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Revista latinoamericana del Colegio Internacional de Filosofía · Revista latinoamericana do colégio internacional de filosofía Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia1 Patrice Vermeren2 Começarei a abordar meu tema, paradoxalmente, pela questão da Humanidade, de Jaurès a Derrida, e singularmente pelo filosofema: “A Humanidade não existe lá onde existe”. “A Humanidade não existe lá onde existe”. O que é a Humanidade? O tempo presente parece marcado pela inumanidade ou se se quiser pela desumanização, e mesmo a educação parece ser afetada pelo desaparecimento das “humanidades”. A questão da Humanidade seria então uma questão inatual, quer dizer, intempestiva. Ser intempestivo, desde Nietzsche e Françoise Proust, pode querer dizer duas coisas. Ou pensar e agir não contra, mas ao inverso de seu tempo. Ou tomar a contrapelo o seu tempo, por seu reverso: enquanto o olhar, o pensamento, a ação se aplicam ao presente, com a finalidade de determina-lo, não são contemporâneos. Isso significa a inatualidade do presente. O que Walter Benjamin traduziria como um porvir que é ao mesmo tempo o que o passado chama e aquilo que chama o passado; o intempestivo não é assim nem uma tarefa ou uma obrigação, mas uma propriedade do tempo presente. Não se saberia mais o que é um herdeiro da Humanidade, e, aliás, menos ainda o que poderia ser seu deserdado. Ter a humanidade como herança, ou em partilha, com ou sem testamento, suporia que a Humanidade fosse de antemão definida, pelo fato que existe ou tenha existido anteriormente. Ora, leio em um artigo de Jacques Derrida, publicado [no jornal] l’Humanité Dimanche [A Humanidade Domingo], de 4 de março de 1999, que, como se sabe, é o suplemento dominical de um jornal que se tornou a publicação do Partido Comunista Francês: “Minhas humanidades do domingo (A Humanidade)” – jogo de palavras com o plural e o singular – e acho essa citação de Jaurès, extraída do primeiro número do jornal l’Humanité, em 1904: “A Humanidade não existe ainda (lá) onde existe”. 1 Tradução Gustavo Chataignier, PUC-Rio. 2 Patrice Vermeren é professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de Paris 8. Membro fundador do Colégio Internacional de Filosofia, ele é doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires e da Universidade do Chile. Seu último livro, Penser contre, foi publicado pela editora Sens et Tonka, 2019.

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Revista latinoamericana del Colegio Internacional de Filosofía · Revista latinoamericana do colégio

internacional de filosofía

Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia1

Patrice Vermeren2

Começarei a abordar meu tema, paradoxalmente, pela questão da Humanidade, de

Jaurès a Derrida, e singularmente pelo filosofema: “A Humanidade não existe lá onde

existe”.

“A Humanidade não existe lá onde existe”.

O que é a Humanidade? O tempo presente parece marcado pela inumanidade ou se

se quiser pela desumanização, e mesmo a educação parece ser afetada pelo

desaparecimento das “humanidades”. A questão da Humanidade seria então uma questão

inatual, quer dizer, intempestiva. Ser intempestivo, desde Nietzsche e Françoise Proust,

pode querer dizer duas coisas. Ou pensar e agir não contra, mas ao inverso de seu tempo.

Ou tomar a contrapelo o seu tempo, por seu reverso: enquanto o olhar, o pensamento, a

ação se aplicam ao presente, com a finalidade de determina-lo, não são contemporâneos.

Isso significa a inatualidade do presente. O que Walter Benjamin traduziria como um

porvir que é ao mesmo tempo o que o passado chama e aquilo que chama o passado; o

intempestivo não é assim nem uma tarefa ou uma obrigação, mas uma propriedade do

tempo presente.

Não se saberia mais o que é um herdeiro da Humanidade, e, aliás, menos ainda o

que poderia ser seu deserdado. Ter a humanidade como herança, ou em partilha, com ou

sem testamento, suporia que a Humanidade fosse de antemão definida, pelo fato que existe

ou tenha existido anteriormente. Ora, leio em um artigo de Jacques Derrida, publicado [no

jornal] l’Humanité Dimanche [A Humanidade Domingo], de 4 de março de 1999, que, como

se sabe, é o suplemento dominical de um jornal que se tornou a publicação do Partido

Comunista Francês: “Minhas humanidades do domingo (A Humanidade)” – jogo de

palavras com o plural e o singular – e acho essa citação de Jaurès, extraída do primeiro

número do jornal l’Humanité, em 1904: “A Humanidade não existe ainda (lá) onde existe”.

1 Tradução Gustavo Chataignier, PUC-Rio.

2 Patrice Vermeren é professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de Paris 8. Membro fundador do Colégio Internacional de Filosofia, ele é doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires e da Universidade do Chile. Seu último livro, Penser contre, foi publicado pela editora Sens et Tonka, 2019.

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Pesquisei nos textos de Jaurès como essa frase enigmática poderia fazer sentido. Por

exemplo, em “A Internacional e a pátria”, discurso proferido na câmara dos deputados nos

dias 8 e 15 de dezembro de 1905, ou seja, um ano depois da fundação do jornal que atende

por l’Humanité. Jaurès diz: “Quando, em 1870, a república foi proclamada pela terceira vez,

isso se deu, imagino, após muitos eclipses, muitos abortos. Pois bem, assim como a

democracia, assim como o voto universal, assim como a República, quer dizer, assim como

um começo de justiça e de garantias entre cidadãos de um mesmo povo termina por se

estabelecer contra todos os obstáculos, atravessa todas as decepções, assim como o

arbítrio, a paz fundada no direito, quer dizer, sobre a justiça entre os povos, após várias

tentativas, após abortos miseráveis, após dolorosas decepções, também se estabelecerá; pois,

na verdade, a humanidade não progride senão por etapas e por meio de dores (aplausos da extrema

esquerda)”. O pressuposto de Jaurès, enunciado desde sua conferência “Idealismo e

materialismo” de 1894, é que a humanidade é o produto de uma longa evolução biológica,

que precedeu a evolução histórica, e que o homem emergente da animalidade já possuía em

seu cérebro predisposições e tendências. Haveria portanto etapas na história, e a

humanidade não poderia se realizar completamente de início, mas procederia por etapas. A

humanidade é um conjunto composto por seres reais, mas ao mesmo tempo um ideal, e

um ideal realizável de alcance imperativo. Há, logo, um progresso da humanidade, sob

condição que se atinja seu ideal.

É o que faz a matéria paradoxal e enigmática dessa conferência, da qual se sabe ter

contado com Paul Lafargue, genro de Karl Marx, como debatedor, criticando as posições

de Jaurès em nome da ortodoxia marxiana. “É a Humanidade que, através das formas

econômicas que repugnam cada vez menos sua ideia, se realiza a si mesma”, escreve Jaurès.

E existe na história humana não somente uma evolução necessária, mas uma direção inteligível e um ideal. Portanto ao longo dos séculos o homem não pôde aspirar à justiça senão ao aspirar a uma ordem social menos contraditória a ele do que a ordem presente, e preparada por essa ordem presente, e assim a evolução de suas ideias morais é dirigida pela evolução das formas econômicas, mas ao mesmo tempo, por meio de todos esses arranjos sucessivos, a humanidade se busca e se afirma a si mesma, qualquer que seja a diversidade dos meios, dos tempos, da reivindicações econômicas, é o mesmo sopro de queixa e de esperança que sai da boca do escravo, do servo, do proletário; é o mesmo sopro imortal de humanidade que é alma mesma do que chamamos de direito. Portanto não é preciso opor a concepção materialista e a concepção idealista da história. Elas se confundem em um desenvolvimento único e indissolúvel, pois não se pode abstrair o homem se suas relações econômicas e a história são ao mesmo tempo um fenômeno que se desenrola segundo uma lei econômica e uma aspiração que se realiza segundo uma lei ideal.

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A Humanidade não existe ainda lá onde existe porque antes da experiência da

história e de um tal sistema econômico ela não realizou seu ideal prévio da justiça e do

direito, um ideal preconcebido e perseguido, de forma de civilização e de forma superior de

civilização: “e quando se move, não é pela transformação mecânica e automática dos

modos de produção, mas sob uma influência obscura ou claramente sentida desse ideal”.

Como se a determinação em última instância pela economia fosse compatível com a

posição idealista, ao se considerar que a busca da justiça, o fato da Humanidade, é a fonte

última sociedade. A isso, Paul Lafargue responde que o ideal não é o de justiça, produção

espontânea do cérebro humano, mas o ideal perdido de paz e de alegria, de igualdade e de

fraternidade, reminiscência do mito da época de oura, de Platão, de Thomas More e de

Campanelle, além de todas as religiões.

Recomeçarei pelo fim: a questão das humanidades. Portanto no jornal “l’Humanité

Domingo” de 4 de março de 1999, que, como se sabe é o suplemento dominical de um

jornal que se tornou o veículo do Partido Comunista Francês, Jacques Derrida publica um

artigo intitulado: “Minhas humanidades do domingo”. Jogo de palavras entre o plural e o

singular. Trata-se de celebrar o centésimo aniversário de um jornal fundado por Jean

Jaurès, quem escrevia no editorial do primeiro número em 1904 um texto com o título

“Nosso objetivo”: “A Humanidade não existe ainda (lá) onde existe”. Derrida se emociona

com a evocação dessa citação: “Magnífica, intolerável. Uma al audácia deve despertar em

alguns pulsões assassinas, e não somente nos assassinos de Jaurès, mesmo naqueles que o

assassinaram após sua morte. Não suportariam ver posta em questão, de maneira trêmula,

pois acreditam saber, o que tomam por adquirido e negociam todos os dias sobre o homem,

ou mesmo o humanismo. Escuta-se daqui seu robusto bom senso: ‘Não se pode dizer isso

(‘A humanidade não existe ainda ou ela apenas existe’) sem já deter uma ideia do homem, e

sem se prender a ela. A adequação da coisa ao conceito pode permanecer algo por vir, não

essa ideia de homem”. Dito de outra maneira, para os humanistas, a questão pode ser a da

realização da essência, a ideia de homem pode preceder sua existência, mas já há nisso, já

dada, uma ideia. O que Derrida sublima é portanto a força subversiva do enunciado de

Jean Jaurès, diante de todo discurso humanista que pressuporia a existência de uma

essência do homem, mesmo se acrescenta que Jaurès não deixa totalmente de lado o

conteúdo da humanidade, uma humanidade a qual todos os socialistas conclamam de bom

grado e trabalham pela realização: “razão”, “democracia”, “propriedade comum dos meios

de trabalho”, “humanidade que reflete sua unidade superior na diversidade das nações

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amigas e livres”. Pois o que resta do conteúdo da humanidade concebida para a realização

de socialistas permanece, segundo Jaurès, abstrato: o anúncio da humanidade por vir é uma

figura da humanidade indeterminada, caso contrário não haveria verdadeira promessa, mas

apenas uma humanidade que já estaria lá. “Portanto não se sabe, com todo rigor, o que se

acredita saber que se queira dizer em nome da humanidade”, escreve Derrida.

E nesse momento de sua demonstração ele opera uma aproximação entre Jaurès e

Nietzsche: assim como a promessa de Jaurès é a promessa de uma humanidade da qual ele

não parece poder dizer o essencial, Nietzsche dizia que o homem é um animal promissor,

capaz de prometer (cf. A Genealogia da Moral). Cito ainda Derrida citando Austin: uma

palavra não significa nada, é preciso construir frases. Portanto Derrida fará frases com a

palavra Humanidade: 1) a Humanidade é o título de um jornal francês, mas universal; 2) o

jornal a Humanidade oferece hospitalidade a todos os homens e mulheres de cultura de

esquerda, para além de toda ortodoxia comunista; 3) o conceito de humanidade, quer dizer

a humanidade do homem como promessa, é um conceito novo que coloca a questão do

próprio do homem; 4) a humanidade é a humanidade do homem e da mulher, o que é

distinto da paridade e da diferença sexual; 5) a humanidade é o horizonte de uma nova

internacional, para além da soberania do Estado nacional e do cosmopolitismo; 6) a

humanidade, tanto no que concerne às novas técnicas biogenéticas quanto à virtualização

multimidiática ou ao novo espaço público, será “um novo para além espectral da oposição

vida/morte, presença/falta, privado/público, Estado/sociedade/família; 7) a Humanidade

plural é também a questão das velhas humanidades; 8) a Humanidade é o tema de uma

reflexão crítica sobre a “globalização” enquanto humanização; 9) a Humanidade de

Domingo [o jornal] evoca a questão do fim do trabalho.

Suspendo aqui minha leitura desse texto de Derrida, para evocar a genealogia

filosófica clássica que ele tenta desconstruir: 1) o gênero humano, ou seja, o conjunto dos

seres que se pode qualificar como humanos (cf. O Político, de Platão: o que faz a

especificidade do gênero humano? O Estrangeiro procede segundo a série das seguintes

dicotomias: o animal vivo é ou um animal selvagem ou um animal doméstico, este é ou

animal aquático ou um animal terrestre, os animais com pena podem ser ou voadores ou

ainda terrestres, e estes são ou quadrúpedes ou bípedes. E os bípedes são, por sua vez, ou

emplumados ou homens. Sabe-se que essa definição do homem como bípede sem plumas

será ridicularizada por Diógenes ao jogar um frango sem plumas na ágora e dizer: “Eis um

homem segundo Platão”); 2) a natureza humana (de Aristóteles a Rousseau): Aristóteles

define o homem como animal político (ele é o único que deve encarar sua própria

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especificidade: viver em comunidade política) e dotado de linguagem (portanto capaz de

formular julgamentos éticos); Rousseau mostra que o homem é menos a atualização de

uma potência do que a superação de uma humanidade natural; ao quê acrescentar-se-ia

Kant, para quem a humanidade é não apenas natureza, mas também liberdade; 3) a condição

humana (com Montaigne e Sartre): o homem é do lado da cultura, das humanidades, ao fim

de um processo de humanização.

Em três momentos, se se quiser restituir a lógica derridiana da desconstrução do

conceito de humanidade, privilegiaremos três alvos: o humano, o humanismo e as

humanidades. Derrida coloca então a questão do próprio do homem, mas sob condição da

ameaça de sua não existência ou de sua existência fantasmática: contra a burrice do

humano que, com a cultura e a civilização, se autoproclama aquele que se impõe,

reivindicando o próprio do próprio, Derrida estima que antes de ser determinado como

humano ou a-humano, o homem tem seu ponto de partida no elemento anterior/exterior

da linguagem: o grama, ou grafema ou rastro – suplementaridade sem conteúdo, dyferença

[do neologismo e homofonia do autor, différance, ou invés de différence], que produz terror

pois essa suplementaridade ameaça o próprio do homem, que o desejaria sagrado e

separado. A questão se desenvolve até ser captada pela impossibilidade de se traçar uma

fronteira objetiva e clara entre o humano e o animal. A única faculdade humana poderia ser

a de dar a morte. A pena de morte seria então o próprio do homem. O crime contra a

humanidade pode globalizar a noção de uma sacralidade do humano que temos por tarefa

desconstruir, mas à condição de não trair o humano.

Segue-se que seria preciso lançar mão de um novo humanismo, com um outro

homem, a humanidade de um homem outro ou um novo conceito de homem, com novas

humanidades. Notemos que para tanto não se renuncia em nada à herança do velho

humanismo, à dignidade do homem postulada por Kant como princípio, à condição de

fundá-la na justiça, para além das divisões constituintes do sujeito (adulto/criança,

homem/mulher, humano/animal), ou ainda o gênio. É em um tal lugar que a Universidade

sem condição poderia fazer chegar esse “outro” humanismo: “A universidade deveria ser

sem condição, um espaço de resistência crítica, desconstrutiva, onde se elaboram novas

Humanidades, um novo conceito do homem”. Sabe-se que o título antigo da conferência

pronunciada em Stanford em 1998 é o seguinte: “O futuro da profissão ou a universidade

sem condição (graças às ‘Humanidades’, o que pode ocorrer amanhã)” (Derida, 2001). A

profissão de fé que concerne o amanhã como visado a partir do presente é assim

enunciada: “Fé na Universidade, e, nela, fé nas Humanidades de amanhã”. Pode-se até aqui

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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falar de uma proposição de reforma universitária? Na realidade, não se trata tanto de

regenerar a Universidade pelo retorno às Humanidades que se definiriam como cultura

geral em oposição à especialização, mas em referência ao termo “Humanidades” conotado

pelo lugar onde é dada a conferência, o departamento literário da universidade onde se

professa nos Estados Unidos a Frech Theory; a universidade seria o lugar de apresentação de

si do princípio de incondicionalidade que apelidaremos por Humanidades, o lugar onde,

por essência, se exerce sob garantia de proteção das Humanidades, o direito soberano de

tudo dizer. Pode-se afirmar que as “humanidades” sendo o elemento mais fácil a ser

destruído pela filosofia, se ela quiser reformar a universidade, e singularmente nos

departamento onde já é ensinada, seria questão de uma tomada de poder da filosofia na

linha direta dos idealistas pós-kantianos fundadores da Universidade de Berlim – portanto

Derrida reatualizaria essa tradição de Kant a Heidegger.

Mas para Pierre Macherey, ao comentar o texto de Derrida no seminário de seu

grupo “A filosofia em sentido amplo”, de primeiro de dezembro de 2009, é preciso levar

em conta o “como se”: “A questão própria da filosofia sendo a produção de idealidades

discursivas que permitem o relance dos problemas da realidade à margem desta, no modo

do ‘como se’, Derrida propõe que se reconsidere a essa luz em princípio os ensinamentos

recenseados na rubrica ‘humanidades’, e, partir daí, em filigrana, a maioria dos outros

ensinamentos dispensados no quadro da universidade, que teriam um máximo de benefício

a retirar da lição suspensiva ou deliberativa ao adotar a atitude do ‘como se’”. O raciocínio

de Derrida seria o seguinte: ele começa por considerar que a modalidade do “como se” é

apropriada às obras de arte, às Belas-artes: pintura, escultura, cinema, música, poesia,

literatura: “as humanidades, que se desdobram no campo da universidade, estruturam seus

objetos de maneira a declará-los em relação a sua compreensão imediata, fazendo aparecer

o que causava erro a esse tipo de apreensão e despencando na senda assim aberta para

revelar o que poderia ou deveria ser no lugar do que é simplesmente assim dado”. E pouco

a pouco ele estende essa visão do “como se” além das humanidades, nos estudos de direito

ou ciências. A universidade seria portanto o lugar do “como se”, ela se tornaria ela mesma

um “como se”: ela cumpre missões, não tem funções de utilidade que lhes sejam

designadas do exterior. As Humanidades seriam, logo, o que se mantém à distância de toda

pressão econômica-política, uma universidade centrada na pesquisa da verdade e no

conhecimento puro, com o risco dessa posição ser atacada por aqueles que contestariam a

pretensão ao monopólio do reequilíbrio do sistema para lhe garantir a autonomia à qual

tem direito ao nível dos princípios: veja-se a questão Sokal e Bricmon, atacando Derrida

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em Impostura intelectuais, acusado de querer recuperar para as Humanidades o prestígio e os

créditos da Universidade. Do mesmo modo, a posição derridiana, ainda que temperada

pelo “como se”, poderia mobilizar partidários das velhas Humanidades, tais como

Stéphane Toussaint, em seu livro Humanismes et antihumanismes de Ficin à Heidegger (edição

Les Belles lettres), perseguindo a utopia do hiperhumanismo que engendra o anti-

humanismo: uma desconstrução da identidade humanista para então liberar a pura

alteridade, a esperança de Readings em ver os cultural studies organizarem a seleção de

singularidades “pós-modernas” na universidade em ruínas: “Conceber a Universidade sem

Humanitas com a chegada dos cultural studies liberados do sujeito humanista redunda em se

instalar em um plano no qual a unisersalitas não se aplicará nunca mais à percepção do

outro” (Macherey, 2011, p.229).

Pode-se dizer que o homem desfruta de uma dupla relação com a linguagem: por

um lado a possibilidade de herdá-la, por outro a capacidade de promessa. De uma certa

maneira, a Humanidade, como as Humanidades, se encontra igualmente entre a herança e a

promessa. Na promessa, há a ideia de incerteza no resultado. Derrida diria: uma promessa

que fosse certa de que o bem é o bem, o mal é o mal, e que o bem não fará o mal não seria

verdadeiramente uma promessa. Na promessa, como bem percebeu Marc Crépon, há

também o fato de exceder o possível: se prometo o possível, apenas desenvolvo o

programa, enquanto que a promessa digna desse nome deve exceder o possível. A

promessa da Humanidade, a promessa de humanidades, se mantém assim na incerteza do

futuro e no excesso sobre todo conteúdo concebido. Como o escreveu Mallarmé: « Um

homem pode se modificar, com todo esquecimento (nunca convém ignorá-lo a não ser de

propósito) da congestão intelectual nos contemporâneos”. Pode-se criticar a

instrumentalização das Humanidades, fazendo surgir as Humanidades como um espaço

onde seria possível que a crítica fosse uma crítica de si mesma: a crítica como exame em

nome das Luzes sendo submetida a uma crítica, na qual toda finalidade desapareceu. A

questão seria então que as Humanidades, como a Humanidade, estejam sob o risco da

promessa. Risco no sentido ético ou poiético que a promessa faz com que o pensamento

perca seu tempo: a promessa de um novo dia, de um tempo novo, de um homem novo, de

Humanidades novas, seja perigosa no enunciado das condições e das prescrições, corre o

risco que a promessa se perca sozinha, sem jamais ser mantida. “O risco é a inversão da

promessa em cálculo, em programa, apresentando o tempo em seu desenvolvimento linear,

enquanto que a promessa, enquanto antecipação do futuro, é aberta e disponível ao

tempo” (Marc Crépon). Como o diz Derrida, as novas “Humanidades” por vir tratam de

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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uma ideia ou de um próprio do homem que implicam sempre a promessa, uma promessa

do homem outro ou do outro homem que é promessa messiânica sem conteúdo, à

condição de que o outro humanismo não seja oposto àquele que herdamos.

A língua da filosofia, as biografias derridianas e a desconstrução da

metafísica

Em outras circunstâncias, em Salvador, Bahia, tentei mostrar como Derrida podia

afirmar que o filósofo deveria ser sem passaporte, mesmo “sem documentos”, na medida

em que pertence à comunidade universal, além da cidadania, do Estado, e mesmo do

cosmopolitismo, tanto quanto e ao mesmo tempo que reivindica a escrita em sua língua, e

até inventa uma língua em sua língua. Do mesmo modo podemos abordar Derrida pelo

triplo imperativo paradoxal que governa seu cuidado filosófico: inventar uma escritura

como uma revolução interminável, na fidelidade infiel à língua francesa; se manter nas

bordas da instituição filosófica, em uma postura que não a coloca nem nas ortodoxias

filosófica e universitária, nem no exterior, mas em uma posição dentro/fora que trabalha

suas margens; se liberar do etnocentrismo e do eurocentrismo em nome da filosofia e de

sua filiação europeia3.

1) Língua da filosofia: a filosofia é uma ambição universal da razão e, ao

mesmo tempo, se manifesta por momentos inteiramente singulares, no espaço e no

tempo; como o mostrou Alain Badiou (2005), houve ou há um momento filosófico

francês compreendido na segunda metade do século XX, comparável em dignidade

filosófica ao momento grego clássico e ao momento do idealismo alemão. Derrida

pertence a esse momento filosófico francês que vai de Sartre a Deleuze e o próprio

Badiou, passando por Bachelard, Lévi-Strauss, Merleau-Ponty, Lacan, Althusser,

Foucault, dentre as quais uma das especificidades é a invenção de um estilo

próprio. Há assim em Derrida uma relação complicada e paciente da língua à língua, um

trabalho da língua sobre ela mesma, e o pensamento passa pelo trabalho da língua sobre a língua.

Não que seja preciso confundir a filosofia, a literatura ou a poesia; mas, já que a

filosofia habita uma língua ou é habitada por ela, é preciso ter a experiência dos

conceitos na e pela escritura.

3 “Estou em guerra contra mim mesmo” (Derrida, 2004).

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2) Biografias: Jacques Derrida nasceu em El-biar, perto de Argel, em 15

de julho de 1930. Em 1942, é expulso de seu liceu por conta da aplicação de leis

antissemitas do governo Vichy. Aos dezenove anos, vai a Paris para se preparar

para o ingresso na Escola Normal Superior (ENS). Ingressa dois anos mais tarde, e

aí encontra Louis Althusser, também nascido em Argel. Após ter redigido uma

monografia sobre Husserl em Louvain, passa no concurso de agregação de

filosofia, faz seu serviço militar sendo professor em uma escola de crianças das

tropas da Argélia e em seguida segue para Harvard, sempre para os estudos de

fenomenologia. Em seu retorno dos EUA é nomeado professor assistente na

Sorbonne; em 1964 se torna mestre-assistente na Escola Normal Superior, posto

que deixará apenas em 1984 para ser eleito na Escola de Altos Estudos em Ciências

Sociais (EHESS) a uma direção de estudos em um cargo institucional criado para

ele.

Uma outra biografia possível seria aquela, inversa, que manifestaria todos os

obstáculos postos ao seu reconhecimento na filosofia acadêmica e na Universidade na

França – não obterá vaga na Sorbonne ou no Collège de France, sequer aquele de Paul

Ricœur na Universidade de Nanterre –, ao passo que é o filósofo francês mais conhecido

no exterior, dos EUA ao Japão e da Argentina à Rússia. Um destino indissociavelmente

ligado à sua postura filosófica, cujo conceito mestre é a desconstrução.

3) O que é a desconstrução? Não um sistema, menos ainda um método –

ela escapa a toda ideia de aplicação de regras –, mas uma subversão sistemática da

filosofia europeia, que é igualmente a vontade de dissociar o pensamento crítico da

tradição filosofia institucionalizada na finalidade de pôr em questão a dominação

do conceito e da conceituação; à distância de todo irracionalismo, mas também de

todo positivismo, e, numa conjuntura onde dominam o estruturalismo e a teoria

dos atos de linguagem (speech acts theory), uma contestação da autoridade da

linguagem e do logocentrismo.

No ponto inicial, Derrida interroga a fenomenologia transcendental de Husserl para

nela detectar o privilégio da voz e da escritura fonética que atravessa toda a história da

metafísica ocidental: “O que é o querer dizer? Quais são as relações com o que se acredita

identificar com o nome de voz e como valor da presença, presença do objeto, presença do

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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sentido à consciência, presença a si na palavra dita viva e na consciência de si?”. Em

seguida, em Da Gramatologia (1967), e a partir da leitura de Rousseau, ele mostra que é

preciso substituir o modelo do logos pelo de escritura, pois a forma escrita permite que se

dissocie um texto de seu contexto de origem e o torna disponível para uma decifração

[déchiffrabilité] e uma lisibilidade infinitas. A desconstrução não é uma destruição, é ao

contrário o gesto que abre as possibilidades ao infinito de se ler um texto de outra maneira

do que a feita pela tradição. Desconstruir a filosofia é introduzir a dimensão do jogo – se

religar assim com Heráclito e os pré-socráticos, como bem notou Sarah Kofman: toda

construção demanda uma nova construção, toda escritura, um suplemento, toda

construção uma desconstrução, toda escritura, um processo de apagamento e de anulação.

1966 e 1967 são os anos climatérios do momento filosófico francês. Em 1966

surgem O Bergsonismo de Gilles Deleuze, e As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, sem

prejuízo à edição francesa das Obras Filosóficas Completas de Nietzsche. Saem nas livrarias

também os Escritos de Jacques Lacan (que assim faz a dedicatória a Louis Althusser: “caro

Althusser, eis-nos na mesma charrete! Assim como no caminho que escolhemos (uma sorte

a mais), o seu Lacan”). Georges Canguilhem reedita com novas reflexões O Normal e o

Patológico. Em 1967, Jacques Derrida reúne seus últimos artigos em A Escritura e a Diferença e

publica, o vimos, Da Gramatologia. Saem enfim novas levas dos Cadernos Marxistas Leninistas

da ENS (com o artigo de Althusser sobre “Materialismo dialético e materialismo histórico”;

nos números seguintes viu-se igualmente dois números intitulados “Arte, linguagem, luta

de classes”, além do artigo de Alain Badiou sobre “A autonomia relativa do processo

estético”, e “A grande revolução cultural proletária”, uma introdução anônima redigida por

Louis Althusser); do mesmo modo, os oito primeiros Cadernos pela Análise (“A verdade”,

“O que é a psicologia?” etc., e singularmente “Lévi-Strauss no século XVIII”, com um

prefácio e um artigo de Derrida).

Nesses anos climatéricos, a voz de Derrida é singular. A partir de 1967, ele fará

variar em extensão e em compreensão seu conceito de desconstrução, à prova de uma

multidão de textos filosóficos (Platão, Hegel, Heidegger, Aristóteles, Nietzsche, Kant,

Montaigne, Marx, Kierkegaard), psicanalíticos (Freud e Lacan) e literários (Kafka, Blanchot,

Leiris, Joyce, Ponge, Bataille, Genet, Cixous, Celan, Jabès, Artaud, Marllarmé). Ele trabalha

também com formas inéditas de escrita. Glas (para parodiar Derrida: “dupla lição de

anatomia nas margens, e à margem de margens”4), divide assim a página em duas colunas,

com dois textos diferentes, um (à esquerda) sobre Hegel, o outro (à direita) sobre Jean

4 Derrida, 1974, p. 55.

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Genet. Postigos (quadrados ou retângulos textuais) e brancos pontuam essas colunas, em

um dispositivo tipográfico que também recorre a fragmentos autobiográficos. Os conceitos

derridianos (enxerto, disseminação, dyferença, rastro, suplemento) estão assim submetidos

à língua própria de Genet – e não a ela aplicados – de maneira que se desenvolve o campo

infinito de significações possíveis. Essa experiência de escritura polimorfa, que implica em

repensar as partilhas convencionadas entre literatura e filosofia se repete e A carta de Sócrates

a Freud e além (1980): “Essa sátira da literatura epistolar deveria ser recheada: de endereços,

de códigos postais, de missivas criptadas, de cartas anônimas, o todo deixado a inúmeros

modos, gêneros e tons”, escreve Derrida. “Abuso aí de datas, assinaturas, títulos ou

referências, a própria língua”. Usar e abusar (d’)a língua é também a tarefa da filosofia.

Posições: a justiça como experiência do impossível

Como, a partir daí, Derrida vai postular a questão da justiça? Não positivamente,

como se faz na metafísica, mas como experiência do impossível, experiência daquilo que

não podemos ter a experiência e que ele nomeia como experiência da aporia. A justiça

entretém uma relação de contiguidade com o direito, mas essa contiguidade opera

justamente na distinção entre o imperativo e o ato de justiça. O ato de justiça está em

situação, concerne une singularidade, indivíduos, grupos, existências insubstituíveis, o outro

ou eu como outro, enquanto que a regra, a norma, o valor ou imperativo de justiça são uma

forma geral, à condição que essa forma geral prescreva a cada vez uma aplicação singular.

O problema é então essa: como conciliar esse ato de justiça singular com o imperativo de

justiça marcado pela generalidade de sua forma. Não há direito sem pretensão de exercício

em nome da justiça, porém ao mesmo tempo não há justiça sem um direito que seja

coercitivo, posto em trabalho, constituído e aplicado pela força5.

Um dos modos de interrogação dessa maneira de se colocar a questão do

direito em Derrida seria de aproximar a sua teoria de um outro pensador do direito e assim

de indicar as proximidades e homologias de estrutura, bem como de marcar as diferenças.

Por exemplo, aproximar Derrida de Kelsen e do positivismo jurídico, como tentou Adolfo

Barbera de Rosal (1994), por meio daquilo que Kelsen invalida na questão: o que é o

direito? Como não pertinente, pelo fato de que o direito não é nada em si mesmo, mas se

encontra sob condição de ser posto como direito por uma autoridade. E certas posições de

Derrida concernem ao direito, à lei e à justiça não deixariam de evocar os filosomas de

5 Derrida, 1994a, p.38.

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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Kelsen. É claro que para mim essa aproximação é totalmente improvável, mesmo se pode

aparecer cômodo para esboçar as posições de Derrida.

A primeira posição seria a que marca uma distância irredutível entre a justiça e o

direito, entre o que é da ordem do incalculável (a justiça – mas ela exige que se calcule com

o incalculável) e o que é calculável (o direito – comandado pelo incalculável da justiça). E

desse ponto de vista a operação de desconstrução seria tornada possível no intervalo que

separa a indesconstrubilidade da justiça e a desconstrubilidade do direito. Derrida, como

bem assinalou Charles Ramond (2001), começa por dizer que a desconstrução é a justiça. O

que poderia a primeira vista parecer obscura, mas que se compreende a partir do momento

em que haveria uma homogeneidade de estrutura entre a justiça no sentido próprio e a

desconstrução. E em quê haveria homogeneidade de estrutura? No fato de que uma

decisão de justiça supõe concomitantemente a aplicação da regra e a suspensão da regra.

Pois não haveria como ter justiça senão em relação a uma regra comum, até então uma

aplicação mecânica e indiferenciada da regra seria uma injustiça encarnada, já que não

levaria em conta nem a singularidade do judicial, nem a liberdade do juiz encarregado e

avaliar e de modular a aplicação da lei. Existe portanto no momento mesmo onde a justiça

é pronunciada, ao mesmo tempo e no mesmo movimento de suspensão e de aplicação da

regra. “Para que uma decisão seja justa e responsável, é preciso que no seu próprio

momento seja ao mesmo tempo regra e sem regra, conservadora da lei e bastante destrutiva

ou suspensiva da lei para ter que dever a cada caso reinventá-la, rejustificá-la, a reinventar

ao menos na reafirmação e na confirmação nova e livre de seu princípio. Cada caso é

outro, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que regra

existente ou codificada alguma não pode nem deve absolutamente garantir” (Derrida, 1994,

p.51).

A justiça tem portanto exatamente a mesma estrutura de uma destruição-

construção, quer dizer de uma desconstrução da lei. E Ramond acrescenta que pelo viés da

identificação à justiça, a desconstrução se revela assim uma prática vigilante dos códigos da

cidade. Um direito é sempre construído, construtível e desconstrutível. O que significa que

não é jamais fundado. A justiça é, quanto a ela, radicalmente do lado do indesconstrutível, e

em princípio do sem construção, posto que é o momento da decisão, da atenção dirigida à

singularidade, ao acontecimento, à singularidade absoluta. Nesse sentido, “a desconstrução

ocorre no intervalo que separa a indesconstrubilidade da justiça da desconstrubilidade do

direito. Ela é possível como uma experiência do impossível, lá onde, mesmo se não existe,

se não está presente, não ainda ou jamais, há justiça” (idem, ibidem, p.35). Da mesma maneira

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que opera por textos filosóficos, literários ou jurídicos, a desconstrução no que diz respeito

aos textos jurídicos designa o processo de vida das estruturas, sua renovação na, pela e

apesar de sua permanência. Contra todo diagnóstico de violência que seria causada às

coisas, à imagem de um ato gratuito, a desconstrução, ao contrário, escreve e descreve o

movimento de estruturas paradoxais da realidade.

A segunda posição de Derrida seria a que liga a força ao direito, e define o

direito como força autorizada, “uma força que se justifica ou é justificada a se aplicar,

mesmo se essa justificação pode ser julgada como injusta ou injustificável” (idem, ibidem,

p.17). Uma posição que Derrida enuncia em se apoiando sobre a lembrança de Introdução à

doutrina do direito de Kant: há leis não aplicadas, mas não há leis sem aplicação, não há

aplicação da lei sem força, que essa força seja direta ou não, física ou simbólica, exterior ou

interior, brutal ou sutilmente discursiva, ou ainda hermenêutica, coercitiva ou regulativa etc.

E essa aplicação do direito não é um suplemento, mas participa essencialmente do conceito

da justiça como direito enquanto essa justiça se faz direito, da lei como direito. Uma força

de lei que é distinta – como força legítima que cumpre o direito – da violência que é uma

força sempre julgada injusta (o que segundo Alfredo Barbera del Rosal deveria ser criticado

na ideia de Kelsen, segunda a qual o direito é um modo de organização da força, mas uma

vez mais a comparação se encerra aí).

Enfim, a terceira posição de Derrida referir-se-ia ao fundamento místico da

autoridade (uma expressão de Montaigne, retomada por Pascal, convocada e reinterpretada

aqui para se pensar a origem da autoridade e a posição da lei como violência sem

fundamento). Seriam, com efeito, indecifráveis e ininterpretáveis o fundamento do direito e

sua violência fundadora, que não pode ser autorizado por legitimidade anterior alguma

(Derrida. 1994b ). Pois o momento instituinte, fundador e justificador do direito implica em

uma força performativa, quer dizer interpretativa, e um apelo à crença. O direito para

Derrida não está a serviço da força, não é seu instrumento dócil e servil, o instrumento que

seria portanto distinto e exterior do poder dominante, mas se manteria, com o que se

chama força, o poder ou a violência, uma relação mais interna e complexa. A operação que

quer dizer fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer lei, consistiria em um golpe de força,

em uma violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa

nem injusta, e que justiça alguma, nenhum direito prévio e anteriormente fundador,

nenhuma fundação preexistente, por definição, não poderia nem garantir, nem contradizer

ou invalidar (Derrida. 1994b ). “A transcendência inacessível da lei diante da qual o homem

se mantém não parece transcendental senão na medida em que depende apenas do ato

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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performativo pelo qual se institui. A lei é transcendente e teológica, portanto sempre por

vir, porque é imanente, finita e portanto já passada”. (Alfredo Barbera del Rosal daí retira

que a transcendência, a fundamentalidade da lei depende exclusivamente do êxito (da

capacidade de produzir efeitos) da posição posta pelo direito em Kelsen, assim como a

transcendência da lei, seu caráter de fundamento, depende exclusivamente do ato

performativo, por definição finito, que o institui em Derrida – mas uma vez mais, o que me

interessa não é a comparação dos dois filosofemas, sem dúvida legítima, mas aquilo que

pode ser retido para a elucidação dos efeitos das posições de Derrida).

Instituições filosóficas, de Victor Cousin e do direito à filosofia

Para concluir, gostaria de evocar, somente esboçar, no quê essa posição leva à

reivindicação de um direito à filosofia, e também propor algumas recordações pessoais.

A desconstrução derridiana deve também sua especificidade ao interesse que dedica

às “margens” da filosofia, ou se se quiser às suas “bordas”. De onde a atenção dirigida por

Derrida às instituições que condicionam a possibilidade de escrita dos textos: escolas,

programas, estruturas escolares e universitárias. Derrida nunca deixou de colocar em tensão

essa dupla exigência: defender incondicionalmente a filosofia e seu ensino contra todos

aqueles que ameaçam sua existência, e sempre se indagar sobre sua origem, seu destino e

seus limites. Em 1974, funda com professores e alunos de liceus o GREPH (Grupo de

pesquisa sobre o ensino filosófico), que milita para a ampliação do ensino em filosofia e

para repensar suas formas, criticando singularmente a da dissertação. Meus amigos e eu

mesmo nos engajamos à época na herança de maio de 1968, em um movimento mais

radical de contestação do saber e da resistência a todas suas formas de institucionalização

(posição de poder, reconhecimento acadêmico, controle da hierarquia, certeza do

verdadeiro). Publicamos uma revista: O doutrinal de sapiência (Le doctrinal de sapience) e uma

coleção de livros, “Os almanaques do filósofo manco” – que edita sucessivamente A

filosofia em armadilha mortal, Defesa da Universidade e da filosofia de Victor Cousin, Os crimes da

filosofia, com Georges Navet, Stéphane Douailler, e outros, e eu participo também de uma

outra revista As revoltas lógicas (Les révoltes logiques), cadernos do Centro de pesquisas sobre as

ideologias da revolta, com Jean Borreil, Geneviève Fraisse, Jacques Rancière e Patrick

Vaudray, dentre outros.

Lembro-me de um certo encontro com Derrida no escritório de Althusser na ENS

da rua d’Ulm, e sobretudo de uma manifestação de rua contra a redução do ensino de

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filosofia na formação dos professores, que se desenrolou atrás de uma pequena bandeira

um pouco ridícula cuja palavra de ordem era “Conhece-te a ti mesmo”. Era o tempo no

qual o ensino de filosofia era alvo de ataques dirigidos pela política e ideologia tecnocrática

em matéria de ensino do poder liberal de Giscard d’Estaing. Tínhamos feito um vasto

movimento de defesa de nossa disciplina, sem dúvida porque se tornou nossa profissão,

mas também, e ardentemente, porque não servia para nada. Pensávamos na verdade que o

Estado liberal queria substituir a filosofia pelas ciências humanas, a psicologia, a sociologia,

e todos os tipos de formação prática destinada a técnicos do saber, não porque a filosofia

poderia surgir como uma disciplina subversiva ou perigosa, mas porque a filosofia, nos

cursos do ensino secundário e na formação de professores, era uma “perda de tempo”,

segundo o ministro da educação da época. Em suma, não éramos rentáveis e lutávamos

pela manutenção oficial de nossa inutilidade, e pela existência no ensino desse momento

filosófico. Derrida, nessa época, participa de todos os combates dos filósofos de minha

geração (a de 1968), para não dizer que os precede. Uma geração que procede ao menos de

dois paradoxos. Nossos veteranos tinham se dividido internamente, separavam no tempo e

no espaço a profissão de filósofo das lutas políticas, e podiam explicar Descartes em aula

adotando um ponto de vista materialista, sem pôr em causa a forma institucional da prática

de ensino. O professor de filosofia membro do Partido Comunista era assim professor

conformista, senão modelo, cujo engajamento político se traía apenas numa tomada de

posição anti-espiritualista. Quanto a nós, pretendíamos inventar uma relação mais autêntica

entre as lições tiradas de nosso passado sessenta-oitista [soixante-huitard] e contestador e

nossa prática atual da instituição filosófica. Mas como conciliar essa exigência com a defesa

da instituição? Segunda figura do paradoxo de nossa geração: os filhos de Nietzsche, Marx

e Freud se tornavam os defensores da filosofia escolar e universitária!

Em 1979, Derrida se encontra na primeira fila da tribuna dos Estados Gerais da

Filosofia, que reúnem toda a comunidade filosófica na Sorbonne em uma indagação inédita

dela mesma sobre ela mesma. Em seu discurso de abertura na Sorbonne, diante de 1200

pessoas (16 de junho de 1979), ele lembra que o termo “Estados Gerais” evoca aqueles de

1789, tendo rompido com os predecessores pois foram fundadores, ao se proclamar

assembleia nacional e depois constituinte, recolocando radicalmente em jogo a ordem ou as

ordens que anteriormente os constituíam: “Se houve acontecimento, houve na medida

desse projeto eminentemente filosófico de autofundação que não se inicia senão de si

mesmo e sem referências às garantias, hierarquias ou legitimidades anteriores”. Com os

Estados Gerais da filosofia, se trata de uma afirmação da relação com a filosofia e da

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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relação da filosofia a si mesma (“se algo assim existe”), à condição da pergunta: “O que se

diz e se faz hoje em nome ou sob o nome da filosofia? E quanto à filosofia? E quanto ao

pensamento? O que se ensina, deve ou pode ainda se ensinar sob esse nome, nesse nome e quanto

aquelo que se apresente sob esse nome?”. Oito anos mais tarde, organizamos um encontro

“Escola e filosofia”, na Universidade de Nanterre, e Derrida nos dá uma carta prefácio, nos

atos publicados: A greve dos filósofos (Derrida, 1986). Nessa carta-prefácio, intitulada “As

antinomias da disciplina filosófica” (que terá um destino singular, do qual pode se ver um

rastro nos usos ainda hoje, por exemplo em Carolina Ávalos e a Associação dos

professores de filosofia do Chile6), ele traça uma ligação entre o filosofar, a filosofia e sua

disciplina, e a relação entre a necessidade de uma escrita desconstrutiva e a reafirmação da

filosofia.

Ele evoca os sete mandamentos contraditórios aos quais nós, professores de

filosofia, não queremos renunciar: 1) é preciso protestar contra a submissão do filosófico

contra toda finalidade que seria imposta do exterior (técnico-econômica ou sócio-política),

mas sem para isso renunciar à finalidade crítica da filosofia; 2) é preciso protestar contra

todo encarceramento da filosofia em um lugar, um tipo de objeto ou uma forma, mas é

preciso reivindicar a identidade do filosófico enquanto tal; 3) é preciso reivindicar o liame

indissolúvel entre o ensino e a pesquisa, mas a filosofia também não pode se limitar ao

ensinável e deve se confrontar sem cessar ao horizonte do ensinável; 4) é preciso exigir

implacavelmente novas instituições para a filosofia, mas a filosofia deve sempre estar em

excesso sobre as instituições, em nome da verdade e do pensamento; 5) é preciso mestres,

e uma formação de mestre para ensinar essa disciplina não ensinável, mas ao mesmo tempo

o professor de filosofia, ainda que funcionário assalariado do Estado, deve reivindicar sua

autonomia e a liberdade democrática a mais completa para a comunidade filosófica; 6) é

preciso tempo para a transmissão do filosófico, sem dúvida mais do que os nove meses da

turma de formandos, mas é preciso também evitar a dispersão, organizar a duração; 7) é

preciso uma relação professor/aluno, mas também uma autodidática, e que o mestre possa

se apagar.

Essa reafirmação da filosofia, que ele põe em prática, pode ser feita ao risco mesmo

de sua própria liberdade. Recordo-me da prisão, algum tempo depois, de Derrida, na

fronteira da Tchecoslováquia, envolvido em uma maquinação policial inverídica que havia

consistido em fazê-lo passar como portador, senão traficante, de haxixe, ao passo que ele ia

fazer seminários de filosofia clandestinos com dissidentes de Praga. Igualmente, de algumas

6 Ávalos, 2014.

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histórias que nos contou em seu retorno, sem dissimular o medo que o acometeu quando

percebeu que ninguém sabia para onde tinha sido sequestrado, nem o tempo que isso

duraria, nem a acusação absurda em nome da qual era perseguido. E li e sempre reli as

linhas que tinha consagrado ao processo de Sócrates, em seu curso sobre a hospitalidade,

como um eco dessa experiência existencial.

Em 1983, com uma ideia reguladora propriamente derridiana – o direito à filosofia

– que se funda o Colégio Internacional de Filosofia (CIPh), sob condição da igualdade e da

não permanência das funções (colégio), na reivindicação de um idioma aberto à língua do

outro (internacional), e de se levar aos limites do filosófico (filosofia). Durante mais de um

ano, o Colégio provisório (constituído por Christine Buci-Glucksmann, Françoise Carasso,

François Châtelet, Jacques Derrida, Elisabeth de Fontenay, Pierre-Jean Labarrière,

Dominique Lecourt, Marie-Louise Mallet, Francine Markovits, Jean-Claude Milner, Jean-

Luc Nancy, Patrice Vermeren) havia elaborado os estatudos, contra outros paradigmas, e

Derrida tinha sido eleito primeiro presidente de sua Assembleia Colegial, antes de passar o

cargo a Miguel Abensour. Lembro-me dessas longas reuniões de quarta-feira, rua Descartes

ou na casa de François Châtelet, de seu rigor para inventar colegialmente essa comunidade

filosófica por vir, jamais vista. Dentre tantas recordações: quando era questão de

redistribuir os seminários de maneira diferente das divisões acadêmicas. Tínhamos assim

inventado o colóquio “pensar o feminino”; ele disse sentir muito não poder encaixar o

seminário nessa rubrica. Mas por quê?, indagou uma filósofa na mesa. “Porque sou uma

mulher”, lhe respondeu. E quando se tratava de exibir por bravata ou não o seminário de

Toni Negri no programa do Colégio, enquanto a Interpol e a extrema direita italiana

tentavam localizá-lo para mata-lo (havíamos decidido que Negri faria seu curso

clandestinamente no apartamento de François Châtelet, rua Clauzel).

Lembro-me de numerosas expedições filosóficas no interior, em Sofia Antipolis,

cidade das ciências em Nice, com Christine Buci-Glucksmann e Dominique Lecourt, ou na

cidade do Creusot, pequena cidade operária das fábricas da Michelin em greve, para um

colóquio sobre “Os selvagens na cidade. Saberes populares e emancipação do povo”.

Recordo-me também das primeiras decisões que tomamos com ele para estabelecermos

relações com os filósofos chilenos excluídos da Universidade pela ditadura militar, e

singularmente com Rodrigo Alvayay e Carlos Ruiz-Schneider, na volta de uma viagem

filosófica de Pierre-Jean Labarrière, e que determinaram, se posso dizer, meu próprio

destino latino-americano. E da emoção que tive ao escutá-lo dez anos mais tarde na

faculdade de direito de Buenos Aires, falar de uma maneira intempestiva no presente,

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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enquanto toda a imprensa mencionava o testemunho do capitão Scilingo, o testemunho e a

testemunha.

Para evocar o Colégio Internacional de Filosofia, farei referência ao discurso

pronunciado por Derrida no seu décimo aniversário em 1993, com o título “O outro nome

do Colégio”7, publicado recentemente por Gustavo Celedón em tradução espanhola no

primeiro número da Revista Latino-Americana do CIPh. Recordo-me particularmente

disso porque ele me concedeu o presente de participar de minha banca de doutorado, com

Miguel Abensour, Jacques Rancière, Jacques Lagroye e Hélène Védrine, em um trabalho

sobre Victor Cousin, a institucionalização da filosofia na França e o jogo entre filosofia e

Estado). Derrida cita longamente Victor Cousin, que por sua vez volta a 1828 em sua

cadeira na Sorbonne, depois de ter sido suspenso durante oito anos pela restauração, e

depois de ter sido preso durante um ano na Alemanha sob a acusação de ter desejado

organizar um complô contra a Santa-Aliança, da qual se defendeu afirmando tão só

defender a ideia de liberdade em filosofia (e se sabe que mais tarde ele pronunciará uma

série de discursos na câmara dos Pares em 1844 sobre a defesa da Universidade e da

filosofia, à época atacadas pela Igreja católica hostil ao monopólio do ensino, discursos

longamente comentados por Derrida em A Idade de Hegel, publicado na obra coletiva do

GREPH, Quem tem medo da filosofia?). Victor Cousin expõe que a filosofia não é a inimiga

nem da indústria e da economia política, nem das leis ou da religião:

“A filosofia é a inteligência absoluta, a explicação de todas as coisas. De quê

poderia ela portanto ser inimiga? A filosofia não combate a jurisprudência, mas a eleva a

uma esfera superior: ela faz o espírito das leis. A filosofia não corta as asas divinas da arte,

mas a segue em seu voo, mede seu alcance e seu objetivo. Irmã da religião, ela recolhe em

um comércio íntimo com ela suas potentes aspirações: aproveita ao máximo suas santas

imagens e seus grandes ensinamentos, mas ao mesmo tempo converte as verdades que lhes

são ofertadas pela religião em sua própria substância e em sua própria forma; não destrói a

fé; a esclarece e a fecunda, e a eleva do meio-dia do símbolo à luz do pensamento puro”.

E Derrida faz a pergunta: por quê o Colégio Internacional de Filosofia hoje faz e

diz outra coisa que Victor Cousin no início do século 19?

Victor Cousin, a partir de 1830, acumula, até 1848, os cargos de mestre de

conferências na Escola Normal Superior e de professor na Sorbonne (ele faz passar as teses

de doutorado dos melhores estudantes, depois de ter definido seus temas e seguido as

elaborações), de presidente da agregação (recruta os professores), membro do Conselho

7 Derrida, 1993.

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Superior da Instrução Pública (administra as carreiras) e até de presidente da seção filosofia

da Academia das Ciências Morais e Políticas (atribui os prêmios àqueles que desejam

reconhecimento por trabalhos filosóficos que poderiam por vezes terem sido elaborados

fora da Universidade). O que Georges Navet assim analisou: a filosofia, na primeira metade

do século 19 na França, é governada por Victor Cousin, em três sentidos. Primeiro desde o

interior: o fluxo de discurso em aparência dispersos que se apoiam no nome de filosofia é

dirigido por uma meta-doutrina, o ecletismo, que enuncia sua verdade, o destino e o

sentido. Em seguida como prática: há três leitura autorizadas, e outras inválidas, da

tradição. Enfim o governo da prática supõe o dos praticantes: os professores, cuja

formação, a carreira universitária e a produção filosófica são cuidadosamente controlados

pelo chefe do regimento filosófico, Victor Cousin. A filosofia é assim governante. Do

interior, pois é autogoverno da razão, e obediência apenas à razão como a verdadeira

liberdade, a filosofia é paradigmática da liberdade. Governante também pois legitima a

dominação da “aristocracia legítima”, quer dizer, aqueles são governados pela razão pelo

lazer e capacidade, sobre aqueles que, curvados sob o peso do trabalho tomados pela

incapacidade de desenvolver as virtualidades de sua razão, destinam-se ao senso comum

popular e à crença religiosa. Governante, enfim, posto que a filosofia como ensino se

encontra situada no coroamento dos estudos secundários [ensino médio], sob condição

dessa consciência trazida aos portadores da razão serem legitimamente conclamados à

dominação, em um regime político (a monarquia de julho) ele mesmo fundado na razão

por ecletismo. “O ecletismo só permanece”, escreve Georges Navet, “ao afirmar que a

história da filosofia é o reflexo e a quintessência da história da humanidade, ao transformar

a história da filosofia em filosofia da história tout court” (Navet, 1996).

Victor Cousin é portanto a figura emblemática da institucionalização da filosofia na

França no começo do século XIX, instalando de maneira durável esse ensino no

coroamento do curso secundário, e o fundador de uma escola espiritualista cujos

filosofemas são: 1) a psicologia é o vestíbulo da filosofia (é preciso começar pelos fatos da

consciência, e não pelos fatos da experiência como fizeram os empiristas e os sensualistas

do século XVIII); 2) a filosofia esgotou os quatro sistemas possíveis do idealismo, do

materialismo, do ceticismo e do misticismo, não se pode mais inventar uma nova filosofia,

senão um ecletismo ao se fazer a partilha do verdadeiro e do falso em cada sistema, e de se

seguir a história da filosofia. Assim como Guizot estabelecerá em política que não se pode

mais inventar um novo regime, após os excessos da monarquismo absoluto e do

democratismo extremo, o regime do tempo será em consequência um misto, a monarquia

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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constitucional – e Cousin enuncia em seu discurso de 1828, em um gesto filosófico que

imita e caricatura sem o confessar o hegelianismo, que a filosofia do tempo, o ecletismo,

legitima a carta constitucional. Vocês sabem talvez que o Brasil teve seu Victor Cousin

negro, na pessoa de Gonçalves de Magalhães, cuja influência na instituição filosófica

brasileira foi demonstrada por Júlio Mirando Canhada, em sua tese de doutorado defendida

ano passado na USP, sob a orientação de Marilena Chauí (Canhada, 2017).

A questão portanto é: em quê a reafirmação da filosofia em Derrida é algo

completamente diferente da reafirmação da metafísica em Cousin, e por quê, ao se dizer

aproximativamente a mesma coisa de Cousin, ele diria outra coisa: a filosofia e o colégio

teriam apenas amigos? Derrida se interroga sobre o nome da filosofia enquanto está

associado a todo pensamento que não se deixa determinar por o que quer que seja, e

singularmente afirma para além de todos os programas tecno-científicos ou culturais sem

necessariamente se opor ales ou os limitar sob o modo “crítico”. À crítica, que é apenas

uma das possibilidades filosóficas, ele substitui a desconstrução, ou seja um pensamento

afirmativo que, “nem tecnocientífico, nem cultural, nem mesmo inteiramente filosófico,

guarda uma afinidade essencial com o filosófico que ela trabalha em seu discurso assim

como em suas estruturas institucionais, pedagógicas, políticas etc..”.

Essa desconstrução é a condição de possibilidade de toda reconstrução das relações

(e por vezes mesmo de interrupção dessas relações) entre o Estado, e em sua forma

institucional ou não, o saber, a técnica, a filosofia, o pensamento. Do mesmo modo, ele se

indaga sobre o nome do Colégio, enquanto o chama um outro nome do Colégio: porque

toda fundação evoca uma refundação, porque uma fundação só funda para se engajar e se

refundar em sua tradição, e que essa reafirmação não é e não deve ser um ato de repetição

ritual e mecânica, mas se dar na juventude de um recomeço, que seja acompanhado da

memória dos começos precedentes. Seja a ideia de uma instituição filosófica que, por

permanecer assim, não poderia assegurar sua tradição viva a não ser renovando sem parar

sua auto-fundação, como gesto crítico em relação a toda instância acadêmica da filosofia.

Terminarei com uma longa citação de uma intervenção de Derrida em 1988, que

refuta a ideia de que o Colégio Internacional de Filosofia tenha se constituída contra a

Universidade:

Jacques Derrida. Gostaria de prosseguir me recordando de todas as esperanças que depositei, junto a outros, no Colégio no início de sua história, quer dizer, em 1983. Entre todas essas esperanças, que não foram decepcionadas, havia, de um lado, a da diversidade de participações, uma diversidade ela mesma diversa, quer dizer, uma diversidade de status, professores, não professores,

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Patrice Vermeren

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franceses, não franceses, filósofos de profissão, pessoas vindas de outras disciplinas, e uma diversidade que tomava partido de uma resistência à intimidação. É possível, claro, que haja diversidade, não consenso, nas universidades, mas os efeitos de instituição fazem com que essas discussões, notadamente quando se chega a organizar colóquios, sejam limitados; em todo caso, esse dissenso não é buscado por ele mesmo como deliberadamente tomamos o risco desde a partida. O exemplo do colóquio Heidegger – poderíamos tomar muitos outros se tivéssemos tempo – era particularmente notável a esse respeito, pois se estava em plena época do “caso Heidegger” e me lembro de intervenções nas quais onde, de um lado, era questão mostrar conhecimento da leitura dos textos de Heidegger; de outro, trata-se de mostrar as diversas maneiras de não se estar de acordo com Heidegger, de colocar as questões notadamente políticas ao texto e ao pensamento de Heidegger sem ceder aos processos midiáticos e aos métodos expeditivos que dominavam a cena pública. Desse ponto de vista o espírito de resistência à intimidação, de onde quer que venha, que seja exercida da instituição do momento, que seja do teatro das mídias, ou ainda da doxa parisiense, essa resistência é o que sempre me seduziu no Colégio e creio que esteja ainda viva. Também tomamos o cuidado de fazer com que todas as precauções possíveis, e as mas explícitas que sejam, para apontar que não estamos em guerra com a universidade, que as diferenças que nos separam de outras instituições acadêmicas não são vividas por nós no modo da guerra. E essa provocação à resistência, provocação que creio calma, que sempre permaneceu bastante serena que devia permanecer em razão mesmo da diversidade dos parceiros do Colégio (jamais formamos um batalhão homogêneo), essa provocação à resistência tirava sua força do fato de que o lugar do Colégio, o ligar do pensamento, o lugar da instalação institucional, simbolicamente, não era Paris. Sem dúvida, o Colégio se encontra em Paris, mas tínhamos o sentimento, e fizemos tudo para confirma-lo, de que nosso lugar essencial não era um lugar de cidadania parisiense ou mesmo francesa. Isso nos deu muita liberdade, ao menos simbólica, para não nos deixar prender nas armadilhas que jamais cessaram de nos tentar. Quaisquer que tenham sido essas armadilhas, não estávamos lá e foi o que permitiu, é o que, espero, permitirá uma sobrevida do Colégio que não seja somente uma sobrevida, mas uma vida sempre renovada. (Abensour et al, 1998/3, p.121-136)

Em uma entrevista dada ao Figaro Magazine um pouco depois, 16 de outubro de

1999, Derrida constatava que, em filosofia, ou nas bordas da filosofia e em diversos outros

“domínios”, alguma coisa de singular e inédita estava se passando na França, somente na

França, ao longo dos quarenta últimos anos. Por quê somente na França? Uma das

respostas a essa questão poderia talvez ser encontrada aqui, em nossa interrogação em

comum e no presente sobre os efeitos do momento derridiano da filosofia francesa na

América do Sul.

Referências bibliográficas

ABENSOUR, M. et al. (1998) “Conversation autour du Ciph”. In: Lignes; Paris.

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Jacques Derrida, Victor Cousin e o Colégio internacional de filosofia

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