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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ RODRIGO CESAR CHRUSCINSKI NEPOTISMO E PATRIMONIALISMO NO PARANÁ: OS EFEITOS DA SÚMULA VINCULANTE 13 CURITIBA 2016

NEPOTISMO E PATRIMONIALISMO NO PARANÁ: OS EFEITOS DA … · 2016. 4. 14. · estabelecido de privilégios. A introdução de uma restrição externa e geral apresenta uma situação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

RODRIGO CESAR CHRUSCINSKI

NEPOTISMO E PATRIMONIALISMO NO PARANÁ: OS EFEITOS DA SÚMULA VINCULANTE 13

CURITIBA 2016

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RODRIGO CESAR CHRUSCINSKI

NEPOTISMO E PATRIMONIALISMO NO PARANÁ: OS EFEITOS DA SÚMULA VINCULANTE 13

Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais, no curso de graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira

CURITIBA 2016

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RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade analisar as consequências, no Estado do Paraná, da Súmula Vinculante nº 13, editada pelo Supremo Tribunal Federal em 2008 com o o objetivo de combater o nepotismo na Administração pública brasileira. Para tanto, é feita uma revisão teórica de dois conceitos que considero importantes para a discussão do tema no país – patrimonialismo e nepotismo. Segue-se uma pesquisa empírica sobre os efeitos da SV13 no Executivo, Legislativo, Judiciário e Tribunal de Contas do Estado do Paraná. O texto é concluído com considerações sobre a relação entre política e parentesco no Brasil. Palavras-Chave: Patrimonialismo. Nepotismo. Paraná. Súmula Vinculante 13.

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ABSTRACT

The present work aims to analyze the consequences, on theState of Paraná, of the Binding Precedent No. 13, released by the Supreme Court in 2008, with the the goal of battling nepotism in the Brazilian Public Administration. To this end, in the first part of the paper,a theoretical discussion about the concepts of patrimonialism and nepotism is put forth. An empirical researchabout theeffects of the Precedent is made in the Executive, Legislative and Judiciary branches – and also in the Court of Auditors. The text ends with some considerations on the relationship between politics and kinship in Brazil.

Keywords: Patrimonialism. Nepotism. Paraná State. Binding Precedent nº 13.

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LISTA DE ABREVIATURAS E/OU SIGLAS

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TJ-PR – Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

TC-PR – Tribunal de Contas do Estado do Paraná

SV13 – Súmula Vinculante 13

ADC – Ação Direta de Constitucionalidade

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8

2 O CONCEITO DE PATRIMONIALISMO .................. ............................................. 10

2.1 MAX WEBER .............................................................................................................. 10

2.2 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA ...................................................................... 12

2.3 RAYMUNDO FAORO ............................................................................................... 14

2.4 NEOPATRIMONIALISMO ....................................................................................... 17

3 O NEPOTISMO, OU, POR QUE A FAMILIA IMPORTA ..... .................................. 22

3.1 ESTUDOS FAMILIARES ......................................................................................... 24

4 A SÚMULA VINCULANTE 13 ......................... ..................................................... 28

5 O CASO PARANAENSE .............................. ........................................................ 36

5.1 PODER EXECUTIVO ............................................................................................... 36

5.2 PODER LEGISLATIVO ............................................................................................ 40

5.3 TRIBUNAL DE CONTAS ......................................................................................... 41

5.4 PODER JUDICIÁRIO ............................................................................................... 43

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................... ....................................................... 47

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 51

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1 INTRODUÇÃO

Há cerca de dois séculos, uma onda de revoluções arrebatou grande parte

dos países ocidentais, substituindo monarquias hereditárias por regimes políticos

republicanos, inspirados por ideais liberais e igualitários. Entretanto, os laços de

parentesco nunca perderam verdadeiramente sua importância. A persistência,

nesses países, de grupos familiares com o poder de influenciar sua vida pública, é

um fato com o qual o mundo ocidental ainda precisa conviver.

Mesmo nos Estados Unidos da América, que lutou uma guerra para se livrar

do jugo de um monarca hereditário, e proclama a superioridade meritocrática de

suas instituições, a eleição de 2016 poderá representar uma nova disputa entre duas

dinastias políticas: um Cinton ou um Bush participou de 7 das últimas 9 corridas

presidenciais. Mas não é só o cargo de presidente que parece contestar a ideia de

que o mérito é o fator preponderante na escolha dos representantes daquele país: a

probabilidade de que o filho de um governador seja um dia eleito governador é 6 mil

vezes maior do que a média; no caso de um senador, a ela é 8,5 mil vezes maior1.

No Brasil, a convergência entre família e poder é tema jornalístico corriqueiro,

mas que também suscitou considerações teóricas importantes. Os termos

“nepotismo” e “patrimonialismo” são usados em ambas as situações, nem sempre

com o mesmo rigor. Em 2006, porém, o tema ganhou novos contornos quando uma

decisão do Supremo Tribunal Federal ocasionou a proibição da nomeação de

parentes, até o terceiro grau, em todos os âmbitos do Estado brasileiro. A súmula

vinculante 13, que entrou em vigor imediatamente, veio para romper um sistema

estabelecido de privilégios. A introdução de uma restrição externa e geral apresenta

uma situação privilegiada para o estudo do tema no Brasil.

O objetivo do trabalho é entender os conceitos de patrimonialismo e

nepotismo e, utilizando-se do caso da súmula vinculante 13, detectar se

intervenções pontuais na organização administrativa do Estado (no caso, uma

interdição à nomeção de parentes para cargos públicos) possuem ou não um efeito

significativo sobre essas práticas, tendo por base o Estado do Paraná.

1 Dynasties: The enduring power of families in business and politics should trouble believers in

meritocracy. The Economist , Londres, 18. abr. 2015. Disponível em <http://www.economist.com/news/leaders/21648639-enduring-power-families-business-and-politics-should-trouble-believe>. Acesso em: 10/01/2016.

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A escolha do Paraná como objeto de estudo justifica-se pela longa história,

estudada por autores como Ricardo Costa de Oliveira, de famílias tradicionais que

se perpetuaram, muitas vezes ao longo de séculos, graças a uma íntima relação

com o aparelho do estado, em seus mais diversos âmbitos. Não obstante sua

persistência no imaginário como lugar de desenvolvimento e modernidade, o Paraná

é um interessante caso para o estudo de estruturas tradicionais de dominação no

Brasil.

O termo “patrimonialismo” é frequentemente utilizado, inclusive pelos meios

de comunicação, para descrever uma certa qualidade da prática política brasileira.

Não por acaso, aparece em diversas obras clássicas que teorizaram a nossa

sociedade, e parece fornecer uma entrada pertinente nas discussões sobre política e

parentesco no Brasil.

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2 O CONCEITO DE PATRIMONIALISMO

2.1 MAX WEBER

O conceito de patrimonialismo, se não foi inventado por Max Weber,

certamente encontrou nele sua principal elaboração teórica. Weber definiu o termo

como um subtipo de dominação tradicional, surgindo como extensão do poder

familiar patriarcal, inicialmente confinado às relações domésticas, que se expande e

abrange um número maior de relações sociais2.

Dominação, para o sociólogo alemão, representa uma “forma especial de

poder”3. É um conceito geral, “sem referência a algum conteúdo concreto”, que

constitui um importante elemento da ação social. Em verdade, Weber afirma que,

nesse sentido, o termo torna-se tão genérico que deixa de ser operacionalizável.

Para que o estudo das formas de dominação não se perca em casuísmos, ele traça

uma distinção entre o poder condicionado por “situações de interesses,

particularmente as do mercado”, baseada no “livre jogo de interesses”; e a

dominação vinculada ao “poder de mando autoritário”, que tem como consequência

um dever de obediência4. Embora o primeiro sentido do termo também seja tratado

por Weber em outros textos, é o sentido mais propriamente “político” do termo que

aqui nos interessa.

Nesta acepção, para Weber, o modo como se fundamenta a dominação é a

questão essencial de sua tese, orientada pelos princípios de uma sociologia da

ação. Dominação, segundo ele, diz respeito à probabilidade de certa norma

encontrar obediência espontânea de quem a deve observar. Ou seja, a vontade

manifesta do dominador influencia de tal modo as ações do dominado, "que estas

ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados

tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações"5. A

legitimidade, portanto, aparece como elemento que integra a própria definição de

dominação.

2 WEBER, Max. Economia e sociedade : Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:

Editora Universidade de Brasília, 1999. 3 Ibid., p. 188. 4 Ibid., p. 191. 5 Ibid., p. 192

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A legitimidade, para Weber, baseia-se em três tipos ideais puros: dominação

tradicional, carismática e legal-racional. A primeira fundamenta-se no apelo à

tradição, ao “eterno ontem”. A segunda baseia-se nas qualidades pessoais de uma

liderança individual. A terceira, na impessoalidade e abstratividade de normas

racionalmente estabelecidas. As realidades sociais concretas, entretanto, não se

"encarnam" nesses tipos, mas apresentam elementos de todos eles. Os processos

reais de dominação são adjetivados na medida em que se legitimam, de forma

preponderante, em um dos três tipos idealizados por Weber.

O conceito de patrimonialismo aparece, igualmente, não como realidade

concreta, mas como um subtipo de dominação tradicional, repousando sobre a

figura pessoal de uma autoridade legitimada pela tradição. Weber a caracteriza

como sendo “o poder do chefe do lar, descentralizado por meio da atribuição de

terras e eventualmente de instrumentos e equipamentos, aos filhos da casa ou a

outras pessoas dependentes que pertencem ao lar”6. É exercida, à maneira da

dominação patriarcal doméstica, de forma pessoal, sem qualquer delimitação de um

domínio público que se lhe encontra inacessível.

A “entidade patrimonial-estatal”, como ele mesmo a define, ocorre quando “o

príncipe organiza seu poder político […] a princípio da mesma maneira que ele

organiza o exercício de seu poder patriarcal”7. O patrimonialismo se desprende do

patriarcalismo (princípio privado) e passa a constituir forma de dominação política, a

partir de uma direção administrativa ligada à pessoa e legitimada pela tradição.

Apesar disso, a própria tradição geralmente se coloca como obstáculo para o

exercício puramente arbitrário de um poder que se legitima nesses termos. Isso

porque pode haver, também, outros diretos fundamentados na tradição

reconhecidos a certos dominados.

A obra de Weber teve grande influência sobre a teoria social brasileira, e o

conceito de patrimonialismo encontrou notável ressonância no trabalho de

pesquisadores da realidade política do país. Mais recentemente, o termo

“neopatrimonialismo” passou a ser utilizado por alguns autores, numa tentativa de

adequar (particularmente às realidades sociopolíticas da América Latina e da África)

6 BRUHNS, Hinnerk. O conceito de patrimonialismo e suas interpretações contemporâneas .

2012. Disponível em: <http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2012/04/4p61-77.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.

7 Ibid.

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o conceito weberiano a estruturas de dominação que, embora conservem um

inegável elemento de tradicionalismo e personalismo, legitimam-se formalmente na

validade de leis racionais e impessoais. Antes de tratarmos o termo com mais

profundidade, cabe um retorno a alguns “clássicos” da sociologia brasileira, sobre os

quais, pela própria natureza das suas investigações, o conceito de patrimonialismo

exerceu importante influência.

2.2 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Ainda em 1936, Sérgio Buarque de Holanda foi um dos primeiros autores

brasileiros no qual a influência de Weber se fez explícita, tanto no escopo de sua

análise quanto no aparato conceitual utilizado. Segundo Antônio Cândido, no

prefácio de Raízes do Brasil, o historiador paulista foi o primeiro a se apropriar dos

conceitos de “patrimonialismo” e “burocracia” para pensar a cordialidade do

brasileiro, que o condena à visceral inadequação “às relações impessoais que

decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e

familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários”8.

A obra desse historiador, que se tornou um dos legítimos “clássicos” das

ciências sociais brasileiras, utiliza-se das tipologias weberianas, mas as opera de

maneira diferente. Em contraste com a complexa pluralidade de tipos empregada

por Weber, Sérgio Buarque de Holanda engendra uma metodologia que privilegia o

contraste de dicotomias. “A visão de um determinado aspecto da realidade

histórica”, explica Cândido, “é obtida, no sentido forte do termo, pelo enfoque

simultâneo de dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui

uma grande força de esclarecimento”9. Além das dicotomias mais aparentes

(semeador/ladrilhador, trabalho/aventura, etc.), a oposição que parece perpassar

toda a obra é a relação entre tradição e modernidade. Mais especificamente, a

incapacidade brasileira de romper os obstáculos tradicionais em direção a uma

verdadeira modernização.

O “homem cordial” buarquiano é a grande expressão desse dilema. Segundo

8 CANDIDO, A. O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do

Brasil . São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 17. 9 Ibid., p. 13.

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ele10,

a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula.

A cordialidade, portanto, embora possa em algumas de suas manifestações

ser confundida com “civilidade”, fundamenta-se de forma completamente oposta a

esta. A civilidade pressupõe regras que se estabelecem de modo impessoal,

constituindo mandamentos e sentenças coercitivas que preservam uma vida social

ritualizada.

Por contraste, o autor define a cordialidade como “um decisivo triunfo do

espírito sobre a vida”. É uma forma particular, periférica, de individualismo, pela qual

o indivíduo pretende salvaguardar sua “supremacia” (ou mesmo sua sobrevivência)

sobre o social. A emotividade, a substituição do respeito reverencial pelo desejo de

estabelecer intimidade, e a completa aversão a ritualismos sociais são algumas das

manifestações do “caráter” social brasileiro.

O caráter patrimonial da gestão pública é outro fenômeno que se relaciona

com a propensão brasileira à cordialidade. Citando Weber, ele caracteriza o

“funcionário patrimonial” como aquele para o qual “a própria gestão política

apresenta-se como assunto de seu interesse particular”, em oposição aos interesses

objetivos que pautam uma administração burocrática verdadeira. O privilégio dado

às relações familiares, a partir do grande legado brasileiro de um “tipo primitivo de

família patriarcal”, resulta numa desconsonância com a pretensão moderna de um

corpo administrativo “puramente dedicado a interesses objetivos e fundados nesses

interesses”. Ao contrário, segundo o historiador, é possível acompanhar, ao longo de

nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu

10 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil . São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.

146.

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ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação

impessoal. Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu

com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da

supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência

dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – está em

que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo

obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as

instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendam

assentar a sociedade em normas antiparticularistas11.

Para os detentores do poder originários desse tipo de ambiente, a distinção

entre os domínios do público e privado – o que para o autor, utilizando-se da

definição de Weber, é essencial para a configuração do “puro burocrata” moderno –

é algo dificilmente compreendido.

2.3 RAYMUNDO FAORO

Raymundo Faoro é o próximo a elaborar sobre o conceito de patrimonialismo,

e sua obra “Os Donos do Poder” é uma das mais influentes narrativas da formação

política brasileira. Diferentemente do estilo ensaístico e livre de seus antecessores,

Faoro apresenta um trabalho denso, tanto pelo peso de sua erudição quanto pelo

grande material historiográfico apresentado.

De forma resumida, Faoro procura justificar a existência das principais

mazelas do Brasil com a permanência de uma estrutura estamental, de cunho

patrimonialista, que permeia o Estado brasileiro e que conserva, de facto, o “efetivo

comando político, numa ordem de conteúdo aristocrático”12.

No caso brasileiro, segundo Faoro, “uma longa herança” social e política faz

concentrar “o poder minoritário numa camada institucionalizada”. O prolongamento

do Estado português em nosso território, com todas as suas particularidades

históricas, não conheceu o influxo do “componente plebeu” – possibilitado, em

consórcio com a Revolução Industrial, pelas democracias do século XIX.

11 Ibid., 147. 12 FAORO, Raymundo. Os donos do poder : Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de

Janeiro: Globo Editora, 2001, p. 878.

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Nosso modelo – o Estado português prolongado no Brasil – não conheceu esse influxo, senão por empréstimo, permanecendo, na sua substância, patrício. O poder minoritário, não envolvido, não interiormente arejado pela avalancha majoritária, adquire um caráter pétreo, independente da nação. Afirma, na hipótese, por força de seu isolamento, o conteúdo estamental13.

O estamento, enquanto quadro administrativo e estado-maior de domínio,

configura o governo de uma minoria. No entanto, não se confunde nem com classe

(no sentido marxista do termo), nem com as elaborações dos teóricos elitistas. Em

primeiro lugar, para Faoro “a sociedade não se organiza, senão subsidiariamente,

em classes”. Rubens Campante afirma que “a clivagem primordial dá-se entre

estamento burocrático e o restante da sociedade, incluindo neste 'resto' as camadas

proprietárias ou não”14. Embora possa haver (e na maioria das vezes há) a

superposição dos aspectos social (estamental) e econômico, a configuração de um

poder puramente fundado no capital não é admitido por Faoro.

Embora possa, em traços gerais, ser confundido com alguma elaboração

genérica do termo "elite", o estamento tem um caráter mais fechado e estanque do

que Pareto, Mosca ou Michels jamais o imaginou. O estamento, diz Campante, "é

uma estrutura social autônoma e fechada, típica de um 'Estado patrício', em que não

há uma circulação de baixo para cima". É nesse sentido que Faoro cunha o termo

"nobreza burocrática" para definir a dominação estamental. A partir do estamento,

afirma ele, as próprias elites definem-se, caracterizam-se e emprestam sua

energia15.

O termo "burocrático", Faoro adverte, deve ser entendido não no sentido

moderno do termo (aparelhamento racional da Administração), mas como a

apropriação privada (ou melhor, "aristocrática") de cargos imbuídos de poder próprio.

"O Estado", diz ele, "ainda não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos,

reunidos por coordenação, com respeito à aristocracia dos subordinados"16. A

centralidade do Estado na história da formação política brasileira – que resulta, no

campo econômico, num (pré) capitalismo politicamente orientado –, não se deve ao

papel de fortes lideranças individuals, mas sim ao sistemático manejo patrimonialista

13 Ibid., p. 112. 14 CAMPANTE, Rubens Goyatá. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia

brasileira . Dados, Rio de Janeiro, v. 46, n. 1, p. 153-193, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582003000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 jan. 2016.

15 FAORO, 2001, p. 111. 16 Ibid., p. 101.

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do mesmo por uma classe minoritária e fechada em si mesma. Isso se exprime, nas

palavras de Campante, “em um Estado centralizador e administrado em prol da

camada político-social que lhe infunde a vida”17.

Nesse esquema conceitual, o “patrimonialismo” representa uma estratégia de

domínio, utilizada pelo estamento no manejo do Estado, para garantir benefícios

econômicos e para a própria reprodução do seu poder. “Num estágio inicial”, afirma

Faoro, “o domínio patrimonial (…) apropria as oportunidades econômicas de

desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre setor público

e privado”18. Essa forma inicial de patrimonialismo, de cunho personalista, passa a

se burocratizar, sem, no entanto, desfigurar sua “realidade fundamental,

impenetrável às mudanças”. Com o surgimento do patrimonialismo estatal, emerge

também o capitalismo politicamente orientado, e o estamento se consolida, acima

das classes, governando em benefício próprio e sendo permanentemente renovado

a partir dos mesmos valores.

O sistema econômico, na análise de Faoro, tem importância fundamental.

Segundo o autor, “a compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro

tradicional (…) é uma das chaves da compreensão do fenômeno histórico

português-brasileiro”19. A direção centralizada da economia, que vai da sua “gestão

direta à regulamentação material”, e os monopólios que se formam a partir de

fraudes financeiras e concessões públicas, são algumas das formas utilizadas por

esse bloco, que se situa acima da estrutura de classes, para manter-se como “dono

do poder”.

É nesse aspecto, entretanto, que Faoro mais se distancia de Weber. Embora

ambos tratem o estamento como “um grupo definido por critérios basicamente

sociais, em vez de econômicos”, o sociólogo alemão jamais entenderia um

estamento patrimonial com o grau de unicidade e centralização que Faoro o

descreve. Como explica Campante20,

enquanto o estamento de senhores feudais de Weber é um grupo que se origina do patrimonialismo, mas que acaba, em parte, negando-o, o estamento político-burocrático de Faoro tem origem no patrimonialismo e reforça-o”. Essa adaptação do weberianismo se justifica, segundo ele, por uma particularidade “talvez ibérica, talvez ibero-americana”, que permitiu o

17 CAMPANTE, 2003. 18 FAORO, 2001, p. 870. 19 FAORO, 2001, p. 870. 20 CAMPANTE, 2003.

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crescimento do estamento sem a dissolução da ordem patrimonial.

2.4 NEOPATRIMONIALISMO

A influência de Weber, como se vê, perpassa profundamente o pensamento

social brasileiro na questão do Estado e suas relações com a sociedade e a classe

política. Embora seja difícil apontar qualquer intenção original do autor em aplicar

seus conceitos às peculiaridades brasileiras (e as referências à Europa feudal e à

China antiga parecem indicar uma realidade que não poderia ser mais distinta), esse

movimento de retorno à sua obra e de elaboração sobre seus conceitos (no caso, o

de patrimonialismo) foi feita por mais autores que pudemos nomear.

Alguns motivos podem ser dados para explicar esse fenômeno. O primeiro diz

respeito à própria construção do conhecimento nas ciências que tem o mundo

social, em qualquer de suas facetas, como objeto de conhecimento. A constante

reinterpretação e ressignificação conceitual é a única maneira de abordar um objeto

complexo e em permanente transformação. Como afirma Weber21,

A história das ciências da vida social é e continuará a ser uma alternância constante entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos mediante uma construção de conceitos, a decomposição dos quadros mentais assim obtidos, devido a uma ampliação e deslocamento do horizonte científico, e a construção de novos conceitos sobre a base assim modificada. Nisto de modo algum se expressa o caráter errôneo da intenção de criar em geral sistemas conceituais, pois qualquer ciência - mesmo a simples história descritiva - trabalha o repertório conceitual de sua época. Antes se exprime aqui o fato de que, nas ciências da cultura humana, a construção de conceitos depende do modo de propor os problemas, e de que este último varia de acordo com o conteúdo da cultura.

Além disso, sua metodologia, consistente na elaboração de tipos ideais, traz

invariavelmente consigo uma rejeição a qualquer noção de “pureza conceitual” no

estudo dos fenômenos sociais. Weber deixa claro que os tipos ideais são resultado

de uma orientação consciente (uma escolha, portanto) do pesquisador em direção a

um problema de pesquisa.

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários

21 WEBER, M.. A “objetividade” do conhecimento nas Ciências Sociais. In: COHN, Gabriel. (Org.).

WEBER, M. Sociologia . São Paulo: Ática, 2006, p. 121.

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pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia22.

Como já se viu, o conceito de patrimonialismo, em Weber, tem em seu cerne

um fundamento de dominação – a tradição –, através do qual as fronteiras entre as

esferas do público e do privado se apresentam de forma pouco nítida, e, nos casos

extremos, simplesmente não existem. O conceito de neopatrimonialismo surge para

identificar um fenômeno próprio dos países de capitalismo periférico, os quais,

embora possam ser considerados “patrimoniais” na definição weberiana (no sentido

de uma apropriação sistemática da esfera de atuação pública por grupos privados),

não se fundamentam sobre uma estrutura de dominação tradicional. Pelo contrário,

há em geral uma estrutura estatal independente, e uma burocracia que se

fundamenta, ao menos formalmente, em postulados de racionalidade e legalidade.

Segundo Blundo e Médard23,

Essa noção de um prolongamento da noção de dominação tradicional patrimonial de Max Weber que repousa sobre a ideia de confusão entre o público e o privado no contexto da legitimidade tradicional. O recurso ao prefixo neo- aparece para sublinhar que não se trata mais de um contexto tradicional. Entendemos por estado neo-patrimonial o fato de que, se o Estado se diferencia formalmente da sociedade por suas estruturas, do ponto de vista de seu funcionamento, os domínios do público e do privado tendem a se confundir informalmente. O Estado é, de certa forma, privatizado para o seu benefício, pelas mesmas pessoas que ocupam uma posição de autoridade, primeiramente no topo do Estado, mas também em todos os níveis da pirâmide estatal. O dirigente político se comporta como chefe patrimonial, isto é, como verdadeiro proprietário de seu reino.

A semelhança com a descrição faoriana do estamento burocrático é

claramente aparente. Em termos weberianos, a questão que se coloca é a

formulação de um aparato conceitual que dê conta de uma realidade ao mesmo

tempo moderna e tradicional, que apresenta fundamentos de dominação racionais,

mas que possui elementos próprios.

Simon Schwartzman corrobora a noção de que o patrimonialismo de tipo

moderno, ou neopatrimonialismo, pelo qual se pode caracterizar muitos Estados

22 Ibid., p. 106. 23 BLUNDO, G.; J.-F.MÉDARD, J.-F.La corruption en Afrique francophone . 2002, pp. 10- 11,

citado por BRUHNS, 2012.

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modernos que se formaram à margem da revolução burguesa,

não é simplesmente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas, mas uma forma bastante atual de dominação política por um “estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio”, ou seja, pela burocracia e a chamada “classe política”24.

Segundo Schwartzman, a possibilidade de se pensar um patrimonialismo

“destradicionalizado” é admissível a partir de uma leitura do próprio Weber. Ele

identifica, nas tipologias do sociólogo alemão, dois tipos contrapostos de sistemas

normativos, nos quais as formas de dominação específicas se enquadram. De um

lado, de acordo com Schwartzman, estão os sistemas tradicionais, que se legitimam

na “crença na rotina de todos os dias como forma inviolável de conduta”, ou, em

outras palavras, na autoridade do “eterno ontem”. Do outro, aparecem os sistemas

modernos, “cujas normas seriam 'baseadas na validade de um estatuto legal e na

competência funcional baseada em regras criadas racionalmente'”:25.

Tipologia de dominação política em Weber

Relação de poder

absoluta contratual

Sistema normativo

Tradicional patrimonialismo feudalismo

Moderno patrimonialismo burocrático (neopatrimonialismo)

dominação racional-legal

Como se pode observar no quadro26, Schwartzman toma a liberdade de

fundamentar o neopatrimonialismo a partir das tipologias de Weber, embora este

jamais tenha imaginado um patrimonialismo fundado num sistema normativo

moderno (que não seja, simplesmente, dominação racional-legal).

O que justificaria, então, a concepção de um termo novo para explicar uma

divisão nos sistemas normativos que tem por fundamentação a ideia de legalidade?

A resposta, para Schwartzman, está na diferença da gênese da formação política do 24 SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro . Rio de Janeiro: Publit Soluções

Editoriais, 2007, p. 97. 25 Ibid., p. 98. 26 Ibid.

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Estado moderno em diferentes contextos. O desenvolvimento das burocracias

estatais, modernas e especializadas, não se deu simplesmente através de um

processo independente de desenvolvimento da ciência administrativa, mas “teve

uma dinâmica claramente política”. Duas forças conflitivas, segundo ele, foram

responsáveis pelo seu florescimento nas modernas sociedades de massa: “a

centralização crescente do poder”, por um lado, e “o aumento crescente da

participação política”, por outro27. Nos países que experimentaram a ascensão da

burguesia como novo ator político, a pretensão de poder dos governos centrais

absolutistas precisou foi balanceada pela ascensão do contrato – tanto como

expressão do poder econômico dessa nova classe, como enquanto forma de

estabilizar o conflito entre as duas forças.

É neste sentido que a dominação política racional-legal é filha do casamento entre o patrimonialismo dos regimes absolutistas e a burguesia emergente: é uma forma de dominação de base contratual, bastante eficiente e adequada às necessidades do capitalismo moderno28

Nos países onde não houve a ascensão de uma classe com a importância, os

valores e a força que alcançou a burguesia na Europa Ocidental, como essa

dinâmica se desenrolou? Schwartzman afirma que a resposta está na distinção

efetuada por Weber entre “racionalidade formal” e “racionalidade substancial ou

substantiva”. A primeira diz respeito a “normas explícitas de comportamento, ou

'leis', que definem o que deve ou não ser feito pelo administrador em todas as

circunstâncias”. Seu desenvolvimento – que, em suma, representou a formulação

ideológica da igualdade burguesa, ou de “todos perante à lei” – foi um forte antídoto

ao patrimonialismo em sua forma antiga, baseado nas 'graças' e na

discricionariedade pessoal pura e desvelada. Os agentes estatais são obrigados a

subscreverem ao “contrato social” e às garantias individuais contra arbitrariedades e

privilégios que dele decorre.

Há, porém, outro tipo de racionalidade, que está em oposição tanto às formas

tradicionais de dominação quanto à racionalidade formal (contratual ou legal)

burguesa. Trata-se de uma racionalidade substantiva, que tende a “maximizar um

conjunto determinado de objetivos independentemente de regras e regulamentos

formais”. A emergência da “opinião pública” e de instrumentos democráticos de tipo 27 SCHWARTZMAN, 2007, p. 100. 28 Ibid.

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plebiscitário são manifestações dessa forma de racionalidade, e foram vistos com

muita desconfiança por liberais e conservadores, na medida em que potencialmente

colocariam em risco “os sistemas políticos baseados em um conjunto de normas

estritas (…) que restringissem a ação dos governantes aos termos do pacto político”.

Por fim, há a nefesta manifestação da supremacia de um tipo de

racionalidade substantiva, segundo Schwartzman:

A combinação entre governos centrais comandados por suas “Razões de Estado” e massas passivas, destituídas e mobilizáveis é a receita mais acabada para os regimes burocráticos patrimoniais modernos. (…) Assim como a dominação racional-legal pode degenerar em totalitarismo burocrático, é possível para este tipo de burocracia subsistir somente com seu componente racional, mas sem seu componente legal. Este é, em uma palavra, o elo teórico que faltava para a compreensão adequada dos sistemas políticos neopatrimoniais: a existência de uma racionalidade de tipo exclusivamente “técnico”, onde o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente”29.

Antes de passarmos ao estudo empírico das relações entre Estado e entes

privados no Paraná, tentaremos entender a história dos estudos sobre família no

Brasil. Começando com outro termo muito popularizado mas pouco compreendido: o

nepotismo.

29 Ibid., p. 102.

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22

3 O NEPOTISMO, OU, POR QUE A FAMILIA IMPORTA

A importância da atuação de grupos familiares, na história política do homem,

é um assunto frequentemente negligenciado por pesquisadores. Ainda mais quando

se considera que, durante a maior parte da história, e em quase todas as culturas

humanas, o poder foi monopolizado por pequenos grupos familiares, que o

conservavam através da transferência hereditária explícita de cargos, títulos e

denominações. A crença (muitas vezes míope) na superação moderna destas

práticas “ultrapassadas”, através da ideologia do esforço individual e da

meritocracia, nos faz ignorar a gigantesca influência que os laços familiares ainda

exercem, em todas as áreas, sobre o mundo contemporâneo.

O termo “nepotismo”, correntemente utilizado para qualificar a prática de

favorecimento de parentes (principalmente nos quadros da Administração pública), a

partir de critérios puramente pessoais, é tão disseminado quanto mal compreendido.

É preciso realizar uma análise sóbria, desnudada de julgamentos preconcebidos, de

um fenômeno que está mais presente na dinâmica social cotidiana do que muitos de

nós gostaríamos de admitir.

A expressão aparece primeiro no século XIV ou XV, para descrever a prática

realizada por alguns papas católicos de indicar “sobrinhos” (que eram na verdade

filhos ilegítimos) para os quadros administrativos da Igreja30. O termo sobreviveu

aos tempos atuais, passando a denominar os favoritismos fundados na relação de

parentesco, mas há muita incerteza quanto à sua aplicação. Em primeiro lugar,

embora muitas pessoas utilizem-no para indicar a contratação injustificada de um

parente manifestamente desqualificado para o cargo, há também a posição que

afirma configurar nepotismo toda e qualquer nomeação de parentes,

independentemente de suas credenciais. Outra dúvida que se coloca diz respeito ao

locus dessa prática – só há nepotismo no âmbito do Estado, ou seria possível

chamar de nepótica a atitude de um pai, proprietário de uma empresa privada, que

promove o próprio filho em razão de sua posição familiar? E quando é o filho que se

aproveita de um sobrenome influente para auferir vantagens que, de outro modo,

estar-lhe-iam inacessíveis?

Adam Bellow defende a interpretação mais ampla do termo, e afirma que a

30 BELLOW, Adam. Em louvor do nepotismo : uma história natural. São Paulo: A Girafa Editora,

2006, p. 22.

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persistência de todas essas práticas deriva de um impulso comum, do qual todas as

práticas, relações e distinções relacionadas ao parentesco tem sua origem. O seu

objetivo, de traçar a “história natural” do nepotismo, é na verdade uma tentativa de

explicar o impulso (o qual, segundo Bellow, é pré-social) que leva os seres

humanos, à maneira de outros animais, a terem determinadas atitudes (cooperação,

defesa, sacrifícios mútuos, etc.) em relação a alguns de seus semelhantes. Por mais

que o parentesco assuma uma fascinante diversidade de formas nas culturas

humanas, um certo número de prescrições e proibições de comportamento em

relação aos “parentes” é observável em todas elas. Nesse aspecto, afirma Bellow, o

nepotismo não é completamente discernível das relações usuais pautadas pelo

parentesco31:

Definimos o nepotismo como o ato de um indivíduo que busca egoisticamente beneficiar um parente. Todavia, o nepotismo, em essência, é indistinguível dos compromissos de ajuda e assistência mútuas esperados dos parentes. Não é, portanto, exatamente egoísta, mas uma expressão de altruísmo, ainda que um altruísmo restrito a membros da família. [...] A própria noção de nepotismo que temos hoje seria ininteligível durante a maior parte da história da humanidade, e em alguns cantos do mundo continua sendo. A distinção entre parentesco e nepotismo é uma construção cultural, produto não da natureza, mas da história.

O poder político sempre foi muito impregnado de relações familiares. No

Ocidente, antes da idealização do Estado moderno enquanto entidade separada do

soberano, os laços de parentesco eram, frequentemente, a única via de acesso aos

privilégios proporcionados pelo poder. Fossem hebreus, gregos, romanos ou povos

do Ocidente cristão, todos tinham o parentesco como pedra fundamental de sua

sociedade e de suas instituições políticas32.

Este tipo “velho” de nepotismo sempre se mostrou eficaz na manutenção das

benesses “em família”, e acabou se tornando uma forma eficiente de dominação e

de perpetuação de grupos no poder. A possibilidade de um “novo nepotismo”, que

aproveite de forma adequada e racional a transferência de capitais sociais e

econômicos às novas gerações, é defendida por Bellow. Entretanto, as

reminiscências do nepotismo de tipo velho continuam extremamente vivas no mundo

contemporâneo.

31 Ibid., p. 29. 32 Ibid., capítulos 4 e 5.

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24

3.1 ESTUDOS FAMILIARES

Em se tratando de elites familiares, a teorização pura, sobre modelos de

dominação patrimonialistas ou práticas de nepotismo, torna-se pouco mais do que

um exercício intelectual se pesquisas empíricas falharem na demonstração dessas

redes de poder. Esta é uma das críticas que pode ser endereçada a teóricos como

Faoro e Schwartzman – a ausência de uma tentativa de demonstrar a hipotética

dominação (neo)patrimonial brasileira, a partir das relações de poder que se

estabelecem concretamente, nas instituições e na vida social cotidiana, por agentes

providos de nome e, principalmente, de sobrenome.

Oliveira Vianna foi um dos pioneiros no estudo da relação entre a entidade

familiar e o funcionamento e a dinâmica das instituições estatais no Brasil. Mais

precisamente, ele cria o conceito de “clã parental” para descrever uma entidade de

contornos mais ou menos precisos (envolvendo consanguinidade e afinidade) que

tem suas origens nas famílias senhoriais, já no início da colonização.

A solidariedade é a grande chave para a compreensão dessas instituições,

que segundo o autor em nada devem a qualquer tradição ibérica. São, ao contrário,

fenômeno tipicamente colonial, surgido da necessidade de sobrevivência num

ambiente rodeado de “perigos enormes e temerosos”33.:

É uma criação nossa, da nossa história local e da nossa ecologia social. Necessidade de união para a defesa contra o indígena, primeiro; depois, contra o filibusteiro normando, inglês ou neerlandês, aliás já referidas uma e outra em Gabriel Soares e Nóbrega – esta é a causa inicial da solidariedade familiar e do clã

A reprodução do clã obedeceu, segundo Oliveira Vianna, um princípio de

contiguidade: o pater familias resolvia o “problema da instalação de suas novas

gerações” com a aquisição de novas fazendas e engenhos nos arredores do

engenho patriarcal, “em forma de mancha de azeite”:

Como se vê, é esta a lei da nossa expansão povoadora: a família-tronco, partindo de um domínio inicial, espalha-se em derredor e vai irradiando por contiguidade – mesmo durante a fase do bandeirismo, isto é, da colonização por “saltos”. Vezes havia que uma só família tomava conta de

33 VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras . Brasília: Conselho Editorial do Senado

Federal, 1999, p. 228.

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25

um município ou de uma região inteira34.

Ao mesmo tempo, a consolidação do clã parental deveu-se fortemente ao

estabelecimento de um vínculo de consanguinidade, ou seja, ocorreu a valorização

da endogamia. O casamento entre parentes, “principalmente entre tios e sobrinhas e

entre primos e primas”, em conjunto com a proximidade física significou a

“consolidação do prestígio social e material da família no período colonial e – no

período do Império e ainda hoje – do seu prestígio eleitoral e político”35.

O compadrio vem para completar as relações de solidariedade no clã

parental. Para Oliveira Vianna, constitui, “talvez mais do que a consanguinidade, a

fonte mais fecunda de solidariedade familiar no interior”. A generalidade desses

relacionamentos amplia a esfera de influência do clã, “porque dá uma extraordinária

e ilimitada amplitude à família patriarcal”36. Ao mesmo tempo que a “baixa classe” vê

no compadrio uma possibilidade de ascensão social, o clã desfruta o aumento de

seu capital social.

A sua grande preocupação repousa no fato de tais “organizações parentais”,

com um poderio acumulado durante três séculos coloniais, utilizarem seu prestígio

de forma a influir “perturbadamente na administração pública, na atividade dos

partidos, no êxito das leis, mesmo nas revoluções”37. Sem querer transformá-lo num

grande proponente da democracia, o que seria uma inverdade, o fato é que Oliveira

Vianna se atenta para a discrepância entre os valores políticos e sociais das elites

coloniais e os valores necessários para a o florescimento de instituições modernas e

individualistas, levando à contaminação destas por aqueles38.

34 Oliveira Vianna exemplifica, no caso do Paraná: “Os paulistas povoadores dessa região, de acordo

com a sua tradição, emigraram para ali em grupos de famílias aparentadas e também ali se fixaram por clãs – em sítios dispersos, mas contíguos. É o caso do núcleo de povoadores, donde sairia Curitiba. Em 1648, ali se encontravam cerca de 17 moradores, todos eles atravessados por parentesco. O chefe do grupo povoador é Mateus Martins Leme com seus filhos – Antônio, Mateus, Miguel e Salvador. Também, conjuntamente, ali se encontra Baltasar Carrasco dos Reis, neto de Mateus Leme, acompanhado dos seus filhos André Fernandes, Gaspar e Belquior, e Manuel Soares, Antônio Rodrigues Seixas e José Teixeira de Azevedo, genros: ‘Baltasar tinha cinco filhas – diz Romário Martins – e é de supor que casadas com povoadores da localidade. O patriarcado do capitão Mateus Martins Leme foi indiscutível e indisputável em quase meio século de sua residência no planalto curitibano’”. (VIANNA, p. 234).

35 Ibid., p. 240. 36 Ibid., p. 244. 37 Ibid., p. 250. 38 “Ora, é sobre esta sociedade – assim dispersa, incoesa e de estrutura aristocrática – sobre que

vamos realizar, entretanto, em 1822, uma das maiores e mais radicais experiências de democratização, porventura realizadas na história da América Latina: – a do sufrágio universal, instituído com uma latitude, uma generalidade, que nem mesmo hoje conhecemos. E nada mais curioso do que acompanharmos, nas suas consequências, essa democratização feita por decreto,

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26

Tal constatação é, em termos gerais, compartilhada por Ricardo Costa de

Oliveira, ao estudar em profundidade o caso do Paraná. Mesmo num Estado tido

como modelo de desenvolvimento para um Brasil “atrasado”, pode se observar, a

partir da análise empírica de documentos e registros históricos, a perpetuação de

uma “classe dominante histórica”, que se preserva ao longo do tempo transmitindo

sua posição “em complexos mecanismos de reprodução, por vezes, extremamente

longos no passado”39. Tal marco teórico nos permite pensar a família, e não o

indivíduo isolado, como o “locus do Poder” político, tal qual Oliveira Vianna entendia

a importância política do clã40.

Esta é uma abordagem, portanto, que preza pela complexidade – visto que as

relações intra e inter famílias desenham um emaranhado de interesses e conexões,

pactos e alianças – e que demanda um extenuante esforço empírico para ser

compreendido. A pesquisa genealógica torna-se indispensável para a compreensão

da política, pois, como Costa de Oliveira afirma, não se trata de “apenas analisar

quem manda ou quem ocupa momentaneamente o poder”, mas sim as “fontes de

produção social das estruturas de poder e a sua reprodução”41.

Nada mais natural que a reprodução das estruturas de poder passe pela

família, que é o espaço de reprodução social por excelência. Segundo Bourdieu42,

A família tem um papel determinante na manutenção da ordem social, na reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social e das relações sociais. Ela é um dos lugares por excelência de acumulação de capital sob seus diferentes tipos e de sua transmissão entre as gerações. [...] Ela é o “sujeito” principal das estratégias de reprodução.

Bourdieu afirma que a família age, frequentemente como uma espécie de

“sujeito coletivo”, e, particularmente as “famílias dominantes”, caracterizam-se por

serem “extensas e fortemente integradas, já que unidas não apenas pela afinidade

do habitus, mas também pela solidariedade dos interesses, isto é, tanto pelo capital

quanto para o capital”43. Capital não apenas econômico, mas também simbólico (o

de modo quase mágico – e que não correspondia a nenhuma transformação de fundo da estrutura desta sociedade, nem às condições reais de sua cultura política”. (VIANNA, p. 254).

39 OLIVEIRA, Ricardo Costa de. O silêncio das genealogias : Classe dominante e estado do Paraná (1853-1930). 2000. Tese de doutorado - IFCH - Unicamp, p. 14.

40 Ibid., p. 16. 41 Ibid., p. 27. 42 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas : Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 131. 43 Ibid., p. 132.

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27

nome e tudo o que ele representa) e, no caso das dinastias políticas sustentadas por

amplas redes de nepotismo, principalmente capital social.

No Paraná, a reprodução de uma estrutura de dominação patrimonialista

justifica a “presença de um conjunto de famílias tradicionais inseridas na [sua] classe

dominante”44. Mesmo após mais de cem anos passados desde a proclamação da

República no Brasil, a preocupação de Oliveira Vianna nos parece plenamente

justificada.

Recentemente, em 2008, uma ordem proibitiva em relação ao nepotismo

(mais especificamente, sobre cargos em nomeação) foi instituída pelo órgão de

cúpula do Judiciário brasileiro. A norma possui caráter genérico, obrigando a

Administração pública em sua integralidade, abrangendo os poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário, da União, estados e municípios – em todos os seus órgãos e

repartições administrativas. A seguir, tentar-se-á compreender o significado dessa

proíbição, e seus vários desdobramentos sobre o Estado do Paraná, considerando

as particularidades de cada um dos poderes estaduais e a história recente de suas

redes de nepotismo.

44 OLIVEIRA, 2000, p. 34.

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4 A SÚMULA VINCULANTE 13

As súmulas vinculantes surgiram como um dos pontos principais da chamada

“Reforma do Judiciário”, aprovada em 2004 como a emenda constitucional nº 45.

Trata-se de uma tentativa de implementar, no Judiciário brasileiro, a adoção oficial

de uma interpretação fixa a respeito de determinados assuntos, a partir do

posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

Segundo José Afonso da Silva45, já na época do Império se considerava

aplacar a “anomalia” que permitia aos tribunais inferiores a possibilidade de “julgar,

em matéria de direito, o contrário do que tinha decidido o primeiro tribunal do

Império”. A questão da (falta de) legitimidade democrática desse tipo de mecanismo,

principalmente por ser proveniente de um órgão não representativo, como é o

Supremo Tribunal Federal, é também discutida desde meados do século XIX.

Desde 2004, a possibilidade de a corte máxima do país editar esse tipo de

resolução assenta-se no artigo 103-A da Constituição brasileira, que afirma que

o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou mediante provocação, [...] aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal46.

Essas súmulas, portanto, impõem-se sobre todos os níveis da administração

pública no Brasil, e são fiscalizadas diretamente pelo STF, que pode, mediante

reclamação, anular diretamente os atos administrativos ou decisões judiciais que as

contrariem.

O objetivo principal das súmulas vinculantes é a pacificação de eventuais

controvérsias que se estabeleçam no seio do Poder Judiciário (ou entre este e a

administração pública). De acordo com o parágrafo 1º do artigo 103-A, são requisitos

para a edição dessas súmulas a existência de contendas que acarretem “grave

insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”.

Apresentam, portanto, caráter excepcional, sendo que cinquenta e três foram

editadas nos onze anos que seguiram à sua instituição (2004-2015).

45 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 35. ed. São Paulo: Malheiros,

2010, p. 564. 46 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:

Senado, 1988.

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De forma peculiar, a Súmula Vinculante nº 13, editada em agosto de 2008,

não pretende unificar a interpretação a respeito de nenhuma norma jurídica

específica sobre o tema. Em verdade, ela nem se direciona aos juízes e tribunais

(enquanto órgãos jurisdicionais, aplicadores da lei), mas à administração pública de

forma geral:

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

A proibição, num primeiro olhar, é bem ampla. Impede a nomeação, além dos

cônjuges e seus parentes imediatos (sogros e cunhados), de parentes até o terceiro

grau, em linha reta ou colateral, de servidores que estejam investidos “em cargo de

direção, chefia ou assessoramento”. Previsivelmente, não são afetados os

servidores nomeados para exercício de cargo efetivo nem os contratados

temporários, visto que ingressam por meio de processo seletivo público, o que

garante, em tese, o tratamento isonômico dos candidatos. Os verdadeiros afetados

são os chamados cargos de provimento em comissão, que como explica José dos

Santos Carvalho Filho47,

são de ocupação transitória. Seus titulares são nomeados em função da relação de confiança que existe entre eles e a autoridade nomeante. Por isso é que na prática alguns os denominam de cargos de confiança. A natureza desses cargos impede que os titulares adquiram estabilidade. Por outro lado, assim como a nomeação para ocupá-los dispensa a aprovação prévia em concurso público, a exoneração do titular é despida de qualquer formalidade especial e fica a exclusivo critério da autoridade nomeante. Por essa razão é que são considerados de livre nomeação e exoneração.

A impossibilidade de nomeação para cargos em comissão ou de confiança se

dá não apenas por seus parentes, mas por qualquer servidor que integre a mesma

pessoa jurídica. O chamado “nepotismo cruzado” – pelo qual a nomeação de

parentes se dá mediante acordos recíprocos – também pode ser objeto de

47 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo . 16. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006. p. 516.

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30

reclamação para o STF.

A elaboração de uma súmula vinculante a respeito do tema foi proposta pelo

Ministro Ricardo Lewandowski, em consequência a alguns pronunciamentos

anteriores do Supremo Tribunal Federal. Entre outros48, a ADC nº 12, que havia sido

julgada no dia anterior, foi amplamente anunciada como responsável por botar “fim

ao nepotismo no Judiciário”. Este julgamento reconheceu a legitimidade de uma

resolução, firmada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2005, que impossibilitava

a contratação de parentes de magistrados, à exceção de haverem ingressado no

serviço público por meio de concurso49.

A Resolução nº 07 do CNJ afirma ser “vedada a prática de nepotismo em

todos os órgãos do Poder Judiciário”, e define tal prática como sendo o exercício de

cargos em comissão e funções gratificadas, nas mais diversas situações, “por

cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o

terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados”50.

A edição da súmula vinculante 13 serviu para estender essa restrição a todos

os órgãos do Estado brasileiro. Foi, desse modo, menos a formação de uma

interpretação constitucional a respeito do nepotismo (que já havia sido bem

assentada no julgamento do dia anterior), e mais a imposição de uma política

administrativa, com base nessa interpretação, sobre o Estado brasileiro como um

todo.

O termo “nepotismo”, curiosamente, havia sido incluído de forma genérica

pelo Ministro Lewandowski na formulação inicial de sua proposta51, mas foi retirado

em favor de uma definição mais precisa das relações de parentesco que configuram,

na prática, segundo o STF, a existência ou não de atos jurídicos viciados pelo

48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 1.521; Mandado de

Segurança nº 23.780; Recurso Extraordinário nº 579.951. Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>.

49 Esta exceção foi derrubada em 2013 pelo CNJ: “Configura-se nepotismo a designação para função comissionada de servidor público também nos casos em que o parente dele, ocupante de cargo da mesma natureza, não integre os quadros efetivos da administração.” Disponível em <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60864-cnj-esclarece-novas-hipoteses-de-nepotismo>. Acesso em: 10 fev. 2016.

50 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 7 . Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_07.pdf>.

51 “A proibição do nepotismo na Administração Pública, direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, independente de lei, decorrendo diretamente dos princípios contidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal”

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nepotismo52. Num primeiro momento, cogitou-se reproduzir a proibição contida na

Lei nº 8.112/90, em seu art. 117, VIII, que veda ao servidor público a possibilidade

de “manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge,

companheiro ou parente até o segundo grau civil”. Entretanto, em consonância com

o julgamento do dia anterior, que havia declarado a validade da Resolução nº 7 do

Conselho Nacional de Justiça53, os ministros decidiram por uma proibição ainda

mais ampla, demarcando o seu limite até o terceiro grau de parentesco (em linha

reta, colateral ou por afinidade). Além disso, como destacou a Ministra Carmen Lúcia

em julgamento posterior, a configuração do parentesco é objetiva, e independe de

comprovação de “vínculos de amizade e troca de favores”54.

A delimitação da área de abrangência da proibição também foi objeto de

discussão entre os ministros. No lugar de proibir a contratação de parentes num

mesmo “órgão”, como havia sido proposto inicialmente, o Tribunal acabou optando

pelo termo “pessoa jurídica”. Mais do que mera predileção terminológica, a escolha

deste vocábulo significou uma radical ampliação do âmbito de seus efeitos.

O conceito de “órgão”, na administração pública, inclui qualquer unidade que

possui atribuição específica dentro da organização estatal. Carlos Ayres Britto

argumentou que essa definição “está mais de acordo com a imediatidade do vínculo

entre o nomeante e o nomeado”.

52 Essa não foi uma decisão livre de controvérsias. O Ministro Menezes Direito opinou pela

manutenção do termo na súmula e pela ausência de uma definição precisa de nepotismo, o qual seria caracterizado nos casos judiciais concretos, pelos órgãos inferiores – opinião compartilhada, num primeiro momento, por Gilmar Mendes. Segundo ele, “do ponto de vista do conteúdo da súmula, a expressão 'nepotismo' tem mais força, e nós escapamos dessa discussão, que não é pertinente, a meu ver, pelo menos agora, de dizer parentesco até que grau, se aplica o Código Civil, se não aplica”.

53 Resolução nº 7, de 18 de outubro de 2005 [...] Art. 2º: Constituem práticas de nepotismo, dentre outras: I – O exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito jurisdição

de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;

54"Pelos documentos citados, tem-se que o irmão do Impetrante fora investido no cargo de Juiz Federal quando o Impetrante foi nomeado para exercer função comissionada no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. (...) Não prospera, portanto, o argumento de que seria necessária comprovação de 'vínculo de amizade ou troca de favores' entre o irmão do ora Impetrante e o desembargador de quem é assistente processual, pois é a análise objetiva da situação de parentesco entre o servidor e a pessoa nomeada para exercício de cargo em comissão ou de confiança na mesma pessoa jurídica da Administração Pública que configura a situação de nepotismo vedada, originariamente, pela Constituição da República. Logo, é desnecessário demonstrar a intenção de violar a vedação constitucional ou a obtenção de qualquer benefício com o favorecimento de parentes de quem exerça poder na esfera pública para que se estabeleça relação de nepotismo." (MS 27945, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgamento em 26.8.2014, DJe de 4.9.2014)

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As pessoas jurídicas (de direito público), por sua vez, possuem uma definição

incomparavelmente mais ampla. Para se ter uma noção, a União, com toda a sua

estrutura administrativa burocrática (espalhada por todo o território nacional),

constitui uma única pessoa jurídica. Da mesma forma os Estados, Distrito Federal e

Municípios, além das autarquias, fundações públicas e demais entidades criadas por

lei. Gilmar Mendes, em resposta a Ayres Britto, afirmou que “a ideia é abranger, na

verdade, a pessoa jurídica. Porque, se houver intervalos nas relações, por exemplo,

entre o prefeito, ele não pode nomear nem – parece que isso decorre do espírito –

no seu gabinete, nem na secretaria da fazenda”. “Nem na secretaria da saúde”,

completou a Ministra Cármen Lúcia, “nem na secretaria de educação. São dois

órgãos diferentes”55. Os ministros foram unânimes ao admitirem, entretanto, que o

“espírito” da súmula deveria ser tornar a proibição ao nepotismo a mais rígida

possível.

Para que possamos compreender como esse discurso se transformou, e

passou a permitir, como afirmou Ricardo de Oliveira Costa, o nepotismo no “primeiro

escalão”, é interessante fazermos uma retrospectiva dos posicionamentos do STF

relativos à constitucionalidade da prática do nepotismo na Administração pública

brasileira. Esta não é uma discussão que se iniciou em 2008, sendo que diversas

leis e resoluções específicas foram elaboradas com o objetivo de proibir tal prática

em determinados âmbitos e por diversas circunstâncias.

Já em 1997, o STF manifestou-se favoravelmente quanto à validade de uma

emenda à constituição do Rio Grande do Sul, que proibia “a ocupação de de cargos

em comissão 'por cônjuges ou companheiros e parentes, consanguíneos, afins ou

por adoção, até o segundo grau'”, de diversas autoridades, incluindo o Governador,

Procurador-Geral e Defensor Público-Geral do Estado, desembargadores e juízes de

segundo grau, deputados estaduais, conselheiros do Tribunal de Contas do Estado,

e diretores de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista.

Entende-se por “cargo em comissão”, segundo o STF, assentindo com a definição

trazida pela emenda à constituição gaúcha, “somente aqueles destinados à

transmissão das diretrizes políticas para a execução administrativa e ao

55 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diário da justiça eletrônico . nº 214/2008. Disponível em

<www.stf.jus.br/portal/diariojusticaeletronico/pesquisardiarioeletronico.asp>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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assessoramento, com atribuições definidas de direção, chefia e assessoramento”.

Em 2002, o Tribunal pronunciou-se a respeito de uma Lei Orgânica, aprovada

pelo município de Tupanciretã/RS, que proibia a contratação de parentes, para

ocuparem cargos de confiança, pelo prefeito, vice-prefeito, secretários e vereadores

do município. Ficou reconhecida a possibilidade de os municípios disporem sobre

essa matéria, e a lei foi mantida56.

Antes do julgamento que resultou na Súmula Vinculante 13, o passo mais

importante nessa direção havia sido a confirmação da Resolução nº 7 do Conselho

Nacional de Justiça, a qual, como já foi dito, afirma ser “vedada a prática de

nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário”. Três anos depois, o

STF passou a entender que a proibição decorre diretamente dos princípios

constitucionais, e portanto valeria também para os demais poderes.

A edição da súmula significou a disponibilização de um mecanismo facilitado

de controle dessas práticas, que já estavam sendo, em parte, coibidas por alguns

tribunais inferiores, baseando-se nas decisões supramencionadas. Em vez de

passar por um longo processo judicial, embaraçado por tribunais com interpretações

conflitantes, o STF escolheu centralizar a interpretação e o controle do nepotismo

em suas mãos.

O consenso presente entre os ministros, nas atas da audiência que aprovou a

Súmula Vinculante 13 – ampliar ao máximo os efeitos da proibição ao nepotismo –,

logo se desfez. A figura do “agente político”, que poderia ser nomeado sem a

necessidade de se observar a regra que impede a designação de parentes

próximos, é trazida pela primeira vez por Gilmar Mendes, em seu voto no Recurso

Extraordinário nº 579.951/RN. Segundo ele, “é tradição mundial – a situação de John

e Bob Kennedy – e, no próprio plano nacional, muitas vezes parentes ou irmãos

fazem carreiras paralelas e estabelecem um plano de ação (…) sem que haja

56 “A Turma, aplicando a orientação firmada pelo Plenário no julgamento da ADIn 1.521-RS, deu

provimento a recurso extraordinário para reconhecer a constitucionalidade do art. 25 da Lei Orgânica do Município de Tupanciretã do Estado do Rio Grande do Sul - que veda a nomeação, para cargos de confiança, de cônjuges ou parentes consangüíneos ou afins até o terceiro grau ou por adoção, do prefeito, vice-prefeito, secretários e vereadores do município, ressalvada a hipótese de serem servidores públicos efetivos - que havia sido declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça estadual que entendeu ser a mesma ofensiva à iniciativa privativa do chefe do poder executivo para a propositura de norma referente a regime jurídico dos servidores públicos (CF, art. 61, II, b)”. Precedente citado: ADIn 1.521-RS (DJU de 17.3.2000). RE 183.952-RS, rel. Min. Néri da Silveira, 19.3.2002.(RE-183952)

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qualquer conotação de nepotismo”.

O entendimento, de que cargos que cumprem “funções de natureza

eminentemente política” não estão sujeitos à vedação que acomete os demais

servidores públicos, consolida-se principalmente a partir do julgamento de uma

reclamação que visava impedir a nomeação de Eduardo Requião de Mello e Silva,

irmão do, na época, governador Roberto Requião de Mello e Silva, como Secretário

Estadual de Transporte57. O Secretário manteve-se no cargo, com o argumento de

que se tratava de “cargo de natureza política”.

Este termo consolidou-se firmemente na jurisprudência do STF, tanto que

ocupa capítulo próprio em página dedicada à “aplicação das súmulas”, no próprio

sítio do tribunal58. A página reúne trechos de decisões que representam

posicionamentos específicos do STF, servindo para balizar a interpretação das

súmulas pelos operadores do Direito. No subtítulo “nepotismo e agente político”,

afirma-se que “ressalvada situação de fraude à lei, a nomeação de parentes para

cargos públicos de natureza política não desrespeita o conteúdo normativo do

enunciado da Súmula Vinculante 13”59. Há também uma tentativa de diferenciar os

“cargos políticos” daqueles meramente administrativos:

Os cargos políticos são caracterizados não apenas por serem de livre

nomeação ou exoneração, fundadas na fidúcia, mas também por seus titulares

serem detentores de um munus governamental decorrente da Constituição Federal,

não estando os seus ocupantes enquadrados na classificação de agentes

administrativos60.

A mudança do entendimento dos ministros sobre o que caracteriza, na

57 "AGRAVO REGIMENTAL EM MEDIDA CAUTELAR EM RECLAMAÇÃO. NOMEAÇÃO DE IRMÃO

DE GOVERNADOR DE ESTADO. CARGO DE SECRETÁRIO DE ESTADO. NEPOTISMO. SÚMULA VINCULANTE Nº 13. INAPLICABILIDADE AO CASO. CARGO DE NATUREZA POLÍTICA. AGENTE POLÍTICO. ENTENDIMENTO FIRMADO NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951/RN. OCORRÊNCIA DA FUMAÇA DO BOM DIREITO. 1. Impossibilidade de submissão do reclamante, Secretário Estadual de Transporte, agente político, às hipóteses expressamente elencadas na Súmula Vinculante nº 13, por se tratar de cargo de natureza política. 2. Existência de precedente do Plenário do Tribunal: RE 579.951/RN, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE 12.9.2008.”

58 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Aplicação das súmulas no STF . Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=1227>. Acesso em: 10 jan. 2016.

59 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 825682, Relator Ministro Teori Zavascki. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 10 jan. 2016.

60 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 7590, Relator Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgamento em 30.9.2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em 10 jan. 2016.

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administração pública brasileira, a figura do nepotismo, é notável. Já num primeiro

olhar, é curioso ver que a justificativa utilizada para o estabelecimento de uma

proibição ampla – o exemplo, antes inconcebível, de um prefeito indicando um

parente próximo para ocupar o cargo de secretário municipal –, passa a ser

completamente aceitável com a mudança de interpretação se segue, a partir da

introdução do termo “cargo de natureza política”.

É inegável, entretanto, que a edição da súmula foi um marco importante para

o debate nacional sobre o tema. Muitas decisões de tribunais inferiores foram

proferidas com base nesse precedente, e o “combate ao nepotismo” passou a ser

assunto jornalístico frequente nos anos que se seguiram. A seguir, tentaremos

entender os efeitos práticos que resultaram da Súmula Vinculante 13, tomando por

base o Estado do Paraná.

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5 O CASO PARANAENSE

5.1 PODER EXECUTIVO

A proibição do nepotismo no Executivo é um caso paradoxal. É, em muitos

aspectos, o ambiente onde a incidência da súmula mais se faz sentir, devido ao

grande número de cargos comissionados que se encontram disponíveis. Não

apenas a cúpula do governo estadual ou os prefeitos estão sujeitos à proibição, mas

as autarquias, empresas públicas e outras entidades, ligadas direta ou indiretamente

ao Poder Executivo, também devem respeitar a regra que veda a nomeação de

parentes. Por outro lado, a exceção concedida aos “cargos políticos” beneficia quase

que exclusivamente o Executivo, em especial nas figuras de Secretário estadual ou

municipal - cargos de grande “status”, pelos quais passam boa parte da receita e

dos investimentos públicos estaduais e municipais.

Em âmbito estadual, os dois últimos Governadores tomaram decisões, bem

publicizadas nos meios de comunicação, de indicação de parentes para importantes

secretarias e outros cargos de alto escalão no Governo do Paraná. Como já se viu, a

nomeação de Eduardo Requião para a Secretaria de Transporte, em 2008, culminou

na mudança de interpretação do STF, que acrescentou uma ressalva em relação a

esses cargos. Além dessa função, Eduardo Requião chegou a acumular também a

superintendência da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA),

igualmente nomeado pelo irmão Governador. Seu outro irmão, Maurício, foi

secretário da Educação do governo de Roberto Requião, cargo que deixou após

assumir vaga no Tribunal de Contas do Estado do Paraná (da qual seria, no ano

seguinte, defenestrado pelo STF)61.

Outros parentes receberam cargos importantes durante o mandato de

Requião. Sua esposa, Maristela, dirigiu o Museu Oscar Niemeyer de 2004 até 2009,

ano em que foi obrigada a deixar o cargo – não por acusações de nepotismo, mas

por acúmulo de cargos públicos, uma vez que havia sido indicada, ainda em 2003,

61 GONÇALVES, A. Nepotismo remonta a avô de Requião. Gazeta do Povo . Curitiba, ago. 2008.

Disponível em <http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/conexao-brasilia/nepotismo-remonta-ao-bisavo-de-requiao>. Acesso em: 16 jan. 2016.

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para um cargo em comissão na administração estadual62. Dois de seus sobrinhos,

Paikan Salomon de Mello e Silva e João Arruda Sobrinho, também foram

beneficiados. O primeiro virou produtor da TV Educativa, enquanto que o segundo

assumiu a superintendência da Companhia de Habitação do Paraná (COHAPAR).

A figura de Roberto Requião já é, em si, resultante de redes políticas que

acumulam várias gerações. A família Mello e Silva, segundo Ricardo Costa, “chegou

na província do Paraná por meio do nepotismo”, quando seu bisavô, Justiniano de

Mello e Silva, obteve o cargo de de Secretário da Presidência do Paraná de um

parente, Dr. Martinho de Freitas63. Seu avô, Wallace de Mello e Silva, foi vereador

em Curitiba, deputado e comandante da Guarda Nacional. O pai, Wallace Thadeu de

Mello e Silva, foi vereador e prefeito de Curitiba nas décadas de 1940 e 50.

Carlos Alberto “Beto” Richa, que sucedeu Requião no Governo do Paraná em

2011, é também herdeiro de redes de poder e de nepotismo que o antecederam.

Entretanto, representa um tipo mais novo de nepotismo, “surgido com a

redemocratização das eleições de 1982, [que] representou a abertura de uma nova

janela de oportunidades para que novas famílias políticas se formassem e

ocupassem o cenário do poder político no Paraná”64. Seu pai, José Richa, foi

Governador do Paraná e Senador da República, e ingressou na política como

apadrinhado de Ney Braga. A união de Beto Richa com Fernanda Bernardi Vieira,

herdeira do banqueiro Tomaz Edison Andrade Vieira, do Banco Bamerindus,

representa a convergência do capital financeiro com o capital político, acumulado

por José Richa.

A família Richa, embora não tenha origens na classe dominante histórica do

Paraná, tratou logo de reproduzir as mesmas redes políticas de nepotismo e

influência que caracterizam esse grupo. Tal movimento chega ao seu ápice com a

eleição de Beto Richa para o Governo estadual. De forma muito similar a seu

antecessor, e amparado pela exceção conferida aos cargos políticos, Richa indica o

irmão, José “Pepe” Richa Filho, para a Secretaria estadual de Infraestrutura e

Logística, uma “supersecretaria”, que passou a unificar as pastas relacionadas a 62 PARDELLAS, S. A escolha de Requião. IstoÉ . São Paulo, fev. 2009. Disponível em

<http://www.istoe.com.br/reportagens/19669_A+ESCOLHA+DE+REQUIAO>. Acesso em: 10 jan. 2016.

63 OLIVEIRA, Ricado Costa de. Na teia do nepotismo : Sociologia política das relações de parentesco e poder político no Paraná e no Brasil. Curitiba: Insight, 2012. p. 128.

64 Ibid., p. 151.

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transportes e obras65. Além disso, sua esposa foi indicada para comandar a

secretaria da Família e Assistência Social. Ambas foram, diga-se, criadas pelo novo

governador, “contemplando atribuições e recursos de outras secretarias” já

existentes66. (Gazeta, Nepotismo “legal” persiste na gestão de Beto Richa). O filho,

Marcello Richa, de apenas 25 anos e com graduação incompleta em Direito, foi

indicado em 2010, pelo vice de seu pai, Luciano Dutti, para a Secretaria do Esporte

e Juventude da cidade de Curitiba – o mesmo ano no qual Beto Richa renunciou à

Prefeitura da capital para concorrer ao Governo do Estado.

No caso do irmão e da esposa do Governador (à época, Prefeito de Curitiba),

a Súmula Vinculante 13 resultou apenas em sua “promoção” para cargos do primeiro

escalão do Governo Estadual e da Prefeitura de Curitiba. Ambos ocupavam cargos

em comissão até 2008, quando o Ministério Público do Estado do Paraná ajuizou

uma Ação Civil Pública, pedindo a exoneração dos dois com base na SV 13. A ação

nem chegou a ser julgada, visto que Fernanda Richa e José Richa Filho

apresentaram, em petição, a notícia de que foram exonerados dos cargos em

comissão que ocupavam no Município de Curitiba.67 No ano seguinte, ambos foram

recontratados, o irmão como Secretário de Administração, e a esposa como

presidente da Fundação de Ação Social (FAS) - o que, na prática, torna-os

invulneráveis ao alcance da proibição ao nepotismo.

Gustavo Fruet, que assumiu a prefeitura de Curitiba em 2013, manteve a

tradição de nomear a esposa para a direção da FAS, e também indicou a irmã,

Eleonora Fruet, para a Secretaria de Finanças68.

65 OLINDA, Caroline. Richa reproduz nepotismo de Requião. Gazeta do Povo . Curitiba, dez. 2010.

Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/richa-reproduz-nepotismo-de-requiao->. Acesso em: 10 jan. 2016.

66 MOSER. Sandro. Nepotismo “legal” persiste na gestão de Beto Richa. Gazeta do Povo . Curitiba, dez. 2010. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/nepotismo-legal-persiste-na-gestao-de-beto-richa->. Acesso em: 10 jan. 2016.

67 Em suas razões, o Ministério Público do Estado do Paraná alega que ajuizou ação civil pública contra o Município de Curitiba e Outros, com o objetivo de coibir o nepotismo no âmbito do Poder Executivo Municipal diante das informações prestadas por este, revelando a existência de parentes do atual Prefeito Municipal e de um Secretário Municipal titularizando cargos em comissão no Poder Executivo Municipal da esposa do atual prefeito Fernanda Bernardi Vieira Richa, José Richa Filho (irmão do Prefeito) e Iranil dos Santos Júnior (sobrinho do atual Secretário Municipal de defesa Social). Como fundamento da ação Civil Pública, o Ministério Público sustentou que a ocupação dos cargos em comissão e funções de confiança por parentes dos ocupantes dos referidos cargos, ofende os princípios constitucionais norteadores da Administração Pública, estabelecidos no artigo 37, caput da Constituição Federal. 469970-9 (Decisão Monocrática)

68 Al’HANATI, Y. Técnicos e parentes compõem o futuro secretariado de Fruet. Gazeta do Povo . Curitiba, dez. 2012. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/tecnicos-e-parentes-compoem-o-futuro-secretariado-de-fruet-eyowp8bp48xyip2rjcsjjbcjy>. Acesso em: 10 jan.

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A situação das demais prefeituras revela um quadro similar: a estratégia

política de promover parentes ao primeiro escalão é bem difundida entre os prefeitos

paranaenses, como mostra pesquisa da Gazeta do Povo. De acordo com o jornal,

em 2009, 41 prefeitos empregavam parentes (que de outra forma estariam

impedidos) de modo direto para cargos de secretários municipais69. Uma análise às

decisões do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) revela que a prática de elevar

parentes a cargos importantes ou “políticos”, em consonância com a interpretação

dada pelo STF à Súmula Vinculante 13, está firmemente amparada pelo Judiciário

paranaense, e tornou-se corriqueira entre os prefeitos do Paraná. Um grande

número de decisões do tribunal refere-se à matéria, em sua maioria confirmando a

possibilidade de o prefeito nomear parentes para o cargo de secretário municipal.

No município de Terra Roxa, por exemplo, uma ação civil pública foi

instaurada tendo como objeto a “nomeação da esposa, filha e genro do prefeito para

cargos de secretaria, diretoria e assessoramento”. O TJ-PR, em decisão, afirmou

não se tratar de cargo público, “cujo nepotismo é efetivamente vedado”, mas “de

cargo de natureza política, para o qual não subsiste qualquer vedação para a

nomeação de parentes”.70

Os raros casos nos quais a SV13 é mencionada na condenação de prefeitos

diz respeito a cargos comissionados distantes do “primeiro escalão”. Um exemplo é

o prefeito do município de Jussara, que foi condenado por improbidade

administrativa por ter nomeado a mãe para cargo em comissão, e por tê-la mantido

no cargo por 3 meses após a vigência da súmula. No município de Santa Helena, o

prefeito foi condenado por improbidade administrativa por manter cinco parentes em

cargos comissionados, mas teve sua sentença parcialmente reformada, já que três

desses cargos foram considerados “políticos”, e portanto inatingíveis pela proibição

ao nepotismo. “Segundo entendimento dos ministros do STF”, afirma a decisão, a

nomeação de parentes para cargos políticos “é apenas ‘tolerada’, se, no caso

concreto, não ficar constada fraude à lei, violação aos princípios constitucionais,

2016.

69 DEDA, R.; WURMEISTER, F. Nepotismo é comum em municípios do PR. Gazeta do Povo . Curitiba, jul. 2009. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/nepotismo-e-comum-em-municipios-do-pr-bno4uvm9w0e5i9h33rppk8hn2>. Acesso em: 10 jan. 2016.

70 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação Civel nº 1.070.167-2, de Terra Roxa - Vara Única.

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40

favorecimento de parentes ou nepotismo cruzado”71.

5.2 PODER LEGISLATIVO

O Poder Legislativo paranaense é um ótimo campo de pesquisa sobre os

pontos de contato entre política e parentesco. Isso porque a importância do

sobrenome na escolha de cargos representativos nunca esteve tão em alta, a julgar

pelo pleito de 2014. Entre os deputados estaduais eleitos neste ano, 15 são

descendentes ou afins de políticos locais consagrados, um aumento de 50% em

comparação com a eleição anterior. Este número representa quase 30% das

cadeiras na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep)72.

A questão dos servidores comissionados na Alep tem sido assunto muito

publicizado. O excesso de funcionários sem vínculo com a Administração, que

segundo o STF não pode ultrapassar o número de servidores efetivos, foi objeto de

diversas contestações nos últimos anos. Em 2012, a Ordem dos Advogados do

Brasil ajuizou ação de inconstitucionalidade contra lei estadual que criou 1.677

novos cargos de livre nomeação na Assembleia. Segundo a OAB, haveria cerca de

2,2 mil cargos comissionados contra menos de 500 efetivos na Alep. O escândalo

conhecido como os “Diários Secretos”, revelado em 2010, mostrou como a utilização

71 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação Civel Nº 960.292-4, de Umuarama - 2ª Vara Cível. 72 Alexandre Curi (PMDB) – neto do ex-presidente da Alep, Aníbal Khury;

André Bueno (PDT) - filho do ex-deputado e atual prefeito de Cascavel, Edgar Bueno; Anibelli Neto (PMDB) – filho do ex-deputado Antônio Martins Anibelli, e neto do também ex-parlamentar Antônio Anibelli; Artagão Júnior (PMDB) – filho do ex-deputado e atual presidente do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Artagão de Mattos Leão; Bernardo Ribas Carli (PSDB) – filho do ex-prefeito de Guarapuava Luiz Fernando Ribas Carli, e irmão do ex-deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho; Evandro Júnior (PSDB) – sobrinho do atual deputado estadual Hermas Brandão Filho, e neto do ex-presidente da Alep Hermas Brandão; Pedro Lupion (DEM) – filho do deputado federal Abelardo Lupion. Alexandre Guimarães (PSC) – filho do prefeito de Campo Largo, Affonso Guimarães; Claudia Pereira (PSC) – esposa do ex-deputado estadual e atual prefeito e Foz do Iguaçu, Reni Pereira; Felipe Francischini (SD) – filho do deputado federal Fernando Francischini; Maria Victória (PP) – filha da deputada federal e vice-governadora eleita Cida Borghetti, e filha do deputado federal eleito Ricardo Barros; Paulo Litro (PSDB) – filho da deputada estadual Rose Litro, e do ex-deputado estadual Luiz Litro; Requião Filho (PMDB) – filho do senador e ex-governador do Paraná por três mandatos, Roberto Requião; Tiago Amaral (PSB) – filho do ex-deputado e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Durval Amaral. Disponível em: <http://g1.globo.com/pr/parana/eleicoes/2014/noticia/2014/10/mae-pai-e-filha-sao-eleitos-para-cargos-publicos-no-parana.html>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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desses cargos, ocupados por funcionários “fantasma” ou laranjas, foi parte de um

esquema de desvio de recursos públicos que pode ter subtraído mais de 200

milhões de reais dos cofres do Estado.

Em relação à Súmula Vinculante 13, o acontecimento mais significativo

envolvendo a Alep foi uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público

Estadual, em 2008, que dois anos depois conseguiu extirpar diversos parentes de

deputados de cargos comissionado. Entre os réus da ação estavam Luiz Fernando

Ribas Carli Filho e seu irmão, Bernardo Guimarães Ribas Carli; Luiz Cláudio

Romanelli e Luiz Cláudio Romanelli Filho; e Nelson Roberto Plácido e Silva Justus e

seu filho, Rafael Cordeiro Justus73.

Quanto às câmaras municipais, em contraponto à situação das prefeituras,

não há um grande número de decisões judiciais referentes à matéria. A mais

significativa envolve o filho de um vereador nomeado pelo prefeito de Salto do

Lontra para um cargo comissionado na prefeitura. O TJ-PR negou a existência de

nepotismo cruzado no caso, afirmando que tal situação só ocorre quando há

explícito “ajuste mediante designações recíprocas”, ou seja, “troca de favores com

nomeação para cargos”74.Caso contrário, a prática não pode ser configurada.

5.3 TRIBUNAL DE CONTAS

Os Tribunais de Contas são órgãos que possuem a atribuição de realizar um

controle externo da Administração pública. Em contraste com a natureza política do

Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas, aos quais também se atribui a

tarefa de fiscalizar o Poder Executivo em âmbito federal e estadual,

respectivamente, os Tribunais de Contas definem-se, em tese, pelo caráter

eminentemente técnico de suas resoluções75. Segundo José Afonso da Silva, “o

controle externo há de ser primordialmente de natureza técnica ou numérico-legal”, e

os Tribunais de Contas, enquanto organismos especializados e independentes em

relação ao Poder Executivo, possuem essa função, “de modo que se garanta a

73 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação civel nº 898.295-4. Disponível em: <http://tj-

pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22299344/8982954-pr-898295-4-acordao-tjpr/inteiro-teor-22299345>. Acesso em: 10 jan. 2016.

74 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação civel nº 1015094-6. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/54953915/djpr-29-05-2013-pg-183>. Acesso em: 10 jan. 2016.

75 SILVA, 2010, p. 760.

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necessária imparcialidade nesta classe de vigilância da execução orçamentária por

parte daquele”76.

Entretanto, como não há definição oficial do que constitui a “natureza técnica”

do controle exercido por esses tribunais, também a escolha de seus Conselheiros

não sofre limitações dessa natureza. Das sete vagas disponíveis para essa função,

que é vitalícia, três são preenchidas por indicação do Governador do Estado, e as

quatro restantes são deliberadas em votação na Assembleia Legislativa.

A maior repercussão da Súmula Vinculante 13 sobre os Tribunais de Contas

Estaduais (TCE) foi impossibilitar a nomeação de parentes, para o cargo de

Conselheiro, nas vagas cujo preenchimento depende de indicação do Governador.

Curiosamente, essa decisão se deu a partir de outro caso que envolveu o ex-

governador do Paraná, Roberto Requião de Mello e Silva e seu irmão, Maurício

Requião, quando este foi escolhido, em 2009, para o cargo de Conselheiro do TCE

paranaense. Além de apontar irregularidades processuais em sua triagem, o STF

decidiu que o cargo não possui natureza política, e, portanto, não está isento das

restrições estabelecidas pela súmula.77

Outra possível consequência da súmula sobre o TCE-PR é eventual

extirpação de parentes próximos em cargos comissionados (que existem em

abundância), nomeados pelos Conselheiros. Em 2000, um levantamento da Folha

de Londrina/Folha do Paraná indicou a profícua presença de parentes no órgão,

havendo 18 familiares nomeados para cargos em comissão78. Embora esse tipo de

nepotismo direto possa ser corrigido via Reclamação endereçada diretamente ao

STF, a presença de dinastias políticas, como a de Antonio Ferreira Rüppel, ainda se

faz sentir muito além das limitações legais. Nove servidores do Tribunal de Contas

paranaense apresentam o sobrenome Rüppel79.

A recente eleição de Fábio Camargo, para o Conselho do TC-PR, demonstra

76 Ibid. 77 "Entendeu-se que estariam presentes os requisitos autorizadores da concessão da liminar.

Considerou-se que a natureza do cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas não se enquatraria no conceito de agente político, uma vez que exerce a função de auxiliar do Legislativo no controle da Administração Pública, e que o processo de nomeação do irmão do Governador, ao menos numa análise perfunctória dos fatos, sugeriria a ocorrência de vícios que maculariam a sua escolha por parte da Assembleia Legislativa do Estado. [...] Concluiu-se que, além desses fatos, a nomeação do irmão, pelo Governador, para ocupar o cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas, agente incumbido pela Constituição de fiscalizar as contas do nomeante, estaria a sugerir, em princípio, desrespeito aos mais elementares postulados republicanos." (Rcl 6702 AgR-MC/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski)

78 OLIVEIRA, 2012, p. 190. 79 Ibid.

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a permanência de extensas redes de nepotismo, que “atravessam os poderes e

conectam as diferentes funções do aparelho de Estado”80, sobre as quais as

limitações estabelecidas pela Súmula Vinculante 13 operam de forma muito exígua.

Em junho de 2014, ele foi afastado do cargo em razão de denúncias de

favorecimento que, apesar de não terem sido amparadas na súmula, acabaram

levando a acusações contra seu pai, então presidente do TJ-PR, que logo renunciou

ao cargo. Fábio é membro da tradicional família política Camargo, “atuante na região

há mais de dois séculos”. Suas relações político-familiares incluem parentesco com:

o atual Deputado Federal Affonso Alves Camargo Neto, ex-Senador, ex-Ministro, neto do Presidente do Paraná, por duas vezes na República Velha, Affonso Alves Camargo. Antonio de Sá Camargo foi o Visconde de Guarapuava, um dos símbolos da política paranaense no Império, parente de outros Camargo ativos no poder contemporâneo. […) Casado com Giovana Maria de Medeiros Iatauro Camargo e o genro do Secretário da Casa Civil e ex-presidente do Tribunal de Contas do Paraná, Rafael Iatauro. A cunhada de Fábio camargo, Gracia de Medeiros Iatauro, já ocupou a Administração da Regional Matriz, uma das principais subdivisões da estrutura da Prefeitura de Curitiba81

Vê-se que as relações de Camargo com o aparelho do Estado, no Legislativo,

Judiciário e no Tribunal de Contas, respaldam-se em sua posição de berço e nas

alianças propiciadas pelo casamento. Esse tipo de rede implica ligações de longa

duração, e se beneficia tanto mais quanto maior e mais dispersa for sua esfera de

influência. A presença de parentes de ex-Conselheiros, no TC-PR, é bem

documentada, e demonstra a dificuldade em se desentranhar redes de nepotismo e

patrimonialismo que se reproduzem e se renovam ao longo das gerações.

5.4 PODER JUDICIÁRIO

Como se viu, o Poder Judiciário foi precursor da experiência de proibição à

contratação de parentes, em razão de resolução firmada em 2005 pelo Conselho

Nacional de Justiça. Este órgão, cuja história é recente e conturbada, foi criado em

2004 com o objetivo de exercer controle externo sobre o Poder Judiciário. Apesar de

não se tratar um controle efetivo (ou seja, as decisões judiciais não podem ser 80 Ibid., p. 81. 81 OLIVEIRA, 2012, p. 191.

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objeto de correção pelo CNJ), o órgão nasceu com a prerrogativa de operar uma

fiscalização administrativa, disciplinar e de desvios de condutas da magistratura, em

âmbito estadual e federal82. O artigo 103-B da Constituição afirma competir ao

Conselho Nacional de Justiça “o controle da atuação administrativa e financeira do

Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, zelando por

sua autonomia e pela observância dos princípios da legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência”.

Frederico Ribeiro Normanha de Almeida83 demonstrou a existência de um

“campo político” que se constitui dentro do aparelho de justiça estatal. Trata-se de

“um subcampo do campo jurídico delimitado pela ação de certas instituições e

agentes, dotados de estruturas diferenciadas de capitais simbólicos, que, de acordo

com sua origem, seu volume e sua distribuição relativa, permitem identificar e medir

o poder das elites jurídicas que gravitam em torno do controle da administração da

justiça estatal”. Ou seja, embora seja possível atribuir ao Poder Judiciário uma

racionalidade jurídica específica, diversa daquela operada pelos demais agentes

estatais, o aparelho institucional estatal, no qual se constitui, pauta-se em lógica

semelhante à dos demais poderes. O Judiciário sempre foi perpassado por redes de

parentesco e conexões políticas, frequentemente envolvendo outros poderes e

entidades da Administração Pública.

Talvez o exemplo mais notável desse fenômeno, nos últimos anos, envolve

outro representante da família Camargo – o desembargador Clayton Camargo, pai

de Fábio Camargo e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná. Tendo iniciado

sua carreira como promotor de justiça, foi nomeado juiz do extinto Tribunal de

Alçada em 1995, e promovido ao cargo de desembargador em 2003. Seu pai,

Heliantho Camargo, também fora desembargador e chegara a presidir o TJ-PR, e

sua filha, Vanessa Camargo, é juíza de Direito em Curitiba. Em 2013, uma série de

denúncias de irregularidades na sua gestão o levaram a renunciar à Presidência do

tribunal. Além de ter sido acusado de vender sentenças, inclusive por meio de uma

“máfia que manipula a administração de processos de falências no estado”84, ele é

82 SILVA, 2010, p. 568. 83 ALMEIDA, Frederico R. N. de. A nobreza togada : As elites políticas e a política da Justiça no

Brasil. 2010. Tese de doutorado - FFLCH - USP. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php>.

84 GONÇALVES, A. Clayton Camargo pede aposentadoria, mas processo é suspenso pelo CNJ. Gazeta do povo . Curitiba, set. 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/clayton-camargo-pede-aposentadoria-mas-processo-e-suspenso-pelo-cnj-

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investigado pelo CNJ pela prática de tráfico de influência na escolha de seu filho,

Fábio Camargo, para o cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas paranaense.

O TJ-PR, diga-se, foi especialmente afetado pela crescente atuação do CNJ

na política judiciária brasileira, que restou fortalecida após a decisão, proferida pelo

STF, a qual reafirmou a possibilidade de o órgão legislar sobre matérias referentes

aos tribunais estaduais. Já em 2006, o TJ-PR se autoconcedeu liminar contra a

Resolução 7 do CNJ85, conseguindo manter temporariamente 52 parentes de

desembargadores em cargos comissionados ligados a seus gabinetes. A liminar

vigorou por pouco tempo e a proibição foi efetivada, mas as denúncias de

favorecimento continuaram sendo noticiadas.

Em 2013, uma correição do CNJ identificou casos de nepotismo em cargos

comissionados “em gabinetes de desembargadores e de juízes, na capital e no

interior”. Após ter sido intimado, o TJ-PR exonerou 27 servidores. A inspeção

identificou inúmeros problemas no órgão, entre eles indícios de “nepotismo direto e

cruzado entre os funcionários do TJ”, além de um excesso de cargos

comissionados. Além disso, verificou-se um que 89% dos cargos comissionados

eram ocupados por servidores sem vínculo com a Administração, número muito

superior ao limite estabelecido pelo CNJ, que é de 50%86. Em nota, o tribunal alegou

que “tem adotado todas as medidas necessárias para evitar a ocorrência de

nepotismo”, e que nenhum caso específico havia sido apontado pelo CNJ.

A importância do parentesco no sistema judicial paranaense vai além da

concessão de cargos técnicos a parentes, entretanto. De forma muito semelhante

em relação aos demais poderes, o Judiciário abriga famílias que constituem

“verdadeiras dinastias de agentes que ocupam posições dominantes”, a partir de

uma “estrutura de poder de longa duração, baseada em relações de parentesco”,

que se reproduz ao longo das gerações. Além da família Camargo, destacam-se as

famílias Macedo, Azevedo Portugal, e Albuquerque Maranhão. As duas primeiras

estão presentes no cenário político desde o período imperial, e a última desde o

3qbvob5dvfwl6ic942qophvm6>. Acesso em: 10 jan. 2016.

85 KONIG, M.; NEVES, D. Liminar do TJ garante emprego de parentes de magistrados. Gazeta do povo . Curitiba, fev. 2006. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/liminar-do-tj-garante-emprego-de-parentes-de-magistrados-9vkaii5yxnlabb6rfvg29a72m>. Acesso em: 10 jan. 2016.

86 GARCIA, E. L. TJ exonera 27 servidores comissionados por nepotismo. Gazeta do povo . Curitiba, ago. 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/tj-exonera-27-servidores-comissionados-por-nepotismo-c1mrg6bwgm2zsxq0119z8nfpq>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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Brasil colonial87. Todas as três se originaram a partir da grande propriedade

fundiária, e conseguiram se inserir, a partir do fenômeno do bacharelismo, no

aparelho do Estado por meio de cargos políticos e burocráticos. Seria ingenuidade

imaginar que qualquer esforço genérico de “proibição ao nepotismo” – inclusive a

referida súmula – tenha qualquer impacto prático em tais casos, tamanha a

infiltração familiar no seio do Estado.

87 OLIVEIRA, 2012, p. 182.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nepotismo, enquanto conceito, ainda é muito fracamente definido nas

ciências sociais, embora apareça incessantemente no discurso popular e nos meios

de comunicação. Apesar de parecer inequívoco, trata-se de um fenômeno complexo

e multifacetado, e que nos remete a questões fundamentais sobre a sociabilidade

humana, em todas as suas dimensões.

Sem a intenção de cometer qualquer falácia de cunho naturalista, o fato é que

o nepotismo – normalmente carregado de valores negativos – parece representar

um aspecto integrante (natural?) das relações entre seres humanos. Algumas

atitudes corriqueiramente atribuídas à parentalidade – como um pai que matricula o

filho em uma escola “de elite”, ato que sem dúvidas abrirá portas geralmente

inacessíveis aos que ficam de fora – não nos aguçam a sensibilidade moral da

mesma forma que, por exemplo, o filho de um juiz trabalhando em seu gabinete às

custas do erário. Não há dúvidas, porém, que ambas as atitudes possuem

motivações semelhantes.

Se é verdade, como afirma Bellow, que “o nepotismo em si não é nem bom

nem mau; importa mesmo como ele é praticado”88, o fato é que o nepotismo no

Brasil tem sido muito mal praticado ao longo de sua história. E nisto todos os autores

analisados concordam.

Mas é preciso também evitar falsas dicotomias, como aquela que contrapõe,

de forma absoluta e sem qualificações, o “atraso” institucional brasileiro ao

“desenvolvimento” europeu ou norte-americano. Jessé Souza89 argumenta que o

conceito de patrimonialismo, da maneira como foi empregado por autores como

Buarque de Holanda e Faoro, deu margem para esse tipo de interpretação.

O primeiro, diz ele, “introduz um eixo temático” que domina o pensamento

social brasileiro desde então: o de que a “nossa mentalidade é avessa ao

associativismo racional típico dos países protestantes, especialmente dos

calvinistas”, e segundo o qual somos incapazes de “superar o imediatismo

emocional que caracteriza as relações sociais dos grupos primários como a família”.

88 BELLOW, 2006, p. 33. 89 SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de

Ciências Sociais , São Paulo, v. 13, n. 38, out. 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300006>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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À análise culturalista de Buarque de Holanda, segue-se a tradição institucionalista

de Faoro, que percebe “a especificidade do atraso brasileiro a partir da herança

portuguesa da transplantação de um aparato estatal patrimonialista, lá operante

desde a Idade Média”. A implantação de um Estado “patrimonial, estamental e

centralizador” é a explicação, em Faoro, para a diferença entre os resultados da

colonização portuguesa e inglesa no continente americano.

Entretanto, Jessé Souza alerta para a ambiguidade inerente a qualquer

formação social humana, pela existência de “formas alternativas de solidariedade

social em sentido amplo”. A ética protestante - que em grande parte, contribuiu para

o desenvolvimento de instituições impessoais e do “indivíduo moderno”, em

oposição à “obediência pessoal da autoridade patriarcal” - é a mesma que justificou

os mais diversos tipos de segregação (segundo Souza, pela secularização de seu

princípio sectário). Além disso, a existência de famílias políticas centenárias não é

particularidade brasileira, e o baixo grau de mobilidade social e crescente

desigualdade de renda é cada vez mais preocupante também nos Estados Unidos90.

Souza acredita, inclusive, que o foco demasiado na “corrupção estatal” é

equivocado, por criar um falso conflito entre o mercado, reino virtuoso das atividades

privadas, e o Estado – corrupto, ineficiente, patrimonialista. Para ele, essa dicotomia

não consegue apreender a complexidade da questão, sob o preço de “deixar à

sombra todas as contradições de uma sociedade que naturaliza desigualdades

sociais abissais e um cotidiano de carência e exclusão”91.

O conceito corriqueiro de patrimonialismo faz referência a uma suposta

“confusão” entre o público e o privado. Mas para fazermos justiça ao termo devemos

retornar à sua origem weberiana: uma forma de dominação política. Seja resquício

de formas tradicionais de sociabilidade, como em Buarque de Holanda; seja

exercido por uma elite estamental, como em Faoro; ou se apropriando do ambiente

legal-contratual moderno, como em Schwartzman, o patrimonialismo é um meio de

sobrevivência de elites políticas, e ao mesmo tempo forma de legitimação de seu

poder. Difere fundamentalmente, portanto, de práticas corriqueiras de nepotismo,

90 KRUGMAN, P. The Great Gatsby curve. The New York Times . Disponível em:

<http://krugman.blogs.nytimes.com/2012/01/15/the-great-gatsby-curve/>. Acesso em: 16 jan. 2016. 91 SOUZA, Jessé. A atualidade de Max Weber no Brasil. Revista Cult . São Paulo, mar. 2010.

Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-atualidade-de-max-weber-no-brasil/>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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apesar de utilizar-se do nepotismo como instrumento para sua própria reprodução

no tempo e no espaço.

A realidade, entretanto, é muito mais complexa do que qualquer delimitação

conceitual. A experiência brasileira de “proibição ao nepotismo” suscita questões

interessantes para se pensar a relação entre política e parentesco no Brasil. Em

primeiro lugar, o papel crescente do STF – um órgão com membros não eleitos – na

organização administrativa e político-partidária nacional. Segundo, poderia a

abrangência das normas emanadas por esse órgão, como a Súmula Vinculante 13 –

que afetou virtualmente toda a Administração pública, em todos os seus níveis e de

forma imediata – significar uma tendência de diminuição do poder das elites locais?

Não há como ter certeza. O que a pesquisa nos mostra é que, embora a

súmula tenha proporcionado alguns resultados visíveis, a família ainda é uma

variável extremamente importante na política paranaense. Uma das estratégias

familiares para burlar a proibição é o chamado “nepotismo cruzado”, que é difícil de

ser identificado, mas alguns levantamentos indicam que se proliferou a partir de

200692.Embora seja prática proibida, a interpretação da lei pelo TJ-PR tem sido

leniente com os réus, exigindo provas inequívocas de que houve troca de favores,

ou “ajuste mediante designações recíprocas”.

A possibilidade de que a súmula limite a penetração de poucas famílias no

aparelho do Estado também existe – há, afinal, um número limitado de favores a

serem trocados. Neste caso, teríamos, na melhor das hipóteses, uma oxigenação

proporcionada pela ascensão de outras linhagens que se aproveitem e ocupem seu

espaço. Embora seja possível imaginar que estas simplesmente reproduzam as

formas de dominação características das elites locais, é possível que um aumento

de competitividade leve a um enfraquecimento de tais meios de atuação. Trata-se de

hipótese que merece ser melhor investigada.

Entretanto, mesmo que a súmula aumente a competitividade entre elites

políticas – com a consequente diminuição de sua esfera de influência –, muitas das

políticas de cunho patrimonialista já operam à margem da lei. Apenas o

fortalecimento democrático das instituições, inclusive da polícia judiciária, pode

contê-las.

92 LIMA, C. C. Nepotismo se ramifica em todos os escalões do poder público. Gazeta do povo .

Curitiba, ago. 2008. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/nepotismo-se-ramifica-em-todos-os-escaloes-do-poder-publico-b5lwsecprg2an9c57ia2jevri>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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Tomando como pressuposto que a formação de elites políticas é algo

inevitável nas sociedades democráticas modernas, devemos nos perguntar,

segundo Bellow, sobre que tipo de elites teremos: “uma elite aberta, meritocrática,

constantemente renovada, [...] ou uma elite fechada, exclusivista, que apenas busca

perpetuar o seu poder e os seus privilégios?”93. A questão, a meu ver, está em

aberto.

93 BELLOW, 2006, p. 32.

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REFERÊNCIAS

AL’HANATI, Y. Técnicos e parentes compõem o futuro secretariado de Fruet. Gazeta do Povo . Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/tecnicos-e-parentes-compoem-o-futuro-secretariado-de-fruet-eyowp8bp48xyip2rjcsjjbcjy>. Acesso em: 10 jan. 2016. ALMEIDA, Frederico R. N. de. A nobreza togada: As elites políticas e a política da Justiça no Brasil . 2010. Tese de doutorado - FFLCH - USP. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php>. BELLOW, Adam. Em louvor do nepotismo : uma história natural. São Paulo: A Girafa Editora, 2006. BLUNDO, G.; J.-F. MÉDARD, J.-F. La corruption en Afrique francophone . 2002, pp. 10- 11, citado por BRUHNS, 2012. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas : Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 7 . Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_07.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016. ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil . Brasília, DF: Senado, 1988. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 1.521; Mandado de Segurança nº 23.780; Recurso Extraordinário nº 579.951. Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 10 jan. 2016. ______. ______. Aplicação das súmulas no STF . Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=1227>. Acesso em: 10 jan. 2016. ______. ______. Diário da justiça eletrônico. nº 214/2008 . Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/diariojusticaeletronico/pesquisardiarioeletronico.asp>. Acesso em: 10 jan. 2016.

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