mas disseram antes que...
LÁZARO.
Está morto.
JUDITE.
Desaparecido...
LÁZARO.
Há mais de 30 anos. Morto.
(Pausa)
DEFENSOR.
E poderiam informar a este tribunal as circunstâncias de sua morte?
JUDITE.
Está desaparecido...
38
DEFENSOR.
Ulisses Gomes Freire. Desaparecido em 22 de outubro de 1972, após uma passeata de
protesto contra a ditadura militar. Está correto?
JUDITE.
Meu filho era um estudante.
DEFENSOR.
Fontes abalizadas confirmam o envolvimento de Ulisses Gomes Freire, seu filho, então
estudante de medicina...
JUDITE.
Sim...
DEFENSOR.
...com organizações revolucionárias durante o regime militar.
LÁZARO.
Era um inocente útil.
JUDITE.
Lázaro...
DEFENSOR.
As mesmas fontes atestam sua prisão, devido a uma denúncia anônima, assim como sua
permanência no DOPS durante os meses seguintes, onde foi torturado...
JUDITE.
Ele só tinha 20 anos.
DEFENSOR.
...e morto pelo regime.
LÁZARO.
Estúpido.
(Pausa)
DEFENSOR.
Como disse, Sr. Lázaro?
LÁZARO.
Um estúpido.
Moleque estúpido.
39
JUDITE.
Só 20 anos...
LÁZARO.
ESTÚPIDO!
PROMOTORA.
Protesto, Meritíssima.
JUÍZA.
Protesto aceito. Onde o senhor pretende chegar?
(Silêncio)
DEFENSOR.
O que os senhores estavam fazendo na manhã do dia 7 de setembro no referido shopping-
center?
JUDITE.
Tínhamos ido almoçar.
DEFENSOR.
Com que freqüência os senhores vão ao shopping?
JUDITE.
Quase todo dia. Fica bem pertinho do condomínio.
DEFENSOR.
Almoçam quase todos os dias nos restaurantes do shopping?
LÁZARO.
A mulher tá velha, cansada. Algum crime nisso?
DEFENSOR.
Nenhum.
JUDITE.
Aproveitar a vida enquanto ainda dá tempo. As coisas estão melhores pra gente agora.
Depois da indenização.
DEFENSOR.
Indenização?
LÁZARO.
Mulher...
40
DEFENSOR.
Sr. Lázaro?
LÁZARO.
(Para a PROMOTORA) VOCÊS DISSERAM QUE NÃO IAM TRATAR DISSO AQUI!
DEFENSOR.
A senhora se refere à indenização de 500 mil paga à sua família pelo Estado devido à
prisão, tortura e morte de Ulisses Gomes Freire, seu filho, pela ditadura militar brasileira?
PROMOTORA.
Os fatos levantados não tem relação com o julgamento em questão.
JUÍZA.
Protesto aceito.
DEFENSOR.
Se repararmos bem, estes mortos – 11 indigentes – replicam o quadro A ESCOLA DE
ATENAS, do pintor renascentista Rafael. Na obra, Platão e Aristóteles, sábios atenienses,
falam a seus discípulos. O que temos realmente que nos perguntar aqui é: O QUE ESTES
MORTOS QUEREM NOS DIZER?
JUÍZA.
O senhor tem mais perguntas?
DEFENSOR.
(Para o casal de idosos)
Vocês não entendem?
A relação que existe?
Os desaparecidos na ditadura, estes mortos?
Seu filho, (Referindo-se aos membros da ESTIRPE) estas pessoas?
O país,
a ação política?
JUÍZA.
O senhor tem mais perguntas?
(Silêncio)
DEFENSOR.
Não.
PROMOTORA.
A Promotoria solicita que conste nos autos do processo que após o incidente com os
cadáveres no estacionamento, o referido shopping-center permaneceu, por força dos
acontecimentos, fechado por 3 dias, causando aos lojistas um prejuízo estimado em
2 milhões e 938 mil.
41
JUÍZA.
Solicitação deferida.
(Pausa)
PROMOTORA.
Sr. Lázaro. Sra. Judite.
Poderiam descrever a este tribunal o que aconteceu na manhã do dia 7 de setembro?
LÁZARO.
Chegamos de carro no estacionamento do shopping, como todo domingo.
JUDITE.
Todo domingo, fielmente.
LÁZARO.
E aquela coisa.
Tava lá.
PROMOTORA.
11 cadáveres?
LÁZARO.
Isso.
PROMOTORA.
Dispostos sarcasticamente numa alusão à pintura renascentista A ESCOLA DE ATENAS?
LÁZARO.
Isso.
JUDITE.
Só telefonamos pra polícia pra denunciar, como cidadãos.
Na nossa idade, ver aquilo.
Não é, Lázaro?
LÁZARO.
Minha esposa não está bem depois daquele dia.
PROMOTORA.
Lamento muito.
LÁZARO.
Ela sofre do coração.
42
JUDITE.
Como cidadãos, denunciar aquilo.
Fizemos o que qualquer pessoa de bem faria.
Não é, Lázaro?
PROMOTORA.
E como o senhor se sentiu?
LÁZARO.
Profundamente enojado.
(Pausa)
PROMOTORA.
Pode repetir?
LÁZARO.
Claro.
Profundamente enojado.
PROMOTORA.
Mais uma vez.
(Pausa)
LÁZARO.
Isso
é necessário?
PROMOTORA.
Por favor.
(Pausa)
LÁZARO.
PROFUNDAMENTE ENOJADO.
JUDITE.
Meu marido é hipertenso.
LÁZARO.
Fui hospitalizado naquela tarde.
PROMOTORA.
Graças a Deus o pior não aconteceu.
43
LÁZARO.
A pressão, muito alta.
PROMOTORA.
Graças a Deus.
JUDITE.
Subiu demais.
PROMOTORA.
Na opinião dos senhores, cidadãos ciosos de seus deveres;
em sua opinião, e friso que isto é de extrema importância para os autos deste processo;
para os senhores, eu repito, que aqui representam nossa sociedade como um todo,
(Pausadamente) em sua opinião, qual o significado desta ação?
(Pausa)
JUDITE.
(Num fio de voz)
O mundo de hoje.
Esse mundo que tá aí.
Essa coisa, esse nojo todo.
Não é, Lázaro?
Isso só mostra pra gente o quanto, quanto o mundo de hoje...
PROMOTORA.
Nem mais num shopping-center, Meritíssima?
JUDITE.
Violento.
PROMOTORA.
Será que nem num shopping-center nossa população poderá mais...
JUDITE.
Violento...
PROMOTORA.
...se sentir segura?
JUDITE.
Violento.
1.
José Carlos dos Santos.
44
2.
Naiara Gomes.
3.
Maria do Socorro Silva. Carlos Almeida da Costa. Felipe Silveira.
(Silêncio)
JUÍZA.
Peço aos réus que se pronunciem apenas quando questionados.
4.
Waldomiro de Souza.
PROMOTORA.
Meritíssima.
(Pausa. Tempo imóvel)
A promotoria ainda não terminou com as testemunhas.
5.
Lúcia Silva Correa. Iolanda Cunha.
JUÍZA.
Que os réus se pronunciem apenas quando...
2.
Sílvio Santiago. Waldemir Andrade.
JUÍZA.
Ordem.
4.
Eduardo Pinheiro.
JUÍZA.
ORDEM.
ANA MARIA.
Os nomes.
(Pausa)
Os nomes dos 11 indigentes
enterrados em vala comum
assassinados nas ruas longe dos condomínios
45
PROMOTORA.
Meritíssima.
ANA MARIA.
ruas becos perto mas muito longe longe demais dos shoppings das câmeras de vigilância
dos seguranças treinados
JUÍZA.
Pela ordem.
ANA MARIA.
Onde se pode ter paz.
JUÍZA.
Guardas.
ANA MARIA.
Mas quem pode?
JUÍZA.
ESTE TRIBUNAL ORDENA QUE OS RÉUS SEJAM IMEDIATAMENTE
RECOLHIDOS ÀS SUAS CELAS.
(Ouve-se um guarda gritar)
GUARDA.
ELA TÁ ARMADA.
(Todos se imobilizam no tribunal. Ouve-se uma voz feminina que fala fora de cena)
VOZ DE MULHER.
ESTIRPE.
ONDE ELES ESTÃO?
Eu quero falar, falar com eles.
GUARDAS.
Solta a arma.
Devagar.
VOZ DE MULHER.
Eu vim entregar meu corpo,
vocês não tão entendendo?
VIM ENTREGAR MEU CADÁVER PRA ESTIRPE.
GUARDA.
Solta a arma.
46
VOZ DE MULHER.
ESTIRPE.
GUARDA.
AGORA.
VOZ DE MULHER.
Podem pendurar meu corpo,
podem pendurar onde vocês quiserem.
TEM MAIS GENTE COMO EU LÁ FORA, VOCÊS TÃO OUVINDO?
Muito mais gente como eu.
GUARDA.
Se não soltar a arma a gente vai atirar.
VOZ DE MULHER.
Eu vim entregar meu corpo,
vocês não entendem?
GUARDAS.
Calma.
Agora solta, solta a arma.
Devagar.
VOZ DE MULHER.
Eu vim entregar meu corpo.
Entregar meu cadáver.
Pra Estirpe.
(Pausa. Ouve-se um som de disparo de arma de fogo vindo de fora. Tempo imóvel. Os
guardas, que estavam visíveis dentro da cena, abaixam lentamente suas armas. Então a
JUÍZA se levanta, lentamente. Tempo imóvel. Escuridão)
47
XVII
(Luz em ANA MARIA e JOANA. Os dois discursos a seguir devem ser ditos ao mesmo
tempo, e devem ser igualmente compreensíveis. A última frase dos discursos deve ser dita
em uníssono pelas duas personagens)
ANA MARIA.
milícias para-militares vigiam os bunkers dos shoppings e condomínios fechados
quintessência do apartheid cafonas caricaturas de cidades autônomas com quadra de squash
piscina sauna e canil de rottweiler la vie em rose e absoluta hostilidade para os estranhos
qual a diferença entre nossas favelas e os campos de concentração? periferia e Auschwitz?
Nossas favelas nossas periferias nossos subúrbios nossas baixadas guerra civil como regra
do dia-a-dia policiais bêbados corruptos achacadores sempre a postos para execuções
sumárias donos das bocas e milícias de muitos comandos de cabelo rastafári bermudas de
grife tênis nike e blusas estampadas com as caras utópico-libertárias de Che Guevara e Bob
Marley analfabetismo funcional generalizado corrupção generalizada num comportamento-
padrão endossado tácitamente pelo presidente da república qual a diferença entre Goebbles
e nossos assessores de marketing político? o país numa zona de turbulência à deterioração
dos serviços públicos básicos junta-se a insensibilidade sem par no planeta das elites
brasileiras sucessões de chacinas escândalos abafados queima de arquivo disque-denúncia
NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS
JOANA.
incremento da produção e difusão do etanol perfurações petrolíferas na camada do pré-sal
política externa atuante simpática porém firme consolidação do MercoSul aumento do
salário mínimo aumento do número de empregos formais baixa dos juros para compra de
casas próprias criação do Pro-Une com bolsas para alunos de baixa renda em universidades
particulares programa Fome Zero criação e instauração do PAC programa de aceleração do
crescimento com benefícios implementados para o desenvolvimento da indústria do
comércio das pequenas médias e grandes empresas programa Bolsa-Família criação e
implementação do PETI programa de erradicação do trabalho infantil com educação
integrada nas escolas públicas o país voa em céu de brigadeiro aumento das exportações
através de contratos de largo porte com a China e países asiáticos aumento do produto
interno bruto blindagem sólida contra a crise internacional diminuição do desemprego
diminuição do analfabetismo o maior número de denúncias e processos visando coibir a
corrupção endêmica que corroe o país há séculos um Brasil de todos
NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS
48
XVIII
(Luz sobre a JUÍZA)
JUÍZA.
Reporto agora, entendendo a conveniência deste levantamento na presente altura do
julgamento em processo, um breve inventário das acusações em curso:
PRIMEIRA ACUSAÇÃO
Violação de sepultura, subtração e profanação de cadáveres – Artigos 210, 211 e 212 do
Código Penal:
Ação realizada pelos réus com o cadáver de Josenilde de Souza, mulher falecida e
sepultada 3 dias antes do crime ocorrido. O cadáver da vítima foi desenterrado e exposto
em frente à empresa onde trabalhara.
SEGUNDA ACUSAÇÃO
Violação de sepultura, subtração e profanação de cadáveres – Artigos 210, 211 e 212 do
Código Penal:
O grupo autodenominado ESTIRPE é acusado de expor os cadáveres de três crianças,
falecidas poucos dias antes do crime, na área de ginástica de um parque público da cidade.
TERCEIRA ACUSAÇÃO
Violação de sepultura, subtração e profanação de cadáveres – Artigos 210, 211 e 212 do
Código Penal:
Após desenterrarem os corpos de 11 indigentes, os réus confessos compuseram com os
cadáveres uma funesta reprodução da obra A ESCOLA DE ATENAS, do pintor
renascentista Rafael, usando como tela o estacionamento de um grande shopping-center.
(Luz sai da JUÍZA e abre em 3 pontos do palco. TRÊS MULHERES: seus rostos são
iluminados. Elas se manifestam de modo intercalado; enquanto uma delas está falando, as
outras movem as bocas em silêncio, como se continuassem em seus discursos)
MULHER 1. Quem será que são esses menino heim?
Fala tudo que eles fazem mas num conta nada da vida deles
MULHER 2. A Gislene diz que um é filho do Jorge
MULHER 1. Num diz o nome num mostra a cara
MULHER 3. Magia negra
MULHER 2. E falam nessa língua estranha
MULHER 3. Pra mim é magia negra tentativa de abrir as porta do Inferno pra deixar sair o
Satanás
MULHER 2. Coisa de muleque os menino não vive jogando saco de mijo lá em casa?
49
MULHER 1. Num sei se foram abandonado...
MULHER 3. A pessoa trabalha uma vida inteira
MULHER 1. Por que se eles já passaram necessidade?
MULHER 2. Mas que não é coisa de Deus isso não é não viu?
MULHER 3. Quando cai morre acha que acabou e aí!
MULHER 1. Já a Elizete diz que foram os extraterrestre
MULHER 2. Não tem respeito gente sem coração
MULHER 3. Que tem uma prima que conhece o irmão do cunhado do segurança que diz
que viu o momento que estacionaram a nave no shopping tudo verde
MULHER 1. Eu tenho medo de mexer com cadáver peço licença antes de entrar no
cemitério
MULHER 3. É o fim dos tempos
MULHER 2. Meu corpo eu vou pôr no mármore quero ver desenterrá
MULHER 1. Se fosse pra escola não tinha o que fazer no cemitério!
MULHER 2. Que isso é tudo mentira invenção pra vender jornal
MULHER 1. Vai ver que nem é culpa deles
MULHER 3. FIM DOS TEMPOS!
(Escuridão sobre as três mulheres. Luz abre novamente na JUÍZA)
JUÍZA.
QUARTA ACUSAÇÃO
Homicídio doloso em Primeiro Grau:
Os réus são acusados de assassinar, utilizando-se de arma de fogo, uma senhora de 72 anos,
não-identificada. Relato a seguir, para que conste nos autos do processo, as circunstâncias
do crime:
(Luz abre lentamente sobre os réus, no Tribunal)
50
Na tarde do dia 25 de dezembro, a referida senhora, paciente hospitalizada em um grande
hospital público, encontrava-se em uma maca nos corredores aguardando a transferência
para um leito na Unidade de Tratamento Intensivo. Diagnosticada com câncer nos ossos em
estado terminal, a paciente foi retirada das dependências do referido hospital pelos réus,
levada para um barracão na periferia da cidade (provável local de reunião da quadrilha), e
assassinada com um tiro na nuca, instrumentado por uma arma de numeração não-
identificada, calibre 32.
(Luz abre sobre a PROMOTORA e o DEFENSOR, que dizem a frase a seguir ao mesmo
tempo, exceto as palavras grifadas em negrito, que devem ser ditas em seqüência, isto é,
primeiro a PROMOTORA e depois o DEFENSOR)
PROMOTORIA.
A Promotoria gostaria de fazer algumas perguntas.
DEFENSORIA.
A Defensoria gostaria de fazer algumas perguntas.
(Luz sai da JUÍZA e dos réus, permanecendo apenas no DEFENSOR e na PROMOTORA,
que proferem intercaladamente suas perguntas na direção do público)
PROMOTORIA.
Os crimes aqui levantados foram comprovados sem margem de dúvida pela investigação
criminal. A única argumentação da Defesa é de que se trata de crimes políticos, cometidos
em nome da coletividade. Mas diz-se sabiamente que a voz do povo é a voz de Deus. E a
que conclusão podemos chegar acerca da vontade de Deus se a opinião pública em massa
se mostra contrária a estes atos hediondos, não estabelecendo nenhum tipo de cumplicidade
com os referidos criminosos?
DEFENSORIA.
Para quem a ESTIRPE representa uma ameaça? Quem lucra com a miséria, o descaso,
a morte? O dinheiro público desviado pela corrupção seria suficiente para sanear, educar,
tratar com dignidade. Os corruptos que pululam em todas as esferas de poder do nosso país
deveriam ser julgados como ladrões ou como ASSASSINOS EM SÉRIE?
PROMOTORIA.
O homicídio doloso é a mais chocante violação do senso moral da humanidade civilizada.
Estas pessoas expuseram corpos em estado de putrefação, e não satisfeitas, acabaram por
matar uma mulher inocente, sem chance de defesa. Mesmo se levarmos em conta a hipótese
de crime político, o que os diferencia da dita sociedade que eles atacam?
DEFENSORIA.
Por que um tiro de desespero na cabeça de uma moribunda abandonada nos corredores de
um hospital sucateado tem mais peso que os milhares de assassinatos cometidos pela
indiferença pública?
51
PROMOTORIA.
Nem no período da ditadura militar a selvageria dos grupos de guerrilha urbana chegou a
extremos como neste caso.
DEFENSORIA.
Pode uma luta para dar voz a quem nunca teve ser julgada por aqueles que sempre
sufocaram estas vozes?
PROMOTORIA.
Se não coibirmos com rigor estes atos, em que tipo de caos irá mergulhar nossa sociedade?
Em que espécie de Inferno estaremos todos imersos?
DEFENSORIA.
Ser soterrado por negligência do poder público não é crime? Mortalidade infantil não é
crime? Falência no sistema de saúde não é crime? De quem é o crime? De quem é a
responsabilidade? Quem cometeu esses crimes? Quem são os criminosos?
PROMOTORIA.
(Lentamente) O horror de um tiro na cabeça.
(Escuridão. Luz abre lentamente; vê-se os seis membros da ESTIRPE. Imóveis, eles
observam o corpo de uma MULHER IDOSA que dorme no chão. A mulher respira
pesadamente, com dificuldade. Um revólver está posicionado próximo ao corpo, no chão.
Silêncio longo. Um dos membros da ESTIRPE vai até o revólver, rodeia o corpo e aponta
para a cabeça da mulher que dorme. Hesita por instantes, até que abaixa a arma e a
coloca de volta no chão. Silêncio imóvel. Outro membro da ESTIRPE faz o mesmo: vai até
a arma, pega e aponta para a mulher. Hesita, até que desiste e a recoloca no chão.
Silêncio, todos imóveis. A mulher acorda)
MULHER IDOSA.
(Num fio de voz, lentamente) Dor
Muita
Muita dor aqui
Aqui
Dor aqui
(Ela olha para algum membro da ESTIRPE)
Você vai me dar a injeção?
Já passa da hora, a moça não veio
Você vai me dar agora?
A injeção?
A moça não veio
(Silêncio. A mulher respira pesadamente. ANA MARIA se aproxima dela)
52
ANA MARIA.
Calma
MULHER IDOSA.
(Abrindo os olhos e vendo ANA MARIA)
Filha?
Filha, é você?
ANA MARIA.
(Depois de hesitar) Sim
MULHER IDOSA.
É você, filha?
ANA MARIA.
Sim
Sim
Sou eu
MULHER IDOSA.
(Sorrindo debilmente) Eu sabia
Eles disseram que você não vinha
Que não vinha mais nunca mais
Mas eu sabia
Sonhei
Você e eu
Pedi a Deus
Tanto tanto
Minha filha
Veio me levar, não foi?
Veio tirar a mãe daqui
Levar a mãe pra casa
Pra casa, filha
De volta
De volta pra casa
(Ela começa a respirar com dificuldade)
ANA MARIA.
Calma
(ANA MARIA a toma em seus braços)
Mãe
53
Calma
MULHER IDOSA.
A dor
Eu rezo
Não adianta
A dor
Aumenta
Cada dia cada minuto
A dor, filha
Dor
Aqui
(Silêncio. A mulher começa a respirar com dificuldade. ANA MARIA hesita, olha para os
demais, e volta-se para a MULHER IDOSA, que está em seus braços, no chão)
ANA MARIA.
Sempre que voltava pra casa, a menina passava pelo lago
MULHER IDOSA.
A menina?...
ANA MARIA.
Ela tinha medo do lago
Era tão escuro, não dava pra ver o fundo
Tinha medo
MULHER IDOSA.
O lago
ANA MARIA.
Um dia, enquanto caminhava, a menina sentiu que alguém a estava seguindo
Mas não dava pra ver quem era
Uma sombra, no caminho
Uma sombra atrás dela
A menina começou a correr, e quanto mais corria, mais sentia medo
E chorava
Se a sombra conseguisse pegá-la, a menina sabia que nunca mais veria sua casa de novo
Depois de correr bastante, ela chegou no lago
O lago escuro, escuro que dava medo
Mas ficar ali e ser pega pela sombra seria pior
E a menina resolveu se esconder dentro do lago
Chorando de medo, ela se jogou nas águas um segundo antes que a sombra a alcançasse
Sentiu quando foi engolida pelas águas escuras do lago
Demorou pra abrir os olhos, com medo do que veria
Monstros?
54
Ela estava com medo, muito
Mas era tão silencioso em volta dela, e os monstros costumam fazer barulho
Esperou mais um pouco, pra criar coragem, e aí, bem devagar, abriu os olhos
E viu
Viu que o lago era lindo, visto dali, de dentro
Viu as estrelas no fundo do lago
Viu os peixes que dançavam ali
Viu cores que nunca tinha visto no mundo lá fora
E era lindo, tudo
MULHER IDOSA.
A menina
ANA MARIA.
Ela não tinha mais medo
E esqueceu sua casa
E ficou ali
No lago
Pra sempre
MULHER IDOSA.
(A MULHER IDOSA, que acompanhou a história, sorri e olha para o vazio, como se
estivesse tendo uma visão)
Eu estou vendo, filha
As estrelas
Os peixes que dançam
Aqui
No lago
No fundo
Aqui
É lindo
(ANA MARIA sorri pra ela)
Lindo
Lindo
(ANA MARIA olha para outro membro da ESTIRPE. Este pega a arma e se aproxima por
trás da MULHER IDOSA. ANA MARIA, chorando, ajeita o seu corpo, expondo a nuca da
55
MULHER IDOSA. O outro membro da ESTIRPE aponta lentamente a arma e dispara.
Silêncio longo. Um a um, eles vão saindo, lentamente, um de cada vez, até restar no palco
apenas o corpo da MULHER IDOSA)
56
XIX
(Luz abre no DEFENSOR)
DEFENSOR.
A costureira soterrada pela “vontade de Deus”.
As 3 crianças mortas em circunstâncias que nunca interessaram a ninguém.
Os 11 assassinados sem assassino nas ruas de uma cidade sem rumo.
A morta-viva entregue à própria sorte nos corredores de um hospital público, apodrecendo
lentamente em vida. Vida?
A exposição de cadáveres não deveria ser o crime em julgamento aqui.
Não.
Os crimes que deveriam estar sendo julgados foram aqueles trazidos à tona pela ação deste
grupo de pessoas, que abriu mão do conforto hedonista que caracteriza nossa população em
prol de uma reforma política que abarque toda a coletividade. Ao desenterrarem estes
mortos, desenterraram crimes impunes. Crimes causados pela negligência direta do Estado
e pela omissão e conivência da sociedade.
Nossa omissão, nossa conivência.
Esses crimes – que são apenas a ponta de um iceberg de horror, que poderia ser evitado
com trabalho, honestidade, ação solidária e vontade política – esses crimes permanecem
impunes.
Até quando?
Até quando?
(Escuridão)
_______________________________________
(Luz abre na PROMOTORA)
PROMOTORA.
Vândalos.
Desordeiros.
Assassinos.
Vagabundos sem passado, presente ou futuro, chafurdando sem perspectivas em sua
miséria moral, empenhados em tirar de nós todos a esperança em um mundo mais humano.
Desprovidos de respeito pelas pessoas e pelas instituições, buscaram, através de seus atos
de terror, criar, pura e simplesmente, o caos em nosso meio.
Expor o cadáver de uma humilde mãe de família; depositar num parque público corpos de
crianças; vilipendiar o descanso eterno de 11 cidadãos; assassinar uma senhora enferma, de
72 anos, com um tiro na cabeça; de que maneira estes atos monstruosos poderiam resultar
57
em algum bem maior? Se havia algum intuito político em tudo isso, por que não buscar o
diálogo, dentro dos trâmites legais de um Estado Democrático de Direito, onde todas as
vozes são respeitadas e ouvidas?
Não.
Não se trata disso, nunca se tratou disso.
Trata-se simplesmente de violação dos direitos individuais, através do uso de violência
gratuita e brutal.
Trata-se de barbárie.
A Promotoria pede aos excelentíssimos membros do Júri que façam justiça e aliviem o
coração de todas as vítimas desta organização criminosa, condenando os réus
à pena máxima.
(Escuridão)
______________________________________
(Luz abre na JUÍZA)
JUÍZA.
Todas as provas, perguntas e argumentos foram aqui apresentados.
Que os membros do Júri se reúnam e deliberem sobre o caso.
Seu veredicto será anunciado amanhã por este Tribunal.
(A JUÍZA acende um cigarro, traga calmamente)
A sessão está encerrada.
(Escuridão)
58
XX
(Luz tênue: os 6 membros da ESTIRPE em suas celas, na noite anterior à divulgação do
veredicto final. De diferentes modos (enforcamento com corda, sufocamento com saco
plástico, envenenamento com pílulas, etc) eles se suicidam. Tudo o que acontece, devido à
obscuridade, deve ser ambíguo como foi o suicídio dos membros do grupo BAADER-
MEINHOF na Alemanha nos anos 70. A idéia é que seja impossível discernir com precisão
se se trata de suicídios ou de assassinatos. Ao fim das mortes, ou durante, em momentos
oportunos, ouve-se uma VOZ em OFF que diz o trecho a seguir)
VOZ OFF.
O que precisamos é do futuro,
e não da eternidade do instante.
Precisamos desenterrar os mortos, mais e mais, porque só deles podemos receber o futuro.
Necrofilia é amor ao futuro.
É preciso aceitar a presença dos mortos como parceiros de diálogo.
O futuro
surge somente
do diálogo com os mortos.*
(* Este trecho é de autoria de Heiner Müller)
59
XXI
(Luz sobre o Ombudsman, que fala para uma câmera)
OMBUDSMAN.
Hoje,
3 dias após o início do julgamento que mobilizou o país,
o caso ESTIRPE se encerra carregado de controvérsias, antes mesmo que os jurados
pudessem emitir seu veredicto final.
Os seis membros da primeira célula terrorista brasileira pós-moderna foram encontrados
mortos, por enforcamento, em suas celas.
Como em Antígona, o suicídio coletivo do grupo confere contornos de tragédia a esta
lamentável história. Na célebre obra de Sófocles, Antígona é condenada por ir contra as leis
do Estado, cometendo o ato subversivo de enterrar seu irmão – insepulto e exposto
publicamente por ordem do governo de Tebas.
Agora,
2.500 anos depois,
este grupo de pessoas foi julgado por um ato igualmente subversivo,
que consiste justamente no oposto da heroína grega:
desenterraram seus mortos, sepultados por ordem do Estado, e expuseram seus corpos em
praça pública.
Mortos que não queriam,
que não podiam,
descansar em paz.
(Escuridão)
60
XXII
(Luz abre em PROMOTORA e DEFENSOR. Estão nos bastidores do Tribunal. O
DEFENSOR fuma, imerso em pensamentos. Ele tem um livro nas mãos)
PROMOTORA.
É pena.
De verdade.
Muito triste, realmente triste.
Tanto trabalho.
O jogo acabou
e nós nunca vamos saber...
DEFENSOR.
O que?
PROMOTORA.
Quem ganhou.
DEFENSOR.
Eles estão mortos.
PROMOTORA.
Estou falando de nós.
DEFENSOR.
Estão mortos...
PROMOTORA.
Claro que estão.
Claro que estão.
O cemitério onde eles foram enterrados, você soube?
DEFENSOR.
Que é que tem?
PROMOTORA.
Fortemente vigiado, dia e noite.
DEFENSOR.
Têm medo que eles se levantem dos túmulos e...
PROMOTORA.
Existe sempre a hipótese de que outros tentem desenterrar os corpos.
61
DEFENSOR.
Não.
PROMOTORA.
O que?
DEFENSOR.
Não vai acontecer.
Eles não são como os outros.
Tiveram voz.
Disseram tudo o que queriam.
PROMOTORA.
(Ri)
DEFENSOR.
Do que está rindo?
PROMOTORA.
Ninguém entendeu nada.
(Silêncio)
DEFENSOR.
(Abre o livro e lê pausadamente um trecho, como se falasse para si mesmo) O terrorismo
não tem sentido algum num mundo saturado de sentido, de eficácia, de finalidade. O
terrorismo é uma singularidade. E a finalidade única da singularidade é destruir a
totalidade.*
Como um vírus.
PROMOTORA.
Nesse caso, a infecção foi debelada.
DEFENSOR.
Como um vírus...
PROMOTORA.
De um jeito ou de outro, o corpo social está saudável outra vez.
DEFENSOR.
Saudável?
(O DEFENSOR se levanta)
Acredita mesmo nisso?
62
(Silêncio. Eles se olham, imóveis)
PROMOTORA.
Vai pro Inferno.
(A PROMOTORA sai. O DEFENSOR fica sozinho. Ele traga seu cigarro)
(*Este trecho foi escrito por Jean Baudrillard)
63
XXIII
(Luz sobre o Ombudsman, que fala para uma câmera)
OMBUDSMAN.
Horrorizados diante dos eventos,
talvez nos esqueçamos de perceber que há duas violências sendo perpetradas aqui:
uma pelo Estado, e por que não dizer, por nossa sociedade como um todo,
com sua continuada negligência, injustiça e permissividade;
e a outra, vinda dos menos poderosos e menos favorecidos, contra este Estado e esta
sociedade.
Apesar de estarmos lidando com niilistas e anarquistas sem objetivo aparente,
a violência política é normalmente a última resposta a uma repressão de longa data.
Tal fato é aterrorizante para o povo subjugado e, de acordo com especialistas,
leva as pessoas a uma morte psíquica,
o que poderia, em nosso país, ser considerado um genocídio psíquico.
Desumanizados e improdutivos, inúteis sem pátria em sua própria pátria,
um indivíduo que não tem mais nada a perder responde com o que Jean-Paul Sartre chamou
“la ragge folle”: a raiva enlouquecida.
São milhões – milhões – de seres sem voz, criaturas sub-humanas invisíveis sobrevivendo
nas periferias dos grandes centros urbanos, procriando mais e mais, alastrando sua herança
maldita. Como uma peste. Tão excluídos que falam outra língua, desenvolvida ao longo de
séculos de analfabetismo funcional; divorciados até da possibilidade de diálogo conosco.
Nós os matamos em vida; eles estão começando a descobrir como é viver na morte.
Se fecharmos os olhos e escutarmos com atenção, é possível ouvi-los se aproximando.
Cada vez mais perto, muitos.
Com a voracidade e o potencial para destruição de um bando de mortos-vivos de filme B.
Nossa civilização
é sua necrópole.
(Escuridão)
64
XXIV
(Luz abre no palco vazio. Lentamente, os membros da ESTIRPE começam a entrar em
cena. Eles se abraçam, emocionados, tocam carinhosamente os rostos uns dos outros,
delicadamente. Aos poucos, um da cada vez, eles entram todos em cena. São como um
grupo de amigos, felizes, nobres. A cena é toda muito lenta, muito contida. A última a
entrar é ANA MARIA. Ele pára e os observa. Eles se voltam pra ela. Ela se aproxima,
lentamente. Ela pára, próxima a eles, e fala calmamente)
ANA MARIA.
Pensar
e não agir
é o mesmo
que não pensar.
(Um sorriso delicado se abre em seu rosto, lentamente. Eles ficam imóveis, se olhando,
sorrindo delicadamente, enquanto a luz cai devagar, até a escuridão)
fim