288
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NÚCLEO DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CONHECIMENTO LORETA MELO BEZERRA CAVALCANTI DOR, SOFRIMENTO E EDUCAÇÃO: A FILIGRANA DAS EXPERIÊNCIAS NA GINÁSTICA RÍTMICA NATAL-RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

NÚCLEO DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CONHECIMENTO

LORETA MELO BEZERRA CAVALCANTI

DOR, SOFRIMENTO E EDUCAÇÃO: A FILIGRANA DAS EXPERIÊNCIAS NA GINÁSTICA RÍTMICA

NATAL-RN 2017

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LORETA MELO BEZERRA CAVALCANTI

DOR, SOFRIMENTO E EDUCAÇÃO: A FILIGRANA DAS EXPERIÊNCIAS NA GINÁSTICA RÍTMICA

Tese de Doutorado pelo Programa de Pós-

Graduação em Educação (PPGEd), como

requisito parcial para obtenção do título de

doutora em Educação, pela linha de pesquisa

Educação, Comunicação, Linguagens e

Conhecimento da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte.

NATAL-RN 2017

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Divisão de Serviços Técnicos.

Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do NEPSA / CCSA

LORETA MELO BEZERRA CAVALCANTI

Cavalcanti, Loreta Melo Bezerra.

Dor, sofrimento e educação: a filigrana das experiências na ginástica rítmica /

Loreta Melo Bezerra Cavalcanti. - Natal, 2017.

286f.: il.

Orientador: Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Educação. Programa de Pós-graduação em Educação.

1. Educação – Tese. 2. Ginástica Rítmica – Tese. 3. Dor – Tese. 4. Sofrimento

- Tese. 5. Estesia - Tese. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Universidade Federal

do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BS CDU 37.015.31:796.412

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DOR, SOFRIMENTO E EDUCAÇÃO: A FILIGRANA DAS EXPERIÊNCIAS NA GINÁSTICA RÍTMICA

Tese de Doutorado pelo Programa de Pós-

Graduação em Educação (PPGEd), como

requisito parcial para obtenção do título de

doutora em Educação, pela linha de pesquisa

Educação, Comunicação, Linguagens e

Conhecimento da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte.

Aprovado em ____/____/_____

BANCA AVALIADORA

Prof.ª Dr. ª Karenine de Oliveira Porpino - UFRN (Presidente da banca)

Prof. Dr. José Pereira de Melo – UFRN (Examinador interno)

Prof.ª Dr.ª Rosie Marie Nascimento de Medeiros - UFRN (Examinadora interna)

Prof.ª Dr.ª Ieda Parra Barbosa Rinaldi - UEM (Examinadora externa)

Prof. Dr. Raimundo Nonato Assunção Viana – UFMA (Examinador externo)

Prof. Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha – UFPB (Suplente externo)

Prof.ª Dr.ª Maria Isabel Brandão de Souza Mendes – UFRN (Suplente interna)

NATAL-RN 2017

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Dedico este trabalho a cada ginasta, bailarino ou bailarina que doa a gestualidade do seu corpo para tocar as pessoas.

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AGRADECIMENTOS

Penso que ser grata constitui um investimento existencial e não uma atitude

estagnada perante aqueles que te fazem/fizeram bem. Gratidão é sinergia, é

movimento, é disseminar o perfume da alma, supõe reconhecimento do outro e do

quanto ele te transformou, porque ninguém faz nada sozinho.

Por isso, inicio agradecendo à minha família, com quem divido um lar, que

suportou um turbilhão de sabores e dessabores nesses últimos três anos: separações,

trocas de endereço, dificuldades financeiras, mortes, conquistas materiais, celebração

da saúde, dificuldades na doença, convivência, comilanças, risadas, choros, viagens...

Obrigada mamãe, Davi, Anderson e Lylian.

Agradeço ao meu pai pelo apoio que me encaminhou para a docência, me

aconselhando a seguir esse projeto de vida tão belo, difícil, mas gratificante.

Não posso esquecer da pessoa que mais acreditou em mim, acompanhando

cada passo desde o meu nascimento, vibrando a cada conquista e me aninhando em

momentos de dificuldade, mesmo que ela não possa mais ler essas palavras, não a

esqueço um só dia: tia Neusa. Ela é representada nessas ocasiões pelo meu primo,

professor Dr. João Maria Valença, muito obrigada!

À minha orientadora, professora Dr.ª Karenine Porpino, pela paciência, pelo ser

humano ímpar que se mostra, mantendo uma coerência admirável com as coisas que

estuda e acredita. Obrigada pela motivação, pela calma, pela paciência, pela

sinceridade, pelo sorriso largo e abraço amparador. Agradeço por me orientar com

tanto cuidado nesses últimos três anos e principalmente pela preciosa amizade. Na

verdade (E uso essa expressão como verdade mesmo! Única e inegociável), nada

que eu escrevesse aqui daria conta do tamanho da minha gratidão, sendo assim,

espero poder demonstrar ao longo da nossa existência.

Ao meu namorado Vítor, pela sua cumplicidade e amor nesse percurso do

doutorado, parceiro em todos os aspectos: na alegria das celebrações, dos vinhos,

dos filmes, assim como na resolução de problemas tecnológicos e nas traduções para

as línguas estrangeiras. Estendo esse agradecimento às queridas Meine e Maira

(sogra e cunhada), pessoas leves, doces e sensíveis. E ainda, a rede de amizades

constituída a partir dessa relação, incluindo o grupinho formado por Cynthia, Italo,

Mozart, Schubert, Suerlene, Fernanda, Suelton e Danilo.

Tenho muito a agradecer às ex-ginastas entrevistadas pela disponibilidade com

que se prontificaram para contribuir para a essa pesquisa.

Agradeço as minhas amigas, aquelas que seguram qualquer onda, que me

relembram que distância não é sinônimo de indiferença, bastando um café, ou uma

tarde de sobremesas coloridas para atualizarmos as confissões e relembrarmos o

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porquê de não perdermos o contato desde a infância. Embora houvesse outras para

citar, represento-as em nome de Aline, Alinne, Isabelle e Andrea.

Não posso deixar de agradecer às minhas professoras de Ginástica Rítmica,

com quem mantenho amizade, que me inspiraram para a profissão ao mesmo tempo

que dividimos variadas experiências nesse esporte tão encantador: Maria Helena

Pacheco e Karine Lane. Nesse interim, agradeço as minhas amigas da GR, com quem

dividi na pele muitas das reflexões desse trabalho: Ruze, Vanessa, Bruna, Ingryd,

Renata, Greyce, Dayse e Kelly. Aproveito o parágrafo para agradecer também às

minhas ex-alunas, sobretudo aquelas em quem consigo perceber o reflexo de nossas

vivências.

Agradeço ao Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento –

Estesia, e todos os seus membros, pela intensa contribuição acadêmica nas

produções escritas, convivência, eventos, viagens, projetos e pelos afetos que

permearam todos os nossos fazeres. Cito nominalmente o grupo dos “filhotes de

Karenine”, composto por Adeilza, Bete, Thulho e Cecília. Além dos queridos amigos

Avelino, Paulinha, Arthur e Larissa (agregada).

Agradeço à professora Dr.ª Petrucia, coordenadora do Estesia, pela leitura

atenta e contribuições essenciais na ocasião dos Seminários Doutorais I e II. Meus

agradecimentos se estendem pela inspiração na vida acadêmica e por todas as vezes

que contribuiu para a minha formação.

Ao professor Dr. José Pereira de Melo pela participação no Seminário doutoral

I, pela aprendizagem constante e por aceitar compor essa banca. Aproveito para

mencionar algumas pedras preciosas com quem vivi o sonho da democratização do

Esporte Educacional: Dandara, Mayara, Bruna, Rafael, Rodolfo, Cecília, Adriana e

Moisés.

À professora Dr.ª Maria Aparecida Dias, pela extrema sensibilidade, empatia,

amizade. Alguém que admiro profundamente, como profissional e pessoa, e que tem

o dom de apaziguar, proferir palavras que acalmam, que te fazem pisar no chão,

respirar e continuar.

Ao professor Dr. Allyson Carvalho, pela confiança, por tudo o que fez por mim,

pela sintonia, por saber que na proximidade ou distanciamento, nada muda.

Agradeço aos professores e professoras que aceitaram compor a banca de

avaliação deste trabalho, pessoas sensíveis e queridas. À professora Dr.ª Rosie Marie,

que contribuiu significativamente no Seminário doutoral I, assim como a professora

Dr.ª Ieda Rinaldi que vem acompanhando a construção do trabalho desde o Seminário

doutoral II. Agradeço ainda aos professores Dr. Raimundo Nonato Viana, Dr. Iraquitan

Caminha e Dr. ª Isabel Mendes.

Agradeço ao profissional de design Thiago Oliveira, pela preciosidade no

desenvolvimento da arte desse trabalho.

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Não poderia deixar de agradecer ao fotógrafo oficial da Confederação Brasileira

de Ginástica, Ricardo Bufolin, pela sensibilidade ao registrar os momentos das

ginásticas em nosso país e no mundo. Agradeço ainda a minha amiga Carol, esposa

de Ricardo pela cumplicidade acadêmica nesse percurso e pela doçura.

Agradeço a cada amiga árbitra nacional e regional pela amizade e partilha de

sentimentos que fazem parte desse trabalho.

Sou grata às amigas e professoras da dança do ventre que me fizeram refazer

conexões afetivas com uma prática corporal e também estiveram presentes na

sustentação emocional da produção dessa tese: Nuriel, Lara, Martha, Larissa, Josy,

Missi, Sarah, Sophia e Fernanda.

Findo esse agradecimento falando sobre o Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - IFRN, instituição a qual

orgulhosamente me vinculo. Reconheço que o crescimento dessa instituição, inclusive

minha entrada nela foi resultado de um massivo investimento social. Não foi a toa!

Testemunho inúmeras vidas sendo transformadas. Sou muito grata pelo apoio na

concessão do meu afastamento e expresso aqui o compromisso e a alegria de poder

voltar para aqueles que são as reais razões desse trabalho: os meus alunos!

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“Nós, moradores desse canto da terra, entendemos o que significa ‘tocares um coração, aquecer o seu sangue pelo seu calor e sobreviveres’. Nós, habitantes desse recanto, temos realmente outra concepção de beleza. Estamos plenos de vida e de otimismo até mesmo quando sofremos” Neska Róbeva

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RESUMO

Nessa tese, afirma-se que há educação nas experiências de dor e sofrimento, por se configurarem como contingências de um corpo estesiológico. Porém, é preciso que se assinale um olhar para a pessoa e suas sensações, promovendo a intensificação do conhecimento de si e provocando transformações empáticas. O imbricamento mundo/ser pressupõe a experiência estesiológica, permite pensar nas experiências de dor e sofrimento como tais e formular reflexões voltadas para uma educação que compreenda essas condições. Nas experiências vividas na Ginástica Rítmica (GR), esse estudo encontra seu locus investigativo. Para tanto, apresenta os seguintes objetivos: investigar experiências de dor e sofrimento na GR, a partir da descrição e interpretação do vivido; compreender os limiares entre as experiências de dor e sofrimento na GR; refletir sobre as experiências de dor e sofrimento como enigma do corpo e; estabelecer relações entre as experiências de dor e sofrimento e a Educação. Essa pesquisa amplia as possibilidades de pensar a educação que não nega as sensações como foco e repensa o lugar da dor e do sofrimento de modo a relativizá-las em favor dos limites individuais das sensações e das relações empáticas. A fenomenologia de Merleau-Ponty traz o método e a ancoragem teórica definindo a trajetória da escrita metaforizada pelo processo artesanal e artístico de elaboração de uma filigrana. A tese se estrutura em quatro capítulos: no Capítulo 1, intitulado “CONTORNOS”, a GR é situada em sua ligação com a historicidade da Educação Física e dos Esportes, as vinculações entre a história cultural da dor e a disciplina e o corpo estesiológico como campo. No Capítulo 2, denominado “FIOS”, fazemos a descrição das experiências de forma a entremear a autobiografia, relatos de ex-ginastas da Seleção Brasileira de Conjuntos de GR e narrativas constantes na obra Escola de Campeãs. O Capítulo 3, de nome “TESSITURA – Filamentos de interpretação”, refere-se às interpretações da GR que remetem a dor dos corpos ginásticos rasgados pelas lesões, ao sofrimento gerado pelo enquadramento aos modelos de corpos e gestos e às situações vividas que também são percebidas como um limiar entre dores e sofrimentos apontado pelas ex-ginastas. O quarto e último capítulo é intitulado “CORES – Educação como enigma”, as interpretações, nesse momento da tese, a partir dos campos de sentido emergidos, tomam a forma de reflexões sobre a educação. Por fim, considera-se que as sensações do corpo, incluídas nas experiências de dor e sofrimento são potências transformadoras e se configuram como consequentes contingências existenciais encarnadas em um mundo real, recheado de contrastes, prazeres, desprazeres, gozos e desgraças. Não é possível negar as sensações do corpo porque fazer isso significa negar a pessoa. Ao contrário, é preciso educar quem sente para sentir, pois uma educação centrada na estesiologia só pode ser enigma, pois jamais poderá precisar o que pode o corpo.

Palavras-chave: Educação, Dor, Sofrimento, Estesia, Ginástica Rítmica.

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ABSTRACT

In this thesis, it is affirmed that there is education in the experiences of pain and suffering, because they are configured as contingencies of an aesthesiological body. However, it is necessary to point a glance to the person and his sensations, promoting the intensification of self-knowledge and provoking empathic transformations. The overlapping world/to be presupposes the aesthesiologic experience, it allows us to think on the experiences of pain and suffering as such and to formulate reflections directed towards an education that understands these conditions. In the experiences of Rhythmic Gymnastics (RG), this study finds its research locus. To do so, it has the following objectives: to investigate experiences of pain and suffering in RG, based on the description and interpretation of the experience; to understand the thresholds between the experiences of pain and suffering in the RG; to reflect on the experiences of pain and suffering as the enigma of the body and; to establish relationships between the experiences of pain and suffering and Education. This research expands the possibilities of thinking on education that does not deny sensations as focus and rethinks the place of pain and suffering in order to relativize them in favor of individual limits of feelings and empathic relationships. Merleau-Ponty's phenomenology brings the method and the theoretical anchorage defining the trajectory of metaphorized writing by the artisanal and artistic process of elaborating a filigree. The thesis is structured in four chapters: in Chapter 1, entitled “CONTOURS”, the RG is situated in its connection with the historicity of Physical Education and Sports, the linkages between the cultural history of pain and the discipline and the aesthesiological body as a field of experiences. In Chapter 2, called “WIRES”, we describe the experiences in order to interweave the autobiography, reports of ex-gymnasts of the Brazilian Team of RG and constant narratives in the book School of Champions. Chapter 3, entitled “TESSITURA – Filaments of interpretation”, refers to the interpretations of RG that refer to the pain of gymnastic bodies torn by the lesions, the suffering generated by the adaptation to the models of bodies and gestures and the lived situations that are also perceived as a threshold between pain and suffering pointed by the former gymnasts. The fourth and final chapter is entitled “COLORS – Education as a puzzle”, the interpretations, at this point in the thesis, from the fields of emerged senses, take the form of reflections about education. Finally, it is considered that the sensations of the body, included in the experiences of pain and suffering, are transforming powers and are configured as consequential existential contingencies embodied in a real world, full of contrasts, pleasures, displeasures, joys and misfortunes. It is not possible do deny the sensations of the body because to do this means denying the person. On the contrary, it is necessary to educate who feels to feel, because an education centered in the aesthesiology can only be enigma, because it will never be able to specify what the body can.

Keywords: Education, Pain, Suffering, Aesthesia, Rhythmic Gymnastics.

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RÉSUMÉ

Dans cette thèse, il est dit qu’il y a l’éducation dans les expériences de douleur et de souffrance, pour l’étant configuré comme des contingences d’une corps esthésiologique. Cependant, il est nécessaire pointer une coup d'oeil à la personne et ses sensations, en promouvant l’intensification de la connaissance de soi-même et en causant des transformations empathiques. L’entrelacement monde/être présuppose l'expérience esthésiologique, il permet penser aux expériences de douleur et de souffrance en tant que tel et de formuler des réflexions dirigées à une éducation que comprenne ces conditions. Dans les expériences de la Gymnastique Rythmique, cette étude trouve son locus investigatif. Pour ce faire, il présente les objectifs suivants : enquêter sur la douleur et la souffrance dans la GR à partir de la description et interprétation des expériences vécues ; Comprendre les seuils entre les expériences de douleur et de souffrance dans la GR ; Réfléchir sur les expériences de douleur et de souffrance comme l’énigme du corps et ; établir des relations entre les expériences de la douleur et de la souffrance et l’Éducation. Cette recherche agrandit les possibilités de penser l’éducation que nie pas les sensations comme focus et repense le lieu de la douleur et de la souffrance de façon à les relativiser en faveur des limites individuels de las sensations et des relations empathiques. La phénoménologie de Merleau-Ponty apporte la méthode et l’ancrage théorique en définissant le chemin de l’écrit métaphorisé par le processus artisanale et artistique d’élaboration d’un filigrane. La thèse est structuré en quatre chapitres : dans le Chapitre 1, intitulé “CONTOURS”, la GR est située en ses connexion avec l’historicité de l’Éducation Physique et des Sports, les liens entre l’histoire culturel de la douleur et de la discipline et le corps esthésiologique comme une domaine. Dans le Chapitre 2, nommé “FILS”, nous décrivons les expériences afin d’entremêler l’autobiographie, rapports de anciennes gymnastes de l'équipe brésilienne d’ensembles de GR et récits constants dans l'œuvre École des Champions. Le Chapitre 3, nommé “TESSITURE - Filaments d'Interprétation”, fait référence aux interprétations de la GR que remet à la douleur des corps gymnastiques déchiré par les blessures, à la souffrance gérée par l’adaptation aux modèles de corps et gestes et à las situations vécues que sont également perçues comme un seuil entre des douleurs et des souffrances pointées par les anciennes gymnastes. Le quatrième et dernier chapitre est intitulé “COULEURS - Éducation comme un énigme”, les interprétations, à ce point de la thèse, à partir des champs de sens émergé, prennent la forme des réflexions sur l’éducation. Enfin, il est considéré que les sensations du corps, inclus dans les expériences de douleur et de souffrance sont des puissances transformatrices et ils sont configuré comme des contingences existentielles conséquentes incarnée dans un monde réel, pleine de contrastes, plaisirs, dégoûts, joies et malheurs. N’est pas possible nier les sensations du corps parce que faire ça signifie nier la personne. Au contraire, c’est nécessaire d’éduquer ceux qui sens pour sentir, pour une éducation centrée sur l’esthésiologie peut être énigme, car il ne pourra jamais spécifier ce que le corps peut.

Mots-clés : Éducation, Douleur, Souffrance, Aesthésie, Gymnastique Rythmique.

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LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1, página 38 – Ginasta búlgara Melitina Staniouta, série de maças em 2016, no evento teste das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Fonte: página pessoal do fotógrafo Ricardo Bufolin, link: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10154196389496388&set=a.10154171561711388.1073741927.781456387&type=3&theater acesso em 29/03/2017.

IMAGEM 2, página 57 – Ginasta Natália Gáudio, série de arco no 2015, Campeonato Mundial de Ginástica Rítmica em Stuttgart/Alemanha. Fonte: página pessoal do fotógrafo Ricardo Bufolin, link: https://www.facebook.com/ricardobufolin/media_set?set=a.10153646205451388.1073741908.781456387&type=3 acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 3, página 58 – Seleção brasileira de conjuntos de Ginástica Rítmica, série mista de arco e maças, 2015, Campeonato Mundial de Ginástica Rítmica em Stuttgart/Alemanha. Fonte: página pessoal do fotógrafo Ricardo Bufolin, link: https://www.facebook.com/ricardobufolin/media_set?set=a.10153646205451388.1073741908.781456387&type=3 acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 4, página 60 – Treinamento da seleção brasileira de conjuntos de

Ginástica Rítmica, em Aracaju/SE/Brasil, 2013. Fonte: página oficial do

fotógrafo Ricardo Bufolin, link:

https://www.facebook.com/ricardobufolin/media_set?set=a.101520792116213

88.1073741855.781456387&type=3 acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 5, página 132 – Salome Pazhava da Geórgia, na série de bola,

competindo nas classificatórias dos Jogos Olímpicos de 2016. Fonte: página

de imagens ginásticas.

http://www.zimbio.com/photos/Salome+Pazhava/Gymnastics+Rhythmic+Olym

pics+Day+14/2XqmKdShzqB , acesso em: 06/10/2016

IMAGEM 6, página 143 – “Dificuldades endurecem a mente, bem como o

trabalho físico endurece o corpo”. Criança executando postura de flexibilidade

com braço lesionado. Disponível em: http://vk.com/cdance , em 21/04/2016

IMAGEM 7, página 147 - Ginasta Yana Kudriadskeva, Jogos Olímpicos Rio 2016, série de arco. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/511088257695192625/, acesso em: 06/10/2016.

IMAGEM 8, página 150 – Página 35 do Código de Pontuação de GR (2017-2020), disponível em: http://www.fig-gymnastics.com/site/rules/disciplines/rg acesso em: 09/01/2017.

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IMAGEM 9, página 159 – Meninas da Seleção de conjuntos de Ginastica

Rítmica da Grã-Bretanha choram após não se classificarem para os Jogos

Olímpicos de Londres em 2012. Fonte: página de reportagens esportivas.

Disponível em:

http://www.telegraph.co.uk/sport/olympics/gymnastics/9063858/London-2012-

Olympics-Britains-rhythmic-gymnastics-team-appeal-backed-by-Nadia-

Comaneci.html , acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 10, página 183 – Celebrando a nota. Seleção Brasileira de conjuntos de Ginástica Rítmica, série mista de arco e maças, 2015, Campeonato Mundial de Ginástica Rítmica em Stuttgart/Alemanha. acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 11, página 184 – Abraço. Ginasta Angélica Kvieczynski, e sua técnica Anita Klemann no série de arco no 2015, Campeonato Mundial de Ginástica Rítmica em Stuttgart/Alemanha. Fonte: página pessoal do fotógrafo Ricardo Bufolin, link: acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 12, página 186 – Olhar atento, treinamento oficial da série de arco. Ginasta Angélica Kvieczynski, e sua técnica Anita Klemann no série de arco no 2015, Campeonato Mundial de Ginástica Rítmica em Stuttgart/Alemanha. Fonte: página pessoal do fotógrafo Ricardo Bufolin, link: acesso em 06/10/2016.

IMAGEM 13, página 215 – Duas ginastas passam por dentro de um arco.Conjunto misto do Brasil, série de arcos e fitas nos Jogos Olímpicos de Sydney/2000. Fonte: página pessoal do ex-ginasta Dayane Camilo link: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=426618576777&set=a.426606936777.202517.628171777&type=3&theater , acesso em 06/12/2016.

IMAGEM 14, página 223 – A treinadora russa Elena Orlova ajuda meninas de

4 a 5 anos de idade no treinamento de flexibilidade no Palácio Dinamo

Desportos em Moscou, Rússia. Disponível em:

http://www.mscottbrauer.com/dinamo-gymnastics/#5 , em 21/04/2016

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LISTA DE SIGLAS

CBG – Confederação Brasileira de Ginástica

CP – Código de Pontuação

FIG – Federação Internacional de Ginástica

FNG – Federação Norte-rio-grandense de Ginástica

GR – Ginástica Rítmica

GRD – Ginástica Rítmica Desportiva

GM – Ginástica Moderna

JO – Jogos Olímpicos

RT – Regulamento Técnico

SBC – Seleção Brasileira de Conjunto

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................... 16

A PESQUISA COMO FILIGRANA ............................................................................................................. 35

CAPÍTULO 1 – CONTORNOS .................................................................................................................... 50

Contextos______________________________________________________________________ 52

Campo – O corpo estesiológico______________________________________________________ 75

CAPÍTULO 2 – FIOS – NARRATIVAS ...................................................................................................... 85

O vivido________________________________________________________________________ 87

A partilha______________________________________________________________________ 109

CAPÍTULO 3 – TESSITURA – FILAMENTOS DE INTERPRETAÇÃO .................................. 130

Corpos rasgados ________________________________________________________________ 132

Corpos modelados ______________________________________________________________ 147

Limiares ______________________________________________________________________ 159

CAPÍTULO 4 – CORES – EDUCAÇÃO COMO ENIGMA DO CORPO ................................. 170

Empatia _______________________________________________________________________ 172

Corpos gloriosos ________________________________________________________________ 191

Enigma _______________________________________________________________________ 207

ARREMATES, CALEIDOSCÓPIOS E OUTRAS SINUOSIDADES ............................................ 235

SUSTENTÁCULOS DA FILIGRANA ...................................................................................................... 243

SUBSTÂNCIAS ................................................................................................................................................. 251

Apêndice A – Roteiro da entrevista__________________________________________________ 252

Apêndice B – Termo de consentimento livre e esclarecido_________________________________ 253

Apêndice C – Transcrições das entrevistas _____________________________________________ 254

Apêndice D – Quadros de campos de significação_______________________________________ 274

Anexo – Trechos significativos do livro _______________________________________________ 284

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INTRODUÇÃO

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As dores e os sofrimentos povoam a vida de todos, cada um ao seu modo.

Nossas sensações, emoções e sentimentos oscilam e se contrastam através das

experiências do corpo: ora agradáveis, ora desagradáveis, ora orgásticas, ora

insuportáveis, as sensações transpassam a vida com diferentes formas e

intensidades, antes de qualificações conscientes. Isso não quer dizer que sobrevêm

despercebidas em movimento de caos, ao contrário, elas são entrelaçadas ao nosso

existir assumindo sentidos e provocando expressões.

Merleau-Ponty (2006), filósofo francês da primeira metade do século XX, na

tese Fenomenologia da Percepção, escrita em 1945, já anunciava a urgência de se

renunciar à definição de sensação como impressão pura, como mero instrumento

periférico a ser processado por uma consciência racional superior. O autor atestou

que as sensações são vividas na própria percepção, juntamente com o percebido. A

experiência, nesse sentido, é abertura que, antes das idealizações e construções da

ciência, já opera nossa relação com o mundo (MERLEAU-PONTY, 1945/2006)1. Nos

anos que se seguiram ao projeto do autor, a noção de experiência foi amplificada e

revista por ele mesmo, que buscou se deslocar das discussões cognitivistas da

psicologia clássica para se dedicar ao estudo de uma Ontologia da Carne, plano que

infelizmente não pode ser concluído devido ao seu prematuro falecimento em 1961,

aos 53 anos de vida. Em esboços escritos em 1960, posteriormente compilados e

publicados, o autor conceitua a experiência como fissão com o mundo, que faz nascer

o visível e o invisível2, dupla prova de vidente e visível, pois antes do sujeito que

percebe já há o ser que está aberto para o mundo (MERLEAU-PONTY, 1964/2009).

1 Merleau-Ponty tem sua trajetória marcada pelo movimento de sua filosofia, que se reafirma e se

redimensiona ao longo de meados da década de 1930 até 1961, e obras póstumas editadas de 1964 em diante. Embora a ABNT (Associação Brasileiras de Normas Técnicas) especifique que o ano a ser referido na escrita seja a da edição do livro, colocamos sempre o ano de escrita do texto antes do da edição para situar esse movimento. 2 A obra compilada recebeu o título “O Visível e o Invisível” (1964/2009).

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São nas experiências que nos instituímos no mundo, que nos lançamos na

aventura do conhecimento, que nos movemos, que nos expressamos, que

entrelaçamos apreciação e desejo, que nos reconhecemos em empatia. Fundados por

um corpo que é sensível exemplar, em natureza. E assim, vamos nos envolvendo em

sentidos e significados para ir tecendo em filigrana3 a nossa existência.

Nessa tese, afirmamos que há educação nas experiências de dor e sofrimento,

por se configurarem como contingências de um corpo estesiológico. Porém, é preciso

que se assinale um olhar para a pessoa e suas sensações, promovendo a

intensificação do conhecimento de si e provocando transformações empáticas.

O âmbito de estudos delimitado é a Ginástica Rítmica4 (GR). Essa prática, em

especial, se constituiu como nicho de estudos recorrentes em minha trajetória

acadêmica, profissional, existencial, sendo continuamente integrada às

compreensões fenomenológicas de corpo, estética e educação. A GR faz vibrar em

mim a busca pelo conhecimento, o encanto pela educação e pela pesquisa, que não

corresponde apenas a verticalização de estudos sobre um tema, e sim a uma etapa

crucial de um projeto de vida e de estudos. Isso nos fez elegê-la mais uma vez como

ponto de partida para as nossas reflexões. Portanto, a GR como locus se significa

com a dor e o sofrimento como objetos dessa pesquisa.

As experiências de dor e sofrimento nos deslocam para a exclusividade do

sentir, não admitem concorrência, sentimos o presente tomado e alargado numa cruel

constatação de que nossos limites são meros desconhecidos nas situações extremas,

o presente importa mais que tudo, porém, quando a dor ou o sofrer acabam, outros

sentidos são despontados em nós, com as nossas sensações e no partilhar das

experiências com o outro. Uma educação que considere a pessoa e suas sensações

há de dimensionar a potência das dores e sofrimentos não como instrumentos, nem

como negação, mas como condições do nosso imbricamento sensível com o mundo,

pelo corpo vivo, pelo desejo, pela intercorporeidade, aprofundamento da empatia e

expressividade.

3 A filigrana se constitui como metáfora metodológica dessa tese, sendo explicitada na próxima parte do texto “A pesquisa como filigrana” e esmiuçada ao longo do mesmo. 4 A Ginástica Rítmica é uma modalidade olímpica, praticada oficialmente apenas por mulheres, consistindo em exercícios complexos (séries) acompanhados por música, com o uso de cinco aparelhos portáteis (corda, arco, bola, maças e fita). As séries podem ser de apenas uma ginasta, individual, ou em grupos de cinco ginastas.

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Alegar que dores e sofrimentos são contingências existenciais, nos remete a

noção de passividade de Merleau-Ponty (1945/2006) ao discutir a temporalidade

como campo de presença. Ele compreende essa noção não como uma forma de

aceitar sobre nós uma realidade exterior estranha ou causal, mas se refere a um ser

em situação, uma relação de existência, recomeçada perpetuamente através de uma

espontaneidade que congrega o tempo e a subjetividade. A espontaneidade, nesse

caso, é fundamentada e medida pelo tempo. Assim, a potência de nos afastar de nós

mesmos enquanto consciência, encontrada nesse fluxo, nos é dada com a

temporalidade e com a vida. Passividade não significa indiferença, omissão, inércia

muito menos na Educação, nos remete aos sentidos da liberdade que não nos destaca

do mundo, estando situada em relação presente que institui um contexto no passado

e um porvir.

Nessa perspectiva a dor e o sofrimento situam-se no nível descontínuo da

experiência: sentindo e considerando quem sente. Portanto, é preciso sair da

superficialidade do discurso para mergulhar nas sensações do vivido, penetrando no

enigma do sensível e se voltando para a estesia do corpo como meditação filosófica

e inteligibilidade.

Observemos que dor e sofrimento possuem origens etimológicas distintas:

A origem etimológica de dor, do latim dolor-doloris, aponta para o seguinte significado: <romper, rasgar, abrir fenda> (dolo significa <eu rompo>), enquanto que, na origem etimológica, sofrimento, do latim sufferentia, sufferere, significa: tolerar, suportar, aceitar (FLEMING, 2003, p. 37).

Por esse entendimento, percebe-se que enquanto a dor mobiliza e absorve o

sujeito por completo, suga sua existência e sua presença no mundo, numa relação

assimétrica com o prazer, o sofrimento desestabiliza, tira do prumo e trafega entre as

ondulações dos prazeres e desprazeres. Enquanto o sofrer remete a capacidade de

tolerar, o doer não suporta tolerância. Enquanto a dor desponta abrupta,

interrompendo e sacrificando a paz, o sofrimento se mostra como algo a ser

suportado. Embora essa classificação seja importante, entendemos que essas

verdades só podem ser reveladas pelos corpos que as vivem. Tratam-se de

fenômenos entrelaçados, em que precisar quando a dor vira sofrimento ou quando o

sofrimento vira dor é uma tarefa complexa.

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Ao buscar os verbetes Dor e Sofrimento no dicionário de Filosofia de

Abbagnano (1998) encontramos apenas a conceituação do primeiro termo, a partir de

designações que foram se transformando cronologicamente. De acordo com essa

referência, na antiguidade, a dor era naturalizada, vista como efeito da desarmonia

entre os elementos contrários a vida, como contrária de felicidade ou até tida como

atitude perante as coisas que não dependiam de nós. No pensamento cristão, a dor

adquire significação moral a partir dos pecados e ainda como meio de purificação,

pela sua aceitação perante os erros cometidos e busca pela resignação. Já no

pensamento moderno a dor é dessacralizada, passando de realidade que redime para

que deva ser redimida, como forma de reconhecimento de seu valor biológico. No

pensamento contemporâneo, a dor passa a ser uma realidade insensata, que não

possui justificação nem explicação, é código revelador da existência. Em sua

dimensão metafísica tende a ser compreendida a partir do empirismo com base nas

análises das ciências naturais e humanas. Portanto, segundo Abbagnano (1998), a

dor, representada pelo sofrimento físico, psicológico ou espiritual (ou total) é

considerada como uma tonalidade negativa da vida emotiva que indica o caráter

desfavorável da situação em que se encontra o indivíduo.

A abordagem cronológica de Abbagnano (1998) converge com o debruçar de

Moscoso (2015) que dedica sua obra “Histoire de la Douler” para descrever a história

cultural da Dor dos séculos XVI ao XX. Moscoso (2015) adentra nas articulações

históricas da experiência do sofrimento humano interrogando sobre as modalidades

persuasivas que permitiram compreendê-lo do ponto de vista cultural. A dor é tida,

pelo autor, como modeladora básica da experiência vital, realidade subjetiva e

intersubjetiva. Nesse sentido, sua análise vislumbra a dor através da representação,

imitação, simpatia, adequação, confiança, narrativa, coerência e reiteração, e,

percorrendo os capítulos intitulados por cada uma dessas análises, multifocaliza seu

olhar histórico para as produções artísticas, a indústria bélica, a instituição médica, as

punições, a psicanálise, dentre outros contextos.

A dor analisada por Moscoso (2015) percorre cinco (5) séculos, nos

interessando sua construção e como se configura na atualidade. O quinto capítulo de

sua obra se volta para a dor contemporânea sob o nome de Reiteração, analisando

como a própria existência da dor crônica depende da criação, do acúmulo de

testemunho, da narrativa coletiva homogênea que recupera a voz daqueles que

sofrem. O autor afirma que somente através do testemunho de quem é prejudicado é

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possível ressignificar cultural e clinicamente a dor nas sociedades pós-industriais, em

que a exposição indecente do sofrimento e analgesia do mesmo caminham juntos.

Moscoso (2015), na sua análise histórica, coaduna com a nossa compreensão

de dor e sofrimento como experiências descontínuas.

Embora a dor ou o sofrimento sejam totalmente incorporadas às emoções humanas, sua história não reside exclusivamente no contexto da história da paixão ou da história da ciência. A história da dor refere-se à história da experiência, em outras palavras, uma história do que parece ser estar ao mesmo tempo dentro e fora, de si e dos outros, do individual e do coletivo. Ela não é alheia ao conceito de experiência pois não cobre as dicotomias do ser que a consciência moderna estabeleceu no Ocidente: não permite separar o corpo da alma, a matéria do espírito, nem o ‘eu’ do ‘nós’. Os elementos sensoriais não excluem seus equivalentes emocionais, as formas visíveis de crueldade não esgotam o campo de pesquisa histórica (MOSCOSO, 2015, p. 12, tradução nossa).

A dor, relatada por Moscoso (2015), coletiva e individual, de dentro e de fora,

científica ou apaixonada, une essas perspectivas em um movimento que nos mobiliza,

nos interessa, mas que, quando tem sua análise pendulada para uma só, se

empobrece enquanto objeto. Para evitar essa polaridade do olhar, é preciso se abrir

a diferentes áreas de conhecimento.

Na contemporaneidade, temos a entidade internacional a IASP5 (Internacional

Association for Study of Pain), associação interdisciplinar situada com foco nas

ciências da saúde, com estudos desenvolvidos sobre o fenômeno da dor, visando à

fomentação de estudos para o alívio da dor em todo mundo. A IASP conceitua a dor

como “Experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou relacionada a

lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo

através das suas experiências anteriores” (IASP, 2017). A conceituação da

associação se compõe pela generalidade das lesões e pela subjetividade da relação

existencial com elas, deixando claro que as lesões causam dor, mas sem definir

claramente suas causas.

Nasio (2008), psicanalista estudioso das obras de Freud e Lacan, investe na

teorização da dor e considera os mecanismos psíquicos que interferem na emoção

dolorosa como um de seus principais fatores, porém, acha a visão dos pesquisadores

5 Disponível em: http://www.iasp-pain.org/ No Brasil, a entidade é representada pela Sociedade Brasileira dos Estudos da Dor http://www.sbed.org.br/materias.php?cd_secao=76&codant=&friur

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da IASP nebulosa. Ele acredita que embora os estudos desenvolvidos não neguem

os vínculos subjetivos nos mecanismos da dor, os pesquisadores da entidade não se

encorajam em explicá-los. A IASP reconhece a existência de uma dor real, que

concretamente é sentida sem a existência de uma agressão orgânica, compreende

também que pode existir uma dor que se dê apenas no plano do vivido, excluindo,

sem grandes explicações, os desencadeamentos puramente orgânicos. Ainda que

essa entidade subsidie seus estudos por uma perspectiva biológica, essa

característica também converge com a nossa compreensão da dor e do sofrimento

como experiências existenciais descontínuas.

No contexto das dores e sofrimentos como experiências enigmáticas do corpo

e intencionando construir a argumentação da tese, elaboramos as seguintes questões

de estudo: Como se dão as experiências de dor e sofrimento na Ginástica Rítmica?

De que forma essas experiências podem ser pensadas na Educação?

As indagações mencionadas nos sugere traçar os seguintes objetivos:

Investigar experiências de dor e sofrimento na GR, a partir da descrição

e interpretação do vivido;

Compreender os limiares entre as experiências de dor e sofrimento na

GR;

Refletir sobre as experiências de dor e sofrimento como enigma do

corpo.

Estabelecer relações entre as experiências de dor e sofrimento e a

Educação.

Essa pesquisa amplia as possibilidades de pensar uma educação que não

nega as sensações como foco e repensa o lugar da dor e do sofrimento – relativizá-

las em favor das compreensões individuais das sensações e das relações empáticas.

Vale sopesar que a Educação sobre a qual nos remetemos direciona seus

processos para amplificar nossa presença no mundo, aprofundando nossas

experiências. Desse modo, não intencionamos fazer apologia a intervenções que

provoquem intencionalmente dor e sofrimento, longe disso, buscamos desmistificar

interpretações tendenciosas do sentir, que ou se concentrem para tornar rasteiras

nossas possibilidades de viver e entender nosso próprio sentir ou descambem para

os castigos físicos.

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No ocidente moderno e contemporâneo, ao nos referirmos à instituição escola,

nicho técnico e limitado onde se formaliza a educação (MANACORDA, 2010),

sobretudo quando nos aludimos ao Brasil, a passagem da educação tradicional liberal

para as liberais progressistas fez da dor e do sofrimento, antes incluídos em métodos

de ensino, elementos a serem neutralizados, de forma a garantir uma instrução

confortável, autônoma, pelas vias do prazer, que por sua vez, avançou para as

pedagogias progressivas críticas, em que as relações entre conhecimento, ensino e

disciplina deveriam estar diretamente ligadas à compreensão e desenho de sociedade

a ser almejada (LUCKESI, 2011). A escola adotou a organização disciplinar em que

se articularam dinâmicas de tempo, espaço, ritos e olhares, tomando o corpo como

dispositivo pedagógico (LIMA NETO, 2015).

Na pedagogia tradicional a dor era fomentada pelo castigo e excesso de

disciplinarização dos corpos enquanto que nas progressistas os castigos começam a

ser questionados e a educação passa a objetivar uma instrução confortável. De todo

modo, os três modelos educacionais mencionados (tradicional, liberal progressista e

progressista crítico) ainda povoam a didática atual e estabelecem diferentes relações

com as experiências de dor e sofrimento.

O exemplo da escola e das pedagogias são importantes para entender que a

dor e o sofrimento são experiências que, embora possam ser recusadas pelas

metodologias de ensino, não podem ser abolidas da Educação, porque compõem a

vida. Nesse texto, isso se amplifica porque tomamos como referencia a educação que

se dá pelo sentir mesmo, pela compreensão de corpo que habita o mundo através das

sensações.

A educação pelas sensações visa entender a imbricação entre corpo e o

mundo, apreendendo-o simultaneamente como natural e cultural. E quando nos

atemos às práticas corporais, principalmente as esportivas, é preciso pensar a cultura

de uma perspectiva multicultural, como construção sócio-histórica de modos de vida,

definindo “diferentes características humanas a partir do conjunto de capacidades e

hábitos pertencentes a uma determinada organização social” (CAMINHA, 2009, p. 60).

Merleau-Ponty (1952/2004) explica que a cultura é enraizada na existência,

contrapondo a ideia de que seu conceito é posterior, como uma impigem que se insere

através da consciência em um sujeito natural.

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A unidade da cultura estende para além dos limites de uma vida individual o mesmo tipo de envolvimento que reúne antecipadamente todos os seus momentos no instante de sua instituição ou de seu nascimento, quando uma consciência (como se diz) é chumbada ao corpo e aparece no mundo um novo ser a quem não se sabe o que acontecerá, mas a quem algo não poderá deixar de acontecer, ainda que seja o fim da vida que mal começou (MERLEAU-PONTY, 1952/2004, p. 101).

Em se tratando de referências na história da Educação no Brasil que deem

importância às sensações do corpo, de um modo geral, as iniciativas são ínfimas.

Contudo, destacaremos algumas que dialogam com as perspectivas desse estudo.

Assman (1996) destaca a prazerosidade como um dos elementos

circunstanciais, refletindo que o conhecimento só emerge em sua dimensão

vitalizadora quando tem algum tipo de ligação com o prazer. O autor também afirma

que toda a ativação da inteligência é entrelaçada às emoções, de forma a criticar uma

educação mentalista e enfatizar que é preciso criar linguagens pedagógicas que

consigam expressar a dimensão emocional das experiências de aprendizagem. Nesse

sentido, sua proposta supõe um engajamento do corpo no conjunto das tensões.

O autor (ASSMAN, 1996) também coloca que a pedagogia das certezas, em

que se pretende espelhar um mundo determinista, não abre espaço para o cultivo da

perplexidade e encantamento, por isso, estes possivelmente fiquem escondidos e

nunca sejam desvelados. Portanto, pensamos que essa perplexidade e encantamento

habita os contrastes da existência, sendo o prazer um mobilizador e a dor e o

sofrimento partícipes do processo também.

É importante dizer que outros estudiosos, dos quais, mencionamos: Rezende

(1990) e Machado (2010) consideram essa vinculação sensível com o mundo a ser

considerada na Educação, direcionando seus olhares para a aprendizagem da cultura,

e para a educação de crianças, respectivamente.

Numa perspectiva fenomenológica de Educação, que a compreende na

experiência humana, como fenômeno que deve se dar pela aprendizagem da cultura

Rezende (1990) destaca que é preciso considerar o cotidiano e a polissemia

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mundana, dotada de sentidos e contradições. O autor citado é uma referência nessa

abordagem e nos serve de norte para a compreensão de que a educação se dá nas

experiências culturais.

A cultura é a carne do mundo que se liga a carne do sujeito, desse modo, essa

vinculação, que é dada a partir da instituição do ser é o todo a ser pensado na

experiência educativa. Assim como Merleau-Ponty (1945/2006) constatou outrora que

não há indissociabilidade entre o sensível e o inteligível, é preciso considerar que

ambos e o mundo estruturam a carne. E assim, os sentidos educativos não podem

intencionar descolar o sujeito do mundo, porque o sensível é uma relação de ser e

não apenas de conhecimento.

Importante pensar as atitudes filosóficas educacionais, a serem balizadas pelo

pertencimento e localização do ser humano num determinado fazer cultural. Esse

fazer cultural se situa nos processos heterogêneos, sendo os esportes e as artes,

contextos abordados por essa tese, fenômenos culturais.

A teoria da percepção em Merleau-Ponty (1945/1994) também se refere ao campo da subjetividade e da historicidade, ao mundo dos objetos culturais, das relações sociais, do diálogo, das tensões, das contradições e do amor como amálgama das experiências afetivas. Sob o sujeito encarnado, correlacionamos o corpo, o tempo, o outro, a afetividade, o mundo da cultura e das relações sociais. (NÓBREGA, 2009, p.142)

Qualquer que seja a forma como compreendamos a idealidade cultural, ela já

brota pelo corpo estesiológico, deslizando pelos contornos das coisas sensíveis. A

idealidade pura não existe desencarnada nem destituída das estruturas de horizonte

(MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p.147).

Por outro caminho, mas também balizado pela filosofia merleau-pontyana,

Machado (2010) reflete sobre uma pedagogia fenomenológica, sem pressupostos

iniciais e sintonizada nos modos de pensar a infância. O autor reforça a necessidade

de se compreender a criança de forma dialética, dinâmica, em que a organização em

movimento a modifica.

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Educar é um modo de espera que exige presença e ausência. Presença para

assistir, acolher, ausência para que se descubra as coisas do mundo, com autonomia,

imprimindo um ritmo próprio. Isso exige capacidade de diálogo por parte dos adultos

(MACHADO, 2010). A empatia, nesse sentido, é um modo de diálogo.

A possibilidade de compreender a Educação como uma relação empática

também nos ajudou a definir os nortes desse estudo.

Como anunciado, os afetos que motivaram essa pesquisa vem sendo

germinados desde o ano de 1993, quando se deu meu interesse pelos movimentos

das meninas, quando meus olhos sorriram ao assistir do portão do ginásio da escola,

na hora do recreio, o treinamento da equipe de GR. Com pouco mais de vinte (20)

anos de atuação na GR, ainda sou rendida por uma bela apresentação.

Vi e vejo muitas lições e reflexões latentes nessa modalidade. A ginástica,

enquanto modelo esportivo, nunca foi fácil de ser praticada, muito menos é

democrática. Contudo, existem iniciativas significativas, por parte de quem pratica e

por parte de quem oportuniza a prática, por isso, percebo que as dificuldades e os

enfrentamentos vividos na GR podem ser justamente os elementos que apertam os

vínculos de significação das praticantes.

As incursões realizadas aqui ampliam o sentido dessa prática (GR), buscando

refletir sobre o corpo e seus paradoxos, contradições e complexidades, de forma a

considerar os sofrimentos e dores como componentes que devem ser repensados

como dimensões do mundo vivido, porque são experiências que educam juntamente

com todas as outras sensações passíveis de serem exploradas pelo corpo.

Acrescentamos ainda o entendimento de que a dor e o sofrimento são

contingências com fortes amarrações aos esportes de natureza artística6, aqui

explicitados através da GR, pelo fato desses trabalharem com padrões de beleza e

6 Os esportes de cunho artístico tem sua conceituação vinculada à potencialização das atuações corporais, através da produção de uma beleza quantificada pelo rendimento das performances, mas que se mostra espetacular ao espectador comum (aquele que não reconhece os códigos esportivos). A Ginástica Rítmica, assim como o Nado Sincronizado, a Patinação Artística, a Ginástica Aeróbica Esportiva e os exercícios de solo da Ginástica Artística, aparecem como manifestações da Educação Física em que a vertente estética é mais aguçada, já que, historicamente, está mais ligada à Arte, campo familiar à Estética (PORPINO, 2003). Sendo situada, como modalidades presentes num espaço de interseção entre o Esporte e a Arte.

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de movimentos pré-determinados que implicam em um investimento minucioso e

ininterrupto na constituição do seu produto artístico, que no nosso caso, culmina na

performance ginástica. Nesse processo, as experiências dolorosas são

simultaneamente naturalizadas e mascaradas.

Pensar as experiências de dor e sofrimento na filigrana das sensações do corpo

foi algo que se iniciou a partir de um contexto em que outros trabalhos7 acadêmicos

desenvolvidos já puderam nos subsidiar. Portanto, é preciso mencionar que o Grupo

de Pesquisa Estesia8 - Corpo, Fenomenologia e Movimento, criado em 2012, e no

qual este estudo se vincula, apresenta uma série de investimentos e pesquisas

produzidas a partir da abordagem fenomenológica, com estudos na área da

Educação, Educação Física e Arte. Desse modo, nos restringiremos em mencionar

alguns dos trabalhos desenvolvidos, que possuem mais relação com o nosso: Lima

Neto (2015) afirmou sua tese do cinema como educação do olhar, argumentando que

a filosofia do corpo e da imagem atravessam uma filosofia da educação, desvelando

a potencialidade educativa da experiência fílmica, que, segundo ele, proporciona um

outro regime de inteligibilidade para a Educação. As duas teses mencionadas nos

ajudam a pensar os processos educativos envolvidos pela estesia do olhar, tanto no

campo das artes visuais quanto no cinema.

Silva (2014) defendeu a tese de que a prática esportiva é uma experiência

estética e educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no

corpo do atleta na dimensão do vivido. Essa pesquisa contribui para pensarmos a

experiência estética no esporte, com locus semelhante ao nosso.

Os trabalhos de dissertação mantiveram suas reflexões voltadas para o corpo,

a estesia e a educação sensível. Destacamos aqui o trabalho defendido por Pereira

7 Ao consultar o banco de teses e dissertações da CAPES, a partir da pesquisa dos verbetes Dor e Sofrimento e não encontramos pesquisas na área da Educação que os tematizassem diretamente. Ampliando para a grande área das Ciências Humanas, 3222 estudos foram encontrados em Psicologia, Teologia, Teoria da Psicanálise e áreas afins. Quando ampliamos ainda mais para as grandes áreas das Ciências da Saúde e Ciências Biológicas, as pesquisas passavam de 16000. Especificamente na Educação Física encontramos 314 pesquisas ao inserir a palavra dor, a maioria dos estudos enfocava a reabilitação e estudo de efeitos da dor em atletas ou sobre condições especiais (grupos específicos), no entanto, alguns trabalhos se assemelhavam ao nosso, a exemplo da dissertação “Técnica, Dor, Feminilidade: Educação do corpo na Ginástica Rítmica” e da tese: “Técnica, Estética, Educação: os usos do corpo na Ginástica Rítmica”, apresentadas por Boaventura (2011 e 2016) em programas de pós-graduação em Educação e multidisciplinar em Ciências Humanas, respectivamente. Sobre a relação entre o fazer artístico e a dor, encontramos apenas a referência de Frayze-Pereira (2005). 8 Página do grupo no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhodogrupo/3116710128453824

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(2013) que também debruçou seu olhar para a GR, refletindo sobre o corpo nessa

modalidade a partir do seu entrelaçamento com a técnica, a arte e a cultura,

ampliando, dessa forma, a discussão sobre os esportes considerados artísticos no

universo da Educação Física.

De fato, o movimento acadêmico que desembocou a criação do grupo Estesia

é bem anterior, apresentando uma trajetória de cerca de 17 (dezessete) anos, já na

linha de pesquisa sócio filosófica do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento

(GEPEC) no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED-UFRN), com

diversos trabalhos permeados pela filosofia do corpo de Maurice Merleau-Ponty. O

início desses investimentos se deu pela professora Drª. Petrucia Nóbrega (a qual é

uma das principais interlocutoras desse trabalho), bem como, pelos trabalhos

desenvolvidos pelos seus orientandos, com destaque a outra autora a qual contribui

para interlocução dessa tese, assim como também a orienta: professora Drª. Karenine

Porpino.

Não poderíamos deixar de citar os trabalhos desenvolvidos por Santos em 2004

e 2008 (este último no GEPEC e no PPGED) que se aproximam pela temática da dor

e se debruçando nos sacrifícios do corpo no esporte no imaginário radical em atletas

de corrida. O autor compreendeu, através de relatos, que a dor que o corpo sofre

durante a prática do esporte é entendida como positiva, transformada em prazer e

passando por situações extremas, fazendo parte da consciência subjetiva desses

atletas, tomada como rito de passagem e um modo de vida que deve compor as

rotinas de quem deseja alcançar performances esportivas de excelência.

Todas as pesquisas mencionadas e produzidas pelo grupo Estesia, assim

como as anteriores, refletem sobre a concepção fenomenológica de educação que

considera o sensível e dá suporte a essa pesquisa O grupo traz como contribuição a

ampliação significativa do campo de pensamento sobre essas abordagens do corpo

tecido nas experiências sensíveis: que se engaja nas práticas corporais, que adentra

na apreciação de filmes, coreografias, séries ginásticas, que dança, que busca

arrebatar-se pelo olhar e nas sensações e valorar o conhecimento que se dá nessas

relações sensíveis. Nesse contexto, nossa pesquisa se situa como uma nova

possibilidade de refletir sobre esse corpo das sensações, a partir de um novo ângulo

de comunicação sensível: a dor e o sofrimento.

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O conceito fundante para a construção dos argumentos dessa tese é a Estesia,

tomada como comunicação sensível com o mundo, que se dá através da percepção,

juntamente com o percebido, numa relação aberta entre corpo, mundo e outros

corpos. A experiência estesiológica é o sentir mesmo. Assim sendo, a Estesiologia

contesta a ideia de causalidade dada pelo modelo estímulo-resposta da

sensorialidade (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b), compreensão que nos dá

suporte para pensar a dor e o sofrimento como experiências dessa comunicação. A

estesia ultrapassa quaisquer juízos que possamos antecipar sobre as experiências,

ela se dá na própria experiência, relacionando sensação, expressividade, esquema

corporal e desejo.

O corpo estesiológico é da ordem do desejo, da libido, é sinergia, um mergulho

anterior e mais profundo nas sensações que a relação de conhecimento, porque a

consciência é lacunar, falta-lhe a experiência. É o corpo em circuito empático com o

mundo como solo da estesia, em trânsito com os fenômenos da cultura, que se

expressa na linguagem, mas é atravessado pelo desejo e pela capacidade de sentir

(MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b; NÓBREGA, 2015).

A Estesiologia é o estudo desse milagre que são os órgãos do sentido. Milagre

porque não se trata mais de compreender a produção dos sentidos como as filosofias

do sujeito haviam tratado até então, como a consciência doadora de sentido ao mundo

(MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b).

O corpo estesiológico é imbuído da reversibilidade dos sentidos, poroso e posto

como horizonte do sujeito. A estesia, desse modo, pode ser experimentada sempre

que haja sentido para o sujeito, que por sua vez, é capaz de rever e acrescentar outros

sentidos (NÓBREGA, 2010). Reitera-se que fazer sentido não se refere ao desfrute

necessariamente prazeroso da experiência, e sim a uma condição corporal de

imbricamento dos sentidos ao mundo. Muitas manifestações artísticas, na apreciação

ou na vivência, a exemplo do cinema, da dança, do teatro, incitam o sofrimento, o

medo, o assustador, o grotesco, o feio, a dor, e nos capturam em estesia.

Pensar numa relação estesiológica com o mundo implica em assumirmos uma

determinada concepção de corpo, mais que isso, implica em pensarmos sobre os

movimentos de uma filosofia da existência tal qual Merleau-Ponty se deteve,

passando da noção de corpo sujeito e consciência para a consolidação de uma

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ontologia da carne (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, 1957-1960/2006b; NÓBREGA,

2015).

A Estesia convoca o ser bruto, que se move pelo desejo, pelo sentir, sensível,

percebido. Coloca a noção carne como elemento original de abertura para o mundo,

compreendendo o ser para além da causalidade e idealidade. O ser atado ao tecido

do mundo, que percebe e significa junto com o percebido (MERLEAU-PONTY, 1959-

1960/2006b) supõe uma aderência da existência às experiências, aliás, estabelece

uma reciprocidade entre vida e experiências. O imbricamento mundo/ser pressupõe a

experiência estesiológica, permite pensarmos nas experiências de dor e sofrimento

como tais e, sobretudo, formularmos reflexões voltadas para a educação que

compreendam essas condições.

Trabalhar com os conceitos de dor e de sofrimento, que se fundam na

compreensão de corpo estesiológico, emergindo da experiência, nos permite

transversalizar diferentes áreas de conhecimento, como a Filosofia, a Antropologia, a

Sociologia e a Psicanálise. A Fenomenologia de Merleau-Ponty, sobretudo nas obras:

Fenomenologia da Percepção (1945/2006), A Natureza (1957-1960/2006b), O visível

e o invisível (1964/2009) e O olho e o espírito (1945-1952-1961/2004) nos traz o

método e a ancoragem de conceitos (corpo, carne, estesia, empatia, instituição,

intercorporeidade, temporalidade, liberdade) definindo a trajetória de escrita. Desse

modo, tomamos Merleau-Ponty como principal interlocutor dessa pesquisa.

Perpassamos ainda autores que não dissociam a dor e o sofrimento da dimensão da

experiência. Para tanto, convocamos as compreensões psicanalíticas de Freud

(1929/2011) e seus seguidores Nasio (1997, 2008) e Fleming (2003), já que

contemplam as diferentes expressões do ser que são acessadas através do outro a

partir da linguagem; além da compreensão antropológica e social de Le Breton (2016,

2013, 2013b, 2013c e 2010): pois importa compreender que as significações das

experiências de dor e de sofrimento se dão entremeadas às significações sociais.

Finalmente, para contribuir na interpretação do nosso corpus, tomamos as

discussões desenvolvidas por Andrieu (2004, 2014, 2014b, 2015, 2015b, 2016,

2016b), Nóbrega (1999, 2003, 2008, 2008b, 2010, 2014, 2015, 2016), Caminha (2016,

2015, 2009) e Porpino (2003, 2004, 2006).

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Definido o nosso campo inicial, em que dor e sofrimento são tomadas como

experiências situadas no corpo estesiológico, que por sua vez habita diversos

processos educativos, nos deteremos na trajetória da pesquisa, subsidiada pela

abordagem fenomenológica. Trazendo o recorte do nosso corpus de pesquisa e os

métodos de tratar o conhecimento precedidos pela atitude fenomenológica. Situamos

ainda a filigrana como metáfora que subsidia a feitura do trabalho.

A filigrana remete a um conjunto de fios e grânulos que resultam numa forma

maior, interligada e dotada de pequenos detalhes. Um labirinto que aparenta ser

justaposto mas só se desliga se quebrado. Trata-se tradicionalmente de uma técnica

de ourives de trabalhar com fios capilares para elaborar pacientemente uma peça de

jóia criativa e delicada. Porém, o vocábulo alarga seu sentido mantendo sua essência

na minúcia, nos detalhes que se desenvolvem em formas maiores.

As intenções, decisões, de onde partir, como será desenvolvido o trabalho

meticuloso fazem parte do processo. O artista seleciona o material para iniciar

pensando nas substâncias ideais para garantir o valor, a sustentação e a durabilidade

da sua peça. É preciso ainda verificar as medidas desses materiais, para dosar as

quantidades, evitar desperdício. Após essa escolha e medição, é preciso fundir o

metal, fazê-lo passar do estado sólido para o líquido, garantido uma maleabilidade

suficiente para a construção dos fios (GUARNIERI, 2016).

Esses processos são especificados ao longo da tese, iniciemos então por

compreender essa feitura.

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A PESQUISA COMO FILIGRANA

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Para tecer os sentidos da escrita, que entrelaça experiências, interpretações,

conceitos e reflexões, nos inspiramos em um termo utilizado por Merleau-Ponty (1957-

1960/2006b) para designar relações de ser e mundo: a filigrana. Nesse caso, o

processo artesanal e artístico de elaboração de uma filigrana nos servirá de estampa

para pensar a construção dessa tese, uma metáfora metodológica.

Ao nos embevecer com a leitura de Merleau-Ponty (2006b), nos cursos sobre

a Natureza, escritos entre os anos de 1959 e 1960, o termo nos chamou atenção em

duas situações. Na primeira, quando o autor tematiza o corpo humano, refere-se à

filigrana como metáfora do embrião, entendendo que seu desenvolvimento se dá não

como uma combinação físico-química, mas em estrutura, em gradiente, em filigrana.

No segundo momento, o autor se refere à humanidade do homem como a

corporeidade de um ser em filigrana, e não como acréscimo de da propriedade da

razão ao corpo de um animal.

Como não havia conhecimento do que se tratava no momento da leitura, muito

menos de como se constituía uma filigrana, ademais, a compreensão dos trechos do

texto dependiam desse entendimento, fui pesquisar seu significado e sobre as

tradições e peculiaridades que volteavam sua construção. Deparei-me com um

processo interessantíssimo ao qual me remeteu ao ser, às experiências, à construção

do conhecimento e até como se produz um colant de GR.

No processo de idas e vindas da pesquisa, descobri que a palavra já havia sido

mencionada dez (10) anos antes, na sua tese sobre a Fenomenologia da Percepção

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006). O filósofo usou o termo filigrana ao abordar a

afonia de uma paciente que foi proibida de se relacionar com um rapaz no início de

sua juventude, reagindo da mesma forma da infância, quando, por um acidente,

quando quase morreu e perdeu a voz. De acordo com o autor, pela explicação

freudiana, a interpretação desse estudo seria direcionada à fase oral. Mas para ele,

através da fase sexual dos sintomas, descobre-se aquilo que eles significam em sua

generalidade, desenhado em filigrana, relacionando passado e futuro, do eu e do

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outro, em relação às dimensões fundamentais da existência, nesse caso, o signo não

indica apenas a sua significação, ele é habitado por ela (MERLEAU-PONTY,

1945/2006).

A maneira como o autor caracteriza essas formulações nos deu a pensar na

estrutura da filigrana como vislumbre do enovelamento das experiências na nossa

pesquisa, bem como, o entrelaçamento dos conceitos e dos argumentos da tese.

A filigrana, como referendou Merleau-Ponty, também pode se reportar à

existência. Sua constituição se dá na tessitura dos ramos que remetem às

experiências dos seres, sensíveis como são. Essas conexões não são lineares, mas

também não são caóticas, permitindo diferentes riscos, ligações, desligamentos e

religações. Somos seres em filigrana, artefatos complexos de macro e microcosmos.

As experiências, por sua vez, transformam os traçados da filigrana porque somos

seres de movimento, expressão e desejo. Portanto, é preciso compreender que os

conceitos apresentados nas próximas páginas não podem ser destituídos desse fluxo,

ao contrário, as experiências de dor e de sofrimento o compõem intimamente.

Visando mobilizar nosso pensamento a partir da metáfora metodológica da

filigrana, pensemos na feitura de um colant de GR. O processo produção de um

colant se assemelha a produção de um figurino de quaisquer artes cênicas, pois ele

ajuda a comunicar a linguagem e a intencionalidade desejada. Diferencia-se no

sentido de que há algumas regras previamente estipuladas em relação a natureza dos

tecidos (precisa ser flexível para se adequar no corpo), ter uma determinada forma

(maiôs com ou sem mangas, inteiros cobrindo as pernas, com calças ou meias calças,

com ou sem saia), possui algumas proibições (cavas e decotes compostos,

transparências no tronco, alças finas, pernas com cores diferentes uma da outra).

Contando com essa pré-formatação, imaginemos que esse seria o contexto da

construção da filigrana, que inclui também a concepção do desenho no papel. Após

isso, é necessário adquirir todos os materiais necessários de acordo com o método

escolhido para a produção: tecidos, linhas, fechos, pedrarias para bordar, tintas de

tecido, colas etc.

É importante dizer que todas as escolhas partiram de uma motivação que pode

ser dada pela música, pelo tema da série ou até pelo que ficaria bem na atleta. Em

face desses materiais e com o desenho já decidido inicia-se o corte da malha, seguido

pela montagem. Normalmente a essa altura já se faz a primeira prova na ginasta,

ajustando-se o que for necessário para que o bordado seja realizado.

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Dentre as técnicas possíveis, imaginemos que, após escolha dos materiais a

serem bordados ou colados no colant se faça um desenho para que o bordado não

seja a “mãos livres”. Em uma produção de filigrana, essa seria a parte em que os

metais, já preparados, desenham a forma em que os microfilamentos preencherão as

formas.

Aí que começa o processo mais delicado de todos porque uma a uma as

pedrarias precisam ser colocadas para que o efeito final seja possível, para que o

desenho possa compor, no corpo da ginasta, uma obra formada pela roupa que ela

estará vestindo, o aparelho que estará manejando mais sua maquiagem e penteado.

A filigrana do colant só fica pronta em face de todos os elementos requeridos

para que a aparência e a funcionalidade da roupa que a ginasta está vestindo façam

sentido no conjunto de sua apresentação, englobando o tema, a música e

consequentemente os movimentos elaborados para aquela determinada competição.

Desenho, escolha de cores, modelo, contrastes com a pele, tipo físico, entrar

bonita em quadra, sentir-se bela. Estando próximo, é bonito para as imagens em close

nas fotografias e na tv? É bonito de longe, para que as pessoas sentadas nas últimas

cadeiras do ginásio consigam perceber sua beleza? Tudo isso faz parte da preparação

tática da GR, sendo a produção do colant essencial para contribuir para a beleza da

série.

A Imagem 1 retrata a filigrana do colant finalizada.

Imagem 1 – O colant em filigrana

Fonte: página pessoal do Facebook fotógrafo Ricardo Bufolin

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Nesse texto, nos remeteremos à construção da filigrana que se assemelha a

elaboração da tese, se constituindo nas experiências como arcabouço, a partir das

informações que se desenham no contexto do nosso objeto, a dor e o sofrimento, do

nosso corpus, a GR, e do corpo estesiológico como campo. Num segundo momento,

a filigrana toma forma e sinuosidades pela descrição das experiências, no terceiro, a

formulação da filigrana é entranhada pelas interpretações e conceitos, como formas

que pouco a pouco se desenham e estabelecem sentidos com as experiências. E no

último e quarto momento, colorem-se as reflexões para compor o arrematar da

imagem.

Tradicionalmente, a filigrana se configura como uma técnica de ourivesaria

que consiste na combinação de delicados e finíssimos fios de ouro ou prata aplicados

sobre placas do mesmo metal, desenhando motivos circulares, espiralados ou em S.

Por vezes, essas joias são complementadas com a decoração de pedras e esmaltes

policromos, ou ainda com a aplicação de minúsculas esferas de metal. O produto final

resulta em brincos, corações filigranados, medalhões, cruzes, colares, relicários,

caixas, ou até esculturas ornamentais (GUARNIERI, 2016).

Para ilustração de como se dá o delineamento da filigrana, convido-o, leitor, a

retornar, uma a uma, as páginas de efeitos gráficos em sobreposição que antecedem

essa parte do texto (que começa em “A PESQUISA COMO FILIGRANA”). Do efeito

que se inicia ao repousar a primeira folha, deixando os contornos aparecerem,

passando pelo segundo, que sobrepõe um detalhamento maior e finalizando com o

terceiro retorno, que estabelece a finalização da imagem formada. O designer

responsável pela arte se inspirou, na criação desse efeito gráfico, no movimento das

fitas da GR.

É importante reconhecer que essa forma de pensar a pesquisa como modo de

produção que permite trafegar pelas categorias da metáfora, da criatividade, pela

inteligibilidade da convocação do olhar, se afina com os elementos próprios da

abordagem fenomenológica.

Apontar os elementos do “fazer” em uma pesquisa fenomenológica é buscar se

embevecer com o vivido, entremeando o saber sensível sem se distanciar do rigor

filosófico, tarefa que exige engajamento com o método: atitude.

A atitude fenomenológica busca o recomeço, o produzir e reproduzir de novas

interrogações sobre o fenômeno, considerando as formulações do sentido sob a luz

da linguagem e da reflexão, descortinando as ocultações, assim como as

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possibilidades de diálogo com outros modos de compreensão, que não apenas a

filosofia (NÓBREGA, 2010).

A Fenomenologia é o estudo das essências na existência, partindo de um

tempo, espaço e mundo que se encontram onde estão antes mesmo da reflexão.

Coloca em suspeição as afirmações naturais para melhor compreendê-las e dar luz

ao contato ingênuo com o mundo, estabelecendo assim um estatuto filosófico. Trata-

se da descrição da experiência tal como se deu, sem a presunção de buscar

causalidades. Em exercício de reencantamento, a fenomenologia engaja corpo e

mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade (MERLEAU-PONTY,

1945/2009).

Nas reflexões fenomenológicas identificamos o método para o nosso estudo,

tendo em vista que este, de acordo com Nóbrega (1999), se distingue como uma

atitude de envolvimento com o mundo no intuito de compreender a experiência vivida.

Indo esta compreensão muito além da representação mental, posto que se caracteriza

como um comprometimento que permite a reflexão, a interpretação e a vivência.

Considerando a atitude fenomenológica, que ultrapassa o racionalismo ao se

lançar ao mundo buscando novos olhares e novos sentidos para a existência, unindo

o sujeito e o objeto em sua noção de mundo, almejamos evidenciar as

intencionalidades do sujeito encarnado, da experiência que nos religa as sensações

e expande a nossa condição humana. Para tanto, é preciso suspender o fenômeno e

buscar olhá-lo com espanto, pois a familiaridade com o objeto não deve trazer

respostas prontas.

No nosso caso, a própria escolha do âmbito pesquisado (a GR) pressupõe esse

retorno ao mundo vivido, não apenas isso, mas o relançamento do olhar ao fenômeno

implica numa movimentação filosófica capaz de transpor novos olhares a ele mesmo.

Esse olhar e descrição do fenômeno é o que Merleau-Ponty (1945/2006, p.11)

denomina redução: “A redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia

existencial”. A descrição do fenômeno não pode ser completa, porque nem somos

espíritos absolutos nem existe pensamento que abarque todo o pensamento. Assim,

um filósofo é aquele que sempre recomeça a descrever, já que nosso engajamento

no mundo é o que se precisa compreender e conceituar, ou seja, a experiência de nós

mesmos.

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A redução eidética, ao contrário, é a redução de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno sobre nós mesmos, é a ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência. Eu viso e percebo um mundo. Se eu dissesse, com o sensualismo, que ali só existem ‘estados de consciência’, e se eu procurasse, através de ‘critérios’, distinguir minhas percepções de meus sonhos, eu deixaria escapar o fenômeno do mundo” (MERLEAU-PONTY,1945/2006, p.13)

Se a experiência significativa já se configura como estesia do corpo, a retomada

da minha própria experiência somada à percepção das experiências de outros

sujeitos, mais recursos metafóricos, imagéticos, inteligíveis e artísticos permitem uma

ligação intencional que alimenta e retroalimenta minhas próprias experiências, meu

conhecimento de mundo que pela pesquisa fenomenológica vem à tona.

Na experiência, o inteligível e o sensível não se isolam. “Se existe uma natureza

do sujeito, então a arte escondida da imaginação deve condicionar a atividade

categorial; não apenas o juízo estético, mas também o conhecimento repousa nela”

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p.15). Apreciação também se configura como

conhecimento e a intencionalidade é compreensível através da redução: o mundo

enquanto conexão de fenômenos é antecipado pela minha consciência.

Dessa maneira, o olhar teórico, que inclui as dimensões experiencial e intuitiva,

é capaz de acolher fragmentos das “múltiplas interfaces do saber que emerge do

corpo, avança e é limitado pelo próprio caminho percorrido” (NÓBREGA, 2010, p. 43).

Trata-se de visualizar uma perspectiva de compreensão iniciada com a interpretação da plasticidade da linguagem corporal, possibilitada pelo gesto, gerando e sendo gerada pela estesia do corpo e do conhecimento sensível (NÓBREGA, 2010, P. 43).

Quando penso, retomo a mim mesma, não me jogo para fora num mundo

exclusivamente inteligível, muito menos recrio significações oriundas do vazio “é

porque a flecha do tempo arrasta tudo consigo, faz com que meus pensamentos

sucessivos sejam, num sentido secundário, simultâneos, ou pelo menos que invadam

legitimamente um ao outro. Funciono assim por construção” (MERLEAU-PONTY,

1960/1991, p. 14). Porque estamos no mundo e “estamos condenados ao sentido, e

não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história”

(MERLEAU-PONTY,1945/2006, p. 18).

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Com esses nortes, a reflexão fenomenológica elege e legitima o sensível como

aporte de conhecimento, pois quando retornamos às coisas mesmas através da

reflexão não nos retiramos do mundo, tomamos distância do fenômeno para ver

germinar as transcendências. A reflexão “distende os fios intencionais que nos ligam

ao mundo para fazê-los aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela

como estranho e paradoxal” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p.10).

Essa pesquisa, de natureza reflexiva, busca direcionar o olhar de forma que

seja anterior ao engajamento, para que o fenômeno apareça ele mesmo como

espetáculo, dado que não nega o envolvimento do autor. Trata-se de descrever o

fenômeno, não de procurar analisar nem explicar, porque tudo o que sei parte do meu

mundo vivido, sendo assim, apenas os códigos científicos não dão conta de abarcar

sua polissemia (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

Revelando os sofrimentos e dores enquanto vivências da GR, buscamos

pensar sobre as experiências do corpo estesiológico, argumentando sobre como

essas construções compõem e podem ser tomadas para pensar a Educação.

Entendendo que sofrimento e dor são experiências corporais intensas, e por

mais complexo que seja se colocar no exato lugar do outro que sente (em nenhum

sentido o é), pois cada experiência é vivida da unicamente pelo sujeito que vive, a

descrição da percepção dessas experiências nos aproximam de sua significação a

medida que buscamos em nós suas similitudes.

O estudo teve como solo perceptual na minha própria experiência na GR e foi

descrita porque sobre ela que se erigiram todas as reflexões posteriores. Vivi a GR

como ginasta, como árbitra e como professora/técnica, e esses olhares distintos

mobilizaram minha vida: profissão e afetos, para pensar a GR. Minhas experiências

nessa modalidade se encarnaram nas vivências de um corpo de ginasta totalmente

fora da curva de adequação, de uma árbitra atuante em nível nacional e de uma

professora curiosa, dedicada mas cheia de dúvidas e angústias por aspirar encontrar

um equilíbrio entre um trabalho que se aproximasse da linguagem representativa da

GR e que ao mesmo tempo fosse significativo para alunas no contexto escolar.

Ademais, expandimos o corpus da pesquisa através de experiências

significativas da GR nacional e internacional. Nesse processo de descrição, decidimos

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entrevistar ex-ginastas que compuseram Seleções Brasileiras de Conjunto9 de GR,

em que a representatividade brasileira tem se destacado nas últimas duas décadas.

E ainda, deter nosso olhar para as narrativas constantes na obra Escola de Campeãs,

de autoria principal da técnica búlgara Neska Róbeva (NESKA e RANKÉLOVA, 1991).

Sobre a modalidade de conjuntos da GR, Lourenço (2015) constatou que nas

competições nacionais normalmente há participação de clubes da maioria dos estados

brasileiros em todas as categorias, e é nesse tipo de competição que o Brasil

apresenta os melhores resultados internacionais, sendo finalista nos Jogos Olímpicos

de Sydney em 2000 e de Atenas em 2004.

Para as entrevistas, estabelecemos como critérios de escolha: pessoas que

atuassem como professoras (com formação para tal), que fossem árbitras e que já

tivessem representado o país em competição/competições internacionais. Este último

critério foi condicionante porque gostaríamos de ouvir mulheres que se submeteram

a experiência do treinamento e da participação em campeonatos no alto rendimento

esportivo. Entendemos ainda que, atuar nessas três frentes nos faria chegar a

pessoas com um olhar multidimensional para a GR, de quem viveu, apreciou/aprecia

e partilhou/partilha vivências na modalidade.

O passo seguinte foi contatar pessoas que atendessem a esses critérios. Para

tanto, pesquisamos no site oficial da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), e

não encontramos registros históricos explícitos dessa natureza. Seguimos buscando

nomes em materiais de publicidade na Internet. Não por coincidência, os nomes das

ginastas só foram facilmente encontrados após a primeira conquista de medalha de

ouro internacional, nos Jogos Pan-americanos de Winnipeg, em 1999, que gerou a

classificação, também pela primeira vez, para os Jogos Olímpicos, de Sydney, em

2000. Nessa época, a Seleção Brasileira de conjuntos era treinada pela técnica

Bárbara Laffranchi e sediada em Londrina/PR, e assim permaneceu até 2004 na

segunda edição das Olimpíadas em que a GR brasileira teve representatividade, em

Atenas. Após 2004, a Seleção Brasileira de conjuntos mudou sua sede para Vila

Velha/ES, sob a direção da técnica Monika Queiroz, permanecendo lá até 2009, um

ano após os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, sendo a conquista dessa vaga

olímpica fruto da repetição da conquista do ouro nos Jogos Pan-americanos do Rio

9 Embora a GR não seja considerada um esporte coletivo, o conjunto é uma das modalidades de competição da GR que exige a organização do treinamento e das composições coreográficas em grupo. A participação das ginastas em coletividade é sua característica típica (LISITSKAYA, 1995).

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de Janeiro, em 2007. A terceira e última mudança registrada se deu para a cidade de

Aracaju/SE, em 2010, onde a seleção está sediada desde então, passando pela

supervisão da técnica Giurga Nedialkova em 2010 e de 2010 até o presente momento

com a técnica Camila Ferezim (LOURENÇO, 2015), que por sua vez, levou o conjunto

brasileiro à mais recente edição dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, em 2016.

De acordo com Lourenço (2015), ao consultar dados da CBG, nos últimos

quatro ciclos olímpicos, 25 ginastas oriundas de todas as regiões do Brasil foram

titulares da SBC de GR durante Jogos Pan Americanos e Jogos Olímpicos, com

representatividade de 11 estados brasileiros.

Do período em que a seleção esteve em Londrina/PR, contatamos três (3) ex-

ginastas, sendo duas (2) delas (G1 e G4) com participação expressiva em relação ao

tempo de permanência (11 e 7 anos) e uma (1) delas com um (1) ano na seleção de

conjuntos e outros oito (8) anos representando o Brasil na seleção individual (G3). As

duas (2) primeiras são técnicas atuais renomadas dentro e fora do país, e a terceira,

além de técnica, atua como árbitra em campeonatos nacionais. A quarta ex-ginasta

(G2) entrevistada participou da Seleção Brasileira em um período diferente das

demais, permanecendo por dois (2) anos quando a seleção era sediada em Vila

Velha/ES, entre 2005 e 2009. Atualmente ela é proprietária de uma escola de GR,

atua como técnica e árbitra. As idades das ex-ginastas variavam entre 27 e 39 anos

(G1 – 38 anos, G2 – 27 anos, G3 – 30 anos e G4 – 39 anos) no início de 2017.

Embora houvesse outras ex-ginastas e contatos prévios estabelecidos, por

uma questão de viabilidade e principalmente de significância, característica legitimada

pela pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, foi realizado o agendamento

de entrevistas com as quatro (4). Foi estabelecido contato on-line via rede social

Facebook e e-mail explicitando o teor da pesquisa e o desejo de entrevistá-las. A partir

do aceite, agendamos data e local. As duas primeiras entrevistas se deram em um

ambiente de competição, nos Jogos Escolares da Juventude, na cidade de Fortaleza,

as outras duas foram em um ginásio de treinamento e na residência de uma das ex-

ginastas, na cidade de Aracaju. Solicitamos assinatura de termo de autorização e

gravação das falas, todas assentiram. Transcrevemos as entrevistas e as devolvemos

para conferência, caso optassem por modificar algum conteúdo. A entrevista constou

de perguntas abertas que diziam respeito aos cotidianos das ex-ginastas nos períodos

em que treinavam, abordando as experiências positivas e negativas, assim como,

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suas sensações sobre elas. Tanto o roteiro de perguntas quanto as transcrições das

falas estão nos apêndices desse trabalho.

Importante relatar que as perguntas não foram diretivas em relação às

experiências de dor e sofrimento por um entendimento nosso de que não são simples

de exprimir, pois remexem com as emoções, os afetos, o que poderia inibir a

expressão das entrevistadas. Testemunhamos vozes embargadas, olhos marejados,

exposições entusiasmadas de pessoas que viveram uma parte da vida treinando em

um ginásio, viajando pelo mundo, se doando para a GR. Além disso, as peculiaridades

contextuais nos deram o contraste existencial necessário, não previamente

classificatório (a premissa de que só há dor), para as nossas interpretações.

Após a realização das entrevistas, retomamos atentamente as leituras das

transcrições e a escuta dos áudios gravados, relembrando como cada uma daquelas

mulheres rememoraram suas experiências e que sensações aqueles relatos

causaram em nós. Como dissemos, as experiências de dor e de sofrimento não são

fáceis de serem narradas, porque envolvem mágoas, frustrações, angústias,

arrependimentos. Então muitas experiências emblemáticas eram relatadas após o

desligar do gravador, como confissões que não poderiam ser reveladas. As posturas,

as expressões, a maneira como cada uma se colocou nas falas também foram

elementos importantes para a nossa interpretação, pois enriquecia nossa percepção

acerca do quanto a experiência relatada ainda movia e afetava a pessoa entrevistada.

Não como uma busca por causalidades, mas por compreender que essas expressões

se retomavam como emoções vividas significativamente.

A partir do exercício de escuta e transcrição, selecionamos trechos que fossem

significativos e se articulassem às expressões de dor e sofrimento, bem como, aos

tópicos formados pela descrição da minha própria experiência (vivência e partilha) e

interpretação. Nesse sentido, alguns campos de sentido foram descortinados como

experiências dolorosas ou sofridas: as pesagens, as lesões, a proximidade ou

distância da família durante o treinamento da seleção, os momentos vividos fora da

GR, o relacionamento com a técnica da seleção, aprendizagens da GR para a vida e

momentos importantes em coreografias mencionadas. Essas categorias foram

organizadas em quadros e compõem os apêndices, subdivididas em campos de

significação que originaram os tópicos discutidos nos capítulos 3 e 4: Corpos

rasgados; Corpos modelados; Limiares; Empatia; Corpos gloriosos e Enigma.

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Optamos por não utilizar os quadros diretamente no texto, e sim por nos

remeter às falas para dar mais fluidez à leitura. Escolhemos também resguardar os

nomes das entrevistadas, assim como, os nomes das pessoas que foram citadas no

percurso das entrevistas. É preciso dizer ainda que embora os conteúdos

selecionados para construir os quadros fossem priorizados para as interpretações, no

curso da escrita houve a necessidade de selecionar outros trechos, transitar entre os

fenômenos. Isso porque algumas experiências puderam ser discutidas em diferentes

tópicos de significação, enquanto outras transitaram tranquilamente de um campo

para outro. Esse processo se assemelha à formulação da filigrana quando o

artista/artesão revê o uso de suas substâncias, modifica o local de preenchimento de

filamentos para melhor adaptação. A pesquisa fenomenológica permite entrançar

outros atributos para enriquecer a feitura da obra.

Esse enriquecimento também foi realizado pelo uso das imagens, que

adentravam a escrita do texto sempre que havia necessidade de tomar o leitor pela

inteligibilidade da apreciação. A GR é uma modalidade que se pauta numa

determinada concepção de beleza, a qual nos referimos ao longo do percurso de todo

o trabalho, por isso, a referência imagética permeou alguns pontos do texto.

Já a obra Escola de campeãs foi tomada para nosso corpus porque também se

dá sob a forma de narrativa de experiências, algo inusitado quando tomamos a maior

parte da produção bibliográfica da GR, formada basicamente por manuais de

exercícios. Além disso, é considerado um livro clássico, pouco explorado do ponto de

vista acadêmico e um dos mais importantes da GR, tido como uma orientação para

jovens treinadoras e atletas. O livro divide-se em dois capítulos: “Que cultives a flor” e

“Escola de campeãs”. No primeiro há recomendações para seleção ginastas iniciantes

e sobre como motivar crianças para a beleza da prática. No segundo, prescrevem-se

rotinas e experiências com ginastas campeãs europeias e do mundo. De um modo

geral, o livro traduz-se numa narrativa poética e instigante. Para a modalidade, o livro

relata a consolidação de sua esportivização através da experiência da seleção búlgara

de GR nos anos 1980 e 1990, sem deixar de advertir que a subjetividade na

constituição artística da GR fundamenta suas bases. A obra, produção emblemática

para a GR e leitura que suscita o mundo vivido de uma técnica que criou diretrizes

para o modo como se produz arte com o corpo na GR, também foi a minha principal

inspiração quando almejava construir as carreiras de árbitra e técnica. Os trechos

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significativos foram selecionados a partir de narrativas que se referissem à experiência

da ginasta e da técnica.

Como podemos observar, a interpretação dos registros foi realizada a partir da

tessitura de experiências, em filigrana, visando corporificar, à luz das narrativas

vividas, o argumento da tese.

Apresentamos a estruturação dos capítulos com base na constituição da

filigrana:

No Capítulo 1, intitulado “CONTORNOS”, a construção da filigrana é preparada

a partir da exploração dos contextos e do campo a ser investigado. Nesse processo,

aparecem a GR em sua ligação com a historicidade da Educação Física e dos

Esportes, as vinculações entre a história cultural da dor e a disciplina, bem como,

estas ainda se refletem nas práticas corporais sistematizadas. Porém, também é

preciso deixar claro sob que campo estamos nos debruçando nessa construção: o

corpo estesiológico. Os contornos da filigrana são a base em que os fios das

experiências serão erigidos. Nenhuma experiência emerge do vazio, o corpo, as áreas

de conhecimento, as práticas corporais possuem historicidade.

No Capítulo 2, denominado “FIOS”, a filigrana organiza seus fios exibindo

formas e sinuosidades. Nessa parte, fazemos a descrição das experiências sob uma

descrição autobiográfica, sob os relatos das ex-ginastas da Seleção Brasileira de

Conjuntos de GR entrevistadas, entremeadas por narrativas constantes na obra

Escola de Campeãs (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991). Esses fios e sinuosidades, de

espessuras, maleabilidades e curvas diferentes, percorrem a dimensão do vivido e da

partilha.

No Capítulo 3, de nome “TESSITURA – Filamentos de interpretação”, foi

preciso preencher os microespaços com os fios capilares, sendo modelados em

sinuosidades ainda menores, em espirais para preencher os espaços dos contornos

que foram soldados à teia de fios. A filigrana teve a fase mais minuciosa de sua

fabricação, pela inserção dos filamentos de interpretações da GR que remeteram a

dor dos corpos ginásticos rasgados pelas lesões, ao sofrimento gerado pelo

enquadramento aos modelos de corpos e gestos e às situações vividas que também

foram percebidas como um limiar entre dores e sofrimentos, apontado pelas ex-

ginastas.

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Ainda no capítulo 3, partindo das sinuosidades que apareceram como campos

de significação que deram sentido às experiências, elegemos os autores que puderam

nos auxiliar a preencher alguns espaços, que por sua vez, originaram os seguintes

tópicos: Corpos rasgados, Corpos modelados e Limiares.

O quarto e último capítulo foi intitulado “CORES – Educação como enigma” –

Nesse último passo para a feitura da filigrana foi o momento de finalização, de

visualizar o todo, de tomada de decisões, deliberar se a filigrana se tornou plana ou

curva, se curva, aproveita-se a maleabilidade temporária adquirida através de calor

para moldá-la. A peça de filigrana é "branqueada", para, finalmente, proceder seu

areamento e sua brunição. As interpretações, nesse momento da tese, a partir dos

campos de sentido emergidos, tomaram a forma de reflexões sobre a educação, que,

por sua vez, emergiu das sensações do corpo. A filigrana ganha aspecto

policromático, reverberado na empatia, na temporalidade dos corpos gloriosos e na

educação como enigma.

Após polimento, finalização e lavagem da filigrana, foi preciso arrematá-la,

trabalhá-la, apreciá-la por vários olhares e avaliar o processo de construção. Com

essas intenções, na última parte do nosso texto, denominado “ARREMATES,

CALEIDOSCÓPIOS E OUTRAS SINUOSIDADES” nos detemos nas considerações

finais.

As referências bibliográficas são tomadas nesse texto como os

SUSTENTÁCULOS DA FILIGRANA, que a impedem de desmontar, que dão corpo ao

objeto. Os sustentáculos são as finíssimas lâminas de metal coladas e aquecidas que

dão sustentação à sua forma. Embora seja considerada a base de sustentação, essa

parte da estrutura não é colocada no início da construção. Assim, as experiências não

são essencialmente balizadas pela produção sistematizada de conhecimento, elas

são anteriores e, como exposto, se talham nas sinuosidades dos fios e na tessitura

dos filamentos.

Por último, as SUBSTÂNCIAS correspondem aos apêndices e anexo do

trabalho, o roteiro das entrevistas com as ex-ginastas, o termo de autorização ao qual

elas preencheram, as transcrições das entrevistas realizadas, a organização de

trechos das entrevistas nos quadros de campos de significação e a seleção de trechos

da obra interpretada. Trata-se do material catalogado ainda não descrito e

interpretado, como o metal da filigrana ainda não selecionado, pesado, derretido,

trabalhado.

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Em face de nossas escolhas, âmbito de construção da filigrana e detalhamento

da construção, iniciamos detalhando-os a partir do próximo capítulo desse trabalho.

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CAPÍTULO 1 – CONTORNOS

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Antes de nos aventurarmos em um trabalho acurado, a exemplo da

construção de uma filigrana, é preciso se ater a algumas questões necessárias: Onde

será realizado? O que sei sobre isso? É possível realiza-lo? Terei estruturas e

equipamentos para tal? Como preparar os espaços? Eu desejo fazê-lo? Eu tenho

experiência? Que tradições guardam as filigranas? Essas perguntas são importantes

para diagnosticar as condições prévias do empreendimento. Aqui, as chamaremos de

contornos.

Em se tratando da tese em filigrana, trabalho que se aprende a construir

durante o seu próprio curso, esses contornos dizem respeito as bases em que os fios

das experiências serão erigidos, pois, assim como nenhuma experiência surge do

vazio10, as linhas escritas que se seguem implicam em compreensões sobre o objeto

de pesquisa (a dor e o sofrimento), o âmbito pesquisado (a GR), assim como, a

maneira como nossas escolhas teóricas se situaram.

A construção da filigrana da pesquisa é preparada a partir da exploração dos

nortes que assumimos, por isso, intitulamos as partes desse primeiro capítulo de

“Contextos” e “Campo – O corpo das sensações”. Para compor os “Contextos”,

dissertamos sobre a GR em sua ligação com a historicidade da Educação Física e

dos Esportes, sobre as vinculações entre a história cultural da dor e a disciplina, bem

como, seus reflexos nas práticas corporais contemporâneas. Não obstante, essa

contextualização também nos permitiu transferir nosso olhar para os sentidos da dor

e do sofrimento na experiência e não apenas na dimensão do discurso. Dessa

maneira, na segunda parte “Campo – O corpo das sensações” nos debruçamos sobre

a compreensão de corpo estesiológico, assim como os conceitos e as noções que o

10 Merleau-Ponty chama de Fé Perceptiva a noção de que o mundo é, independente do olhar, anterior a interrogação ou a reflexão (MERLEAU-PONTY, 1964/2009).

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volteiam. Ao nosso ver, essa incursão subsidia e justifica o entrelaçamento das

experiências de dor e sofrimento no vivido.

CONTEXTOS

Coragem, amigos, coragem!

Desprezemos a dor,

O rochedo da tempestade

Não teme o furor11

Em meados do século XIX, no continente europeu, surgem formas

diferenciadas de encarar o exercício físico: os Métodos Ginásticos12. A eclosão dessas

sistematizações originou os Grandes Movimentos ginásticos, proporcionando o

aparecimento de novas correntes e ideias acerca do movimento humano. Com isso,

formularam-se pedagogias dos gestos e das vontades como parte dos novos códigos

de civilidade. A afirmação social da Ginástica pautada pela racionalidade científica

ajudou a constituir, através da higienização dos movimentos da cultura de rua, uma

mentalidade cientificista impregnada de visões de mundo construídas no interior de

teorias evolucionistas, organicistas e mecanicistas (SOARES, 2001; 1998).

Às mulheres, a exemplo da Escola Alemã13, era dada a tarefa de gerar os filhos

de uma nação que ainda buscava a unidade territorial até o início do século XIX, e

que, por conseguinte deveriam criar um forte espírito nacionalista alicerçado “por

homens e mulheres fortes, robustos e saudáveis” (SOARES, 2001). Nesse contexto

de preocupação com a mulher ante os objetivos militaristas do modelo alemão, assim

11 Trecho de uma Canção de Amoros precursor da Ginástica Francesa do século XIX. O canto durante o ato de se exercitar era tido pelo autor como um dos instrumentos de civilização, de moralização e de regeneração mais poderosos (SOARES, 1998).

12 Também intituladas Escolas Ginásticas (SOARES, 2001). 13 As Escolas Alemã, Sueca e Francesa, tidas como principais expoentes dos Métodos de Ginástica Científica (LLOBET, 1998).

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como seu desembocar no Movimento do Centro14, criaram-se vínculos da ginástica

feminina com a pedagogia, a dança, o teatro e a música, atrelando assim, o resultado

de um movimento renovador aos primeiros rudimentos da Ginástica Moderna (GM)

(LLOBET, 1998; ROMERO, 1994; ALONSO, 2011).

É importante compreender que, embora a GR tenha suas conformações

vinculadas aos Métodos Ginásticos, estes são muito mais amplos, se ramificando em

outras práticas corporais, determinando e influenciando toda a forma de se conceber

os exercícios físicos no ocidente. De acordo com Rinaldi (2005, p.80), a história da

Ginástica se confunde com a da Educação Física:

Os exercícios físicos, ao compor o conhecimento curricular permitido, recebem o nome de “Ginástica” (métodos ginásticos), constituindo-se em elemento laico na educação escolar. Esta forma de manifestação do ser humano, que não surgiu de uma hora para outra e esteve sempre ligada à sua própria história, sofreu modificações porque acompanhou as necessidades de transformação da sociedade e procurou atender aos anseios daquele momento histórico. Com o nascimento do capitalismo e a ascensão de uma classe industrial e comercial que começou a reger a cultura e a arte, a Ginástica (Educação Física da época) passou a fazer parte dos “cuidados com o corpo”, tornando-se um problema de Estado.

Como explicitado, podemos creditar à historicidade da GR os percursos

originados pela sistematização das práticas corporais europeias nos séculos XVIII e

XIX, que por sua vez, diz respeito, de forma mais ampla, às características assumidas

pela Educação Física contemporânea. De fato, a Educação Física enquanto área de

conhecimento engloba os Esportes, as Ginásticas dentre outras práticas

sistematizadas.

Algumas décadas depois, já no século XX, a prática ginástica criada sob os

nortes da beleza denominou-se Ginástica Rítmica Desportiva15 (GRD). A modalidade

14 Movimento Ginástico renovador do final do século XIX, início do século XX, que reuniu intenções pedagógicas dos países com proximidade geográfica (Alemanha, Austria, Suíça, dentre outros) sob representação de personagens como Delsarte, Dalcroze, Bode, Medau, Duncan, Laban e Wigman.(LLOBET, 1998). 15 Em 1962, durante o 41° Congresso da Federação Internacional de Ginástica (FIG), a Ginástica Moderna passou a ser reconhecida como modalidade esportiva independente. Nessa mesma época, foi aprovada a realização do 1° Campeonato Mundial, em 1963, na Hungria. No âmbito da FIG, a modalidade recebeu as denominações Ginástica Moderna (1963), Ginástica Rítmica Moderna (1972),

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foi pensada para mulheres (característica oficial que a acompanha até a atualidade)

com o objetivo de enaltecer os atributos femininos da época: a gestualidade, os

movimentos, a delicadeza, a flexibilidade. Favorecendo a condição de gênero voltada

para a maternidade saudável, cuidados com o lar e manutenção do status quo.

A aparente cautela dispensada às atividades físicas para mulheres não

representava nenhum tipo de privilégio, ao contrário, esses cuidados só se

justificavam em razão dos possíveis benefícios a serem transmitidos aos futuros filhos

homens. Defender os exercícios como um meio de "fortalecer" os corpos femininos

significava mais um fosso entre os gêneros e mais uma forma de subordinação das

mulheres que qualquer tipo de emancipação social (SOARES, 2003).

Demeny afirmava que os hábitos saudáveis deveriam se sobrepor, desde a mais tenra idade, a esses que causam tantos malefícios às mulheres. O exercício físico bem dosado e adequado às meninas deveria tomar acento definitivo desde o início do processo educacional. Educando-a, educa-se a futura mãe que, por sua vez, educará suas futuras filhas. É através da ginástica que a educação física da mulher vai tornar-se completa; por isso, quanto mais cedo iniciá-Ia nessa "arte fundada sobre a ciência do movimento", mais eficientes serão seus resultados. (SOARES, 2003, p.82 e 83)

Conforme o desenrolar do século XX, a preocupação outrora centrada na

formação educativa de mulheres “naturalmente” femininas e procriadoras,

transformou-se numa busca multifacetada pela perfeição técnica, fruto da

esportivização da modalidade GR. A construção de qualidades como exuberância,

graciosidade e encantamento dos corpos e movimentos formativos das moças

desbravadoras da GM seriam, em porções dosadas inicialmente (até meados da

década de 1950), e em tempestades de mudanças daí em diante, sendo permutados

pelos específicos padrões corporais e de movimentos pautados pelas performances

dos corpos. A beleza da GR quantificou-se e categorizou-se em critérios de

julgamento esportivo (CAVALCANTI, 2008).

Ginástica Rítmica Desportiva (1975) e Ginástica Rítmica (1999). Considerou-se a GR como esporte olímpico quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) a inseriu nas programações dos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984.

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A esportivização da modalidade não foi concomitante no Brasil e no mundo,

sendo mais tardia aqui. A GR apareceu pela primeira vez como esporte de competição

feminino independente na Rússia, no princípio dos anos 50. E adquiriu popularidade

no leste da Europa, denominando-se “Ginástica Artística”, pois era considerada como

uma arte de expressão pessoal por meio dos movimentos, desenvolvendo a graça, a

segurança e a feminilidade de quem a praticava (BOOR-SHMID, 1985).

Oficialmente, para a Federação Internacional de Ginástica (FIG), instituição que

rege as ginásticas competitivas16 do mundo, no congresso de Praga, em 1962, a GM

foi reconhecida como esporte independente, o que implicaria na organização de

campeonatos mundiais bianuais. No primeiro campeonato do mundo, em 1963, em

Budapeste, ainda não havia regras, o que resultou num caos entre os estilos das

participantes; os julgamentos assumiram as regras da ginástica artística (BOOR-

SHMID,1985).

Três meses antes do campeonato mundial de 1965, em Praga, houve um

seminário para unificar as opiniões sobre os rumos da GM. Concluiu-se que a GM

nem era dança moderna, nem dança clássica, e sim um esporte fundado nos

movimentos “naturais” do corpo e na expressão pessoal. Naquele campeonato, as

tchecoslovacas obtiveram bastante êxito (primeiro, segundo e terceiro lugares)

utilizando todo o corpo com técnica de dança clássica em suas composições. Essa

ocasião demonstrou a direção em que a GM tomaria. Após o terceiro campeonato, em

1967, em Copenhagen, a FIG formou uma comissão e elaborou um regulamento

próprio para a GM, sua primeira tentativa de sistematização. Depois do campeonato

de 1969, em Varna, aboliram-se as competições com mãos livres, e finalmente, a FIG

organizou uma comissão e elaborou o primeiro Código de Pontuação17 em 1970

(BOOR-SHMID,1985).

16 Com exceção da modalidade Ginástica Para Todos, ou Ginástica Geral, que a FIG também reconhece que diverge das demais modalidades por seu cunho participativo, festivo, demonstrativo, inclusivo, sendo aberta a várias linguagens (PAOLIELLO, 2008). 17 Código de Pontuação (FIG, 2017-2020) da GR é um documento produzido pela Federação Internacional de Ginástica (FIG) para regulamentar as regras da modalidade. É revisado a cada ciclo olímpico, período que se inicia no final dos Jogos Olímpicos e finda com os jogos seguintes (LOURENÇO, 2015). Na dissertação de mestrado (CAVALCANTI 2008), desenvolvemos uma análise de conteúdo desse documento, com base no conceito de poder de Michel Foucault e constatamos que seu texto baliza a beleza na GR a partir de jogos de poder-saber, no entanto, a ginasta sempre encontra novas formas de ser bela.

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Compreendemos que as concepções de beleza na Educação Física, marcadas

historicamente pela ânsia de seguir padrões, estão intimamente ligadas ao rendimento

alcançado pelos corpos: "A beleza pretendida é a beleza do gesto realizado pelo corpo

ou mesmo a beleza do corpo como produto do gesto realizado (...) os ideais de beleza

se confundem entre os gestos e os corpos que os realizam" (PORPINO, 2003, p. 148).

Esse padrão, por sua vez, prioriza uma concepção de estética objetivista, que tem

como referência um modelo a ser seguido (PORPINO, 2004). Assim, a beleza

pretendida pelos esportes de natureza artística é a beleza dos movimentos

padronizados, expressa por corpos em constante processo de disciplinarização. De

acordo com Sanchés Vásquez (1999) uma beleza pautada na simetria, nas

proporções, na harmonia de formas, nas predefinições: a concepção clássica da

beleza.

Ressaltamos que vislumbrar uma concepção objetivista de beleza na GR não

significa reduzi-la a esse aspecto, por dois motivos: o primeiro é o entendimento de

que a modalidade foi paulatinamente desenhada a partir de influências de técnicas

corporais da pedagogia do movimento expressivo, de técnicas rítmicas musicais de

educação do corpo e do movimento que desencadeou a Dança Moderna, contraponto

histórico que questionou a objetividade técnica do Ballet Clássico (LLOBET, 1998;

LISITSKAYA, 1995). É preciso admitir, nesse sentido, que a GR tem seus registros

históricos atrelados muito mais à concepção de Arte Moderna do que à Arte Clássica.

O segundo motivo é que a modelização de corpos, gestos e aparências são algumas

possibilidades dadas na experiência da beleza, mas não a reduzem, porque o corpo

como sensível exemplar jamais se limitará a formas pré-concebidas de experienciar

e/ou apreciar os gestos do corpo. Assim sendo, a caracterização de GR como um

esporte de beleza objetivista se dá no nível da esportivização, o qual é contexto

investigado por essa tese.

No movimento de esportivização da GR, a beleza mencionada por Porpino

(2003) se superlativa e reflete as construções da beleza feminina no ocidente. Sobre

isso, Vigarello (2006) explicita que os modelos de beleza acabam valorizando o

gênero feminino idealizado como exemplo de perfeição, aprofundando uma nova

ascendência do sensível e do gosto que instituem um reforço ao estatuto da mulher

na modernidade, que por sua vez, ainda mascara uma cultura obscura e repetitiva de

certeza de inferioridade (VIGARELLO, 2006). Embora não cheguemos a aprofundar

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isso sob a ótica do gênero nesse trabalho, percebemos que o posicionamento do autor

acerca da beleza feminina povoa a GR desde sua concepção, passando pela sua

esportivização e se consolidando na maneira como as praticantes se envolvem com

ela, ou seja, a GR nasceu para a beleza feminina, foi esportivizada para que essa

beleza se enquadrasse nas características do esporte moderno e ainda, as próprias

ginastas lutam para garantir essa beleza através da forma dos seus corpos e dos seus

gestos.

Para trazer um pouco desse universo, apresentamos a Imagem 2, que é

protagonizada pela ginasta brasileira Natália Gáudio, em sua série de arco, no evento

em que conquistou a vaga para os Jogos Olímpicos (JO) do Rio de Janeiro, em 2016.

Natália foi a única brasileira a competir na modalidade individual dessa edição dos JO.

A foto foi registrada no Campeonato Mundial de Stuttgart, na Alemanha, em 2015.

Imagem 2- Ginasta em exercício individual, aparelho arco

Fonte: Página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Bufolin

Observemos na Imagem 2 a harmonia na combinação de cores, brilhos,

penteado, maquiagem, expressão facial e posicionamento corporal da ginasta em tela.

Tudo parece conjecturar para a beleza do momento. O ambiente é bem iluminado,

limpo, com cenário pensado e arrumado para abrigar o espetáculo ginástico de modo

que o centro do show seja a ginasta e os ornamentos figurem de forma menos

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perceptível nos anúncios dos patrocinadores do esporte de alto rendimento. Cria-se

uma atmosfera que se volta para a beleza.

Já a Imagem 3, com fotografia realizada no mesmo campeonato da imagem

anterior, apresenta a Seleção Brasileira de Conjuntos (SBC) em um momento da série

de aparelhos mistos18 (três arcos e dois pares de maças). Observemos que as

características explicitadas na imagem anterior se repetem. Acrescenta-se, nesse

caso, o modo próprio que a modalidade de conjunto tem de imprimir beleza, a partir

da organização centrada na gestualidade coletiva.

Imagem 3: Ginastas da seleção brasileira de conjuntos Ginástica Rítmica no campeonato mundial de Stuttgart – Alemanha / 2015

Fonte: Página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Bufolin

.Nessa pesquisa, direcionamos um olhar especial a modalidade de conjunto,

pois, como anunciado anteriormente, além de ser mais expressiva e representativa

(LOURENÇO, 2015) dentro e fora do país, as entrevistas foram realizadas com as ex-

ginastas que compuseram as SBC.

18 Em competições oficiais da categoria adulta (a partir dos 16 anos), os conjuntos de cinco (5) ginastas representantes do país apresentam-se em duas coreografias/séries: uma com cinco (5) aparelhos idênticos e outra com dois (2) aparelhos diferentes. Os tipos de aparelhos são decididos a cada quatro (4) anos, conforme os ciclos olímpicos, pelo comitê técnico da FIG.

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O estudo desenvolvido por Lourenço (2015) em sua tese de doutorado se refere

notadamente à análise da modalidade de conjunto no Brasil, trazendo dados

importantes sobre os sentidos das experiências na GR. Sob a luz de Pierre Bourdieu,

através da análise de conteúdo de depoimentos de treinadoras e ginastas da SBC de

GR, no período de 1997 a 2012, a autora identificou dez (10) habitus relacionados a:

processo de entrada e saída da equipe, comando, superação pessoal em prol do

grupo, manutenção do peso corporal, amadurecimento, rotinas de viagens e estudos,

manutenção de resultados, convivência intensa, esporte espetáculo e intenção de

continuidade na vida esportiva.

Como um breve adendo, vale trazer a relação que Ortega (2008) traz entre a

noção de habitus de Bourdieu (apud Ortega, 2008) e a de hábito de Merleau-Ponty

(1945/2006). Ortega (2008) afirma que ambas as noções, que divergem enquanto

áreas de investigação (sociologia e fenomenologia respectivamente), conseguem dar

conta das ações corporais sem precisar recorrer ao reducionismo de um vocabulário

racionalista ou voluntarista de razões e decisões, reconhecendo uma condição pré-

reflexiva do corpo em relação ao ambiente. Por esse entendimento e por perceber que

alguns dos depoimentos recolhidos pela autora da tese ginástica coadunam com os

relatos tomados por nós, reconhecemos o estreitamento entre a construção deste

trabalho e o de Lourenço (2015).

Dos habitus identificados e analisados pela autora, dois deles se relacionam

diretamente com os elementos investigados no contexto do nosso trabalho: superação

pessoal em prol do grupo e manutenção do peso corporal.

Lourenço (2015) identificou que, em geral, os esportes que demandam grandes

esforços acabam sendo carregados de dor e sofrimento. Desse modo, cada atleta tem

seu valor segundo sua dose de sacrifício diário, sua determinação, que não

necessariamente corresponde às suas conquistas. A GR, pela busca da perfeição,

proporciona uma demanda exaustiva de repetições de movimentos, assim, as

ginastas mais jovens vão incorporando estruturas e estilos à medida que vão

passando por clubes e sendo submetidas a métodos de treinamento mais rígidos.

Além dessa dedicação aos gestos técnicos da modalidade, Lourenço (2015)

analisou os processos de manutenção do peso corporal e as estratégias de controle.

A autora identificou que níveis elevados de estresse entre atletas de alto rendimento

da GR são constantes e muitas vezes advindos da pressão em se atingir e manter

metas de peso predeterminadas pela equipe técnica da SBC.

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Como dito anteriormente, a GR atual se constitui como uma prática artística e

esportiva, que encontra seus maiores referenciais no esporte de alto rendimento.

Nesse contexto, a potencialização dos corpos aparece como cerne da ciência do

treinamento esportivo. A Imagem 4, por exemplo, capta um momento de treino da

SBC, no ano de 2013 enquanto iniciava sua preparação para os Campeonatos

Mundiais dos dois (2) anos subsequentes, assim como, para o Campeonato Pan-

americano de Toronto, ocorrido em 2015 e para o objetivo maior, os Jogos Olímpicos

do Rio de Janeiro, que ocorreu em 2016. A parte do treinamento a qual a Imagem 4

expressa se refere a um momento do processo da construção da beleza que não é

evidenciado na apreciação do produto: o treinamento da capacidade física

flexibilidade que, junto com as demais (força, resistências, potência etc) subsidiam a

forma corporal da ginasta.

Imagem 4: Treinamento da seleção brasileira de conjunto de GR

Fonte: Página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Bufolin

Lourenço (2015) quando se refere ao “valor” da atleta em função de seu esforço

e dedicação, nos dá a pensar sobre o processo árduo para se tornar uma atleta de

elite. Dor e Sofrimento são tomados como moeda de troca em treinamentos corporais

árduos e uma intensa busca pela perfeição é adotada como algo que se deve dispor,

minimamente, para subir ao pódio. Um preço a se pagar que não parece justo

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considerando que é uma pré-condição que nem sempre recebe um retorno objetivo

através de classificações, pois em cada pódio só cabem três colocações e o posto de

campeã só se destina a uma. Essa relação desproporcional entre o valor que se

custeia e, efetivamente, os resultados que se colhem, poderia determinar o

esvaziamento das práticas ginásticas, mas não é isso que se constata. De acordo com

dados da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG) o número campeonatos de GR

aumentou, principalmente nos últimos dezesseis (16) anos, no nosso país. Até o ano

de 2000, a CBG só promovia Campeonatos Brasileiros Interclubes, a partir do início

da referida década acrescentaram-se os Torneios Nacionais para abarcar uma

espécie de segunda divisão de ginastas, e, após essas competições também

extrapolarem o número de inscritas, em 2014, os torneios foram regionalizados. Nessa

perspectiva, por mais que enxerguemos a intensa dedicação inerente à prática da GR,

que canaliza tempo e energia por parte das praticantes durante e após os

treinamentos, muitas desejam participar.

De antemão, frisamos que não destacamos a prática da GR pautada apenas

pelo sofrimento e dor. Ao contrário, delineamos a constituição da modalidade sob o

revelar dos gestos e aparências modelizados considerando que é preciso dar voz à

experiência vivida. Nos opomos a generalizar uma compreensão maniqueísta dessas

experiências, por isso que essa pesquisa tem sua razão de existir. Porque só nos

atemos aos sentidos da prática quando permitimos nos engajar nela.

A GR, após sua esportivização, herdou características do esporte moderno,

que é orientado, como nos esclarece Bracht (2002), pelos princípios do rendimento,

competição, universalização, eficiência, técnica, racionalização, quantificação e

mercadorização. Esses distintivos a qualificaram como modalidade esportiva e sua

vertente artística se redimensionou para esse fim. A busca pelo exercício belo move

as performances de GR e reproduz uma concepção de beleza que visa quantificar o

qualificável, dar exatidão à experiência. Todavia, entendemos que isso não é de todo

possível, pois por mais correta e adequada às regras do CP que seja uma série de

GR, ainda assim, isso não garantirá sua excelência. Eis o paradoxo que se cria ao

designar a modalidade como situada no interstício entre o esporte e a arte.

Compreendemos que muitas sensações perpassam o processo de constituição

da obra artística esportiva, abarcando a concepção coreográfica, a rotina de

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treinamentos e competições, e a modificação de uma estética de vida em função

dessa obra. A busca pela beleza pautada em técnicas esportivas especializadas

configura o direcionamento das performances. Assim sendo, mesclam-se momentos

de prazeres e desprazeres que demarcam os corpos ginásticos nos processos de

adequação à lógica disciplinar do treinamento esportivo.

A dor e o sofrimento são passíveis de serem vividos em diferentes práticas

corporais sistematizadas, de modo que nem são exclusividade dos esportes de alto

rendimento, muito menos dos de natureza artística. A hipervisibilidade dos corpos

provocaram grandes preocupações com a beleza e o culto ao corpo vincula-se cada

vez mais a abertura de espaços e intervenções tecnológicas destinados à sua

modelação. Nesse contexto, a dor mediada pela tecnologia nos investimentos sobre

o corpo encontra positividade na sensação do dever cumprido, adquirindo caráter

legitimador, justificando-se como símbolo de merecimento pelo ideal a ser atingido. O

culto contemporâneo ao corpo “entrelaça discursos pela promoção da saúde com

dispositivos de conformação somática vinculados, entre outros, à performance, à

instrumentalização orgânica e celebração a juventude” (VAZ, 2007, p. 01). Assim,

segue a compreensão de um corpo biologizado, que se torna obsoleto frente as novas

tecnologias (LE BRETON, 2013c).

Nesse sentido, atrelar padrões estéticos ao sofrimento de custeá-los parece

validar a presença da dor e do sofrimento sob a égide da premissa No pain, No gain

(sem dor, sem ganhos). Ao esporte pertence não apenas o impulso à violência, mas

também a capacidade de suportá-la e tolerá-la" (ADORNO citado por VAZ, 2001,

p.08).

Nesse caminho, a dor proveniente do treinamento remete ao sacrifício feito em

nome do rendimento esportivo. E assim sendo, o autocontrole exigido pelo atleta,

aproxima-se, de acordo com Vaz e Gonçalves (2012) de um indivíduo, que para se

tornar aceito vai de encontro a natureza do seu próprio corpo, reprimindo sua

subjetividade em nome de uma racionalidade que é cerne da cultura ocidental. Os

autores concordam que o esporte talvez leve esse processo de racionalização muito

a sério, em planos elevados, perfazendo o domínio de si como exigência mínima para

sua concretização. Suplantando sentimentos que o desviem dessa trajetória em

função da performance e do resultado.

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O atleta que se deixa dominar por suas paixões indeterminadas torna-se fraco e no esporte não há lugar para a debilidade, uma vez que é espaço de construção de uma identidade guerreira e sempre pronta para o desafio, para o combate. O aprendizado para suportar e mesmo para gozar com a dor se dá nos treinamentos Vaz e Gonçalves (2012, p.8)

Nessa compreensão, a dor e o sofrimento, que rasgam a existência ou

enquanto abdicação de uma estética de vida motivada por impulsos e desejos

humanos, são tidos como presença constante na vida de atletas de alto rendimento,

representando a busca e superação de limites, incutindo a construção da melhor forma

atlética possível (RUBIO e MOREIRA, 2007).

Melo e Araújo (2002), em artigo versando sobre os sacrifícios do corpo no

esporte, refletem sobre os louros esportivos destinados aos atletas sob duas

condições: pelo talento, excelência e bons resultados, e pelo sacrifício exemplarmente

elogiado como atitude de esforço e perseverança. Nesse segundo caso, as

homenagens são simbólicas, mas ainda assim ilustram a galeria dos grandes feitos

do esporte, nem que seja às custas de um esgotamento físico que coloque em risco

a integridade do atleta. Há de se manter, dessa maneira, um discurso moralista de

superação a qualquer custo.

Tendo em vista as intervenções necessárias para a potencialização das

performances esportivas, à Ciência do Treinamento Esportivo compele a periodização

do treinamento da ginasta determinando períodos, ciclos, horários, quantidades,

intensidades, testes e intervalos (LAFFRANCHI, 2001), que são devidamente

registrados a cada dia e avaliados através de planilhas e gráficos. Sendo assim, ao

passar do estado de treinamento para um período competitivo, os registros não

cessam, e, ao sair da quadra após uma apresentação, a atleta de GR terá todo o

mapeamento dos seus movimentos descritos nas fichas de avaliação da arbitragem.

Tudo se planeia, tudo se registra. Nesse sentido, a potência do corpo é

meticulosamente calculada em função do que este pode apresentar enquanto

resultado: sua melhor forma no período competitivo.

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Como breve contraponto, indo de encontro aos métodos constituídos para o

esporte, as autoras a seguir, figuras importantes na GR búlgara e no firmamento dos

seus contornos estéticos no mundo nas décadas de 1980/1990/2000, as quais

tomaremos as narrativas no próximo capítulo, afirmam que os avanços científicos

ainda não são capazes de minimizar a sensibilidade de quem avalia as performances

na GR. “A ciência do esporte ainda não dispõe de método racionalizado e eficaz para

a seleção de ginastas. Naturalmente, foram elaborados testes, mas ainda se leva em

consideração a experiência e a sensibilidade do treinador” (RÓBEVA e RANKÉLOVA,

1991, p.37). Embora o texto citado possua mais de vinte e cinco (25) anos, é preciso

creditá-lo até os dias atuais porque a formação técnica e artística de uma ginasta

depende de uma alta complexidade de fatores / competências / vivências que ocorrem

ao longo da aprendizagem da modalidade.

Nessa compreensão, o conhecimento sensível torna-se essencial para a GR

mesmo com os avanços científicos. O pensamento das autoras corrobora com a

compreensão de Merleau-Ponty (1961/2004) quando este afirma que a ciência aplica

seus modelos a qualquer objeto, inclusive o próprio ser humano, considerando o

mundo opaco ante suas verdades. O filósofo alega que é preciso que o pensamento

da ciência saia desse sobrevôo e considere o mundo sensível como prévio, onde

habito e os outros habitam em mim. “Nessa historicidade primordial, o pensamento

alegre e improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre as coisas e sobre si

mesmo, voltará a ser filosofia...” (MERLEAU-PONTY,1961/2004, p.15).

Embora os cálculos que compõem um plano de treinamento possam ser

previsíveis, cada ginasta pode apresentar inumeráveis reações, respostas, diferentes

expressões e formas de suportar o treinamento. Isso reafirma que a experiência

sensível não pode ser subestimada pois é capaz de nortear e qualificar as atividades

corporais, algo que vai além do discurso. Desse modo, a ciência é importante, mas

não é onipotente. É preciso considerar a pessoa, sua experiência, porque o resultado

depende disso também. Inclusive, a adequação ao modelo depende da pessoa, do

modo com que ela sente o mundo e pode dialogar com as práticas de treinamento.

Ademais, há pessoas que nunca serão atletas de alto rendimento. Por isso, é preciso

sopesar as análises polarizadas: tanto das críticas ferrenhas ao esporte, que é

praticado por pessoas, quanto das receitas de sucesso do esporte de alto rendimento,

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já que os métodos científicos não são totalmente previsíveis quando o corpo empírico

é formado por pessoas.

As referências da historicidade da Educação Física, da GR, bem como, as

características do fenômeno esportivo são importantes para contextualizar o ponto de

partida do nosso trabalho, assim como, os contornos possíveis para a formulação da

nossa filigrana. Todavia, as experiências de dor e sofrimento, objetos dessa tese,

também reivindicam um revelar.

Os mecanismos de controle disciplinar não são estranhos ao esporte, muito

menos à ginástica. A história da disciplina se articula com a história da ginástica, que

se debruça sobre as dores e sofrimentos e dissolução social de suas intensidades ao

longo da história humana. É possível observar, a partir da história das punições

examinada por Foucault (1975/1987) ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, a

transformação da dor pura, insuportável, mortal e espetacular dos suplícios públicos

na Europa, na disciplinarização de corpos através da institucionalização do poder

disciplinar, vigilante, temporal, espacial e disseminado em diversas esferas da

sociedade ocidental.

O suplício cruel que beirava e consolidava a morte do condenado, aplicado

exemplarmente até o início do século XVIII, foi sendo reinventado nas punições

prisionais, implicando na privação da liberdade e de condições indignas de

sobrevivência. O sistema avançou para a vigilância, diminuindo a necessidade do uso

da força física e diluindo-se na invisibilidade da incisão do poder panóptico. E por fim,

a disciplina, que já no século XX povoou instituições (quartéis, escolas, hospitais,

fábricas etc.) modernas surgindo junto com uma nova ordem social emergida com o

crescimento das cidades e as revoluções no ocidente. Naturaliza-se assim um modelo

corporal enquadrado, econômico, reto, educado, que ainda padecia de ser moldado

nas amarras invisíveis do poder disciplinar.

Foucault (1975/1987) reforça que a dor mascarou-se historicamente no século

XX e Adorno (2000) compartilha desse entendimento. De acordo com Adorno (2000),

a dor e o sofrimento não desaparecem, mas se retraem para dentro das prisões, para

as clausuras habitadas pelas disciplinas, onde tranquilamente se adaptam.

Se o modelo normativo, constituído ao redor das disciplinas, alojou-se, pelas razões explicitadas em Vigiar e Punir (1975/1987), em torno da prisão, a prisão não abdicou de suas tradicionais funções punitivas

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entre as quais a de fabricar a dor e o sofrimento. Algumas delas são como que clássicas: o isolamento, o silêncio, os pequenos espancamentos cotidianos, o violento assédio sexual, a contaminação de toda sorte, as ameaças de delação, os deslocamentos arbitrários de celas e de estabelecimentos penitenciários etc (ADORNO, 2000, p. 28-29).

Foucault (1979/2006 e 1975/1987), nas obras Microfísica do Poder e Vigiar e

Punir, respectivamente, enriquece essa reflexão quando afirma que na

disciplinarização dos corpos e na anestesia social das práticas médicas a dor

naturalizou-se nas intervenções femininas na busca da beleza. As atribuições

destinadas ao “sexo frágil”, “sexo belo”, sensível, delicado, materno, vão além dessas

predicações aparentemente confortáveis, refletem-se em sacrifícios, submissão,

intervenções dolorosas, dentre outras obrigatoriedades atribuídas ao gênero feminino

e que envolvem a relação entre beleza, dor e sofrimento. Observemos que a GR se

compatibiliza com essa compreensão.

Os mecanismos de dor disciplinares minimizam e escondem as punições

corporais abrindo espaço para a constituição de corpos dóceis (FOUCAULT,

1975/1987), no entanto, o esporte é um dos âmbitos em que a dor torna-se capaz de

encontrar sua justificação social. O atleta convive com a dor, desde que os fatores que

interfiram negativamente no seu desempenho possam ser anulados ou estabilizados.

E assim como o disciplinamento histórico demarca a anestesia social, os sofrimentos

vivenciados no esporte caracterizam um silenciamento da dor e uma constante

vigilância do modo de vida atlética em função do objetivo final: os bons resultados em

competições.

Os sacrifícios que se fazem em detrimento de uma virtude a ser alcançada

remetem a mensagem cristã ocidental (presente e difícil de ser laicizada) sobre a qual

se fundamenta a história da dor nos séculos XVIII e XIX, valorizando a extrema

resistência ao sofrimento. “Depois de ter lutado longamente, durante a sua juventude,

contra o dualismo dos discípulos de Mani, Agostinho, torturado pelo problema do mal,

refere-se ao dogma do pecado original para explicar a presença da dor sobre a terra”

(VIGARELLO, 2012, P. 333). Nesse pensamento, não há como desvencilhar a dor do

pecado, porque Deus é justo e em sua bondade concebeu o sofrimento, inclusive do

seu filho, para salvar a humanidade. A anatomia do sofrimento da paixão de Cristo

exerce uma forte influência sobre a alma piedosa do século XIX, cujas representações

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são, pouco a pouco, estilizadas e atestam a pregação das concepções cristãs da dor

(VIGARELLO, 2012).

A apologia ao sofrimento não remete apenas ao clero, mas inunda a sociedade

se constituindo como a força que fundamenta a virilidade. Reina a ideia de que a boa

dor não é prejudicial porque é formativa. Em paralelo, a medicina acompanha a

“revolução anestésica” que quebra com os espetáculos dramáticos das dores

operatórias (VIGARELLO, 2012).

O século XIX, portanto, corresponde, ao mesmo tempo, ao abaixamento dos níveis de tolerância, a uma transformação profunda no estatuto da dor, considerada agora como uma complexa elaboração emocional, e uma luta eficaz travada contra ela pela analgesia, a antalgia e a anestesia. A isto acrescenta-se uma nova tensão voltada para a fadiga. Ao mesmo tempo, como vimos, o prazer e a volúpia deixam de ser considerados apenas na perspectiva da procriação e o hedonismo, assim, recebe nova legitimidade. No geral, portanto, impôs-se um novo regime de sensibilidade (VIGARELLO, 2012, p. 343).

Portanto, o maior controle e atenção para o corpo produz mais incertezas sobre

ele (VIGARELLO, 2012). Como vimos nas linhas anteriores, a herança do trabalho

físico, do esforço e do sofrimento como valia para a grandeza do espírito continua

ocupando as representações acerca do esporte, sendo materializadas sob a forma do

treinamento.

Ainda nos detendo na disciplinarização dos corpos, temos um elemento na GR

que é emblemático nessa perspectiva de controle corporal: o julgamento. O

julgamento da GR se incide sobre sua matriz gestual, balizado pelos elementos

corporais juntamente as possibilidades de movimentos aceitos pelo CP. Em análises

realizadas em estudos anteriores (CAVALCANTI, 2008), observamos que os

caminhos da beleza na GR esboçaram uma construção de relações de poder-saber,

pois se constituíram a partir de mecanismos de coerção-resistência dos corpos ante

os objetivos pedagógicos e militares primordiais e as regulamentações esportivas. Na

pesquisa realizada, tomamos reflexões sobre poder de Foucault (1977, 1979,

1975/1987) e sua relação com a produção de saberes, pois, naquele momento,

pensávamos sobre uma perspectiva de intervenção corporal que não flutua em um

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plano ideológico, em um poder não hierarquizado, pois das relações de poder nos

inteiramos em proporções diferenciadas. Assim, esse entendimento parte de um

poder que se inscreve no corpo, que o denuncia e ao mesmo tempo o exerce.

As autoras Róbeva e Rankélova (1991) atentaram, ainda na década de 1990,

sobre a velocidade com que as mudanças na GR ocorrem, que implicam numa

constante reavaliação das possibilidades de movimentos realizados pelas ginastas.

Sendo assim, o poder que incide e se mostra no corpo produz conhecimento, de forma

circular e veloz. É o poder material que gera saberes do corpo.

O esporte é movimento contínuo, eterna pesquisa, perpétua mudança. Dá-se o caso de que uma tendência universal dure apenas duas horas. O que nos parecia impossível ontem realiza-se diante de nossos olhos em contínuas, “desumanas” dimensões. Às vezes, os limites reais das possibilidades humanas ultrapassam nossa concepção (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.25).

Esporte é dinâmica contínua. Sempre o novo, o nunca visto. Não se acabou de aprender algo, e já a inovação faz seu aparecimento (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.99).

Valendo-se da defesa da ideia de que o poder é corporal, Foucault tece críticas

aos sentidos do poder das análises marxistas, cujo entendimento do poder privilegia

sua condição ideológica, e esclarece:

Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que, do século XVII ao início do século XIX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias... (FOUCAULT, 1979, p. 147-148)

Foucault (1979) nos clarifica que o poder está disseminado na sociedade, nas

várias relações, pois quem se sujeita não é sempre submisso, produz poder também.

Ressalvamos que as observações sobre poder foucaultianas, não são arguidas de

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concepções maniqueístas, ocorrem em uma rede complexa nas relações sociais. O

autor corporifica o poder. É no corpo onde ocorrem os controles da sociedade, as

relações de poder, não por ideologias “sobrevoantes” (Foucault, 1979), mas por um

discurso visceral, que adequa, expande, endireita, amplia, poda e produz

conhecimento. Desse modo, o corpo, quando se torna alvo de mecanismos de poder,

oferece-se a novas formas de saber, transparecendo um corpo manipulável por

treinamentos úteis às autoridades, mas que reage através das exigências da natureza

e limitações regionais.

Portanto, o campo de incidência e projeção do poder é o corpo. Nesse sentido,

as pedagogias corporais se situam como as práticas sociais, históricas e datadas que

são responsáveis por produzir os sentimentos, as aparências e a fisiologia dos nossos

corpos, correspondendo às formas com que os seres humanos paulatinamente

esculpem os gestos através dos tempos, culminando numa composição constante e

inacabada da cultura de movimento. Tomamos aqui o termo Cultura de Movimento

como “conceito que expressa diferentes compreensões e usos do corpo em uma

determinada cultura ou sociedade” (NÓBREGA, 2003, p. 134), e como forma de

entendermos a GR em suas interconexões com a história, os costumes, as

necessidades humanas e as crenças de um determinado povo.

O corpo é resultado provisório de diversas pedagogias que o conformam em determinadas épocas. É marcado e distinto muito mais pela cultura do que por uma presumível essência natural. Adquire diferentes sentidos no momento em que é investido por um poder regulador que o ajusta em seus menores detalhes, impondo limitações, autorizações e obrigações, para além de sua condição fisiológica, um poder que não emana de nenhuma instituição ou indivíduo ou muito menos se estabelece pelo uso da força, mas sim pela sutileza de sua presença nas práticas corporais da vida cotidiana (FRAGA, 1999, p. 213).

As técnicas de exercício do poder que nortearam os conhecimentos do corpo

voltado a si mesmo foram as disciplinas (FOUCAULT, 1975/1987), já mencionadas

anteriormente. Estas configuraram sentidos atrelados à produção de discursos. Desse

modo, pensamos sobre uma beleza que na GR é construída a partir da trama de

discursos dados pelas relações de saber-poder e dos investimentos do corpo na

modalidade.

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Para aferir o quão um discurso é penetrado na vida social é preciso observar a

naturalidade com que ocorre sua inscrição nos corpos, pois quanto mais natural, mais

seus efeitos são imperceptíveis e maior é sua força do ponto de vista do mecanismo

de poder que o induziu (FRAGA, 2000). Tal fato abre a perspectiva para pensarmos

os efeitos do poder na forma com que percebemos a beleza, pois há concepções que

norteiam nossos “gostos” e não nos damos conta disso. A GR, por exemplo, é uma

modalidade que nasceu para ser bela, beleza pré-concebida, e assim segue seu

dever. A beleza é uma condição, está posta, é “natural” à GR, ainda que o termo nem

sempre esteja explicitado nos seus diversos discursos. Mesmo correspondendo a um

modelo objetivista, a beleza da GR se também se constrói juntamente com a formação

estética da região/país onde se pratica. O conjunto de forças que atuam nesse

processo é complexo e a própria Róbeva e Rankélova (1991) referencia a Bulgária.

Nós, moradores desse canto da terra, compreendemos o que significa ‘tocares um coração, aqueceres seu sangue pelo calor e sobreviveres’. Nós, habitantes desse recanto, temos realmente outra concepção de beleza. Estamos plenos de vida e de otimismo até mesmo quando sofremos... (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.12)

Nesse caso, a autora valoriza abertamente a beleza construída com muito

trabalho, mesmo no sofrimento. A beleza é cara mas é incomensurável.

A beleza sempre esteve contemplada na ginástica, carregada pela disciplina

coercitiva dos corpos (FOUCAULT, 1979), pela retidão, pela higiene, pela harmonia

de formas, pela simetria. Por um conjunto de prescrições necessárias para se extrair

um resultado esperado, para produzir, através do corpo um conhecimento sobre ele

mesmo. A produção da beleza teve, sobretudo, a ingerência artística como

fundamento para sua criação, a exemplo da dança, do teatro e da música.

Com isso, temos uma ginástica que se pauta no modelo, mas se afirmou nas

concepções da Arte Moderna, movimento em que os modelos são criticados; se

pautou na expressão do sexo feminino, mas procria diferenciações entre os sexos; se

pautou na beleza dos movimentos naturais, mas se afirma na performance enquanto

categoria dessa beleza. Caráter ambíguo, como o poder expresso por Foucault

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(1979), que simultâneo ao seu exercício, cria mecanismos de fuga, cria um contra-

poder.

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica e contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar (FOUCAULT, 1975/1987, p. 163).

Esse dispositivo disciplinar é caracterizado por Foucault (1975/1987, p. 169)

como nicho onde o poder se torna presente e visível em toda parte “inventa novas

engrenagens; compartimenta, imobiliza, quadricula”.

O processo pelo qual a ginasta é julgada, na situação da competição esportiva,

passa pela semelhança do dispositivo disciplinar assinalado por Foucault, por

compreender justamente duas das características básicas do mecanismo disciplinar:

a vigilância e o registro (FOUCAULT, 1979).

A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. É o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo (FOUCAULT, 1979, p. 107).

Entendemos que a análise foucaltiana sobre o poder nessa perspectiva do

olhar que julga numa sociedade de controle é pertinente porque remete à produção

do conhecimento ginástico pautado pela disciplina, sendo essa apreciação melhor

realizada na pesquisa de mestrado (CAVALCANTI, 2008), como comentado

anteriormente.

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O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico. O enraizamento do poder, as dificuldades que se enfrenta para se desprender dele vem de todos esses vínculos. É por isso que a noção de repressão, à qual geralmente se reduzem os mecanismos do poder, me parece muito insuficiente, e talvez até perigosa (FOUCAULT, 1979, p. 148-149).

No contexto do esporte desvelamos produções da área de conhecimento

Educação Física para contextualizar a dor e o sofrimento na GR. No entanto, o foco

desse estudo, sendo a experiência, prioriza o corpo como realmente se percebe, pelo

indivíduo, essa dor e esse sofrimento tão criticados. Assim, não é negar a crítica, mas

trazer outros focos para a discussão. O esporte como sofrimento é visto dessa forma

pelo atleta? Será que há vida sem sofrimento? Não é fazer apologia ao sofrimento,

mas saber compreendê-lo a partir da experiência de quem sofre. As escolhas pessoais

merecem ser compreendidas.

Por isso, é preciso sopesar que as referências apresentadas até aqui,

foucaultianas (FOUCAULT, 1977, 1975/1987) e frankfurtianas (ADORNO, 2000; VAZ

et all, 2007, 2012) apresentam subsídios específicos para pensar a disciplinarização

dos corpos, bem como, os sentidos da dor e do sofrimento no esporte, dialogando

com a nossa perspectiva merleau-pontyana de filosofia do corpo à medida que

investigam o esporte numa perspectiva social e crítica. Entretanto, compreendemos

que tais contribuições diferem, tanto no que se refere ao julgamento puramente

analítico (arqueologia do poder disciplinar), quanto à crítica social particularizante ao

fenômenos esportivo, do que consideramos como amplificação das sensações e

estesia do corpo, pois operam no nível das análises, da representação e do discurso,

enquanto nós buscamos refletir a partir do viés da experiência.

Portanto, ao mesmo tempo em que ocultar essas referências seria imprudente,

já que apresentam contribuições importantíssimas para discutir nosso objeto,

buscamos nos apropriar dessa multiplicidade de vozes mas levar o olhar para outro

foco: a estesia do corpo, considerando a experiência daqueles que sentem dor e

sofrimento no contexto do esporte .

O pensamento de Ortega (2008) coaduna com o nosso e amplia a crítica à

omissão dessas abordagens às experiências do corpo. O autor em tela esclarece que

a disciplina corporal não se trata de um processo psicofísico de controle crescente do

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corpo e dos afetos, como está posto por Norbert Elias na perspectiva do “Processo

civilizador”, ou na concepção da “Dialética do esclarecimento”, à qual Adorno e

Horkheimer se reportam. Mais que isso, a disciplina é considerada como um processo

de controle e monitoramento dos movimentos e posições corporais, algo que se dá

fisicamente, que incide no corpo. Ortega (2008) também afirma que a compreensão

disciplinar de Foucault é avessa à psicologia, sendo isso notável em sua abstração

completa sobre as dinâmicas pulsionais individuais. O resultado dessa abnegação

foucaultiana aparece através da alma, no interior dos corpos, produzida pelo poder.

Sendo assim, Foucault se interessa mais em analisar como as diferentes culturas

interpretam historicamente o prazer e a dor, por exemplo, do que os considera como

invariantes corporais que serviriam de base para críticas concretas e resistências de

especificidades históricas em relação as técnicas corporais (ORTEGA, 2008).

Encaminhando-nos para expansão dessa compreensão disciplinar, para obter

o direcionamento para a perspectiva do corpo estesiológico, imbricado ao mundo pela

carne, ao qual nos dedicamos no próximo tópico, ancoramos o nosso entendimento

no conceito de Instituição de Merleau-Ponty (1954-1955/2015), no qual o autor se

debruçou nos cursos do Collége de France entre 1954 e 1955, meditando, em diversos

âmbitos, sobre os padrões de articulação significativos de fatos. A instituição pessoal

é campo de presença, realidade, mas não finalidade, por isso, toda revolução é

processo, jamais estado (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015)

O conceito de Instituição, voltado para a investigação de como se elabora um

sentido por meio de acúmulo e reorganização de experiências sedimentadas, se

manifestando tanto na vida animal, quanto na puberdade humana e até na

constituição dos saberes teóricos, se revela como um importante passo de Merleau-

Ponty para ir de encontro às abordagens intelectualistas da subjetividade. O autor

abre caminho para o entendimento de que as capacidades conceituais subjetivas se

ordenam sobre os processos anônimos da vida sensível (FERRAZ, 2008).

A novidade dessa concepção se estabelece contra uma filosofia da história que

se funda na consciência e a favor de um não idealismo de consciência absoluta, mas

abertura como mistério. Desse modo, a existência retorna sobre si mesma sem

conseguir se irromper (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015).

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A história torna-se a relação entre as pessoas mediatizadas pelas coisas. O

autor afirma que no estudo sobre as pessoas, sobre a história pública e a instituição

anônima que podemos fixar o sentido de racionalidade da história. Desde que a

pessoa seja compreendida por instituição, e não como consciência. O privado e o

público se relacionam não por compromisso eventual, mas por ecos, trocas,

acumulação simbólica. O corpo, nesse contexto, é campo de presença, que, ao

mesmo tempo em que institui é instituído, e atrela o estabelecimento de experiências

de dimensões relacionais a uma série de outras experiências (MERLEAU-PONTY,

1954-1955/2015).

O conceito de instituição de Merleau-Ponty (1954-1955/2015) se relaciona com

a perspectiva foucaultiana de sociedade de controle, deslocando e ampliando a

perspectiva de “corpos dóceis"19 para corpos instituídos. Essa amplificação dá sentido

as estruturas subjetivas sedimentadas e pertinentes da história humana, das quais

não nos damos conta mas que são determinantes para a construção do

conhecimento, da arte, da cultura.

A instituição funciona como horizonte, não apreensível: foge às atividade

conscientes e a transparência das subjetividades. Ela não supõe uma ordenação

temporal exata, ao contrário, as transformações ordenadas ocorrem por uma lógica

organizada a partir de suas próprias transformações (MERLEAU-PONTY, 1954-

1955/2015).

A compreensão de instituição suplanta a de sociedade de controle foucaltiana

porque considera o imbricamento do ser no mundo antes de qualquer mecanismo ou

projeção de poder por parte de um sujeito consciente, nós não nos atemos a essa

condição, nascemos e crescemos instituídos e instituintes. Esse pensamento de

Merleau-Ponty é um passo importante para a transformação de suas próprias

construções nos anos que sucederam aos cursos de 1954 e 1955. Expandindo a

compreensão de corpo sujeito para a noção de corpo estesiológico, da fenomenologia

do sujeito para a ontologia da carne, do questionamento sobre as dualidades

intelectualistas para a compreensão do ser sensível, bruto, assumindo o fluxo das

relações sensíveis.

19 Embora esse conceito tenha sido plenamente desenvolvido por Foucault duas décadas mais tarde, na primeira edição da obra Vigiar e Punir, em 1975.

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Em suma, quando olho e julgo uma ginasta, eu parto necessariamente de todas

as experiências anteriores que tive na prática, no apreciar e no próprio julgamento.

Além disso, também parto das experiências de todas as pessoas: ginastas,

professoras, árbitras, as quais me conectei. E não posso fugir desse fenômeno pois a

instituição não é uma derivação cognitiva, mas um processo anônimo e subjetivo.

Na iniciação da prática esportiva da GR, o corpo instituído flui no curso das

subjetividades da infância e do esporte: mesclam-se brincadeiras e prazeres com

estipulação de regras, modelos, gestos pré-determinados, testes, competitividade.

Portanto, para nos aproximar desses sentidos e dos que se constroem a partir da

imersão na prática da GR durante a adolescência e a vida adulta, é preciso dar luz à

experiência, pois trazer as análises conceituais é muito importante, mas os dados

sensíveis, de quem vive ou viveu imersa nesse mundo da GR pode despertar em nós

outras significações.

Para que esse discurso sobre a valoração das experiências seja coerente

nessa pesquisa, adentramos no campo das sensações, bem como, nas noções e

conceitos construídos por Merleau-Ponty para compreensão de corpo estesiológico.

CAMPO – O Corpo estesiológico

Partindo do pressuposto de que “a filosofia é indissoluvelmente lógica e

experiência, não pode se prender as estruturas significativas e inteligíveis do mundo

e esquecer-se da nossa presença sensível que define o nosso enlaçamento primordial

com o mundo” (CAMINHA, 2016, p. 257), o autor destaca um dos maiores desafios

do projeto de Merleau-Ponty: dar luz à inerência sensível do ser com o mundo que já

caracteriza uma inteligibilidade.

A concepção fenomenológica de corpo de Merleau-Ponty (1945/2006),

desenvolvida na sua tese Fenomenologia da Percepção em 1945, que é,

posteriormente, amplificada pela Ontologia da carne (MERLEAU-PONTY,1964/2009),

contribuem para a compreensão da dinâmica do pensamento do autor, abrangendo o

sujeito sensível situado no mundo vivido, mas que se relaciona com o mundo através

da carne.

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O corpo conceituado por Merleau-Ponty (1945/2006) está atrelado a presença

do ser no mundo, ao modo único, pelas vias sensíveis, de senti-lo, acessá-lo,

interpretá-lo, compreendê-lo e de expressar-se no vivido. Corpo que se traduz

simultaneamente em via sensível e metáfora de obra de arte. “O corpo é condição de

nossa existência não apenas biológica, mas também social e histórica (NÓBREGA,

2010, p. 34). Não ser apenas biológico significa dizer que todas as suas operações

são entrelaçadas em sua realidade simbólica, de modo que, não há como dissociar

reações fisiológicas das significações contextuais da experiência do corpo. O corpo é

realidade sensível mas os sentidos não são instrumentos qualificáveis, quantificáveis,

previsíveis e muito menos destacáveis do mundo. Sendo assim, todas as minhas

experiências são encarnadas e significam-se no mundo.

Para compreensão de corpo, o conceito de percepção torna-se primordial. A

ciência clássica remeteu à sensação, noção da linguagem que remete à percepção,

uma relação causal de obviedade, vinculada a algo que seria simplório e automático,

um atributo natural dos sentidos. Contudo, é preciso renunciar a definição de

sensação como impressão pura, porque se a sensação é tomada na experiência pode

ter diversas qualificações, considerando o objeto percebido ou o espetáculo inteiro.

Desse modo, não há sensação ou percepção puras, são constituídas junto com o

percebido, que preso ao mundo, só pode ser acessado pela própria percepção

(MERLEAU-PONTY,1945/2006).

O corpo não é uma massa material inerte e a causalidade linear, baseada no esquema estímulo-resposta, não se apresenta como a maneira mais apropriada de compreensão do universo corpóreo. Por sua vez, a sensação e a percepção não são elementos inferiores à evidência racional, aos conceitos lógico-matemáticos, sendo imprescindíveis ao processo de conhecimento. Com esses argumentos, busca esclarecer a relação entre corpo e consciência, inaugurando uma nova possibilidade de compreensão desse fenômeno: a análise existencial, privilegiando o mundo das experiências vividas como plano primeiro da configuração do ser e do conhecimento (NÓBREGA, 2010, p. 52).

Apenas a estrutura da percepção efetiva pode nos esclarecer a realidade da

percepção. As qualidades são propriedades dos objetos, perceptíveis por diversos

fatores, contudo, quando percebidos são levados a consciência que se dá no corpo

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porque cada qualidade da sensação, que resulta em sons, cores, texturas só são

notados em função de todos os sons, cores e texturas com os quais tivemos contato

na vida. (MERLEAU-PONTY, 1945/2006). Nesse sentido, a percepção é um ato de

significação considerada também como uma ação cognitiva (NÓBREGA, 2009). As

vias sensíveis nos dão o aporte de conhecimento de mundo numa relação de

reciprocidade em que o próprio percebido se refaz junto com o ato de perceber, a

própria sensação retoma o sentir.

O sensível é aquilo que se apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este “com” não é simplesmente instrumental, que o aparelho sensorial não é um condutor, que mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes consideradas como centrais (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p.32).

Reitera-se na síntese do corpo próprio elaborada por Merleau-Ponty

(1945/2006), a unidade do corpo como estrutura de implicação entre suas partes, que

não estão apenas coordenadas, mas se dispõem, em seus aspectos táteis, visuais e

motores, a partir de sua significação comum. Os dados sensíveis, a exemplo de um

hábito motor, quando objetivados de forma intelectualista, deformam signo e

significação, pois separam um do outro. A apreensão de uma significação se dá

exclusivamente pelo corpo, dessa maneira, reciprocamente, todo hábito perceptivo é

um hábito motor. “A análise do hábito motor enquanto extensão da existência

prolonga-se portanto em uma análise do hábito perceptivo enquanto aquisição de um

mundo” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 211).

Ser corpo é estar atado ao mundo vivido, pela carne, de forma indivisível em

um nó de significações vivas incapazes de serem analisadas separadamente. Nesse

sentido, o corpo não poderia ser comparável a um objeto físico, e sim a uma obra de

arte, porque nela também não é possível distinguir antecipadamente o que é

expressão e o que está expresso (forma e conteúdo), a não ser que a contate

diretamente. Ambos (corpo e obra de arte) irradiam significações sem abandonar suas

espacialidades e temporalidades (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, 1964/2009).

Merleau-Ponty alude ao visível a nossa vinculação de significação com o

mundo revelando a necessidade da filosofia reencontrar um espaço de reflexão entre

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a experiência e o pensamento. Ele coloca que o visível nos é familiar, estreito, por

isso o revestimos da nossa carne. E exemplifica: o vermelho das coisas se conecta e

desconecta a outros vermelhos, porque nunca é apenas uma combinação de átomos,

mas, alimentado pelo visível, ajuda a qualificar a carne das coisas. A espessura da

carne é o meio pelo qual vidente e visível se comunicam, assim sendo, única maneira

de chegar ao âmago das coisas é fazendo-lhes carne e fazendo-me mundo

(MERLEAU-PONTY, 1964/2009).

A filosofia da carne de Merleau-Ponty não se propõe a mostrar mundo ou corpo

como termos isolados, mas fazer ver as ligações, sem justaposições, a partir de suas

próprias configurações. O sentido da existência porosa dos dois, em que um não é

sem o outro (CAMINHA, 2016).

A existência bruta e prévia do mundo, anterior a qualquer significação elaborada pela racionalidade representacional, é vivida como campo de presença. Nasce aqui a perspectiva ontológica da filosofia de Merleau-Ponty que revisa seu modo de fazer filosofia assentada na fenomenologia. Isso não significa abolir radicalmente a tradição fenomenológica na medida em que o filósofo mantém procedimentos descritivos, oriundos da fenomenologia, em sua forma de pensar. Todavia, não estamos falando da mera descrição das vivências subjetivas, mas da descrição da experiência da fé perceptiva, que se ampara na instituição da análise ontológica da carne (CAMINHA, 2016, p. 254).

As experiências também se fazem carne e me transformam para além de um

resultado esperado por conexões pré-desenhadas, por esse ângulo, um corpo que

sofre transcende essa experiência na interpretação do seu mundo. Meu mundo se

modifica a cada sofrimento, meu sofrimento também se modifica no mundo, porque o

mundo não é apenas representacional, nos ligamos a ele por uma relação carnal.

Nesse contexto, a condição sensível do corpo reconstrói, a todo tempo e

simultaneamente, o corpo e o mundo através das experiências. Eu me faço e me

refaço no mundo, assim como o mundo se faz e se refaz para mim, em torno das

experiências da carne.

Merleau-Ponty (1964/2009) explicita, falar de faces ou dualidades do corpo

implica em expressá-las a partir do mesmo movimento, inseparável entre o corpo

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sentido e o corpo que sente. Há uma topografia que é dupla e cruzada do tangível no

visível e do visível no tangível, embora cada uma seja completa, elas não se

confundem nem se sobrepõem. “Ora, tudo o que se diz do corpo sentido repercute

sobre todo o sensível de que faz parte e sobre o mundo” (MERLEAU-PONTY,

1964/2009, p.134). O caminho ontológico serve para criar familiaridade entre o mundo

enquanto horizonte do Ser e o sujeito perceptivo (CAMINHA, 2016).

O meu corpo está contido no grande espetáculo do mundo visível, pressupondo

ainda todos os outros visíveis, que se inserem e se entrelaçam reciprocamente. O

conceito de corpo fenomenológico enriquece-se pela noção de carne, que supõe o

corpo capaz de sensações e das coisas implicadas nele, ela é o que se apresenta

originalmente, onde o ser percebido está eminentemente enquanto bruto e sensível.

A carne do mundo se faz compreender pela carne do corpo. O sensível (exterior) é a

carne do mundo (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b).

A carne, que não é nem matéria nem substância, é elemento de aderência do

ser ao mundo aqui e agora, desse modo, revisto e sou revestido pela minha carne e

pela carne do mundo (MERLEAU-PONTY, 1964/2009). Não há nada em mim nem no

mundo que não seja povoado por esse elemento de aderência, pois sou um sensível

exemplar.

Pela noção de carne, é possível compreender que o corpo é sempre atravessado pelo mundo sensível. Nesse sentido, o corpo passa a ser considerado agora como carne, que somente revela sua condição de ser por estar sempre em relação ao mundo. Compreendemos que o mundo não é apenas o lugar onde o corpo se situa do ponto de vista de uma localização, mas, sobretudo, o ambiente relacional que se constitui pelas vias dos entrelaçamentos que se reverte em sensível e senciente (CAMINHA, 2016, p. 256).

Pressupondo um trabalho que pensa as experiências de dor e sofrimento, e

para compreensão desse entrelaçamento entre corpo e mundo que se abre para a

estesia reavivada na ontologia da carne, faz-se necessário reafirmar alguns elementos

importantes para compreender a sua condição estesiológica, a exemplo da

animalidade.

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A noção de animalidade situa o homem no conjunto da Natureza como solo e

sustentáculo, sem, no entanto, diferenciá-lo em função da adição da razão ao seu

corpo (homo sapiens). Desse modo, exclui a existência de organismos de

propriedades absolutas e existências pontuais, implicando na existência de uma

estrutura de conjunto, uma dinâmica de comportamento de seres imersos na

corporeidade (MERLEAU-PONTY,1957-1958/2006b). Nós humanos compomos, junto

a todos os demais seres, esse conjunto dinâmico, e nos vinculamos a eles, com nós

mesmos e com o mundo a partir da nossa realidade sensível.

A animalidade do homem também é instituída porque não existe o inato puro,

a maturação interna pura, o meio interno puro, muito menos a psicologia pura.

Portanto, seu desenvolvimento já é comportamento ao mesmo tempo em que seu

comportamento já se desenvolve a partir de esboços orgânicos. Nossa diferença em

relação aos outros animais diz respeito à noção de instituição, porque nós que a

criamos. Não apenas pelas codificações, legalizações, símbolos sociais, mas a

primeira diferença se dá pela matriz simbólica (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015).

A matriz simbólica a qual Merleau-Ponty (1954-1955) se refere, diz respeito a

uma estrutura que suscita reações em cadeia, o tempo todo, não por reativação

mecânica20 mas procura mover, conforme as necessidades, ela mesma. Não por

simples reprodução, mas como um cenário em rota, algo que capaz de auto

sensibilizar-se e encontrar-se em perpétua transformação.

De acordo com Nóbrega (2016, p.72),

ao estudar a animalidade, Merleau-Ponty busca fazer uma arqueologia do corpo vivo e do corpo humano para além das compreensões essencialistas, históricas e mentalistas, não só do ponto de vista humano, mas quer considerar a história da terra, da vida e dos organismos.

Os fenômenos da vida, de forma generalizada, se dão a partir de certos pivôs

e em dimensões temáticas, sendo o acontecimento de eventos de maior ou menor

20 Merleau-Ponty (1954-1955/2015) nos cursos sobre a Instituição e a Passividade, se dedica a especificar a instituição da puberdade. No trecho citado, exemplifica que a passagem da infância para a vida adulta não acontece apenas por ativação mecânica dos genitais.

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alcance. O ser vivo não é apenas forma, substância, ele é logos estético, totalidade

por toda parte e em parte alguma. Para Merleau-Ponty (1957-1958/2006b) o

organismo nem é uma soma de causalidades nem uma entidade transcendental, é

uma totalidade com sentido, pois, não é a positividade do ser que define sua vida, mas

sua indagação perante sua existência.

Essa indagação se expressa no animal como um vazio do que irá se seguir,

que só será preenchido no futuro, como forma de equilíbrio. Não o equilíbrio de uma

balança simples, que retorna ao zero, muito menos com um sentido estrito, mas em

condições internas ao próprio organismo e só compreensíveis através da ideia

profunda que sublinha a indivisão do ato natural. Sendo assim, não se coloca em

xeque as relações causais da físico-química no organismo, só se ultrapassa essa

causalidade pela integração e diferenciação qualitativa, tomando o rumo do exercício

de redimensionar a interpretação dessas relações (MERLEAU-PONTY,1959-

1960/2006b).

Isso supõe dizer que embora se ateste a animalidade do ser, nenhum ato é

natural, nenhum fenômeno humano é passível apenas de explicações físico-química.

Somos seres em filigrana, artefatos orgânicos complexos e inacabados.

Nóbrega (2015) concorda que a superação da noção de natureza como

substância afirma a inerência do corpo com o mundo, abrindo possibilidades de

investimento na experiência. Que pode ser traduzido como as experiências do corpo

estesiológico através das práticas corporais, da apreciação estética, das vivências do

corpo através das sensações. O corpo estesiológico, como sensível exemplar, está

sempre em relação carnal com o mundo.

Em face desse equilíbrio que respeita muito mais as dinâmicas naturais do que

as causalidades atribuídas aos seres pelos preceitos da biologia clássica, reiteramos

que as sensações se misturam e se confundem nesse sistema e pelos seres. Os

humanos, através de um olhar compartimentalizado da ciência, tendem a se colocar

acima desse equilíbrio, quando na verdade só atribuem outros sentidos e significados

às sensações. “É necessário para nós, por exemplo, que a natureza em nós tenha

alguma relação com a natureza fora de nós, é necessário até mesmo que a natureza

fora de nós nos seja desvelada pela Natureza que nós somos” (MERLEAU-

PONTY,1959-1960/2006b, p. 332).O autor destaca que o que se procura é uma

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verdadeira ontologia do Ser, uma explicação que não se subsidia nos recortes do

inexplicável (Deus) nem no isolamento humano do mundo.

Esse isolamento humano promove transposições equivocadas do nosso

comportamento para os mundos de outras espécies e nos faz esquecer a Natureza

da vida, que é partilhada. A noção de animalidade nos faz refletir sobre o que nos une:

a relação sensível entre os seres e dos seres com o mundo. Vivemos e buscamos

preservar a vida, tomamos as sensações como referenciais nessa busca, sendo que,

nós humanos temos a possibilidade de significá-las, de refletir sobre elas, de interrogá-

las, de tomar consciência, de potencializar e até de anestesiar as nossas sensações.

Porém, não nos destituímos de nossa animalidade, pois não há oposição entre natural

e humano, há inerência. A animalidade habita o corpo estesiológico, sobre o qual

ampliaremos a discussão a seguir.

A noção de corpo estesiológico não nega o fenomenológico, acompanha a ideia

de fluxo sensível expresso no movimento da filosofia de Merleau-Ponty, pois não se

centra no relacionamento cognitivista de corpo como sujeito ou objeto, estando na

fluidez entre um e outro. No presente trabalho, a premissa dessas considerações é de

que essas experiências (dor e sofrimento) ocorrem na trama sensível corporal, no

âmbito da experiência.

Merleau-Ponty (1959-1960/2006b), em seus estudos sobre a natureza,

classifica a estesiologia como o estudo dos órgãos do sentido, em que se concebem

as tomadas de decisão a partir do invisível. A estesia se figura como verdadeira união

entre corpo e alma. De acordo com este autor, a estesiologia contesta a abordagem

newtoniana de estímulo-resposta, a exemplo do estudo da percepção das cores,

questionando a premissa de que os estímulos da instituição Natureza são, em si,

desencadeadores de processos intracerebrais. Destarte, a estrutura completa emerge

como variável autônoma desde a informação elementar, que não necessariamente

passa por julgamentos. O olho seria, dessa maneira, uma espécie de computador

receptor de informações, sistema diacrítico que não opera através de funções de

causalidade. Assim sendo, o mundo não se coloca apenas como paisagem visual

anterior ao percebido, revendo a linearidade de um sistema que passa do esquema

insipiente |1 real – 2 estimulação – 3 percebido|, ampliando-se para: |1

informação/mensagem – 2 decodificação – 3 percepção|. A informação não é

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estímulo, mas origem das coisas em nós, o olho já decodifica junto à percepção. As

coisas e o percebido, dessa forma, são indistinguíveis, pois as coisas e o mundo são

tomados através da percepção, nem atrás nem acima, e por sua vez, o percebido é

núcleo comum entre minha experiência e dos outros. A coisa não se define sem

predicados perceptivos.

A Estesiologia pressupõe o estudo do corpo estesiológico, um corpo de

totalidade aberta que percebe, que não se traduz através do pré-estabelecimento de

funções, não é meio nem instrumento, deseja segundo sua lógica própria, inserindo

seu próprio mundo. “massa de prazeres e dores, que não estão fechados sobre si

mesmos, mas nos servem para sofrer e desfrutar do mundo e dos outros (prazer e

realidade)” (MERLEAU-PONTY,1959-1960/2006b, p. 340-341).

Nos cursos sobre a Natureza, proferidos por Merleau-Ponty nos anos de 1959

e 1960, e registrados no primeiro dos oito esboços escritos pelo autor, fica claro que

a estesia se situa no fluxo das sensações, sendo os sofrimentos mais que

contingências condenáveis, mas dispositivos da própria existência, para serem

vividos. Não há estesia sob pré-julgamentos pois sua relação é anterior à consciência.

De acordo com Nóbrega (2015) a noção de corpo estesiológico foi produzida

por Merleau-Ponty num contexto de suplantação do conceito de corpo sujeito,

resquício das filosofias da consciência. Era preciso se referendar no esquema

corporal, no sensível, na natureza para se desvencilhar de um eu sujeito e dar voz ao

desejo, a motricidade e a expressividade dos gestos. O corpo estesiológico, fonte de

sensações, celebra a ontologia do ser bruto, selvagem, indivisível em que não há a

preocupação em ultrapassar conceitos, dualismos, mas realizar a experiência do ser

através da arte, da linguagem, da história. É pelo próprio corpo que a humanidade do

homem emerge, e não através de uma consciência sobrevoante. O ser, atravessado

pela estesiologia, sensações e motricidade, vive sua natureza, e através da estesia é

capaz de sentir a dar sentido aos acontecimentos. “A noção de estesiologia como

conhecimento do corpo e de suas sensações desperta nossos potenciais de

transformação, de invenção, de criação da vida, afecções do corpo e partilhas sociais

por meio da linguagem, da comunicação e da expressão” (NÓBREGA, 2015, p. 101).

Tomar a noção de corpo estesiológico como horizonte sensível de

conhecimento, desejo e até aprofundamento dos sentidos é algo importante porque

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remete ao lançamento nas sensações: a catarse, a vertigem, o prazer. No entanto, a

dor, o sofrimento, a raiva, dentre quaisquer possibilidades de sensações, emoções,

sentimentos podem emergir desse investimento do corpo. Nosso trabalho propõe

pensar sobre a comunicação sensível, a estesia da dor e do sofrimento na educação,

justamente porque esta é um processo existencial e a existência é inacabada,

descontínua e aberta, a existência é corporal e portanto não poderia negar seus

processos. “A noção de estesiologia como conhecimento do corpo e de suas

sensações desperta nossos potenciais de transformação, de invenção, de criação da

vida, afecções do corpo e partilhas sociais por meio da linguagem, da comunicação e

da expressão” (NÓBREGA, 2015, p. 101).

Não obstante, as experiências de dor e sofrimento ocorrem de forma mais

complexas, porque além de não serem passíveis de análises causais, se manifestam

em um emaranhado de sensações e percepções que não se bastariam na explicação

de estímulo isolado, pois ocorrem na inerência do sujeito com o mundo. Dores e

sofrimentos não podem ser descritos nem interpretados destituídos da experiência,

pois o próprio corpo é capaz de reconhecê-los.

Diante dessa natureza polissêmica, entrelaçada na cultura, na sociedade, na

historicidade, fazendo interpenetrar na carne do mundo e do sujeito experiências

sensíveis, o corpo não seria um domínio de previsibilidade em relação as faces

agradáveis e desagradáveis das situações postas em nossa existência, muito menos

seria uma tarefa simplória delimitá-las. Portanto, o corpo que sofre precisa ser

considerado enquanto fenômeno e amalgamado nas próprias experiências de dor e

sofrimento. Essa é a aventura da fenomenologia. O sentir antecede qualquer

julgamento, por isso a dor e o sofrimento só se qualificam no escoamento das

sensações, na radicalização do desejo pelo ser, no movimento e na animalidade do

ser bruto do corpo estesiológico, porque antes de ser um estímulo contido na relação

do mundo com o sujeito, as sensações podem nos capturar em estesia.

A partir da noção de corpo estesiológico como campo e da GR enquanto

contexto a filigrana agora tem terreno fértil para ser construída, pois já se armam seus

contornos, os materiais encontram-se disponibilizados. Portanto, no próximo capítulo

construímos seus fios e desenhamos suas sinuosidades.

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CAPÍTULO 2 – FIOS - NARRATIVAS

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Após a alquímica operação de derreter o metal a ser utilizado, este é vertido

numa "rilheira", dando-lhe a forma de barra, o que permite a sua utilização nos

cilindros do "laminador" e a sua transformação em chapa ou fio grosso. Os fios

maiores vão desenhando as formas. Uma forma vasada, sinuosa nos aparece, mas a

filigrana ainda não está pronta.

O processo de filigranação do metal prossegue numa "fieira", espessa placa de

aço crivada de orifícios sucessivamente decrescentes, repuxando-se os fios até se

obter a espessura desejada. Procede-se depois à junção de dois fios com a mesma

espessura e efetua-se a sua torção. Estes fios enrolados são passados novamente

pelo cilindro, de modo a se proceder seu achatamento.

A filigrana organiza seus fios exibindo formas e sinuosidades. Nessa parte,

fazemos a descrição das experiências sob uma narração autobiográfica, sob os

relatos das ex-ginastas da SBC de GR entrevistadas, entremeadas por narrativas

constantes na obra Escola de Campeãs (NESKA e RANKÉLOVA, 1991). Para

organizar os olhares para essas experiências, estruturamos dois subcapítulos: um

primeiro que se centra na experiência da ginasta: o vivido, e o segundo que

corresponde ao olhar de quem aprecia e compartilha as vivências através do ensino:

a partilha. Esses fios e sinuosidades, de espessuras, maleabilidades e curvas

diferentes, percorrem a dimensão do vivido e da partilha. Nessa oportunidade é onde

se inicia efetivamente o processo de construção da filigrana.

As significações tecidas neste capítulo se dedicam às experiências vividas na

GR. Como na filigrana, começam a ser esculpidas pelo escopo difuso desenhado

pelos fios das experiências do corpo. Os fios da nossa existência se constituem em

variadas espessuras e ligações: firmes, frágeis, plásticas, nas experiências nas

sensações. Descrever essas trajetórias nos permite apreciar as suas sinuosidades,

deter-nos no que nos convoca. Os fios vão se desenhando quando descrevemos as

experiências e assim vão constituindo as primeiras formas da filigrana.

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O VIVIDO

A prática da GR é realizada por meninas ainda na infância, aliás, com raras

exceções na ginástica competitiva, seja escolar ou de alto rendimento, se inicia na

adolescência. No meu caso, aos onze (11) anos de idade essa modalidade começou

a fazer parte das experiências de movimento mais significativas da minha vida.

A infância na GR é abordada na primeira parte do livro clássico “Escola de

campeãs” e intitula-se “Que cultives a flor”. Nele, as autoras búlgaras Neska Róbeva

e Margarita Rankélova, sendo a primeira consagrada internacionalmente como uma

das maiores treinadoras de GR de todos os tempos, condicionam o exercício da

profissão de professora de pequenas ginastas ao amor que ela é capaz de sentir pelas

crianças.

Crianças e flores tem a vantagem de serem amadas por todos. Mas há um motivo para você amar: o modo como se entra no mundo infantil. Que sua habilidade saiba oferecer alegria a elas. Antes de tudo, a criança precisa brincar, que tudo se faça na forma de prazer. Anime-as, encoraje-as, quando conseguem alguma coisa. Note seus esforços e desejos. Limite sua ambição. Tenha a capacidade de as acompanhar e de se interessar por elas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.46).

De acordo com Machado (2010), a criança habita uma zona híbrida, de

ambiguidade do onirismo. O adulto apresenta a ela a cultura, embora ela esteja imersa

nela. A criança possui polimorfismo espaço-temporal, formado pela tríplice entre a

percepção do corpo visto pelo exterior, a consciência introspectiva do corpo próprio e

a percepção do outro. É preciso que o educador reconheça e considere em sua

corporalidade, de modo a não podemos concebê-la como consumidora passiva. A

criança habita um mundo habitando uma zona híbrida, por isso que o que a aproxima

do adulto é a capacidade artística deste frente a brincadeira daquela, formas

semelhantes de perceber o mundo.

Na maneira como a GR se mostra na infância é simples compreender como se

fisgam as crianças: através do encantamento. Lembro bem das primeiras vezes, pelas

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brechas do portão de um ginásio, na hora do recreio, que assisti meninas se

alongando, pulando corda, lançando bambolês21, rolando bolas... Minha curiosidade

era aguçada pela prática daquelas “meninas mais velhas”, realizando uma prática da

qual eu não sabia o nome mas admirava porque parecia contemplar simultaneamente

três (3) dos meus desejos: o brincar, o desafio de conseguir realizar aqueles

movimentos e a possibilidade de me expressar em apresentações. Esse terceiro não

era claro, contudo me encantava a beleza dos gestos e a manipulação de objetos

acompanhado por músicas. O fascínio pelos movimentos atraiu minha atenção para

a modalidade, subentendendo um arrebatamento pela beleza e uma imediata vontade

de aprendê-los.

A beleza que me arrebatou e que me criou o desejo de praticar aquele esporte

traduz-se tanto nessa estratégia da prática voltada para o prazer e a alegria das

crianças apontada por Róbeva e Rankélova (1991) quanto nas falas das ex-ginastas

entrevistadas: todas nós fomos afetuosamente seduzidas pela beleza da GR que era

praticada nas nossas escolas. Fomos afetadas por uma gestualidade pautada no

brincar em um contexto educacional, na possibilidade de poder cativar o olhar das

pessoas e de divertir-se com os movimentos do corpo e aparelhos.

Essa afetividade, que se dá nas relações, se cultivou de duas formas:

começando pela apreciação de apresentações, que nos comovia, envolvia e

maravilhava, assim como nos vínculos e no prazer das primeiras aulas, quando

experimentava os movimentos e nos relacionava com as outras meninas. A criança

adere às situações e seu modo de perceber não se separa do afeto, ela busca

encontrar coisas estimulantes para a afetividade como objetos de conhecimento. Não

podemos negar o modo de ser onírico da criança e seu pensamento polimorfo

(MACHADO, 2010).

Já seduzida pelo olhar e tentando aprender de forma autodidata os movimentos

da ginástica sempre que possível (em casa, na rua, onde pudesse), ainda não tinha

idade para compor a equipe da escola. O tempo passou e três (3) anos depois a

professora de GR anunciou as inscrições em sala de aula, convidando todas as

meninas para participar da equipe. Comemorei feliz a possibilidade de brincar,

21 O aparelho portátil Arco tem a mesma forma do brinquedo infantil, diferenciando-se apenas por medidas técnicas especificas.

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praticar, dançar e me desafiar também! A felicidade que sentia em pertencer àquele

grupo não cabia em mim. E foi com essas marcas que iniciei minha vida na GR. Não

tenho dúvidas que o que me moveu para a prática foi a possibilidade de adentrar e

compor meu mundo de gestualidades poéticas, artísticas, que só existiria pelas

minhas experiências, pela vivência dos movimentos.

Uma das ex-ginastas entrevistadas (G3) rememorou sua infância e disse que

a GR a completava, porque desde criança dançava nas festas de família, sempre

brincava de apresentações, sendo isso o que a motivou, pois, segundo ela, a

experiência da GR compunha parte de alguém que não podia escutar uma música

que saía dançando. (G3) se mobilizara pelo ímpeto que já possuía de se expressar

pelos movimentos do seu corpo, de encontrar na prática ginástica um âmbito que

abraçasse a alegria que aqueles gestos a proporcionavam. Dessa forma, G3, mesmo

com trajetória de ginasta profissional e olímpica não se eximiu de rememorar a GR na

infância como uma modalidade lúdica.

Essas experiências só se dão pela vivência corporal do ser no mundo,

experiências de um corpo sensível, estesiológico, que afeta e se deixa afetar. Os

primeiros vínculos estabelecidos com a GR e todo seu universo lúdico, etéreo, belo,

afetivo, demarcaram a minha vida e das entrevistadas, fundaram uma forte ligação

sensível que posteriormente não se quebraria facilmente com os conflitos que

fatidicamente surgiriam. A GR, a primeira vista, só nos cativou.

As práticas iniciais eram desafiadoras e motivadoras. A figura da professora

estabelecia um elo de tensão que trafegava entre a diversão, a intensidade, a

sinceridade, sendo o instrumento regulador dos rumos emocionais do meu dia e das

minhas colegas. A aula exigia ações de esticar, flexionar, abrir, dobrar, esforçar-se,

ritmar-se, ter postura e energia, o quanto fosse possível e corretamente, um pouco

mais a cada dia. Conhecíamos nossas facilidades e limitações desde os primeiros

momentos, contudo esse reconhecimento ia se ampliando, se aprofundando a ponto

de gerar mais motivações, associadas, de forma discreta ainda, as primeiras

dificuldades. A prática tinha um aporte de movimentos a aprender que não se

bastavam em si, sempre havia algo mais difícil, algo que parecia inatingível em um

primeiro momento, mas que se facilitava depois. Mas havia os gestos inatingíveis

mesmo, propostos em meio a condições corporais que não tínhamos.

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Róbeva e Rankélova (1991) descrevem que para não desmotivar as crianças,

é preciso dosar as correções e as proibições, há os momentos certos para capturar a

atenção das ginastas, bem como para acostumá-las à intensa rotina. “‘Atenção’ e ‘não

convém’ aparecem gradualmente, com razoável frequência. Sobrecarregada com

todas as proibições ao mesmo tempo, a criança, facilmente, pode desanimar”

(RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.72).

Isso também acontecia com minha equipe, as correções eram acompanhadas

de elogios. Ainda não havia a referência dos campeonatos muito menos das grandes

ginastas, sendo nossa prática uma grande brincadeira. Mas os desafios estavam

presentes, fazendo com que a graduação das correções aumentasse conforme nossa

motivação na prática, o que nos dava consciência sobre que estávamos fazendo.

Progressivamente florescia uma plataforma de conhecimento sensível, gestos

desafiadores que nos fazia empenhar em busca da forma mais bela do movimento.

A GR nos solicitava de tal modo que previa a realização de um movimento

correto ao mesmo tempo nos permitia criar novos movimentos, tal qual Róbeva e

Rankélova apontam a seguir. “A descoberta do novo. Algumas ginastas já distinguem

desde o começo. Repetem corretamente as instruções, assimilam cada pormenor,

improvisam. Encorajamos, continuamente, seu espírito criativo” (RÓBEVA e

RANKÉLOVA, 1991, p.87).

O aumento das exigências corporais na ginástica compõe uma gama de

desafios proporcionais ao aumento da motivação das ginastas que, já fisgadas,

seguem adiante. Desse modo, um novo mundo de percepções surge a partir das

novas experiências na infância. Elementos novos são introduzidos na prática:

movimentos e manipulações com os aparelhos portáteis da modalidade, adaptações

de materiais não oficiais que coincidiam com alguns materiais utilizados nas

brincadeiras de rua (corda, bola, bambolê). Porém, eu e minhas amigas os

redescobríamos nas aulas, investigávamos, aprendíamos e criávamos novos

movimentos com aqueles objetos procurando encaixá-los nas músicas. O movimento

que inicialmente parecia difícil de realizar ia se incorporando ao repertório de

“realizáveis”, alguns com muita insistência. Para acertar um “salto duplo22” com a

22 Passagem através da corda em que esta gira duas vezes seguidas em um só salto.

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corda algumas meninas treinavam horas, dias, semanas, não importava, quando um

movimento não era aprendido em uma aula era necessário repetir, insistir, treinar junto

com a colega, repassar os acertos para juntas atingirem o objetivo comum. Na

ginástica um objetivo parecia sempre um caminho para outro maior, pois se todas

poderiam conseguir realizar um “salto duplo” com a corda, outras tantas conseguiriam

com a corda girando para trás e poucas durante um salto com as pernas

completamente afastadas e estendidas. Gradualmente as técnicas da modalidade vão

sendo compreendidas e vão se ampliando as possibilidades do nosso corpo em

movimento.

De fato, as técnicas de movimento se dilatavam na manipulação dos aparelhos

em duplo aspecto: no onirismo que recrutava-nos em fascinação e na aprendizagem

através das repetições associadas às possibilidades de fertilizar nossa criatividade.

Essa formulação de um repertório técnico se dava como uma conquista muito

importante para nós, era a nossa jazida de descobertas, dizia sobre o diferencial que

cada uma de nós ia alcançando. Sobre isso, Merleau-Ponty (1961/2004, p.22)

contribui: “toda técnica é ‘técnica do corpo’. Ela figura e amplifica a estrutura metafísica

de nossa carne”. Movimento é conhecimento, aprender novas técnicas expande nossa

noção de corpo, dilata a carne, significa nossa presença no mundo. Praticar GR nos

leva a essa amplificação porque as possibilidades do se movimentar são inumeráveis,

considerando os movimentos específicos23 da modalidade, e infinitas, se nos

remetermos as possibilidades de criação de outros movimentos e na manipulação

com os aparelhos juntamente com a música. A apreensão de técnicas não diz respeito

a uma tecnicidade metaforizada como o funcionamento de uma máquina, diz respeito

ao aprofundamento na linguagem gestual.

É importante reconhecer que quando Merleau-Ponty se refere à técnica de

corpo, o compreende como um sistema de montagens simbólicas dos gestos,

tomando esse conceito como “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a

sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (MAUSS,

1935/2003, p. 401). O que não se restringe à maneira de manipular aparelhos portáteis

23 Os movimentos específicos são aqueles que somam pontos para a série (coreografia), considerados os grupos corporais: saltos, equilíbrios e rotações, e aqueles que servem de ligação: giros, saltitos, movimentos acrobáticos e pré-acrobáticos, deslocamentos. Cada aparelho também possui seus movimentos específicos, embora não se resuma a eles.

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ou realizar certa forma de salto, mas que as inclui. Observa-se na leitura sociológica

e antropológica de Mauss (1935/2003) acerca dos gestos que as sensações não são

esquadrinhadas a partir de uma leitura maniqueísta, ao contrário, o autor revela a

cultura e a historicidade de algumas sociedades a partir do conteúdo simbólico

expresso pelo movimento do corpo.

Dessa maneira, não há técnica mecanicista, isto ocorre apenas na forma como

podemos compreendê-la ou apreciá-la, assim como sua aprendizagem também não

o é. Por mais modelizada, pouco ou muito alcançável, a técnica nos servia de

instrumentalização para compreender uma linguagem gestual ampla: a GR. Por mais

que o corpo busque reproduzir uma máquina, isso não acontecerá porque a nossa

relação com o mundo é primordialmente sensível.

Na GR, à medida que a complexidade dos desafios aumenta, o lastro gestual

da modalidade se desvela, pois em algum momento todas as movimentações

aprendidas precisam compor um produto e serem demonstradas em uma

apresentação. Para mim, a primeira apresentação coincidiu com a primeira angústia,

porque foi também o primeiro teste. A professora elaborou uma sequência de passos

e observou-nos individualmente. Quem tivesse aprendido a sequência participaria de

toda a apresentação, quem não aprendesse, participaria apenas da parte final,

considerada mais acessível. Foi quando comecei a entender que outros sentimentos

me acompanhariam na trajetória dessa modalidade: angústia, medo, a sensação de

estar sendo constantemente avaliada, a possibilidade de me sentir excluída. Os

sofrimentos de uma ginasta iniciante se originam junto com as expectativas porque

por mais que as aulas sejam prazerosas o julgamento é inevitável, porque a

modalidade além de resultar na exposição das apresentações, é competitiva. Cada

corpo é único, a aprendizagem das técnicas de movimento e da expressão artística

inerente a elas leva um tempo para cada menina, mas esperar esse tempo nem

sempre é possível, o que leva as possibilidades de ser selecionada ou não.

Essas primeiras barreiras me atentam para a lembrança de que, nenhuma

delas sobrepunha a vontade de seguir em frente, elas ainda não eram exacerbadas o

suficiente a ponto de minimizar o encantamento pela ginástica. Percebo aí, que eu e

minhas colegas, encontrava-nos em um sutil treinamento: suportar as dificuldades da

nossa prática.

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A relação com a professora estabelecia o elo de segurança que precisávamos

para estreitar nosso engajamento com a prática, volteada por afetos e confiança.

Entretanto, a mesma pessoa que nos dava suporte era a que nos avaliava,

construindo um relacionamento visceral e dotado de tensões. Partilhávamos esse

relacionamento através dos gestos do corpo, dos olhares, das onomatopeias

inacabáveis nas repetições, dos gritos ecoados no ginásio, partilhávamos, na verdade,

uma missão: alcançar o movimento limpo, o gesto com a intenção desejada, a

habilidade segura. A profundidade da relação com a professora é algo difícil de ser

relatado, pois se materializa na partilha do sensível.

Sobre isso, Merleau-Ponty (1964/2009) contribui com nosso pensamento

quando nos apresenta o conceito de intercorporeidade, que se dá através do

compartilhamento de sinergias entre outros corpos humanos, afirmando que há

aderência entre o sentido e aqueles que sentem, entrelaçamento das carnes, que são

exemplificadas pelo autor através de um aperto de mãos ou quando contemplo uma

paisagem e detalho para outro que não consegue ver.

Nóbrega (2016, p.84) afirma que através da intercorporeidade que se

compreende o simbolismo na expressividade do corpo, e não por representação. “por

uma inserção num sistema de equivalências não convencional, na coesão do corpo,

como olhar que se detém e que germina na paisagem”.

No contexto vivencial da GR, a intercorporeidade se dá porque há corpos se

expressando, se relacionando, se entrelaçando através de partilhas sensíveis.

Olhares e gestualidades que se entrecruzam e estabelecem trocas na experiência da

linguagem corporal expressiva.

Relembro que as palavras ditas ao ouvido pela professora nos segundos

anteriores à exposição na apresentação solitária24 para um ginásio lotado de público

e mais de dez (10) árbitras atentas eram substanciais para a atuação durante a

apresentação e para o resultado do desempenho. A intensa troca de olhares que

precedia a apresentação, durante a caminhada de entrada no tablado, principalmente

na saída, que representava bem essa aderência, esse entrelaçamento de carnes

quando, sem pronunciar quaisquer palavras podia comunicar o sentimento gerado

24 Nas apresentações individuais, a ginasta se coloca sozinha ao olhar de todos que estão no ginásio: público, árbitras, demais ginastas e técnicas.

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pelo resultado da atuação, um olhar capaz de acolher ou rejeitar, aprovar ou

desaprovar, surpreender ou decepcionar, abraçar ou empurrar.

As tensões haviam de aumentar na vivência ginástica, mas até o momento das

primeiras experiências de apresentação, essas pressões não pareciam árduas o

suficiente, nem contribuíam para diminuir a motivação de praticar GR. Contudo, fui

tomando conhecimento das características da prática no estado, no Brasil e no mundo.

Isso começou a acontecer ao me deparar com a apreciação de vídeo de

apresentações, quando a professora nos reuniu na sala de vídeo da escola para

assistirmos campeonatos brasileiros, mundiais e jogos olímpicos. Nessa mesma

situação, as equipes de várias idades da escola, as quais normalmente faziam aulas

separadas, puderam dividir o mesmo espaço e as percepções do que assistíamos.

Essa congregação de alunas despertou sutilmente uma atmosfera de competitividade

entre nós, pois em breve a professora selecionaria algumas de nós para participar das

competições regionais. Celebrávamos a abertura de um novo mundo, com novas

formas de conceber os nossos movimentos corporais, que naquele momento

passariam por um julgamento que ia muito além da nossa possibilidade de realizá-lo,

teriam de se adequar a padrões delimitados por um código de regras que estávamos

começando a ter acesso, passando pelo crivo de árbitros. Era uma nova forma de

beleza a ser acessada, objetivista e bem mais difícil que o brincar com aparelhos ao

som de músicas. Era um desafio maior a ser assumido, e que queríamos assumir.

Um novo mundo de movimentações corporais se abria ao adentrarmos nas

competições esportivas. Os gestos esportivos nos tragava, traziam novos sentidos e,

apesar de mais complexos, solidificavam os vínculos com a GR.

De todo modo, ainda não compreendia a dor e o sofrimento como parte

daquelas experiências, pois ao contrabalancear o que nos fazia temer e o que nos

alegrava, o primeiro ainda se daria de forma pontual. Ainda estávamos no início das

experiências, isso fazia com que a adequação rígida com os modelos de

expressividade e técnica maduras ainda estivessem distantes de nós.

A primeira vez que entrei para competir em uma quadra senti o amargo gosto

da derrota. Não apenas a derrota de obter uma pontuação ruim dentre as minhas

adversárias, mas de não conseguir me apresentar da mesma forma com que treinava.

O prazer que sentia nos treinos se esvaía completamente nas competições. Isso não

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dizia respeito a não gostar de participar daquele momento, de fato eu esperava

ansiosamente, mas quando chegava a hora me sentia tão estranha àquele contexto a

ponto de ficar imobilizada diante do público, das árbitras, das outras ginastas, das

outras professoras.

Esse sentimento de fracasso era infindável e se repetiu pelos anos

subsequentes. Não obstante, sobre esses anos em que ocupávamos as últimas

colocações e nem beirávamos os pódios das competições, era admirável a nossa

incapacidade de desistir de treinar, de não buscar melhorar, de não sonhar com o ano

seguinte. Os erros nas competições nos fazia chorar, dormíamos sentindo as

bordoadas de sermos consideradas as piores, mas amanhecíamos com vontade de

tentar mudar tudo no ano seguinte. Conforme o passar dos anos, a GR já havia nos

ensinado que aquela “paulada” não demoraria para passar.

Definitivamente não eram as classificações que alimentavam nossos sonhos,

pois a cada competição conseguíamos enxergar os nossos erros, era a possibilidade

de experimentarmos juntas a construção do processo que culminaria na competição.

A caminhada traçada a partir da concepção coreográfica em que demonstraríamos

para os apreciadores o quanto os nossos movimentos melhoraram, a escolha da

música, o desenho dos figurinos, a originalidade apresentada pelas nossas

habilidades com aparelhos. A constituição do nosso mundo na GR era de relações

estesiológicas, que se dava, sobretudo, através do enfrentamento e superação dos

nossos sofrimentos e dores. Porque assim como as situações adversas nos

remontam, as vitórias nunca significam o acabamento, na ginástica elas preconizam

continuidade porque embora eu possa ter bons resultados numa competição, isso me

obriga a me manter no pódio, a mergulhar num outro recomeçar.

Interessante que o ciclo se repetia e por mais que percebêssemos nossas

fragilidades e sofrêssemos amargamente durante o período competitivo, na outra

semana do campeonato já estávamos na quadra treinando para o ano seguinte, isso

porque o processo sempre foi mais importante que o produto.

Os referidos anos de derrotas esportivas coincidiram com uma autonomia

quase que solitária da elaboração das coreografias (séries) de nossa equipe de

ginástica. Eu e minhas amigas éramos autônomas porque montávamos nossas séries

sob supervisão da professora. Contudo, as referências tomadas no alto nível da GR

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não eram tão acessíveis quanto na atualidade, sendo assim, nossas ideias de

movimento surgiam junto às experiências nas aulas, com os vídeos assistidos

semestralmente, com as ginastas mais velhas e com o contato anual com as alunas

das outras escolas. Para uma modalidade em que o aprimoramento técnico e artístico

dá o tom principal, essas referências tornavam-se insuficientes perante os

investimentos e estudos que concomitantemente estavam sendo realizados pelas

equipes adversárias. Em resumo: estávamos desatualizadas ante as regras, técnicas

e tendências da GR da época.

Merleau-Ponty (1945b/2004) nos traz reflexões importantes acerca do gesto

expressivo na pintura e que podem contribuir para nosso entendimento da construção

dos nossos gestos na GR. O pintor moderno, por mais que queira garantir sua

originalidade expressiva, precisa seguir um movimento de sucessão na história da

arte. “A dominação do uno sobre o múltiplo na história da pintura, como que

encontramos no exercício do corpo ao perceber, não absorve a sucessão numa

eternidade: exige ao contrário a sucessão, precisa dela ao mesmo tempo que a funda

em significação” (MERLEAU-PONTY, 1945b/2004, p. 102). Nesses termos,

entendemos que a apropriação de uma técnica já consolidada é essencial (em se

tratando de algo extremamente codificado, mais ainda) para avançar na produção de

outras técnicas, enquanto não pudéssemos nos apropriar do que já era produzido de

gesto técnico, era mais difícil avançar e acompanhar.

As frustrações geradas pela falta de instrumentalização técnica e artística que

poderiam ser capazes de fazer-nos suplantar as dificuldades e passar a concorrer

com equidade de condições ainda não era maior que a minha sensação de que

carregava um corpo inimigo. Inimigo pelo estigma da conjunção adversativa ”mas”. Os

comentários referentes a minha performance sempre foram: “ela é boa mas precisa

cuidar do peso”, “ela é bonita mas é gorda”, “ela é graciosa mas nunca chegará a lugar

algum com esse corpo”. O olhar de quem aprecia, vivencia, julga ou até mesmo ensina

GR raramente se preocupa com o contexto de sua prática, pior, é necessariamente

imbuído das imagens da ginástica da mais alta performance, em que não se admitem

corpos sobrepesados. Para uma adolescente que vivia a modalidade como a

dimensão mais importante da sua vida não teria como ser mais doloroso. Desse modo,

a reverberação dessas impressões resultava numa tragédia diuturna de não

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aceitação, que por sua vez gerou sentimentos negativos capazes de me fazerem

pensar se eu merecia ou não praticar a GR.

A culpa por não ser um corpo adequado à ginastica concebida para meninas

extremamente magras ia além de um conflito interno, atrapalhava as apresentações

e as competições. Era como se existissem duas pessoas: uma que treinava e outra

que competia. Os olhares das colegas e professora durante os treinos eram

destituídos de qualquer preconceito, era um ambiente de acolhimento. Já os olhares

dos expectadores, árbitros, outras ginastas e professoras pareciam me fuzilar em

todos os momentos das competições, dessa maneira, não havia como não existir

resultado mais catastrófico do que os erros grotescos provocados por uma vergonha

que parecia não caber em mim. Não era apenas um nervosismo provocado pela

possibilidade do erro, era como se todo um ginásio lotado de pessoas deixasse claro

que ali não era o meu lugar. Definitivamente aquilo me doía, me gerava um grande

sofrimento.

Percebia a expectativa da professora em me encorajar a tentar me apresentar

sem a preocupação dos olhares, mas infelizmente essa preocupação nunca foi

suficiente. Róbeva e Rankélova, em seu livro, relatam que quando uma de suas

ginastas teve problemas com o peso, que a dificultava para saltar, enfrentou junto com

ela. “Tomei a mão de Iliana e saltamos juntas. Tinha problemas com o peso... Levei-

a para casa e passamos fome juntas, até chegar ao peso com o qual se apresentaria

mais levemente, e saltaria corretamente, com mais charme” (RÓBEVA e

RANKÉLOVA, 1991, p.194).

Róbeva e Rankélova (1991) naturalizam o “passar fome juntas” como fator que

reforça a magreza, enaltecida como essencial para a beleza na GR, custe o que

custar. O peso de Iliana fazia com que sua performance fosse comprometida, custava

muito para uma ginasta de uma seleção campeã mundial inúmeras vezes, carregar

um volume corporal acima do aceitável para voar alto nos saltos.

Os sofrimentos ocasionados pelo controle do peso se mostram como um

entrave difícil na vida de muitas ginastas. Percebemos isso nas falas das ex-ginastas

entrevistadas e destacamos essa modelização do corpo e do gesto como um campo

de sentido do sofrimento importante de ser refletido.

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A ex-ginasta G2 comentou:

Mas o mais doloroso mesmo que eu sofri bastante era com a questão das pesagens, que eram quatro pesagens durante o dia, uma de manhã, outra meio dia, outra quando retornava e outra na saída. O que acontecia, o nosso organismo não vai engordar porque a gente comeu naquele dia, ele vai guardar aquilo, acumular até fazer gordura. Só que aí, o que é que pesava quando a gente ía se pesar? A água. Então isso aí me maltratava de eu chorar mesmo, de eu bater na parede, quero beber água e eu não posso beber água, eu não podia beber água, porque se eu pegasse um copo de 200ml era 200g e aí quem engordasse 100g tinha que correr meia hora, então assim, não é que eu não queria correr, mas é porque era injusto, isso era muito injusto, porque a água vai sair na corrida, claro, a gente vai perder na corrida, mas, isso foi o maior sofrimento meu, foi esse mesmo, a questão das pesagens que a gente pirava né, por conta disso. (G2)

E continua:

triste foi quando nós estávamos precisando de mais gente na seleção e foi feita uma seletiva tal, e acabou entrando uma menina e essa menina ela de madrugada ela... nós começamos a suspeitar de algumas atitudes dela, primeiro que ela nunca conseguia emagrecer, segundo que a comida sumia lá de casa, e terceiro que de madrugada era um barulho infernal pra gente dormir, dentro do banheiro e tal, e a gente descobriu que ela tinha bulimia, então assim, triste foi eu numa idade ainda menor descobrir essa doença tão triste, e essa menina tinha e infelizmente ela teve que sair né, que ela precisou se tratar, então o ponto mais forte que eu tive foi por essas doenças assim causadas pela pesagem né, pela responsabilidade que é colocada numa faixa etária que a pessoa fica meio... se não tiver um psicológico forte. (G2)

Observamos que no primeiro momento da fala da G2 a preocupação se

centrava nos mecanismos de vigilância simplórios e ineficientes criados para que as

ginastas não engordassem, na segunda fala há de se pensar que essa proibição

exacerbada de ingestão de alimentos, do ponto de vista do domínio da ingestão de

calorias, podia levar a aquisição de distúrbios alimentares. A segunda fala da G2 é

reforçada pela declaração da G3:

Eu tomava 6 comprimidos de lacto-purga, entendeu? Pra poder ir ao banheiro... tinha umas loucuras sabe? (G3)

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(...)

Na sexta-feira a gente passava fome, na quinta-feira passava fome pra na sexta-feira pesar, saía da pesagem já ía direto pro banheiro comer alguma coisa se não a gente não aguentava treinar, porque a sexta-feira era o dia mais forte de treinamento, era sei lá, umas vinte vezes que a gente repetia de cada série, fora as repetições de colaborações, dificuldades, essas coisas, lançamentos. Chegava no sábado que a gente treinava até meio dia quando a gente ía almoçar já era aquela montanha, já era chocolate, já era num sei que, já era sorvete, já ía se empanturrando, parecia que tudo ía acabar, parecia que a comida ía acabar, que a gente tinha que comer porque a gente não tinha mais forças por causa de tanta fome que a gente passava durante a semana pra perder o peso, era um horror (risos). (G3)

(...)

Eu já fiz isso e hoje eu sinto dores de estômago muito grande por conta disso, então assim, são coisas que eu não faria de novo sabe? (G3)

Enquanto a G2 se maltratava por não poder beber água, a G3 confessou nunca

tido problemas com peso como ginasta até o momento que compôs a seleção de

conjunto em que o controle virou uma preocupação. De todo modo, as duas ginastas

tiveram ou presenciaram intervenções que ameaçaram suas integridades e até hoje

carregam algumas consequências disso.

Observamos que todas as ex-ginastas entrevistadas, assim como Róbeva e

Rankélova relataram que o peso sempre foi um fator preocupante na Ginástica

Rítmica, uma exigência inegociável. Isso, muitas vezes reverbera em problemas

psicossomáticos seríssimos (bulimia, anorexia) e no desencadeamento de uma

verdadeira guerra contra si mesma.

Uma das ex-ginastas, a G1, confessou que a seleção só “entrou nos eixos”

quando quem engordava 100 gramas pagava 100 reais para uma “caixinha”. A ginasta

G4, também entrevistada, informou que a seleção ficou bonita para as Olimpíadas de

Sydney porque uma nutricionista acompanhava todas as refeições. A G1 comenta que

teve um pouco de dificuldade na infância, mas depois aprendeu a lidar com isso com

tranquilidade.

Assim, eu tive problema de peso quando era mais nova mas na seleção não tinha mais porque eu já conseguia comer as coisas certas, mesmo

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se eu quisesse comer um chocolate alguma coisa eu não me entupia né? Era uma bolacha, pronto acabou, já tava bom. (G1)

Entendemos que nesse contexto o sofrimento se fazia como uma constante

para as ginastas. Primeiro porque a alimentação é uma condição humana, todos

precisam se alimentar, segundo porque algumas, ainda na adolescência, já estavam

distantes de suas casas e hábitos, e terceiro porque algumas dessas exigências eram

equívocos (privação de água) ou até de outras privações sem ligação direta (dinheiro

pago para uma “caixinha” caso ganhassem peso).

Destarte, entendemos que o que se constitui como um problema, nessa

perspectiva de controle de peso, é a transposição desse modelo de corpo e dessas

práticas para os mais diversificados contextos. Para ginastas que disputam

campeonatos mundiais não há opção senão se adequar aos modelos de corpo e

movimento requisitados pela plasticidade ginástica que se baliza por corpos esguios,

longilíneos, estreitos, com membros alongados. Mas nas escolas, projetos sociais, ou

em qualquer outro local em que a GR possa se constituir como prática de cunho

educacional, estabelecer essas imposições pode gerar sofrimentos desnecessários,

já que a modalidade em si já traz desafios e exige muitos enfrentamentos por parte

da ginasta.

Embora ressaltemos a possibilidade da experiência do sofrimento e da dor na

GR, não apregoamos que devam ser propostas enquanto intervenção, ao contrário, a

modalidade já apresenta nuances difíceis, desafiantes, não é preciso piorar isso e sim

pensarmos em formas de lidar, suplantar, enfrentar, o que já é dado.

Para fechar essa categoria do sofrimento causado pelo controle do peso, relato

que fui lidando com isso durante os seis (6) anos de prática até o último ano escolar.

No entanto, após os anos de “trevas” algo aconteceu que modificou significativamente

a maneira como a nossa equipe enxergava a GR até então: a chegada de uma nova

professora. Ela veio com a proposta de nos ajudar a reencontrar o caminho estético

da prática e teve extrema importância para nosso conhecimento acerca das técnicas

corporais e com aparelhos, sobretudo pela atenção despendida ao refinamento dos

gestos, a chamada “limpeza”. Estávamos no final do ano e a partir do ano seguinte a

GR na escola traçou uma nova trajetória.

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Junto com a renovação começaram a aparecer os títulos, após alguns anos

subíamos aos pódios. Esse período demarcou a história da equipe porque aos poucos

estávamos decodificando partes da GR até então desconhecidas: preparação

corporal, com aparelhos, regras do CP, vivência de outras linguagens da dança.

É o corpo das sensações e dos afetos que estava sendo reativado, renovado,

profundamente tecido nos seus desejos e na sua inerência ao mundo e aos outros

corpos. Novas relações e sensações iam sendo criadas, novas aventuras. Não foi fácil

se abster dos vícios de uma gestualidade que pendia para espontaneidade, mas foi

possível porque desejávamos profundamente uma transformação.

Um mundo de novas possibilidades se abriu com a redescoberta da GR, porque

essas mudanças implicavam na transformação das nossas referências: de uma

prática fundada na ludicidade para outra que priorizava a expressão artística e o

conhecimento mais meticuloso da linguagem ginástica. Não sei dizer ao certo o que

custou mais caro, se foram as derrotas insistentes nas competições anteriores ou essa

transformação da modalidade que já conhecíamos para outra que exigia mais esforço

da nossa parte. De fato, essa segunda situação ia ao encontro do nosso

amadurecimento com a modalidade fazendo com que o sofrimento da

reaprendizagem fosse encarado como um reencantamento, como um

aprofundamento interessante daquilo que achávamos conhecer. Porém, sentíamos na

carne os impactos de uma preparação corporal mais intensa: dores nos

alongamentos, cansaço nos treinamentos, sofremos um alinhamento corporal inerente

à técnica da GR, mas pelo qual nunca havíamos passado. Essa nova GR causava

sofrimento.

Não obstante, entendemos que dor e sofrimento podem ou não compor o

mesmo fenômeno, são descontínuos, pois toda dor implica em um sofrimento e um

sofrimento pode potencializar ou atenuar uma dor, mas este não necessariamente

parte de um evento doloroso. Pensamos que essa caracterização de onde começa

uma e termina o outro, ou vice-versa só pode se traduzir enquanto classificação

didática, pois para quem está de fora não fica clara essa divisão, cada existência

prediz um mundo de experiências instituídas e outras porvir.

Mesmo assim, mencionar dor na ginástica remete imediatamente as agressões

do treinamento que resulta em lesões. De fato, isso também se revelou como campo

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de sentido nas falas das entrevistadas. A G1 praticou GR por mais de quinze (15)

anos participando de inúmeros campeonatos mundiais, esteve na seleção quando

conquistou a primeira medalha de ouro no Pan Americano de Winnipeg em 1999 e de

duas edições dos JO (Sidney e Atenas). Todo esse tempo de experiência trouxeram

algumas marcas em seu corpo:

Eu tenho um problema no meu joelho que na competição eu cheguei, comecei a fazer as coisas e começava a travar, e era uma dor insuportável, eu já tinha já um desgaste, um desgaste na minha rótula, mas eu nunca tinha passado travando meu joelho, aonde eu, tiveram que chamar um médico e tudo, mas mesmo assim a minha técnica me... toda vez que era isso, me levava no banheiro e falava pra mim: G1, engole o choro, eu não quero que ninguém saiba de nada, tá? Se você quiser nós vamos fazer uma infiltração, você escolhe, pra você entrar na quadra, mas você não fala nada pras meninas, você engole porque eu sei que você pode fazer. Ah, que legal! Pensei comigo né? Essa responsabilidade nessa hora né? Mas ela sabia que isso ia me dar força, entendeu? Ela me conhecia. Toda vez ela fez isso comigo e deu certo. Então assim, quando a gente entrou pra competir, quando é pra ser não adianta, a gente ficou 10 minutos paradas porque antes de entrar na quadra a gente ficava num corredor que não dava pra lançar, não dava pra fazer nada, e, a gente entrou na quadra, meu joelho começou a travar travar travar, depois eu lancei aí lembra o que ficou marcado na história do túnel né? (G1) (...)

foi um momento assim, que marcou na minha vida porque eu tive que me superar, um dor, que eu tava, quando a gente fala em dor né? Cada um que sente a sua dor, mas era uma dor insuportável pra mim, e veio esse momento, essa glória sabe? A primeira vez que a gente conseguiu a medalha, foi inédito mesmo entendeu? Foi uma alegria muito grande. (G1) (...)

Eu já rompi o ligamento do pé, eu também tive estiramento na minha panturrilha esquerda, um mês antes das Olimpíadas, daí eles me proibiram que eu tava numa competição na Alemanha, falaram pra minha técnica que se eu competisse ela ía me perder pras Olimpíadas. Eu tive que me recuperar muito rápido, muito rápido, mas, a fisioterapeuta era a melhor de Londrina, conseguiu me recuperar. (G1) (...)

Se eu fosse uma menina normal, talvez eu nunca fosse sentir nada. Mas como teve que forçar teve um desgaste que até hoje eu sinto. Quando eu vou subir escada eu sinto, quando vou descer escada eu sinto. Aí você fala: você se arrepende? Não me arrependo! Adoro a minha dor! (G1) (...)

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A G1 atribui valor inestimável a sua dor, diz não se arrepender de nada e que

faria tudo de novo outra vez, e talvez muito melhor. Ao comentar sobre suas lesões e

consequências acredita que foram elas que a deixaram mais forte para competir como

ginasta e para a sua vida em geral. Duas (2) das ex-ginastas (G1 e G4) hesitaram em

responder essa pergunta afirmando que não passaram por lesões sérias, no entanto,

a medida que foram rememorando suas experiências informaram que sentiam dores

constantes na perna e no pé. Uma delas, a ginasta G4, inclusive, relatou um momento

em que viajou para competir amamentando seu primeiro filho e com um dos braços

fraturados, sem tomar conhecimento disso. Nessa competição elas se apresentaram

muito mal, o conjunto brasileiro ficou entre as últimas classificações e isso foi crucial

para que pensasse em desistir, questionando-se se valia a pena todo aquele esforço.

Porém, decidiu continuar treinando e no mês seguinte obtiveram a primeira medalha

de outro do Brasil em campeonatos pan-americanos, classificando-as para os JO de

Sydney, em 2000.

Observamos nas falas das ex-ginastas que as lesões, caracterizadas por

momentos de dor abrupta, paralisam as atividades ginásticas e fazem refletir sobre a

continuidade no esporte. E o juízo de valor que se formula delas é totalmente

dependente das conquistas alcançadas ou a se alcançar após enfrentá-las. A fala de

G3 subtende esse esforço para além da dor:

Quando eu tava no conjunto foi a época que eu mais senti dor na coluna que até minha coluna travou e eu nem conseguia andar direito num dia e no outro dia eu voltei pra treinar pra não perder o meu lugar porque senão eu não ía pra olimpíada. Então eu ficava a base de remédios mesmo pra aguentar os treinamentos por conta da coluna (G3).

Observemos que as dores destacadas pelas ex-ginastas só receberam o

devido destaque em suas falas quando ameaçaram ou atrapalharam as performances

esportivas. O cansaço, o excesso de treinamento e todas as experiências de

sofrimentos corporais foram naturalizados em seus discursos, a dor foi

simultaneamente compreendida e pormenorizada. Isso foi latente na maneira como

G2 e G4 comentaram sobre suas dores:

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A única dorzinha física que eu tinha, assim, era o do joanete que tava em fase de crescimento, que é natural, qualquer pessoa que teve joanete vai ter essa dor mesmo, só que a minha agravava mais por conta dos exercícios na meia ponta, tal, mas não era assim uma coisa de outro mundo não (G2).

eu tive “canelite”, que é uma inflamação na canela, aquela famosa “canelite” e que de vez em quando atacava... doía muito, eu lembro que eu chorava nos treinamentos (G4).

O ritual é mais duro para quem não “nascia agraciada” com as capacidades

físicas necessárias à GR. A G4 comenta que sua irmã também compôs a seleção e

faz mais reclamações dos sofrimentos vividos no treinamento:

Eu lembro pouca coisa, minha irmã lembra de muitos detalhes assim, ela fala quando as vezes a gente tá junto de coisas aí eu, gente eu não lembrava disso! E ela lembra de detalhe em detalhe, e ela fala: é, você não lembra porque você não sofreu, porque você era boa na ginástica, eu tive que penar, eu que sofri, então eu tive esse privilégio, dentro da minha época, de como era a ginástica rítmica naquela época eu era uma boa ginasta, tinha flexibilidade, então eu não sofria muito com dor né? (G4).

Na minha equipe escolar, as experiências de dor provocadas por lesões não

eram significativas, não houve casos graves. A exploração mais intensa das nossas

capacidades físicas nos motivava, nos desafiava, testemunhávamos a ascensão da

autoestima da nossa equipe de uma forma muito especial porque trazíamos a

sensação da superação e sabíamos que também éramos responsáveis por ela. O

gosto pelo esforço aparecia na nossa experiência como algo que havia sido construído

paulatinamente. O treinamento não era confortável nem insuportável, trazia o

desconforto da busca pela ampliação das nossas capacidades e o prazer suscitado

pela suplantação de alguns limites. Era principalmente no desgaste do treinamento

que experimentávamos experiências dolorosas, pois novos moldes ginásticos, novos

movimentos, novas formas de treinamento eram vivenciados por nós.

Após a chegada da nova professora reerguemos a nossa equipe.

Compreendíamos mais os gestos da nossa modalidade e aprendíamos como utilizar

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isso para enriquecer nossas movimentações, alimentar nossa criatividade.

Recebíamos elogios por parte das outras professoras que destacavam o quanto era

difícil corrigir uma educação gestual errônea. Éramos sobreviventes da transição de

uma ginástica aparentemente espontânea para outra extremamente lapidada.

Oscilávamos entre o fato de sentir nossa capacidade criadora tolhida e/ou utilizá-la

entrelaçando todas as minúcias que aplicávamos nessa nova GR, porque por mais

que o afunilamento de gestos tivesse sido brusco perante a emancipação que

expressávamos na prática, já demonstrávamos autonomia, gostos, escolhas. Por esse

caminho é difícil retornar, e não retornamos, apenas o transformamos.

Por isso a Estesia de quem deseja se transformar, sente e deseja sentir, deseja

o esforço, deseja que a perna que confortavelmente se elevava até um ângulo reto

suba para 180 graus, deseja que o lançamento de uma bola, antes uma aventura,

possa ser repetido incansavelmente e passe a ser calculado, deseja e entende que

para usufruir da segurança de uma série treinada é preciso apresenta-la, inúmeras

vezes, sem falhas. Não sentir isso é a anestesia de não viver a experiência do

movimento.

À minha equipe coube ainda partilhar nossas experiências com a GR:

assumimos a monitoria das meninas mais novas, pois nos inspirávamos no sucesso

das pequenas. Contudo, carregávamos o estigma de não competirmos para concorrer

pelas melhores classificações, o tempo havia passado e não era mais possível atingir

níveis técnicos equivalentes às ginastas da nossa idade. Apesar de carregarmos essa

frustração, nos realimentávamos da união da equipe, principalmente nos exercícios

de conjunto, e isso mais uma vez era o suficiente para fazer com que não nos

distanciássemos da prática.

Sobre essa importante relação afetuosa da convivência em grupo, passível de

ser bem vivida com a equipe de conjunto, Róbeva e Rankélova observam:

Outra solução é a participação no conjunto, que exige espírito de coletividade e de disciplina, e uma constituição psicológica sadia. É indispensável que a ginasta penetre na técnica dos aparelhos, absolutamente indispensável ao sincronismo. Para o conjunto selecionam-se muitas candidatas, para termos, sempre, duas composições completas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.197).

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As ex-ginastas entrevistadas compuseram as seleções brasileiras de

individuais e de conjunto. Porém, para todas elas, o período do conjunto foi mais

marcante porque foi quando se deram as experiências mais significativas nos

campeonatos internacionais (Pan-americanos, Mundiais e Olimpíadas). Das que

conviveram mais tempo na seleção principal (G1 e G4), uma afirmou que suas

melhores amigas sempre estiveram na ginástica, porque não havia como ser diferente

devido o longo tempo de convivência. Já a outra informou que precisava ter mais

amizades fora do ginásio para equilibrar sua convivência com a GR. As outras duas

(G2 e G3) disseram conviver menos ou serem influenciadas por hábitos ruins das mais

velhas, ao mesmo tempo que, expuseram vínculos de amizade com a equipe de forma

geral.

Pensamos que a maior ou menor rotatividade de ginastas nos conjuntos acaba

permitindo elos mais fortes ou mais frouxos, como em quaisquer relações. No estudo

desenvolvido por Lourenço (2015) isso se confirmou pois, a rotatividade na SBC era

algo contínuo no período estudado (1997 a 2012) sendo aceita naturalmente pelas

ginastas e levada com tranquilidade pelas treinadoras.

Ainda sobre as relações, um fator determinante de sofrimento, assim como

campo de sentido suscitado, proferido por todas as ex-ginastas foi a possibilidade de

conviver perto de suas famílias, algo que, segundo elas, amenizava o sofrimento

provocado pela fadiga quando possível ou que tornava tudo mais difícil, quando a

família estava distante. No caso, G1 e G4 moravam na mesma cidade, mas G2 e G3

não.

na época que a seleção mesmo do conjunto que a gente tava se preparando para os jogos pan-americanos, as olimpíadas, a seleção ficava em Londrina, eu morava na minha casa, então assim, eu ia embora pra minha casa, gostava de ter minha hora também comigo mesma, com minha família, na minha casa... (G1).

eu tive o privilégio de estar na minha cidade, morar na minha cidade, estar perto dos meus pais, mas eu via assim que era bem difícil, sempre foi, até hoje as ginastas que saiam de casa pra se dedicar cem por cento pra ginástica, e na época a gente tinha esse privilégio assim. Não tinha muito outros aspectos que interferia, a gente estava na nossa própria casa, tava com a mãe e o pai perto e era na nossa cidade,

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conhecia todo mundo, tinha os nossos amigos, enfim, a gente se dedicava oito horas por dia, como é ainda hoje, se dedicava cem por cento pra ginástica rítmica (G4).

As entrevistadas G2 e G3 compuseram a seleção brasileira morando muito

distante da cidade sede:

minha mãe morava em Sergipe, e eu morava lá no Espírito Santo, então passagem era cara, a gente não tinha folga, a gente não tinha folga, a gente tinha uma vez por ano que era em dezembro, e assim, tipo natal, réveillon e tipo, já voltou e já tava lá (G2).

Pra mim a parte pior foi no conjunto quando eu fui pra Londrina, o que eu falei. Você começa a enxergar, eu não sei também se era porque eu não tava na casa dos meus pais, não sei, mas você acaba vendo meninas mais velhas fazendo coisas e você com a cabeça imatura acaba entrando na onda também né? (...) (G3).

O círculo de afetos que dificultava ou facilitava a presença das ex-ginastas na

seleção ia além dos vínculos familiares, havia as outras relações, as amizades, os

momentos de lazer, que, em alguns casos se limitava à vivência da própria GR ou

com as pessoas que a compunham, ou se ampliavam para outros círculos desde que

não existissem práticas que atrapalhassem o desenvolvimento do próprio esporte.

Observemos o que cada uma delas comentou sobre isso:

minha vida social eu tentava ter, meu lazer, assim, domingo estar com minhas amigas, mas é aquilo né? Você tenta mas você não pode comer, você não pode beber, você não pode isso, mas assim, eu não me arrependo de nada hoje em dia, sabe assim? (G1)(...).

você também tem que ter o seu lazer, então eu tentava assim ter uma vida normal, mas não era igual a das minhas amigas, mas, já tava bom já (G1).

não tinha lazer, a socialização que eu tinha era na escola, por isso que eu não gostava também de não ir pra escola, porque eram os únicos amigos, entre aspas, que a gente tinha que se relacionava. E no sábado a gente treinava também e no domingo a gente costumava ir todas a igreja, porque é necessário tá com esse vínculo com deus né,

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principalmente assim vivendo longe. E não tinha o que fazer, assim, na praia a gente não podia entrar no mar porque era perigoso, podia se machucar, no shopping não podia ir sozinha assim, porque alguém sempre parava a gente... a minha diversão maior e das minhas companheiras na época era ir pro supermercado ver quanto custam as coisas. A gente brincava de quanto custam as coisas. Só que as vezes a gente tava até brincando numa área que era proibida, que tinha chocolate ou bala, tudo, e chegava sempre alguém e falava: é! Vou contar pra técnica que vocês tão comendo coisas escondida, e a gente não tava nem comendo, a gente só tava olhando, ou a gente só tava vendo mesmo, brincando lá... E assim, era uma dificuldade isso, porque como Vila Velha era uma cidade pequena, todo mundo conhecia quem era a seleção. E a gente tinha o hábito de sempre sair uniformizada porque a gente sempre tava treinando (G2).

A gente, a gente que eu falo eu e a outra companheira do individual, porque as outras sempre voltavam pra casa né? Nós éramos as únicas assim, de fora realmente. As outras, uma era de São Paulo mas ela todo fim de semana pegava ônibus e ia pra casa, então acabava que a gente sempre ficava sozinha no alojamento. A gente ia ao shopping, a gente ia ao cinema, a gente assistia todos os filmes que passavam no cinema, a gente chorava todo final de semana que queria voltar pra casa que não tava aguentando mais a pressão (G3).

Eu fui da seleção brasileira durante 15 anos, então pegou a minha vida toda, assim, minha fase de adolescente, a fase de namorar, de noivar, de casar, de filho, até com filho eu tava na seleção! Tudo foi na seleção brasileira né? Então existem várias fases aí, mas assim, no geral, eu tenho poucas experiências sem ser na ginástica, no ginásio, porque a maior parte da minha vida foi dentro de um ginásio. Então o lazer assim que a gente tinha era viajar no fim de ano com a família, ir a praia, era isso que a gente fazia, assim, fora isso a gente tava estudando, a gente nunca teve grandes amizades na escola porque as nossas amizades eram dentro da ginástica, então não teve muita vida fora do ginásio (G4).

Através dos trechos dos relatos é possível consolidar a abnegação das ginastas

a uma vida de adolescentes comuns. Todas admitem, paradoxalmente com pesar e

naturalidade que não puderam vivenciar momentos de lazer fora do ginásio, o que ao

nosso ver, brinda mais uma doação em prol da modalidade.

Abdicação de algumas experiências em detrimento de outras. Essa extrema

vontade se demonstra quando a ginasta, no alto nível, abdica de uma estética de vida

comum a meninas da sua idade para se localizar em uma bolha social reduzida ao

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esporte. Esse alto preço realmente só é pago pelas ginastas comprometidas com a

mais alta performance.

Lesões, relacionamentos, abdicações, corpos e gestos modelados foram

alguns sentidos suscitados e que compõem experiências de dor e ao sofrimento na

prática da GR. No próximo tópico, abordamos as descrições da partilha do vivido.

A PARTILHA

O que nos provou a vida diária? Que se podem enfrentar as falhas da natureza com algum esforço. Com dificuldade, enfrentam-se as omissões da educação, defeitos acumulados do ambiente familiar ou do caráter das pessoas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.195).

Dentre as dimensões vividas na GR, ser professora/técnica foi, sem dúvidas, a

experiência mais prazerosa e dolorosa de todas. Porque eu partilhava as angústias,

dores, conquistas, vitórias, dificuldades e fracassos com mais de vinte (20)

meninas/adolescentes simultaneamente. Sofrimento ao me colocar no lugar delas,

mas não só isso, a obrigação da beleza também. A experiência pedagógica me trouxe

a possibilidade de transpor a minha experiência como ginasta assim como solicitar o

olhar da árbitra.

Os sofrimentos da ginasta que se extenua diuturnamente em busca da

perfeição de movimentos se fundem com os da técnica, criando um percurso único.

As carnes se entrelaçam de tal forma que criam uma bela rede tecida em que não é

possível precisar onde se iniciam e se finalizam os pesares do trabalho das ginastas

e da professora. O entusiasmo da tessitura gera uma beleza tão enfática que só dela

se importa o expectador. Entretanto, o processo é penoso. Não lembro quantas vezes

saí aos prantos após não conseguir concretizar uma aula da forma como planejei com

as alunas menores, ou após não entrar em acordo com as adolescentes, ou até

mesmo após me emocionar com a apresentação das próprias alunas... A cada treino,

ginastas e técnica estreitam vínculos e a cada entrada, execução de exercício e saída

da quadra, é como se a ginasta fosse um prolongamento da intenção de movimento

da técnica: elas são/somos uma só.

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Nesse contexto de imbricamentos sensíveis, o relacionamento com a

técnica/professora se torna essencial para perceber como se dão as experiências

estesiológicas de dor e de sofrimento nos treinamentos. Essas experiências têm nas

ginastas seu nicho mas se reverberam de diferentes formas na pele das técnicas.

Dando importância a isso, apreciamos mais uma vez os relatos das ex-ginastas

entrevistadas que apresentaram ponderações divergentes sobre seus

relacionamentos com a técnica da seleção brasileira da sua época. Enquanto as

ginastas G2 e G3 apontaram dificuldades complexas nas relações, G1 e G4

exprimiram uma imensa gratidão, dado que foi a mesma professora que as descobriu

e as acompanhou desde o início da prática em suas cidades.

A G2 destaca que sua técnica apresentava dificuldades para motivar as

ginastas da seleção, afirmando que isso era um fator que causava problemas.

acho que ela que precisava de ter um trabalho psicológico forte entendeu, pra trabalhar porque, eu vou botar minha ginasta pra baixo, eu deixei todo mundo menos ela, o que eu vou dizer pra ela, que ela é incapaz de estar aqui, ela não deveria estar aqui, (...)

a técnica precisa mais do trabalho psicológico do que a gente, porque é um poder muito forte que elas tem na mão, é as melhores ginasta do Brasil na tua mão e você não sabe lidar com elas. Então eu acho assim, ela não tinha quanto mais a gente né? (risos) (...)

todo mundo que chega lá como treinadora ela impõe as crianças uma coisa e não consegue inverter a psicologia delas pra que elas se sintam boas pra fazer aquele conjunto, pra conseguir executar, pelo contrário, elas usam uma psicologia negativa que só baixa o ego da criança e faz com que ela engorde, que ela fique com lesão, que causa também quando você não tá bem mentalmente, internamente, é mais fácil de gerar uma lesão, até de se machucar porque você fica mais disperso... (G2).

Já G3 informou que enquanto esteve na seleção individual tinha uma ótima

relação com sua técnica, no entanto, com a entrada no conjunto, isso mudou, não se

sentia acolhida por não sentir que havia possibilidade de diálogo.

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Olha, assim, no individual, olha, eu vou falar no individual e no conjunto, porque como eu vivi as duas coisas sabe? Eu não só vivi conjunto... No individual eu não tive tanta coisa assim, ruim sabe? Como é que eu posso dizer... não tive, minha técnica sempre me respeitou muito e ela sabe que foi como minha mãe mesmo, minha segunda mãe... tudo o que aconteceu no treinamento era super normal porque a gente sabe que se a gente quer chegar em algum lugar no esporte de alto rendimento a gente tem que passar né? Uns gritinhos aqui, uns chorinhos ali sabe? E isso nem foi tanto triste nem ruim pra mim. (...)

com fulana de tal não acontecia, a gente não podia marcar mas fulana de tal podia marcar, essas coisas assim, que não é tão besteirol mas que eu acho que se fosse tratado de uma outra forma, com um pouquinho mais de atenção sabe, dos técnicos, de chamar, conversar, que eu acho que não doi, não arranca braço nem nada, é, seria muito mais viável, acho que muitas ginastas não teriam se acabado dentro do esporte se houvesse mais diálogo. Existia psicólogo, existia tudo isso, mas, isso e nada era a mesma coisa, sabe? (G3).

Percebe-se que quanto mais convivência, mais vínculos, mais atenção das

técnicas, se atribuem mais afetos, gratidão, sobretudo quando as ginastas se referem

a se sentirem cuidadas. Nesse caso, as experiências de sofrimento parecem ser

inversamente proporcionais ao aprofundamento dos afetos, ao permitir-se entrelaçar

os sensíveis. Minhas experiências como professora também me trazem essa memória

dos vínculos maiores que alavancam relacionamentos melhores, partilha do sensível

e cumplicidade na formulação do trabalho em coletividade.

Apesar de ter arquitetado simultaneamente as carreiras de professora e árbitra,

a primeira se sobrepôs à segunda até o momento que exerci apenas a segunda. Ser

professora de GR me dava a chance de resolver conflitos que ficaram adormecidos

nos fracassos de quando fui ginasta. Eu queria muito saber tratar dos medos, dores e

frustrações das minhas alunas porque os conhecia muito bem, queria muito poder

dizer as ginastas o que não escutei. Exerci essa função com afinco por cerca de seis

(6) anos.

Muitas vezes um “gostei” do treinador vale muito mais do que muitos testes e a observação de dez técnicos. Não desprezemos esse argumento – o estremecimento do coração. Batendo o coração, vale a pena experimentar. Se você não tiver sorte, o fracasso também não será grande; se você falhar na busca da campeã mundial, o público não o perdoará (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.46).

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Ensinar GR me fez experimentar mais um olhar sobre o fenômeno: o olhar

formador de olhares. Minha motivação era indescritível pois nunca encarei aquilo

como trabalho: era uma missão. Eu precisava fazer brilhar aquelas pedras preciosas,

sabendo que seres humanos não se lapidam apenas. Para brilhar e sentirem-se

brilhantes cada uma de nós precisava investir, acreditar, constituir um processo de

reconhecimento de nossas potencialidades e fragilidades na ginástica, buscando

ressaltar as primeiras e sanar as segundas, eu como condutora, elas como

protagonistas. “A profissão de treinadora traz essa ambição: a alegria de alguma nova

descoberta. Nosso esporte tem ilimitadas possibilidades de pesquisa e criatividade”

(RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.177).

Concordamos com Róbeva e Rankélova (1991), conduzir a prática de uma

modalidade como Ginástica Rítmica é admitir muitas possibilidades de

experimentações, é saber que há um conjunto de movimentos específicos para seguir

a risca e ainda assim abrir margem para a criação de mais movimentos, é estar

amarrado aos ditames esportivos e ao mesmo tempo admitir muitas formas de se

desamarrar. É admitir que somos seres que podemos nos educar a partir das

sensações corporais, sejam elas prazerosas ou não. A relação com a GR é

estesiológica, e isso inclui suas dores e sofrimentos.

Dessa maneira, mesmo que tracemos um plano de treinamento extremamente

disciplinado, quantificado, calculado que seja, isso não garante uma obra coreográfica

que atenda a todas as especificidades do CP, sobretudo quando se é necessário

aderir, concomitantemente, o teor artístico que lhe atribui beleza. Entendemos que

isso só é possível quando nos balizamos nas experiências, que se somam às

referências da própria ginástica, de outras práticas artísticas e as referências da

própria praticante. Portanto, a saída que encontrei se dava na busca e exploração do

que havia de único em cada menina, porque o risco de não se adequar era iminente,

mas o risco de não poder expressar suas identidades ginásticas eu não queria que

elas corressem.

Róbeva e Rankélova (1991), principalmente a primeira, em sua labuta como

técnica, comenta que as falhas precisam ser enfrentadas durante o processo, sendo

aquelas originadas pelas faltas técnicas corporais bem mais fáceis do que as

causadas por problemas de outra ordem que não a própria prática.

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Mesmo assim, as referências das ginastas do alto rendimento exerciam ampla

influência sobre o entendimento das minhas alunas sobre a GR. Em estudo realizado

no período da graduação em Educação Física (CAVALCANTI, 2005), ao questionar

sobre as concepções de corpo a maior parte das alunas, em nível escolar, se diziam

gordas ou com corpos inadequados para a prática da GR.

Imaginamos que muitas não compreendiam que as atletas de alta performance,

tomadas como referência, possuíam um cotidiano direcionado à busca da perfeição

técnica, o que, considerando sua condição humana, se decompõe no suportar de

doses diárias de sofrimentos que se exprimem em inquietudes.

O ofício de técnica de GR alude a uma constante angústia, constante

inquietude. Segundo Leenhard, que prefacia a obra “Arte e Dor” de Frayze-Pereira

(2005), a inquietude não tem a ver com uma patologia, mas vem com o fato de que o

domínio do espírito é circunscrito pelo movimento estabelecido no seio da diversidade

das coisas, “a inquietante diversidade dos seres e das coisas, que submete a uma

velha constante quem pretenda não render suas armas diante dos emaranhados da

vida” (LEENHARDT apud FRAYZE-PEREIRA, 2005, p.15).

As nossas autoras do livro “Escolas de campeãs” apresentam suas inquietudes

através da constante pesquisa “Gosto de pesquisar, de corrigir, de duvidar, de

apresentar somente quando estou absolutamente segura (segurança total é

impossível). Digo, em todo caso, que talvez também não seja assim” (RÓBEVA e

RANKÉLOVA, 1991, p.24).

Quando algo me angustia tento recordar alguma imagem das pessoas que se sentiram comovidas e reconhecidas pela beleza que lhes apresentamos. Agradeço-lhes pelo apoio; sem elas, não resistiria a tantos anos de tensão e de luta para a glória (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.20).

Inquietudes, sofrimentos e dores compõem a vida atlética, sobretudo quando o

esculpir da obra prima esportiva, perfeita, sem necessidade de retoque, é cultuada

diuturnamente num processo de criação artística. Nesse momento, todos esses

fenômenos que permeiam a utopia do modelo perfeito de gestos se congregam a

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ponto de não se identificar objetivamente onde começa a inquietude, ou quando esta

se transmuta em sofrimento. Pois, a despeito da resistência que mitifica o atleta,

concordamos que ”uma dor escolhida e controlada por meio de uma disciplina pessoal

com o objetivo de consciência de si não contém senão uma parcela irrisória de

sofrimento, mesmo que doa” (LE BRETON, 2013b, p. 228).

Dessa forma, um técnico esportivo lapida gestos mas não busca dores para

além das inerentes ao processo de potencialização das capacidades físicas, ele

considera as dores desde que não atrapalhem o próprio treinamento. Minhas

experiências como ginasta e técnica confirmam isso.

Por isso, do mesmo modo que uma ginasta pode suportar e se recuperar

rapidamente de uma lesão, uma série mal executada com erros grotescos e queda de

aparelhos pode significar uma tragédia inconsolável que reverbera na perda de uma

medalha ou pior, no duvidar de suas próprias capacidades na ginástica. O limite para

a dor e o sofrimento são diferentes entre equipes e pessoas. A Educação deve atentar

para esses limites porque cada um aprende de um modo diferente, cada um tem a

sua chave, por isso não se pode subestimar o sentir de cada um.

As dores, sofrimentos e inquietudes mencionadas até esse momento

comportam o viver atlético e fazem parte da constituição da beleza e sua consequente

potencialização da performance esportiva. Mas isso não significa que praticar GR seja

uma tortura gratuita, muito menos que as técnicas e ginastas apreciem experiências

sádicas ou masoquistas. A dor e o sofrimento não são um fim em si, mas caminhos

significantes que compõem a vivência estesiológica do movimento na GR. Pois o que

é dor ou sofrimento para mim pode não ser para o outro. No contexto do treinamento

isso se sente de várias formas. Para algumas perder um aparelho pode ser trágico,

para outras só um detalhe dentro de um processo prazeroso. Portanto, há de se

considerar o sentir de cada um e não cair em posições maniqueístas.

Róbeva e Rankélova (1991) comentam que por mais que o esgotamento seja

total, é preciso se agarrar ao aspecto criativo. “Independente de termos esgotado

todas as reservas, sempre encontramos algo novo. Nos métodos, nos elementos, nas

composições para melhores possibilidades das futuras gerações” (RÓBEVA e

RANKÉLOVA, 1991, p.27).

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Na minha experiência como professora muitas vezes senti esse esgotamento,

e, embora não trabalhasse com ginastas de alto nível, não considerava diferente o

percurso árduo de busca pela criatividade e pela melhor forma das minhas alunas nos

campeonatos. As angústias se davam por dois movimentos: minhas ginastas

conseguiriam materializar a nossa arte através dos movimentos do seu corpo? Antes

disso, eu conseguiria explorar as melhores formas daquela ginasta se movimentar?

As respostas para essas perguntas só eram possíveis através do processo. De todo

modo, quando rememoro essas angústias percebo que algumas eram suscitadas pela

minha compreensão da GR pautada por um modelo pouco negociável de linguagem.

Nessa perspectiva de relacionamento entre treinamento e dor, no esporte de

alta performance o processo é ainda mais duro, é possível observar que nos esportes

de cunho artístico a operacionalização se dá pela constituição da beleza vislumbrada

na criação de regras e das transgressões do corpo, nesse sentido, a beleza está

diretamente relacionada às operações ferrenhas desse processo.

A estética da GR no alto rendimento em muitos momentos, pode sobrepujar a

estética da vida. Comentamos sobre isso ao abordar o que as ginastas entrevistadas

viviam fora da seleção. Ou seja, há “a negação de outras estéticas corporais e

vivências estéticas da própria ginasta, presentes, por exemplo, nas ações cotidianas

relativas à alimentação, ao convívio familiar, às formas de perceber e aceitar o próprio

corpo” (PORPINO, 2004, p. 129). É o que reflete esta autora em artigo que disserta

sobre as concepções estéticas do treinamento esportivo da GR. E complementa

referindo-se à relação paradoxal entre essas estéticas, pois, “ao mesmo tempo em

que o sacrifício é justificado pela concretização de uma estética esperada é na

negação de uma estética de vida que esse sacrifício é realizado” (PORPINO, 2004, p.

128). A ginasta “abandona” sua vida para garantir sua ressignificação em prol do

sonho de se tornar uma campeã.

Nas falas da G1 e G4 isso escapa sob a forma de “eu não podia sair, não podia

comer, não podia beber, mas eu sabia que tinha que ser assim e para mim tava bom”

(G1). Já a G4 comentou que viveu todas as fases da vida em um ginásio e todas as

suas amigas só poderiam ser as da ginástica.

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As autoras Róbeva e Rankélova (1991) mais uma vez atribuem a razão de

suportar as tensões do dia a dia como treinadoras a capacidade criativa de

transcender à própria GR.

Além da necessidade de vencer sempre, o que enche seus dias de tensão e dinamismo, é a necessidade de arrancar surpresas, grandes surpresas, a cada nova competição. Não há outra treinadora que, tão frequentemente, mude a composição de suas ginastas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.171).

Nosso desejo é sempre mais alto do que já conseguiram. Partimos juntas, e vejo até onde vão as forças de cada uma. Algumas vão com força, com sede de encontrar o novo. Assimilam rápido; desejam sair dos quadros conhecidos, para verem seu desenvolvimento, ouvir sua voz; desejam o singular, o irrepetível (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.197).

Sobre essa possibilidade de realizar o irrepetível, Merleau-Ponty (1961/2004)

contribui com a noção de originalidade artística no ramo da pintura. Ele coloca que no

momento em que se adquire uma certa habilidade, um artista percebe que abriu um

outro campo em que tudo o que pôde exprimir antes precisa ser expresso de outra

forma. E assim, o que descobriu, ele ainda não o possui, deve ainda ser

incessantemente buscado, a descoberta é o que chama outras pesquisas. “A ideia de

uma pintura universal, de uma totalização da pintura, de uma pintura inteiramente

realizada, é desprovida de sentido”. (MERLEAU-PONTY, 1961/2004, p.46). Esse

pensamento vai totalmente ao encontro da compreensão de Róbeva e Rankélova

(1991) na criação de sua ginástica, pois a pesquisa infindável pelo movimento que

arrebataria árbitros e público era o que motivava seus fazeres e a fazia suportar o

peso do trabalho e da angústia.

O autor supracitado corrobora mais com essa compreensão ao dizer que as

ideias não nascem por si, mas reverberam da experiência carnal. É a carne quem lhes

dá profundidade, eixos e dimensões. A linguagem exprime a reversibilidade do sujeito

(MERLEAU-PONTY, 1964/2009). É o sujeito encarnado que produz os saberes do

corpo, nesse caso, do corpo na ginástica.

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Não é errôneo afirmar que a maneira com que Róbeva e Rankélova (1991)

concebiam a nossa modalidade se disseminou por todo o mundo no âmbito da GR,

pois são consideradas grandes referências.

Em menor escala, o reducionismo de experiências estéticas também acontecia

na quadra da escola onde trabalhava. Treinávamos em três dias durante a semana,

também nos fins de semanas alguns meses antes da competição e em todos os dias

das férias do meio ano. Minhas alunas (e eu) deixavam muitas vezes de fruir

atividades de lazer e/ou culturais, para se dedicar à ginástica, movíamo-nos pelo fazer

ginástico de tal modo que canalizávamos a nossa existência para ela. Aprimorar o

desempenho na GR se constituía como um grande objetivo em comum, mas não

atentávamos que estávamos restringindo nossas experiências para um modelo de

vivenciar a beleza objetivista, pautada em um modelo. Embora seja essa

compreensão da beleza que estabelece as condições necessárias para creditar uma

apreciação bela à GR, como já referendamos anteriormente nas análises de poder

foucaultianas. Na vivência, no dia a dia, essa análise não parecia ter o menor sentido

porque embora muitos dos movimentos fossem pré-definidos, o estudo de como

seriam realizados partia das possibilidades corporais de cada ginasta.

Compreendemos que essa é apenas uma das possibilidades de compreender

a beleza, entretanto, as relações sensíveis que estabelecemos através da

experiência, do mundo vivido, ampliam essa perspectiva. Aludimos ao início dessa

discussão para procurar entender acerca das ligações entre beleza e Arte. A beleza é

categoria da Arte, mas não é exclusividade desta.

E como eu poderia orientar as minhas alunas acerca da rigidez expressa pela

busca da beleza pelas ginastas profissionais, se eu acabava aplicando os mesmos

princípios? A cada referência bibliográfica acessada e apropriada na universidade,

que dissertavam sobre o corpo, a corporeidade, a educação física e o esporte escolar,

a educação sensível, fazia com que meus níveis de angústia e culpa se elevassem

insuportavelmente. Em dado momento passei a acreditar que as referências do alto

rendimento eram importantes para a contextualização e instrumentalização da

modalidade, mas que não deveriam passar de referências. Isso me matava.

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Os estudos desenvolvidos durante a licenciatura em Educação Física

multiplicaram ainda mais as angústias em relação ao âmbito educacional ao qual eu

deveria, enquanto educadora comprometida, priorizar. Isso criou uma contradição

difícil de gerir: era preciso se adequar às necessidades da ginástica privilegiando as

técnicas esportivas, a disciplinarização dos corpos, a ciência do treinamento esportivo,

a necessidade de se aproximar do modelo corporal requerido pela GR, a gestão das

dores e das compensações ortopédicas dos exercícios, o CP e a padronização

meticulosa dos gestos em detrimento do que eu achava mais significativo e que

realmente seria capaz de ampliar o olhar das alunas para a modalidade, para o

mundo: a experimentação de práticas e movimentos variados, a corresponsabilidade

nas aulas, a apreciação crítica da própria GR e de outras práticas corporais, a criação

de figurinos, o estímulo e discussão sob o senso de coletividade e outros valores, etc.

Nesse sentido, percebi que mesmo longe de um rendimento esportivo que se

bastasse em si, havia outras tensões as quais eu teria de resolver como professora:

selecionar ou incluir? Qualidade ou quantidade? Esporte na escola ou esporte da

escola?

Não demorei para perceber que uma contradição não é necessariamente um

paradoxo, pois além de compor cenários humanos, são a partir delas que

transformações podem ocorrer. Então, compreendendo que as necessidades da

ginástica e que a ampliação do olhar para ela própria não são fenômenos excludentes,

decidi ressignificar minha prática pedagógica buscando tirar a culpa do caráter

estético objetivista da ginástica para transformá-la em possibilidade de desafios. Pois,

uma menina que desejava praticar GR na minha equipe não o fazia apenas para se

sentir acolhida, nem para ser “café-com-leite”25, praticava porque queria experimentar

a sua linguagem, queria pertencer àquela modalidade, portanto, era preciso fazer isso

da melhor forma possível: se desafiando, experimentando seus próprios limites e

enfrentando-os com coragem, vivenciando suas possibilidades corporais nos

movimentos da ginástica e explorando-os o máximo possível. Elas precisavam

entender que praticavam uma modalidade com uma gestualidade complexa, que

25 Essa expressão normalmente se refere a um jogador que está presente, mas não participa ativamente da uma brincadeira.

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muitas vezes seria difícil executar os movimentos, mas que isso não era motivo para

excluí-las.

A diretriz principal do meu trabalho enquanto professora era a satisfação das

minhas alunas, mas o cotidiano da GR dificultava a calmaria de emoções. Primeiro

porque eu deveria insistir em explorar continuamente as qualidades físicas

necessárias para a correta execução dos exercícios: hiper flexibilidade, força,

potência, agilidade, coordenação, ritmo e a sonhada “limpeza de movimentos”, e

segundo, porque uma vez ao ano eu precisava selecionar as melhores ginastas para

competir nos jogos escolares estaduais. Desse modo, mesmo que o processo fosse

sofrido para todas, algumas inevitavelmente seriam excluídas de parte do processo,

enquanto para outras haveria mais dedicação de esforços, tempo e energia.

A partilha do vivido se aprofunda no ensino, nas rotinas diárias, e é um

momento de intenso relacionamento entre quem pratica GR e quem está junto

construindo um trabalho corporal. No entanto, outras partilhas são realizadas quando

o produto ginástico já está pronto, nas apresentações.

Apreciar uma série ginastica significa se propor à experiência da beleza, e isso

diz respeito ao público em geral, normalmente composto por familiares, amigos e

apreciadores da modalidade. Contudo, há uma forma de apreciar especializada que

se desvia da função exclusiva de fruição da beleza e se constitui na objetivação do

olhar para desvendar os atributos que mais se aproximam ou se desviam dos moldes

exigidos pelo documento do CP de GR: a arbitragem.

Os árbitros da modalidade causam pesares nas ginastas, porque expressam

olhares que simultaneamente procuram erros e quantificam a beleza. Na minha

trajetória na GR, essa foi a função que exerci por mais tempo. Fui árbitra estadual pela

Federação Norte Riograndense de Ginástica (FNG) no anos de 1999 e 2000 e árbitra

nacional da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), nos ciclos olímpicos de

2001-2004, 2005-2008 e 2009-2012.

A figura do árbitro de GR é emblemática porque ao mesmo tempo que

estabelece uma relação íntima de apreciação da obra corporal da ginasta, que se

conecta pelo o olhar, precisa manter um certo afastamento necessário para garantir a

integridade ética do julgamento e ainda conhecer e interpretar objetivamente todas as

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regras estipuladas pelo CP que rege as competições internacionais. Para mim, a

função de árbitra se tornou uma forma de permanecer vivendo a modalidade que

continuava a me cativar mesmo após a prática escolar, além de poder redimir minhas

expectativas perante a minha representatividade na GR.

No penúltimo ano de prática de GR, ainda como ginasta, juntamente com

ginastas de todo o estado, tive a oportunidade de participar como ouvinte de um curso

regional de arbitragem de Ginástica Rítmica às vésperas das competições dos jogos

escolares. O curso foi muito esclarecedor em relação às regras, ginastas, tendências

que regiam a GR naquela época, porém, o contato com as ginastas das outras

escolas, bem como, a nossa observação do nível técnico delas, anunciavam o que

estava por vir: mais uma competição em que parecíamos alienígenas da modalidade,

pois o que apresentávamos de coerência em relação aos conhecimentos do curso

naquela competição era o mínimo.

Entramos e saímos cabisbaixas dos jogos, porque era a primeira vez que

tínhamos clareza a respeito das condições das nossas séries e exercícios perante o

CP, mas não havia tempo para se recuperar. Esse evento também nos atentou para

o fato de conseguirmos compreender os movimentos exigidos em nosso esporte, ou

seja, a forma como as árbitras analisavam a beleza das nossas séries.

Róbeva e Rankélova (1991) se debruçam sobre a beleza em alguns trechos de

sua obra:

A beleza é exigente. E muito. Por ela se luta; duramente, defendemo-la das acomodações da mediocridade. Beleza é revolução, explosão de talento, dolorosa busca. Quanto a mim, quantas noites de insônia! Muitos dias tormentosos para uma só ideia, um só movimento, uma tão pequena imperceptível pérola que dá a sensação de que tudo em nós se rejubila. E descubro essa jóia. Ninguém pode repeti-lo, ninguém pode revê-lo. É somente esta minha pérola de beleza. Logo em seguida, a dúvida sufocante: Será que a distinguirão? Será rejeitada? Logo após, a profunda convicção de que a notarão, até ser reconhecida. Os juízes talvez a recusem; as outras treinadoras talvez estejam distraídas nesse momento e não a notem; o público, porém, a distinguirá com justa avaliação (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.17).

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A beleza mencionada por Róbeva e Rankélova (1991), tão próximas à

perspectiva de criação de uma obra de arte original e impactante aos árbitros, não se

dá como unanimidade na GR praticada em todos os países do mundo. Essa

compreensão foi a base do que conhecemos como a escola búlgara de GR, a qual,

ainda na atualidade se situa um dos países de referência para o estudo e

aprimoramento de ginastas estrangeiras, inclusive das ginastas brasileiras.

Em detrimento da escola búlgara de ginástica, encontramos na obra de

Lisitskaya (1995), autora russa também expoente da GR, uma valorização de

aspectos técnicos da modalidade, que desconsidera sua produção estética como

expressão artística, vertente que consequentemente se aproxima da escola russa,

país de origem da autora.

Nas composições de Ginástica Rítmica, ao nosso ver, é infundado falar de dramaturgia dos exercícios ou criação de uma imagem artística. Do ponto de vista do conteúdo estético, as composições podem ser analisadas como objetos estéticos perfeitos, similares a produtos de construção de atividades estéticas (composição de um ramo de flores, designer de móveis, máquinas etc.) e não como obra de arte, reflexo artístico da realidade, no sentido que as obras de artes plásticas refletem, e, embora os métodos e regras de composição em arte, em particular as danças, permitem criar combinações mais precisas e íntegras (LISITSKAYA, 1995, p. 231, tradução nossa).

Compreendemos que a autora supracitada se refere ao uso estrito dos códigos

corporais que, segundo ela, limitam o potencial artístico da GR, no entanto, ao conferir

a expressão da obra ao corpo abrem-se infinitas possibilidades, sendo que, as

técnicas corporais se tramam a esse fazer expressivo de tal forma que em algumas

séries é possível adentrar numa experiência de apreciação tão profunda que árbitros

experientes, julgando um parâmetro isolado, não conseguem se eximir das emoções.

Ginastas roubam sorrisos, ginastas fazem chorar, o que faz com que a classificação

de Lisitskaya (1995) se perca na descontinuidade da experiência da beleza.

O que Lisitskaya (1995) nomeia de exercício como objeto estético, pensamos

que esteja muito mais vinculado ao que Merleau-Ponty (1952/2004) compreendia

como estilo, que por sua vez se trata de um modo de formulação do visível,

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reconhecível para os outros. Decerto, a escola russa de GR apresenta um estilo bem

diferente da búlgara.

A escola russa construiu seu estilo exibindo uma forma de trabalho toda

fundamentada pelo Ballet Clássico, familiar às suas tradições, o que imprimiu aos

movimentos uma grande amplitude no espaço e expressividade. Já a escola búlgara

caracterizou-se por uma forma de trabalho que explorava a originalidade, a variedade

de elementos, o dinamismo e a estonteante expressividade de suas ginastas. Embora

divergentes em relação ao estilo, os pódios das décadas de 1970 e 1980 de

competições de Ginástica Rítmica foram compartilhados por esses países. Um

terceiro estilo se mostrou (década de 1960, primeiras competições internacionais),

dotado de acrobacias, a Coréia que foi vetada por esboçar uma ginástica mais

acrobática (LLOBET, 1996).

As escolas búlgara e russa estruturaram-se por caminhos divergentes, mas que

culminaram numa manifestação única, consideradas irretocáveis e imprescindíveis na

escultura da GR. Esses dois estilos nos interligam ao pensamento de Merleau-Ponty

(1949-1951/2002), na Prosa do Mundo, sobre a arte clássica e moderna, pois estamos

compreendendo estes movimentos como íntimos às expressões da GR. Nas palavras

do filósofo: “Enquanto os clássicos eram eles próprios sem que o soubessem, os

pintores modernos procuram primeiro ser originais, e seu poder de expressão

confunde-se com sua diferença individual” (MERLEAU-PONTY, 1949-1951/2002,

p.80). Embora o filósofo exemplificasse na obra citada sua análise através das

pinturas, referia-se às diferenciações das artes clássica e moderna como dois mundos

percebidos em que constavam pintores, escritores, filósofos e pesquisadores

(MERLEAU-PONTY, 1948/2004b), ou seja, os personagens que pronunciam uma

época.

Constatamos as aproximações da escola russa com a arte clássica, dotada de

segurança e dogmatismo (MERLEAU-PONTY, 1948/2004b), pautada pela

proporcionalidade, harmonia de formas, perfeição técnica, predizendo uma utilização

do corpo voltada à repetição extenuante de gestos, comum ao Ballet clássico, a fim

de se chegar a um objetivo pré-determinado. A escola búlgara, todavia, caminhou por

outros rumos, da originalidade, criatividade, desbravando riscos e desafios,

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explorando as qualidades individuais do sujeito, características que se coligam às

ambiguidades e incompletudes da arte moderna (MERLEAU-PONTY, 1948/2004b).

Ainda alheia aos estilos da GR mundial na minha trajetória, descobrir a beleza

através da experiência corporal virou uma obsessão, mas meu tempo de ginasta havia

acabado, por isso, precisava fruí-la através da arbitragem. E no ano subsequente a

minha saída da escola, eu estava mais uma vez nos jogos escolares, agora como

árbitra. Foi preciso desenvolver a capacidade de avaliar a beleza tentando me destituir

de toda a herança dada pelo sentimento que guardava pela minha escola e

professoras, por conseguinte, pela minha formação estética, pois, a classificação ao

final, assim como os primeiros lugares, não poderiam ser influenciados por isso. Esse

conjunto de sentimentos e atitudes não foram fáceis de realizar e também geram

sofrimento no árbitro porque não há como se despir das emoções ao apreciar uma

obra que objetiva captar o olhar, principalmente quando essa obra foi produzida por

pessoas com quem se tem relações de afeto.

De todo modo, o relacionamento entre técnicas, árbitras e ginastas se dá em

terreno acidentado, pois a concordância com os resultados de uma competição

depende da confluência dos olhares de todas. Em quase 25 anos vividos na GR,

nunca presenciei tal alinhamento. A insatisfação sempre existiu, e ao meu ver, sempre

vai existir.

O engajamento entre ginasta e árbitra não deve ser permitido para além de

uma apreciação. A meta é objetivar o julgamento, mesmo que este não possa ser

objetivado. De acordo com nossas autoras búlgaras “O primeiro lugar depende de

muitos fatores: do bater do coração, do preparo das adversárias, da sorte, dos juízes,

do público” (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.189).

Na minha experiência como árbitra, estar sempre entre os últimos lugares como

ginasta me era tão familiar que sabia exatamente como se sentiam as ginastas que

não subiam ao pódio. Esse entendimento ajudou a formular meu senso de justiça

nesse sentido, apesar de importar muito quais eram as ginastas competindo, minhas

amigas ou não, alunas da minha professora ou não, as que eu mais admirava ou não,

desde o início cultivei o hábito de buscar pontuar aquelas que eu julgava melhores no

momento da execução do exercício, no tempo e local designados para isso. Não digo

que o coração não acelerava quando alguém a qual admirava ou da qual conhecia a

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história se apresentava. Isso ocorria sempre e servia para potencializar o prazer que

eu sentia ao realizar aquele trabalho, pois a apreciação estética, mesmo que

contabilizada, é um dos maiores privilégios de quem tem por labor pontuar a beleza.

A meu ver, essa empatia cultivada pelo olhar precisa ser campo aberto por parte de

quem arbitra, pois é percebido por quem se apresenta.

Embora não fosse mais uma ginasta, era uma das árbitras que julgava o meu

esporte no estado. Por algum motivo me sentia responsável por diminuir a angústia

de ginastas, eu me colocava no lugar delas. Mas duvido que a expressão do meu

rosto fosse suficiente para diminuir o peso do enfrentamento de uma competição.

Depois acabei compreendendo que o papel do árbitro é de estabelecer uma

competição justa e não de dirimir os medos das ginastas, muito menos de consolá-

las. Nosso papel é de colocar a disponibilidade do nosso olhar da mesma forma, para

todas.

Como árbitra eu compreendia que praticar GR exigia, antes de tudo, coragem.

Entrar em uma área de competição sozinha não é fácil porque é um ato de exposição,

supõe uma maturidade que meninas e adolescentes normalmente ainda estão

construindo. É um esporte que supõe beleza, uma beleza dada, objetiva e

quantificada. Por um lado cede exclusivamente à apreciação e por outro se apropria

de códigos esportivos, ou seja, para ser praticada a ginasta precisa atender a uma

matriz gestual complexa. E para arbitrar é preciso ter plena consciência disso. É

preciso ter olhar atento e acolhedor, que julga mas não deprecia, que enxerga

detalhes mas não busca defeitos que não existem.

É preciso que nos habituemos a pensar que todo o visível é moldado no sensível, todo ser tátil está voltado de alguma maneira à visibilidade, havendo, assim, imbricação e cruzamento, não apenas entre o que é tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está nele incrustrado, do mesmo modo que, inversamente, este não é uma visibilidade nula, não é sem uma existência visual (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p.131).

Concordando com Merleau-Ponty (1964/2009), refletimos sobre as análises

simplistas realizadas pelas árbitras que acreditam apenas na lógica quantificada das

regras para julgar a beleza. São muitos sentido evocados, dados principalmente pelo

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olhar revestido de carne que vem carregado de um mundo de significações as quais

se entrelaçam os sentidos da prática da própria GR, do olhar que julga e da

experiência julgada. Portanto, não há como haver linearidade nessa trama. “A visão

não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de

estar ausente em mim mesmo, de assistir por dentro a fissão do Ser, ao término da

qual somente me fecho sobre mim.” (MERLEAU-PONTY,1961/2004,p.42).

Embora as nossas autoras búlgaras possam nunca ter tido contato com a

sensibilidade da filosofia do corpo merleau-pontyana, atribuíam ao fazer ginástico uma

destinação artística que ultrapassava o julgamento das árbitras, compunham suas

séries para o público, fato que observamos pelo trecho a seguir: “Ouvi o público.

Ninguém pode ser melhor avaliador” (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.17). Com

isso, as autoras retiravam o foco da apreciação dos árbitros para o público. Pois

embora a GR precisasse ser avaliada pelo olhar especializado, aos olhos do público

as minúcias do CP não são claras, sobram as emoções cativadas pela série. A GR

faz sofrer porque é justamente esse olhar inquisidor que vai retirar o mérito da ginasta,

não bastando a doação do seu corpo como obra.

Na minha trajetória de árbitra nacional descobri mais profundamente o olhar

que julga, reproduzindo o que se compreende como correto e buscando, mesmo que

isso não estivesse descrito no CP, uma expressão artística que emocionasse.

Ademais, ficava incomodada com o fato de algumas vezes não conseguir me abster

de uma plataforma política de interesses de representação direta dos clubes e dos

seus estados. Não bastasse toda a subjetividade implícita no julgamento de uma obra

artística, essas conjunturas nem sempre eram possíveis de tomar conhecimento

antecipadamente, porque eu não vinha de nenhum clube. Infelizmente esses jogos de

interesse também compunham as nota das ginastas, extrapolando a composição de

suas coreografias e a maneira como as executou.

Esse vínculo da experiência estética que se ancora na apreciação nos remete

mais uma vez o conceito de intercorporeidade de Merleau-Ponty (1964/2006b), dado

pela penetração dos sensíveis através do preenchimento dos vazios, que enfatiza as

intersubjetividades, as culturas, as histórias, que se contrapõem aos determinismos

herdados pelas noções de naturalidade. Para Andrieu (2014) é uma dimensão

inconsciente que nos religa ao corpo e ao mundo, sendo a linguagem racional e a

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consciência secundários. Mais do que uma explicação, o emocionar-se, o engajar-se

na apreciação de uma série de exercícios ginásticos nos faz entrar em contato com

esse conceito. Porque embora a ginasta se expresse a partir de um código gestual

predefinido pelas regras, ela o faz através de combinações originais. Uma

apresentação ginástica não pode ser repetida da mesma forma, então cada vez que

se assiste ao vivo uma coreografia é a única chance de viver aquele momento. Senti

isso na apreciação dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro.

Merleau-Ponty (1952/2004) coloca que para que uma obra de arte nos afete é

preciso que se ache fora de uma existência arrefecida, satisfazendo-nos o espírito, de

modo que nem se encontre na realidade nem na ficção. A GR exprime isso porque

sua afetação nos desloca para uma fantasia etérea. A ginasta sílfide baila e maneja

seu aparelho dominando-o mesmo quando se descola do seu corpo nos altos

lançamentos com perda do contato visual. A apresentação por parte das ginastas

também retira a realidade dura dos treinamentos, fazendo sucumbir as dores e

sofrimentos que o compõem.

A apreciação ao vivo da edição dos JO corroborou para aprofundar algumas

reflexões acerca das experiências de dor e sofrimento na GR. Presenciei

apresentações irretocáveis, movimentos etéreos de corpos e aparelhos portáteis.

Algumas vezes algo dava errado e pequenas imprecisões refletiam diretamente na

quantificação dos sonhos daquelas ginastas: a nota. O olhar difuso para a câmera de

transmissão após as apresentações com erros denunciava previamente a decepção

do que estava por vir nos segundos que antecedia a divulgação dos números. A

confirmação da suspeita do pequeno fracasso vinha como um suspiro. O erro no

momento das provas classificatórias poderia eliminar a chance das finais. E o erro nas

finais poderia dar fim a chance da medalha.

Entrar numa arena olímpica como expectadora já impressiona pela atmosfera

de sonhos com que é ambientado o espaço: iluminação, decoração, sons, painéis de

led. Toda pompa possível nos faz introjectar em um local preparado para um grande

espetáculo. Nos JO tive a impressão de que o público estava acolhendo a GR sem a

pretensão de estar assistindo um torneio esportivo em que a competitividade se coloca

como um elemento de tensão. Isso, ao meu ver, “abraçava” cada ginasta ou conjunto

para apresentar sua série, porque os aplausos não escolhiam pátria, escolhiam o

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arrebatamento provocado pela beleza daquelas composições de exercícios. Houve

palmas, gritos de apoio e emoções jorrando em todas as apreciações que assisti. As

apresentações irretocáveis amarravam nossos olhos, prendiam nossa respiração,

arrancavam nossas lágrimas... E para as apresentações com erros não faltavam

manifestações de apoio. O público estava aberto à estesia do olhar.

A tática de homenagear nosso país sede ao som de músicas típicas como os

sambas escolhidos pelos conjuntos da Rússia e da Espanha faziam a plateia “ir

abaixo”. Do mesmo modo, músicas como “Vogue”26 da cantora pop Madonna, do

conjunto ucraniano, ou as folclóricas famosas dos países que se apresentavam

também provocavam reações de êxtase em quem assistia. Observar as reações do

público não especialista ante as apresentações das séries me revigorou o olhar sobre

a importância daquele momento, porque se foi inesquecível para nós, que estávamos

apreciando, não há como mensurar o valor daqueles minutos para todos os partícipes

daquele momento, sobretudo as ginastas.

Meu percurso como árbitra foi cronologicamente mais longo que os demais, os

frutos da vivência intensa com a GR podem ser observados através das ex-alunas, as

egressas, hoje adultas. Afirmar que os sofrimentos, frustrações, rejeições,

sentimentos de incompetência, arrependimento, culpa, dor pelo treinamento corporal,

cobrança, ansiedade, nervosismo e lesões criaram mulheres corajosas que

conseguem lidar com as adversidades da vida nos soa como análise simplista porque

desconsidera os demais fatores que convergem para isso (condição social, saúde,

etc). No entanto, me sinto desafiada a encontrar situações diferentes dessas pois

dentre os tensionamentos gerados pela vida em sociedade, aqueles que se referem

as negatividades da existência tem sido abnegados pela educação, mas a prática

ginástica traz muitos à tona. Sendo assim, quem praticou ginástica tem familiaridade

com eles e consegue centrar-se para enfrentá-los porque isso é comum em nossa

modalidade.

A tarefa de olhar e julgar do árbitro vai além dos jogos de poderes invisíveis,

solicitam uma neutralidade subjetiva utópica, inatingível. Para não detonar quaisquer

26 A partir do ciclo olímpico de 2005-2008, o CP permitiu as músicas contendo voz humana utilizada como instrumento, sem letras. E desde o ciclo de 2009-2012 as músicas com letras poderiam ser utilizadas em uma das quatro (4) séries individuais e em um (1) dos conjuntos. A música a qual nos referimos era a versão cantada pela cantora que a projetou.

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possibilidades de preconizar um julgamento justo, compreendemos que é necessário

ao árbitro também explorar infindáveis experiências de apreciação, principalmente da

atividade artística que se pauta no corpo em movimento, mas não só ela, mas buscar

garantir ao olhar o espetáculo do movimento.

Esse olhar julgador remete ao conhecimento de minhas próprias verdades pois

meu corpo é tecido do mundo, também é coisa, o mundo é feito do estofo do corpo,

as coisas estão encrustadas na sua carne (MERLEAU-PONTY, 1961/2004).

A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras – nem, aliás, a descida do autômato de um espírito vindo de alhures, o que suporia ainda que o corpo é sem interior e sem ‘si’. Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer...” (MERLEAU-PONTY, 1961/2004, p.18).

O olhar abraça o mundo encarnando-o, por isso pensar nessa relação entre o

olhar que julga e as experiências de dor e sofrimento na GR é tão importante para

nosso estudo. Porque grande parte do processo de treinamento da GR se dá em

função desse olhar aguçado do árbitro, que é o sujeito que transforma sua apreciação

em números que classificarão o quão uma série é melhor ou pior que a outra, um olhar

que irá valorar a beleza.

Nesse sentido, o olhar da experiência remetido por Merleau-Ponty passa pelos

sentidos provocados pela série ginástica. O árbitro nunca assiste a um trabalho

despersonalizado, assim como, o fato dele ter assumido essa posição já implica em

ter vindo de algum lugar. O olhar dele é convocado pela familiaridade com a música,

bem como, todos os sentidos despertados por aquela canção (ou não). É envolvido

também pelo encadeamento dos movimentos da narrativa proposta na série, a “ideia

guia” requerida pelo CP, que não é dada previamente, devendo ser percebida durante

os noventa (90) segundos em que a ginasta se apresenta. Não deixa ainda de ser

tocado pela nação, estado ou clube que a ginasta ou conjunto representam, o que

pode significar vínculos... Na verdade, poderíamos enumerar muitas possibilidades do

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árbitro amarrar seu olhar a uma ginasta em apresentação sendo exatamente isso que

designa o relacionamento entre as carnes.

Contudo, mesmo em face de todas as críticas realizadas em razão da

disciplinarização dos corpos, consequente controle e resistência às dores e aos

sofrimentos, também foi possível refletir que estes corpos, de modo algum, sujeitam-

se a um enclausuramento escravizado, já que encontram significações sensíveis que

não podem ser engessadas assim. Ao nosso ver, a interface artística da GR, refletida

na experiência do corpo, favorece esse processo e o relato das experiências das

ginastas aludem a sentidos que fogem completamente dessa compreensão.

Embora possamos perceber a disciplinarização dos corpos, a suplantação da

dor pela moral cristã e outras referências que se sobrepõem ao sacrifício ou a negação

dele. É preciso considerar a experiência, o corpo estesiológico, pois a dor e o

sofrimento são considerados no plano do discurso ou da sua negação ou exacerbação

e suplanta o vivido, o indivíduo. É preciso olhar para eles como coisas vividas e

portanto perspectivas. Os limites variam, não são por si só ruins ou bons. Mas há que

se pensar no corpo que sente para entendê-los. Para que possam ser compreendidos

e geridos conforme a pessoa e o sentir. Isso é uma perspectiva de Educação que esse

trabalho lança. Dor e sofrimento fazem parte da Educação pois educar significa

partilha e não se produz nada fora do indivíduo que sente.

As descrições realizadas neste capítulo, nos remeteram aos fios e sinuosidades

da filigrana, fizeram-na aparecer em generalidade, como forma. É preciso adentrar

nesse primeiro esboço para interpretá-la, perceber como esses desenhos tomam

sentido. Para tanto, é necessário olhar atento para as sinuosidades, ver os campos

de sentido que emergiram dessas experiências. Sendo assim, passamos para as

interpretações desses campos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3 – TESSITURA – FILAMENTOS DE

INTERPRETAÇÃO

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No processo de preparo dos fios, os mais grossos desenham o esboço das

formas, tarefa a qual nos debruçamos no capítulo anterior quando realizamos a

descrição das experiências vividas. Porém, os mais finos, com espessuras de

filamentos capilares, demandam mais tempo de produção, maior cuidado no preparo

e vão conferir a delicadeza e sutileza do objeto. É preciso completar os micro espaços

com os filetes que vão sendo modelados em miudezas de sinuosidades,

pequeníssimas dobras e espirais que rigorosamente vão preenchendo a forma da

filigrana já esboçada.

A filigrana da tese se desenvolve nesse capítulo na interpretação das

experiências vividas na GR, retomadas como espetáculo em fase de esmero na sua

fabricação. Sua tessitura se formula a partir dos campos de sentido suscitados nas

descrições, ancorados pela filosofia do corpo de Merleau-Ponty, além de autores que

contribuem para o entendimento das experiências de dor e sofrimento. Desse modo,

a filigrana já esboçada em esqueleto, dimensiona os fios das experiências e

estabelece desenhos.

Estruturamos o capítulo em tópicos elaborados a partir dos seguintes campos

de sentido: Corpos rasgados, Corpos modelados e Limiares. Os dois primeiros tópicos

correspondem, pelo significado etimológico, a dor e ao sofrimento, respectivamente.

Já o terceiro tópico aborda limiares entre essas duas experiências, considerando as

situações vividas.

Cada tópico toma como abertura uma referência imagética seguida de sua

contextualização, apelamos, dessa forma para o olhar e os sentidos que brotam dele.

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CORPOS RASGADOS

Imagem 5 – Ginasta Salomé Pazhava, da Geórgia na classificatória dos Jogos Olímpicos do Rio 2016

Fonte:http://www.zimbio.com/photos/Salome+Pazhava/Gymnastics+Rhythmic+Olympics+Day+14/2XqmKdShzqB

As Olimpíadas oportunizam a consagração de um atleta, o seu auge, o ápice

da sua performance. A Imagem 5, que abre este tópico, retrata um momento de salto

da ginasta Salomé Pazhava, representante da Geórgia no concurso classificatório

para as finais, na série de bola a qual pude assistir ao vivo nos JO do Rio de

Janeiro/2016. Ela apresentou-se de forma intensa, enérgica, arrebatadora, mas

surpreendeu-nos (nós, expectadores) ao finalizar sua apresentação com uma

caminhada difícil, nitidamente machucada, quase sem conseguir abandonar o tablado,

pois era perceptível que havia uma lesão. Dentro da quadra Salomé voou em salto

que ultrapassava o ângulo de 180 graus, fora de quadra a ginasta se rende à dor,

pois, embora os olhares de milhares de pessoas ainda se voltassem para ela, o crivo

dos árbitros não mais acontecia e ela poderia voltar à sua humanidade.

O exemplo de Salomé não foi o único dos JO, uma das ginastas do conjunto

chinês só conseguiu abandonar a área de competição com ajuda de outras pessoas,

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assim como tantos outros atletas historicamente revelam suas lesões em situações

competitivas.

A atleta de alto rendimento parece mesmo fugir à humanidade, pois apresenta-

se no auge de uma performance calculada. Um cálculo que se faz para o “não erro”

mas que não garante a integridade do corpo que não se rende aos números

requeridos nas planilhas de avaliação, balanças ou fitas métricas. O corpo se expressa

a partir de um treinamento mas sua sensibilidade não deixa de resvalar.

Andrieu (2014b), autor que apresenta amplos investimentos acerca dos

estudos da Emersiologia27 revela, a partir de uma investigação realizada com artistas

circenses, que a dor é muitas vezes o preço a pagar pelos movimentos realizados,

isso porque a consciência não controla a vontade de realizar um gesto técnico, então

a sensação de desempenho pode reduzir ou eliminar a dor no mesmo curso de um

movimento técnico, principalmente quando o artista já está em cena. O artista

posteriormente entrevistado garante que embora a dor seja bem presente em sua

modalidade, ele tenta se proteger um pouco, com equipamentos, mas por senti-la o

tempo inteiro, se habitua. Além disso, quase não a sente quando está no palco por

conta da adrenalina. Na verdade, ele admite que pelos danos serem apenas

superficiais, acabava nem se lembrando muito disso.

O relato das ex-ginastas em relação as dores do treinamento, seguiram a

mesma orientação do artista mencionado, sem importância quando faziam parte da

rotina de treinamentos, memoráveis quando se extrapolavam em lesões que

interrompiam a fluidez dos treinos.

Ao nos debruçarmos sobre as experiências ginásticas descritas no Capítulo 2,

emanaram-se perspectivas de dores e sofrimentos de diversas naturezas, mas, o

primeiro campo de sentido que veio à tona foram as lesões corriqueiras ao esporte de

alto rendimento. Elas foram relatadas em forma de acidentes, extrapolação dos limites

suportados pelo corpo e configurações recorrentes (causas crônicas). De toda forma,

o aspecto lancinante se manteve como ponto comum nas descrições de corpos que

viveram intensamente a dor.

27 Retomamos essa discussão no tópico referente ao Enigma, no Capítulo 4 dessa pesquisa.

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A noção de animalidade do corpo corrobora com a compreensão de que não

há como o natural se destituir do cultural, pois é na cultura que o natural se revela. A

dor se põe nesse patamar quando é analisada a partir da sua expressão. Para

compreender realmente uma dor, é preciso senti-la, para compreender realmente a

dor do outro, é preciso que ele se expresse. Há uma correnteza de duplo sentido

fluindo da animalidade à cultura que se faz através do simbólico. “O acontecimento

fisiológico é apenas o esboço abstrato do acontecimento perceptivo” (MERLEAU-

PONTY, 1945/2006, p. 469).

Nas entrevistas com as ex-ginastas, nos sensibilizamos com a intensidade dos

relatos de dor. A G3 teve a dor de uma lesão potencializada pela modificação de sua

vivência na própria ginástica. Ela se mudou de sua cidade natal para a cidade sede28

de treinamento da SBC com uma lesão crônica na coluna.

A insatisfação geral da G3 em suportar uma lesão, já recorrente em sua

carreira, em um ambiente novo, considerado por ela como estranho e hostil, parece

ter contribuído para agravar o quadro até o limite do insuportável, encerrando seu

percurso como ginasta de alto rendimento logo após os JO de 2004 em Atenas,

deixando-a três (3) meses sem conseguir andar. A coluna vertebral da G3 apresentava

uma inflamação que se estendeu por anos sem o devido tratamento, mas “estourou”

após a vivência de experiências ruins longe da família, da professora que sempre a

acompanhou, do ambiente acolhedor de sua cidade.

A dor da G3 não tem explicação puramente orgânica, nem se deu por

representação. Ela foi encarnada, no âmbito do corpo, da experiência que não pode

ser destituída do mundo, das coisas, das configurações sociais e culturais, e que

sempre atribuirão significados a ela, pois a trama corporal é descontínua e as

fronteiras entre dor e sofrimento são inerentes ao fluxo de sensações de um corpo

estesiológico.

Ao criticar a objetificação do corpo pela psicologia clássica e descrever o corpo

na fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty atribui à dor, que atinge um

determinado local do corpo, um exemplo de que este não se dá como objeto exterior.

28 A ginasta, residindo em Aracaju/SE, precisou se mudar para Londrina/PR.

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A dor está lá, como experiência, e não como um objeto externo. (MERLEAU-PONTY,

1945/2006).

Quando estou seguro de ter sentido, a certeza de uma coisa exterior está envolvida na própria maneira pela qual a sensação se articula e se desenvolve diante de mim: trata-se de uma dor da perna ou é uma sensação de vermelho e, por exemplo, do vermelho opaco em um único plano ou, ao contrário, de uma atmosfera avermelhada em três dimensões. A “interpretação” que dou de minhas sensações deve ser motivada, e ela só pode sê-lo pela própria estrutura dessas sensações (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 502-503).

E complementa: “Não existe juízo que não brote da própria configuração dos

fenômenos” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p.503). As sensações se dão

juntamente aos sentidos que estabelecemos com elas. Quando a G3 sente uma dor

na coluna que se estende por anos em sua trajetória ginástica e esta se agrava com

a mudança do ambiente se tornando mais difícil para uma jovem de dezesseis (16)

anos se aproximar da maior realização de sua vida de atleta, as Olimpíadas, a dor

parece se acumular e vibrar junto das demais dificuldades, exigindo do seu corpo, já

resistente ao treinamento, um refazer mais custoso, uma carga maior.

O vivido de uma dor é sempre pessoal e intransferível, é sempre a minha dor.

Essa afirmação é de Nasio (2008) e ratifica a de Merleau-Ponty (1960/1991) no texto

“O filósofo e sua sombra”, constituinte da obra “Signos” quando este afirma que a vida

do outro não me é dada com o seu comportamento, portanto, para que eu tivesse

acesso a ela seria preciso que eu fosse o próprio outro. A dor é solitária. “Sou eu e

ninguém mais que vivo esta cor e este som, a própria vida pré-pessoal ainda é uma

visão minha do mundo. A criança que pede a mãe que a console das dores que esta

sofre, ainda assim está voltada para si” (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p.193).

Cada um sofre à sua maneira, independente do motivo de seu sofrimento.

Todas as vezes que uma dor nos aflige, se mistura à mais antiga dor que revive em

nós. Neurônios de lembrança são excitáveis o suficiente para reavivar a dor mesmo

sem um estímulo semelhante, de ordem interna ou externa desencadeia essa dor em

outro local com menor intensidade, pois, o mais atual sofrimento somático de um

paciente é a ressurgência viva de uma dor esquecida. “É justamente essa

ressurgência viva do passado doloroso que faz a minha dor desse instante. A dor que

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sinto é realmente a minha dor, uma vez que ela carrega o estigma do mais íntimo do

meu passado” (NASIO, 2008, p.30).

Nasio (2008) destaca que essa dor imemorial se dá antes, durante e após o

nascimento e demarca outras dores a serem sentidas, de forma que toda dor se torna

uma rememoração de outra. A origem psíquica de uma dor corporal é sempre o reviver

de uma dor original, fazendo conjugar uma sensação desagradável e despertar o afeto

doloroso. Com isso, inferimos que as dores se impregnam como marcas existenciais

capazes de serem reavivadas, porque o corpo é temporal.

Enquanto corpo estesiológico, somos transpassados pelas sensações do

mundo. O corpo nem é apenas produto dessas experiências, nem capaz de controlá-

las a partir de uma racionalidade previsível. Nem somos determinações, nem caos,

somos realidades ambíguas, complexas e polissêmicas. E quando experimentamos a

dor, demarcações existenciais importantes se dão em nós, assim como não saímos

iguais de uma experiência dolorosa, podemos rememorar todas as demais surgidas

após um trauma. Natureza e Cultura, imbricadas no ser, demonstram através das

experiências de dor e sofrimento sua inseparabilidade. Mesmo que não nos demos

conta disso.

Colocar a dor apenas como mecanismo de defesa e de proteção humana

mostra-se insuficiente, ela é enigmática: se dá em membros fantasmas, passeia pelo

corpo na histeria, é silenciosa numa queimadura e lancinante num corte da pele. A

dor abre um universo de questões e de construções nas mais diversas áreas das

vertentes humanas (espirituais, culturais, religiosas, artísticas), fazendo com que se

configure do seu próprio modo (FLEMING, 2003), de um modo surpreendentemente

diferente entre os corpos, os tempos, as culturas, os gêneros, as sociedades. A dor

se constrói em mim e eu me construo com a dor.

A G1 conseguiu suportar uma forte dor no joelho, que “travou” antes da entrada

na quadra nos Jogos Panamericanos de Winnipeg em 1999, competição que projetou

a seleção brasileira pela primeira vez para os JO em 2000. G1 reuniu o treinamento

diário da dor da lesão crônica e o transformou em enfrentamento, motivada pela sua

professora/técnica.

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A dor da G1 foi suprimida naquela situação. Pela atitude de sua técnica? Pela

sua coragem? Pelo desencadeamento de reações físico-químicas? Concordamos

com Merleau-Ponty (1945/2006) quando afirma que o ser humano concreto não é uma

conexão entre psiquismo e organismo, mas o vai e vem da existência que faz com

que ora ele se deixe ser corporal e ora se dirija a atos pessoais. Esse entrelaçamento

ocorre porque “não há um só movimento em um corpo vivo que seja um acaso

absoluto em relação às intenções psíquicas, nem um só ato psíquico que não tenha

encontrado pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas”

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 130). Desse modo, entre psíquico e fisiológico há

inerências, que impedem a classificação de um distúrbio mental, por exemplo, como

psíquico ou somático.

Merleau-Ponty (1945/2006) critica a posição da psicologia clássica em

considerar o corpo apenas como um objeto que não se afasta de si. Aliás, só é objeto

porque estando diante de nós é observável, indivisível, encontrado pelos seus

movimentos, mas não se distancia nem desaparece de meu campo visual; eu não

posso desdobrá-lo sob o olhar e nunca vejo sua totalidade, ele existe comigo. “A

presença e ausência dos objetos exteriores são apenas variações no interior de um

campo de presença primordial, de um domínio perceptivo sobre os quais meu corpo

tem potência” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 136).

Sendo assim, segundo o filósofo, se a psicologia clássica tivesse analisado a

permanência do corpo próprio, poderia responsabilizar-se pela compreensão de corpo

não mais como objeto do mundo, fruto da soma de determinações de outros objetos,

mas como estrutura, antes de qualquer determinação, latente de nossa experiência

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

De acordo com o autor, a psicologia clássica erra quando objetifica as reações

do corpo (reproduzindo os métodos da ciência clássica) e desenha suas causas e

efeitos desconsiderando sua incompletude, suas ambiguidades. Mas, ao contrário das

ciências exatas como a química e a física, o objeto do qual o psicólogo falava era ele

mesmo (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

As experiências corporais não são unidimensionais, ocorrem em horizontes de

possibilidades de significações, tanto no sentido que afeta o corpo quanto do ponto

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de vista de suas reações. Somos universo de expressões e introspecções, somos

natureza e cultura. A dor não poderia fugir disso.

A experiência da G1 nos demonstra o caráter enigmático da dor, que se

escondeu por pouco mais de dois minutos na apresentação de sua performance

ginástica. Não podemos afirmar que foi racionalizada ou que sumiu por sugestão de

sua técnica, mas certamente o enigma da dor foi colocado à prova naquele momento

assim como os limiares suportáveis para a jovem.

Para Le Breton (2013b), a dor sentida não é um simples fluxo sensorial, mas

uma percepção que suscita primeiro a relação do sujeito com o mundo e da

experiência acumulada a esse respeito. “Ela não escapa à condição antropológica das

outras percepções. É simultaneamente experimentada e avaliada, integrada em

termos de significado e valor. Nunca puramente fisiológica, a dor pertence à esfera

simbólica” (LE BRETON, 2013b, p. 16).

Concordamos com a análise de Le Breton, que contribui amplamente para os

sentidos desse texto, pois realiza uma análise esmiuçada e ampla da antropologia e

sociologia da dor. No entanto, nos ancoramos na fenomenologia que considera a

natureza do corpo sua matriz simbólica. Desse modo, é preciso ampliar o simbolismo

da dor porque ela fere o corpo, machuca a carne, não se dá por representação, mas

rasga a existência.

Quando o joelho da G1 “travou” antes e no início de sua apresentação, não foi

um pensamento obstinado que dissimulou sua dor, foi a canalização da combinação

de fatores que desencadearam outra configuração fisiológica, psíquica, emocional,

existencial de reação à dor. Naquele momento, a dor que povoava seu corpo e poderia

tê-la imobilizado escondeu-se momentaneamente, mas de maneira alguma saiu de

um estágio de representação para outro.

Temos um corpo que não é objeto de pensamento, mas uma carne que sofre

quando é ferida (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015). Psíquico e fisiológico ligam-

se através de sua reintegração à existência, pois nunca se recobrem inteiramente,

ambos são orientados para uma ordem intencional, para o mundo e para uma

historicidade que dá sentido e cria sentido em si mesmo (MERLEAU-PONTY,

1945/2006).

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De acordo com Le Breton (2013, 2013b), a dor é uma incisão de sagrado no

sentido em que arranca o homem de si mesmo e o confronta com seus limites. Mas

ela é uma forma caprichosa disso, arde com uma crueldade sem nome. Se é

moralmente controlada ou se é superada, a dor amplia o olhar do homem, lembra-lhe

o valor da existência, o sabor do instante que passa. Tudo depende do significado que

o homem lhe confere. Se tira o gosto de viver que o acomete, a dor revigora de modo

contrário quando se afasta. Ela restaura o fervor de existir. É um memento mori que

traz o homem de volta ao essencial (LE BRETON, 2013b, p.20). Desse modo, a

vinculação que o sujeito institui com a dor depende da significação que ela reveste no

momento que o afeta, pois esta tem caráter simultaneamente subjetivo e social. A

maneira como o homem se apropria de seu mundo, englobando sua cultura, seus

valores e estilo dessa apropriação compõem uma trama decisiva nesse processo de

apreensão, e assim sendo, a dor se dá primeiramente como um fato de situação (LE

BRETON, 2013b).

Coadunando com a perspectiva da dor como fenômeno de situação e sua

posterior superação no memento mori, ao qual Le Breton (2013b) se refere, a G1

relata que carrega até hoje as dores do joelho fruto dos desgastes do treinamento. A

G1 atribui sentido positivo aos resquícios de sua dor porque foi às custas da dor

original que obteve suas conquistas. A experiência revestiu seu corpo tal qual uma

tatuagem existencial que se mostra visível na pele e traz as lembranças de uma fase

importante da vida. Contudo, ao comentar sobre as situações agudas dessa lesão no

joelho se utiliza do termo “insuportável”, nesse sentido, a G1 refere-se a sua dor atual

como “adorável” porque conseguiu “vencê-la” no momento em que mais precisou.

A dor nos toma por completo e por mais que seja possível compreender a

cientificidade das conexões e os caminhos dos impulsos nervosos, quando vividos na

experiência são espaçosos, ocupam a existência por completo. Uma dor de dente ou

a perda recente de uma pessoa querida não se suplantam com doses de

racionalidade, é preciso rever a existência, os casos e acasos de um corpo que sente

mesmo, é preciso criar formas de retomar o prumo, não como uma balança que volta

ao zero, mas que consiga precisar a inteligibilidade necessária, reflexiva e equilibrada

para cada situação.

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A dor não age como uma sensação que imprime um sentido e dá uma informação útil à conduta do indivíduo em relação às coisas do mundo. Ela não é uma qualidade inerente aos objetos exteriores, suscetível de ser apreendida por um órgão que lhe seja próprio. No máximo, acompanha, às vezes, uma impressão sensorial, como no caso do contato com a pele com um objeto cortante ou abrasador, mas não lhe é inerente. Nenhum órgão sensorial é especializado no registro da dor (LE BRETON, 2013b, p. 15).

Tendo em vista o caráter enigmático da dor apontado por Le Breton (2013b) na

citação anterior, e mesmo que essa análise nos leve a uma condenação da dor pela

falta de justificativas orgânicas objetivas, o que não podemos perder de vista é que a

dor vai acontecer em algum momento, porque é parte da existência. Por isso,

compreendemos que as experiências de dor não servem apenas para quem as sente,

porque muitas vezes não permitem reação, mas, que elas possam nos atentar para

nossa humanidade e nos sensibilizar para a dor do outro. A dor sendo explicada ou

não, sendo necessária ou não, nos iguala como seres que sentem e existem no mundo

por meio das sensações.

Outra experiência de dor nos foi relatada pela G4, que após um acidente de

colisão com outra ginasta durante o treinamento nas vésperas de um campeonato

internacional importante sofreu uma fissura em um dos ossos do braço, da qual não

tomou conhecimento antes da viagem, de modo que, viajou e competiu com essa

grave lesão.

O corpo não expressa respostas prontas a estímulos, porque não existem

estímulos isolados, o corpo processa as qualidades do mundo através de informações

que se decodificam nas próprias sensações (MERLEAU-PONTY, 1959-1969/2006b),

então assim como nossa existência se faz e se refaz continuamente no estreito

relacionamento entre corpo, mundo e outros corpos, modulando-se sensivelmente à

nossa percepção, a dor, mesmo se configurando historicamente a partir de

explicações conexionistas e utilitárias à sobrevivência, explicita características

polissêmicas à existência corporal, pois é exatamente na fluidez da existência que ela

reside.

Percebemos que a dor do braço da G4 não era representação, era uma

sensação dada pelo rompimento de uma estrutura corporal, agravada pela

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preocupação com o campeonato, pela responsabilidade de levar seu filho recém

nascido, por não conseguir cumprir os movimentos da série de exercícios ginásticos

suficientemente. E depois se transformou em culpa por um duplo mecanismo: a dor

não permitiu que se apresentassem bem e o fracasso amplificou o seu significado.

Esses fatos fizeram a G4 repensar se todos aqueles sacrifícios (treinar logo após o

parto, viver para os treinos de GR etc) “valiam a pena”, se a melhor decisão não seria

desistir... A desistência não aconteceu e um mês após terem se apresentado mal, a

SBC conquistou a primeira medalha de ouro em campeonatos pan-americanos, em

Winnipeg, 1999, e a vaga para participar dos JO de Sydney, em 2000.

A dor da G4 poderia ter significado a aposentadoria da ginasta, poderia ter

significado sua saída da SBC, que por sua vez poderia redirecionar os rumos da GR

brasileira, dado o marco desse resultado para o esporte em nosso país. No entanto,

potencializou a motivação de toda a equipe em superar o resultado negativo. A dor se

transformou em potência de vontade.

Nasio (2008) apresenta etapas interessantes pelas quais a dor passa, e dando

através de três fases: Dor da lesão: é real, simbólica e imaginária, há a criação de

uma imagem pela representação; Dor da comoção pelo dano: há uma sensibilização

voltada para a lesão; Dor de reagir: o curativo simbólico de reação contra a dor

intensifica-a muito mais do que a ameniza. Portanto, há um caminho delineado de

superlativação da dor em que a representação da lesão é hipertrofiada por parte do

eu. Além desse “caminho”, há a aprendizagem do detalhamento das emoções.

Sinalizam-se assim dois objetos de reflexão: o percurso emocional da dor e suas

reverberações ao longo da vida expressas pelos sofrimentos. O detalhamento

expresso pelo autor se conecta à forma como a ex-ginasta G4 relata sua experiência

da dor, não pela classificação metódica de um nível real que antecede outro simbólico,

pois entendemos que não há dissociação na experiência, mas pelo encadeamento e

enovelamento de sensações de dor, angústia, culpa e preocupação que compuseram

a situação vivida pela ginasta.

Concordamos com Le Breton (2013b) quando este expõe que na constituição

de um mundo humano de significações e de valores a dor é um dado fundador. Sem

ela o homem estaria completamente vulnerável, vitimado a um entorno que

frequentemente lhe fornece uma hospitalidade dosada. A dor acaba por proteger,

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através de uma retratação imediata, o ser humano das ameaças que pesam sobre

sua condição, pela marca que deixa na memória levando a ações mais lúcidas.

O referido autor reforça essa condição da dor que se encarna à consciência

moral condicionando-se necessariamente ao sofrimento: “Não há dor sem sofrimento,

isto é, sem significado afetivo que traduz a inserção de um fenômeno fisiológico no

cerne da consciência moral do indivíduo” (LE BRETON, 2013b, p. 15). E

complementa:

A dor não é um fato fisiológico, mas um fato de existência. Não é o corpo que sofre e, sim, o indivíduo em sua totalidade. Desarraigado do homem, o fisiológico é da esfera de uma medicina veterinária que não leva em conta a pessoa doente. A geografia confusa e meio diabólica da dor mostra o quanto a realidade do corpo remete a significados inconscientes, sociais, culturais e individuais. O corpo vivo do homem não se limita aos relevos desenhados por seu organismo; o modo como o homem o investe, o percebe, é mais decisivo” (LE BRETON, 2013b, p. 47 e 48).

O posicionamento de Le Breton (2013b) na citação anterior separa existência

de fisiologia, no entanto, no corpo estesiológico essa dissociação não é considerada,

ao contrário, a animalidade do corpo funda os sentidos existenciais. Entretanto, a

visão do autor dá destaque à percepção e os investimentos do corpo, bem como as

significações da dor, que ao nosso ver é o cerne do que discutimos em relação aos

sentidos dados na experiência.

Sentir dor significa que meu corpo é vulnerável no mundo das coisas e sentir

sofrimento significa porque minha existência é vulnerável no mundo dos humanos

(DUPONT apud NASIO, 2008, p.60). Essa afirmação pode ser questionável porque

da sensação dolorosa se reconhecem os mecanismos, mas no que se refere à

maneira de cada um viver a dor, trata-se de uma grande desconhecida para as

ciências, psicologia e até para a psicanálise (NASIO, 2008). A dificuldade de se

analisar o sofrimento, apontada pelo autor parece ainda maior porque normalmente

nos remetemos a ele como algo abstrato, não corporificado, o que, ao nosso ver é

equivocado pois corpo é existência e não há sofrimento que não seja corporal, assim

como a dor não pode ser uma representação.

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Nos deparamos na Internet com uma fotografia amplamente divulgada em sites

de ginástica. Uma menina em postura de treinamento de flexibilidade com um dos

braços enfaixado. A legenda do site de onde reproduzimos a Imagem 6 nos oferta

uma frase emblemática: “Dificuldades endurecem a mente, bem como o trabalho físico

endurece o corpo”. O endurecer da mente e do corpo destacados pela frase se

referem a torná-los mais fortes, as dificuldades tornam a minha mente mais forte

enquanto o treinamento torna mais forte o meu corpo. Ambos “endurecimentos”

aparecem nessa Imagem, a dificuldade de se treinar com o braço lesionado e o

trabalho corporal do treinamento. Dor e sofrimento misturam-se em sensações e se

ilustram através dessa fotografia.

A insatisfação da pequena da ginasta na Imagem 6 protesta ao nosso olhar

tanto pela mão esquerda enfaixada, lesionada, quanto pela expressão de choro no

rosto. Esses motivos que seriam suficientes para que uma criança não atleta não

precisasse realizar atividades que agravassem sua dor. Todavia, a prática da

modalidade prima pela perfeição, não permite intervalos, faltas, nem que se deixe de

treinar os demais segmentos corporais em função da imobilidade ou das dores de

“apenas” um deles.

Imagem 6 - Dificuldades endurecem a mente, bem como o trabalho físico endurece o corpo.

Fonte: http://vk.com/cdance 21/04/16

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Embora a legenda dessa imagem remeta a essa perspectiva motivacional,

várias interpretações podem ser tomadas, inclusive que o choro pode estar sendo

motivado pelo braço estar atrapalhando o treinamento.

Sobre isso, Andrieu (2014b) reforça que a lesão possui valor psicológico desde

que esteja relacionada com a experiência psicossomática do assunto, pois é uma

nova compreensão da interioridade e profundidade. Um dos artistas de circo

entrevistados pelo autor em pesquisa desenvolvida a partir da dor nos artistas

circenses comenta que sua lesão é um presente e um ensinamento, porque quando

ele tem uma lesão, procura soluções e a originalidade surge daí. Com um membro

lesionado, reinventam-se formas de movimentar o corpo.

No exemplo das ginastas: G3, G1 e G4, bem como, na imagem ilustrativa, o

corpo da ginasta é fragmentado segundo sua utilidade e capacidade de

potencialização, como se a dor não fosse capaz de tomar o todo e desmobilizar o

momento. Destarte, a concepção de corpo máquina habita o treinamento esportivo,

como mencionado no primeiro capítulo, produzindo arduamente enquanto o “defeito”

de um seguimento não justificar a sua parada total para conserto. Observamos que

em todos os casos relatados a dor foi realidade a ser administrada. A G3 precisou se

“dopar” de medicamentos, G1 teve a “opção” de fazer uma infiltração no joelho ou

“engolir” o choro e a G4 precisou viajar com o braço fraturado sem ter tempo de ser

consultada por um médico.

De todo modo, esse reinventar do corpo a partir dos seus usos já é realidade

na GR desde a formulação de suas regras29. Por exemplo, o CP exige o uso de ambas

as mãos na manipulação dos aparelhos quando sabemos que a maior parte das

pessoas possui dominância de uma delas.

No contexto do alto rendimento da GR, compreendemos que a atleta cria uma

espécie de carapaça contra a dor, porque treina para suportá-la nas intervenções

corporais do treinamento esportivo, ao mesmo tempo que se reinventa a partir dela. A

dor e o oferecimento ao sacrifício são representados por esse treinamento na medida

em que a atleta se torna a sacrificante que oferece seu próprio corpo ao sacrifício,

29 Na investigação desenvolvida na dissertação de mestrado, nos detivemos ao texto do CP em detrimento da beleza na GR (CAVALCANTI, 2008).

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devotando-o em nome dos objetivos do esporte. Vaz e Gonçalves (2012) colocam o

técnico como sacrificador, aquele que guia o sacrificante até o resultado esperado.

“Como se sabe, a dor não é uma ‘aliada’ do treinamento corporal, mas, do ponto de

vista subjetivo, o inimigo a ser combatido, superado, suportado, ignorado – ou ainda,

num registro mais fronteiriço, a experiência a ser glorificada” (HANSEN; VAZ, 2004,

p. 142).

Por vezes, a ginasta se vê obrigada a suplantar a dor, em outros momentos ela

busca diminuir a sua importância. Quando a dor rasga o corpo e ultrapassa os limites,

ela já não pode escolher. Para uma Educação que considere as sensações do corpo,

sobretudo as que incluem as práticas corporais, é preciso pensar que decisões tomar

perante a dor, porque, diferente de atletas de alto rendimento, pessoas que não são

submetidas a cargas altas de treinamento não conseguem suplantar a dor, pois isso

não é uma prioridade. Ou melhor, em nenhum caso a dor precisa ser suplantada

porque a integridade do sujeito deve ser uma prioridade inegociável. É necessário

compreender que na Educação é preciso considerar a pessoa que sente dor,

reconhecendo seus limites e escolhas, porque na dor o corpo também se reinventa,

assim como no prazer ou nas outras sensações.

Nas experiências relatadas transpareceram elevados limiares de dores por

parte das ginastas. Nesse sentido, compreendemos que na GR treina-se

simultaneamente a ginástica e a dor, uma fazendo parte da outra na extenuação das

capacidades do corpo, acelerando as capacidades de recuperação quando os limites

são extrapolados. Se a G3 e a G1 rememoram suas lesões se referindo ao fato de

que ainda a acompanham, foi porque seus corpos foram rasgados e se refizeram para

continuar suas vidas.

As situações relatadas nos mobilizam para pensar em dois processos de

transformação: o de quem aprecia, que observa a metamorfose de “fadas” em

meninas pelo testemunho da dor, e o de quem efetivamente sente seu corpo rasgado.

No primeiro caso pensamos que o olhar para a produto se dilata para o processo, pois

designa o intenso esforço despendido na atividade ginástica. No segundo caso, vive-

se intensamente o presente, elevando o patamar de limites ou sucumbindo ao

insuportável. Nos dois casos interfere-se nas sensações do corpo, seja através da

apreciação ou na existência rasgada pela dor, elucidam-se experiências educativas.

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A dor intensa, que não se destitui de sua carga moral, se configura como

experiência existencial sem fuga. Porém, os limites de suportabilidade e intensidade

se constituem na própria experiência, como as ginastas nos confessaram. Todavia,

no treinamento da GR as dores e sofrimentos não se resumem aos corpos rasgados

das lesões, pois se trata de uma modalidade de gestualidade aprofundada pelas

técnicas de corpo que se voltam para os modelos de aparências e gestos. Nesse

sentido, os sacrifícios do corpo permeiam a constituição da performance esportiva

ginástica, a qual, abordaremos no próximo tópico.

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CORPOS MODELADOS

Imagem 7 – ginasta Yana Kudryavtseva n classificatória dos JO do Rio de Janeiro, 2017.

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/511088257695192625/

A Imagem 7 diz respeito à pose inicial do exercício individual de arco da ginasta

russa Yana Kudryavtseva, na etapa classificatória dos JO de 2016, no Rio de Janeiro.

Série a qual também tive oportunidade de apreciar in loco. Consideramos latentes na

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imagem vários elementos representativos da discussão a qual esse tópico se destina,

acerca dos corpos modelados na GR.

Após os JO, em sua rede social Instagram, a ginasta relata de forma pública e

emocionada sua participação.

Isso acontece no esporte, você estabelece a meta de toda a vida, você não vai ao jardim de infância nem a escola, você não sai a noite com os amigos, e não vê entes queridos, você estava em treinamento, em competições, você tenta, porque você sabe que muitas pessoas te amam, todo o país, a pátria, e que você está fazendo tudo para ser o primeiro. Amigos, fãs, família, treinadores, perdoem-me se não atendi às suas expectativas, mas eu lutei até o fim, eu tentei, honestamente, eu estava machucada, eu estava dura, muitas vezes solitária, mas eu fui adiante, em seus nomes. É de prata mas com as minhas lágrimas, meu sorriso e seus aplausos brilha como o ouro. Quero agradecer Elena Lvovna, que me transformou em uma vice-campeã olímpica, e, claro, muito obrigado, respeito ilimitado a nossa mãe em comum, Irina Viner, por ter visto em mim um talento, investiu seu coração e alma em mim e me deu uma chance para me tornar única. Eu amo todos vocês muito, e, claro, graças aos meus pais! mamãe, pai, eu te amo” (tradução nossa da rede social Instagran oficial da ginasta).

Chamamos atenção para três sentidos emanados por Kudryavtseva. O primeiro

diz respeito a Imagem 7 em si, que capta um momento da vice-campeã olímpica de

GR, com todas as características que volteiam os corpos e gestos da modalidade

latentes na imagem. A ginasta é magra, longilínea, não há nada em sua aparência

que se desvie da beleza requerida pela GR.

O segundo sentido diz respeito à minha apreciação. Considerada a melhor

ginasta do mundo naquele momento, suas apresentações não cativaram o público

tanto quanto a sua colega de equipe que se sagrou campeã, a também russa

Margarita Mamun, e a ucraniana Ganna Rizatdinova, preferida pelas apreciadoras da

RG. A meu ver, Kudryavtseva não apresentou erros graves, mas parecia

desconectada de envolvimento com o evento. Ao assistir suas séries, imaginei que

sua medalha seria de bronze.

O terceiro sentido foi suscitado pelas suas declarações. Antes de ler aquelas

palavras julguei a apatia que a ginasta demonstrava como uma forma de indiferença.

Mas a partir do momento em que ela se revelou, percebi que meu julgamento foi

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insensível perante um contexto do qual eu deveria ter proximidade. A ginasta

expressou sua dor, seu cansaço e sua responsabilidade excessiva por já ser

considerada campeã antes de entrar em quadra. Ao ler suas confissões na Internet

me toquei da sua humanidade, da possibilidade dela não estar bem perante todas as

pressões sofridas por uma atleta olímpica russa.

No Capítulo 1, quando nos referimos aos contornos da GR e da dor no corpo

estesiológico, nos empenhamos também em delinear os contornos estéticos da GR a

partir da sua beleza e especificidades. Compreendemos que a prática se pauta em

uma estética objetivista, consequentemente, em modelos pré-concebidos.

Reforçamos aqui que tais características imprimem experiências de dores e

sofrimentos nas ginastas a partir das nuances da beleza almejada pelo modelo de

corpo necessário e cultivado, assim como da beleza dos gestos realizados. De fato,

essa dimensão do sofrer por não corresponder a um modelo pré-estabelecido de

corpo não se dá apenas na elite esportiva, se reproduz nas outras instâncias,

sobretudo quando a prática se volta para as competições. No meu caso, acompanhou

por toda a trajetória de ginasta, criando conflitos internos que se refletiam em

apresentações catastróficas.

O corpo magro, esguio, típico da GR, não é apenas uma exigência de forma.

Interfere também no desenho do movimento. A Imagem 8 se trata de uma página do

CP, em sua versão mais recente (2017-2020), mais especificamente uma tabela de

saltos em que na primeira coluna, da esquerda para a direita apresentam-se os saltos,

como devem ser, na segunda coluna, ou coluna do meio, mostram-se pequenos

desvios nas formas que não os invalidam, mas se penalizam pela alteração da forma.

E na terceira coluna, da direita, são exemplificados desvios que fazem com que os

saltos não sejam pontuados em uma série e ainda haja descontos por terem sido

executados com falhas graves nas formas30.

30 Essas penalizações podem ser acrescidas de outras a depender de como se deu a inicialização e

finalização do salto, de como o aparelho estava situado e ainda pela falta de altura (FIG, 2017-2020)

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Imagem 8 – Os desvios nos saltos permitidos pelo Código de Pontuação

Fonte: Print da página 36, subtítulo 8.3 de diretivas sobre o Grupo Corporal Salto, no Código de Pontuação da FIG, ciclo 2017-2020, disponível em: http://www.fig-

gymnastics.com/publicdir/rules/files/rg/RG%20CoP_2017-2020_e_January%202017.pdf

Observemos que os modelos de movimento exigidos pelo CP não são

negociáveis, pois a beleza descrita está previamente estipulada pelo texto do CP da

modalidade e nesse documento estão prescritas as exigências técnicas previamente

uniformizadas, buscando uma avaliação objetiva (CARVALHO, 2012).

A aparência dos corpos da GR acompanha a padronização dos seus

movimentos sendo, muitas vezes, motivo de sofrimento de ginastas que, angustiadas

em tentar atingir ou manter os padrões requeridos, se submetem a intervenções

extremas ou se afundam em distúrbios psicológicos e doenças psicossomáticas. A

ginasta sofre quando se distancia do modelo, quando se vê fora do que precisa ser.

NASIO (2008) aborda a dor de uma forma interessante para constituir nosso

raciocínio. O autor considera que a série de induções provocadas pela dor corporal

ou pela dor de amar (pessoa, coisa ou valor) é a mesma. Ele avalia que o ser humano

tende a manter fisiologicamente seu equilíbrio homeostático e a dor desequilibra esse

controle. Sendo assim, a dor tem caráter prejudicial, mas não totalmente destrutivo

por conta de um mecanismo de inibição formado pela rede de neurônios que faz com

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que a carga energética se dissipe por essa rede sem ameaçar a integridade do sujeito.

Assim, o autor admite que a dor é sempre representada pela expressão sensível de

uma perda, sem diferenciar mecanismos psicológicos de biológicos. A dor, nesse

caso, é um fenômeno corporal complexo de descontinuidade, que retira o sujeito do

prumo e o reorganiza.

E acrescenta:

A dor é um fenômeno misto que surge entre corpo e psique. Quando

estudamos a dor corporal, por exemplo, constatamos que, deixando de

lado seus rigorosos mecanismos neurobiológicos, a emoção dolorosa

explica-se essencialmente por uma perturbação do psiquismo (NASIO,

2008, p.13).

Embora a citação de Nasio faça supor uma dualidade corpo/psique, algo que

refutamos pelas referências que utilizamos nesse trabalho, traz a importância do

elemento da perturbação que não está vinculado aos processos biológicos isolados.

A representação de um ferimento, por exemplo, faz mostrar a natureza psíquica da

dor corporal: “Porque a resposta a uma agressão física não é apenas de ordem

fisiológica, consiste também e principalmente em um deslocamento de energia no seio

da rede de representações psíquicas constitutivas do eu.” (NASIO, 2008, p.36). A dor,

nesse caso, é gerada pela forte valorização da representação em nós da coisa à qual

estávamos ligados (parte do corpo ou ser que amamos) e da qual estamos agora

privados. Portanto, a dor “é a expressão sensível de uma superestimação reativa da

representação da parte ferida do corpo, e a dor psíquica, a expressão sensível de uma

superestimação igualmente reativa da representação do objeto amado e perdido”

(NASIO, 2008, p.39).

As falas de todas as ex-ginastas trazem o controle da massa corporal como um

elemento inerente à prática da GR. Sendo assim, a magreza está para a GR tal qual

a técnica corporal correta, são peculiaridades que se somam mas não se bastam

sozinhas. Se o treinamento diário, prolongado e eficiente preconiza a técnica corporal,

para alcançar a magreza requerida outras intervenções ainda são necessárias,

balizadas principalmente por um rígido acompanhamento nutricional. Para tanto, o

controle disciplinar permeia não apenas expedientes do ginásio de treinamento, mas

assombram todo tempo vivido pelas ginastas.

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A G2 relatou que durante a rotina de treinamentos da seleção de GR passou

por duas situações que a marcou profundamente. Na primeira se restringia, além dos

alimentos calóricos, o consumo de água por conta das quatro (4) pesagens realizadas

por dia. Na segunda, acompanhou a chegada de uma nova ginasta diagnosticada com

bulimia. Já a G3 declarou que sofreu com os distúrbios alimentares provocados pelo

estado de ansiedade em que se encontrava quando se mudou para a cidade da

seleção permanente de conjuntos, de modo que buscava reproduzir os

comportamentos (ingestão de remédios laxantes, jejuns prolongados, estratégia de

“cuspir” segundos antes de subir na balança) das ginastas mais velhas, considerados

por ela como “loucuras” que trouxeram consequências (dores no estômago) até os

dias atuais.

A G3 foi uma ginasta que relatou não ter grandes problemas com o peso antes

de participar da SBC, mas, a mudança de sua estrutura de vida modificou seus hábitos

e sua relação com os alimentos. Merleau-Ponty (1945/2006) exemplifica através da

anorexia, que algumas doenças não ocorrem por danos fisiológicos nem por falta de

consciência, vontade ou uma simples recusa à vida. Ocorrem por uma recusa de um

futuro arrancado pela efemeridade dos fenômenos interiores. Desse modo, a

exigência da adequação a um modelo de corpo a todo custo pode desencadear

mecanismos de sofrimento que reverberam em doenças de ordem existencial.

Ao contrário dos outros sentidos, através do paladar ingere-se uma parcela do

mundo que adentra os tecidos orgânicos. Juntamente com a visão e o olfato, além

das texturas sentidas na boca, o alimento vai deixando sua marca sensível no nosso

corpo. O paladar é produto de como os homens se situam na trama simbólica, é

produto da história situando-se entre o subjetivo e o coletivo (LE BRETON, 2016).

A estesia enquanto comunicação sensível também se dá na alimentação, o ato

de se alimentar congrega apreciações, cheiros, sabores, texturas, temperaturas, algo

valiosíssimo na nossa vinculação com o mundo. Há relações afetivas que compõem

o ato de se alimentar que vão criando uma plataforma de hábitos, gostos, costumes

ao longo da vida, modificar isso bruscamente traz sofrimento. Destituir-se

completamente dos sabores aos quais se deseja e se aprecia faz podar

possibilidades, faz redimensionar a existência exclusivamente para a ginástica. Por

outro lado, como relatado pela G1, as meninas que conseguiam equilibrar o

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relacionamento com o alimento, não associado a um mecanismo de compensação do

desprazer, vivem a GR com mais tranquilidade, bem como, as técnicas de movimentos

tais quais são exigidas na modalidade.

A GR é uma prática do visível (que não se destitui do invisível pois se dá no

campo perceptivo corporal), que exige corpos jovens, modelados, esguios, como pré-

condição e em manutenção, um esporte para meninas e jovens magras, habilidosas,

ritmadas, flexíveis. Embora Laffranchi (2001), autora que foi técnica da SBC entre os

anos de 1995 e 2004 (LOURENÇO, 2015), destaque sua predileção pela GR praticada

por mulheres adultas, já que numa idade mais avançada estas conseguiriam

expressar mais maturidade artística, no Brasil as atletas abandonam ainda jovens a

rotina de treinos. Isso é destacado pela G3 em seu relato:

o Brasil tem essa tendência de, tá mais velha, não presta, entendeu? Vem uma mais nova... só que lá fora não é assim entendeu? Tem atleta que chega até os 29 anos, 30 anos fazendo ginástica, aqui você não vê isso. Então infelizmente, infelizmente mesmo, o Brasil precisa mudar nisso porque a experiência conta muito, conta muito muito muito muito. E isso é muito desgastante (G3).

O sofrer por não estar no peso ideal, não poder se alimentar da maneira que

se deseja se amplifica para todos os padrões que possam impedir a carreira ginástica.

Em alguns casos, esses entraves que causam distúrbios alimentares nas ginastas

mais experientes, já estão presentes no universo das mais novas. Vieira et all (2005),

em estudo realizado com a Seleção Brasileira de Conjuntos Juvenil31 de GR, em 2005,

identificou que as atletas perceberam o contexto esportivo competitivo como mais

estressante do que motivador; esta afirmação acentuou-se a partir da fase de prática

motora em que o estresse competitivo para o rendimento se intensificou. Para compor

esta categoria, estas meninas tinham entre doze (12) e quatorze (14) anos.

De todo modo, a experiência de viver a padronização de gestos e corpo traz

sofrimento e se dá em comum acordo entre quem pratica e quem dirige a prática.

31 De acordo com o Regulamento Técnico disponibilizado pela FIG, as idades para ginastas juniores na GR, que antecede a categoria oficial adulta (a partir dos 16 anos), deve ser entre 13 e 15 anos. (FIG, 2017).

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Entendemos que as intervenções deveriam se ater em não tornar essas pré-condições

mais difíceis.

Gestos não se bastam em padrões, são linguagem: expressão, interrogação e

resposta. O corpo é simbólico, não por representação, mas no seu sentido

fundamental, pois a percepção e o movimento simbolizam. “A comunicação do visível

é continuada por uma comunicação no invisível avesso de nossos gestos e de nossa

fala” (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b, p.354). A padronização dos corpos e dos

gestos na GR não sucumbem suas potências expressivas, pois não tiram seu

significado por parte de quem pratica.

Durante uma apresentação da série o arrebatamento é intenso: dores,

processo sofrido, nada mais parece importar, nem para quem demonstra, muito

menos para quem aprecia. A dor e o sofrimento são negados em favor do produto

final, que, na execução da série só importa enquanto experiência estesiológica. É o

momento da ginasta esgotar as possibilidades expressivas do seu corpo, do público

silenciar e se deixar levar pelo encantamento dos movimentos corporais, é momento

de tensão para as árbitras contabilizarem, validarem, avaliarem a performance

coreográfica, e o momento da técnica acompanhar a obra que construiu junto com a

ginasta.

Dessa maneira, os modelos de corpo e de gestos descritos no CP de GR não

abarcam a totalidade da sua linguagem expressiva “A linguagem, em seu sentido

semântico, parece não dar conta desse universo colorido das sensações que

configuram a estesia do corpo, haja vista a multiplicidade de sentidos históricos,

culturais ou linguísticos, por exemplo, atribuídos a uma cor, a cor vermelha”

(NÓBREGA, 2015, p. 79). A autora se remete a descrição que Merleau-Ponty faz

sobre significações possíveis da cor vermelha na obra “O visível e o invisível”,

ressaltando que o tecido da carne sustenta, duplica e alimenta as cores, no movimento

do corpo e das experiências vividas. Nesse sentido, entendemos que a relação da

ginasta com a GR sempre vai suplantar os padrões. Os códigos gestuais são

elementos que constituem a linguagem da GR, como letras do alfabeto. Mas a

organização desses códigos, acompanhados por uma intenção, um tema, uma

música, somados a expressividade do corpo da ginasta criam uma maneira única de

expressar essa linguagem, assim como uma poesia escrita por meio das letras do

alfabeto.

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Admitimos, desse modo, que o sentido dessa beleza padronizada se dá de

forma mais ampla e se traduz, na prática, de acordo com Merleau-Ponty (1959-

1960/2006b) com a estesia do corpo, acessada pelo movimento a partir do esquema

corporal, O esquema corporal é um centro de perspectiva, espacialidade do corpo e

motricidade (NÓBREGA, 2016), que funciona como organização sensorial de nossa

vida. “O esquema corporal relaciona-se com o corpo e sua expressividade no espaço,

sendo ao mesmo tempo um agenciamento interno e uma abertura existencial”

(NÓBREGA, 2015, p. 76). Meu corpo apreendido a partir da noção de esquema

fornece-me o resumo para a leitura do mundo. Um dos sentidos do esquema corporal

consiste no movimento do corpo e sua consequente percepção, fazendo aparecer o

sujeito da percepção e sua expressividade.

O esquema corporal é o circuito, organização, relação com o mundo e consigo

na generalidade (MERLEAU-PONTY,1959-1960/2006b). Quando vivenciamos um

código gestual novo nos reorganizamos, nos permitimos conhecer mais sobre as

amarras e potências do nosso existir, mas, enquanto essas potências nos

propulsionam para a transcendência na elaboração desse esquema, as amarras

podem nos limitar a ponto de encaixotar e engessar nossos limites, podem nos fazer

conhecê-los apenas, podem reverberar em acessos de desprazer e sofrimento, ou,

como no caso da continuidade da prática da GR, podem incitar a suplantar e suportar

esses sofrimentos. Decerto, essa reformulação do esquema corporal proporcionado

pela vivência estesiológica, presente também nas experiências com as práticas

corporais, amplia a relação do ser-mundo, pois, consentir-se, nas intervenções

corporais, perceber a si próprio e o mundo é nos tornar diferentes a cada momento.

No texto da obra “Prosa do mundo”, que versa sobre a ciência e a experiência

da expressão, Merleau-Ponty (1949-1951/2002) nos esclarece que a virtude da

linguagem está em passar despercebida, de espírito para espírito, inflamando-os,

sendo os códigos necessários para me fazerem compreendê-la servem de conexão,

já me são familiares. Porém, para que haja uma combinação de sentido único que me

convoque, é preciso que alguém torça os sentidos, recombine-os, para criar ecos e

nos acasalar com a obra.

Com isso, entendemos que a gestualidade modelizada da ginasta se constitui

sua linguagem mas não se restringe a ela. Os saltos, exercícios de flexibilidade, giros,

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são como uma escrita, são como que uma linguagem falada, que na literatura

Merleau-Ponty (1949-1941/2002) diz ser formada por signos, palavras, obras. Mas,

há ainda a linguagem falante, que nos emociona, conecta, ecoa, nos conecta com

uma apresentação de ginástica.

Merleau-Ponty (1949-1941/2002) chama de expressão essa indissociabilidade

entre forma e conteúdo, uma troca contínua entre os corpos, uma conexão entre

visíveis e invisíveis. Nessa compreensão, a GR, através de sua gestualidade, opera

uma possibilidade de expressão do corpo.

Quando se passa da ordem dos acontecimentos mundanos para a expressão

artística, não se troca de mundos, ao contrário, os dados do mundo tornam-se o

combustível da expressividade. Desde que trabalhados, aprofundados e até libertos

dos pesos que os deixavam opacos. O conhecimento sobre eles, porém, não

substituem a experiência da obra, assim como as facilidades e dificuldades da vida

são o seu alimento (MERLEAU-PONTY, 1952/2004).

O esquema corporal, nesse contexto de construção da obra ginástica, é dado

fundador a partir de sua estrutura libidinal e sociológica, movida pela

intercorporeidade. Do mesmo modo que a estesiologia emerge do movimento da

totalidade do corpo, o desejo do homem emerge do animal (MERLEAU-PONTY,1959-

1960/2006b). A animalidade, aquilo que nos anima, exalta nossos desejos,

propulsiona aquilo que nos move. O desejo da expressão do corpo em movimento

instigado pelas intervenções das práticas corporais transgridem a lógica da dor e do

sofrimento como fatores de afundamento da existência, pois aprende-se

experimentando-os, que são contingências da vida e dos contextos de educação.

O corpo na dor e no sofrimento não prevê modelo, é potência poética, é obra

de arte. Quantos livros, poemas, músicas não foram compostos na estesia do

sofrimento, quando nada mais importava do que a perda, a saudade, a rejeição, a

angústia? De acordo com Nóbrega (2016, p.144), a estesia do corpo como obra de

arte,

Provoca reflexão e expõe o limite das análises abstratas sobre o corpo e sobre o mundo, buscando suspender os determinismos de toda

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natureza. Nesse movimento de compreensão, a afetividade coloca-se como elemento dramático da existência e da operação expressiva da comunicação.

Na estesia, as sensações do corpo o tomam e não há espaço para

predefinições, sobretudo modelos. Por ela, se pode compreender as múltiplas

significações expoentes da experiência vivida através de uma compreensão erótica

que foge da ordem do “eu penso” para povoar o “eu vivo, sinto, amo”, erotismo que,

em concordância entre Freud e Merleau-Ponty não é apenas o genital, nem um instinto

naturalmente orientado para fins determinados, mas compõe uma despossessão de

nós mesmos rumo ao sentir mesmo, ao inconsciente (NÓBREGA, 2016). É importante

mencionar que esses dois autores (Merleau-Ponty e Freud) apontam uma perspectiva

teórica fundada numa crítica ao corpo concebido como instância biológica (CAMINHA,

2015). Nesse caminho, o uso biológico do corpo é ultrapassado pela relação direta

que a linguagem possui com a cultura (NÓBREGA, 2016).

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1945/2006) já investia nas

reflexões sobre o corpo sexuado, que não sucumbe à idealização nem naturalização

das experiências de dor e prazer. Nos cursos sobre a natureza (MERLEAU-PONTY,

1959-1960/2006b), o autor aprofunda para as discussões sobre o desejo como

relação com o mundo, de um corpo estesiológico que afeta e se permite afetar.

Nóbrega (2010) aponta que a afetividade constitui-se como mobilizadora da

vida pessoal e como operação primordial de significação e de comunicação.

A afetividade não é um mosaico de estados afetivos fechados em si mesmo, mas uma abertura ao mundo das relações. Trata-se de uma compreensão erótica que não é da ordem do entendimento, da consciência, mas da ordem do desejo que liga um corpo a outro corpo seja por amizade, amor, ódio ou rejeição. Merleau-Ponty recorre aos estudos de Freud para dizer que a sexualidade não é um automatismo, sendo preciso reintegrá-la à existência (NÓBREGA, 2016, p.40).

A afetividade mobilizou as práticas descritas nas experiências desse estudo:

as minhas, as das ex-ginastas, as da seleção búlgara pelas vozes de Róbeva e

Rankélova (1991). Embora os sofrimentos causados no processo contínuo de

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modelização de corpos e gestos fossem paulatinamente sendo construídos ao longo

de cada uma de nossas experiências, a medida que as ginastas da GR se

aproximavam do alto rendimento, a disponibilidade para intervenções mais árduas iam

aumentando e os vínculos afetivos que começaram a se construir ainda na infância

iam se estreitando.

Portanto, como reduzir a GR a uma prática que opera por modelização de

gestos e corpos se as experiências descritas nesse trabalho permeiam os afetos, os

vínculos, relações de desejo, pertencimento, escolhas? Que olhares são esses que,

destituídos dos contextos esportivos do alto rendimento da GR pendulam para a

condenação e para quem vive o contexto pendulam para a naturalização?

Como interpretamos nesse tópico e no anterior, os corpos na GR se rasgam

nas lesões e se modelam em formas e gestos previamente concebidos, sentem dor,

no sentido etimológico mas também sofrem, no sentido de suportar. Contudo, as

fronteiras dessas experiências não são tão claras porque denunciam uma relação

estesiológica com o mundo, em que natureza e cultura se organizam em filigrana,

mobilizadas por uma relação libidinal com o mundo, não por sobreposição, mas em

confluência, numa só tacada.

No próximo tópico adentramos nos limiares e similitudes dessas experiências

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LIMIARES

Imagem 9 - Ginastas choram após a divulgação da nota

Fonte: http://www.telegraph.co.uk/sport/olympics/gymnastics/9063858/London-2012-Olympics-Britains-rhythmic-gymnastics-team-appeal-backed-by-Nadia-Comaneci.html em 21/04/2016

Os sacrifícios dos corpos nos treinamentos talvez não sejam mais dolorosos

que a decepção de não se conseguir o resultado esperado quando os investimentos

são muito altos. Aliás, as dores corporais certamente não se compadecem e não dão

trégua para o fracasso.

Sobre essa dor que povoa o fracasso de uma apresentação, temos uma

imagem que capta e ilustra uma dada situação. A Imagem 9 nos revela o choro de

ginastas do Seleção Britânica de Conjuntos no ano de 2011. Quatro (4) atletas

sentadas em uma estrutura que é montada para que elas tomem conhecimento da

nota após a realização de uma série em uma competição. Uma das ginastas está de

cabeça baixa, outra pousa uma das mãos no rosto, já chorando, uma terceira está de

rosto virado como se estivesse mirando a colega que chora, e a última, da ponta

esquerda parece evitar o choro. De modo geral, todas estão visivelmente

decepcionadas com o resultado.

As reações das ginastas evidenciam que nem sempre o sofrimento acomete os

corpos na intensidade dos seus treinamentos, nem nas estruturas lesionadas. Pois,

pior que uma torção na articulação ou uma distensão muscular é constatar que a nota

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da apresentação saiu bem mais baixa do que o esperado, porque parece invalidar os

sacrifícios anteriores. É como dar adeus a uma classificação, a um pódio, a

participação em um campeonato importante. Na Imagem 9, as ginastas do conjunto

britânico choram por não atingirem a nota de índice para participar dos JO que ainda

seriam sediados em seu país no ano de 2012. Na reportagem que acompanha essa

imagem na internet, destacam-se os anos de treinamento, investimento dos pais e os

muitos sacrifícios dispendidos.

O choro aparece porque as emoções resvalam, mas não podem ser

interpretados imediatamente sem compreender suas motivações. Dessa maneira,

designar as formas de sentir como dor ou sofrimento, bem como, suas intensidades,

são tarefas do próprio sentir. Qualquer classificação de sensações só se chancela

nelas próprias. De acordo com Merleau-Ponty (1945/2006), nossa percepção nos

solicita a considerar como centro do mundo a paisagem que ela nos oferece.

Abordamos os corpos rasgados e os corpos modelados nos dois tópicos

anteriores, os primeiros se identificam, pelo significado etimológico, com a dor, os

segundos com o sofrimento. Nesse terceiro tópico abordamos os limiares entre dores

e sofrimentos, considerando as situações vividas.

A ginasta nega a dor quando precisa, mas também aprende com ela. A escolha

entre uma ou outra alternativa se dá no limite do suportável, justamente sobre quando

se designa dor ou sofrimento.

Lançamos nesse tópico um tráfego tênue (mas anunciado desde o início) entre

dor e sofrimento. Para tanto, a psicanálise freudiana nos fornece pistas importantes,

sobretudo porque Merleau-Ponty constrói a noção de corpo estesiológico a partir de

contribuições de Freud em seus escritos, que dirimem as divisas entre corpo e espírito,

fundando uma nova compreensão sobre o homem ligada ao inconsciente assim como

aos projetos da sexualidade e suas pulsões (NÓBREGA, 2015).

Nóbrega (2016) atenta que, embora a concepção de corpo de Freud ainda

estivesse ligada a uma filosofia mecanicista referente aos médicos do século XIX, ele

se empenha em demonstrar, a partir de uma sexualidade que se introduz como

espírito no corpo, e como corpo no espírito, que não há um centro espiritual e uma

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periferia de automatismos, coadunando com a interpretação merleau-pontyana de

osmose entre sexualidade e existência atestada pela autora supracitada.

Nos cursos sobre A Natureza entre 1959 e 1960 Merleau-Ponty trabalha com

temas psicanalíticos, afastando-se ainda mais da filosofia do sujeito, uma vez que

compreende a percepção como modo de desejo. A partir do vislumbre de percepção

e desejo operando de modo análogo, há sempre o outro que convoca o sujeito do

desejo, desejante. Desse modo, o desejo é inquietude do ser humano, animador do

esquema corporal, insatisfação, falta, lacuna, que a dimensão libidinal do corpo

fenomenal zela preencher (LIMA NETO, 2016).

Nóbrega (2016) destaca que, segundo Merleau-Ponty, a libido freudiana não

se realiza apenas no sexo, mas numa dimensão inevitável porque nada de humano é

incorpóreo.

No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de processos dos quais os órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade naturalmente orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. É a sexualidade quefaz com que um homem tenha uma história (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p.219)

“A psicanálise não está destinada a suprimir o passado, mas a transformar os

fantasmas em produtividade poética” (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 115). A

psicanálise é cara para o filósofo porque traduziu as demandas do corpo. Os

sofrimentos e dores sempre constituirão a existência do ser, mas considerar essas

experiências em sua totalidade, em Gestalt, é um passo importante para ruminá-las,

transformá-las, entender como, por quê, para que e o que pode ser realizado a partir

delas.

Na teoria da Gestalt o estímulo é o desencadeador de uma configuração,

estruturação que reestabelece as propriedades estruturais exteriores (MERLEAU-

PONTY, 1959-1960).

O organismo é Gestalt do organismo articulado, que é processo fundamental, em relação ao qual os outros fatos, como conexão

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nervosa, são secundários. Se queremos compreender o animal, não devemos, portanto, recorrer à função nervosa da condução, como faz uma anatomia estática. O organismo não é somente uma central telefônica. Para compreendê-lo, é preciso incluir aí o inventor e o telefonista (MERLEAU-PONTY, 1956-1957/2006b, p. 236).

As interpretações psicanalíticas não são simplistas, é preciso observar a partir

das significações sexuais dos sintomas, desenhado em filigrana, em relação às

dimensões da existência (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

Uma nova maneira de compreender a percepção é oferecida pela Gestalt. Segundo essa teoria, a percepção é compreendida através da noção de campo, não existindo sensações elementares, nem objetos isolados. Dessa forma, a percepção não é o conhecimento exaustivo e total do objeto, mas uma interpretação sempre provisória e incompleta (NÓBREGA, 2008, p. 141)

Andrieu (2014b) refere-se a Merleau-Ponty para considerar o corpo como

sistema de captura do mundo, fundador da unidade de objetos perceptíveis, sendo a

totalidade do campo corporal que constitui a percepção. A Gestalt, nesse contexto,

implica que o corpo é uma unidade e a percepção um experiência global, e a relação

entre mim e os outros é uma interação entre dois sistemas de condução com mundo.

Ao elaborar o roteiro de entrevistas com as ex-ginastas da SBC nos

preocupamos em criar uma atmosfera de confiança para que elas se sentissem

abertas a falar sobre suas experiências, sobretudo que pudessem relatar suas

sensações em viver tão intensamente a GR. De antemão, nenhuma questão foi

elaborada em relação à proximidade com a família durante a época em que fizeram

parte da seleção, entretanto, todas as ex-ginastas se referiram a isso como um fator

determinante para que se sentissem bem na cidade onde habitavam com suas

famílias, ou estranhas, nos casos de distanciamento.

Damásio (2004), cujas referências são as neurociências, trafega pelos estudos

acerca das emoções e sentimentos, e afirma que as relações sociais de fundo

humanístico e amoroso são essenciais para a regulação da vida, sobretudo

assimilação e controle, de forma mais serena possível, das emoções e sentimentos

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gerados pelas oscilações dos comportamentos de prazer e dor. Observamos que esse

autor traz a Dor e o Sofrimento como emoções que alicerçam sentimentos, sendo

estes estabilizadores do equilíbrio da vida. Essa compreensão é essencial para o

entendimento da função dessas experiências para a humanização do sujeito. Nos

tornamos mais humanos quando vivemos essas experiências e compreendemos que

elas nos transformam. No entanto, não estamos sadicamente afirmando que as

experiências da dor e do sofrimento em si são positivas, isso seria acreditar numa via

única, reducionista, algo inadmissível para a pretensão de um corpo estesiológico

porque implica num julgamento prévio. Confirmamos sim que, de qualquer forma,

repercutem na transformação de um corpo que é corpo pelas suas sensações.

Compreendemos que os sofrimentos e dores da GR não povoam somente a

fadiga do treinamento buscando os modelos, nem as rupturas das lesões. É preciso

enfrentar as oscilações emocionais propiciadas pelas avaliações constantes nos

treinamentos, que passam pelas seletivas, pela escolha das ginastas que irão

competir em cada evento, pelos resultados nas competições. Para continuar na

prática, é necessário refazer-se a cada situação negativa e avançar no trabalho, pois

o tempo é controlado e limitado.

As ex-ginastas G1 e G4 compuseram a SBC por um tempo prolongado, entre

quatro (4) e sete (7) anos. Ambas moravam na cidade em que a SBC era sediada e

após cada dia de treino retornavam para seus lares. Já a G2 e a G3, que precisaram

mudar de cidade, permaneceram por dois (2) anos ou menos, respectivamente. Não

por coincidência, a família é retratada por todas elas como sustentáculo da relação

emocional que estabeleceram com a GR nesses períodos.

Poder chegar em casa significava poder viver outro mundo cheio de afeto e

diferente dos desafios repetidos na maior parte do dia. As ex-ginastas que retornavam

às suas famílias poderiam movimentar suas existências, recuperar o fôlego e

recomeçar no dia seguinte. E como Merleau-Ponty destaca na situação a seguir,

podiam dar um intervalo, fechar-se em seus mundos vivendo uma outra realidade em

que não precisavam ser ginastas, poderiam ser meninas.

No próprio instante em que vivo no mundo, em que dedico a meus projetos, a minhas ocupações, a meus amigos, a minhas recordações,

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posso fechar os olhos, estirar-me, escutar meu sangue que pulsa em meus ouvidos, fundir-me a um prazer ou a uma dor, encerrar-me nesta vida anônima que subtende minha vida pessoal. Mas, justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento da existência em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 227-228).

Enquanto isso, as ex-ginastas (G2 e G3) que tinham famílias em estados

diferentes viviam diuturnamente a rotina da seleção, mesmo no descanso. E foi algo

relatado com pesar por elas, que intervalavam seus treinos recobrindo-se de

saudades, destinando o pouco tempo que restava para os estudos, o repouso e o

choro. As duas se preocuparam em detalhar o quanto essa situação era difícil.

Nessa perspectiva, é preciso esclarecer que nem toda angústia e desprazer se

qualificam como dor. Nasio (2008) traz essa diferenciação entre sofrimento e dor

pautada pela perda brutal que a caracteriza. Se a perda não é brutal, não falamos de

dor, mas de sofrimento. Nasio (2008) cita Damásio ao caracterizar a dor como um

afeto desagradável diferente de desprazer, pois, de acordo com este autor, a dor é

ruptura, a cessação brusca da cadeia pulsional de prazer e desprazer (DAMÁSIO

apud NÁSIO, 2008).

A psicanálise aludida por Merleau-Ponty também nos traz contribuições sobre

as diferenciações entre dor, sofrimento e desprazeres que ratificam a atenção com

que os estudiosos procuraram ter ao lidar com a natureza dessas experiências.

Fleming (2003), confessa que, devido a importância que Freud dava a

expressão verbal por parte dos pacientes, esse foi um provável motivo para que ele

abandonasse a questão da dor, difícil de ser narrada, e se debruçasse no sofrimento

sob a forma de angústia. Pois, de acordo com a autora, quando suporto consigo

avaliar melhor minhas queixas. A autora revela que a geração de pensamento é um

mecanismo que Freud aponta para tolerar o desprazer. “Se não gerar pensamento há

intolerância e a atividade mental visa a fuga, o escape, à frustração” (FLEMING, 2003,

p. 45). Sendo a diferença entre as reações e perante a intensidade do desprazer uma

categorização que também discerne dor e sofrimento.

Freud (2011) em sua obra “O mal estar na civilização”, escrita pouco antes da

crise mundial de 1929, aponta problemáticas inerentes à vida em sociedade, das

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quais, segundo ele, somos todos reféns. Essas problemáticas, contidas nas

oscilações entre prazeres e desprazeres, podem gerar sofrimento. Considerando que

o sentido da vida tem como norte a felicidade, esta, por sua vez, aponta para o

princípio do prazer. Um prazer que é capaz de se constituir a partir da ausência de

dor e desprazer ou a partir da vivência de fortes prazeres. De acordo com o

entendimento do autor, nesse segundo caso, só podemos fruir intensamente o

contraste, não o estado, o que é um problema porque mesmo que se motive pelo

princípio do prazer, quando este se torna constante, se amorna.

Freud (1929/2011) nos leva a refletir sobre esse mal-estar na civilização,

revelado pela moral cristã, que suscita a culpa e torna a ética humana impraticável,

porque exige uma perfeição que vai de encontro aos impulsos considerados por ele

como naturais dos seres humanos, vai de encontro aos desejos de prazer. Ele atenta

que quanto mais fortes sejam as repressões, mais as pessoas se frustram, mais se

tornam neuróticas, psicóticas e prejudiciais à sociedade.

O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos (FREUD, 1929/2011, p.20).

Para nos defendermos desses três lados do sofrer, podemos apenas evita-lo,

deixando a busca do prazer em segundo plano, seja satisfazendo todas as

necessidades irrestritamente, o que colocaria a cautela em segundo plano, seja

distanciando-se completamente das relações humanas, através da quietude (FREUD,

1929/2011). Este autor considera que todo sofrimento só existe na medida que o

sentimos através de arranjos no nosso corpo. Portanto, os métodos mais

interessantes de prevenção do sofrimento são aqueles que buscam influir no próprio

organismo. Freud (1929/2011) enumera tais métodos como: o uso de entorpecentes,

o deslocamento da libido para o trabalho psíquico e intelectual, a religião, o

rompimento de todos os laços no caso do eremita, a arte de viver o amor sexual, a

fruição da arte e a atitude estética com a vida.

Observa-se que todos os métodos citados por Freud (1929/2011) aliam-se a

perspectiva da noção de estesia, de comunicação sensível do corpo pelas

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experiências, sejam estéticas, do desejo, da vertigem. Ressaltamos aqui que dentre

os métodos apontados, a fruição da beleza e da arte são interessantes porque

preconizam a possibilidade de uma educação pelas sensações. Aliamos esse

pensamento à perspectiva poética da existência em Merleau-Ponty (1945/2006)

quando este afirma que “a modulação existencial, em lugar de dissipar-se no instante

mesmo em que se exprime, encontra no aparato poético o meio de eternizar-se”

(MERLEAU-PONTY, 2006/1945, p.209). Concordamos veementemente que o olhar e

a produção da beleza no mundo vivido nos remete aos sentidos da estesia e nos

demarca nessa existência, contudo, essa demarcação também se faz possível nas

oscilações entre os prazeres e desprazeres, inclusive nos momentos de dor e

sofrimento.

Como dito, a fruição da beleza, assim como os demais métodos, amenizam o

sofrimento do organismo, porém, Freud (2011/1929) afirma que esse organismo

nunca será completamente dominado, assim como a natureza, pois aquele como

parte desta, será sempre uma construção em trânsito, com limites de adequação e

desempenho. O sofrimento faz parte do processo civilizatório e, irrefutavelmente,

compõe a existência.

Ainda sobre essa relação de diferenciação entre dor e sofrimento, Fleming

(2003) sintetiza as ideias de Freud: ambos são provocados pelo aumento significativo

de estímulos e tensões mas são experiências diferentes em que a dor consegue se

manifestar de forma paralela ao desprazer. O desprazer (ou o sofrer), correspondente

ao investimento de lembranças, sendo mais representação que sensação, já a dor,

enquanto ruptura, é mais sensação que representação. A dor, ao contrário da

angústia, não é sinal de alerta, é resposta que reage ao risco de implosão das

estruturas, tendo a função de resguardá-las. É importante esclarecer que essa

interpretação é da autora em questão (FLEMING, 2003) e embora nos ajude a situar

os limiares entre dor e sofrimento, ao expor a perspectiva de sofrimento como

representação vai de encontro ao imbricamento homem-mundo merleau-pontyano.

De fato, o limiar entre as experiências de dor e sofrimento é sutil, pensamos

que através dos investimentos no corpo estesiológico, essa sutileza possa ser

desenvolvida. Consideramos que nada além do corpo pode verificar a veracidade e

intensidade da sua dor e do seu sofrimento: o que para mim pode ser uma dor

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insuportável, para o outro pode ser apenas uma situação desagradável. “Nenhuma

fórmula definitiva pode conter a relação íntima do homem com sua dor, a não ser o

fato de que toda dor remete a um sofrimento, e, portanto, a um significado e a uma

intensidade próprios de cada indivíduo em sua singularidade” (LE BRETON, 2013b,

p. 22).

Em vista disso, a dor que a G1 sentiu no joelho em muitos momentos da sua

trajetória ginástica perdeu, por ordem de importância dada por ela no relato, do

sofrimento por cometer uma falta grave nas provas finais de uma das séries32 dos JO

de Atenas em 2004. A ex-ginasta revela que levou alguns meses até que pudesse

comentar sobre a situação sem gerar um profundo sofrimento. Inclusive, se

emocionou durante a entrevista quando relatou detalhes dessa experiência: “se eu

começar a conversar daí vou começar a chorar porque eu passei por fases...” (G1)

Le Breton (2013b) afirma que os vínculos entre sofrimento e dor são frouxos e

estreitos ao mesmo tempo, sendo significativos, estando em conformidade com os

contextos e abrindo a possibilidades para uma antropologia dos limites. A dor reveste

múltiplos significados ao seu sentir, gerando também uma multiplicidade de

sofrimentos, o que por sua vez expõe uma equação dada pelo sentido vivido pelo

indivíduo e seu contexto. Esse autor considera o sofrimento como forma de viver a

dor. Por esse pensamento, dor e sofrimento compõem contingências da existência.

A G1 treinou por quase uma década na SBC tendo que suportar a sua dor

crônica no joelho, mas não treinou o suficiente para superar um erro em uma final

olímpica. O treinamento de alto rendimento na GR é realizado para o não erro, para

se aproximar da perfeição do exercício perfeito. Dessa maneira, encarar uma situação

adversa que demarcava a despedida das quadras da ex-ginasta foi apontado como o

momento mais difícil de sua carreira, carregado de culpa e mágoa. G1 ainda relatou

que os repórteres não a deixaram em paz após o acontecido e trataram a situação

com crueldade.

A G1 confessa que se culpou por anos até se recuperar do erro nos JO, a ponto

de não querer sair de casa e de causar preocupação em sua família.

32Na série mista de arcos e bolas, o conjunto brasileiro errou um dos movimentos obrigatórios de alto valor comprometendo a sua pontuação final. O movimento consistia na troca de aparelhos por lançamentos, nesse caso, houve perda e saída da área de competição.

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Foi muito difícil eu passar por isso, é... Foi complicado, minha mãe achava que ía ter que me levar e me internar porque eu ficava em casa, entrei em depressão, mas é o que me falaram, sabe? Depois eu entendi, é que a história da ginástica tem o meu nome, entendeu? Ficou marcado meu nome. Tudo o que a ginástica conseguiu até ali, eu consegui junto. Saí do último pra parar no oitavo lugar. Então assim, depois que passou uns três anos eu comecei a pensar, entendeu? (G1).

Para Le Breton (2013b) a dor é elemento que sempre está contida em um

sofrimento, é imediatamente a agressão a ser suportada. Nesse sentindo, o

sofrimento é a ressonância que cada um, intimamente, expressa de uma dor, o

sofrimento “é aquilo que o homem faz de sua dor, ele engloba suas atitudes, isto é,

sua resignação ou sua resistência a ser levado num fluxo doloroso, seus recursos

físicos ou morais para resistir diante da prova” (LE BRETON, 2013b, p.227).

Assim como a dor, o sofrimento nunca é apenas o prolongamento de uma

alteração orgânica, mas tem um sentido para quem sofre por sua causa, embora não

necessariamente se saiba a causa. Ele dá nome a extensão do órgão ou da função

que estejam alterados para toda a existência. Contudo, o sofrimento é mais ou menos

intenso conforme as circunstâncias. “Existe um jogo de variações da dor ao

sofrimento. O sofrimento é uma função do sentido que a dor reveste mas nunca se dá

por uma ligação consequente àquilo que o gerou, pois, quando grave pode ser

mascarado, ao passo que sendo mínimo pode deter o indivíduo (LE BRETON, 2013b).

Portanto, é preciso reforçar que dor e sofrimento enquanto experiências são

incógnitas difíceis de serem relatadas. Porque ao mesmo tempo que todos sentem-se

com propriedade para narrar as dores da vida, porque já viveram, poucos se lançam33

nas experiências dolorosas.

A maneira como vivemos dores ou sofrimentos é capaz de recalca-las,

sucumbi-las, superá-las ou até propaga-las pela vida inteira. De todo modo, não há

33 Há os que se lançam na experiência da dor, a exemplo dos artistas da body art. “A body art é uma técnica de corpo que marca o exterior, com o intuito de exteriorizar a subjetividade e buscar sempre novos sentidos para o corpo e sua existência” (MEDEIROS, 2009, p. 111). “A body art pode ser realizada através de várias formas de expressão que englobam tatuagens, piercings, escarificações, lacerações, fabricação de cicatrizes em relevo, stretching, implantes subcutâneos, suspensões” (MEDEIROS, 2009, p. 113).

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outra forma de lidar com uma situação ruim do que vivendo-a, enfrentando-a, por isso

essas experiências nos transformam e os processos educacionais precisam

considera-las.

Os corpos rasgados da GR trafegam pelos limites, chegando a extrapolá-los

através das lesões, enquanto que os corpos modelados sofrem para se enquadrarem

nas formas previamente estabelecidas de corpos e de gestos. No entanto, os limiares

entre as dores dos rasgos e os sofrimentos dos moldes se mesclam no vivido, porque

o corpo estesiológico é inacabado, imprevisível e se constrói no mundo através das

próprias sensações, entrelaçando visível e invisível nesse relacionamento enigmático

com a dor e com o sofrer.

Para a Educação é preciso considerar o enigma do corpo, tanto de quem sente,

quanto quem está junto, porque a dor e o sofrimento possuem uma lógica e um tempo

próprios que muitas vezes tomam toda a existência do ser e repercute ao seu redor.

Portanto, pensando sobre esse enigma sob as óticas do corpo vivo, da empatia, da

temporalidade e da liberdade que refletimos sobre a educação no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 4 - CORES - EDUCAÇÃO COMO

ENIGMA DO CORPO

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Chegamos ao momento de avançar para a última parte da produção da nossa

filigrana, momento de visualizar o todo, de tomar decisões, decidir se sua forma será

plana ou curva, se curva, aproveita-se a maleabilidade temporária adquirida através

de calor usado para soldá-la para também moldá-la. Após o molde, é realizado seu

acabamento.

As interpretações, nesse momento da tese, a partir dos campos de sentido

emergidos, tomam a forma de reflexões para a educação. A nossa filigrana assume

aspecto policromático, absorvendo as cores da empatia, da temporalidade dos corpos

gloriosos e da educação como enigma.

A filigrana da tese se redesenha nesse último momento através de

provocações e transformações. O desenho se esquematiza assumindo os gradientes

de cores que se atenuam ou texturizam conforme as experiências de dor e sofrimento

são recebidas e reverberam na existência de quem sente.

Como nos três (3) capítulos anteriores, as descrições, interpretações e

reflexões ainda se constituem como escopo dos sentidos suscitados nas experiências

da GR. No entanto, é preciso apontar pistas para o entendimento de como estas nos

reportam para o conhecimento de si, para experiências educativas e as

ressignificações delas próprias. É preciso localizá-las numa educação que parta do

corpo das sensações, aprofundando nossas relações com essas experiências.

Mencionar termos como dor e sofrimento para pensar a Educação remete

imediatamente às violências, punições, castrações, constrangimentos, castigos,

sacrifícios, dentre tantos outros termos vinculados à história cultural da dor e da

disciplina (MOSCOSO, 2015; FOUCAULT, 1975/1987), enfim, palavras consideradas

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sujas, que, embora façam parte da constituição da educação formal, atualmente são

combatidas em qualquer contexto educacional que preserve uma perspectiva

humanista. De antemão, não estamos fazendo alusão a nada disso. Como dito desde

o início, a nossa abordagem não intenciona negar a dor e o sofrimento, muito menos

naturalizá-los, afirmamos que hão de compor a vida de todos e por isso precisamos

lidar com eles.

Dor e sofrimento situam-se, como quaisquer experiências corporais, na

tessitura entre animalidade, mundo e outros corpos, são experiências de um corpo

encarnado no mundo. “A dor não é apenas um fato fisiológico, mas um fato da

existência. O ser humano sofre por inteiro, a topografia confusa e meio infernal da dor

mostra a realidade do corpo estreitamente ligada a significados inconscientes” (LE

BRETON, 2013b, p.48).

A dor e o sofrimento operam em solidão na relação encarnada entre sujeito e

mundo. Só que o mundo também é formado por outros sujeitos, também sensíveis,

fazendo vibrar as experiências em comunicação, principalmente quando há um projeto

em comum. Por isso, iniciamos nossas reflexões a partir da partilha de sensações

dada pela empatia, pela penetração dos sensíveis.

A empatia é a ligação invisível das estruturas da filigrana, pois se dá nos estritos

espaços entre os fios das experiências, reforçando toda a estrutura.

EMPATIA

Eu tive uma técnica maravilhosa, sabe assim, que me ensinou a viver, que me deu tudo ali pra eu andar com as minhas pernas, entende? Se não fosse a B, eu acho que eu não seria a “D” também, ela sabe disso porque eu falo. Eu vivi a maior parte do meu tempo com ela, e ela que abriu as portas pra mim, eu não treinaria com outra pessoa porque ela me formou como ginasta e como pessoa na vida, então acho que é isso... (G1).

Na citação acima, a ex-ginasta remonta a afetividade do relacionamento com a

técnica que a formou, da infância até a SBC, e com a qual possui uma relação de

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amizade que perdura até os dias atuais, mesmo após ambas terem saído34 da

seleção. Assim, transparece na fala da G1 uma empatia que se aprofundou com o

passar dos anos e a transformou não apenas na prática da GR, mas que trouxe

reflexos para a sua existência.

A relação empática entre técnica e ginasta pode se consolidar numa amizade,

como é o caso relatado pela G1, o que se torna nítido para qualquer observador

descomprometido. Mas compreendemos que é muito mais estreita porque se dá de

espírito para espírito, de forma invisível. Posturas, respirações tranquilas ou

ofegantes, um movimento brusco, uma série treinada com erros incompreensíveis ou

qualquer sinal não identificável por quem não está engajado nessa relação pode

parecer suficiente para que técnicas e ginastas se comuniquem silenciosamente e

tenham noções precisas dos sinais expressivos da outra, do que a outra está sentindo.

Quando se alude a uma equipe de conjunto, essas relações ficam mais

complexas porque se tratam de relacionamentos construídos em tempos, histórias,

significados e afinidades diferentes. Nessa tese, com as entrevistas às ex-ginastas da

SBC, nos deparamos com relações empáticas em vários níveis.

Para compreender o fenômeno da empatia, tratado como a união, ou fusão

emotiva com os outros seres ou objetos (ABBAGNANO, 2012), mais uma vez, nos

ancoramos em Merleau-Ponty (2006b), sobretudo no conceito de empatia

desenvolvido nos cursos sobre A Natureza proferidos entre os anos de 1956 e 1960.

O autor aborda a empatia (Eifühlung) hursseliana como ideia que surge da reabilitação

da Natureza: “por essa ideia de articulação com uma verdade comum que os sujeitos

continuariam, mas que não seriam os iniciadores” (MERLEAU-PONTY, 1956-1957, p.

129)

Nos cursos ministrados em 1959 e 1960, Merleau-Ponty (2006b) se refere a

Natureza e logos do corpo humano. Nessa oportunidade já enfatiza a empatia como

a posição de um sujeito estesiológico, não projeto de outro “eu penso”, mas um corpo

percipiente antes de pensante. A empatia, nessa compreensão, é uma relação de Ser,

atributo da carne, do esquema corporal, que por sua vez, já nos dá a empatia com o

ser percebido e com os outros corpos. Isso significa que o sensível nos move, nos

34 Técnica e ginasta saíram da SBC no mesmo ano, 2004.

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introjecta reciprocamente uns aos outros e nos interliga, sendo a empatia um

debruçar-se sobre as experiências do outro.

O conceito de empatia nos leva a sensibilizar o olhar para a dor e o sofrimento.

Não a empatia taxada como compaixão, nem como forma de imaginação de caridade,

mas como a sensibilização do olhar de um corpo que se projeta porque é estrutura

libidinal e percebe porque deseja (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b), o contrário

de uma anestesia que nos abstém do exercício de se colocar no lugar do outro.

Modular a empatia através de intervenções educacionais sensíveis é essencial para

que possamos viver em coletividade.

De acordo com Merleau-Ponty (2006b), Hurssel reabilitou a ideia de natureza

“por essa articulação com uma verdade comum que os sujeitos continuariam, mas que

não seriam iniciadores” (MERLEAU-PONTY, 1956-1957/2006b, p. 129). Nessa

compreensão, todos os humanos já nascem com essa possibilidade de se reconhecer

enquanto seres, em sentimentos e expressões, na comunicação com o esquema

corporal do outro. Porém, a continuidade desse ímpeto empático se dá no constituir

das próprias experiências de partilhas sensíveis, em comunicação.

Desse modo, a percepção é empatia de um projeto inicial, sendo a vida da

linguagem uma reprodução em outro nível das estruturas perceptivas que, todavia,

mas não se separam dela. Há um logos do mundo natural do qual se apoia o mundo

da linguagem (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b). Assim, a expressividade se

subsidia na animalidade, mas se propaga na dimensão da linguagem.

A empatia com o mundo, com as coisas, com os animais e com os outros

corpos explica a atividade do corpo estesiológico (MERLEAU-PONTY, 1959-

1960/2006b) e se refere a uma espécie de projeção motora, ou afetiva. Possui origem

metodológica na palavra pathos – passio, sofrimento ou paixão causada, remetendo

ao cristo sofredor. No grego se traduz por um gesto, e não por outra palavra, por

exemplo, quando apertamos as mãos, ou uma bola de cera, o que resta é o pathos.

Diz respeito a uma dimensão de passividade e de receptividade, principalmente de

receptividade (LIMA NETO, 2016).

Como já lançado no desenrolar desse estudo, o que chamamos de passividade

não diz respeito a receptividade de uma realidade causal ou estrangeira, e sim a um

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ser em situação, que recomeça o tempo todo, antes do qual não existimos

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

Formas profundas de empatia normalmente são vividas quando determinados

eventos ocorrem com os nossos objetos de afeição, sejam pessoas, animais, enfim,

viventes. Nesses casos, a dor e o sofrimento do outro toma grandes dimensões. Uma

mãe que chora ao ter um filho doente, não sofre por pena, ela deseja sentir a dor e se

curar junto. É preciso, no entanto, desnaturalizar essa atitude, porque não é um

exemplo a ser aplicado universalmente, pois envolve uma anterior compreensão das

significações e das relações maternas. Ou seja, a empatia constituída entre mãe e

filho parte de uma construção, de um movimento de vinculação aos outros e ao mundo

do qual todos temos em potencial, mas que se aprofunda nas idealizações sobre

gênero, no desejo de ser mãe, na espera pela cria, nas relações desde o nascimento.

Não se nasce com um instinto pronto para ser mãe, mas a natureza do corpo permite

que isso aconteça, assim como as relações existenciais com o mundo contribuem

para construção desse potencial.

Do mesmo modo, não se nasce professor/professora/técnica, se aprende a ser.

Nesse aprendizado, dando vez e voz ao entrelaçamento sensível com o mundo o

professor pode seguir um modelo ou colocar suas sensações em jogo. E, sendo

sensível aos seus alunos, pode organizar suas intervenções, sua metodologia, sua

forma de ensinar, encarar o conhecimento e lidar com o outro empaticamente, porque

essa empatia já existe como condição de ser. Tendo como referência os saberes

produzidos é preciso estar atento às formas de aplica-lo, ou mesmo, criar outros

modelos de ensinar.

Na obra de Róbeva e Rankélova (1991), a técnica Neska Róbeva revela-se

empática às necessidades emocionais das ginastas, narrando momentos em que

precisava interagir de forma diferente com cada uma, sendo isso essencial para que

pudesse respeitar os comportamentos, atitudes e temperamentos que cada uma

expressava nos treinos e principalmente em situações competitivas. Porém, uma das

situações nos parece bastante representativa: Neska coloca que quando uma de suas

ginastas teve problemas com o peso, levou-a para casa e juntas, “passaram fome” até

que ela chegasse ao peso considerado ideal. Ao nosso ver, sua estratégia empática

foi levada ao extremo e a própria autora reconhece isso ao relatar outra situação em

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que, ao fazer o mesmo, descobriu que a ginasta, durante a noite, pulava uma janela

de altura considerada perigosa para acessar alimentos.

Como Lima Neto (2016) bem destacou, a empatia diz respeito a uma dimensão

de receptividade, dessa forma, implica em um preparo que, a exemplo do que Róbeva

e Rankélova (1991) acabaram surpreendentemente descobrindo, não pode ser

inconsequente. Isso porque a dimensão da receptividade, do ponto de vista do

professor, se extrapolada, pode se transfigurar em vulnerabilidade.

Outro destaque acerca da relação de empatia reforçada por Róbeva e

Rankélova (1991) são as reações do público que assistiam as apresentações

búlgaras. O calor, as palmas, o silêncio, os gritos eram meticulosamente investigados

pelas autoras para avaliar os pontos fortes e fracos de suas coreografias, ginastas,

músicas, movimentos originais, dentre outros aspectos.

Entendemos que como público, ter empatia na apreciação de uma série de GR

significa alargar e deslocar o olhar que se fissura do produto para o processo, para se

ater as dores e sofrimentos que constituem a sua beleza. Isso não significa se

compadecer e previamente considerar a ginasta como uma sofredora digna de

compaixão, significa valorar o momento, acolher o seu trabalho, se render as suas

propostas de movimento e aplaudir os seus esforços.

Merleau-Ponty (1945/2006), ainda na Fenomenologia da Percepção, obra

escrita dez (10) anos antes do autor se deter ao conceito de empatia, afirma que

percebe o outro enquanto comportamento, pelo seu luto ou pela sua raiva, por

exemplo, e das condutas que os acompanham. Isso sem precisar consultar nenhuma

razão interna já que esses comportamentos dizem respeito a variações de ser no

mundo, em que não se pode dividir corpo e consciência, de modo que elas se

apresentam pelo outro e pela conduta de quando são percebidas. De qualquer

maneira, o comportamento do outro não é o outro porque seu luto ou sua raiva nunca

tem o mesmo significado para quem as vive e para quem não as vive. Para o outro

essas são situações vividas, para quem está junto, situações observadas. Nesse

caso, por um movimento de amizade é possível ou não estar junto, mas ainda assim,

continuarão sendo os comportamentos do outro.

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As experiências de dor e de sofrimento só se vivem por quem as sente, são

verdades íntimas. No entanto, como Merleau-Ponty (1945/2006) destaca na citação

anterior, por um movimento de amizade é possível se engajar nelas aprofundando a

empatia que, de antemão, já compõe as penetrações dos sensíveis. A partilha não

diminui a dor, mas o cuidado comove e se constitui como um amuleto de confiança,

tal qual um objeto que se morde numa situação de dor extrema, ou o alento de um

abraço sincero durante um luto.

Na GR apresentar-se sob o crivo de diferentes olhares é um ato de coragem

da ginasta. A professora/técnica cúmplice se liga à ginasta e se apresenta junto, o

público torcedor silencia e vibra a cada acerto de movimentos, assim como as árbitras

o exercício ginástico que apreciam cuidadosamente. Na fluidez dos olhares de quem

aprecia e de quem os enfrenta, a comunicação sensível se consuma. Assim, além da

ginasta não está só, a compreensão desse imbricamento de energias é importante

para minimizar a ansiedade, pois erros e sofrimentos podem se dar em decorrência

dessa relação.

O relato da G4 também revela sua cumplicidade em relação a sua

professora/técnica:

Nossa, é tanta coisa, é gratidão, eu sou grata, acho que a gente tem que ser muito grata a todo mundo que nos fez, nos formou, principalmente a minha técnica B, que eu sou o que sou graças a ela, (G4).

O olhar reveste o mundo de carne (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015). O

olhar da técnica, como relatado pela G4, prepara, coloca suas expectativas nas

ginastas, espera que elas se presenteiem com a melhor execução de uma

apresentação. Porém, isso nem sempre coincide com o olhar do público e dos árbitros.

Durante uma apresentação os olhares solitários da professora/equipe técnica e

colegas se multiplicam e se revolvem de diferentes sentidos. A ginasta se reveste de

carne como obra de arte viva, que se move, causando sensações em diversas

instâncias e sinergias. E reage diante disso tudo porque sua carne também reveste

seu mundo de competição. Faz parte do treinamento esse ensaio de coragem.

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O efeito desses olhares encarnados e empáticos nem sempre são positivos

nem motivam uma reação corajosa por parte da ginasta, não por falta de “força de

vontade”, mas por conta das conexões que podem estar fragilizadas. Indiferença ou

hostilidade entre professora/técnica e ginasta parecem dificultar o processo, situação

revelada pela G2, com pesar. A ex-ginasta acredita que as dificuldades de

relacionamento entre os membros da equipe técnica, sobretudo a professora, é uma

situação que pode se encaminhar facilmente para uma lesão ou para o aumento de

peso da ginasta, pois desequilibra sua autoconfiança. Destaca ainda que toda

professora, principalmente as que são responsáveis pelas equipes nacionais, precisa

de um bom suporte psicológico para conseguir lidar com as adversidades dos treinos.

Entendemos que estarem abertas a modelação da empatia, à receptividade, é um pré-

requisito para professoras assumirem um projeto desses, pois, embora esta seja a

figura responsável por traçar o caminho, a via não é única e a ginasta também precisa

estar aberta.

Evidência disso é que nas entrevistas com as ex-ginastas essa abertura à

receptividade e acolhimento entre as colegas transpareceu através de vários

aspectos: uma relatou que suas principais amigas não estavam dentro do ginásio e

ficou ainda mais difícil quando houve renovação da SBC e ela teve de ser a mais

experiente de todas. Outra se referiu às colegas com quem conviveu por dois (2) anos

como uma espécie de família e, uma terceira, revelou que suas melhores amigas,

durante toda sua vida, sempre foram da GR. Observamos, nesse sentido, vínculos,

afetividades, relações empáticas em níveis diferentes.

Voltando para as relações com a técnica, a G3 teve atuações internacionais

tanto na SBC quanto representando o país na modalidade individual. Ela destaca duas

relações opostas com as professoras. No individual considerava muito respeitosa sua

relação com a técnica, muito próxima a uma relação de mãe e filha, então tudo o que

acontecia no treinamento não saía, de acordo com a ex-ginasta, da normalidade.

Havia no máximo uns “gritinhos” aqui, uns “chorinhos” ali, mas nada que a pudesse

deixar triste. Entretanto, o período que passou na SBC foi apontado como bastante

difícil pois sentia diferenciação entre os tratamentos dados às ginastas e achava que

havia necessidade de mais diálogo, mais atenção, de modo a tornar tudo mais viável

para todo mundo, para que as ginastas pudessem ter uma carreira mais longa na GR.

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Se por um lado a G3 é grata com a técnica que a acompanhou durante sua

carreira no individual, por outro se ressente pelo período que esteve na SBC quando,

longe da família, com lesão agravada, teve problemas com o peso e com dificuldades,

conquistou sua vaga olímpica. Em um contexto de estresse, entendemos que a falta

de abertura repele a confiança que deveria ser cultivada pelas partes envolvidas.

Merleau-Ponty (1945/2006) destaca que meus fatos existenciais são

reconhecíveis através das expressões emocionais do outro, pois este não as constitui.

Nesse sentido, essas evidências são possíveis de serem percebidas por mim porque

minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si, já que não sou transparente para

mim mesmo. Somos seres ultrapassados pelo mundo e que podemos nos ultrapassar,

procuro enxergar no outro uma sensibilidade que coadune com a minha.

Nos cursos sobre a Instituição e a Passividade, Merleau-Ponty (1954-

1955/2015), tematizou a Instituição do sentimento, sobre a qual, encontramos

algumas similitudes com essa intensa relação que se estabelece entre técnica e

ginasta.

A instituição do sentimento é verdadeira para quem sente, mas nunca é uma

verdade em conformidade, como algo natural ou obra do destino. O outro é espelho

da minha decisão, minha resposta é segundo o que ele fale. Cada coisa dita recebe

apoio dessa resposta, contudo, a resposta tem efeito de milagre, predestinação (1954-

1955/2015). Isso aparece quando a empatia é tão forte, tão imediata, que dá-se a

impressão de que se conhecem há um longo tempo.

Merleau-Ponty (1954-1955/2015) prossegue com sua reflexão. O homem é um

feiticeiro para o homem, ele esquece que o outro, como ele, tem liberdade para ir e

vir, para se confiar ao destino. Ele vê no outro correspondência pré-ordenada e

esquece que a liberdade do outro é como a sua. Isso é uma miragem da vida comum,

que se tem por essa dupla ilusão. Em verdade existem duas vidas que se constroem,

cada uma livremente.

Essa visão de Merleau-Ponty (1954-1955/2006) acerca da instituição dos

sentimentos, nos interessa para pensar a Educação pautada pela empatia porque

caracteriza essa mania que os homens possuem de imobilizar o outro enquanto se

coloca em constante aprendizagem. De fato, tanto os pré-julgamentos quanto o

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esquadrinhamento do outro em definições pode dificultar as possibilidades de ser

empáticos e o estabelecimento das relações. Nas vidas que se constroem,

observamos que ambas se subestimam em relação à liberdade da outra. Nas relações

entre técnica e ginasta, a empatia não pode ser unilateral, mesmo considerando que

é a técnica, a adulta, que possui formação para tal, e quem planeja as intervenções

pedagógicas.

É preciso lembrar que linguagem é objeto cultural que desempenha papel

essencial na percepção do outro, fazendo com que coexistamos através de um

mesmo mundo (MERLEAU-PONTY, 1945/2006). Por isso, um olhar, uma palavra, um

abraço ou qualquer porta aberta ao afeto que se encontre em sintonia comigo é

caminho para segurança, é porto seguro para partilhar sensações. Se reconheço no

outro expressão hostil, o circuito de cumplicidade dos afetos encontra barreiras e não

aprofundo a empatia.

Observar uma série ginástica do mais alto nível não nos confronta com o

processo doloroso de se atingir o resultado final, ao contrário, nos desloca para um

momento de leveza, harmonia, em que a ginasta, magra, reta, limpa, etérea exerce

seu clássico ofício de nos seduzir na continuidade de seus movimentos, da sua

expressividade rítmica e no virtuoso manejo de seu aparelho. Por isso, não há outra

maneira de compreender o doloroso percurso sem desdobrar o olhar para as

entrelinhas, sem experimentar suas possibilidades corporais, sem ouvir dos sujeitos

como se sentem em sua prática ou sem apreciá-los nesse decurso. Conhecer a beleza

do processo amplia nosso mundo, enriquece o nosso campo de percepção, humaniza

nossa experiência, sofistica a nossa apreciação, nos aproxima, nos faz reconhecer,

compreender e admirar os caminhos tortuosos percorridos pelo outro.

Ao longo da história da arte alguns artistas transformaram suas experiências

de dor em arte, a exemplo da pintora mexicana Frida Kahlo. De forma bem diferente

da GR a linguagem dos quadros de Frida nos suscita o movimento provocado pela

empatia, nos provoca um misto de emoções que aprofundam nosso envolvimento com

a obra e com a própria artista. Pensamos que essa exploração da empatia pelas

sensações se dá pela vivência da apreciação sob todas as formas possíveis de voltar

o olhar para a vida e obra do artista, percorrendo sua história, suas passagens, seus

cenários, compartilhando suas impressões do mundo, fruindo sua beleza.

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Penetrar na empatia pelas experiências de dor e sofrimento passa pela estesia

do corpo, pelo sentir que não admite imparcialidade, que se permite conhecer e

reconhecer as sensações do outro mergulhando no seu modo de ser no mundo.

A noção do corpo estesiológico, fundada em uma compreensão não substancialista da natureza, na arqueologia do corpo, no sensível e sua historicidade, na aprendizagem dos comportamentos vitais, lógicos e simbólicos, ultrapassa a noção de corpo-próprio, ampliando-se, dessa forma, os horizontes da fenomenologia do corpo, das formas de percepção e de atuação no mundo, uma maneira de reaprender a ver o mundo como tarefa filosófica e existencial (NÓBREGA, 2014, p. 179).

Aderir a estesia como tarefa filosófica e existencial implica em dar abertura aos

outros na experiência de mundo, admitir a penetração dos sensíveis pela nossa

intercorporeidade (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b). Pela intercorporeidade

penetro no outro e o outro em mim. Do ponto de vista de uma educação nas

sensações, é preciso compreender que a intercorporeidade que já nos relaciona,

tomando o corpo estesiológico como horizonte, projetando e se expressando na

empatia. Isso é possível com abertura, e se constrói.

O conceito de intercorporeidade de Merleau-Ponty (1959-1960/2006b) nos

ajuda a entender o entrelaçamento das carnes. Situado nas relações sensíveis, temos

que, o esquema corporal, a própria carne, o corpo estesiológico já preveem a empatia

com os outros corpos por meio do desejo, da projeção, da identificação. Sua estrutura

é libidinal e a percepção é um modo de desejo, uma relação que suplanta a busca por

conhecimento, é uma relação própria do ser.

A intercorporeidade supõe uma penetração à distância dos sensíveis pelo meu

corpo, como aquilo que falta para fechar o circuito. “O meu corpo também é feito da

corporeidade deles. O meu esquema corporal é um meio normal de conhecer os

outros corpos e destes conhecerem o meu corpo. Universal-lateral de co-percepção

do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b, p. 332).

o meu esquema corporal projeta-se nos outros e os introjeta, tem relações de ser com eles, procura identificação, apresenta como

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indiviso com eles, deseja-os. O desejo considerado do ponto de vista transcendental = estrutura comum do meu mundo como carnal e do mundo de outrem”(MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b, p. 361).

A intercorporeidade é um conceito caro para os estudos da filosofia do corpo

merleau-pontyana, porque considera o engendramento entre os corpos no mundo,

buscando superar o dualismo da intersubjetividade e considerando o corpo não como

objeto, mas como matéria sensível, carnal, simultaneamente sujeito e objeto que não

está no mundo, ele é mundo também. Isso exige que o filósofo recuse uma filosofia

das representações e busque, no campo das experiências expressivas os

fundamentos para uma filosofia da alteridade (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b).

Encontrar o outro no espaço do irrefletido da experiência em estado bruto

permite considerar que ele se insere na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um

eu generalizado. O ser bruto envolve uma totalidade-diferença, quiasma vidente-

visível, sensível-sentiente, eu-outro em que penetro o outro não como um espetáculo

ao qual aprecio de fora, mas que vibra em mim, que faz brotar um raio de luz que

ilumina toda a carne, por toda parte. A possibilidade de reversibilidade entre visível e

vidente dada pelo corpo indica, antes, certa passividade, indiferenciação como

subjetividade, generalidade que pode ser partilhada de acordo com a noção de

intercorporeidade (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b; 1964/2009).

A intercorporeidade supõe o visível como campo aberto para outros narcisos.

A carne como propriedade irradia o individual, o universal e a dimensão quando somos

habitados por uma visibilidade anônima (MERLEAU-PONTY, 1954-1955/2015). A

intercorporeidade é condição, mas a empatia é ação.

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Imagem 10 - Celebrando a nota.

Fonte: página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Bufolin.

Na Imagem 10, o fotógrafo captou o momento em que ginastas e equipe técnica

da SBC comemoram a nota computada no telão após apresentação da série mista de

arco e maças, no Campeonato Mundial de GR em Stuttgart/Alemanha, em 2015.

Nesse momento, o conjunto já estava classificado para participar dos JO do Rio de

Janeiro em 2016, pela vaga destinada ao país sede. Entretanto, esse campeonato era

importante porque serviria para dar visibilidade ao trabalho que estava sendo

desenvolvido no Brasil e, por isso, todas comemoram a meta alcançada.

O momento que a ginasta ou conjunto saem da quadra, sobretudo quando a

apresentação não é boa, é um dos mais emblemáticos do relacionamento entre

técnica e ginasta, é imprevisível porque para ambas a situação é traumática. Porém,

cabe à técnica mediar a crise. Em campeonatos oficiais, como na Imagem 10, há um

ambiente decorado e um sofá para que as ginastas junto com a técnica esperem as

notas. Nas transmissões midiáticas, as expressões, sentimentos, empatia da equipe

e satisfação ou insatisfação pela nota tornam-se latentes.

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Imagem 11 – O abraço

Fonte: página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Buffolin

Na Imagem 11, a técnica Anita Klemann e a ginasta Angélica Kvieczynski se

abraçam após a apresentação da série de fita na prova classificatória do Campeonato

Mundial de Stuttgart/Alemanha, em 2015. Na ocasião, a ginasta disputou a única vaga

olímpica destinada ao país sede para os JO do Rio de Janeiro, em 2016. Por um erro

na série do aparelho maças35 de Angélica e pelas excelentes apresentações da

ginasta concorrente, Natália Gáudio, a vaga ficou para Natália.

As conexões empáticas dos corpos ginásticos que entrevistei se revelavam a

cada desligar do gravador: as ex-ginastas desabafavam suas angústias e/ou gratidões

pelas professoras que as acolheram, as descobriram e as que compuseram as

seleções brasileiras como técnicas. Em outro pólo, as ginastas que confessaram não

terem se sentido bem acolhidas, sob o ponto de vista da cumplicidade com as

35 As maças fazem parte dos aparelhos da GR, sendo os únicos que aparecem em par.

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professoras perante as dificuldades do treinamento ginástico e distância da família,

demonstraram-se magoadas pela falta de apoio afetivo por parte da equipe técnica.

Do mesmo modo, a permanência na seleção foi menor do que dois (2) anos.

Entretanto, o discurso de culpabilização da técnica é bastante perigoso, pois as

relações de aprendizado e empatia se dão com a abertura para o sensível e o afeto

de ambas as partes.

Os jogos de poder entre os gestores do esporte, assim como as relações com

as outras ginastas também apareceram. Os relacionamentos construídos por um

tempo prolongado foram destacados pela afirmativa de que as técnicas sabiam

exatamente o que elas sentiam, o que suportavam e os seus limites. Em detrimento

disso, as relações tidas como superficiais ou hostis eram reclamadas com o pesar de

quem lamenta que tudo poderia ter sido diferente caso houvesse mais atitudes

empáticas.

Para além de um discurso moralista, sensibilizar-se pela dor do outro é algo

precioso numa educação que considera as sensações, porque amplia os afetos,

reforça as ligações, permite compreender junto a sensibilidade que nos compõe. As

ginastas que rememoraram suas professoras como cúmplices do treinamento

permaneceram mais tempo nas seleções, demonstraram gratidão e carregavam

consigo ares de dever cumprido. A intensidade dessas relações entre as ginastas

gerou aprendizagens e amizades que se continuaram para além do convívio na GR.

“A mordida do mundo tal como a sinto em meu corpo fere tudo o que está exposto

como eu” (MERLEAU-PONTY, 1949-1951/2002, p. 171). Nesse caso, a GR as

“mordeu”, juntas, e, para que se constitua como uma experiência significativa, é

preciso que morda mesmo.

Das quatro (4) ex-ginastas entrevistadas, três (3) conviveram juntas no mesmo

ambiente de treinamento de alto rendimento da SBO, passando pela mesma carga de

exercícios e exigências. Mas, o que cada uma rememorou no relacionamento com a

professora/técnica coincidiu com o sucesso de sua permanência ou não na seleção.

Embora esse não seja o único fator relatado, muito menos haja representatividade

quantitativa suficiente para tomarmos qualquer tipo de conclusão, percebemos que

algo tão sutil como demonstrar preocupação com as dificuldades do processo é capaz

de contribuir para a sua continuidade ou ajudar a desfavorecê-lo. Com isso,

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reforçamos que é preciso mergulhar na empatia dos processos educacionais, assim

como, partilhar o sensível que é do domínio da intercorporeidade, porque as

experiências de dor e sofrimento embora não possam ser moduláveis diretamente,

podem ser atenuadas ou reforçadas a partir das idas e vindas das afeições e dos

afetos.

Sobre a afetividade ventilada, cabe situá-la. Merleau-Ponty (1945/2006)

compreende que a afetividade não pode ser reduzida a um conjunto de estados

afetivos fechados em si mesmo, pois não há como esquematiza-la em circuito fechado

e autônomo permeada por representações. Se assim fosse, dores e prazeres só

poderiam ser explicados através da um encadeamento fisiológico. O autor esclarece

que as simples representações de estados de prazer ou dor não são capazes de

modifica-los, pois não são da ordem do entendimento que se gera de uma experiência

sob uma ideia, mas se situam numa intencionalidade que segue o movimento geral

da existência.

Na Imagem 12, a técnica Anita Klemann, que na oportunidade já acompanhava

a ginasta Angélica Kvieczynski há 15 anos, a observa atentamente no treinamento

oficial da série de arco em Stuttgart / 2015. Normalmente os treinos nos locais de

competição são as últimas oportunidades de ajustes, correções e orientações técnicas

a serem dadas antes do produto final das apresentações para o público e árbitras.

Imagem 12 – Treinamento de pódio.

Fonte: página pessoal do Facebook do fotógrafo Ricardo Buffolin

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Sobre a imbricação com o mundo pelas relações e afetos destacamos o olhar

da Etologia36 do autor francês Boris Cyrulnik (CYRULNIK, 2004; 2001), que se

debruça sobre a Resiliência como uma construção que se dá gradualmente durante a

vida a partir de experiências traumáticas. Apesar do conteúdo comportamental com

que ele trata esse conceito, pensamos que nos dá a compreender mais uma faceta a

respeito do olhar para as experiências de dor e sofrimento.

Cyrulnik (2001) é um autor que perpassa experiências extremamente

traumáticas, atribuindo, em seus estudos, tanto a importância delas na construção da

resiliência, quanto apontando perspectivas para enfrenta-las, superá-las e

ressignifica-las. Desse modo, se até para os extremos das experiências de dor e

sofrimento há caminhos possíveis, entendemos que para os entraves (não estamos

subestimando-os) vividos na experiência da GR as reflexões do autor nos aponte

pistas para o redimensionamento do sofrer.

Cyrulnik (2001) salienta a necessidade de se tramar suportes de resiliência

através das relações afetivas iniciadas na família e continuadas nas demais

instituições educacionais. De acordo com o autor, a organização cultural intervém

muito cedo na estabilização dos traços comportamentais da criança pequena, de

modo que, a maneira como se educam os bebês, seja num ambiente tranquilo,

ritualizado e sem perturbações em que a estabilização é facilitada, ou no agito, ruído,

sem a afeição que os desestabilizam, interferem profundamente na forma com que

irão lidar com as adversidades após a primeira infância. A relação parental que se

referenda na base de segurança e de partida, define o estilo relacional que a criança

assumirá. Entretanto, nada garante a maneira como essas adversidades serão

enfrentadas, pois o mesmo estilo relacional poderá tomar direções variadas.

De fato, só a existência da criança poderá atestar as relações afetivas, o amor, a

segurança, como bem nos explicita Merleau-Ponty (1960/1991) ao afirmar que quando

avaliamos a conduta de uma criança tendemos a tentar distribuir o que é de dor e de

prazer no mundo. Entretanto, a verdade não é tão simplória pois apenas a criança que

pode atestar, a partir da devoção e do amor que vive em sua realidade, a veracidade

36 Termo cunhado por Wundt para designar o estudo histórico descritivo dos costumes e das representações morais (ABBAGNANO, 2012).

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desse amor. Mesmo a sua maneira aparentemente fraca e passiva desempenha

nesse amor o seu papel.

Se mesmo assim os pais falharem na solidificação dos vínculos, outros

membros do grupo parental, outras famílias de substituição, associações, clubes,

grupos artísticos, religiosos, políticos ou filosóficos podem apoiar a criança. Os

suportes de resiliência podem ser criados a todo tempo, sem restrições. “os

contrassensos relacionais nunca cessam ao longo de toda uma existência e talvez

seja esta dificuldade que faz com que cada vida seja uma história” (CYRULNIK, 2001,

p.87).

Essa compreensão dialoga com o sentido de passividade apontado por

Merleau-Ponty (1954-1955/2015), o qual considera não ser possível, nem no

nascimento, nem antes de racionalizarmos no mundo, nos encontrarmos como seres

naturais desvinculados do que nos rodeia. A natureza nos anima mas os sentidos da

nossa existência já se encontram transpassados na teia do nosso mundo, invadindo

a carne. Aliás, dez (10) anos antes de ministrar os cursos sobre Instituição e

Passividade mencionados na referência anterior, Merleau-Ponty (1945/2005) já havia

investido no conceito de passividade ao proferir que:

Nós não somos, de uma maneira incompreensível, uma atividade junto a uma passividade, um automatismo dominado por uma vontade, uma percepção dominada por um juízo, mas inteiramente ativos e inteiramente passivos, porque somos o surgimento do tempo (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 573)

Cyrulnik (2001) por uma ênfase diferente, descreve a carne do mundo no

entrelaçamento das relações, nas fruições e no suporte. O autor destaca o papel da

fantasia como um recurso interior precioso, pois, ao disponibilizar para uma criança

traumatizada materiais e pessoas atentas a aplaudi-la, isso pode ser suficiente para

desenvolver a resiliência. A experiência traumática exacerba a criatividade, a urgência

criadora, a intensa necessidade de beleza, já que, para crianças que sofreram dores

terríveis, é preciso maravilhar-se depressa.

Além dos suportes de resiliência, dados pelas estruturas relacionais, temos os

objetos de resiliência, que se formulam nas situações de dificuldade. Alguém que

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enfrenta um trauma e se reconstrói facilmente em determinada situação, pode não se

levantar tão facilmente em outra. “A resiliência é um processo constantemente

possível, com a condição de que a pessoa em curso de desenvolvimento encontre um

objeto significante para ela” (CYRULNIK, 2001, p. 85).

Já não é possível afirmar que um trauma provoca efeito previsível. Mais vale adquirir um hábito de pensar que um acontecimento brutal abala e desvia o devir de uma personalidade. A narração desde acontecimento, ponto principal da identidade, conhecerá destinos diferentes, conforme os circuitos afetivos, historizados e institucionais que o contexto social dispuser em redor do traumatizado (CYRULNIK, 2001, p. 138).

Nesse sentido, pensar a dor e o sofrimento na educação pela ótica desse autor,

significa construir suportes de resiliência sob a forma de possibilidades de expressão,

experimentação, criação do corpo das sensações e a construção desses suportes sob

a forma de redes de acolhimento “Quanto mais lugares de acolhimento houver, menos

prisões e locais de encerramento haverá” (CYRULNIK, 2001, p.116). O local de

acolhimento propicia encontros acolhedores, que por sua vez são fatores de

resiliência.

Quando observamos um ambiente onde há acolhimento, encontros, expressão

corporal, desafios, relações de amizade e com o próprio fazer, os suportes de

resiliência já estão dados. Por isso que nenhuma das ex-ginastas entrevistadas

considerou o esforço físico dos treinamentos extenuantes como uma forma de

martírio. O sacrifício corporal se torna um caminho para a expressão artística e

esportiva das ginastas e tudo o que parece muito difícil para quem analisa de fora, se

explica pela significância que as próprias ginastas atribuem à prática. Nas entrevistas

realizadas isso apareceu, houve relatos de dificuldades, de dores, duras críticas à

maneira como cada uma viveu o esporte, no entanto, não esboçaram arrependimento

algum.

A construção da beleza na GR se dá pela empatia, pelo jogo entre

possibilidades e limites, entre o prazer e o desprazer. Mesmo que se ponha a beleza

objetivada (que garante seu padrão), do ponto de vista da experiência isso não se dá

por imposição e sim aprendizado constante do corpo que se desafia em saber até

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onde pode ir e se reconhecer que não sabe tudo sobre si mesmo, sendo assim,

sempre poderá ser acometido por um romper de limites e saberá pouco a pouco se

refazer.

Na GR, o que seria das ginastas se não houvesse o dever da beleza? Porque

é esse dever que faz sofrer e se não houver algo que faça compreender a obrigação

da beleza, todos os vínculos criados e a obrigação de sentido não faria sentido. Quem

faz GR, produz GR, julga GR sabe que a beleza é uma preciosidade que custa caro,

porém ninguém questiona o seu preço, apenas aceita e segue. As praticantes de GR

cavam seus suportes na prática da própria GR e na produção da beleza que dela se

resulta.

Minha experiência como ginasta e professora também se deu dessa maneira,

pois passar por dificuldades e não ganhar as competições não foram suficientes para

abandonar a prática, o sentido daquela GR para mim era muito forte, a ponto de ser

ela própria motivo para meus sofrimentos, frustrações e meu suporte.

A empatia reverberada em afetos, amizade, cumplicidade e apoio revolveu

minhas experiências com a GR na infância, na relação com as amigas e professoras,

como árbitra, na abertura para me colocar receptiva ao trabalho das ginastas

competidoras, e como técnica, à medida que buscava cativar e me deixar cativar pelas

minhas ginastas. E não tenho dúvidas em atribuir à magia dessas relações a razão

para, ainda hoje, eu estar refletindo sobre o que a GR ainda traz para a educação,

mesmo que pelas experiências de dor e sofrimento.

Embora os sentidos dessas experiências se signifiquem nas relações

empáticas, outros sentidos vêm à tona na construção da pesquisa como filigrana. O

tópico seguinte alude aos momentos dos corpos gloriosos, que se dilatam no tempo e

na vida a partir da realização do show, produto de todos os esforços e dedicações: as

apresentações.

A filigrana da pesquisa é predicada como bela e vira objeto símbolo qualitativo

da experiência. O que a enobrece nesse momento não é o metal precioso com que

foi construída, mas a sua imagem remeter ao conjunto de investimentos que foi

realizado para que ficasse pronta, as marcas estão lá e se mostrarão sempre que

olharmos para ela, gloriosas.

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CORPOS GLORIOSOS

O ginásio tava lotado, não tinha onde sentar, muita gente mesmo, e ali eu era a primeira da fila, a menos experiente e a mais nova, e a mais experiente era a última da fila. E eu tive que, quando falou assim: apresenta Brasil! Aquilo fez meu coração “tec tec tec”, que eu levantei a cabeça, que eu vi aquele público assim sabe? Ali, aquela experiência, ninguém me tira. Hoje eu acho que eu consigo falar e me relacionar bem por causa daquela experiência, sabe, de ter entrado ali naquele desafio do pan e ver aquela quantidade de gente absurda e todo mundo aplaudindo de pé (G2).

As palavras da G2 no momento da entrevista eram acompanhadas de mímicas,

de sorrisos, de uma alegria incontida e emocionada estampada no rosto ao relatar

essa experiência. As lágrimas se contiveram, mas a importância que deu aquele

“levantar de cabeça”, ver o ginásio lotado e respirar fundo antes de entrar no tablado

marcou profundamente sua existência. Era uma adolescente que por menos de três

(3) minutos37 carregou seu país, acompanhada de outras quatro (4) jovens como ela.

Aqueles minutos se prorrogaram por quase uma década até o dia da entrevista,

justificando tudo o que ela havia sofrido antes e fortalecendo tudo o que ainda poderia

acontecer. Aquela apresentação não foi efêmera, permanece como marca do passado

em seu presente. O sofrimento relatado em outros momentos da entrevista se esvaiu

na empolgação de sua fala.

Antes que pudesse participar de outros eventos, a G2 precisou voltar para sua

cidade e deixar a SBC por conta de problemas familiares. Esse foi o maior lamento de

sua entrevista, abandonar sua carreira por razões das quais ela não tinha ingerência

e amargar a angústia de não saber as conquistas que poderia prospectar. Mas não

há o que fazer em relação a isso, o tempo passou, e como diria Merleau-Ponty

(1945/2006) o provável está em todas as partes e em parte alguma, ele é uma ficção

realizada, ele só tem existência psicológica, não é um ingrediente do mundo.

Os relatos da G2 nos atentam para a glorificação ou condenação do passado,

que transcende para o presente e reflete em como projetamos o futuro. O momento

37 A duração de uma série de conjunto pode variar entre dois minutos e quinze segundos (2’15”) a dois minutos e trinta segundo (2”30’).

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de entrada na quadra vivido pela G2 só aconteceu por causa da forma com que se

envolveu e fincou raízes na modalidade, pois da mesma forma que se encantou com

a GR na infância, o que a alavancou para SBC, prosseguiu treinando por conta do que

ainda estava por vir: suas perspectivas de ir às Olimpíadas. O mesmo movimento que

liga a GR ao fascínio da iniciação à prática e, de certa forma, justificou e suplantou

toda a dor que sentiu depois, é o que a fez suportar a distância da família numa rotina

cansativa para alcançar objetivos já traçados. Aquele momento, aqueles minutos

congregaram isso tudo. A glória do atleta se constrói em anos e se exprime em frações

de tempo, suficientes para transformar suas vidas.

A G2 foi a única ex-ginasta entrevistada que não participou de uma edição dos

Jogos Olímpicos, mas representou o Brasil em um campeonato internacional

denominado “Desafio Pan-americano” que é uma espécie de amistoso da GR no

continente americano e a qual a ginasta se referiu no trecho do depoimento

apresentado anteriormente. Essa única experiência, para ela, se expandiu pela vida

inteira, valeu cada momento longe da família e determinou a escolha de sua profissão

(professora de GR).

Na terceira parte da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1945/2006)

destina um capítulo para a temporalidade. Nesse texto, o filósofo inicia suas

considerações tecendo críticas à metáfora do tempo como um rio que corre, pois a

observação do nascer, escoar e desembocar do rio só podem ser acompanhadas de

forma recortada, por um observador finito. Sendo assim, “não é o passado que

empurra o presente, nem o presente que empurra o futuro para o ser; o porvir é

preparado atrás do observador, ele se premedita em frente dele, como uma

tempestade vista do horizonte” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 551).

Nesse sentido, o tempo não é uma sucessão de acontecimentos reais aos

quais eu poderia registrar, ele se origina na minha relação com as coisas, e nelas

mesmas. O passado e o porvir, para mim, estarão sempre no presente, pois quando

observo o rio correndo preciso considerar simultaneamente que há um nascer e um

desembocar. O tempo não se figura como um objeto de saber, mas como uma

dimensão de nosso ser (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

À luz de Merleau-Ponty, Nóbrega (2016), reflete sobre o quanto a nossa

compreensão sobre nossa própria existência é escorregadia, pendulando entre

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presente e passado, conforme a nossa capacidade de atribuir sentidos e interpretar

os acontecimentos em cada momento. A autora destaca que há uma união entre o

tempo natural e o histórico, perfazendo a modalidade de tempo existencial e social em

constante atualização e ressignificação. Nesse entendimento, o tempo se reflete tanto

nas transformações orgânicas do meu corpo, da natureza, quanto designa os

fenômenos que se entrelaçam nesses devires.

O entendimento da autora parte das relações que Merleau-Ponty (1945/2006)

entre tempo e subjetividade. “Nesse sentido, o tempo supõe uma visão sobre o tempo,

nasce da relação com as coisas, não é um receptáculo de engramas. O tempo não é

uma linha, uma sequência, os tempos são encaixados no presente” (NÓBREGA,

2016, p.48).

As marcas do tempo das situações passadas são destacadas com nostalgia

por um atleta que atribui importância a um fechamento de ciclo. A ex-ginasta G4 se

recordou da participação nos JO de Sydney como uma conquista e como conseguiu,

em sua última competição na SBC, se apresentar da melhor forma que poderia, se

despedindo com a sensação de “alma lavada”.

Minha maior conquista como ginasta foi participar das Olimpíadas de Sydney, acho que as Olimpíadas é onde todo atleta quer chegar, e a gente conseguiu chegar lá e com muita honra, foi um resultado inédito pro Brasil, a gente entrou na final,

... a gente entrou naquela quadra em Sydney e a gente conseguiu executar a melhor coreografia que a gente fez na vida durante minha carreira toda, minha vida toda assim... eu lembro que tem a imagem, esse momento eu não consigo esquecer porque é quando acabou a última coreografia na final olímpica que a gente deu tchau pro público, eu dei tchau com a alma lavada, feliz de encerrar minha carreira ali, de encerrar numa olimpíada, de estar satisfeita com tudo que eu me dediquei pra esse esporte (G4).

O destaque dado à despedida da G4 nos causou a sensação de que aquele

momento se esgarçou em sua existência e que ela debruçaria mais uma vez a sua

vida para a GR se fosse necessário, para vive-lo outra vez. Minutos gloriosos que

valem por uma vida.

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Merleau-Ponty (1945/2006) evidencia que o surgimento do presente não

provoca uma repressão do passado e um revelar do futuro, todavia, o novo presente

é, de fato, a passagem de um futuro ao presente e do antigo presente ao passado,

em um só movimento, de um extremo ao outro. Sendo dessa forma que o tempo se

põe a mover.

Quando se vê a consciência como uma multiplicidade de fatos psíquicos

ligados por causalidades, não se remonta as fontes e se toma a temporalização como

pronta. De acordo com Merleau-Ponty (1945/2006) isso é um equívoco porque

nenhuma consciência é um meio inerte. É preciso observar o outro por um só golpe,

considerando a pessoa que sente em seu projeto global, que se perfila em atos,

experiências, condutas, na manifestação de uma estrutura de existência mais geral

pois só assim a temporalidade é capaz de iluminar a subjetividade.

A dor e o sofrimento modificam o presente, demarcam o passado e, na maior

parte38 das vezes, fazem com que se deseje avançar para o futuro. Le Breton (2013)

se refere a dor como uma experiência que paralisa a existência, que nos coloca no

presente e faz emergir o corpo vivo. Nessa oportunidade, nosso olhar se transfere

para os corpos gloriosos da atleta que se mitifica em um minuto especial, que faz com

que o suportável se estenda ante o insuportável por conta de um tempo futuro

esperado ou um passado marcante, mas que faz com que tudo faça sentido para

aquele momento e para o seguinte. É o presente vivido intensamente como

investimento de uma perspectiva de futuro e um passado que reverberam na

existência.

Le Breton (2013b) destaca alguns aspectos acerca da dor extrema. Na qual

presente, passado e futuro se rasgam.

A dor rompe as amarras que prendiam o indivíduo a suas atividades habituais, dificulta a relação com os próximos, elimina ou diminui nele o gosto pela vida. Nenhum refúgio escapa a seu cerco. O homem que sofre, ainda que de uma banal dor de dente, imagina que quem não passou por sua experiência é o mais feliz dos homens, e se surpreende por nunca ter sabido avaliar a sua felicidade. A dor paralisa a atividade de pensamento ou o exercício da vida. Interfere no jogo do desejo, no

38 As práticas sádicas ou masoquistas vão de encontro a essa compreensão porque operam pelo desejo

de provocar ou sentir dor.

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vínculo social. Cria o sentimento de uma infelicidade continuamente ruminada por quem é por ela atingido e o sentimento de uma graça especial concedido aos que poupa.” (LE BRETON, 2013b, p. 28).

As dores e sofrimentos se ruminam nas sessões de treinamento de GR, mas o

posicionamento de Le Breton (2013) parece se esvair quando nos referimos aos

momentos mais determinantes da performance ginástica: as apresentações. São as

oportunidades em que enfrentar e vencer momentaneamente a dor faz com que

atletas se transformem em mitos.

Rúbio (2001), quando disserta sobre a mitificação do atleta corrobora com

nosso pensamento sobre as dificuldades vivenciadas no âmbito da prática esportiva,

que agregam as rotinas de treinamento, concentrações, competições e acabam

criando um distanciamento entre atleta, família e as rotinas corriqueiras. Muitas vezes,

o atleta não tem tempo para as coisas do cotidiano, distanciando-se justamente

daquilo que remete às pessoas da sua condição humana. Esse esforço, que diferencia

sujeitos não atletas e atletas, se explica pela necessidade de busca pela perfeição,

algo que remete para além da capacidade heroica, caracterizada pela autora como

uma condição divina.

Mesmo os mais fortes entre os bravos guardam seus pontos fracos. Aquiles foi atingido em seu calcanhar por Páris. Herácles padece sob a túnica dada por Dejanira. Teseu é atirado do alto do Rochedo por Licômedes. E cada um, mesmo tendo realizado grandes prodígios, perecem diante de uma força mais poderosa que as suas próprias. Afinal, a condição de imortal é dada apenas aos deuses, ou àqueles que conquistam essa condição, com o beneplácito daqueles (RÚBIO, 2001, p. 205).

Compreendemos que a linha de pensamento de Rúbio (2001) nessa citação

suponha uma supervalorização da condição atlética por duas vias: seu

endeusamento, pela relação com a mitologia e vitimização, denotando que a

orientação da vida do atleta não se faça também por uma escolha. Todavia,

consideramos as produções da autora admiráveis e muito importantes para o

entendimento da amplitude da devoção de um atleta de alto rendimento, para a

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compreensão da importância dos grandes eventos e para a fomentação dos valores

olímpicos. Temas dos quais a autora é referência internacional.

É importante ponderar, a partir da citação de Rúbio (2001) e conforme a

caracterização da dor de Le Breton (2013b) de algo que rompe com o gosto pela vida,

que ginastas não são deusas e o esgarçamento dos seus limiares não garante

imparcialidade diante da dor intensa. Entendemos que a dor na GR é treinável e

treinada, porque dificilmente há alternativas para escapar dela, isso porque há uma

escolha por essa forma de existência que precede a dor e se consolida nela para

continuar escolhendo.

O sofrimento gerado pelos treinamentos ajuda a qualificar a dor sentida pelas

ginastas, que recebe seu devido status. Praticar ginástica não é apenas sensibilizar-

se pela beleza de uma criação gestual conectada por uma música, é antes de tudo

um ato de coragem. É se jogar nas oscilações da existência, mesmo sabendo que

após meses de treinamento haverá a apresentação/competição, que poderá gerar a

glória da satisfação pessoal ou o trauma da derrota. Mas, independente do que

aconteça, no dia seguinte, após alguns suspiros, o trabalho é retomado. A dores e

sofrimentos vividos nas rotinas do presente, parecem servir ao futuro, mas vive-se o

presente. O corpo que suporta talvez não se atenha de que se faz e se refaz e que

nesse fluxo pode suportar mais ou sucumbir.

Tempo e treinamento esportivo são aliados quando possuem uma relação

racionalizada em que planejamento e execução de um plano impliquem num uso

contabilizado do presente, que seja matematicamente e economicamente pensado

em detrimento do futuro. Esse processo, por sua vez, parte de uma lógica de

valorização do produto final, que é efetivamente projetado sob a forma da

apresentação de uma boa série.

A G1 carrega uma história emblemática na seleção brasileira porque a compôs

por mais de sete (7) anos, então suas marcas além de profundas foram numerosas.

Os destaques foram as edições dos Jogos Olímpicos de Sydney (2000) e Atenas

(2004), a primeira medalha brasileira em Jogos Pan-americanos, em Winnipeg (1999)

e a repetição do resultado nos Jogos Pan-americanos de Santo Domingo (2003).

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Os Jogos Panamericanos de Winnipeg que até então a Ginástica Rítmica não era nada, um mês antes a gente foi pro mundial e a gente tinha ido muito... nossa foi péssimo! E perdemos dos Estados Unidos, do Canadá, então assim, quando nós pegamos Winnipeg a gente nem sabia o que ía acontecer... A primeira vez que a gente conseguiu a medalha, foi inédito mesmo entendeu? Foi uma alegria muito grande. Então assim, Winnipeg é muito marcado pra mim.

Quando a G1 comenta “a gente nem sabia o que ía acontecer”, revela-se um

enigma o qual a contabilização do treinamento esportivo não resolve. Mesmo no

esporte de alto rendimento, mesmo na preparação incessante e diuturna, não existem

certezas. Trinta (30) dias separaram a SBC, competindo com as mesmas adversárias,

da última colocação para o local mais alto do pódio. Esse resultado não se conquistou

em um mês, foi fruto de anos39 de investimentos, mas um só mês foi o suficiente para

atestar que poderiam ser consideradas as piores e as melhores das américas.

Aí teve as Olimpíadas de Atenas, não, de Sydney em 2000, também foi um marco muito grande porque foi a primeira vez que a gente conseguiu uma vaga olímpica né? Ah, foram finalistas olímpicas! Meu! Foi finalista olímpica na Ginástica Rítmica. Depois da minha equipe ninguém mais conseguiu, entendeu? Então a gente conseguiu, a equipe da minha técnica, assim, que eu estive em todas as equipes, um degrau de cada vez mas conseguimos o objetivo entendeu? Então assim, também me marcou... Depois os Jogos Panamericanos de Santo Domingo também foi marcado porque era uma nova geração, as meninas eram todas mais novas, eu já era bem mais velha que as meninas, entendeu? Nós conseguimos de novo, daí eu era capitã... Daí Atenas também pra encerrar minha carreira. A gente conseguiu de novo, novamente, o oitavo lugar, que também assim, é uma coisa que depois de 2000, não, 2004, nunca mais ninguém conseguiu esse oitavo lugar, ser finalista olímpica. Então assim, tudo foi histórico e pra mim foi muito marcante na minha vida porque eu peguei a ginástica onde era a última do mundo, eu deixei a ginástica no oitavo lugar, entendeu? Eu sei tudo o que eu fiz até chegar ali... (G1)

A G1 enumera suas conquistas sob a forma de títulos alcançados nessas

competições, em seguida revela que todas fizeram parte de sua carreira destacando

39 O estudo realizado por Lourenço (2005) demarca o primeiro ciclo significativo para a SBC iniciado no ano de 1997, ano em que a CBG oficializou a sede na Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), em Londrina. No entanto, os investimentos realizados pela universidade, em competições internacionais e com algumas das ginastas que compuseram a seleção oficial dataram de, pelo menos, dois (2) anos antes.

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que foram essenciais para que a GR brasileira crescesse em parâmetros mundiais. O

destaque final “eu sei o que eu fiz para estar ali” revela seu empenho no processo e a

destinação de sua vida para essa missão.

Todas as ex-ginastas entrevistadas buscaram a GR porque se envolveram,

porque gostavam da prática. À medida que esta foi se profissionalizando o gosto

deixou de ser imediatista e passou a ser dividido e projetado, o prazer do momento foi

federado pelo prazer que se realizou nos minutos de apresentação da competição. O

efêmero do dia-a-dia é orçado para garantir uma marca concreta no futuro, pois os

minutos de glória não são gratuitos na prática da GR, ao contrário, custam o debruçar

de uma existência.

No entanto, se esse discurso fosse simplório, estaríamos afirmando que todas

as ginastas passaram por um treinamento torturante para obter resultados em termos

de performance esportiva, e isso não é verdade. Os limiares suportáveis de dor e

sofrimento são treináveis e treinados nesse processo, pela potencialização dos corpos

através de todas as intervenções comentadas nas páginas anteriores. A experiência

do movimento permite viver o prazer mesmo na dor porque o corpo estesiológico

opera no fluxo das sensações, opera pelo desejo.

O ser humano é insatisfação que não pode ser superada posto que desejar não

é satisfazer necessidades que visam a sobrevivência, mas realizar a própria essência,

trazendo para o desejo sempre mais desejo. Eu me insatisfaço ao satisfazer. O desejo

existe sob a forma de ausência. É bem além da representação pois é uma relação de

ser. Os outros corpos, as coisas do mundo, nos são dados na ordem do desejo, pois

percepção erótica se dá no mundo e não na consciência (LIMA NETO, 2016).

É o desejo pela prática que está em jogo na relação entre ginastas e GR, que

se dá ali, no momento presente, embora se visualize um projeto, todos os dias se

cultiva um pouco dessa satisfação insatisfeita a qual Lima Neto (2016) se refere. Se

as dores e os sofrimentos de quem analisa pelas aparências fossem impeditivos,

talvez não houvesse tantas praticantes, aliás, talvez não houvesse a prática. Eu, como

ginasta, não me importava em passar todas as noites da minha semana treinando,

mesmo com a certeza de que nunca chegaria ao pódio. Eu, como técnica, quando

trocava todos os meus fins de semana para passar o dia com minhas alunas em um

ginásio, não era apenas um sonho de medalha que perspectivava, era o desejo de

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conseguir explorar o melhor que pudesse de cada uma. O desejo de buscar a beleza

não se finda nunca.

Os corpos, na dor e no sofrimento, não classificam essas experiências

isoladamente, fora do contexto da existência. É possível que quem aprecie de fora

julgue assim, condenando-os ou exaltando-os. Mas para quem vive em intensidade,

as experiências se revolvem de outros sentidos, invisíveis para quem julga. A lógica

disso tudo não é linear porque o desejo opera por encadeamentos estesiológicos,

portanto não são de ordem classificatória. O que eu desejo corresponde a maneira

simultaneamente íntima e projetável de como me relaciono com o mundo, com os

outros seres e principalmente com minhas próprias sensações. Eu sinto porque desejo

e desejo porque sinto.

O desejo como condição do corpo estesiológico emana nas falas das ex-

ginastas sob a forma de expressar sua relação afetiva com a prática envolvendo as

outras personagens do processo: técnica, outras ginastas, público. A vida de todas as

entrevistadas (a minha também) vinculou-se à GR tão fortemente que abarcou os

estudos e as profissões. Ou seja, o passado lúdico da GR na infância, que enfeitiça,

se expande em significância para toda a prática futura, que por sua vez, traz

momentos marcantes que se temporalizam por toda a existência.

A estesia diz respeito à experiência do corpo no espaço e no tempo, mas relações com a natureza, com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Uma comunicação marcada pelos sentidos que a sensorialidade e historicidade criam, numa síntese sempre provisória, numa dialética existencial que move um corpo em direção a outro corpo (NÓBREGA, 2016, p.142).

O desejo de realizar o movimento, do acerto, da expressão que comunica com

a música, da partilha com as colegas de treino e equipe técnica. Desejo pela

comunicação com o público, pelo gozo da série, cravada pela satisfação de sentir que

sua performance foi irretocável no momento da competição, ou que você fez o melhor

o que podia, ou apenas que se sentiu pertencente a sua equipe. Processo e produto

aprofundam os desejos das ginastas na experiência da GR. Diz respeito a algo que

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Merleau-Ponty (1960/2009) chama de uma relação dialética, mas sem síntese, em

que se mantém a tensão permanentemente.

O movimento da existência nos ensina que os nossos desejos, vontades e

necessidades não são causais nem congruentemente explicáveis, por isso que rotular

previamente as experiências de dor e sofrimento como negativas é negar o enigma

do corpo. O agradável ou desagradável só se afirmam na experiência. Nesse caso,

como nos esclarece Merleau-Ponty (1959-1960/2006b), o corpo como simbólico é

coisa e medição de todas as coisas, é fechado e aberto na percepção e no desejo,

significante e significado inseparáveis (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b).

Sendo o sofrimento ou dor demarcadores significativos, não obedecem o tempo

cronológico, pois o tempo do corpo não é reto, serial, e portanto, as experiências não

se dão em ordens sequenciais classificáveis. O fluxo se dá na ordem do sentir de

modo que enquanto uma experiência dolorosa que não passe de segundos possa

causar um verdadeiro estrago, um prazer vivido por horas pode ser efêmero e

significar muito pouco na existência da pessoa.

O tempo como enigma do corpo também nos faz pensar no fenômeno do

recalque, tomado por Merleau-Ponty (1945/2006) como uma espécie de bloqueio que

remete a falta de forças de um indivíduo para transpor uma barreira ou renunciá-la,

permanecendo inerte na existência.

Mantendo o vínculo com a psicanálise, Merleau-Ponty (1945/2006) elucida o

recalque como uma experiência em que o sujeito se dedica a uma determinada via

(carreira, relação amorosa etc.) e encontra um obstáculo o qual não consegue

transpassar, permanecendo imobilizado.

Desse modo, o tempo vai passando e não leva consigo as resoluções dos

casos, não se fecha perante o trauma e o sujeito permanece aberto projetando um

futuro impossível. Porém, isso não é explícito, o sujeito não pensa nisso nem se

expressa dessa forma, ele se mantém assim, conservando o recalque. O presente

que não se suplanta passa a ser o de maior valor, enquanto todos os outros presentes

possíveis são destituídos. E assim, o sujeito prossegue como aquele que se

empenhou, mas não viveu um amor adolescente, por exemplo. Embora as percepções

novas sigam substituindo as percepções antigas, essa renovação só diz respeito ao

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seu conteúdo, e não a sua estrutura. O tempo impessoal se escoa incessantemente,

mas o tempo pessoal está preso, imóvel (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 123).

Um mecanismo complexo de sobrevivência é desencadeado a partir desses

bloqueios, como se escondêssemos de nós mesmos, em nossa própria casa, uma

lembrança de um problema não resolvido. Pode até ser esquecido, mas ora ou outra

ela poderá surgir quando estivermos remexendo nas coisas, pelo simples acaso, ou

quando resolvermos nos mudar.

A experiência traumática não se conserva enquanto representação objetiva, ela

sobrevive como um estilo de ser de grau razoavelmente generalizado. Eu beneficio

um de meus mundos para que ela perca sua substância e se torne uma mera angústia.

“Ora, como advento do impessoal, o recalque é um fenômeno universal, ele faz

compreender nossa condição de seres encarnados ligando-a a estrutura temporal de

ser no mundo” (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b, p.124).

De acordo com Merleau-Ponty (1945/2006), há uma recusa no recalque de algo

que sabemos, porque as recordações e o corpo não se apresentam a nós em atos de

consciência singulares e determinados, mas dissimulam-se na generalidade. As

mensagens sensoriais e as recordações só são aprendidas expressamente por nós

sob a condição de uma adesão geral à zona do nosso corpo e de nossa vida da qual

elas dependem. E na adesão ou recusa situam o sujeito em uma situação definida e

disponível, como a aquisição ou perda de um órgão sensorial.

Não objetivamos dominar diagnósticos, testes ou tratamentos para o recalque.

Muito menos sabemos exatamente se e como poderíamos evita-lo, pois isso, além de

requerer uma discussão aprofundada em outras áreas de estudo, com as quais essa

pesquisa é limitada, foge completamente dos objetivos perspectivados. Porém, isso

nos dá a pensar sobre nossa mobilização corporal que não atende a uma cronologia

serial e incomplexa, enquanto o tempo da emoção para, o tempo do relógio vai

passando. Nessa compreensão, nem sempre o tempo cura (como se costuma

afirmar).

O tema do recalque nos atenta para a responsabilidade com que devemos

tomar as experiências de dor e de sofrimento em contextos educacionais, pois, nesse

enigma da temporalidade torna-se preciso cuidar para que o discurso sobre a oferta

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às sensações não se torne uma busca despreocupada, irresponsável e

inconsequente. O recalque é um exemplo de que, ao tratarmos de educação,

percorremos um terreno acidentado e por isso se jogar no precipício da

imprevisibilidade pode ser muito perigoso.

Portanto, ao defender uma educação que se dá nas sensações do corpo (que

incluem a dor e o sofrimento), é preciso se ater as existências diretamente. Cada

aprendente que chega numa sala de aula, quadra ou em qualquer outro contexto

educacional, carrega uma história de vida dotada de experiências anteriores e

perspectivas futuras. É preciso intervir para que sua história não seja ignorada nem

seus sonhos subestimados.

De todos os relatos das ex-ginastas, o depoimento da G3 foi o mais ressentido

em relação a não se sentir reconhecida pelos seus feitos de atleta de GR, sobretudo

em seu próprio estado, em que foi pioneira. A G3 relatou que foi a única atleta da sua

região a conseguir ir a uma edição dos JO, colecionando, antes disso, muitos títulos

nacionais e internacionais.

O desvelar de sacrifícios também fez parte da fala da G3. Ela relatou que sentia

uma força descomunal por estar nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004), porque

significava a consolidação de sua carreira de ginasta. Os momentos que antecederam

essa importante competição foram os mais emblemáticos de sua vida, englobando a

distância da família, o difícil relacionamento com a equipe técnica, os problemas com

o peso, o agravamento da lesão na coluna vertebral. A última frase proferida no trecho

a seguir: “acho que valeu a pena” parece ter deixado em suspenso sua crença de que

o sacrifício valeu a pena, dando destaque às dificuldades que antecederam a

competição.

Então eu considero todas muito importantes, mas, claro que as Olimpíadas são um marco maior na vida de um atleta porque é o ápice do ápice da onde a gente pode chegar. E pro Brasil então a gente não precisa nem falar né? Porque nós não somos o berço da GR, então estar numa olimpíada sempre vai significar algo muito grande e muito valioso. É isso, eu acho que a olimpíada foi o mais emocionante pra mim. Eu sentia uma força muito grande, por estar lá, por tudo o que eu passei para estar lá e todo o sacrifício de ficar longe da minha família, de escutar coisas que a gente não escutaria nem dos nossos pais, mas é isso, acho que valeu a pena (G3)

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Tudo o que a G3 havia passado no treinamento de alto rendimento construiu

os momentos de apresentação. O futuro e o passado existem no presente, e aquilo

que falta ao ser para ser temporal não é o “não-ser” de outro lugar, de antes ou do

futuro. O passado e o futuro passam para o lado da subjetividade. Pela idealidade do

tempo, a consciência deixa de estar encerrada no presente (MERLEAU-PONTY,

1945/2006).

Ainda considerando a discussão proposta, acerca dos corpos gloriosos, que

perpassam a temporalidade do corpo e o desejo, destacados até esse momento, vale

explorar as relações entre a construção da beleza e fruição desta. Por mais que essa

relação pareça paradoxal, já que enfatizamos uma beleza que é construída e

permeada por processos que implicam em sofrimento, ao passo que o produto dela,

muitas vezes, é capaz de provocar nos espectadores fruições que não se identificam

com o processo de constituição da obra. Quando assistimos a uma série de uma atleta

de elite de GR temos a impressão de que aquele ser, etéreo, nasceu executando todos

aqueles movimentos encantadores.

Isso nos faz pensar sobre a inter-relação entre expressão e técnica, de modo

que, por mais original que seja uma ginasta, não há como desprezar o conhecimento

dos códigos. Nos faz pensar ainda sobre a disciplina do fazer artístico, como dito,

disciplinar-se implica no enquadramento das rotinas corporais em função de

determinados objetivos. Entendemos que o fazer artístico, como ato de um corpo

estesiológico, é inacabado, e por isso dificilmente pode se desprender da angústia, do

sofrer, porque onde tem gente, tem sensação, tem imbricamento com o mundo e o

julgamento dessas sensações não é binário e pode perpassar o sofrimento, é preciso

reaprender a sentir, julgar e expressar essas experiências.

A ginasta em exercício é obra de arte do corpo em movimento e, de acordo

com Merleau-Ponty (1964/2009), as obras de arte possuem sua própria

inteligibilidade, sua lógica, coerência, imbricações e concordâncias,

operacionalizando o vínculo entre carne e ideia. Embora uma série ginástica seja uma

expressão artística efêmera, consegue expressar sentidos e adentrar nas nossas

sensações, nos conectando à ginasta nos seus noventa (90) segundos de solitude no

tablado de competição.

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Nas artes visuais, por exemplo, o pintor se oferece para representar o mundo,

um corpo que é uma tessitura formada por visão e movimento. “O mundo visível e de

meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser” (MERLEAU-PONTY,

1961/2004, p. 16). Há um imbricamento entre o que se vê e o ser, o corpo é ao mesmo

tempo vidente e visível, e encontra-se preso ao tecido do mundo. O artista se obriga

a emprestar sua expressão, sua forma de ver o mundo, o pintor oferece seu corpo ao

mundo para transformar o mundo em pintura. Ele assume o mundo sensível

(MERLEAU-PONTY, 1961/2004).

“A definição e a descrição da obra de arte não substituem a experiência

perceptiva e direta que se tem com ela – é preciso sentir” (MERLEAU-PONTY,

1948/2004b, p. 57). Como explicar ou criticar o que se sente ao praticar GR ou ao

participar de uma apresentação? Não é preciso explicar, é preciso praticar ou assistir

para sentir. Embora, ao compreender os processos de construção dessa prática a

apreciação poderá ser ainda mais legítima.

A ginasta empresta a plasticidade de seu corpo para se relacionar intimamente

com a proposta da sua série, tematizada pela música, e com o olhar do público

espectador, composto pela banca de arbitragem que a avalia no ato e pela plateia que

aprecia a expressão da sua arte e toma partido na torcida. De acordo com Merleau-

Ponty (1964/2009, p. 146) “As ideias musicais ou sensíveis, exatamente porque são

negatividade, ou ausência circunscrita, não são possuídas por nós, possuem-nos”. É

primordial deixar-se possuir.

Nóbrega (2008) acrescenta que a obra de arte existe para estar colocada como

campo de possibilidades para a experiência sensível, não por outra forma que se dê

em nível de pensamento de ver ou de sentir, mas como reflexão que acontece no

corpo, sem intermediários.

O artista prospecta um novo mundo, não como um dom divino, nem

combinação matemática de códigos consolidados, mas como a dedicação da

demonstração das experiências vividas em empatia. O sofrimento provocado pelo

empenho do artista na sua obra não é novidade no campo das artes. Na GR, Róbeva

e Rankélova (1991) já descreviam essa composição de série como jóia a ser lapidada

com tanto afinco que havia o perigo de não ser perceptível.

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Compor uma dança a partir de repertórios conhecidos, buscar o novo ou até se

utilizar de técnicas de improvisação se faz sem abdicar das maneiras como o ser

humano se utiliza do corpo em sociedade: as técnicas corporais (MAUSS, 1935/2013).

Um gesto sempre remete a uma animalidade que se institui simultaneamente a uma

cultura, uma sociedade, um modo próprio de ser corpo. O original é algo que se recria

a partir de algo que já existia antes, mas que nunca o reproduzirá de forma idêntica,

pois a gestualidade do corpo jamais poderá ser repetição porque o corpo encontra-se

no fluxo da temporalidade. Nessa lógica nem o mesmo corpo poderá copiar o gesto

dele próprio duas vezes da mesma forma, pois a cada segundo que se passa o corpo

se modifica.

O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permanece encerrado na vida de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para um pintor como esse, uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza, e um único lirismo: o da existência sempre recomeçada (MERLEAU-PONTY, 1945b/2004, p. 133).

Esse sentimento de estranheza assim como a existência que se recomeça são

palcos para a produção artística, segundo Merleau-Ponty (1945b/2004) Esse destino

não é simples nem fácil, por isso mencionamos que é sofrido, pois exige uma entrega

à expressão artística, diuturnamente. Concepção e execução também se unem na

linguagem do corpo que dança, do corpo que faz ginástica. Por mais que os

movimentos estejam previamente definidos, ensaiados, treinados, só a expressão do

momento é capaz de qualificar a obra.

A arte não é uma construção representativo-espacial de um mundo de fora, ela

é a irradiação do visível. Os modernos esforçaram-se por criar outros sistemas de

equivalência para expressar sua arte, mas isso não os impediu de reexaminar e

reinventar os meios de expressão existentes (MERLEAU-PONTY, 1945b/2004). Os

modernos não seriam os modernos sem os clássicos, sem beber de suas fontes nem

que fosse para questioná-las. Na gestualidade dos corpos esses questionamentos

acontecem na historicidade das técnicas corporais e, principalmente, sempre que se

busca o novo.

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A GR, enquanto esporte de natureza artística, pode pressupor os sofrimentos

como elementos que a permeiam, mas que também se reverberam numa dimensão

existencial e traz reflexões para educação possibilitada por essa via dupla. Pois,

qualquer sofrimento, até mesmo o mais modesto, leva à mudança do ser, à

metamorfose, projeta-se numa dimensão inédita da existência, abrindo no ser humano

uma metafísica que provoca uma reviravolta no modo habitual de sua relação consigo

mesmo, com os outros e com o mundo (LE BRETON, 2013B).

Pensamos que as experiências de dor e sofrimento na GR suplantam os

ditames dos esportes de rendimento porque implicam em performances elaboradas a

partir da forma artística do corpo, ou seja, as intervenções preconizam a intensificação

da potência destes corpos, ao mesmo tempo que, no caráter incerto, subjetivo,

criativo, inacabado do corpo, produzem novas formas de ser belos, implicam num

debruçar artístico constante, que não se basta no treinamento insano de uma técnica

pré-concebida. Sim, é preciso que a técnica seja correta, porém ela em si não se

basta. Não sabemos se as ginastas, quando iniciam a prática ainda crianças, têm a

real noção da amplitude da vivência para além da aprendizagem da técnica esportiva

– elas desejam se apresentar, aprender a realizar os movimentos, treiná-los até a

apresentação e sentem prazer em fazer isso. Decerto, o caminho parece incomplexo

mas a lógica que permeia a prática sempre será o desafio, em que o esforço de se

repetir inúmeras vezes a realização de um exercício está incutido no processo.

E os corpos na GR são ou tornam-se gloriosos: menos por um conjunto de

intervenções calculadas para potencializá-los, mais pelo enigma dado pela relação do

ser com o mundo.

Menos por um conjunto de sacrifícios que o “enobrecem” moralmente, mais

pelo universo de significações sensíveis suscitadas pela dor e pelo sofrimento.

Menos por uma prática que propicia “estímulos” importantes para o

desenvolvimento corporal, mais pela relação de desejo pela expressão do movimento.

Menos pelo competir como fim em si mesmo, mais por investir em projetos

partilhados, recheados de desafios e sonhos.

A filigrana da tese, nesse momento, se desloca de sua forma gloriosa, que

expande sua beleza no momento da apreciação, e se remonta aos processos de

feitura. Embora esteja montada, para acessar e se engajar com suas curvas,

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reentrâncias, contornos e com sua beleza em geral, é preciso admitir que sua

cunhagem é misteriosa e sua existência é enigmática.

ENIGMA

O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no que vê então o ‘outro lado’ de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é tomado portanto entre coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro... (MERLEAU-PONTY, 1961/2004, p.17).

Reversibilidade que o torna coisa entre as coisas e ser entre os seres, que

institui e é instituindo, que se encontra na dimensão do tempo, como campo perceptivo

e esquema corporal, que se relaciona com os outros seres e com as coisas do mundo,

que afeta e é afetado, que tem como ímpeto mobilizador o desejo e que se expressa

no visível a linguagem do invisível. O corpo estesiológico é enigmático assim como

todas as sensações que o movem, portanto, é preciso partir dessa condição de

incertezas, inacabamento e mistério para refletir sobre uma educação voltada para a

pessoa e suas sensações. Porque nosso contato com o mundo é sensível e não há

como se precaver ou precisar exatamente o que pode sair disso.

O produto final da filigrana não é claro na apreciação, é preciso se debruçar. O

corpo, a dor e o sofrimento também não. Os menos atentos ou que não tiverem

conhecimento do processo de elaboração necessário jamais compreenderão o

enigma de sua formulação, já os mais atentos, perdurarão cheios de dúvidas. Muitos

acreditarão que se trata de uma forma pronta, portanto, aos poucos que se mostrarem

atentos em observar bem de perto o desenho de seus microfios perceberão que cada

filamento, forma, tamanho, ângulos são únicos e que, embora todo processo possa

ser repetido, o resultado jamais poderá ser igualado. Apenas aqueles que tiverem

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oportunidade e se propuserem a aprender a preparação desse objeto, irão se ater aos

seus detalhes menores, com a autoridade de quem se lançou nas improbabilidades

da experiência.

Ao apreciar uma filigrana não se tem ideia de como algo tão delicado é

construído, como todos aqueles filamentos preenchem delicadamente os espaços

criando desenhos minúsculos. O objeto final torna-se glorioso, mas é a sua

construção, na especialidade do fazer através de técnicas finas, que resulta num

desenho exclusivo.

No ensejo do enigma, retomemos o trecho da entrevista com uma das ex-

ginastas comentando sobre a lesão crônica no joelho que carregou durante sua

carreira esportiva:

Se eu fosse uma menina normal, talvez eu nunca fosse sentir nada. Mas como teve que forçar teve um desgaste que até hoje eu sinto. Quando eu vou subir escada eu sinto, quando vou descer escada eu sinto. Aí você fala: você se arrepende? Não me arrependo! Adoro a minha dor! (G1).

Quando a G1 reconhece não ser uma menina “normal”, admite ter noção de

que passou por intervenções corporais que fizeram aumentar o número e a

intensidade de suas experiências de dor. Também reforça que sente os reflexos disso

nas ações do dia-a-dia, mesmo já tendo se aposentado dos treinamentos. Finalmente,

é enfática em desvincular esse relato a um “vitimismo” ou arrependimento, ela é

enérgica em sua fala “Adoro a minha dor”.

A fala da G1 nesse trecho nos incita porque carrega o enigma da dor em

diversos aspectos. A dor da G1 é enigmática por uma relação de temporalidade, pois

carrega um passado e implica em um porvir (aspecto discutido no tópico anterior, mas

a ser retomado); de liberdade, já que denota uma escolha por um modo próprio de

existir no âmbito da GR; além de remeter à própria experiência da dor e suas

reverberações para o corpo vivo. Iniciamos nossas reflexões pelo último aspecto

mencionado: o corpo vivo.

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Merleau-Ponty (1945/2006) já havia nos sinalizado que consciência como

sinônima de razão não diz respeito a nossa existência, pois o que compõe o nosso

existir é, antes de tudo, nossa condição corporal, nossa capacidade de sentir o mundo.

Ainda assim, nessa relação sensível que nos significa no mundo, não temos

dicernimento de todos os processos corporais, de todas as sensações, sobretudo no

que diz respeito ao nosso inconsciente.

Andrieu (2004; 2015) critica o sobrepeso que se dá à consciência

tradicionalmente e amplifica a noção de sensação a partir da concepção de corpo vivo.

O autor afirma que a sensação vibra em nosso corpo de forma instável antes que

tenhamos consciência, seja no orgasmo, seja na dor, sem necessidade alguma de

qualificação. “nosso corpo vivo sente o mundo, antes que nós tenhamos tido

consciência do que temos chamado até aqui de uma fenomenologia do corpo vivido”

(ANDRIEU, 2015, p.74). Os estudos desse autor nos trazem elementos importantes

para compreendermos a noção de sensação.

Sobre essa condição corporal a qual não acessamos conscientemente, Andrieu

(2014) apresenta a classificação: corpo vivo e corpo vivido. O corpo vivo se trata de

uma ecologia pré-motriz que é imediatamente sentida na sua relação com o mundo

pelo despertar e/ou ativação. Milésimos de segundos depois essa sensibilidade é

emergida no corpo vivido, dessa forma, nosso corpo vivo sente o mundo antes do

mundo vivido, que por sua vez, é anterior à consciência.

Observa-se, segundo Andrieu (2014, p. 6-7), que há uma estratégia de

abordagem do corpo vivido pelo corpo vivo de maneira imediata à ação:

A sensibilidade intuitiva é subconsciente, resultado da ecologia pré-motriz, incorpora-se no habitus. Essa sensibilidade é orientada por esquemas sensoriais elaborados no curso da experiência e que fornecem esse caráter intuitivo e espontâneo ao gesto da ação. Em mutação por adaptação informacional, o corpo vivo planeja, à nossa revelia, uma saúde precária e uma homeostase em desequilíbrio que nos força a nos reorganizar.

A dor, nesse sentido, é sempre sentida pelo corpo vivo antes que o corpo vivido

se dê conta, o sofrimento, portanto, sobressai-se na dimensão do vivido (sem se

desvencilhar do vivo obviamente dada a descontinuidade entre os dois). Enquanto a

dor nos convoca antes, o sofrimento é experiência que habita o vivido e povoa toda a

existência.

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Andrieu (2015) explica que escritores e artistas são capazes de ressentir a

potência de seu próprio corpo, buscando traduzir essa intensidade na expressão de

suas obras, de forma mais ou menos direta. A linguagem (artística e/ou verbal) se

configura, nesse caso, como “encarnação da sensação, o sentimento e a imagem que

emerge à consciência desde a profundidade do corpo vivo” (ANDRIEU, 2015, p. 55).

Restaurar o limiar de viabilidade desperta capacidades sem precedentes de

vida para as quais o sujeito não tem representação. De fato, conhecer o seu corpo

passa através da consciência do corpo vivido, mas isso é apenas a ponta do iceberg

do corpo vivo (ANDRIEU, 2015b).

Porém, a Emersiologia suscitada por Andrieu (2015, p.58), diferentemente da

fenomenologia, reconhece no corpo vivo “a constituição de sua estética e de sua

estesiologia no afastamento mesmo e descontinuidade entre o corpo vivo e o corpo

vivido”. A Emersiologia admite a superabundância do vivo sobre o vivido no sentido

de aceitação ontológica, mas sem reduzir o corpo a isso.

Distante do nativismo reflexo, a existência bruta das coisas no mundo nos faz sentir sua presença e sua intensidade a partir do engajamento perceptivo. É necessário um aspecto fenomenal para o percebido para que ele seja descritivo no vivido corporal da interação com o mundo, mesmo se em razão do seu caráter implícito, a consciência pode ser somente aprendida claramente ou diferentemente através do que aparece no corpo em ação (ANDRIEU, 2016, p.160).

Andrieu (2016) destaca que, antes de seu falecimento o filósofo Maurice

Merleau-Ponty trabalhava em um projeto denominado “O ser e o mundo: o visível e o

invisível”, em que compreende uma filosofia do corpo que envolve de uma só vez

interações ecológicas e bio-culturais através de sua porosidade com o mundo. Andrieu

(2016) pensa que sem estas adaptações por parte do filósofo, não haveria a dinâmica

ecológica que muda a cada momento as qualidades internas durante o

desenvolvimento da plasticidade do organismo. E sem o trabalho crítico desenvolvido

por ele, não seria possível conceber o corpo vivido sem separação de si e do esquema

corporal.

As experiências de dor povoam as existências, rasgando-as, e estabelecem

uma temporalidade que foge da cronologia normal. Se para uma ginasta, entrar para

competir com uma lesão provocada pelo próprio treinamento já evade o suportável,

lesões semelhantes, vivenciadas por pessoas não treinadas, assumem outros

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significados e outros limites. Sendo assim, e sem fazer apologia à dor, pensamos que

a dor vivida no treinamento da GR amplifica a carne das ginastas, expande fronteiras,

revisa limitações, a trazem para o presente, ecologiza o corpo adentrando nas

sensações do corpo vivo em constante possibilidade de expansão. A dor e o

sofrimento amplificam limites pelo esforço realizado nos esportes de alto rendimento.

O corpo vivo é uma filosofia imediatamente ecológica e sociológica pelas interações de sua matérias com os ambientes que atravessam sua porosidade. Sem essa permeabilidade, a adaptação não favorece a ecologização dinâmica que modifica a cada instante as qualidades internas e desenvolve a plasticidade (ANDRIEU, 2016, p. 155).

Ao entrevistar as ex-ginastas percebemos que as dores da rotina de

treinamentos não mereciam destaque em suas falas porque eram tidas como

essenciais ao fazer ginástico. Era claro para todas elas que potencializar suas

performances exigia esgotar suas energias e buscar a perfeição do gesto por todo

tempo que pudessem aguentar, pois essa era a condição mínima e só assim seria

possível explorar todo o rendimento dos seus corpos. As dores e sofrimentos pelas

quais passaram distinguem um atleta internacional de uma pessoa não treinada pois

a extrapolação das fronteiras dilata as capacidades do corpo.

Para Andrieu (2004, p. 53), essa naturalização da dor por parte das atletas se

dá porque a dor no treinamento esportivo compõe um processo de ritualização. “O

ritual do treino contém o seu limite interno que convém ultrapassar. A iniciação

mantém-se íntima e a ultrapassagem de si isola o desportista, confrontando-o apenas

com a sua dor”. Desse modo, entendemos que no esporte de alta performance, do

qual as entrevistadas fizeram/fazem parte, o treinamento para a dor é tão amalgamado

aos rituais esportivos que, desde que não atrapalhe o rito, não merece destaque.

Ainda sobre essa secundarização por parte dos atletas pelas dores e

sofrimentos causados pelo esforço, na obra “Donner le vertige: arts immersives40”

Andrieu (2014b), ressalta que para os artistas circenses, a dor e as lesões são preços

40 A obra é publicada na língua francesa e ainda não tem tradução para o português. Na nossa tradução seria: “Dar-se à vertigem: artes imersivas” (ANDRIEU, 2014b).

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a pagar, são a recolocação do artista em seu corpo, as sensações que produzem

confiança corporal e compõem o processo do treinamento.

O autor avalia que o corpo do artista circense tem um sentimento de

onipotência. Mas quando ocorre uma lesão, o senso de auto-recuperação se torna

possível pelas exigências impostas em seu contexto (ANDRIEU, 2014b). Essa

onipotência também nos remete para os corpos ginásticos, aqueles que podem muito,

que saltam, se dobram, fazem acrobacias, se esticam e manipulam objetos de formas

mágicas aos olhos do espectador. Entretanto, na perspectiva de poder tudo, ele vai

reclamando suas próprias demandas através das dores e finalmente das lesões. E

quando se chega finalmente em um limite funcional, a recuperação também não pode

ser no tempo do corpo não treinado, porque as competições possuem calendários.

Nas falas das ex-ginastas G1 e G3 situações assim foram abordadas:

Eu já rompi o ligamento do pé, eu também tive estiramento na minha panturrilha esquerda, um mês antes das Olimpíadas, daí eles me proibiram que eu tava numa competição na Alemanha, falaram pra minha técnica que se eu competisse ela ía me perder pras Olimpíadas. Eu tive que me recuperar muito rápido, muito rápido, mas, a fisioterapeuta era a melhor da cidade, conseguiu me recuperar (G1).

Quando eu era do individual, eu tinha uma inflamação na lombar, como eu não tinha muito tempo pra parar e cuidar porque sempre tinha muitos campeonatos fora do país, minha inflamação só aumentava, ela melhorava 40% mas aí eu tinha que viajar, então assim, ela nunca era tratada 100%. Quando eu tava no conjunto foi a época que eu mais senti dor na coluna que até minha coluna travou e eu nem conseguia andar direito num dia e no outro dia eu voltei pra treinar pra não perder o meu lugar porque senão eu não ía pra olimpíada (G3).

As ex-ginastas G1 e G3 se recuperaram, foram aos JO, não disseram

expressar arrependimento, pois lutaram e escolheram isso, mas carregam

atualmente, em seus corpos de mulheres, profissionais, adultas, os resquícios das

lesões e de outras práticas assumidas nesse período. A G1 confessa que seu joelho

sempre “anuncia” a chuva, através da dor favorecida por temperaturas mais baixas. E

a G3, além dos cuidados com a coluna que precisará ter sempre, sofre de dores no

estômago, fruto da ingestão descontrolada de medicamentos laxantes.

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Andrieu (2014b) destaca que o corpo inconsciente ressurge na lesão como um

sintoma que excede a lesão que é simplesmente funcional. O autor entrevista um

artista circense que revela que é como se a dor quisesse comunicar ao seu corpo:

pare! Atuando como um testemunho que indica um problema, uma forma de escutar

o corpo, uma forma de leitura corporal que interroga o momento que ele não está bem

e o que deve ou deveria fazer para corrigir.

Nesse sentido, o autor aponta que é preciso diferenciar a lesão da dor

funcional porque a lesão exige imediata tomada de decisão. É preciso aprender a

sentir dor porque através dela se tem a consciência de que seu corpo não vai durar

para sempre.

Quando a ex-ginasta G1 relata “eu adoro a minha dor” se refere a esta como a

propiciadora de suas conquistas, valoriza-a intensamente porque foi através dessa

dor que ela aprendeu e foi treinada para suportar tudo o que poderia para vencer na

vida. Destarte, essa frase pode conter ainda uma interpretação menos moralista e

objetivista, pois é possível que a G1 realmente aprecie a sua dor. Andrieu (2014b)

atenta justamente para isso. O autor avalia que as fronteiras entre prazer e dor são

variáveis e que durante o engajamento psíquico deve restar um prazer mesmo na

dificuldade. De fato, a dor ou as lesões podem estar presentes em situações

prazerosas, sendo a recíproca também possível.

Essa relação entre prazer e dor é desenvolvida por Andrieu (2004) em uma

obra41 anterior. Ao tecer uma reflexão acerca do sadomasoquismo o autor comenta

que num mundo cada vez mais anestesiado, em que o toque se torna um crime e a

integridade do indivíduo é desejada tal qual um direito natural, as experiências físicas

são extremamente necessárias para quem sente necessidade de conhecer seus

próprios limites e seu interior. Desse modo, consentir ser tocado, ainda sendo visto,

significa transformar o espetáculo do corpo em experiência da carne, renovando a

estesiologia enquanto preferência estética. Embora não estejamos fazendo apologia

ao sadomasoquismo, porque não cabe aqui, essa ideia de redimensionar a dor para

experiência da carne nos é cara porque exorciza a sua compreensão demonizada

enquanto experiência.

41 “A Nova Filosofia do Corpo” publicada em língua portuguesa em 2004 pelo Instituto Piaget.

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Algumas técnicas de modificação corporal também penetram profundamente

nas experiências de dor e sofrimento, a exemplo dos piercings e das tatuagens, que

são ainda mais diretos em colocar a dor no centro da existência, como forma de

enfrentamento de um mundo anestesiado, como modo de encontrar a si próprio

(ANDRIEU, 2004).

A dor colocada no centro da existência é superlativizada e tomada como

linguagem artística quando essas intervenções são reunidas em performances, com

significados que ultrapassam ainda mais a finalidade estética, já que o corpo se torna

o local no qual o mundo é questionado. Estamos nos referindo à Body Art,

compreendida por Medeiros (2009) como linguagem que amplifica a compreensão de

corpo fenomenológico, ampliando os sentidos que o corpo assume na Educação

Física, seja nas aparências, na beleza, na felicidade, no prazer e na dor. Expandindo

os horizontes de compreensão sobre a existência, o corpo e o conhecimento da

linguagem do corpo em sua polifonia.

O pensamento de Ortega (2008, p.64) parece ir ao encontro do de Andrieu

(2004) e do de Medeiros (2009) quando afirma que a “autenticidade da dor como

investimento subjetivo na matéria corporal presente nas modificações corporais,

constitui uma resposta a uma cultura de anestesia sensorial e de patologização da dor

e do sofrimento”. Uma espécie de reinvindicação da sensorialidade, para além da

visão, como via de acesso ao corpo vivido. Nesse sentido, é preciso que a dor seja

considerada no contexto da experiência.

A dor nos leva ao presente, ao limite de nós mesmos e modifica a pessoa como

um todo. A nosso ver, as ginastas, ao concordarem em viver num regime de

treinamento de alto rendimento, sucumbem e aceitam reconhecer e elevar seus

limites, mesmo que não estejam plenamente conscientes disso.

Quando a G4 comenta que competiu com o braço fraturado, não era

exclusivamente da dor insuportável da qual reclamava, mas do resultado insatisfatório

obtido na competição, que não justificava todo o seu sacrifício. Isso se explicita mais

ainda quando ela menciona a medalha de ouro conquistada na competição seguinte,

nesse caso sim, a dor pareceu suplantar toda a negatividade da ocasião.

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A dor mencionada pela G4 se deu sob a forma de lesão em um momento de

risco que compunha um dos pontos altos da série de conjunto misto de arcos e fitas

da SBC de 1999, quando duas ginastas, em salto, atravessavam um arco segurado

por uma terceira. A imagem 13 registra esse momento nos JO de Sydney, ocorrido

um ano após o acidente que machucou a G4.

De acordo com Andrieu (2014b), sobre a percepção dos artistas circenses, o

risco foge à consciência durante o desempenho. Durante a apresentação, ele está

próximo constantemente, mas não é acreditado, é controlado, de modo que é preciso

confiar na memória e nas reações. Na GR, os elementos corporais que subtendem

algum tipo de risco para a integridade da ginasta normalmente atribuem um diferencial

na composição dos exercícios. Na época em que a G4 sofreu o acidente (Ciclo

Olímpico 1997-2000) o CP não permitia ações nas séries de conjunto como: “carregar

uma ginasta”, “caminhar por cima de uma ou várias ginastas” ou ações similares. A

partir do ciclo 2005-2008 essas ações foram permitidas desde que de forma

passageira. Portanto, podemos considerar que a imprevisibilidade e os riscos das

séries de conjunto aumentaram desde então, consequentemente, as experiências de

vertigem mencionadas por Andrieu (2014b). Embora se repita a série exaustivamente

durante os treinamentos, a sensação perdurará por conta do risco eminente.

Imagem 13: Ginastas atravessam o mesmo arco saltando.

Fonte: página pessoal do Facebook da ex-ginasta Dayane Camilo

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No treinamento das práticas corporais sistematizadas a centralidade do

processo não é a dor, mas como ainda não se criaram formas de se treinar o corpo

para performance sem enfrentar as limitações das capacidades físicas, a dor é sentida

e é preciso que se aprenda a lidar com ela. Nesse contexto, a dor e o sofrimento são

treináveis, fazendo parte dessa experiência educativa no esporte.

Alguns fazeres artísticos (a exemplo do circo em Andrieu e da GR nesse

estudo) e as experiências de sofrimento e dor apresentam relações estreitas, por

vezes imbricadas e por ora condicionantes. A dor e o sofrimento fazem vibrar a estesia

do corpo, fazem emergir o corpo vivo, nos fazem amplificar divisas. Contudo, investir

intencionalmente nessas experiências fazendo apologia direta a dor e ao sofrimento

não é o que se busca nesse trabalho, mas compreender que inexoravelmente farão

parte do processo de treinamento. O que não podemos negar é que as experiências

de dor e sofrimento na GR resultam em lindas produções artísticas que comprovam a

amplificação da metafísica carne pelas técnicas de corpo.

Nóbrega (2015), a partir da noção de ecologização de Andrieu (2014), se utiliza

do termo ecocoreografia para designar a experiência do corpo que dança no contexto

filosófico da Emersiologia. Ao dançar, o corpo é capaz de ecologizar-se criando

intercorporeidades em uma relação de inerência.

Com a noção de ecocoreografia também buscamos ampliar as relações entre o corpo estesiológico e a Emersiologia, as sensações do corpo vivido, cuja cartografia de movimentos e gestos produzem percepções descontínuas em nosso próprio corpo e no corpo do outro, no corpo de quem dança e no corpo de quem aprecia a dança (NÓBREGA, 2015, p.48).

A ginasta que se apresenta com a devida concentração e realiza movimentos

dificílimos que combinam usos extremos das capacidades físicas (hiper flexibilidades,

potências máximas de força em saltos,) com a fineza do manejo com aparelhos

portáteis em movimento, já executaram aqueles movimentos tantas vezes, já

investiram tão fortemente na ultrapassagem de barreiras que, para o espectador,

parecem fáceis. A carne amplificada pela dor e pelo sofrimento agracia o nosso olhar.

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A ginasta ecologiza seu corpo na dor e no sofrimento criando novas formas de

expressão e novos vinculações sensíveis com o mundo.

Na dor, sou tragada por mim mesma, por essa parte do meu corpo que não

reconheço como eu, que não controlo, que não prevejo. A dor me coloca onde nunca

estive antes, sem nunca sair de mim mesma. E me faz perceber que sempre haverá

algo em mim como enigma me destituindo da prepotência, do controle.

As reflexões de Andrieu nos ajudam a compreender o enigma do corpo porque

comprovam as atividades inconscientes, das quais não temos controle.

Ortega (2008), ao investigar a história cultural da visualização médica do corpo

relaciona-a diretamente à produção de discursos, fazendo coincidir o discurso do

corpo com o do conhecimento de si. O conhecimento do interior do corpo por meio

das tecnologias se compromete com a produção de uma interioridade mental e

espiritual. Embora essas descobertas tenham atingido patamares impressionantes

nos últimos três séculos, frente à biotecnologia, em que os dados do interior do corpo

recebem visibilidades e interpretações imagéticas, o autor destaca que o corpo é um

processo vivo, aberto ao mundo e por isso não se confina em seus limites físicos, ao

contrário, delineia seus próprios limites e se expande para além deles. Portanto, o

corpo nem é materialidade resumida em si mesmo, nem abandono no ciberespaço42,

mas é sua constante redefinição que o define.

Nesse sentido, por mais que as biotecnologias deem visibilidade às partes do

corpo as quais não tomamos conhecimento conscientemente, a exemplo da atividade

parassimpática, movimentos peristálticos, trocas gasosas, entre outros, para sanar

“lacunas” do corpo, ainda assim, permanecerão outras lacunas. Isso por que há

funcionamentos orgânicos e atividades sensíveis que nos escapam enquanto corpo

vivo.

O filósofo francês Serres (2004), crítico do cartesianismo e do aprisionamento

da linguagem aos sinais em vez do reconhecimento da importância dos demais

sentidos na constituição das ideias, se refere aos seus mestres da ginástica e do

alpinismo como protagonistas no seu desenvolvimento intelectual. De acordo com

42 Espaço de comunicação por redes de computadores. Sem contatos corporais ao vivo (ORTEGA, 2008).

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este autor, a vida prática ensina a respeitar o que a coisa prescreve e não apenas a

opinião que se tem sobre ela. Se nos dedicarmos a qualquer atividade, teremos o

suporte corporal da intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo, da

criatividade (SERRES, 2004). Ele destaca que apenas seus professores de práticas

corporais os ensinaram o poder do corpo. No ápice de uma preparação corporal, que

implica no engajamento total com o suor, o fôlego, a leveza, a adaptação, o ginasta

treinado pode se transformar em anjo, o que jamais aconteceria de forma inesperada,

dado que se beneficiam muito mais de corpos perfeitos do que os corpos dotados de

uma flacidez disforme. E acrescenta: “pratiquem o exercício do corpo como

preparação para a subida aos céus” (SERRES, 2004, p. 22).

Essa referência de Serres (2004) às práticas corporais como suporte de

aprendizagem sobre o poder do corpo se repete nas falas das ex-ginastas

entrevistadas ao indaga-las sobre o que levaram da GR para a vida atual:

Acho que, primeiro, a ginástica que me fez, eu sou a G1 hoje, por causa da ginástica, se não seria mais uma, entendeu? Eu sou alguma coisa hoje por causa do meu esporte. Eu procurei? Procurei! Mas ele me ajudou. Eu sou, eu corro atrás das minhas coisas porque sou forte. Eu vou atrás daquilo que eu quero, eu tenho foco, eu tenho objetivo, eu não deixo, é... se eu quero, eu vou atrás, eu não deixo nada ficar pra trás. Então assim, a mulher que eu me tornei hoje, é tudo por causa do meu esporte. Eu sofri? Sofri, mas isso me fez crescer, entendeu? Eu tive todo um crescimento na ginástica. Eu me formei... tudo o que eu sou, mas tudo tudo, eu devo à ginastica rítmica (G1).

A ex-ginasta G1 comenta que toda a sua força e determinação foram

desenvolvidos na ginástica, pois além de ter-lhe feito uma pessoa forte, a fez crescer

e propiciou oportunidades, a exemplo da sua formação acadêmica. Na sua

experiência da G1 transcendeu a dor do treinamento em forças para a vida. Ela

exprime que não apreciaria ser uma pessoa comum, e sim essa que ajudou a

alavancar a ginástica brasileira, mesmo custando parte de sua infância e sua

juventude.

A G1 se projeta nas apresentações que realizou quando compôs a seleção

brasileira. A GR a permitiu expressar sua obra gestual para que sua história se

modificasse, para que todos a reconhecessem através das vezes que se mostrou na

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quadra, aos olhos do público. Sua participação na SBC foi marcante, era conhecida

como a ginasta que executava os elementos mais arriscados, a “kamikaze” da equipe,

que não se permitia errar.

De acordo com Merleau-Ponty (1961/2004), a vida não explica a obra, mas se

comunica com ela. O que somos, não deixaremos de ser e no que nos transformamos

não se desvincula do que somos, há na vida e nas nossas relações com o mundo um

misto de liberdade e de projeto inicial, compreender os rumos que essa liberdade toma

passa pela compreensão desse projeto, no entanto, este não é determinante muito

menos imutável. “Há sempre vínculos, mesmo e sobretudo quando recusamos aceita-

los” (MERLEAU-PONTY, 1961/2004, p.138). Nessa compreensão, a G1 nunca

recusou seus vínculos, ao contrário, transcendeu suas marcas assumindo-os e dando-

lhes a devida importância.

A visão da G1 coincide com o que a G2 destaca sobre sua trajetória ginástica:

Eu só sou hoje quem eu sou por conta da seleção brasileira, por causa

da ginástica. A ginástica me fez uma pessoa independente, uma

pessoa de respeito, uma pessoa com ética, uma pessoa que sabe ter

humanismo com sua atleta, muito por ter passado por um alto

rendimento pesado, por ter vivido com 10 crianças, porque são crianças

né, na seleção, de estados diferentes, culturas diferentes,

regionalização diferente, vocabulário diferente, toda a educação

familiar diferente. Então hoje eu acho assim, que a ginástica ela me

proporcionou muitas coisas de valores, porque eu aprendi a respeitar o

outro, saber viver dentro daquela cultura diferente da minha, respeitar

quem é do nordeste, quem é do sul, quem é do sudeste, porque a

seleção de conjunto faz isso, trata como uma família, uma equipe (...)

O que eu aprendi mais foi que, tudo que traz benefício também nos

causa sofrimento. E que se a gente quer chegar em algum lugar, a

gente vai passar pelos caminhos do sofrimento porque vai ter que

chegar naquele ponto alto e pra chegar no ponto alto você perde seus

dias, perde sua infância, você faz sacrifícios. O que eu aprendi mais

assim é que se você tem um caminho pra seguir, um objetivo, você vai

ter que fazer sacrifícios, você vai ter que abrir mão, porque senão você

vai ser uma pessoa infeliz, porque nem você vai abrir mão do sacrifício

nem você vai chegar ao seu objetivo, você só vai ser uma sonhadora,

sonhar todo ser humano sonha, mas concretizar realmente são poucos

porque são poucos que tem coragem de passar pelos sacrifício (G2).

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A ex-ginasta G2 também alude ao seu sofrimento e diversidade de sua equipe

o seu êxito atual na vida, comenta que aprendeu a lançar mão do sacrifício para poder

atingir os seus objetivos. A experiência de sofrimento da ex-ginasta é expressada

como condição para atingir êxito. Foi isso que a prática da GR a ensinou, que nada

pelo que se luta se perde no acaso, e toda conquista é árdua, exige coragem e

desprendimento.

Já a ex-ginasta G3 destaca que além de aprender a lidar com os problemas da

vida de uma forma mais tranquila, sente que a ginástica a deixou mais perfeccionista,

disciplinada. Entretanto, esse segundo aprendizado nem sempre foi positivo para sua

vida, pois esse perfeccionismo sai do controle e já teve de enfrentar distúrbios como

síndrome do pânico.

Acho que faz parte do crescimento da vida mesmo sabe, do ser

humano? Hoje eu não treino mais, a gente passa por problemas na

nossa vida que não tem nem tanta proporção, é até pior as vezes né,

do que a gente passava como atleta, mas, tudo aquilo que a gente

passou serve de lição pra que a gente possa ter mais perseverança,

possa ter até mais força de vontade de enfrentar os problemas, quando

surgem na nossa vida.

A disciplina. Eu sou muito chata, muito perfeccionista. Esse negócio de

ser perfeccionista demais nem é uma coisa tão boa assim sabe? Eu

tenho muitos problemas por conta disso, por ser perfeccionista demais

eu me irrito muito fácil com as coisas quando não saem do jeito que tem

que sair. Até síndrome de pânico eu tive, de uns dois anos pra cá, se

aflorou mesmo por conta de estresse mesmo, as coisas que não podem

sair do lugar... e isso tudo vem também do esporte, a ginástica, como

qualquer outro esporte de alto-rendimento, a gente tem que treinar,

treinar, treinar pra ser perfeito, e esse perfeccionismo, na minha vida,

me atrapalha um pouco. Mas assim, por um lado também não é tão

ruim assim, eu tento fazer as coisas do jeito mais correto possível, o

esporte me ensinou que eu não preciso passar por cima de ninguém

pra conseguir o meu objetivo, que a gente precisa só trabalhar, ter foco,

objetivo, e é isso, disciplina, respeito ao outro sabe, eu acho que tudo

isso o esporte me ensinou.

Acho que respeitar o outro, o nosso adversário, eu acho que esse é o

ponto principal, o respeito mesmo sabe? Porque é tanta guerrinha

assim dentro da GR, tanta vaidade, que é um esporte só de mulher

então imagine a confusão né que é, você sabe disso, é muita vaidade

que tem, uma querendo ser melhor que a outra, então muitas vezes

passam por cima mesmo de autoridade, de, sei lá, eu acho que o

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respeito foi o que eu aprendi como ginasta em relação as minhas

adversárias, sabendo que elas também poderiam passar de mim,

entendeu, e que pra isso não ocorrer eu tinha que trabalhar. Eu não

podia estagnar, então eu sempre tinha que ir atrás de conhecimentos

de treinamentos fora, pra poder me superar, não é superar o outro, é

me superar mesmo, eu acho que isso a ginástica também vai deixar

marcado na minha vida (G3).

A visão da G3 é importante porque estabelece um contraponto na maneira

como as outras ex-ginastas entrevistadas enxergam os sacrifícios vividos. Nem

sempre o que sucede a dor e o sofrimento é o alívio, a vitória, as experiências bem

sucedidas. Algumas marcas são tão profundas que transformam-se em traumas que

se carregam pela vida. As experiências de dor e sofrimento das práticas corporais

podem demarcar outros âmbitos em que esses modos poderiam ser suavizados. Mas

não são porque se aprendeu que deveriam ser resolvidos assim, que só assim

funcionaria.

A ex-ginasta G4 destaca que é extremamente grata pela vida que teve dentro

do esporte, sobretudo pelas conquistas e pela formação ética.

Ah, eu, significa assim gratidão, eu sou muito agradecida pela minha

vida dentro do esporte, dentro da ginástica rítmica, porque é uma

história de muita dedicação, de muita abdicação, de muito sacrifício

mas que tudo foi recompensado, se hoje eu sou técnica da seleção

brasileira foi toda bagagem que eu tive dentro da ginástica rítmica, de

tudo o que eu conquistei dentro desse esporte, e a gente não conquista

nada sozinho, se eu for falar desde o começo da minha carreira, dos

meus pais que me apoiaram, de todo mundo que ajudou, da

universidade, da UNOPAR, de tudo que eu aprendi lá, eu ficaria aqui

horas falando de todo mundo que ajudou, mas eu vejo assim que sou

muito grata ao esporte, eu aprendi tudo dentro do esporte, eu vivi,

conheço muitos países, tô aqui, tudo gratidão, só tenho gratidão por

tudo, por ter vivido tudo isso dentro do esporte.

a superação, atingir metas, o que é certo e o que é errado, tudo, a minha

educação foi dentro do esporte e eu sou uma pessoa que leva ao pé da

letra, hoje eu sei o que é certo e o que é errado porque eu aprendi

dentro do esporte, aprendi a lutar pelo que eu quero dentro do esporte,

a ter metas na vida dentro do esporte, a saber perder dentro do esporte,

a saber ganhar dentro do esporte, a amizade, as minhas amigas a

valorizar dentro do esporte, tudo, tudo, a minha educação foi toda

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dentro do esporte. E continua ainda, hoje eu tento passar tudo pras

meninas (G4).

Observamos que todas demonstraram gratidão em relação aos valores

apreendidos no esporte, destacando a força, a perseverança, a determinação, o

perfeccionismo. E todas elas atribuem essa aprendizagem à dedicação, as

dificuldades, aos sofrimentos. Isso para nós reforça o entendimento de que essas

experiências partiram de suas relações estesiológicas na prática da GR.

Embora cada ex-ginasta tivesse vivido a GR de modo único e particular, todas

demonstraram compreender os sofrimentos e dores que as afligiram durante suas

carreiras ginásticas de forma similar, como essenciais para seus crescimentos como

pessoas.

O espetáculo esportivo universaliza mais do que gestos, existências, antes

dele, os corpos já trazem marcas, passando por ele, saem impressos pelas

contingências esportivas. As ginastas europeias delinearam as bases gestuais da GR

(LISITSKAYA, 1995; LLOBET, 1998), portanto apresentam relações institucionais

mais íntimas com essas contingências. Porém, isso não garante estatismo no modo

de fazer GR, à medida que outros países vão participando de intercâmbios e

campeonatos as experiências do corpo em movimento sedimentam-se em

conhecimento fazendo circular construções e desconstruções de gestos. Nesse

sentido, a apropriação do conhecimento ginástico se dá de forma sistemática e

simultânea em muitos países, que perpetuam técnicas europeias e bebem na fonte

através de viagens e contratação de professoras estrangeiras. Isso significa que não

há muitas escolhas quando se trata de montar um treinamento de GR para uma

seleção nacional. É preciso que, num jogo de empatia entre técnica e ginastas se

ganhem possibilidades de tornar o processo mais significativo para todas.

No entanto, de acordo com Merleau-Ponty (1945/2006, p.256): “A diferença das

mímicas esconde uma diferença das próprias emoções. Não é apenas o gesto que é

contingente em relação à organização corporal, é a própria maneira de acolher a

situação e vivê-la”. Cada ginasta acolhe e transcende os seus sofrimentos e dores de

uma forma particular, porém, resguardando as devidas similitudes com o próprio fazer

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ginástico, já que nesse contexto é preciso bancar a escolha de fazer parte de uma

seleção de alto rendimento.

A Imagem 14, a seguir, retrata um momento de treinamento de atletas de base

da GR em um ginásio na Rússia, país campeão das últimas quatro (4) edições dos

Jogos Olímpicos.

Imagem 14: A treinadora Elena Orlova ajuda meninas de 4 a 5 anos de idade no treinamento de flexibilidade no Palácio Dinamo Desportos em Moscou, Rússia.

Fonte: http://www.mscottbrauer.com/dinamo-gymnastics/#5

O que nos impressiona, a princípio, na Imagem 14 é a idade da ginasta. Desde

o início do nosso texto, temos destacados que a dor e o sofrimento são contingências

da existência, consequentemente, isso também se configura no contexto educacional.

Além do mais, argumentamos sobre a possibilidade da estesia da dor e do sofrimento.

Porém, precisamos ponderar que a estesia é uma relação de comunicação sensível

que aprofunda a nossa própria noção de corpo estesiológico, entendendo como pré-

condição que faça sentido para quem deseja vive-la. Com isso, problematizamos o

fato de meninas tão novas serem capazes de vivenciar essa conexão sensível a partir

da dor quando na verdade poderiam estar brincando, jogando, representando,

imaginando... Porém, há de se considerar que uma imagem não reflete elementos

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didáticos para se avaliar uma metodologia de ensino, pois é possível que o

engajamento dessas crianças na GR se dê através de intervenções mais lúdicas, além

disso, se pensarmos no aspecto produtivista, não é a toa que as ginastas russas

encabeçam todos os pódios de campeonatos internacionais, sim, elas treinam a partir

das técnicas que elas mesmas criaram e exportaram. Por último, há de se analisar

que o contexto cultural, as educações, a historicidade da prática, a instituição

esportiva russa, dentre outros fatores que constroem, interferem e caracterizam a

conjuntura da imagem, possibilitam engajamentos estesiológicos diversos.

A dor e o sofrimento são parte desse desafio, portanto não devem ser negados

nem reforçados. É preciso que o aprendiz descubra seus próprios caminhos para

enfrenta-los, para vive-los.

O treinamento é mais do que uma transformação do corpo em máquina, ele

glorifica um corpo que se desafia e alcança cada vez mais. A repetição de um gesto

técnico justifica a exigência do “não erro”, pois a técnica milimétrica só se alcança

assim. A dor é uma consequência de se chegar próximo ou ultrapassar os limites do

corpo.

A beleza na GR se dá justamente na possibilidade da criação do estilo próprio, na

possibilidade de viver o improviso e o imprevisto, na possibilidade de ser original, de

sensibilizar o público – porque as experiências de dor e sofrimento amplificam a

metafísica da carne (MERLEAU-PONTY, 1961/2004), se dão em estesia de forma que

o corpo sempre criará novas formas de ser belo. No desafio corporal, dos movimentos

que parecem inatingíveis, que nunca foram praticados, que, durante as dores e

sofrimentos do treinamento passam para a categoria de realizáveis, de originalidade.

É dessa amplificação que falamos em relação à GR do alto rendimento.

Se os pintores, de acordo com Merleau-Ponty (1961/2004), já exprimem formas

artísticas que indicam movimento continuado de registros, imaginemos as ginastas,

que apresentam suas artes com expressões que nascem, se desenvolvem e morrem

em minutos, ao final da série. E só renascem na próxima apresentação, de forma

diferente. Embora esse momento possa ser captado pelos instrumentos de imagem,

ele não vai se repetir nunca mais, pois são efêmeros e o que podemos carregar são

as sensações que nos envolveu. A arte do corpo é sempre algo “por fazer”.

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Porpino (2006), à luz de Nieztsche, refere-se a vontade de potência do corpo

como uma força criativa proporcionada pela arte, de modo a aumentar sua força

criativa e retomando estados de prazer. Ela diz que dançando, muitos seres humanos

podem expressar a plasticidade do seu corpo, maleabilidade de lidar de forma criativa

com situações que pareciam petrificadas por verdades irrefutáveis. Para usar uma

expressão nietzscheana, é a vontade de potência, capaz de transformar o instituído

fazendo emergir do próprio corpo a possibilidade de transformação (PORPINO,

2006,). E continua sua análise evidenciando o mundo das aparências nietzscheano

em sua realidade mutante e contraditória, fazendo refletir sobre a coexistência do

corpo real e imagético, que se ressignificam e não negam a realidade ambígua da

corporeidade (PORPINO, 2006).

Pensar a corporeidade faz-nos descobrir essa essência dialógica do ser humano que guarda em si a possibilidade de conviver com realidades opostas, de não se resumir a apenas um aspecto da existência e de transitar por caminhos que aparentemente não se cruzam. Em se tratando dessa peculiaridade, qualquer tentativa de qualificar os seres humanos com adjetivações fixas ou de propor mudanças fundadas em substituições de posições antigas por posições novas pode significar a tomada de posturas maniqueístas que em nada coadunam com a realidade mutante e cambiante do ser humano (PORPINO, 2006, p.52).

A estesia transcende as interpretações simplistas das práticas corporais a

medida que não se restringe as suas nuances teóricas e muitas vezes deterministas

(a exemplo das críticas ao esporte de alto rendimento). Ao contrário, enquanto

condição existencial do ser humano amplia-se nas contradições e angústias dos

contextos, nas dores e prazeres do fazer, nas fruições e desafios do vivenciar, e,

principalmente, na justa estimulação entre a percepção do olhar ao mundo e o convite

à apreciação/apropriação dos saberes corporais. Viver em estesia é se lançar ao

enigma da experiência e a experiência nem sempre é boa.

Sofrer não destrói imediatamente, assim como não sofrer não elimina a

sensibilidade. Porém, compreender os sentidos que se entremeiam no sofrimento sua

constituição de mundo permite refletir sobre ele, e assim sendo, amplifica-se a carne

do mundo.

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Sofrimento e dor não se classificam apenas como um conjuntos de conexões

neurológicas, acasos ou azares, numa perspectiva centrada nos processos biológicos,

ou de vítimas mundanas, o sofrimento está implícito no existir, no exercício do

transcender e a cada vez que buscamos abdicar da anestesia do existir e nos

lançamos nos desafios da experiência.

Nesse caminho, Merleau-Ponty (1964/2009, p.134) esclarece:

O corpo é feito de duas faces, sendo uma, a do ‘sensível’, solidária com o resto do mundo: nele não há duas camadas ou duas faces, e ele não é, fundamentalmente, nem apenas coisa vista, nem apenas vidente, é a Visibilidade ora errante, ora reunida e, sob esse aspecto, não está no mundo, não retém, como num recinto privado, sua visão do mundo: vê o próprio mundo, o mundo de todos, e sem ter que sair de ‘si’, porque não é inteiro, porque suas mãos, seus olhos, nada mais são do que essa referência do visível, de um tangível medida a todos os seus semelhantes, dos quais recolhe o testemunho, por um passe de mágica que é a própria visão e o próprio tato (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 134).

Assim, ao ler, escrever, dançar, o sujeito humano pode criar maneiras de se

comunicar e não apenas de repetir verdades estabelecidas, sejam conceitos ou

práticas, ao invés de tornar-se indiferente, anestesiado diante da vida e do próprio

conhecimento (NÓBREGA, 2008, p.401).

Muitas críticas ao esporte de alto rendimento parecem desconsiderar o

posicionamento do sujeito perante o seu mundo, que incluem suas opções,

orientações e escolhas de vida. Quando a investigação perpassa as características

do treinamento esportivo parece que só há duas opções: fazer críticas ferrenhas aos

sacrifícios dos corpos, os arcabouços de sujeição, submissão, esquadrinhamento,

economia e jogos de poderes tomados como uma micro estrutura de uma sociedade

injusta, ou, o oposto disso, as investigações que caracterizam, analisam ou propõem

tecnologias, instrumentalizações ou qualquer tipo de contribuição que sirva para

melhorar ou potencializar uma estrutura que já existe, sem críticas.

Não pensamos que as duas possibilidades se anulam, nem que ambas não

sejam extremamente importantes, destarte, pensamos, à luz de Merleau-Ponty

(1945/2006) que elas podem se complementar e seguirem incorporando diferentes

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inteligibilidades. E um caminho apontado pelo nosso autor é dar voz à experiência. A

experiência como iniciação aos mistérios do mundo.

De acordo com Nóbrega (2015) o nosso filósofo intenciona estar em espaços

onde reinem as ambiguidades, nas lacunas onde emergem as poesias. Pois a razão

busca a clareza, sem sucesso. Com isso, compreende que as sensações não se dão

de maneira isolada, pois não percebemos as coisas fora do que elas aparecem. O

mundo é habitado por muitos seres, que vivem juntos, em coletividade, sem contar

com o inconsciente. Portanto, a razão absoluta é abalada por esses aspectos.

A racionalidade não se coloca exatamente como um problema, pois não há

incógnitas por trás dela, a assistimos o tempo todo, a cada instante, porque ela traz

conexões entre as experiências e somos nós quem as estabelecemos. Podemos dizer

que o mundo e a razão são misteriosos porque estão aquém das soluções. A tarefa

da verdadeira filosofia é de reaprender a ver o mundo, e nesse sentido, a narração de

uma história pode ter tanta profundidade quanto um tratado de filosofia. Pela reflexão

e pelo empenho em nossa vida é que nos tornamos responsáveis pela nossa própria

história, exercendo-a (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

Com essa responsabilidade existencial a qual nos encontramos, o corpo como

enigma também supõe uma noção de liberdade. Essa noção nos é trazida por

Merleau-Ponty (1945/2006) no último capítulo da Fenomenologia da Percepção. É

retomado em outras obras, a exemplo dos programas de rádio veiculados em 1948 e

transcritos na obra Conversas (MERLEAU-PONTY, 1948/2004b), quando comenta

que a única forma de liberdade perante a passividade da cultura como linguagem que

recebemos de fora é a instância crítica que se dá na participação ativa no mundo.

É preciso ir além, buscar, se colocar, estar em constante interrogação, mas

sem a arrogância das certezas. Quando Merleau-Ponty (1945/2004b) destaca a

liberdade não é de uma dimensão cognitivista em relação ao conhecimento que ele

se refere, mas ao aprofundamento das relações sensíveis com os outros seres, com

as nossas sensações, com o mundo.

Nesse contexto, Merleau-Ponty (1948/2004b, p.50) classifica a vida como uma

perpétua inquietude e coragem.

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Não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmos, que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida ‘interior’ que não seja como uma primeira experiência de nossas relações com o outro. Nesta situação ambígua na qual somos lançados porque temos um corpo e uma história pessoal e coletiva, não conseguimos encontrar repouso absoluto, precisamos lutar o tempo todo para reduzir nossas divergências, para explicar nossas palavras mal compreendidas, para manifestar nossos aspectos ocultos, para perceber o outro. A razão e o acordo dos espíritos não pertencem ao passado, estão, presumivelmente, diante de nós, e somos tão incapazes de atingi-los definitivamente quanto de renunciar a eles (MERLEAU-PONTY, 1948/2004b).

A noção de liberdade exige de nós um entranhamento no futuro, no porvir, um

comprometimento de que algo tenha sido feito antes por ele para que o instante

seguinte possa se beneficiar. Mas é preciso que cada instante possa envolver os

instantes seguintes, não podem ser fechados entre si. Para tanto, quando tomada a

decisão eu possa me beneficiar do que me propus através da existência de uma

propensão do espírito (MERLEAU-PONTY, 1945/2006). Nessa perspectiva, a noção

de temporalidade está implicada na liberdade. “Sou eu que dou um sentido e um porvir

à minha vida, mas isso não quer dizer que esse sentido e esse porvir sejam

concebidos, eles brotam de meu presente e de meu passado e, em particular, de meu

modo de coexistência presente e passado” (MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 598).

Os exemplos da dor e da fadiga são usados por Merleau-Ponty (1945/2006)

para refletir sobre como essas jamais poderiam ser consideradas causas exteriores

interferindo na liberdade. De fato, elas não vem de fora, mas circunscrevem um

sentido que tem a ver com minha atitude diante do mundo, pois a liberdade não

desenha figura particular, só põe estruturas gerais.

Embora a dor me faça ceder e a fadiga me faça interromper um percurso, não

gosto deles só porque já os qualifico previamente, mas porque escolhi de outra

maneira minha forma de ser no mundo. Liberdade não é fazer escolhas, é estar nas

escolhas, eu que qualifico os obstáculos, eles não existem em si. Sou livre para

escolher se gosto ou não de estar fadigado na exata medida que sou em relação ao

meu ser no mundo, seguindo um caminho para que eu possa transformá-lo

(MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

Escolher se dedicar a um projeto de vida incluso numa prática corporal de alto

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rendimento, a exemplo da GR, envolvendo todas as alegrias e percalços inerentes a

essa escolha, é algo que só tem a ver com a maneira como a ginasta escolheu estar

no mundo, se expressar para o mundo. Nesse caso, as dores, sofrimentos, dietas,

distâncias, dentre outros fatores não compreensíveis para alguém que aprecie de fora

pode não fazer o menor sentido ante os ganhos objetivos dessa escolha. Porém,

fazem todo sentido para quem se encontra nessa condição, pois diz respeito ao seu

vínculo estesiológico com a modalidade. Esse vínculo abarca um “sem números” de

razões consideradas negativas, assim como outros vários elementos considerados

positivos. De todo modo, não é através de uma balança simples em que se colocam

fatores bons e ruins e se constata para qual lado se pende que se encontra a decisão

de sair ou de permanecer na prática, não é assim que funciona. E mesmo que a

ginasta relate que se arrependeu pelos anos a fio “gastos” em um ginásio, isso

também não garante que ela não se arrependeria caso escolhesse outros rumos, dado

que eles não aconteceram e o tempo passou. Não importa o que aconteça depois da

prática, durante todos aqueles anos ela esteve ligada a proposta estética, as rotinas,

aos risos e choros que congregam ser uma ginasta de GR.

A causalidade é incompatível com a consciência que temos de nós mesmos,

enquanto a liberdade absoluta também é utópica. A verdadeira escolha é de nosso

caráter inteiro, de nossa maneira de ser no mundo (MERLEAU-PONTY, 1945/2006).

O que chamamos de obstáculos da liberdade são desdobrados por ela própria

– um rochedo só é grande para quem decidiu ultrapassá-lo (MERLEAU-PONTY,

1945/2006). Algumas coisas que eu consideraria nomear de dores e sofrimentos, as

ex-ginastas entrevistadas chamaram em suas falas de “cansaço”, “dorzinha”, “coisas

normais que acontecem quando se é ginasta”.

Eu me educo na dor e no sofrimento, desde que seja uma dor que eu escolhi

sofrer, porque se não for assim, não fará sentido para mim. Um treinamento só pode

ser difícil e doloroso para quem se submeteu a ele. Isso não quer dizer que essa

configuração seja engessada, pois meu corpo, enquanto campo perceptivo situado no

fluxo do tempo se transforma cada situação e se projeta no porvir, nesse sentido,

minha vinculação com o treinamento se modifica, se transforma. Merleau-Ponty

(1945/2006) reforça isso através das motivações, designando-as como meios de se

comunicar com a vida.

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Como essa pesquisa não se refere unicamente ao contexto do alto rendimento

esportivo é importante mencionar que os corpos ginásticos escolares, tão abordados

nas descrições das experiências também se figuram em enigmas, também suscitam

revisão de olhares para a prática ginástica. Guardando as devidas diferenças

contextuais, da equipe escolar a qual eu treinava como professora, também pude

colher as marcas positivas dos momentos que vivi lecionando aulas de GR, para além

das amizades construídas com as alunas.

Nossa prática era habitada por outros panos de fundo emblemáticos que

transversalizavam todo o trabalho desenvolvido. Estávamos em uma escola de origem

tradicionalista, católica e privada. Era preciso considerar que todas as intervenções a

serem realizadas priorizasse a formação das alunas para uma perspectiva cristã, para

que permanecessem na escola, algo que, ao contrário do alto rendimento, podia se

restringir à prática da GR. De todo modo, lutávamos com afinco para não reproduzir,

de forma irrestrita e descontextualizada práticas que objetivassem unicamente a

busca pelo movimento perfeito, pois ao contrário de uma seleção, os corpos que ali

estavam eram diversos, heterogêneos, passíveis de estabelecer relações de

aprendizagem e significância que não fossem de encontro aos objetivos educacionais

da instituição.

Sem dúvidas, ainda assim, havia o modelo representativo das ginastas que

víamos nas mídias. Mas o que era importante de fato era estar junto pela empatia

criada, nos desafiando e criando nossos próprios modelos também. Cada equipe quer

criar sua própria identidade, que é elaborada pelo sentir. Da coletividade, da empatia,

do que se fazia naquele tempo destinado a viver a nossa GR.

Os corpos do rendimento transcendem pela dor e sofrimento, ecologizam-se

nas experiências do treinamento, mas os corpos escolares também se transformam

na prática, que nem sempre se dá nas intervenções que provocam sensações

desagradáveis, mas inspiradas nos desafios propostos pela alta performance se

debruçam na busca pela qualidade dos movimentos e consolidação dos processos.

Minhas ginastas não criavam originalidades no sentido de realizar grandes

feitos dignos de sair nas newsletters43 da FIG, seus desafios estavam na esfera de

43 Documentos oficiais da FIG que servem para atualizar, revisar ou explicitar regras.

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suas próprias possibilidades. Enquanto uma abertura total de pernas no chão pode

significar o céu para uma ginasta, para outra, que nunca vai realizar tal feito, um

manejo de aparelho aprendido ou um giro que se completa sob um pé, são glórias do

corpo. Na escola, com meninas comuns, que brincam no recreio, esses movimentos

não são simples, exigem esforço, aprendizagem, dedicação. Algumas delas nunca

executarão com o primor técnico das atletas internacionais, mas todas elas deveriam

ser motivadas a alcançar algo, a terem o papel delas na equipe.

Não importa se meu objetivo final é fazer uma finalista olímpica, querer que

minha ginasta seja selecionada para um campeonato nacional, para participar de uma

competição escolar ou se apresentar numa quadra descoberta. É a educação das

pessoas que está em jogo, portanto é preciso que haja responsabilidade da mesma

forma porque não há ginasta mais ou menos importantes, há pessoas que precisam

passar por processos educativos.

A dor e o sofrimento são fenômenos que nos deixam entrar nesse mundo de

incertezas que é a Educação. Embora tenhamos metas (o treino), nunca saberemos

ao certo onde chegaremos, vamos além ou aquém pois não nos conhecemos

totalmente. O corpo é também ausência, enigma. É preciso pensar nisso na

Educação. As ginastas dizem: eu cheguei aqui porque me dispus a arriscar, colocam-

se em sacrifício, para desafiar a si mesmas. Isso não é Educação. Desafio! Desafio

sempre! Mesmo em uma equipe de crianças de uma escola cristã.

Nesse contexto, de contradições, complexidades e até paradoxos, tais quais as

realidades vividas, as experiências de dores e sofrimentos aparecem como fadadas à

existência humana. Sendo compreendidas não como elementos de coerção, mas em

sua dimensão existencial, podem aguçar o entendimento da sua razão de existir, da

ética, do respeito aos sofrimentos do outro, pois, do mesmo modo que a criação de

uma obra de arte é capaz de arrebatar o sujeito a partir de sua experiência estética,

este coloca-se disponível a perceber o outro em suas dores, sofrimentos e tragédias.

Desse modo, as dores e sofrimentos também produzem saberes, são partes da

existência e portanto negá-los na educação seria negar o corpo em suas

ambiguidades e contradições.

Nóbrega (2010), nos clarifica que o sensível não é apenas uma aparência

difusa a ser organizada pela consciência, muito menos a simples objetivação da

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matéria. O sensível é uma realidade constitutiva do ser e do conhecimento que se

manifesta nos processos corporais. Essa realidade, “expressa a existência humana

de forma profunda, com suas incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes

interpretações, unindo conceito e vivência e criando a possibilidade de novas formas

de elaboração do conhecimento” (NÓBREGA, 2015, p. 84).

Defender uma educação pautada nas experiências estesiológicas significa lidar

com as prerrogativas da dor e do sofrimento. É preciso lidar com as dores do mundo,

da vida, assim como aquelas geradas nos esportes ou no próprio fazer artístico. Uma

educação que considere a premissa estesiológica do corpo como enigma, mais do

que admite a nossa vinculação sensível com o mundo: condiciona a relação com

mundo num fluxo estesiológico, que diz respeito a uma relação ontológica, ao ser,

através da carne. Portanto, aprofunda as discussões de um corpo sensível que, como

ser, se funda em sua animalidade, esquema corporal, desejo e expressividade.

Mesmo o esporte, enquadrado historicamente na racionalidade científica, não

admite relação mecânica, pois o corpo estesiológico é sensível exemplar e não se

vincula ao mundo do movimento tal qual uma máquina destinada a produzir, por mais

que se almeje isso nos centros de treinamento mundo afora. Porque “forma e

conteúdo não podem existir separadamente – o que se diz e a maneira que se diz”

(MERLEAU-PONTY, 1948/2004b, p.59). A busca da perfeição técnica nunca é

esvaziada de sentido para quem realiza, há sempre conexões emocionais, afetivas,

de organização que ultrapassam o que se chama pejorativamente de “movimento pelo

movimento”.

Essa atmosfera do sentir precisa ser ressaltada em quaisquer intervenções

educacionais, pois como o mundo humano em si não pressupõe exatidão, os sentidos

precisam ser aprofundados nessa condição, pela Estesiologia. De acordo com

Merleau-Ponty (1948/2004b), o mundo percebido também é das crianças, dos loucos,

dos animais e é preciso reconhecer seu inacabamento e suas raízes irracionais. É

preciso mergulhar no mundo percebido.

Nesse sentido, uma educação que considere a estesiologia pressupõe o sentir

antes de qualquer julgamento e a desnaturalizações das explicações e construções

dadas a partir da exatidão científica nos estudos do corpo..

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O sensível me restitui aquilo que lhe emprestei, mas é dele mesmo que eu o obtivera. Eu, que contemplo o azul do céu, não sou diante dele um sujeito acósmico, não o possuo em pensamento, não desdobro diante dele uma idéia de azul que me daria seu segredo, abandono-me a ele, enveredo-me nesse mistério, ele "se pensa em mim", sou o próprio céu que se reúne, recolhe-se e põe-se a existir para si, minha consciência é obstruída por esse azul ilimitado.

O aprendizado se dá no prazer e no desprazer, se na educação se toma como

atitude olhar para a pessoa que sente, vai se ater a sua sensibilidade e perceber seus

processos. Para isso, é preciso ter uma relação empática, pensar no presente, saber

que você jamais terá toda a sua existência revelada, muito menos a existência do

outro. Portanto, é preciso paciência, porque não se aproxima de um modelo, ou

alcança-se um patamar rapidamente, porque cada pessoa desenvolve suas

possibilidades e cria outros modelos. Os fenômenos do prazer e da dor pelo

espontaneísmo ou pelas punições não podem ser superlativizados nem depreciados

porque fazem parte da vida e o aprendizado se dá na presença deles também.

Aprender o visível só é possível vendo, o sentir, sentindo. Isso não se faz

rapidamente, nem na solidão, mas no exercício da construção do que falta e responde

por outras faltas (MERLEAU-PONTY, 1961/2004).

Os corpos rasgados da GR revelaram que muitas vezes os limites corporais

são extrapolados, assim como, os corpos modelados exprimiram o quão difícil é se

expressar por uma linguagem tão técnica e tão cheia de pré-requisitos. Já os limiares

entre esses corpos e as experiências de dor e sofrimento demonstraram que a

descontinuidade do corpo em estesia torna mais complexa a tarefa de tentar designar

e separar essas experiências, pois é preciso senti-las antes de tudo.

As reflexões pelo enigma do corpo nos fizeram entremear na empatia como

possibilidade de estesiar o olhar para a dor do outro, pois através da intercorporeidade

nossa vinculação sensível está garantida, porém, é preciso modular a receptividade

do olhar, para o acolhimento na educação.

Através da reflexão sobre os corpos gloriosos compreendemos que o ser

humano é temporal, sendo o tempo uma dimensão na qual ele se situa em um

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movimento que congrega o passado, o presente e o porvir. Sendo assim, as

experiências, sobretudo de dor e sofrimento abordadas aqui, marcam quem fomos e

no presente nos fazem decidir o que seremos. No entanto, atentamos para os perigos

de traumas resultantes de barreiras não ultrapassadas, a exemplo do recalque, que

implica numa relação de descompasso entre o tempo pessoal e o cronológico.

Refletimos ainda que os corpos estesiológicos da ginástica se movem pelo

desejo da prática, pois as sensações reverberadas através dos vínculos entre ginastas

e GR não são explicáveis pela lógica de contrabalanceamento entre o que me causa

prazer e o que me causa dor, sendo esse também um enigma do corpo.

O enigma do corpo se configurou ainda nos mistérios do corpo vivo, que acessa

as sensações antes do vivido e da consciência, amplificando as possibilidades de

estesiar a existência. Algo que se reforça pelo sentido da liberdade como

comprometimento de uma existência, colorida como imaginamos essa parte da

filigrana e fundamentada no EU SINTO.

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ARREMATES, CALEIDOSCÓPIOS E OUTRAS

SINUOSIDADES

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Para a devida finalização da filigrana, após o processo de lavagem, polimento

e pintura, é preciso arrematá-la, apreciá-la por vários ângulos, conferir

cuidadosamente o trabalho, e, principalmente, avaliar o processo de construção.

Atingimos os objetivos nessa construção? As sinuosidades e detalhamentos do objeto

foram suficientemente aperfeiçoados a ponto de enxergamos suas reentrâncias?

No acabamento, ainda é possível anexar adornos, colar enfeites, revisá-lo,

investigar se será preciso repensar seu método de feitura, observar se seria

necessário destinar mais ou menos tempo para cada tarefa, verificar se os materiais,

em quantidade e qualidade, deram conta da proposta inicial.

A filigrana da pesquisa precisa ser arrematada pelo tempo previamente

estipulado para a sua construção, mas não para mostrar seu acabamento último, para

que outras se constituam a partir das sinuosidades desabrochadas em esboço. A

forma de rascunho faz sentido, não como algo que já nasce para ser apagado e refeito,

mas como uma obra de arte que só pode ser expressada pela interação, pois seus

fios difusos nos convidam para apreciá-la em várias perspectivas. Há a possibilidade

de reconstruí-la quantas vezes for necessário no percurso das experiências, pois o

exercício do conhecimento exige esse ir e vir. Na verdade, os arremates dessa

filigrana estão mais para caleidoscópios de pensamentos – girando e assumindo

outras formas – que para finalizações. De fato, na filosofia merleau-pontyana não há

preenchimento de todas as lacunas, a interrogação é permanente.

É preciso dizer que sua constituição não foi fácil, quebrou algumas vezes e

tivemos de recomeçar, assim como o debruçar-se para elaboração de uma série de

uma ginasta que já foi campeã, essa produção carregava um peso. Empenhar-se em

uma tese que refletisse sobre a educação nas experiências de dor e o sofrimento

pressupunha um engajamento que muitas vezes me arremessava no fosso do

desconforto, paralisava meu existir ou exigia meu refazer. Ganhei quilos, cabelos

brancos, dores na coluna e uma sensação constante de que não conseguia dizer o

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necessário, pois, como conseguir traduzir o sofrer? O sofrer durante uma elaboração

cuidadosa é irremediável, nesse caso, talvez denote meu pacto com a atitude

fenomenológica e com o objeto. Por isso chorei, me expressei quando podia e,

infelizmente, também quando não podia. O mais importante é que não me abstive dos

contrastes das sensações que me mobilizaram, assim como, valorizo cada uma delas.

Mergulhar nessa tese me remeteu ao fazer ginástico, em todas as instâncias,

como aluna que amava minha GR, e, principalmente, como a professora sensível que

buscava ser. Remeteu-me mais ainda ao contexto de ensino da disciplina de

educação física, com meus alunos do IFRN, com quem me lanço em momentos de

experimentação nas práticas curriculares da cultura de movimento e para quem

retorno após a conclusão desse trabalho. Volto transformada e ainda mais disposta

para vivermos juntos a partilha de experiências cada vez mais sensíveis e

significativas.

É preciso mencionar que a pintora mexicana Frida Kahlo foi suporte e

inspiração para construção desse texto. Embora não esteja referendada diretamente,

por uma questão de recorte, a potência do seu percurso estão nas entrelinhas, no

movimento da beleza poética da dor. Encontrei-me com ela nos escritos do seu diário,

na leitura de sua biografia, na apreciação de seus filmes e de inúmeros

documentários. Visitei ainda a uma exposição itinerante das mulheres surrealistas

mexicanas, em setembro de 2016, em Brasília, ocasião em que pude me emocionar

com algumas de suas obras originais e todo contexto político, estético e feminino que

volteou sua produção e de outras pintoras. Na intensidade desse movimento de

pesquisa e emoção, Frida se estampou em mim.

Além das marcas deixadas por Frida, muitas outras também constituíram o

fazer dessa tese. Atravessei o atlântico duas vezes para apresentar meu trabalho em

eventos dos quais o Grupo de Pesquisa Estesia foi parceiro, aproveitei para me

embriagar com os encantos de Montpellier, Carcassone, Paris, Beauvais, Roma e

Atenas. Respirei os ares de Merleau-Ponty e Foucault, me debrucei nas apreciações

de museus maravilhosos, de exposições lindas de Marcel Duchamp, Paul Klee, além

de tantas obras que eu só poderia acessar na internet. Em Atenas me emocionei com

um dos berços da civilização ocidental, subi na acrópole, comi azeitonas que pareciam

agregar o sabor de todas as que eu havia comido antes, consultei o oráculo de

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Delphos, apreciei o mar através do templo de Poseidon. Destaco esses momentos

para dizer que nos últimos três anos e dois meses muita coisa foi vivida, de modo que,

uma Loreta começou a escrever esse trabalho, enquanto outra Loreta o finaliza.

A dor e o sofrimento como experiências educativas, se revelaram nas

experiências vividas na GR, na estesia de uma prática que nos transforma pelo

aprofundamento dos sentidos, imersão no corpo vivo e pelas relações empáticas

concernentes aos contextos vivenciais investigados. Embora ressalvemos que a dor,

que se tenta mascarar no produto da GR, não seja a única possibilidade de conviver

com ela nas práticas corporais.

De fato, durante uma apresentação, a ginasta é treinada para dissimular as

dores e sofrimentos do processo. Mas isso não é apenas uma exigência ginástica

seguida mecanicamente pelas praticantes, há um sentido forte por trás que só pode

ser vivido por quem está encarnada nessa experiência, pois as sensações do corpo

não são previsíveis. Quando uma ginasta lesionada, motivada por sua técnica, se

torna capaz de suplantar a dor de uma lesão tida como insuportável durante os quase

três (3) minutos de apresentação de uma série de conjunto, quaisquer interpretações

que se baseiem em causalidades caem por terra, porque só ela, na sua dor, foi capaz

de passar por isso, e mesmo assim, ela não tem como idealizar o acometimento do

corpo vivo, do inconsciente, nesse processo. É desse corpo enigmático que falamos.

Se nos remetermos a uma série como obra de arte, podemos dizer que, assim

como o Ballet Clássico, ela se pauta em características estéticas que suplantam a dor,

que permitem uma fruição tranquila e previsível pois parte de um modelo pré-

configurado de movimento. Ninguém sabe se o pé da bailarina sangra, pois a dor é

mascarada. Mesmo em Gisele44, onde há uma representação do sofrimento, ele é

estilizado, é apenas um modelo embelezado de sofrimento. A ginasta esconde seu

sofrimento real, mas no contexto de sua experiência, ele existe e faz parte da GR

fazendo ser o que ela é: seja nas inúmeras repetições dos gestos no treinamento

esportivo, na modelização dos corpos, na dificuldade dos relacionamentos longe das

44 Giselle é uma importante obra de repertório do Ballet Clássico. É um dos poucos balés da Era Romântica que ainda são remontados. O poeta romântico Theophile Gautier é o autor do seu roteiro. A Coreografia é de Jules Perrot e Jean Coralli. E a Música de Adolphe Adam. Teve sua estreia mundial em 28 de junho de 1841, no Teatro da Ópera de Paris.

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famílias, nas lesões corporais mal ou não recuperadas, nas angústias da seletividade

entre as próprias ginastas ou até num misto de todas essas dimensões juntas.

As ginastas em exercício caracterizam uma fruição previsível ou o sofrimento

estilizado mencionados porque, durante uma apresentação, não há de transparecer

defeitos nem requerer retoques pelo o espectador que aprecia. Em algum aspecto,

são como bailarinas de caixas de música, em que há uma previsibilidade comedida,

elegante e bela que se extrapola nas roupas, nas músicas e reverbera para o público.

É uma modalidade de princesas maquiadas, penteadas e de vestidos cravejados de

cristais. Ao assistir os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016, esperava ver

exatamente isso, porém, aquela apreciação renovou o meu olhar para GR através do

modo mais significativo de todos: a emoção.

Percebemos que mesmo mascarando a dor a GR também permite que a

ginasta a viva, que entre em contato com ela, e ainda que seja para negá-la, encontra

alternativas para vivê-la. Porque o corpo, que se posta no mundo através das

sensações. transgride normas e precisões. Vive-se a dor apesar de tudo. Isso nos faz

interrogar: não seria mais passível de crítica uma Educação que não encontra lugar

para o indivíduo viver a dor? Não seria mais incoerente com o indivíduo pensar numa

Educação em que a dor não tem espaço para existir?

Por um lado, envolver-se apenas com o produto final, limpo e belo de uma

apresentação irretocável de GR não dá ideia de sua constituição. Por outro lado,

condenar, depreciar e culpabilizar todo o processo por conta de um olhar que se

focaliza apenas na dimensão do sofrimento também implica em um julgamento

unilateral. A ginasta, quando se apresenta toca os olhares, que por sua vez, dão o

sentido do seu trabalho. Além disso, nas experiências de dor e sofrimento a ginasta

aprofunda sua relação com a prática no presente, prospecta o futuro, reconhece o

passado, percebe-se no valioso fluxo entre prazer e dor. Não obstante, penetra nos

vínculos da empatia e pode, não de forma natural, pois as relações são construídas,

a partir de seus próprios sofrimentos e dores, compreender os sofrimentos e dores do

outro.

Nossa educação esconde ou quer esconder que a dor existe, como se educar

fosse um fenômeno que só pudesse se dar no prazer. Talvez ainda por se redimir de

uma época em que a dor e o sofrimento eram exacerbados em forma de castigos,

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surras de palmatórias e outras estratégias para o aprendizado. Uma Educação que

quer sensibilizar o indivíduo não pode se eximir de considerar a dor e o sofrimento,

pois na sensibilização tanto a dor quanto o prazer podem vir a tona. Uma Educação

que considere a estesiologia do corpo não tem como prever isso, mas pode investir

para que o indivíduo viva suas possibilidades. A GR, algumas vezes, talvez possa

ultrapassar os limites do corpo necessitando que a dor seja sublimada. É preciso

problematizar sobre o quanto a dor pode fazer parte do processo sem negá-la e sem

ser um meio para educar. Importa compreendermos que a dor que vemos não é

necessariamente ruim, podendo ter significações diversas para quem a vive.

Como dito, finalizar essa filigrana é preciso, arrematá-la ao seu modo. Porém,

o processo envolvente da escrita, assim como o entusiasmo de poder encerrar um

ciclo, deixa uma sensação momentânea de exílio, que não tem nada a ver com

desalento, mas com inacabamento e sinalizações de recomeços. Após a elaboração

de uma tese é que se inicia a devoção aos trabalhos acadêmicos e o maior

compromisso com a produção do conhecimento.

Encaminha-se a abertura para outros investimentos, outras filigranas surgem

como nortes de pesquisa que vão mostrando suas urgências. Refiro-me

especificamente a algumas questões que, sinalizadas no processo de construção

dessa tese, ou foram deixadas de lado ou permaneceram rasas. De todo modo, elas

clamam por investimentos em planos futuros sendo algumas elencadas a seguir:

As relações entre o feminino e as experiências de dor e sofrimento são

constituídas e naturalizadas muito precocemente. Merleau-Ponty (1948-

1952/2006b) alerta que há uma dificuldade primordial na psicologia da mulher

e da criança: a “natureza” considerada menor e complementar à masculina,

definida pela cultura, tanto pela depreciação quanto pela idealização. Na

criança a diferença do observador se amplia, ou por enxerga-la como rudimento

de adulto ou como centro de tudo, mas ela não é um adulto em miniatura, é

preciso trata-la com positividade. Uma pedagogia que considere a criança não

deve congelar a condição infantil de modo que trafeguemos nos pólos do

espontaneísmo ou do autoritarismo. É preciso reintegrar a criança no todo

social e histórico. Temos aí o emblema da mulher e da criança nesse processo,

sobretudo porque tanto a dor e o sofrimento correspondem a elementos que

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atravessam a instituição feminina, quanto as intervenções educacionais são

características da infância. A mulher que sofre para ser bela, a criança que

sofre por ser considerada uma tábula rasa ou um adulto em miniatura. O

modelo de beleza do corpo estesiológico não se faz pelo modelo mas pelo

parâmetro da própria pessoa, do presente, do estar ali, da relação;

Pretendemos continuar os estudos acerca do conceito merleau-pontyano de

Empatia (MERLEAU-PONTY, 1959-1960/2006b) em consonância com a

educação pelas sensações, tematizada pelo ensino da educação física escolar;

Intencionamos cunhar aprofundamentos nos estudos sobre de Frida Kahlo,

tomando sua vida e obra como filigrana de experiências de dor e sofrimento,

pois no decurso de sua existência essas experiências se expressam em

potência poética e atitude política, elementos importantes para continuar

pensando a Educação;

Temos a intenção de trabalhar com a proposição de intervenções acerca do

método imersivo de ecologização do corpo proposto por Andrieu (2014b), pois

é preciso atentar para o corpo vivo na Educação Física e estesiar a Educação.

Nessa sociedade anestesiada, as sensações são temidas.

Como destaques nos pontos elencados estão as fruições e apreciações

artísticas, expressas em intervenções pedagógicas e investimentos acadêmicos.

Meu olhar para a GR só se transformou em profissão e reflexão porque um dia,

aos 11 anos de idade eu quis brincar daquilo. A minha profissão só se transformou

em olhar acurado para a modalidade, para os erros, para as apreciações estéticas em

termo de reflexões acadêmicas, porque eu também fiz essas escolhas, como árbitra

e como educadora. O que quero dizer é que, ainda hoje, o que me move para

tematizar a GR na Educação, tomando como objeto as experiências de dor e

sofrimento, é o olhar fascinado daquela menina admirada na porta do ginásio, para

que tantas outras também possam viver o que ela viveu. Nas alegrias e sofrimentos

que nos movem por essa modalidade.

As sensações do corpo, incluídas nas experiências de dor e sofrimento são

potências transformadoras e se configuram como consequentes contingências

existenciais de um corpo encarnado a um mundo real, recheado de contrastes,

prazeres, desprazeres, gozos e desgraças. Por isso, a dor e o sofrimento estarão

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sempre lá, onde existe gente. E onde existe gente sempre haverá educação. Não é

possível negar as sensações do corpo porque fazer isso significa negar o corpo. Ao

contrário, é preciso educar quem sente para sentir, pois uma educação centrada na

estesiologia só pode ser enigma pois jamais poderá precisar o que pode o corpo.

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SUSTENTÁCULOS DA FILIGRANA

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SUBSTÂNCIAS

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APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTAS

EX-GINASTAS DA SELEÇÃO BRASILEIRA

1. Relate como foi sua trajetória esportiva até chegar na seleção brasileira de

Ginástica Rítmica.

2. Relate como era seu dia-a-dia enquanto treinou com a seleção brasileira.

3. Relate sobre como era a sua vida fora dos treinamentos, que outras atividades

você fazia, como vivenciava os momentos de lazer.

4. Qual foi sua maior conquista na GR? Como foi para você essa experiência?

5. Você já teve alguma lesão durante os treinamentos? Em caso afirmativo: Isso

interferia nas suas atividades diárias e nos treinamentos? De que modo?

6. Você teve momentos ruins durante a sua trajetória como ginasta? Em caso

afirmativo: qual foi ou quais foram os mais marcantes? Como você se

recuperou deles?

7. O que significa hoje para você ter vivido essa (s) situação (ões)?

8. Quais são as lembranças mais marcantes da época de treinos?

9. O que você aprendeu a partir de sua experiência como ginástica? Ou: O que

significa para você hoje ter sido ginasta?

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APÊNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

DADOS DE IDENTIFICAÇÃO

Título do Projeto: GINÁSTICA RÍTMICA E EDUCAÇÃO: ESTESIA DA DOR

E DO SOFRIMENTO

Pesquisadora Responsável: Loreta Melo Bezerra Cavalcanti – RG: 1660935- SSP/RN

Orientadora: Dra Karenine do Oliveira Porpino

Instituição a que pertence a Pesquisadora Responsável: Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN – Doutorado.

Telefones para contato: (84) 998039006

Nome do voluntário: _________________________________________________

Idade: _____ Anos R.G. __________________________

O Sr. (ª) está sendo convidado(a) a participar do projeto de pesquisa GINÁSTICA RÍTMICA E EDUCAÇÃO: ESTESIA DA DOR E DO SOFRIMENTO, de responsabilidade do pesquisador Loreta Melo Bezerra Cavalcanti.

A pesquisa envolve os relatos de ex-atletas da seleção brasileira de Ginástica Rítmica acerca das rotinas de treinamento e sua relação com a dor e o sofrimento.

O método a ser desenvolvido é a Fenomenologia, implicando na escuta sensível dos relatos a partir de um roteiro de entrevistas com perguntas abertas. As entrevistas serão gravadas em áudio, transcritas e reenviadas para as entrevistadas para conferência.

A pesquisa não implica em desconfortos ou riscos associados. Esclarecemos que a participação é voluntária e que este consentimento poderá ser retirado a qualquer tempo, pela vontade do voluntário. Nesse sentido, garantimos a confidencialidade das informações geradas e a privacidade do sujeito da pesquisa.

Eu, _________________________________________________________, RG nº _____________________ declaro ter sido informado e concordo em participar, como voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito.

_______, ___ de _________ de 2015

_____________________________________________

Assinatura da voluntária

_______________________________________________

Assinatura da pesquisadora

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APÊNDICE C - TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM G1

G1, VOCÊ PODERIA RELATAR COMO FOI SUA TRAJETÓRIA ESPORTIVA ATÉ CHEGAR

NA SELEÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA RÍTMICA?

Na verdade assim, eu comecei com seis anos de idade e... tudo aconteceu muito rápido na

minha vida pra entrar na seleção mesmo, brasileira. Eu tinha 12/13 anos já tava competindo

no mundial, meu primeiro mundial foi com 13 anos. Então assim, eu era uma criança, não

sabia nem o que tava acontecendo direito, mas eu tava já na categoria adulta, mas não, eu

tinha 13 anos era juvenil ainda, mas eles gostaram muito de mim e tal na seletiva, eu fiquei

em terceiro lugar, mas engraçado que pra conseguir ir pra esse mundial eram várias seletivas,

a primeira a minha técnica me tirou, ah, daí não vai dar certo não... aí teve um brasileiro que

eu ganhei, daí eles falaram, tá, mas como você tirou né? Daí me colocaram de novo e eu

voltei, mas assim, é... como aconteceu muito rápido eu só lembro mais assim que eu entrei

na seleção, depois que eu entrei aos 13 anos ali eu permaneci até os 26 anos. Porque ou eu

ía no individual ou ía no conjunto, então assim, foi muito rápido e... assim que aconteceu as

coisas muito rápido, então tive que amadurecer e crescer muito rápido também.

MAS VOCÊ CHEGOU A PRATICAR GR NA ESCOLA OU ERA EM UM PROJETO?

Não, é, comecei a Ginástica Rítmica num colégio estadual que eu estudava, aí eu ficava lá

esperando minha mãe que tinha um negócio de ginástica lá e daí foi quando eu entrei. Aí logo

depois a Bárbara teve um problema no joelho, ela parou de ser atleta e passou a ser técnica,

na antiga, que antigamente era FEF, não era UNOPAR que é hoje. E foi quando ela chamou

umas meninas, a dona E achou que eu parecia uma búlgara e chamou, chama a G1! Mas no

início eu não quis ir, não quis ir, mas minha mãe falou assim: você vai! Porque lá você tem

futuro. Aí foi quando eu passei pra B, já tinha uns 7/8 anos e foi quando tudo começou. Na

verdade assim, a minha técnica que me descobriu, ela que me fez, e, então tipo, desde os 7/8

anos eu tava com ela e com 13 anos eu já tava na seleção já.

VOCÊ FICOU NA SELEÇÃO ATÉ QUANTOS ANOS?

Até minhas últimas olimpíadas com 26 anos.

QUE FOI ATENAS

Que foi Atenas...

CERTO... VOCÊ PODERIA RELATAR COMO ERA O SEU DIA A DIA NA GINÁSTICA

ENQUANTO VOCÊ TREINAVA?

Na seleção?

NA SELEÇÃO

Bom, eu treinava 8 horas por dia, então assim, é... acordava, já ía pro ginásio, ficava no

treinamento até meio dia e meia e depois almoçava, dependendo, se acabava meio dia voltava

duas horas, meio dia e meia, voltava duas e meia, daí tinha uma preparação física no início

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do treino, depois o treinamento das repetições, de trocas, das colaborações, as repetições da

série, depois o período da tarde eu voltava duas horas, aí tinha um preparação também, aí

tudo de novo com a outra coreografia, as vezes tinha uma preparação geral dependendo da

época que tava, e a noite eu não... na época que a seleção mesmo do conjunto que a gente

tava se preparando para os jogos pan-americanos, as olimpíadas, a seleção ficava em

Londrina, eu morava na minha casa, então assim, eu ia embora pra minha casa, gostava de

ter minha hora também comigo mesma, com minha família, na minha casa...

VOCÊ ESTUDAVA?

Também, a época que eu tava na seleção eu fiz a faculdade, eu terminei meus estudos, entrei

na faculdade, fiz pós-graduação em Ginástica Rítmica, tudo, enquanto eu era ginasta, então

quando eu parei de treinar, apesar que eu parei velha, com 26 anos, já tinha feito tudo já...

ENTENDI... NESSES MOMENTOS DO DIA TINHA FISIOTERAPIA, PESAGEM, OUTRAS

COISAS? FALE UM POUCO SOBRE ISSO.

Tinha! Todo dia a gente pesava, ah, mas não me recordo se era todo dia ou se era dia sim

dia não que tinha a pesagem... Cada uma tinha que tá no seu peso e só conseguiu colocar

todo mundo nos eixos quando se engordasse 100g era 100 reais, então só assim. Mas assim,

graças a Deus eu nunca tive problema com peso, eu fui muito dedicada também, porque eu

paguei esses 100 reais uma vez e falei nunca mais na vida eu vou pagar, do meu bolso num

sai mais. Assim, eu tive problema de peso quando era mais nova mas na seleção não tinha

mais porque eu já conseguia comer as coisas certas, mesmo se eu quisesse comer um

chocolate alguma coisa eu não me entupia né? Era uma bolacha, pronto acabou, já tava bom.

Tinha fisioterapeuta sim, todo dia, quem precisava tinha, e a massagem também, porque a

gente salta... na minha época saltava muito mais que agora, então as panturrilhas ficavam

bem inchadas, então a gente tinha todo dia massagem que aliviava bem isso também. Tinha

psicólogo, dois psicólogos, é... acho que foi mais pra ter, mas acho que tinha dois psicólogos...

ACOMPANHANDO A SUA TÉCNICA, VOCÊ, VOCÊS FAZIAM TRABALHOS JUNTOS NÉ?

Trabalho em grupo, fazia também trabalho individual também né? Mas era assim, a gente

tinha bastante coisa que, assim, deixava uma equipe boa, preparada pra conseguir as

medalhas, os objetivos.

COMO ERA SUA VIDA FORA DOS TREINAMENTOS? QUE OUTRAS ATIVIDADES VOCÊ

PODERIA FAZER?

Assim, eu sempre tive na minha cabeça que eu não queria ficar limitada só em Ginástica

Rítmica, que eu queria ter uma vida social também, então eu sempre tive isso na minha

cabeça, que eu deveria treinar 8h e tal, mas as minhas melhores amigas num tavam dentro

do ginásio, minhas melhores amigas não faziam ginástica, então assim, era um pouco difícil

porque se quisesse sair na semana não podia sair, eu podia sair no sábado, mas eu sempre,

nunca deixei de sair, de no final de semana aproveitar o lazer com minhas amigas, de ir numa

boate, sim, claro, que a gente não pode beber, não pode isso não pode aquilo, mas minha

vida social eu tentava ter, meu lazer, assim, domingo estar com minhas amigas, mas é aquilo

né? Você tenta mas você não pode comer, você não pode beber, você não pode isso, mas

assim, eu não me arrependo de nada hoje em dia, sabe assim? Tudo o que eu fiz eu fiz por

amor, eu fiz com amor, eu me entreguei mesmo pra ginástica rítmica de corpo, alma e

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coração, então não me arrependo de nada. Faria tudo de novo? Faria tudo de novo e muito

melhor! Então assim, esse negócio do lazer aí eu tentei também assim, dosar, também porque

você não pode viver 24h, 8h por dia, acaba lá sábado que também você treina, e ficar só em

Ginástica Rítmica, você também tem que ter o seu lazer, então eu tentava assim ter uma vida

normal, mas não era igual a das minhas amigas, mas, já tava bom já.

QUAL A MAIOR CONQUISTA SUA NA GINÁSTICA RÍTMICA? QUAL OU QUAIS... NÃO FOI

SÓ UMA NÉ?

Não, não foi só uma. Acho que teve momentos marcantes assim... Os Jogos Panamericanos

de Winnipeg que até então a Ginástica Rítmica não era nada, um mês antes a gente foi pro

mundial e a gente tinha ido muito... nossa foi péssimo! E perdemos dos Estados Unidos, do

Canadá, então assim, quando nós pegamos Winnipeg a gente nem sabia o que ía acontecer...

não tava esperando não é? E eu também tive... Eu tenho um problema no meu joelho que na

competição eu cheguei, comecei a fazer as coisas e começava a travar, e era uma dor

insuportável, eu já tinha já um desgaste, um desgaste na minha rótula, mas eu nunca tinha

passado travando meu joelho, aonde eu, tiveram que chamar um médico e tudo, mas mesmo

assim a minha técnica me... toda vez que era isso, me levava no banheiro e falava pra mim:

G1, engole o choro, eu não quero que ninguém saiba de nada, tá? Se você quiser nós vamos

fazer uma infiltração, você escolhe, pra você entrar na quadra, mas você não fala nada pras

meninas, você engole porque eu sei que você pode fazer. Ah, que legal! Pensei comigo né?

Essa responsabilidade nessa hora né? Mas ela sabia que isso ia me dar força, entendeu? Ela

me conhecia. Toda vez ela fez isso comigo e deu certo. Então assim, quando a gente entrou

pra competir, quando é pra ser não adianta, a gente ficou 10 minutos paradas porque antes

de entrar na quadra a gente ficava num corredor que não dava pra lançar, não dava pra fazer

nada, e, a gente entrou na quadra, meu joelho começou a travar travar travar, depois eu lancei

aí lembra o que ficou marcado na história do túnel né?

SIM

Eu lancei a maça muito forte daí eu tive que dar um jeito de pegar, eu fui com o outro joelho

bem arrastando no tapete, só que eu consegui pegar, daí ralou o outro joelho daí eu nem

lembrei mais do joelho, eu quero que se... (risos) Nossa! Aí assim, daí foi outra série e tal, e

quando a gente ganhou a gente não esperava, foi um momento assim, que marcou na minha

vida porque eu tive que me superar, um dor, que eu tava, quando a gente fala em dor né?

Cada um que sente a sua dor, mas era uma dor insuportável pra mim, e veio esse momento,

essa glória sabe? A primeira vez que a gente conseguiu a medalha, foi inédito mesmo

entendeu? Foi uma alegria muito grande. Então assim, Winnipeg é muito marcado pra mim.

Aí teve as Olimpíadas de Atenas, não, de Sydney em 2000, também foi um marco muito

grande porque foi a primeira vez que a gente conseguiu uma vaga olímpica né? Ah, foram

finalistas olímpicas! Meu! Foi finalista olímpica na Ginástica Rítmica. Depois da minha equipe

ninguém mais conseguiu, entendeu? Então a gente conseguiu, a equipe da B, assim, que eu

estive em todas as equipes, um degrau de cada vez mas conseguimos o objetivo entendeu?

Então assim, também me marcou... Depois os Jogos Panamericanos de Santo Domingo

também foi marcado porque era uma nova geração, as meninas eram todas mais novas, eu

já era bem mais velha que as meninas, entendeu? Nós conseguimos de novo, daí eu era

capitã... Daí Atenas também pra encerrar minha carreira. A gente conseguiu de novo,

novamente, o oitavo lugar, que também assim, é uma coisa que depois de 2000, não, 2004,

nunca mais ninguém conseguiu esse oitavo lugar, ser finalista olímpica. Então assim, tudo foi

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histórico e pra mim foi muito marcante na minha vida porque eu peguei a ginástica onde era

a última do mundo, eu deixei a ginástica no oitavo lugar, entendeu? Eu sei tudo o que eu fiz

até chegar ali... Ah, a D errou nas Olimpíadas de Atenas! Foi muito difícil eu passar por isso,

é... Foi complicado, minha mãe achava que ía ter que me levar e me internar porque eu ficava

em casa, entrei em depressão, mas é o que me falaram, sabe? Depois eu entendi, é que a

história da ginástica tem o meu nome, entendeu? Ficou marcado meu nome. Tudo o que a

ginástica conseguiu até ali, eu consegui junto. Saí do último pra parar no oitavo lugar. Então

assim, depois que passou uns três anos eu comecei a pensar, entendeu?

DEPOIS DE TRÊS ANOS DESSE ERRO?

Porque assim, eu não vi vídeo, eu não quis ver vídeo, eu não entendia porque eu não peguei

o arco que eu lancei curto, mas ninguém entende também que eu fui atrás de uma bola,

entendeu? Do mesmo jeito que eu lancei errado ali também lançaram errado, e peguei o meu

aparelho e o aparelho num deu... E... Foi muito difícil essa época pra mim. Foi marcante? Foi,

mas foi muito difícil eu entender, mas depois eu entendi que eu fiz a história da GR, entendeu?

Meu nome tá marcado, que até hoje ninguém conseguiu o que eu consegui, mas foi difícil eu

entender. Mas, hoje é superado, se eu começar a conversar daí vou começar a chorar porque

eu passei por fases...

QUANDO VOCÊ PENSA NISSO TUDO, TRAZ À MEMÓRIA DESSA SITUAÇÃO...

É, é muito nítido tudo pra mim. Porque eu achava que todo mundo me crucificava... Mas, teve

bastante julgamento, entendeu? Então assim: “ah porque é mais velha”, “é capitã”, mas

ninguém sabe da responsabilidade, o peso que eu carregava... Ah, eu não entendo também

porque eu errei uma coisa tão boba, porque pra mim que fazia a parte mais difícil, eu fiz,

entende? Então um lançamento que... tão fácil um lançamento... não dá pra entender... Mais

que eu treinei praquele momento, não tinha como... até o errado tava treinado, mas

infelizmente eu sempre errava pra mais, e não pra menos, eu lancei mais curto então ela

também não tava preparada pra pegar o curto, porque ela tava preparada pra pegar o longo,

entendeu? Mas, fazer o que?

É ISSO... VOCÊ ME FALOU SOBRE UMA LESÃO QUE VOCÊ TEVE NO JOELHO, UMA

LESÃO CRÔNICA, FORA ESSA VOCÊ TEVE OUTRAS?

Eu já rompi o ligamento do pé, eu também tive estiramento na minha panturrilha esquerda,

um mês antes das Olimpíadas, daí eles me proibiram que eu tava numa competição na

Alemanha, falaram pra minha técnica que se eu competisse ela ía me perder pras Olimpíadas.

Eu tive que me recuperar muito rápido, muito rápido, mas, a fisioterapeuta era a melhor de

Londrina, conseguiu me recuperar.

ESSAS LESÕES INTERFERIAM NAS SUAS ATIVIDADES DIÁRIAS?

O joelho, até hoje. O joelho assim... Ah esse negócio de vai chover e dói mais, é verdade! Dói

mesmo! Que eu tenho um desgaste na cartilagem né? Então fica mais osso com osso.

VOCÊ JÁ TINHA ESSE PROBLEMA OU VOCÊ ACHA QUE ADQUIRIU?

Minha rótula já não é reta. Então o médico falou, como eu fiz GR, eu tenho que por a rótula

pra fora, en dehors, minha rótula é um pouquinho mais pra dentro, então ela forçou, então

teve esse desgaste. Se eu fosse uma menina normal, talvez eu nunca fosse sentir nada. Mas

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como teve que forçar teve um desgaste que até hoje eu sinto. Quando eu vou subir escada

eu sinto, quando vou descer escada eu sinto. Aí você fala: você se arrepende? Não me

arrependo! Adoro a minha dor!

ADORA A SUA DOR POR CONTA DAS CONQUISTAS QUE VOCÊ TEVE?

Sim! Claro!

VOCÊ JÁ ME FALOU ALGUNS, MAS, QUE OUTROS MOMENTOS RUINS VOCÊ PODE

DELIMITAR NA SUA TRAJETÓRIA? ALÉM DA SUA DOR, ALÉM DESSA PERDA EM

ATENAS...

O pior momento pra mim realmente foi nas Olimpíadas quando eu lancei o aparelho errado.

Uma coisa que, é, eu não esperava, eu não queria, eu fui julgada, entendeu? Então, acho que

de tudo mesmo, foi isso.

VOCÊ CHEGOU A FAZER ALGUM TIPO DE TRATAMENTO PSICOLÓGICO?

Não... Minha mãe achou que ía ter que me levar, tal, mas eu fiquei muito tempo no meu quarto,

não queria sair, não queria ver ninguém, quando eu cheguei no Brasil eu não queria coletiva

de imprensa, não queria nada, porque tudo que eles chegavam em mim era pra perguntar

porque eu tinha errado. O que você vai falar? Eu quis errar? Não quis errar! Poxa, eu tô

representando o Brasil e, eu não sou uma ginasta que ficava errando... Eu não errava em

treinamento, sempre fui muito perfeccionista, então assim, as meninas poderiam ter errado,

eu nem ía ficar chateada, mas eu, comigo mesma, sempre fui muito perfeccionista, então isso

doeu demais em mim, eu passei muito tempo sem querer ver as pessoas, sem querer sair do

meu quarto, sem querer ver tv, enquanto tava passando olimpíada, não queria ver

propaganda, que saísse alguma coisa no jornal, e quando eu vi, quando tive coragem de ver,

depois de um ano, eu ainda senti, falei nossa, mas acabaram comigo mesmo! Então assim,

foi o que mais me marcou mesmo. Assim, de coisa ruim né?

O QUE SIGNIFICA PRA VOCÊ TER VIVIDO TODAS ESSAS SITUAÇÕES? DE

SOFRIMENTOS, DE CONQUISTAS, DE DOR?

Olha, eu me acho uma pessoa muito forte. Acho que, primeiro, a ginástica que me fez, eu sou

a hoje, por causa da ginástica, se não seria mais uma aí, entendeu? Eu sou alguma coisa

hoje por causa do meu esporte. Eu procurei? Procurei! Mas ele me ajudou. Eu sou, eu corro

atrás das minhas coisas porque sou forte. Eu vou atrás daquilo que eu quero, eu tenho foco,

eu tenho objetivo, eu não deixo, é... se eu quero, eu vou atrás, eu não deixo nada ficar pra

trás. Então assim, a mulher que eu me tornei hoje, é tudo por causa do meu esporte. Eu sofri?

Sofri, mas isso me fez crescer, entendeu? Eu tive todo um crescimento na ginástica. Eu me

formei... tudo o que eu sou, mas tudo tudo, eu devo à ginastica rítmica.

PRONTO. A ÚLTIMA PERGUNTA SERIA: O QUE VOCÊ APRENDEU A PARTIR DESSA

SUA EXPERIÊNCIA?

Eu acho que é isso mesmo. Eu tive uma técnica maravilhosa, sabe assim, que me ensinou a

viver, que me deu tudo ali pra eu andar com as minhas pernas, entende? Se não fosse a

minha técnica, eu acho que eu não seria a G1 também, ela sabe disso porque eu falo. Eu vivi

a maior parte do meu tempo com ela, e ela que abriu as portas pra mim, eu não treinaria com

outra pessoa porque ela me formou como ginasta e como pessoa na vida, então acho que é

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isso... hoje eu sou técnica, tô do outro lado, e a ginástica também me ensinou a ser uma

técnica hoje. Tudo o que eu sei é por causa da ginástica.

HÁ MAIS ALGO QUE VOCÊ GOSTARIA DE DESTACAR EM RELAÇÃO A SUA

TRAJETÓRIA?

Por enquanto não... Não tô lembrando agora...

MUITO OBRIGADA ENTÃO!

ENTREVISTA COM G2

G2, EU QUERIA QUE VOCÊ RELATASSE COMO FOI SUA TRAJETÓRIA GINÁSTICA ATÉ CHEGAR A SELEÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA RÍTMICA.

Então, é... No início a gente entra como se fosse uma brincadeira, né? Foi feito um peneirão que era feito no Colégio Arquidiocesano, que colocavam todas as ginastas na quadra...

VOCÊ ESTUDAVA LÁ?

Estudava lá, estudei até ir para a seleção. E daí colocavam todas as crianças mulheres na quadra e vinha uma treinadora e analisava a gente. Então era assim tipo “olhômetro”, nem estudava as características físicas nem nada, e daí, é... eu não passei no teste, só que eu fiquei muito encantada com aquilo, com a ginástica e tudo e como a professora tinha passado o telefone, eu ficava “pentelhando”, ligando muito do celular da minha mãe, até que um dia ela deixou eu fazer a escolinha, de ginástica, aí ela deixou fazer a escolinha, eu era muito sem flexibilidade, então assim, eu sofri um pouquinho pra adquirir flexibilidade, mas não sofri tanto quanto uma criança normal porque eu queria muito, eu desejava muito, então assim, eu fiquei durante três anos na escolinha e aí dali eu não ia passar né? Porque a perspectiva era que eu não passasse, mas eu sempre fui muito persistente, então eu forçava muito a minha perna em casa, eu forçava minha coluna e tal, até que eu consegui passar pra equipe de treinamento, daí quando eu entrei pra equipe de treinamento, é, eu logo comecei a me destacar por essa perseverança, a treinadora passava tanto tempo pra fazer e eu sabia que eu não tinha tanta flexibilidade então eu ficava mais na flexibilidade, eu passava 30 minutos na flexibilidade, eu colocava peso, e aí eu consegui adquirir uma boa flexibilidade. Estudos científicos dizem que adquire até os 14 anos. Hoje eu sei, mas como criança eu queria porque queria ser ginasta. Aí aconteceu de que eu entrei na equipe de treinamento, depois aos 14 anos, que é a idade que a gente quer sair da ginástica, sabe, geralmente, eu quis sair pra ir pro voleibol, porque o professor me chamou pra ir pra equipe de voleibol porque eu tinha uma boa coordenação motora, tal, eu quis sair e aí a minha treinadora não permitiu que eu saísse porque logo teria uma seletiva em dezembro pra seleção brasileira onde participaram 83 meninas e foram tiradas 21 meninas, só que eu ainda era juvenil. Então eu fiquei no ciclo de Joinville, que tinham seis meninas da categoria juvenil e apenas duas do adulto, que eram as mais experientes. Fiquei lá até que teve o pan-americano no Rio de Janeiro e eu fui convocada pra ir na época da seleção em Espírito Santo. Aí eu fui, que teve o pan-americano lá no Espírito Santo, eu fui, passei um mês lá e depois, é, a confederação brasileira percebeu que esse negócio de separar as seleções não dava certo e acabou que transferiu a minha seleção, acabou com a seleção de Joinville e eu fui a única que fiquei. Aí eu fui pra Vila Velha, aí fiquei treinando lá durante um ano, e quando eu voltei de férias, é, eu não pude mais voltar porque meu irmão entrou nas drogas e eu tive que ajudar minha família e não pude mais voltar pra seleção. Então assim, fui o desafio do pan-americano, pré-pan, mas não cheguei ao auge, que é a olimpíada né, por conta de problemas pessoais meus.

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ENTENDO... EU QUERIA QUE VOCÊ RELATASSE SEU DIA-A-DIA NO MOMENTO EM QUE VOCÊ JÁ ESTAVA NA SELEÇÃO.

Na verdade, é como eu te disse, eu acredito muito que o sofrimento vai do que a gente realmente quer, e eu desejava muito estar ali, eu gostava muito, então, eu sei que a treinadora as vezes falava coisas absurdas que não podiam ser ditas assim , mas eu sei que no meu coração, na minha cabeça eu pensava: ela tá falando isso porque eu sei que tenho potencial e vou chegar mais longe. Então assim, era, a gente acordava muito cedo, né, e acabava dormindo muito tarde, porque estudávamos a noite, e uma coisa que eu priorizava muito eram os estudos, e eu não faltava aula, enquanto muitas delas, elas deixavam de estudar mesmo, paravam de estudar literalmente, tudo, e eu não, eu nunca parei de estudar, continuava estudando, ia, tirava boas notas, mas aí, acordava muito cedo e 8h era a primeira aula de ballet, fazia 2h de aula de ballet, depois começava a fazer flexibilidade, aí depois ia pra parte de trocas, que eram os lançamentos, os grandes lançamentos, e a gente fazia “n” vezes, repetia porque era necessário repetir para que a gente chegasse a pelo menos perto da perfeição e depois daí a gente ía passar na música, aí tinha 5 vezes passava na música um conjunto depois trocava o conjunto ía pra outro. E aí acabava sempre passando do horário do que a gente deveria estar almoçando, na verdade o treino teria que ir até o meio dia, e ía até uma, isso perdia o nosso horário de almoço porque a gente tinha meia hora pra almoçar pra voltar pro ginásio. Mas o mais doloroso mesmo que eu sofri bastante era com a questão das pesagens, que eram quatro pesagens durante o dia, uma de manhã, outra meio dia, outra quando retornava e outra na saída. O que acontecia, o nosso organismo não vai engordar porque a gente comeu naquele dia, ele vai guardar aquilo, acumular até fazer gordura. Só que aí, o que é que pesava quando a gente ía se pesar? A água. Então isso aí me maltratava de eu chorar mesmo, de eu bater na parede, quero beber água e eu não posso beber água, eu não podia beber água, porque se eu pegasse um copo de 200ml era 200g e aí quem engordasse 100g tinha que correr meia hora, então assim, não é que eu não queria correr, mas é porque era injusto, isso era muito injusto, porque a água vai sair na corrida, claro, a gente vai perder na corrida, mas, isso foi o maior sofrimento meu, foi esse mesmo, a questão das pesagens que a gente pirava né, por conta disso.

EU QUERIA QUE VOCÊ RELATASSE COMO ERA SUA VIDA FORA DOS TREINAMENTOS, OS MOMENTOS COM A FAMÍLIA, OS MOMENTOS DE LAZER...

Na verdade não existem né? (risos). Primeiro que minha mãe morava em Sergipe, e eu morava lá no Espírito Santo, então passagem era cara, a gente não tinha folga, a gente não tinha folga, a gente tinha uma vez por ano que era em dezembro, e assim, tipo natal, réveillon e tipo, já voltou e já tava lá, tal, então não tinha lazer, a socialização que eu tinha era na escola, por isso que eu não gostava também de não ir pra escola, porque eram os únicos amigos, entre aspas, que a gente tinha que se relacionava. E no sábado a gente treinava também e no domingo a gente costumava ir todas a igreja, porque é necessário tá com esse vínculo com deus né, principalmente assim vivendo longe. E não tinha o que fazer, assim, na praia a gente não podia entrar no mar porque era perigoso, podia se machucar, no shopping não podia ir sozinha assim, porque alguém sempre parava a gente... a minha diversão maior e das minhas companheiras na época era ir pro supermercado ver quanto custam as coisas. A gente brincava de quanto custam as coisas. Só que as vezes a gente tava até brincando numa área que era proibida, que tinha chocolate ou bala, tudo, e chegava sempre alguém e falava: é! Vou contar pra técnica que vocês tão comendo coisas escondida, e a gente não tava nem comendo, a gente só tava olhando, ou a gente só tava vendo mesmo, brincando lá... E assim, era uma dificuldade isso, porque como Vila Velha era uma cidade pequena, todo mundo conhecia quem era a seleção. E a gente tinha o hábito de sempre sair uniformizada porque a gente sempre tava treinando.

O QUE VOCÊ CONSIDERA SUA MAIOR CONQUISTA, OU SUAS MAIORES CONQUISTAS NA GR? COMO FOI PRA VOCÊ ESSA EXPERIÊNCIA DAS CONQUISTAS?

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Então, a primeira vez foi quando eu subi para o conjunto titular, que aí eu tive ao meu lado na seleção principal a T, que era uma atleta olímpica e assim, era uma maturidade e isso foi uma experiência muito boa porque ela tinha uma maturidade que eu acho que falta hoje na ginástica, as pessoas querem muito precoce as coisas, não vê isso da maturidade. Então num campeonato eu era a primeira da fila, num ginásio, eu não lembro onde foi agora, se foi no Rio de Janeiro... Foi no Rio, em Macaé! Foi no Rio, em Macaé, isso! O ginásio tava lotado, não tinha onde sentar, muita gente mesmo, e ali eu era a primeira da fila, a menos experiente e a mais nova, e a mais experiente era a última da fila. E eu tive que, quando falou assim: apresenta Brasil! Aquilo fez meu coração “tec tec tec”, que eu levantei a cabeça, que eu vi aquele público assim sabe? Ali, aquela experiência, ninguém me tira. Hoje eu acho que eu consigo falar e me relacionar bem por causa daquela experiência, sabe, de ter entrado ali naquele desafio do pan e ver aquela quantidade de gente absurda e todo mundo aplaudindo de pé, e você nem tinha terminado a série ainda, tava começando e eles já queriam um resultado bom né? Que a nossa seleção tivesse um resultado bom. Então assim, na verdade a experiência de responsabilidade antes do tempo natural de ter responsabilidade das coisas, eu tinha o que? 16 anos quando aconteceu isso, então era uma responsabilidade além do normal né...

VOCÊ JÁ TEVE ALGUMA LESÃO DURANTE OS TREINAMENTOS?

Eu acho que sou uma pessoa muito sortuda, porque eu nunca tive nada, das duas uma, ou sou sortuda, ou minha técnica me preparou muito bem. Ou não sei se os exercícios a mais que eu fazia na preparação física, que ela mandava fazer 20 eu fazia 50-60 me proporcionou a chegar a isso, mas, eu nunca tive uma lesão, nunca tive uma lesão, grave, nem média, eu fui uma atleta que não tive nada, nada.

ENTÃO A QUESTÃO DA DOR FÍSICA NÃO ERA RECORRENTE?

Não, eu não tinha dor física. A única dorzinha física que eu tinha, assim, era o do joanete que tava em fase de crescimento, que é natural, qualquer pessoa que teve joanete vai ter essa dor mesmo, só que a minha agravava mais por conta dos exercícios na meia ponta, tal, mas não era assim uma coisa de outro mundo não. As dores mesmo que a gente tinha não era nem dor mesmo era mais emocional de: poxa, chego cansada da escola tem que levantar, queria hoje ser uma pessoa normal sabe, eu queria poder assistir telecine, eu queria poder assistir a sessão da tarde, essas coisas passavam assim pela cabeça, mas o desejo de estar ali, de chegar no auge era muito maior do que essas pequenas coisas. Só que hoje a gente é adulto e também não faz nada disso (risos).

VOCÊ FICOU QUANTO TEMPO NA SELEÇÃO PRINCIPAL NESSE RITMO DE TREINAR EM DOIS EXPEDIENTES?

Dois anos. Dois anos cravadinhos, é, que a gente treinava em dois períodos, de manhã e de tarde, e era essa rotina, direto, as vezes saía suja do treino, as vezes não dava tempo de tomar banho e tinha que ir direto ao colégio... nessa rotina dois anos!

VOCÊ TEVE ALGUM MOMENTO RUIM, NESSA SUA TRAJETÓRIA, MARCANTE?

Então, ruim foi eu ter que deixar por uma coisa que não era que eu queria deixar, o pior na minha história foi isso, eu ter que deixar, eu não ir mais poder fazer a seletiva, nem saber o que poderia ter sido depois por conta de problemas pessoais, não pude mais estar no ambiente que eu gostaria de estar. Mas ruim dentro, lá, eu costumo dizer que foi um dos momentos melhores assim da minha infância, porque, quer queira quer não era infância, eu gostava bastante, eu não tenho, assim, mágoa... não sei se é porque meu amor por esse esporte é tão grande, é tanto que eu virei treinadora, tenho equipe, e luto pela minha equipe, faço estágio com elas em tudo o que é lugar pra ver se cresce né? Mas eu acho que o amor pelo esporte era muito maior.

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O QUE SIGNIFICA PARA VOCÊ, TER VIVIDO TODAS ESSAS SITUAÇÕES NA SELEÇÃO BRASILEIRA?

Eu só sou hoje quem eu sou por conta da seleção brasileira, por causa da ginástica. A ginástica me fez uma pessoa independente, uma pessoa de respeito, uma pessoa com ética, uma pessoa que sabe ter humanismo com sua atleta, muito por ter passado por um alto rendimento pesado, por ter vivido com 10 crianças, porque são crianças né, na seleção, de estados diferentes, culturas diferentes, regionalização diferente, vocabulário diferente, toda a educação familiar diferente. Então hoje eu acho assim, que a ginástica ela me proporcionou muitas coisas de valores, porque eu aprendi a respeitar o outro, saber viver dentro daquela cultura diferente da minha, respeitar quem é do nordeste, quem é do sul, quem é do sudeste, porque a seleção de conjunto faz isso, trata como uma família, uma equipe. Então eu até brinco e digo que a minha seleção, que foi a da M, a da D, da N, é, da NM, da NA, da NP, era uma seleção muito unida e forte que até hoje a gente tem vínculo sabe? Se a gente se vê é a maior alegria, parece que não deixou de ver sabe? A gente não tem rivalidade, que acontece muito a rivalidade. Apesar de que dentro do ginásio a treinadora colocava essa rivalidade. Eu como era mais nova e tinha mais chance de poder chegar as olimpíadas de 2014 que a gente perdeu a vaga, que eu nem tava e que perdemos a vaga, ela ameaçava, entendeu? Ela falava assim: olhe T tá ali viu? Ela vai pegar o lugar de vocês. Mas isso nunca fez com que a gente dentro de casa se desentendesse, que tivesse a rivalidade. É claro que tem umas que são mais difíceis, temperamento mais difíceis, são mais fechadas, são mais centrada no que ela quer, tal, mas, não tinham grandes problemas na nossa seleção, de relacionamento não... o triste que eu lembro agora, que eu fui puxando e veio na cabeça assim, triste foi quando nós estávamos precisando de mais gente na seleção e foi feita uma seletiva tal, e acabou entrando uma menina e essa menina ela de madrugada ela... nós começamos a suspeitar de algumas atitudes dela, primeiro que ela nunca conseguia emagrecer, segundo que a comida sumia lá de casa, e terceiro que de madrugada era um barulho infernal pra gente dormir, dentro do banheiro e tal, e a gente descobriu que ela tinha bulimia, então assim, triste foi eu numa idade ainda menor descobrir essa doença tão triste, e essa menina tinha e infelizmente ela teve que sair né, que ela precisou se tratar, então o ponto mais forte que eu tive foi por essas doenças assim causadas pela pesagem né, pela responsabilidade que é colocada numa faixa etária que a pessoa fica meio... se não tiver um psicológico forte. E assim, não tinha acompanhamento psicológico, não tinha acompanhamento nutricional, e na minha época foi uma das primeiras seleções que teve através de seletiva mesmo, que antes era a dedo, era o peneirão ali do brasileirão. E aí então não tinha fisioterapeuta, não tinha nutricionista, é, não tinha um carinho, sabe? Era aquele negócio treino treino, a técnica não é mãe, a técnica é técnica e vai lá vai treinar e acabou. Então a gente pegava e comprava livro pra ler sobre isso, sabe, a gente mesmo se ajudava.

ENTENDI. ENTÃO NESSA ROTINA DE TREINAMENTO DIÁRIO VOCÊS NÃO CHEGAVAM A FAZER FISIOTERAPIA, MASSAGEM...

Não. Quando tinha alguma coisa, eu pelo menos nunca tive nada, mas outras tiveram muitas coisas, tinha a UVV que era a universidade e lá tinha estagiários que faziam, estagiários, mas imagina só uma seleção de alto rendimento tá fazendo fisioterapia com estagiário? Né? Que não tem experiência nenhuma, que pode até te machucar mais ainda, ou até piorar aquilo que você tem né? Então era estagiário do terceiro período lá na UVV que pegava e fazia a fisioterapia, aí você não sabia porque nunca ía pra frente aquele tratamento da sua lesão né. Então eu, se sentisse alguma coisinha, passava gelo, botava gelol, mas era coisa assim mais de dor muscular mesmo que eu tinha, nunca tive lesão. Mas outros tiveram lesões graves lá dentro da seleção e não tinha tratamento, não tinha.

E O ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO...

Psicológico era pior né? Nem a técnica, a técnica precisa mais do trabalho psicológico do que a gente, porque é um poder muito forte que elas tem na mão, é as melhores ginasta do Brasil

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na tua mão e você não sabe lidar com elas. Então eu acho assim, ela não tinha quanto mais a gente né? (risos)

O QUE VOCÊ ACHA QUE APRENDEU MAIS EM RELAÇÃO A ESSA SUA EXPERIÊNCIA COMO GINASTA?

O que eu aprendi mais foi que, tudo que traz benefício também nos causa sofrimento. E que se a gente quer chegar em algum lugar, a gente vai passar pelos caminhos do sofrimento porque vai ter que chegar naquele ponto alto e pra chegar no ponto alto você perde seus dias, perde sua infância, você faz sacrifícios. O que eu aprendi mais assim é que se você tem um caminho pra seguir, um objetivo, você vai ter que fazer sacrifícios, você vai ter que abrir mão, porque senão você vai ser uma pessoa infeliz, porque nem você vai abrir mão do sacrifício nem você vai chegar ao seu objetivo, você só vai ser uma sonhadora, sonhar todo ser humano sonha, mas concretizar realmente são poucos porque são poucos que tem coragem de passar pelos sacrifício.

VOCÊ PENSA QUE ALGUMAS AMIGAS DA SUA ÉPOCA DA SELEÇÃO REAGIAM DE FORMA DIFERENTE A SUA, OU FRAQUEJARAM, OU CHEGARAM A PEDIR PARA SAIR DA SELEÇÃO POR ESSES MOTIVOS QUE VOCÊ ELENCOU ATÉ AGORA?

Ah sim, era as vezes, eu não sei se era por personalidade, mas muitas chegaram a pedir sim porque não aguentavam, é, muitas eram princesas dentro dos seus estados, eu não era princesa dentro do meu estado, eu tinha outras ginastas que também tavam fazendo nome, então muitas eram princesas nos seus estados, tipo, eu sou a melhor do meu estado, e aí chega na seleção e tem 12 boas, tem 12, então você não é mais tratada como aquela... Ah Marcela, aqui tudo é pra você, não, aqui você é burra, você é incompetente, você não vai pegar a maça, você é isso, você é aquilo... a pressão de você passar de um ambiente pra outro é que a própria treinadora não entendia e eu hoje, com maturidade, compreendo. Mas naquela época claro que não, eu dizia: ah, ela não gosta da M, ela não gosta da P, chegou até o dia que quando foi perto do pan-americano ela reuniu toda a seleção, chamou todas nós e disse: M, vai pra fora do ginásio, fica lá na porta. E meteu o “cacete” nela na frente da gente e a gente tudo parada assim sem entender o que ela queria fazer, que psicologia era essa, acho que ela que precisava de ter um trabalho psicológico forte entendeu, pra trabalhar porque, eu vou botar minha ginasta pra baixo, eu deixei todo mundo menos ela, o que eu vou dizer pra ela, que ela é incapaz de estar aqui, ela não deveria estar aqui, então eu acho assim que isso fez com que outras várias vezes pedissem pra sair, eu acho que, por eu nunca ter sentido isso, nem ela nunca ter pegado no meu pé, eu não sofri isso, ela nunca foi de pegar no meu pé, ela sempre protegia sabe? Não sei se porque eu era mais nova e ela tava me resguardando para as olimpíadas de 2014, não sei, eu sei que, ou, 2012 quer dizer! Eu sei que ela meio que me segurava ali sabe, quando alguém se machucava eu ficava, eu sempre tava... então assim, eu acho que muitas pediram sim, outras ficaram muito doentes, outras fazem tratamentos...

AS LESÕES ERAM FREQUENTES?

Não, na minha até que não, na minha época até que não. Hoje eu acho que na seleção que tem hoje em dia é muito mais lesões e são lesões todas iguais por desgaste da cartilagem, excesso de treinamento, excesso de repetição de um movimento, de um mecanismo, então, eu acho assim, que naquela época não tinha tanto lesão, era mais o emocional, a nossa treinadora mexia com o emocional sabe?

HÁ ALGO MAIS QUE VOCÊ GOSTARIA DE COMPARTILHAR?

A sensação que tenho é que nunca vai mudar isso, que todo mundo que chega lá como treinadora ela impõe as crianças uma coisa e não consegue inverter a psicologia delas pra que elas se sintam boas pra fazer aquele conjunto, pra conseguir executar, pelo contrário, elas usam uma psicologia negativa que só baixa o ego da criança e faz com que ela engorde,

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que ela fique com lesão, que causa também quando você não tá bem mentalmente, internamente, é mais fácil de gerar uma lesão, até de se machucar porque você fica mais disperso... então assim, eu acho que é isso, acho que o mundo da ginástica precisa de uma reformulação, e essa reformulação tem que vir da base, principalmente das partes que estão no poder, porque quem tem o poder é quem tá a frente de uma equipe. O treinador ele tem que estar revendo vários conceitos, é o que eu uso na minha equipe, eu não tenho pressa com elas, eu sei que se tiver de chegar vai chegar através de trabalho, eu não trabalho precocemente uma criança, eu não quebro ela, ela tem que trabalhar dentro dos limites dela, e eu sei que tudo é possível quando o ser humano quer, se você tá com a seleção e você faz elas acreditarem que não é possível, aí não vai nada pra frente.

OBRIGADA!

ENTREVISTA COM G3

G3, EU QUERIA QUE VOCÊ ME RELATASSE COMO FOI SUA TRAJETÓRIA ESPORTIVA ATÉ CHEGAR NA SELEÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA RÍTMICA?

Eu sou baiana, meu pai é baiano e minha mãe é sergipana, com oito anos eu vim morar em Aracaju e aí eu comecei a estudar no colégio arquidiocesano, e eu vi uma apresentação de Ginástica Geral no final do ano letivo, e fiquei enchendo o saco da minha mãe pra ela me colocar no outro ano, só que quando ela foi falar com o coordenador eu não podia, o esporte era só pro ginásio, da quinta série em diante. Só que a minha técnica fez um aulão e chamou meninas da primeira a quarta série, eu era segunda série na época e aí, fui fazer o teste e passei. Aí com seis meses de treinamento eu fui pro sergipano e fiquei em sexto lugar, porque era dividido em duas etapas, na segunda etapa eu já fiquei em primeiro lugar. Quando eu fui pro meu primeiro brasileiro, eu tinha acho que dez anos, eu fui vice campeã brasileira, foi aqui em Aracaju, eu era pré-infantil. No outro ano o brasileiro foi em Vitória – Espírito Santo, e aí eu já me consagrei campeã brasileira. Foi aí que eu entrei na seleção brasileira de Ginástica Rítmica pelo individual. Comecei a viajar para competir fora pela seleção brasileira. Se não me recordo o ano em entrei em... em 1999 eu fui campeã brasileira pela primeira vez daí fui seis anos consecutivos campeã brasileira no individual. Em 2004 eu fui chamada, na verdade eu não fui chamada, eu fui pro pan-americano de Santo Domingo pelo individual aí não obtive o resultado, fiquei em quarto lugar geral, daí minha técnica, me liberou pra fazer o teste do conjunto em Londrina. Fui no mesmo ano, em 2003, desculpa, 2003, fiz o teste no fim do ano, entrei na seleção de conjunto e fiquei treinando até as olimpíadas de Atenas.

ENTÃO VOCÊ COMEÇOU NA ESCOLA NÉ?

Comecei na escola porque aqui em Aracaju antigamente até tinha alguns clubes, de um tempo pra cá se tornou mais escolar mesmo e, da escola eu fui me desenvolvendo e fui pra brasileiro. Nunca saí da escola pra treinar em algum clube nem nada disso, sempre fui da escola.

MAS AÍ A ESCOLA TREINAVA COMO UM CLUBE NESSE CASO?

Na verdade nem é treinar como um clube, é porque as escolas tem as competições escolares, e então ela tem o treinamento de todos os esportes. Só que “V” meio que quando me achou começou a fazer cursos, ir atrás de outras vertentes pra poder melhorar o trabalho dela porque eu comecei a ter resultado, aí foi se empolgando e começou a dar treinamento como se fosse um clube mesmo, mas sempre foi escola.

ENTÃO PRA SELEÇÃO BRASILEIRA DE CONJUNTO VOCÊ FEZ ESSA ESPÉCIE DE TESTE

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Isso, no individual nunca houve teste, sempre foi por resultado do brasileiro, então assim, era seleção brasileira quem ficasse em primeiro, segundo e terceiro lugar. No conjunto não, era convocada pela técnica da época, e em 2003 ela fez o teste e eu fui participar.

E QUANDO VOCÊ ESTAVA LÁ NA SELEÇÃO DE CONJUNTO, COMO ERA O SEU DIA-A-DIA?

Era muito difícil. Porque assim, quer queira quer não, é, na época que eu surgi o nordeste era muito fraco na ginástica rítmica, então tinha muito preconceito também. Tinha muito preconceito porque o sul sempre prevaleceu muito no Brasil, na ginástica. Por mais que todo mundo, sempre, me receberam muito bem, claro né, tudo mais, me receberam muito bem mas quer queira quer não a gente sente assim a diferença quando a gente chega num lugar. Sofrimento tinha no dia-a-dia porque não era uma vida muito fácil né? Primeiro por causa do peso, que por mais que eu já fosse magra, tinha que emagrecer muito mais, então assim, eu já pesava 48 quilos, não, cheguei lá com 47 quilos e queriam que eu pesasse 45/44 quilos, e nessa de tentar emagrecer eu engordei, eu fui pra 49, é uma coisa assim muito inexplicável. Quando eu cheguei lá eu comecei a ter coisas assim, não é bem distúrbio, mas comecei a ir na onda das mais velhas na verdade, porque quando eu fui morar lá eu tinha 16 anos, então assim, havia outras meninas que já faziam parte do grupo há muitos anos, mais de 20 anos, então quando eu via elas tomando lactopurga, embalando o corpo com papel filme e correndo pra suar, isso sempre um dia antes da pesagem, então a gente acabou, a gente que eu falo eu e uma outra companheira minha que também era do individual e sofreu por causa de peso também, nós começamos a fazer também, então tomar lactopurga, correr, ficar sem comer pra poder emagrecer e tudo isso... hoje em dia eu tenho outra consciência é claro né, mas na época ou era isso ou adeus olimpíada. Então assim, sofri muito entendeu? Fora outras coisas... engordou um quilo, tinha que dar 100 reais pra uma caixinha sabe? Essa caixinha que no final das contas a gente não fazia nem ideia. Falaram que foi o churrasco de quando a gente voltou das olimpíadas, da comemoração, mas assim, se a gente for parar pra pensar é uma coisa absurda aí sabe, a gente pagar porque a gente engordou ou ser tratada como um copo descartável. Hoje eu falo isso, que muitas vezes a ginasta ela é um copo descartável, porque você fez tanto... hoje eu me sinto assim também, porque você já deu tantos resultados pro país, tantos resultados... como nordestina eu fui praticamente a única que tive tantos resultados assim em tantos anos consecutivos, entendeu? E assim, eu não sou valorizada, eu não sou valorizada, me desculpa, nem pela CBG nem por nada, sabe, não tô querendo emprego não tô querendo nada disso, mas assim, eu vejo como o Espírito Santo trata suas ex-atletas, suas atletas atuais sabe, com aquele cuidado, a gente vê quando eu viajava pra mundial como os outros países tratava suas ex-atletas... o Brasil tem essa tendência de, tá mais velha, não presta, entendeu? Vem uma mais nova... só que lá fora não é assim entendeu? Tem atleta que chega até os 29 anos, 30 anos fazendo ginástica, aqui você não vê isso. Então infelizmente, infelizmente mesmo, o Brasil precisa mudar nisso porque a experiência conta muito, conta muito muito muito muito. E isso é muito desgastante.

E SUA VIDA LÁ, NA ÉPOCA DA SELEÇÃO DE CONJUNTOS, FORA DOS TREINAMENTOS, QUE OUTRAS ATIVIDADES VOCÊ CONSEGUIA VIVENCIAR, QUE MOMENTOS DE LAZER VOCÊ TINHA?

A gente, a gente que eu falo eu e a outra companheira do individual, porque as outras sempre voltavam pra casa né? Nós éramos as únicas assim, de fora realmente. As outras, uma era de São Paulo mas ela todo fim de semana pegava ônibus e ia pra casa, então acabava que a gente sempre ficava sozinha no alojamento. A gente ia ao shopping, a gente ia ao cinema, a gente assistia todos os filmes que passavam no cinema, a gente chorava todo final de semana que queria voltar pra casa que não tava aguentando mais a pressão, ah, porque não era justo acontecer isso com a gente, com fulana de tal não acontecia, a gente não podia marcar mas fulana de tal podia marcar, essas coisas assim, que não é tão besteirol mas que eu acho que se fosse tratado de uma outra forma, com um pouquinho mais de atenção sabe, dos técnicos, de chamar, conversar, que eu acho que não doi, não arranca braço nem nada,

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é, seria muito mais viável, acho que muitas ginastas não teriam se acabado dentro do esporte se houvesse mais diálogo. Existia psicólogo, existia tudo isso , mas, isso e nada era a mesma coisa, sabe? Era uma vez por semana, e mesmo assim o psicólogo só falava, falava, falava, a gente ficava calada, sei lá, desenhava, lia texto, acabou, e na prática era totalmente diferente, é isso mais ou menos... Nosso lazer era sair, chorar muito querendo voltar pra casa, comer de mais, porque o que acontecia? Na sexta-feira a gente passava fome, na quinta-feira passava fome pra na sexta-feira pesar, saía da pesagem já ía direto pro banheiro comer alguma coisa se não a gente não aguentava treinar, porque a sexta-feira era o dia mais forte de treinamento, era sei lá, umas vinte vezes que a gente repetia de cada série, fora as repetições de colaborações, dificuldades, essas coisas, lançamentos. Chegava no sábado que a gente treinava até meio dia quando a gente ía almoçar já era aquela montanha, já era chocolate, já era num sei que, já era sorvete, já ía se empanturrando, parecia que tudo ía acabar, parecia que a comida ía acabar, que a gente tinha que comer porque a gente não tinha mais forças por causa de tanta fome que a gente passava durante a semana pra perder o peso, era um horror (risos).

O QUE VOCÊ CONSIDERA QUE FOI SUA MAIOR CONQUISTA NA GR? COMO FOI PARA VOCÊ ESSA EXPERIÊNCIA?

Eu acho que todos os resultados que eu obtive na ginástica pra mim teve um valor enorme porque há um sacrifício muito grande por trás disso tudo, há um sacrifício de você não estar com sua família, de você estar dentro de um ginásio, sei lá, oito horas, dez horas por dia, então você deixa de conviver com seus amigos, você deixa de viver na verdade em função do esporte. Então eu considero todas muito importantes, mas, claro que as Olimpíadas são um marco maior na vida de um atleta porque é o ápice do ápice da onde a gente pode chegar. E pro Brasil então a gente não precisa nem falar né? Porque nós não somos o berço da GR, então estar numa olimpíada sempre vai significar algo muito grande e muito valioso. É isso, eu acho que a olimpíada foi o mais emocionante pra mim. Eu sentia uma força muito grande, por estar lá, por tudo o que eu passei para estar lá e todo o sacrifício de ficar longe da minha família, de escutar coisas que a gente não escutaria nem dos nossos pais, mas é isso, acho que valeu a pena.

VOCÊ TEVE ALGUMA LESÃO DURANTE OS TREINAMENTOS, CASO TENHA ACONTECIDO, ISSO INTERFERIA NAS SUAS ATIVIDADES DIÁRIAS, NOS TREINAMENTOS.

Quando eu era do individual, eu tinha uma inflamação na lombar, como eu não tinha muito tempo pra parar e cuidar porque sempre tinha muitos campeonatos fora do país, minha inflamação só aumentava, ela melhorava 40% mas aí eu tinha que viajar, então assim, ela nunca era tratada 100%. Quando eu tava no conjunto foi a época que eu mais senti dor na coluna que até minha coluna travou e eu nem conseguia andar direito num dia e no outro dia eu voltei pra treinar pra não perder o meu lugar porque senão eu não ía pra olimpíada. Então eu ficava a base de remédios mesmo pra aguentar os treinamentos por conta da coluna. Quando acabou a olimpíada eu decidi parar de fazer ginástica, por conta dessa dor na coluna que eu vinha meio que por cinco anos tratando e meio que... em 2004 eu não aguentava mais de dor, 2005 eu voltei a treinar, minha técnica do individual conseguiu me convencer a voltar a praticar, eu voltei já na seleção brasileira do individual, mas eu voltei um pouco acima do peso, tava com 52 quilos eu acho e aí minha coluna foi castigada de novo até o ponto que a inflamação piorou muito e eu passei um mês sem conseguir andar, por conta da inflamação... daí eu decidi parar de treinar de novo nessa época porque já não tava aguentando mais de dor.

VOCÊ TEVE MOMENTOS RUINS NA SUA TRAJETÓRIA COMO GINASTA? VOCÊ MENCIONOU ALGUNS, MAS QUAIS FORAM MAIS MARCANTES E COMO VOCÊ SE RECUPEROU DELES?

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Olha, assim, no individual, olha, eu vou falar no individual e no conjunto, porque como eu vivi as duas coisas sabe? Eu não só vivi conjunto... No individual eu não tive tanta coisa assim, ruim sabe? Como é que eu posso dizer... não tive, minha técnica sempre me respeitou muito e ela sabe que foi como minha mãe mesmo, minha segunda mãe... tudo o que aconteceu no treinamento era super normal porque a gente sabe que se a gente quer chegar em algum lugar no esporte de alto rendimento a gente tem que passar né? Uns gritinhos aqui, uns chorinhos ali sabe? E isso nem foi tanto triste nem ruim pra mim. Pra mim a parte pior foi no conjunto quando eu fui pra Londrina, o que eu falei. Você começa a enxergar, eu não sei também se era porque eu não tava na casa dos meus pais, não sei, mas você acaba vendo meninas mais velhas fazendo coisas e você com a cabeça imatura acaba entrando na onda também né? Eu tomava 6 comprimidos de lactopurga, entendeu? Pra poder ir ao banheiro... tinha umas loucuras sabe? Uma mais velha, virou pra mim uma vez e disse: -quando você tiver indo pesar lá na balança, vai cuspindo no chão que você diminui 100 gramas, entendeu? E lá vinha todo mundo cuspindo no chão, cuspindo cuspindo cuspindo, era assim, umas coisas meio malucas que quando você tá lá você faz porque meio que se desespera... ai meu deus do céu, preciso perder peso senão não vou conquistar o meu objetivo de tantos anos de treinamento, de tanto sacrifício, e depois a gente para pra observar e, meu deus, quanta loucura... Acho que o pior pra mim foi essa época, na época do conjunto.

E COMO VOCÊ SE RECUPEROU DISSO?

Recuperação (risos), tem coisas que a gente não recupera né? Tem coisas que ficam marcadas na nossa vida e a gente vai lembrando sempre daquilo pra não cometer mais sabe, esse erro... tanto é que em 2010 quando eu voltei eu fui bem clara assim, tanto pra CBG quanto pra técnica na época, olhe, não faço loucura pra emagrecer não, se tiver que emagrecer vai ser do modo saudável. Eu já fiz isso e hoje eu sinto dores de estômago muito grande por conta disso, então assim, são coisas que eu não faria de novo sabe? E sempre deixei muito claro. Então assim, recuperar mesmo, não foi um trauma tremendo mas é o que eu falo, eu prefiro até não esquecer, porque quando a gente esquece a gente pode cometer outras vezes, mas quando a gente lembra, a gente não comete mais, eu acho que isso é o mais importante.

O QUE SIGNIFICA HOJE PRA VOCÊ TER VIVIDO TODAS ESSAS SITUAÇÕES, AS BOAS, AS RUINS?

Acho que faz parte do crescimento da vida mesmo sabe, do ser humano? Hoje eu não treino mais, a gente passa por problemas na nossa vida que não tem nem tanta proporção, é até pior as vezes né, do que a gente passava como atleta, mas, tudo aquilo que a gente passou serve de lição pra que a gente possa ter mais perseverança, possa ter até mais força de vontade de enfrentar os problemas, quando surgem na nossa vida.

QUE ENSINAMENTOS DA GINÁSTICA RÍTMICA VOCÊ LEVOU PARA SUA VIDA APÓS A SAÍDA?

A disciplina. Eu sou muito chata, muito perfeccionista. Esse negócio de ser perfeccionista demais nem é uma coisa tão boa assim sabe? Eu tenho muitos problemas por conta disso, por ser perfeccionista demais eu me irrito muito fácil com as coisas quando não saem do jeito que tem que sair. Até síndrome de pânico eu tive, de uns dois anos pra cá, se aflorou mesmo por conta de estresse mesmo, as coisas que não podem sair do lugar... e isso tudo vem também do esporte, a ginástica, como qualquer outro esporte de alto-rendimento, a gente tem que treinar, treinar, treinar pra ser perfeito, e esse perfeccionismo, na minha vida, me atrapalha um pouco. Mas assim, por um lado também não é tão ruim assim, eu tento fazer as coisas do jeito mais correto possível, o esporte me ensinou que eu não preciso passar por cima de ninguém pra conseguir o meu objetivo, que a gente precisa só trabalhar, ter foco, objetivo, e é isso, disciplina, respeito ao outro sabe, eu acho que tudo isso o esporte me ensinou.

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O QUE VOCÊ APRENDEU A PARTIR DE SUA EXPERIÊNCIA COMO GINASTA?

Acho que respeitar o outro, o nosso adversário, eu acho que esse é o ponto principal, o respeito mesmo sabe? Porque é tanta guerrinha assim dentro da GR, tanta vaidade, que é um esporte só de mulher então imagine a confusão né que é, você sabe disso, é muita vaidade que tem, uma querendo ser melhor que a outra, então muitas vezes passam por cima mesmo de autoridade, de, sei lá, eu acho que o respeito foi o que eu aprendi como ginasta em relação as minhas adversárias, sabendo que elas também poderiam passar de mim, entendeu, e que pra isso não ocorrer eu tinha que trabalhar. Eu não podia estagnar, então eu sempre tinha que ir atrás de conhecimentos de treinamentos fora, pra poder me superar, não é superar o outro, é me superar mesmo, eu acho que isso a ginástica também vai deixar marcado na minha vida.

VOCÊ GOSTARIA DE DESTACAR MAIS ALGUMA COISA, PENSANDO NESSA SUA EXPERIÊNCIA DE UMA FORMA GERAL , DE VOCÊ TER QUE CONSTRUIR UMA SÉRIE, UMA OBRA COM SEU CORPO PARA PODER COMPETIR, OU SOBRE SUAS DORES, SUAS ANGÚSTIAS...

Na verdade, a ginástica assim... Eu sempre fui uma criança muito alegre, espontânea, sempre fui uma criança que gostava de dançar, tanto é que em todos os vídeos de aniversários das minhas primas você sempre ia me ver dançando. Eu dançava no supermercado, eu dançava no shopping, tanto é que bastava um batuque que eu já estava dançando. Então a ginástica meio que me completa, na verdade me completa mesmo porque realmente era uma coisa que eu gostava de fazer muito. Eu demorei muitos anos pra ter aquela vontade de sair sabe? Até hoje eu ainda me pego, ah, vou voltar, sabe? A fazer ginástica... meu corpo ainda faz muitas coisas, então assim, pra mim não é tão difícil e massacrante, massacrante são mais os treinamentos pesados hoje em dia né? Eu já vou fazer 30 anos e já pesa... eu sempre gostei muito de fazer ginástica, nunca foi uma coisa imposta pelos meus pais, forçada por ninguém, agora a partir do momento que isso passou a se tornar um peso muito grande pra mim, que foi mais nos últimos anos, e realmente eu vinha muito cansada porque não tinha férias, era um ano corrido do outro , a gente se desgastou muito, mas a música, a dança, sempre fez parte de mim sabe? E hoje eu sinto falta também disso, porque... as vezes eu fico olhando as meninas fazendo e penso, ah eu ainda podia estar aí fazendo... mas é isso, eu acho que a minha geração já passou, já era, a fase de treinamento, é isso...

OBRIGADA!

ENTREVISTA COM G4

C, EU QUERIA QUE VOCÊ ME RELATASSE COMO FOI SUA TRAJETÓRIA DE GINASTA ATÉ CHEGAR NA SELEÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA RÍTMICA?

Bom, eu comecei aos oito anos de idade no colégio, porque meu pai demorava muito pra buscar a gente na escola e aí tinha um grupinho fazendo ginástica e a gente, eu e minha irmã, então enquanto minha mãe não colocou a gente na ginástica a gente não parou de encher o saco, a gente queria fazer aquela ginástica, a gente nem sabia direito que esporte era. E foi assim que a gente começou. Eu entrei na seleção quando entrei na categoria adulta, e que na época eu tinha 14 anos, ainda não tinha essa seleção permanente, eu fui selecionada no individual pra competir nos jogos panamericanos de Cuba, foi em Cuba, em Havana, 1991. Eu lembro que naquela época ainda podia a categoria juvenil competir no adulto. Então eu era do juvenil e competia no adulto. No adulto foi a minha primeira experiência num grande evento. Eu tinha 14 anos e desde então eu fiz parte da seleção brasileira.

NA ESCOLA ANTES VOCÊ TINHA SIDO DA ESCOLINHA E FOI ENCAMINHADA PARA O CLUBE?

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Quando eu comecei com 8 anos era um grupo de crianças que praticava e ela selecionava as melhores pra competir. Aí logo no primeiro ano eu fui selecionada, aí ela montou um conjunto e no ano seguinte a gente já foi campeã, eu não lembro se foi vice ou campeã brasileira de conjunto mãos livres. E logo em seguida depois dessa competição a B que finalizou a carreira dela de ginasta por conta de uma lesão no joelho, ela passou pro outro lado, começou a trabalhar como técnica e ela me convidou pra fazer parte da equipe dela, aí que começou tudo, o treinamento mesmo.

MAS NESSA ESCOLA QUE VOCÊ COMEÇOU JÁ FAZIA PARTE DE UM PROJETO DE SELEÇÃO DA GR?

Não, chamava Colégio Estadual Vicente Rija, na época não era nem um ginásio, era um saguão, não tinha nem altura, a gente fazia lançamento só na competição (risos), e era assim, três vezes por semana, uma horinha, era bem escolinha mesmo.

JÁ PENSANDO NA SELEÇÃO, COMO ERA O SEU DIA-A-DIA?

Eu tive a tranquilidade da seleção brasileira quando realmente começou, a seleção permanente, porque até então eu participava enquanto clube, o melhor clube representava o país nos campeonatos nos campeonatos mundiais, nos campeonatos internacionais, então não era muito assim “seleção brasileira”, apesar de que a gente representava o nosso país. Mas a partir de 95 que concentrou a seleção mesmo para competir nos jogos pan-americanos de Mar del Plata, então nesse ano mesmo que começou a seleção permanente, que a gente era um grupo de ginastas, que eu tive o privilégio de estar na minha cidade, morar na minha cidade, estar perto dos meus pais, mas eu via assim que era bem difícil, sempre foi, até hoje as ginastas que saiam de casa pra se dedicar cem por cento pra ginástica, e na época a gente tinha esse privilégio assim. Não tinha muito outros aspectos que interferia, a gente estava na nossa própria casa, tava com a mãe e o pai perto e era na nossa cidade, conhecia todo mundo, tinha os nossos amigos, enfim, a gente se dedicava oito horas por dia, como é ainda hoje, se dedicava cem por cento pra ginástica rítmica.

TREINAVA DOIS EXPEDIENTES?

É, treinava dois períodos, quatro horas pela manhã, quatro horas pela tarde, sempre a gente estudava a noite, eu acho que no começo não era assim, a gente estudava um período e treinava o outro, quando foi ficando mais sério, os resultados foram aparecendo a gente treinava os dois períodos e estudava a noite. E foi assim a maior parte da minha carreira.

FORA ESSA ROTINA DE TREINAMENTO MESMO, DE TREINOS E ENSAIOS, VOCÊS TINHAM O ACOMPANHAMENTO DE OUTROS PROFISSIONAIS? FISIOTERAPEUTAS, PSICÓLOGOS? OU ISSO COMEÇOU DEPOIS?

Depois de Winnipeg, que foi a primeira medalha de ouro do Brasil em jogos pan-americanos, que foi em 99, aí que começou a vir uma estrutura melhor, que até então a gente não tinha nada, até a universidade que bancava esses aparelhos, a confederação com as passagens, era uma ajuda de todo lado. E depois que a gente foi conquistando resultado que a gente conseguiu uma melhor estrutura. Mas assim, era da universidade, projeto de extensão, com alunos que coordenados por um profissional que fazia massagem nas ginastas, a clínica de fisioterapia na época acho que não tinha, a gente não tinha nada, é, médico, a gente não tinha plano de saúde, a gente não tinha nada. Assim, eu vejo por hoje que as meninas tem uma excelente estrutura, tem todas condições, e a gente na época era bem amador mesmo, a gente participava assim de uma copa do mundo, participava de um campeonato mundial. Tinha os massagistas que era um projeto de extensão da universidade, mas não tinha fisioterapia, não tinha médico, não tinha plano de saúde, e a gente tinha sorte porque a gente não se machucava muito ainda (risos).

NÃO TINHA AINDA A ROTINA DE PESAGENS? OU SEMPRE TEVE?

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É, depois desse resultado que as cobranças vieram que foi vindo mais investimento que foi cobrando mais assim. Negócio de peso na ginástica rítmica desde sempre que tem essa cobrança, mas a gente não tinha nutricionista, não tinha orientação assim, o que a gente teve foi nas olimpíadas de 2000 que aí sim a gente teve uma melhora de postura, porque era uma olimpíada, aí eu lembro que a B organizou com a confederação uma alimentação regrada, onde vinha os pratos prontos pra gente comer a quantidade de calorias necessária, e foi aí que a gente perdeu bastante peso, a gente foi bem bonita para as olimpíadas, tava todo mundo magrinha, a gente teve o apoio também nos treinamentos de uma técnica estrangeira, uma russa que ficou com a gente seis meses. Então conforme os anos forma passando a gente foi melhorando, hoje a gente tem uma boa estrutura aqui, eu vejo.

QUANDO VOCÊ ESTAVA NA SELEÇÃO, COMO ERAM OS SEUS MOMENTOS FORA DELA, SEUS MOMENTOS DE LAZER?

(risos) Eu fui da seleção brasileira durante 15 anos, então pegou a minha vida toda, assim, minha fase de adolescente, a fase de namorar, de noivar, de casar, de filho, até com filho eu tava na seleção! Tudo foi na seleção brasileira né? Então existem várias fases aí, mas assim, no geral, eu tenho poucas experiências sem ser na ginástica, no ginásio, porque a maior parte da minha vida foi dentro de um ginásio. Então o lazer assim que a gente tinha era viajar no fim de ano com a família, ir a praia, era isso que a gente fazia, assim, fora isso a gente tava estudando, a gente nunca teve grandes amizades na escola porque as nossas amizades eram dentro da ginástica, então não teve muita vida fora do ginásio (risos). A gente teve a fase de sair que foi bem tardia, a gente começou a sair assim com 17/18 anos, e a gente saía no sábado porque logo cedo tinha treinamento, é, sei lá, eu nem tenho muita recordação se você quer saber! (risos). Porque eu comecei a namorar muito cedo, aí eu saía com meu namorado, logo eu casei, então não teve muito a fase de sair a noite, curtir...

O QUE VOCÊ CONSIDERA QUE FOI SUA MELHOR CONQUISTA NA GINÁSTICA RÍTMICA? GOSTARIA QUE VOCÊ FALASSE UM POUCO SOBRE ISSO.

Minha maior conquista como ginasta foi participar das Olimpíadas de Sydney, acho que as Olimpíadas é onde todo atleta quer chegar, e a gente conseguiu chegar lá e com muita honra, foi um resultado inédito pro Brasil, a gente entrou na final, eu lembro assim que eu já tinha um filho de um ano e pouco, eu já tinha 23 anos, quando a gente conquistou a vaga em 99 que foi através do resultado dos jogos pan-americanos de Winnipeg, eu já pensava em finalizar a minha carreira porque eu já não aguentava mais muito treino, era muito cansaço físico, muito desgaste, chegava em casa tinha meu filho novinho, marido, tudo pra cuidar, estudar, fazia faculdade de educação física e eu lembro que eu já tava saturada, já não aguentava mais em 99, pensava, ah, depois desses jogos pan-americanos vou encerrar minha carreira, isso foi quando a gente conquistou a vaga olímpica, que eu nunca imaginava assim, minha vida de atleta parecia que era tão distante para as olimpíadas, quem acreditava era minha técnica que dizia “nós vamos pras olimpíadas, nós vamos chegar!”, e a gente conseguiu chegar e foi assim a maior experiência, que eu treinei mais um ano, com muito sacrifício com muito desgaste assim, muito cansaço, mas não abri mão, eu fui até o fim... a gente entrou naquela quadra em Sydney e a gente conseguiu executar a melhor coreografia que a gente fez na vida durante minha carreira toda, minha vida toda assim... eu lembro que tem a imagem, esse momento eu não consigo esquecer porque é quando acabou a última coreografia na final olímpica que a gente deu tchau pro público, eu dei tchau com a alma lavada, feliz de encerrar minha carreira ali, de encerrar numa olimpíada, de estar satisfeita com tudo que eu me dediquei pra esse esporte.

SOBRE AS LESÕES, VOCÊ TEVE OU TEM ALGUMA LESÃO QUE CARREGOU DA GINÁSTICA?

Graças a Deus eu não tive nenhuma lesão grave, eu tive “canelite”, que é uma inflamação na canela, aquela famosa canelite e que de vez em quando atacava... doía muito, eu lembro que

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eu chorava nos treinamentos, principalmente quando esfriava lá em Londrina, quando era inverno doía muito, colocava polaina, passava pomada, minha mãe me ajudava e passava tudo o que é coisa que se possa imaginar, mas era assim, era uma coisa que passava, a gente não tinha muita estrutura para ver o que era realmente, até onde ía... ia meio de olho fechado, mas sempre era passageiro, ia, mas tinha que treinar, com dor. E outra lesão que eu tive foi, foi um acidente na verdade que eu e a D passava dentro do arco e trombou um dia antes de ir para uma competição de quatro continentes, foi véspera de Winnipeg, eu tava com meu filho bem novinho, a gente ía para os Estados Unidos, eu levei ele né, eu fui com o braço trincado e eu nem sabia que tava trincado, eu sabia que eu não aguentava de dor... e nessa competição faltava um mês pros jogos pan-americanos de winnipeg e eu lembro que eu fui pros Estados Unidos com filho, amamentando, e uma dor insuportável no meu braço, só tomava analgésico, eu não sabia que tava quebrado, nem fiz exame antes de viajar porque não deu tempo, foi véspera dessa viagem, e eu lembro que eu sofri muito, e competi assim, e eu a gente não foi bem, e eu lembro que eu falei, meu Deus, pra que tanto sacrifício? Foi aí que eu pensei em desistir, foi muito sacrifício, e eu não vou conseguir, a gente foi tão mal, eu não lembro se a gente ficou em último ou penúltimo lugar... e eu falava meu Deus, pra que tudo isso? Pra ainda chegar aqui e ir mal desse jeito, ficar em último. Mas aí a gente continuou firme porque faltava um mês e a gente foi pra Winnipeg que foi onde tudo começou, foi graças aquele resultado que a ginástica rítmica cresceu.

VOCÊ TEVE MOMENTOS RUINS, ALGUNS VOCÊ JÁ COMENTOU, DURANTE A SUA TRAJETÓRIA. QUAL FOI O MAIS MARCANTE E COMO VOCÊ SE RECUPEROU DELE?

Momento ruim eu não lembro assim... teve esse que acabei de falar, dessa lesão que eu trinquei o braço, que foi bastante sacrifício, dar conta de tudo, com filho amamentando e indo pra viagem comigo, e depois de Winnipeg deixar ele e competir esses jogos pan-americanos, acho que assim eu não tenho... graças a deus eu não tenho uma lembrança ruim, nossa como foi ruim, como sofri, não tenho porque minha carreira, graças a Deus foi de muita dedicação, de muito resultado positivo, eu tenho assim, lembranças do início da minha carreira de que meus pais não tinham muitas condições, eles se matavam pra conseguir assim... a gente tinha uma competição e a maior preocupação que meu pai e minha mãe tinha era, ah eu não vou ter dinheiro pra essas meninas viajarem, a minha mãe: ah, tem que comprar xampu, creme, organizar, comprar uma bolachinha, uma comida, uma coisinha pra levar de viagem e a gente não tem condições... Eu lembro que era bem sacrificante, meus pais passaram por momentos muito difíceis pra manter a gente no esporte e graças a Deus eles conseguiram assim... eu lembro que teve uma viagem que eu ía competir individual na França, que eu fui classificada pra competir individual, em Corbellissones, e cada um tinha que pagar essa passagem, não sei, não lembro, eu lembro que falaram: ó, tem que pagar a passagem se quiser ir, meu pai foi lá e nem falou nada pra mim, não falou nada pra gente, e ele arrumou o dinheiro e deu pra eu ir viajar, pra eu competir, representar o Brasil e depois que eu fiquei sabendo que ele vendeu um carro que ele tinha na firma, que era o único carro que ele tinha na empresa dele, ele vendeu pra eu poder competir, e eu sou muito grata a eles, se hoje eu tô aqui foi por conta de todo sacrifício que eles fizeram pra manter eu e minha irmã no esporte.

O QUE SIGNIFICA PARA VOCÊ HOJE TER VIVIDO TODAS ESSAS SITUAÇÕES?

Ah, eu, significa assim gratidão, eu sou muito agradecida pela minha vida dentro do esporte, dentro da ginástica rítmica, porque é uma história de muita dedicação, de muita abdicação, de muito sacrifício mas que tudo foi recompensado, se hoje eu sou técnica da seleção brasileira foi toda bagagem que eu tive dentro da ginástica rítmica, de tudo o que eu conquistei dentro desse esporte, e a gente não conquista nada sozinho, se eu for falar desde o começo da minha carreira, dos meus pais que me apoiaram, de todo mundo que ajudou, da universidade, da UNOPAR, de tudo que eu aprendi lá, eu ficaria aqui horas falando de todo mundo que ajudou, mas eu vejo assim que sou muito grata ao esporte, eu aprendi tudo dentro do esporte, eu vivi, conheço muitos países, tô aqui, tudo gratidão, só tenho gratidão por tudo, por ter vivido tudo isso dentro do esporte.

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QUAIS SÃO SUAS LEMBRANÇAS MAIS MARCANTES DA ÉPOCA DE TREINAMENTO?

Eu lembro pouca coisa, minha irmã lembra de muitos detalhes assim, ela fala quando as vezes a gente tá junto de coisas aí eu, gente eu não lembrava disso! E ela lembra de detalhe em detalhe, e ela fala: é, você não lembra porque você não sofreu, porque você era boa na ginástica, eu tive que penar, eu que sofri, então eu tive esse privilégio, dentro da minha época, de como era a ginástica rítmica naquela época eu era uma boa ginasta, tinha flexibilidade, então eu não sofria muito com dor né? Eu não me lesionava, eu sempre gostei muito de treinar, então eu conseguia treinar muito e conseguia competir muito bem, então não tem assim... qual que era a pergunta? (risos)

ERA SOBRE AS LEMBRANÇAS DAS ROTINAS DE TREINAMENTO

Não tenho tantas lembranças assim... eu lembro das bagunças, porque a gente treinava o dia todo, ao invés de ir pra casa almoçar a gente ficava no ginásio fazendo bagunça, a gente tinha muito pique e ia brincar na piscina e treinava o dia todo e sempre foi um grupo de amigas, sempre foi, a gente viveu a maior parte do nosso tempo todas juntas. Então eu tenho só lembranças boas. As competições sempre trazendo resultados positivos, é, mas a lembrança que eu tenho é de que a gente se dedicava muito, treinava muito, viajava muito.

ENTÃO A SUA SELEÇÃO ERA MUITO UNIDA, VOCÊS ERAM AMIGAS

É, a gente passou a maior parte da vida juntas, trocava uma peça ou outra, mas assim por exemplo: eu, minha irmã, a D, a L, a gente viveu muito tempo juntas né? Foi até 2000. Então a gente é amiga até hoje, mais isso o esporte me deu de presente, nossas amizades, e acho que assim, as lembranças boas. Nem sempre foi tudo bom, as vezes quando perdia chorava, quando ganhava, comemorava, quando tinha dificuldade, superava, foi a vida toda assim, a gente sempre trabalhou com metas, com objetivos, então começava o ano: tem tanto tempo pro campeonato brasileiro, tem o mundial esse ano de conjunto, tem o mundial de individual, então sempre foi focado em metas.

QUE ENSINAMENTOS A GINÁSTICA RÍTMICA LEVOU PARA VOCÊ APÓS SUA SAÍDA? COMO VOCÊ AINDA VIVE ISSO, O QUANTO DE SUA EXPERIÊNCIA COMO GINASTA VOCÊ TROUXE PARA EXPERIÊNCIA COMO TÉCNICA?

Com certeza, eu acho que se eu cheguei aqui foi por conta desses 15 anos dedicados à ginástica. E hoje a seleção, quando eu cheguei em 2010, a seleção tava em 26º do mundo, deu uma caída nos anos anteriores e tava em 26º. E passou quatro anos e hoje elas são 16º, então demorou quatro anos pra gente subir dez colocações, mas tá um trabalho crescente, as pessoas voltaram a acreditar na ginástica rítmica, curtir, apreciar, e eu acho que isso é um ganho muito grande. E eu tô conseguindo isso por conta de toda a bagagem que eu tive né? De tudo o que eu aprendi como ginasta, auxiliar técnica da B, de tudo o que eu aprendi durante todos esses anos na minha carreira, e eu trago tudo tudo, exatamente tudo pro ginásio, então quando as meninas estão passando pelos mesmos problemas que eu passei, que é difícil emagrecer, que tem que fechar a boca, que tem que focar, que tem que dar 100% dentro do ginásio nos treinamentos, então todo minuto é minha experiência que eu passo pra elas, porque elas vivem as mesmas coisas que eu vivi, então é mais fácil, tem essa facilidade.

PARA ALÉM DA EXPERIÊNCIA COMO TÉCNICA, O QUE A GINÁSTICA RÍTMICA TAMBÉM TE TROUXE ENQUANTO APRENDIZAGEM?

Nossa, é tanta coisa, é gratidão, eu sou grata, acho que a gente tem que ser muito grata a todo mundo que nos fez, nos formou, principalmente a minha técnica B, que eu sou o que sou graças a ela, meus pais por tudo que eles me ensinaram, a superação, atingir metas, o que é certo e o que é errado, tudo, a minha educação foi dentro do esporte e eu sou uma pessoa que leva ao pé da letra, hoje eu sei o que é certo e o que é errado porque eu aprendi dentro do esporte, aprendi a lutar pelo que eu quero dentro do esporte, a ter metas na vida dentro do

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esporte, a saber perder dentro do esporte, a saber ganhar dentro do esporte, a amizade, as minhas amigas a valorizar dentro do esporte, tudo, tudo, a minha educação foi toda dentro do esporte. E continua ainda, hoje eu tento passar tudo pras meninas.

BOM ESSA FOI A ÚLTIMA PERGUNTA! OBRIGADA!

De nada!

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APÊNDICE D - QUADROS DE CAMPOS DE SIGNIFICAÇÃO

QUADRO 1 – Corpos rasgados

G1 -Eu tenho um problema no meu joelho que na competição eu cheguei, comecei a fazer as coisas e começava a travar, e era uma dor insuportável, eu já tinha já um desgaste, um desgaste na minha rótula, mas eu nunca tinha passado travando meu joelho, aonde eu, tiveram que chamar um médico e tudo, mas mesmo assim a B me... toda vez que era isso, me levava no banheiro e falava pra mim: D, engole o choro, eu não quero que ninguém saiba de nada, tá? Se você quiser nós vamos fazer uma infiltração, você escolhe, pra você entrar na quadra, mas você não fala nada pras meninas, você engole porque eu sei que você pode fazer. Ah, que legal! Pensei comigo né? Essa responsabilidade nessa hora né? Mas ela sabia que isso ia me dar força, entendeu? Ela me conhecia. Toda vez ela fez isso comigo e deu certo. Então assim, quando a gente entrou pra competir, quando é pra ser não adianta, a gente ficou 10 minutos paradas porque antes de entrar na quadra a gente ficava num corredor que não dava pra lançar, não dava pra fazer nada, e, a gente entrou na quadra, meu joelho começou a travar travar travar, depois eu lancei aí lembra o que ficou marcado na história do túnel né? -foi um momento assim, que marcou na minha vida porque eu tive que me superar, um dor, que eu tava, quando a gente fala em dor né? Cada um que sente a sua dor, mas era uma dor insuportável pra mim, e veio esse momento, essa glória sabe? A primeira vez que a gente conseguiu a medalha, foi inédito mesmo entendeu? Foi uma alegria muito grande. -Eu já rompi o ligamento do pé, eu também tive estiramento na minha panturrilha esquerda, um mês antes das Olimpíadas, daí eles me proibiram que eu tava numa competição na Alemanha, falaram pra Bárbara que se eu competisse ela ía me perder pras Olimpíadas. Eu tive que me recuperar muito rápido, muito rápido, mas, a fisioterapeuta era a melhor de Londrina, conseguiu me recuperar. -Se eu fosse uma menina normal, talvez eu nunca fosse sentir nada. Mas como teve que forçar teve um desgaste que até hoje eu sinto. Quando eu vou subir escada eu sinto, quando vou descer escada eu sinto. Aí você fala: você se arrepende? Não me arrependo! Adoro a minha dor!

G2 -A única dorzinha física que eu tinha, assim, era o do joanete que tava em fase de crescimento, que é natural, qualquer pessoa que teve joanete vai ter essa dor mesmo, só que a minha agravava mais por conta dos exercícios na meia ponta, tal, mas não era assim uma coisa de outro mundo não.

G3 Quando eu era do individual, eu tinha uma inflamação na lombar, como eu não tinha muito tempo pra parar e cuidar porque sempre tinha muitos campeonatos fora do país, minha inflamação só aumentava, ela melhorava 40% mas aí eu tinha que viajar, então assim, ela nunca era tratada 100%. Quando eu tava no conjunto foi a época que eu mais senti dor na coluna que até minha coluna travou e eu nem conseguia andar direito num dia e no outro dia eu voltei pra treinar pra não perder o meu lugar porque senão eu não ía pra olimpíada. Então eu ficava a base de remédios mesmo pra aguentar os treinamentos por conta da coluna. Quando acabou a olimpíada eu decidi parar de fazer ginástica, por conta dessa dor na coluna que eu vinha meio que por cinco anos tratando e meio que... em 2004 eu não aguentava mais de dor,

G4 -eu tive “canelite”, que é uma inflamação na canela, aquela famosa canelite e que de vez em quando atacava... doía muito, eu lembro que eu chorava nos treinamentos E outra lesão que eu tive foi, foi um acidente na verdade que eu e a D passava dentro do arco e trombou um dia antes de ir para uma competição de quatro

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continentes, foi véspera de Winnipeg, eu tava com meu filho bem novinho, a gente ía para os Estados Unidos, eu levei ele né, eu fui com o braço trincado e eu nem sabia que tava trincado, eu sabia que eu não aguentava de dor... e nessa competição faltava um mês pros jogos pan-americanos de winnipeg e eu lembro que eu fui pros Estados Unidos com filho, amamentando, e uma dor insuportável no meu braço, só tomava analgésico, eu não sabia que tava quebrado, nem fiz exame antes de viajar porque não deu tempo, foi véspera dessa viagem, e eu lembro que eu sofri muito, e competi assim, e eu a gente não foi bem, e eu lembro que eu falei, meu Deus, pra que tanto sacrifício? Foi aí que eu pensei em desistir, foi muito sacrifício, e eu não vou conseguir, a gente foi tão mal, eu não lembro se a gente ficou em último ou penúltimo lugar... e eu falava meu Deus, pra que tudo isso? Pra ainda chegar aqui e ir mal desse jeito, ficar em último. Mas aí a gente continuou firme porque faltava um mês e a gente foi pra Winnipeg que foi onde tudo começou, foi graças aquele resultado que a ginástica rítmica cresceu. -Eu lembro pouca coisa, minha irmã lembra de muitos detalhes assim, ela fala quando as vezes a gente tá junto de coisas aí eu, gente eu não lembrava disso! E ela lembra de detalhe em detalhe, e ela fala: é, você não lembra porque você não sofreu, porque você era boa na ginástica, eu tive que penar, eu que sofri, então eu tive esse privilégio, dentro da minha época, de como era a ginástica rítmica naquela época eu era uma boa ginasta, tinha flexibilidade, então eu não sofria muito com dor né?

QUADRO 2 – Corpos modelados

G1 Cada uma tinha que tá no seu peso e só conseguiu colocar todo mundo nos eixos quando se engordasse 100g era 100 reais, então só assim. Assim, eu tive problema de peso quando era mais nova mas na seleção não tinha mais porque eu já conseguia comer as coisas certas, mesmo se eu quisesse comer um chocolate alguma coisa eu não me entupia né? Era uma bolacha, pronto acabou, já tava bom.

G2 Mas o mais doloroso mesmo que eu sofri bastante era com a questão das pesagens, que eram quatro pesagens durante o dia, uma de manhã, outra meio dia, outra quando retornava e outra na saída. O que acontecia, o nosso organismo não vai engordar porque a gente comeu naquele dia, ele vai guardar aquilo, acumular até fazer gordura. Só que aí, o que é que pesava quando a gente ía se pesar? A água. Então isso aí me maltratava de eu chorar mesmo, de eu bater na parede, quero beber água e eu não posso beber água, eu não podia beber água, porque se eu pegasse um copo de 200ml era 200g e aí quem engordasse 100g tinha que correr meia hora, então assim, não é que eu não queria correr, mas é porque era injusto, isso era muito injusto, porque a água vai sair na corrida, claro, a gente vai perder na corrida, mas, isso foi o maior sofrimento meu, foi esse mesmo, a questão das pesagens que a gente pirava né, por conta disso. triste foi quando nós estávamos precisando de mais gente na seleção e foi feita uma seletiva tal, e acabou entrando uma menina e essa menina ela de madrugada ela... nós começamos a suspeitar de algumas atitudes dela, primeiro que ela nunca conseguia emagrecer, segundo que a comida sumia lá de casa, e terceiro que de madrugada era um barulho infernal pra gente dormir, dentro do banheiro e tal, e a gente descobriu que ela tinha bulimia, então assim, triste foi eu numa idade ainda menor descobrir essa doença tão triste, e essa menina tinha e infelizmente ela teve que sair né, que ela precisou se tratar, então o ponto mais forte que eu tive foi por

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essas doenças assim causadas pela pesagem né, pela responsabilidade que é colocada numa faixa etária que a pessoa fica meio... se não tiver um psicológico forte.

G3 Eu tomava 6 comprimidos de lactopurga, entendeu? Pra poder ir ao banheiro... tinha umas loucuras sabe? Na sexta-feira a gente passava fome, na quinta-feira passava fome pra na sexta-feira pesar, saía da pesagem já ía direto pro banheiro comer alguma coisa se não a gente não aguentava treinar, porque a sexta-feira era o dia mais forte de treinamento, era sei lá, umas vinte vezes que a gente repetia de cada série, fora as repetições de colaborações, dificuldades, essas coisas, lançamentos. Chegava no sábado que a gente treinava até meio dia quando a gente ía almoçar já era aquela montanha, já era chocolate, já era num sei que, já era sorvete, já ía se empanturrando, parecia que tudo ía acabar, parecia que a comida ía acabar, que a gente tinha que comer porque a gente não tinha mais forças por causa de tanta fome que a gente passava durante a semana pra perder o peso, era um horror (risos). Eu já fiz isso e hoje eu sinto dores de estômago muito grande por conta disso, então assim, são coisas que eu não faria de novo sabe? o Brasil tem essa tendência de, tá mais velha, não presta, entendeu? Vem uma mais nova... só que lá fora não é assim entendeu? Tem atleta que chega até os 29 anos, 30 anos fazendo ginástica, aqui você não vê isso. Então infelizmente, infelizmente mesmo, o Brasil precisa mudar nisso porque a experiência conta muito, conta muito muito muito muito. E isso é muito desgastante.

G4 Negócio de peso na ginástica rítmica desde sempre que tem essa cobrança, mas a gente não tinha nutricionista, não tinha orientação assim, o que a gente teve foi nas olimpíadas de 2000 que aí sim a gente teve uma melhora de postura, porque era uma olimpíada, aí eu lembro que a Bárbara organizou com a confederação uma alimentação regrada, onde vinha os pratos prontos pra gente comer a quantidade de calorias necessária, e foi aí que a gente perdeu bastante peso, a gente foi bem bonita para as olimpíadas, tava todo mundo magrinha, a gente teve o apoio também nos treinamentos de uma técnica estrangeira, uma russa que ficou com a gente seis meses.

QUADRO 3 – Limiares

G1 ... na época que a seleção mesmo do conjunto que a gente tava se preparando para os jogos pan-americanos, as olimpíadas, a seleção ficava em Londrina, eu morava na minha casa, então assim, eu ia embora pra minha casa, gostava de ter minha hora também comigo mesma, com minha família, na minha casa... Ah, a D errou nas Olimpíadas de Atenas! Foi muito difícil eu passar por isso, é... Foi complicado, minha mãe achava que ía ter que me levar e me internar porque eu ficava em casa, entrei em depressão, mas é o que me falaram, sabe? Depois eu entendi, é que a história da ginástica tem o meu nome, entendeu? Ficou marcado meu nome. Tudo o que a ginástica conseguiu até ali, eu consegui junto. Saí do último pra parar no oitavo lugar. Então assim, depois que passou uns três anos eu comecei a pensar, entendeu? se eu começar a conversar daí vou começar a chorar porque eu passei por fases...

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minha vida social eu tentava ter, meu lazer, assim, domingo estar com minhas amigas, mas é aquilo né? Você tenta mas você não pode comer, você não pode beber, você não pode isso, mas assim, eu não me arrependo de nada hoje em dia, sabe assim? você também tem que ter o seu lazer, então eu tentava assim ter uma vida normal, mas não era igual a das minhas amigas, mas, já tava bom já.

G2 minha mãe morava em Sergipe, e eu morava lá no Espírito Santo, então passagem era cara, a gente não tinha folga, a gente não tinha folga, a gente tinha uma vez por ano que era em dezembro, e assim, tipo natal, réveillon e tipo, já voltou e já tava lá, não tinha lazer, a socialização que eu tinha era na escola, por isso que eu não gostava também de não ir pra escola, porque eram os únicos amigos, entre aspas, que a gente tinha que se relacionava. E no sábado a gente treinava também e no domingo a gente costumava ir todas a igreja, porque é necessário tá com esse vínculo com deus né, principalmente assim vivendo longe. E não tinha o que fazer, assim, na praia a gente não podia entrar no mar porque era perigoso, podia se machucar, no shopping não podia ir sozinha assim, porque alguém sempre parava a gente... a minha diversão maior e das minhas companheiras na época era ir pro supermercado ver quanto custam as coisas. A gente brincava de quanto custam as coisas. Só que as vezes a gente tava até brincando numa área que era proibida, que tinha chocolate ou bala, tudo, e chegava sempre alguém e falava: é! Vou contar pra Mônica que vocês tão comendo coisas escondida, e a gente não tava nem comendo, a gente só tava olhando, ou a gente só tava vendo mesmo, brincando lá... E assim, era uma dificuldade isso, porque como Vila Velha era uma cidade pequena, todo mundo conhecia quem era a seleção. E a gente tinha o hábito de sempre sair uniformizada porque a gente sempre tava treinando.

G3 Pra mim a parte pior foi no conjunto quando eu fui pra Londrina, o que eu falei. Você começa a enxergar, eu não sei também se era porque eu não tava na casa dos meus pais, não sei, mas você acaba vendo meninas mais velhas fazendo coisas e você com a cabeça imatura acaba entrando na onda também né? A gente, a gente que eu falo eu e a outra companheira do individual, porque as outras sempre voltavam pra casa né? Nós éramos as únicas assim, de fora realmente. As outras, uma era de São Paulo mas ela todo fim de semana pegava ônibus e ia pra casa, então acabava que a gente sempre ficava sozinha no alojamento. A gente ia ao shopping, a gente ia ao cinema, a gente assistia todos os filmes que passavam no cinema, a gente chorava todo final de semana que queria voltar pra casa que não tava aguentando mais a pressão

G4 eu tive o privilégio de estar na minha cidade, morar na minha cidade, estar perto dos meus pais, mas eu via assim que era bem difícil, sempre foi, até hoje as ginastas que saiam de casa pra se dedicar cem por cento pra ginástica, e na época a gente tinha esse privilégio assim. Não tinha muito outros aspectos que interferia, a gente estava na nossa própria casa, tava com a mãe e o pai perto e era na nossa cidade, conhecia todo mundo, tinha os nossos amigos, enfim, a gente se dedicava oito horas por dia, como é ainda hoje, se dedicava cem por cento pra ginástica rítmica. Eu fui da seleção brasileira durante 15 anos, então pegou a minha vida toda, assim, minha fase de adolescente, a fase de namorar, de noivar, de casar, de filho, até com filho eu tava na seleção!

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Tudo foi na seleção brasileira né? Então existem várias fases aí, mas assim, no geral, eu tenho poucas experiências sem ser na ginástica, no ginásio, porque a maior parte da minha vida foi dentro de um ginásio. Então o lazer assim que a gente tinha era viajar no fim de ano com a família, ir a praia, era isso que a gente fazia, assim, fora isso a gente tava estudando, a gente nunca teve grandes amizades na escola porque as nossas amizades eram dentro da ginástica, então não teve muita vida fora do ginásio

QUADRO 4 – Empatia

G1 Eu tive uma técnica maravilhosa, sabe assim, que me ensinou a viver, que me deu tudo ali pra eu andar com as minhas pernas, entende? Se não fosse a Bárbara, eu acho que eu não seria a D também, ela sabe disso porque eu falo. Eu vivi a maior parte do meu tempo com ela, e ela que abriu as portas pra mim, eu não trenaria com outra pessoa porque ela me formou como ginasta e como pessoa na vida, então acho que é isso...

G2 acho que ela que precisava de ter um trabalho psicológico forte entendeu, pra trabalhar porque, eu vou botar minha ginasta pra baixo, eu deixei todo mundo menos ela, o que eu vou dizer pra ela, que ela é incapaz de estar aqui, ela não deveria estar aqui, a técnica precisa mais do trabalho psicológico do que a gente, porque é um poder muito forte que elas tem na mão, é as melhores ginasta do Brasil na tua mão e você não sabe lidar com elas. Então eu acho assim, ela não tinha quanto mais a gente né? (risos) todo mundo que chega lá como treinadora ela impõe as crianças uma coisa e não consegue inverter a psicologia delas pra que elas se sintam boas pra fazer aquele conjunto, pra conseguir executar, pelo contrário, elas usam uma psicologia negativa que só baixa o ego da criança e faz com que ela engorde, que ela fique com lesão, que causa também quando você não tá bem mentalmente, internamente, é mais fácil de gerar uma lesão, até de se machucar porque você fica mais disperso...

G3 Olha, assim, no individual, olha, eu vou falar no individual e no conjunto, porque como eu vivi as duas coisas sabe? Eu não só vivi conjunto... No individual eu não tive tanta coisa assim, ruim sabe? Como é que eu posso dizer... não tive, minha técnica sempre me respeitou muito e ela sabe que foi como minha mãe mesmo, minha segunda mãe... tudo o que aconteceu no treinamento era super normal porque a gente sabe que se a gente quer chegar em algum lugar no esporte de alto rendimento a gente tem que passar né? Uns gritinhos aqui, uns chorinhos ali sabe? E isso nem foi tanto triste nem ruim pra mim. com fulana de tal não acontecia, a gente não podia marcar mas fulana de tal podia marcar, essas coisas assim, que não é tão besteirol mas que eu acho que se fosse tratado de uma outra forma, com um pouquinho mais de atenção sabe, dos técnicos, de chamar, conversar, que eu acho que não doi, não arranca braço nem nada, é, seria muito mais viável, acho que muitas ginastas não teriam se acabado dentro do esporte se houvesse mais diálogo. Existia psicólogo, existia tudo isso , mas, isso e nada era a mesma coisa, sabe?

G4 Nossa, é tanta coisa, é gratidão, eu sou grata, acho que a gente tem que ser muito grata a todo mundo que nos fez, nos formou, principalmente a minha técnica B, que eu sou o que sou graças a ela,

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QUADRO 5 – Corpos gloriosos

G1 Mundial dos Estados Unidos 1999 – classificação ruim da seleção brasileira (não há registros em vídeo) Panamericano de Winnipeg 1999 – primeira medalha de ouro do Brasil no evento (matéria disponibilizada em https://www.youtube.com/watch?v=AS1rRA1-7n8 ) Olimpíadas de Sydney 2000 – finalistas https://www.youtube.com/watch?v=z0CHmcvMifQ Panamericano de Santo Domingo 2003 – campeãs mais uma vez Olimpíadas de Athenas/2004 – finalistas e

coreografia de arco/bola – fase final – erro em

lançamento

https://www.youtube.com/watch?v=5GcPucuzJIg

série do Brasil, Atenas

Os Jogos Panamericanos de Winnipeg que até então a Ginástica Rítmica não era nada, um mês antes a gente foi pro mundial e a gente tinha ido muito... nossa foi péssimo! E perdemos dos Estados Unidos, do Canadá, então assim, quando nós pegamos Winnipeg a gente nem sabia o que ía acontecer... A primeira vez que a gente conseguiu a medalha, foi inédito mesmo entendeu? Foi uma alegria muito grande. Então assim, Winnipeg é muito marcado pra mim. Aí teve as Olimpíadas de Atenas, não, de Sydney em 2000, também foi um marco muito grande porque foi a primeira vez que a gente conseguiu uma vaga olímpica né? Ah, foram finalistas olímpicas! Meu! Foi finalista olímpica na Ginástica Rítmica. Depois da minha equipe ninguém mais conseguiu, entendeu? Então a gente conseguiu, a equipe da “B”, assim, que eu estive em todas as equipes, um degrau de cada vez mas conseguimos o objetivo entendeu? Então assim, também me marcou... Depois os Jogos Panamericanos de Santo Domingo também foi marcado porque era uma nova geração, as meninas eram todas mais novas, eu já era bem mais velha que as meninas, entendeu? Nós conseguimos de novo, daí eu era capitã... Daí Atenas também pra encerrar minha carreira. A gente conseguiu de novo, novamente, o oitavo lugar, que também assim, é uma coisa que depois de 2000, não, 2004, nunca mais

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ninguém conseguiu esse oitavo lugar, ser finalista olímpica. Então assim, tudo foi histórico e pra mim foi muito marcante na minha vida porque eu peguei a ginástica onde era a última do mundo, eu deixei a ginástica no oitavo lugar, entendeu? Eu sei tudo o que eu fiz até chegar ali... Ah, a Dayane errou nas Olimpíadas de Atenas! Foi muito difícil eu passar por isso, é...

G2 Pré-pan na cidade de Macaé/RJ – não há vídeo disponibilizado

Então num campeonato eu era a primeira da fila, num ginásio, eu não lembro onde foi agora, se foi no Rio de Janeiro... Foi no Rio, em Macaé! Foi no Rio, em Macaé, isso! O ginásio tava lotado, não tinha onde sentar, muita gente mesmo, e ali eu era a primeira da fila, a menos experiente e a mais nova, e a mais experiente era a última da fila. E eu tive que, quando falou assim: apresenta Brasil! Aquilo fez meu coração “tec tec tec”, que eu levantei a cabeça, que eu vi aquele público assim sabe? Ali, aquela experiência, ninguém me tira. Hoje eu acho que eu consigo falar e me relacionar bem por causa daquela experiência, sabe, de ter entrado ali naquele desafio do pan e ver aquela quantidade de gente absurda e todo mundo aplaudindo de pé, e você nem tinha terminado a série ainda, tava começando e eles já queriam um resultado bom né?

G3 Olimpíadas de Athenas/2004 – ginasta se refere ao evento completo

Então eu considero todas muito importantes, mas, claro que as Olimpíadas são um marco maior na vida de um atleta porque é o ápice do ápice da onde a gente pode chegar. E pro Brasil então a gente não precisa nem falar

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né? Porque nós não somos o berço da GR, então estar numa olimpíada sempre vai significar algo muito grande e muito valioso. É isso, eu acho que a olimpíada foi o mais emocionante pra mim. Eu sentia uma força muito grande, por estar lá, por tudo o que eu passei para estar lá e todo o sacrifício de ficar longe da minha família, de escutar coisas que a gente não escutaria nem dos nossos pais, mas é isso, acho que valeu a pena.

G4 Panamericano de Winnipeg – primeira medalha de ouro do Brasil no evento (https://www.youtube.com/watch?v=AS1rRA1-7n8) Olimpíadas de Sydney/2000 – coreografias de fita/arco - ginasta se refere a como a boa execução da série – https://www.youtube.com/watch?v=z0CHmcvMifQ Olimpíadas de Sydney/2000 – coreografias de maças - ginasta se refere a como a boa execução da série e à despedida após o exercício https://www.youtube.com/watch?v=ACx4LVSIfp8

meu Deus, pra que tudo isso? Pra ainda chegar aqui e ir mal desse jeito, ficar em último. Mas aí a gente continuou firme porque faltava um mês e a gente foi pra Winnipeg que foi onde tudo começou, foi graças aquele resultado que a ginástica rítmica cresceu. Minha maior conquista como ginasta foi participar das Olimpíadas de Sydney, acho que as Olimpíadas é onde todo atleta quer chegar, e a gente conseguiu chegar lá e com muita honra, foi um resultado inédito pro Brasil, a gente entrou na final, ... a gente entrou naquela quadra em Sydney e a gente conseguiu executar a melhor coreografia que a gente fez na vida durante minha carreira toda, minha vida toda assim... eu lembro que tem a imagem, esse momento eu não consigo esquecer porque é quando acabou a última coreografia na final olímpica que a gente deu tchau pro público, eu dei tchau com a alma lavada, feliz de encerrar minha carreira ali, de encerrar numa olimpíada, de estar satisfeita com tudo que eu me dediquei pra esse esporte.

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QUADRO 6 – Enigma

G1 Acho que, primeiro, a ginástica que me fez, eu sou a “D” hoje, por causa da ginástica, se não seria mais uma “D” aí, entendeu? Eu sou alguma coisa hoje por causa do meu esporte. Eu procurei? Procurei! Mas ele me ajudou. Eu sou, eu corro atrás das minhas coisas porque sou forte. Eu vou atrás daquilo que eu quero, eu tenho foco, eu tenho objetivo, eu não deixo, é... se eu quero, eu vou atrás, eu não deixo nada ficar pra trás. Então assim, a mulher que eu me tornei hoje, é tudo por causa do meu esporte. Eu sofri? Sofri, mas isso me fez crescer, entendeu? Eu tive todo um crescimento na ginástica. Eu me formei... tudo o que eu sou, mas tudo tudo, eu devo à ginastica rítmica.

G2 Eu só sou hoje quem eu sou por conta da seleção brasileira, por causa da ginástica. A ginástica me fez uma pessoa independente, uma pessoa de respeito, uma pessoa com ética, uma pessoa que sabe ter humanismo com sua atleta, muito por ter passado por um alto rendimento pesado, por ter vivido com 10 crianças, porque são crianças né, na seleção, de estados diferentes, culturas diferentes, regionalização diferente, vocabulário diferente, toda a educação familiar diferente. Então hoje eu acho assim, que a ginástica ela me proporcionou muitas coisas de valores, porque eu aprendi a respeitar o outro, saber viver dentro daquela cultura diferente da minha, respeitar quem é do nordeste, quem é do sul, quem é do sudeste, porque a seleção de conjunto faz isso, trata como uma família, uma equipe. O que eu aprendi mais foi que, tudo que traz benefício também nos causa sofrimento. E que se a gente quer chegar em algum lugar, a gente vai passar pelos caminhos do sofrimento porque vai ter que chegar naquele ponto alto e pra chegar no ponto alto você perde seus dias, perde sua infância, você faz sacrifícios. O que eu aprendi mais assim é que se você tem um caminho pra seguir, um objetivo, você vai ter que fazer sacrifícios, você vai ter que abrir mão, porque senão você vai ser uma pessoa infeliz, porque nem você vai abrir mão do sacrifício nem você vai chegar ao seu objetivo, você só vai ser uma sonhadora, sonhar todo ser humano sonha, mas concretizar realmente são poucos porque são poucos que tem coragem de passar pelos sacrifício.

G3 Acho que faz parte do crescimento da vida mesmo sabe, do ser humano? Hoje eu não treino mais, a gente passa por problemas na nossa vida que não tem nem tanta proporção, é até pior as vezes né, do que a gente passava como atleta, mas, tudo aquilo que a gente passou serve de lição pra que a gente possa ter mais perseverança, possa ter até mais força de vontade de enfrentar os problemas, quando surgem na nossa vida. A disciplina. Eu sou muito chata, muito perfeccionista. Esse negócio de ser perfeccionista demais nem é uma coisa tão boa assim sabe? Eu tenho muitos problemas por conta disso, por ser perfeccionista demais eu me irrito muito fácil com as coisas quando não saem do jeito que tem que sair. Até síndrome de pânico eu tive, de uns dois anos pra cá, se aflorou mesmo por conta de estresse mesmo, as coisas que não podem sair do lugar... e isso tudo vem também do esporte, a ginástica, como qualquer outro esporte de alto-rendimento, a gente tem que treinar, treinar, treinar pra ser perfeito, e esse perfeccionismo, na minha vida, me atrapalha um pouco. Mas assim, por um lado também não é tão ruim assim, eu tento fazer as

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coisas do jeito mais correto possível, o esporte me ensinou que eu não preciso passar por cima de ninguém pra conseguir o meu objetivo, que a gente precisa só trabalhar, ter foco, objetivo, e é isso, disciplina, respeito ao outro sabe, eu acho que tudo isso o esporte me ensinou. Acho que respeitar o outro, o nosso adversário, eu acho que esse é o ponto principal, o respeito mesmo sabe? Porque é tanta guerrinha assim dentro da GR, tanta vaidade, que é um esporte só de mulher então imagine a confusão né que é, você sabe disso, é muita vaidade que tem, uma querendo ser melhor que a outra, então muitas vezes passam por cima mesmo de autoridade, de, sei lá, eu acho que o respeito foi o que eu aprendi como ginasta em relação as minhas adversárias, sabendo que elas também poderiam passar de mim, entendeu, e que pra isso não ocorrer eu tinha que trabalhar. Eu não podia estagnar, então eu sempre tinha que ir atrás de conhecimentos de treinamentos fora, pra poder me superar, não é superar o outro, é me superar mesmo, eu acho que isso a ginástica também vai deixar marcado na minha vida.

G4 Ah, eu, significa assim gratidão, eu sou muito agradecida pela minha vida dentro do esporte, dentro da ginástica rítmica, porque é uma história de muita dedicação, de muita abdicação, de muito sacrifício mas que tudo foi recompensado, se hoje eu sou técnica da seleção brasileira foi toda bagagem que eu tive dentro da ginástica rítmica, de tudo o que eu conquistei dentro desse esporte, e a gente não conquista nada sozinho, se eu for falar desde o começo da minha carreira, dos meus pais que me apoiaram, de todo mundo que ajudou, da universidade, da UNOPAR, de tudo que eu aprendi lá, eu ficaria aqui horas falando de todo mundo que ajudou, mas eu vejo assim que sou muito grata ao esporte, eu aprendi tudo dentro do esporte, eu vivi, conheço muitos países, tô aqui, tudo gratidão, só tenho gratidão por tudo, por ter vivido tudo isso dentro do esporte. a superação, atingir metas, o que é certo e o que é errado, tudo, a minha educação foi dentro do esporte e eu sou uma pessoa que leva ao pé da letra, hoje eu sei o que é certo e o que é errado porque eu aprendi dentro do esporte, aprendi a lutar pelo que eu quero dentro do esporte, a ter metas na vida dentro do esporte, a saber perder dentro do esporte, a saber ganhar dentro do esporte, a amizade, as minhas amigas a valorizar dentro do esporte, tudo, tudo, a minha educação foi toda dentro do esporte. E continua ainda, hoje eu tento passar tudo pras meninas.

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ANEXO - TRECHOS SIGNIFICATIVOS

LIVRO ESCOLA DE CAMPEÃS

Capa

Texto da contracapa

O mito estende sua pátria ao mundo, não há limites. A simbiose entre o movimento e a música transforma-se em movimento, o movimento em notas musicais. Neska consegue abrir as portas para suas ginastas de um mundo de glórias, numa outra dimensão, onde nós simples mortais, só podemos aplaudir em êxtase. Ela nos dá uma lição de vida onde a dedicação, o trabalho árduo, e a criatividade, entrelaçados vencem barreiras aparentemente intransponíveis. Com persistência, o impossível se desvanece com o aprofundamento em cada músculo que se movimenta ou numa simples respiração. A dedicação à Ginástica Rítmica levou-a a repetidos sucessos que estarrece até os mais competentes profissionais envolvidos com essa arte. Transparente como um cristal, ela nos mostra como galgar os degraus do Olimpo e na sua singeleza ensina o homem a superar sua condição humana.

Carlos E. Rodrigues

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Texto da orelha

Neska Róbeva nasceu em 26 de maio de 1946, na Bulgária. Uma vida dedicada à Ginástica Rítmica Desportiva.

Por meio dessa obra ela orienta as treinadoras iniciantes e mesmo as mais experientes, desvendando os segredos do sucesso dos integrantes de sua equipe. Suas lições são de grande utilidade para as atletas determinadas ao triunfo.

Esse livro além de descrever os verdadeiros fatores que contribuem para levar à glória as ginastas, também fotografa todo o estágio de desenvolvimento da Ginástica Rítmica Desportiva grega, sendo de grande utilidade para todo aquele que se dedica a tal arte.

Em certos trechos fica nitidamente claro que certos fatores de sua personalidade são projetados para as suas ginastas de tal forma que estas assimilam na sua plenitude, principalmente o desejo de serem campeãs.

Passar para as suas comandadas tudo aquilo que se espera delas, de maneira expressa ou sutilmente, harmonizar a mente e o corpo de todos os componentes da equipe, são os ideais de todos os treinadores. Neska, na sua simplicidade, ensina como concretizar esses desejos.

Pela seriedade e precisão de seus conceitos, essa obra se torna imprescindível a todo aquele que tenha como ideal o pódio na Ginástica Rítmica.

O sucesso de uma apresentação é o ápice de um longo e árduo trabalho anterior repleto de criatividade, de profunda concentração em cada movimento, onde a perfeição é o objetivo.

Trechos selecionados

Crianças e flores tem a vantagem de serem amadas por todos. Mas há um motivo para você amar: o modo como se entra no mundo infantil. Que sua habilidade saiba oferecer alegria a elas. Antes de tudo, a criança precisa brincar, que tudo se faça na forma de prazer. Anime-as, encoraje-as, quando conseguem alguma coisa. Note seus esforços e desejos. Limite sua ambição. Tenha a capacidade de as acompanhar e de se interessar por elas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.46).

“Atenção” e “não convém” aparecem gradualmente, com razoável frequência. Sobrecarregada com todas as proibições ao mesmo tempo, a criança, facilmente, pode desanimar (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.72).

A descoberta do novo. Algumas ginastas já distinguem desde o começo. Repetem corretamente as instruções, assimilam cada pormenor, improvisam. Encorajamos, continuamente, seu espírito criativo (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991,p.87).

Tomei a mão de Iliana e saltamos juntas. Tinha problemas com o peso... Levei-a para casa e passamos fome juntas, até chegar ao peso com o qual se apresentaria mais levemente, e saltaria corretamente, com mais charme (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.194).

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Outra solução é a participação no conjunto, que exige espírito de coletividade e de disciplina, e uma constituição psicológica sadia. É indispensável que a ginasta penetre na técnica dos aparelhos, absolutamente indispensável ao sincronismo. Para o conjunto selecionam-se muitas candidatas, para termos, sempre, duas composições completas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.197).

Em certo tempo, eu tinha no time uma garota muito talentosa. Na primeira apresentação na organização internacional, os técnicos eram unânimes em dizer que fenômeno igual ainda não aparecera. Sua crença era certa; e a questão era se, realmente apareceria. Todas iam do bom ao melhor, quando, em dado momento, Velitska Bôneva declarou que não mais trabalharia na Ginástica Rítmica Desportiva. Não tinha nenhuma oposição ao treino nem a sua aparição em público. Simplesmente, não suportava os juízes (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.187).

A beleza é exigente. E muito. Por ela se luta; duramente, defendemo-la das acomodações da mediocridade. Beleza é revolução, explosão de talento, dolorosa busca. Quanto a mim, quantas noites de insônia! Muitos dias tormentosos para uma só ideia, um só movimento, uma tão pequena imperceptível pérola que dá a sensação de que tudo em nós se rejubila. E descubro essa jóia. Ninguém pode repeti-lo, ninguém pode revê-lo. É somente esta minha pérola de beleza. Logo em seguida, a dúvida sufocante: Será que a distinguirão? Será rejeitada? Logo após, a profunda convicção de que a notarão, até ser reconhecida. Os juízes talvez a recusem; as outras treinadoras talvez estejam distraídas nesse momento e não a notem; o público, porém, a distinguirá com justa avaliação (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.17)

O primeiro lugar depende de muitos fatores: do bater do coração, do preparo das adversárias, da sorte, dos juízes, do público (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.189).

Ouvi o público. Ninguém pode ser melhor avaliador (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.17)

O esporte é movimento contínuo, eterna pesquisa, perpétua mudança. Dá-se o caso de que uma tendência universal dure apenas duas horas. O que nos parecia impossível ontem realiza-se diante de nossos olhos em contínuas, “desumanas” dimensões. Às vezes, os limites reais das possibilidades humanas ultrapassam nossa concepção (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.25).

Esporte é dinâmica contínua. Sempre o novo, o nunca visto. Não se acabou de aprender algo, e já a inovação faz seu aparecimento (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.99).

Não suporto os protestos de alguma atleta minha de que não são indispensáveis as excessivas exigências de maiores esforços, se não se trata de desempenho em campeonato mundial. As campeãs mundiais não podem regatear dessa maneira. Haja um expectador no ginásio, e serão obrigadas a mostrar tudo o que podem, mesmo não havendo juízes. Para essas campeãs mundiais, o ginásio estará sempre cheio (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.19).

Nós, moradores desse canto da terra, compreendemos o que significa ‘tocares um coração, aqueceres seu sangue pelo calor e sobreviveres’. Nós, habitantes desse recanto, temos realmente outra concepção de beleza. Estamos plenos de vida e de otimismo até mesmo quando sofremos... (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.12).

Quando algo me angustia tento recordar alguma imagem das pessoas que se sentiram comovidas e reconhecidas pela beleza que lhes apresentamos. Agradeço-lhes pelo apoio; sem elas, não resistiria a tantos anos de tensão e de luta para a glória (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.20).

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Independente de termos esgotado todas as reservas, sempre encontramos algo novo. Nos métodos, nos elementos, nas composições para melhores possibilidades das futuras gerações (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.27).

Gosto de pesquisar, de corrigir, de duvidar, de apresentar somente quando estou absolutamente segura (segurança total é impossível). Digo, em todo caso, que talvez também não seja assim (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.24).

A ciência do esporte ainda não dispõe de método racionalizado e eficaz para a seleção de ginastas. Naturalmente, foram elaborados testes, mas ainda se leva em consideração a experiência e a sensibilidade do treinador (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.37).

Além da necessidade de vencer sempre, o que enche seus dias de tensão e dinamismo, é a necessidade de arrancar surpresas, grandes surpresas, a cada nova competição. Não há outra treinadora que, tão frequentemente, mude a composição de suas ginastas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.171).

Nosso desejo é sempre mais alto do que já conseguiram. Partimos juntas, e vejo até onde vão as forças de cada uma. Algumas vão com força, com sede de encontrar o novo. Assimilam rápido; desejam sair dos quadros conhecidos, para verem seu desenvolvimento, ouvir sua voz; desejam o singular, o irrepetível (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.197).

Muitas vezes um “gostei” do treinador vale muito mais do que muitos testes e a observação de dez técnicos. Não desprezemos esse argumento – o estremecimento do coração. Batendo o coração, vale a pena experimentar. Se você não tiver sorte, o fracasso também não será grande; se você falhar na busca da campeã mundial, o público não o perdoará (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.46).

A profissão de treinadora traz essa ambição: a alegria de alguma nova descoberta. Nosso

esporte tem ilimitadas possibilidades de pesquisa e criatividade (RÓBEVA e RANKÉLOVA,

1991, p.177)

O que nos provou a vida diária? Que se podem enfrentar as falhas da natureza com algum esforço. Com dificuldade, enfrentam-se as omissões da educação, defeitos acumulados do ambiente familiar ou do caráter das pessoas (RÓBEVA e RANKÉLOVA, 1991, p.195)