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Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII sobre umamulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França, coloquialmenteconhecida como Nha Bibiana (Nha no crioulo da Guiné, e também de CaboVerde: senhora). Guineense de nascimento e membro de uma influenteganmercantil, estabelecida num desses entrepostos “portugueses” decomércio costeiro, ela ocupa um lugar especial nos escritos do últimoquarto do século XVII. Cacheu, situada numa posição estratégica na fozdo rio do mesmo nome, naquela que hoje é chamada de Guiné-Bissau,mas que, então, era conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era, então,um importante porto de atracção para traficantes de escravos, do qualestima-se que três mil escravos eram exportados anualmente. O lugar,onde anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no território controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado, nos anos 1580,por comerciantes privados, os chamados lançados com os negros etangomaos ou tangomas.Eles geralmente tinham um ancestral cabo-verdiano na linha masculina, mas eram guineenses pela linha feminina,embora alguns tivessem ascendência portuguesa. A permissão para afixação foi dada pelos Pepel, dunusditchon em crioulo (derivado do português “donos do chão”), aos ditostangomaos , que viram a construção de uma fortificação como uma medida de protecção. Os dunusditchonda comunidade Banhun, noutro lugar ao longo do Rio Cacheu, supostamente os tinham tratado mal e, além disso, eles também precisavam seproteger contra os ataques dos competidores rivais europeus. Os produtores locais forneciam géneros alimentícios, tais como arroz, milhete,milho, carne, lacticínios e sal para o sustento de seus habitantes. Apósreceber o “direito de cidade” da Coroa portuguesa (em 1605) e ter- seconvertido numa “capitania”, Cacheu logo se tornou o principal entreposto“português” para o tráfico de escravos, mas também exportava cera deabelha, marfim, panos de algodão e peles animais. Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste distritomilitar (capitania) e fortaleza (presídio), por parte da monarquia portuguesa foi dificultado devido à objecção desta à presença de comerciantesprivados que negociavam com nações europeias rivais e deixavam depagar impostos. Isto se deu

Nha Bibiana e a república de Cacheu

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Page 1: Nha Bibiana e a república de Cacheu

Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII sobre

umamulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França,

coloquialmenteconhecida como Nha Bibiana (Nha no crioulo da

Guiné, e também de CaboVerde: senhora). Guineense de nascimento

e membro de uma influenteganmercantil, estabelecida num desses

entrepostos “portugueses” decomércio costeiro, ela ocupa um lugar

especial nos escritos do últimoquarto do século XVII. Cacheu,

situada numa posição estratégica na fozdo rio do mesmo nome,

naquela que hoje é chamada de Guiné-Bissau,mas que, então, era

conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era, então,um importante

porto de atracção para traficantes de escravos, do qualestima-se

que três mil escravos eram exportados anualmente. O lugar,onde

anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no território

controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado, nos anos

1580,por comerciantes privados, os chamados lançados com os

negros etangomaos ou tangomas.Eles geralmente tinham um

ancestral cabo-verdiano na linha masculina, mas eram guineenses

pela linha feminina,embora alguns tivessem ascendência

portuguesa. A permissão para afixação foi dada pelos Pepel,

dunusditchon em crioulo (derivado do português “donos do chão”),

aos ditostangomaos , que viram a construção de uma fortificação

como uma medida de protecção.

Os dunusditchonda comunidade Banhun, noutro lugar ao longo do

Rio Cacheu, supostamente os tinham tratado mal e, além disso, eles

também precisavam seproteger contra os ataques dos

competidores rivais europeus. Os produtores locais forneciam

géneros alimentícios, tais como arroz, milhete,milho, carne,

lacticínios e sal para o sustento de seus habitantes. Apósreceber o

“direito de cidade” da Coroa portuguesa (em 1605) e ter-

seconvertido numa “capitania”, Cacheu logo se tornou o principal

entreposto“português” para o tráfico de escravos, mas também

exportava cera deabelha, marfim, panos de algodão e peles

animais.

Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste

distritomilitar (capitania) e fortaleza (presídio), por parte da

monarquia portuguesa foi dificultado devido à objecção desta à

presença de comerciantesprivados que negociavam com nações

europeias rivais e deixavam depagar impostos. Isto se deu

Page 2: Nha Bibiana e a república de Cacheu

precisamente devido ao controle que ostangomaos e seus

descendentes, muitos com raízes sefarditas e perseguidos pela

Inquisição e pela Coroa, exerceram sobre grande parte dastrocas

comerciais na região, o que contrariava os interesses dos

portugueses estabelecidos, que reclamavam direitos de monopólio

sobre talcomércio. A administração dessas cidades-fortalezas

esteve,alternadamente, nas mãos de oficiais portugueses e

africanos, geralmente recrutados no arquipélago de Cabo Verde e

nos gan mercantis locais.

Ao mesmo tempo, comunidades de africanos baptizados, os então

chamados “cristãos por ceremónia” ou kriston que incluíam uma

população heterogénea, desde escravos domésticos até

profissionais e comercianteslivres que tinham se estabelecido em

áreas localizadas em torno da cidade fortificada, tinham seu próprio

governo independente, dirigido pelos“juízes do povo”. No início do

século XVII, Cacheu possuía vinte outrinta “vizinhos” mas, nas

últimas décadas do mesmo século, estimou-se um total de 400 a

500 “vizinhos”, um estatuto limitado aos que viviam como

“portugueses livres”, isto é, que excluía os escravos. Documentos

contemporâneos, entretanto, não deixam dúvidas sobre o seu

alegado estado pecuniário lastimável, sugerindo que os habitantes

ricos eram aqueles que viviam e comerciavam no interior.

A presença de brancos residentes, nascidos na Europa, era ainda

mais ínfima, indicando que os que se intitulavam “brancos” eram

nascidos localmente, e simulavam sua brancura calçando sapatos.

A taxa de mortalidade entre os residentes era apontada como sendo

alta, de tal modo que, no início do segundo quartel do século XVIII

só seis “moradores” estavam ainda registrados. Realçavam-se,

assim, os problemas de aclimatização e das doenças tropicais,

numa zona desprovida de qualquer apoio médico exterior. Essa

camada social afro-atlântica, direccionada para a troca mercantil e

a administração política, efectivamente ganhou o controlo do

comércio regional costeiro e fluvial entre o final do século XVI e o

iníciodo XVII. Nas primeiras décadas do século XVII, as autoridades

cabo-verdianas protestaram contra a presença de “muita gente da

nação”, istoé, judeus sefarditas, que negociavam com os

holandeses, ingleses e franceses, e tinham o seus próprios

exércitos de escravos.

Page 3: Nha Bibiana e a república de Cacheu

Na época, a concorrência entre as nações europeias, incluindo

Portugal, França, Grã-Bretanha e Holanda, pelos lucros do tráfico foi

ainda mais intensa, apósquase um século e meio no qual traficantes

“portugueses” exerceram omonopólio Atlântico. As redes de

tangomaos eram baseadas no parentesco e coabitação com as

linhagens governantes que controlavam osrecursos humanos e

materiais entre os grupos litorâneos, permitindo-lhes monopolizar o

comércio fluvial com acesso baseado na terra. Cronistas

contemporâneos associaram os “portugueses” à camada de

mulatos que garantiam grande parte da renda do comércio regional.

Porvolta da segunda metade do século XVII, tinham emergido

algunsganque combinavam o acesso às rotas para o comércio

Atlântico com vínculos certos com os fornecedores africanos locais.

Os mais poderosos gande Cacheu foram o Gomes, com origens

sefarditas, e o Vaz de França,relacionado aos grupos matrilineares

Banhum e Pepel. Este último controlava as áreas ribeirinhas do Rio

Cacheu e tinha em Farim sua principalfonte de comércio. Farim

encontrava-se no limite das marés, no perímetro ocidental da

confederação de Kaabú. Estando nas mãos dos Soninké,esta se

desvinculou do império do Mali no século XVI, e exerceu umdomínio

incontestado sobre as rotas comerciais com a região do AltoNíger,

no interior, até o século XIX. Redes comerciais marítimas eram,

sobretudo, articuladas para a compra de noz de cola na região de

SerraLeoa, mais ao sul, e a sua troca, com barras de ferro e sal, por

escravose ouro na área de Farim. A criação, por decreto real, mas

com fundos privados, da Companhia de Cacheu, em 1676, tinha

como intenção tomar conta deste lucrativo comércio. Protestos de

várias partes de CaboVerde e da Guiné já sugeriam que a

companhia não era particularmentebem vinda pelos interesses afro-

atlânticos locais.

O principal obstáculo foi a proibição, por parte da companhia, aos

“moradores” de Cabo Verdee das terras firmes, de comerciarem

com os estrangeiros. Isto, a despeito dos apelos dos comerciantes

de Cacheu no sentido de que o rei, D. João IV,deveria se “lembrar

deste povo” e garantir-lhe a liberdade para participardo comércio

transatlântico, como faziam os seus congéneres em Cabo Verde.Por

fim, afirmaram que “como o nosso comércio é somente o resgate

deescravos e senão tivermos saída para elles pela mesma via será

Page 4: Nha Bibiana e a república de Cacheu

impossívelsenhor podermos sustentar as nossas famílias”.

Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da

Companhia foi Ambrósio Gomes, marido de Nha Bibiana, um rico

traficante deescravos, com raízes africanas e sefarditas, que já

tinha ocupado o posto de capitão-mor e era visto como um futuro

director da companhia. Nascido em Cacheu em 1621, as suas raízes

paternas apontam para avila de Arraiolos, no Alentejo, onde passou

uma parte da sua infâncianuma família de origem sefardita. Sua

mãe era originária das IlhasBijagó, situadas defronte à costa da

actual Guiné-Bissau, que duranteséculos foram importantes fontes

de escravos. Ele era tido como alguém capaz de inspirar mais medo

e respeito do que o então governadorde Cacheu, um morgado —

proprietário de terras — em Cabo Verde queestava encarregado da

companhia. Desde os anos 1640, Ambrósio Gomes regularmente fez

ouvir sua voz em Lisboa, reclamando do tratamento desigual

dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação comos

cabo-verdianos. Uma fonte francesa descreveu-o, a ele e a seu

filhoLourenço, como “negros, mas civilizados e respeitados em seu

país”.

Embora os dados biográficos sobre a vida de Bibiana sejam muito

sumários, sabemos que ela nasceu no início do século XVII. As

primeirasreferências ao apelido Vaz, de origem cabo-verdiana,

remontam ao século XVI e sempre estiveram associadas ao rio

Gâmbia, conforme atestauma menção ao primo de Nha Bibiana,

Francisco Vaz de França em cartaao Rei escrita pelo então capitão-

mor de Cacheu em 1647. Muito pouco se sabe deNha Bibiana antes

da morte do seu marido Ambrósio Gomes, além do facto de já estar

casada nos anos sessenta. Embora faltem dados conclusivos

acerca do seu casamento com Ambrósio Gomes,a aliança entre os

dois gan foi significativa. Logo após a morte de seumarido, em

1679, uma disputa com o recém-indicado comandante militar de

Cacheu, José de Oliveira, catapultou-a, já em idade avançada,para

os livros de história. Ao fazer cumprir a “regra da exclusão”,

queproibia todo comércio com os “estrangeiros” — holandeses,

ingleses efranceses —, ignorando, assim, a recusa da comunidade

mercantil localem reconhecer o contrato da companhia, o

comandante precipitou a suaprópria queda. Bibiana, seu irmão

Ambrósio Vaz e seu primo Franciscoarmaram uma emboscada e

Page 5: Nha Bibiana e a república de Cacheu

fizeram-no prisioneiro em 25 de Março de1684, assim que saiu da

missa celebrada no hospício católico local. Elefoi algemado como

um escravo e humilhado diante da comunidade deCacheu, quando

Bibiana declarou-o, publicamente, culpado de abuso depoder. A

seguir foi mandado rio acima, para Farim, onde foi mantido pormais

de um ano no apertado e escuro corredor de uma casa que

Bibianatinha lá. Pouco antes do “golpe”, os comerciantes de Cacheu

tinhamfeito uma petição acusando-o de “injustiças, desonras,

tiranias, roubose aleivosias” além de deslealdade e furto.

Relatos posteriores claramente identificam Bibiana como a

dirigente que estava por trás da conspiração. Foi dito que todos os

encontrosdos rebeldes tiveram lugar em sua casa, em Cacheu, e

que foi ela que, efectivamente, recebeu os assessores do

comandante após sua prisão.Apesar disso, a declaração que se

seguiu à prisão, num tom marcadamente“republicano”, trazia a

assinatura de seu irmão, na épocaum dos maisricos comerciantes

afro-atlânticos da região. Em vez de ser uma chefenominal,Nha

Bibiana foi a mais respeitada anciã do clã, mas não

exerceunenhuma função administrativa e não sabia escrever o

português. Emvez de ser uma figura secundária, que permaneceu

nos bastidores comomuitas de suas congéneres, ela, por causa de

sua extensa clientela, quetanto era atlântica quanto africana,

desempenhou um papel-chave nosacontecimentos. Os eventos que

se seguiram demonstram o estreito relacionamento entre ela, seu

irmão e seu sobrinho, que apoiaram seus actos.

Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o

comandantemilitar, mas também o director local do monopólio da

coroa portuguesarepresentado pela companhia comercial, a revolta

revelou o profundo eenraizado conflito entre os interesses

portugueses na região e os dosganmercantis locais. Ao reclamar

poder político, os revoltosos declararam:

1. não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas [de

CaboVerde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e

esperarque saia „resolução‟;

2. nenhum Português negociará com os gentios, mas só com

osmoradores da praça com pena do perdimento das fazendas;

3. não queriam nem haviam de aceitar como não aceitaram

ocontrato da Companhia, instituído por especiais ordens da VM,nem

Page 6: Nha Bibiana e a república de Cacheu

tão pouco admitir na praça, nem ainda como particulares,os

administradores della.

No dia seguinte aos eventos acima narrados, Ambrósio, junto

comoutros notáveis de Cacheu, assumiu o poder sob a forma de

triunvirato,apreendendo todos os bens do comandante e a

propriedade da Companhia. A “república de Cacheu” tinha sido

declarada, segundo os termosusados na sindicância feita depois.

Apesar disto, os rebeldes não esqueceram, ao menos formalmente,

de reiterar sua fidelidade ao rei. Apesardo facto de que uma

multidão, incluindo escravos, tinha tomado parte naprisão do

comandante, a sindicância afirmou que “o povo”, em nome doqual

decerto tinha sido elaborada, não tinha tomado parte nem

tinhaapoiado genuinamente a revolta e, supostamente, tinha sido

conduzidopelo medo e pela ignorância.

Quando a notícia chegou a Lisboa, a situação causou grande

embaraço e preocupação às autoridades portuguesas, temerosas de

perder oseu principal porto continental na costa da Alta Guiné. O

conflito deveser visto como um reflexo da situação de facto , do

acentuado declínio dosnegócios portugueses, sobre o qual

conselheiros e funcionários bem informados vinham alertando

desde o final do século XVI. Desde então, acrescente competição

por parte de outras nações europeias, tais como aFrança, a Holanda

e a Inglaterra, tinha enfraquecido o monopólio afro-atlântico

português. O facto de que os rebeldes de Cacheu estavam

negociando com comerciantes ingleses e franceses, que eram

vistos comoinimigos, sublinha o contexto euro-atlântico do conflito.

O “golpe” deCacheu, se tivesse sucesso, implicaria no abandono de

qualquer esperança portuguesa de competir com os rivais europeus,

além de acarretara perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no

interior. E o fato de que,dentre todas as pessoas, uma mulher, e

ainda por cima africana e idosa,estava frustrando os planos

portugueses na região, era outra grande cruza ser carregada pelos

estrategistas políticos de Lisboa. A curta vida daCompanhia, que foi

seguida de outros esforços monopolistas igualmentefracassados

nos anos 1690, só serviu para acentuar esta situação. Intervindo, as

autoridades portuguesas provaram, sem sombra de dúvida,que os

operadores afro-atlânticos, incluindo os crioulos, kriston e

fornecedores africanos, estavam claramente em vantagem, e assim

Page 7: Nha Bibiana e a república de Cacheu

permaneceriam pelos próximos duzentos anos.

A parceria entre Nha Bibiana, viúva, e seu irmão, então com seus

cinquenta e tantos anos, é crucial para a compreensão do espaço

socialno qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços

colaterais, estabelecidos por meio da coabitação e dos casamentos

mistos com linhagensafricanas governantes, reproduziram um

padrão de interacção afro-atlântica que facilitou a tessitura das

redes interculturais altamente fluidas,pelas quais a região era

conhecida. Estas encarnavam a efectiva combinação entre

mobilidade geográfica e social, que lhes permitiu assumir ocontrole

do comércio regional. Seus “descendentes mestiços”

representavam a essência do parentesco bilateral num contexto

matrilinear característico dos gan mercantis da região. Foi

precisamente esta configuração que deu a mulheres como Bibiana

uma base de poder sociocultural que elas transformaram em

riqueza económica e influência política.

Seu controle partilhado sobre os recursos e o apoio recebido dos

dignitários africanos locais também ilustra a existência de uma

flexível divisãode responsabilidades, que provou ser um factor

decisivo em sua capacidade de iludir as autoridades portuguesas.

Inúmeros eventos servem paraelucidar o contexto local, por

exemplo, a petição de Lourenço Gomes,filho do casamento anterior

de Ambrósio Gomes, para obter a herançado pai; a sindicância entre

os moradores de Cacheu acerca do papel deBibiana no “golpe”; a

localização de sua propriedade e as suas relaçõescom as linhagens

dirigentes Banhum; sua ida a Cabo Verde e a questão deseu

analfabetismo.Os documentos mostram que Lourenço Matos Gomes

tentou, emvão, obter a herança a que ele, pela lei patriarcal

portuguesa, teria direito. Ele endereçou uma petição ao rei

português, afirmando que, imediatamente após a morte de seu pai,

tinha tentado fazer uma distribuiçãoequitativa (ou que ele via como

tal) do espólio com sua madrasta, o queresultara em fracasso. Isto

é revelador, e particularmente ilustrativo, dastradições de

parentesco bilateral da costa. Na petição, afirmou que «por morte

do seu Pay, AmbrosioGomez, capitão mor que foidaquelle praça,

ficara ellesupplente habilitado por seu herdeiro de muyta

quantidade de fazenda, e em razão o ditto seu Payestar cazadocom

Viviana Vás, se metera de posse della comoCabeça de Cazal,

Page 8: Nha Bibiana e a república de Cacheu

fazendose tão poderosa com dadivas e quedesde o anno de 1679 em

que seu Pay falecera athe o prezente,elle não fora possivel fazer lhe

fazer inventario, e partilha quehiadecipando, e consumindo de

maneira que não viria elle depois a herdar couza alguma».E

acrescentou, significativamente, que «a falta de justiça que

malnaquellas partes, sem poder, se podia administrar, ou por razão

de muitoque grangear a indústria de quem sabia negociar em terras

tão faltas deletrados que só vencia as couzas, que melhor com a

intelligenciaprópria as meneiava”. A despeito de suas repetidas

tentativas e do apoio de Lisboa, ele nunca conseguiu obter o que

pedira.

A sindicância sobre a revolta entre os moradores de Cacheu

(ocorrida em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e

acusada decomerciar livremente com os africanos e outros

europeus, como os ingleses, especialmente na calada da noite, sem

recolher qualquer impostoaos cofres de Cacheu. Usando estes

argumentos como pretexto — porque, afinal de contas, todos

negociavam com os comerciantes rivais operando na região e que

pagavam mais —, pedia que “aquela mulher” —algumas vezes

também mencionada como “a viúva” — fosse mantidasob custódia e

submetida a julgamento, e que fosse feito um inventário desuas

posses. Os sindicantes acrescentaram que seria também

aconselhável colocar o seu irmão e o seu primo por trás das grades,

pois, do contrário, eles poderiam esconder a riqueza da família

obtida ilegalmente.Enfatizaram que ela deveria ser julgada em Cabo

Verde, não só sugerindoque o então comandante não tinha nenhuma

influência significativa sobrea administração, mas que queriam

remover o gan Vaz do poder.

Quando Bibiana foi, finalmente, feita prisioneira, ela se beneficiou

da hospitalidade de um chefe linhageiroBanhum, ou udjagar

(djagraem kriol), em cuja casa ficou. O relato de sua captura dá-nos

alguma ideia dos problemas encontrados por aqueles enviados para

realizar estatarefa: «Grandemente me fez Deos em me livrar de

Guiné sem que meenchessem a barriga de pssonha, que foy la muito

mal aceito nointerior, mas como eu me vir dessa banda com o favor

de Deosfallarey, e tudo ha de ser verdade; o que direyathéhe que se

aminha lealdade não fora tanta ficara Bibiana Vas em Guinémetida

no gentio porque atirei de caza de hum Rey para ondefugio, fazendo

Page 9: Nha Bibiana e a república de Cacheu

a vir a praça com minhas industrias».O oficial foi obrigado a investir

largas somas de seus própriosrecursos em presentes, a fim de

convencer os parentes e anfitriões aentregá-la. Mas pouco ele

conseguiu ter de volta, uma vez que as possesde Nha Bibiana não

puderam ser encontradas pois os “os bens desta mulher estão todos

em terras de gentios, e por isso se lhe não achou quasinada no

sequestro que se lhe fez”. Embora seu primo Francisco (Vaz de

França) estivesse fora, negociando na costa, não seria possível

persegui-lo “porque os que andam ausentes, não é fácil acolhelos a

mão”,demonstrando mais uma vez a debilidade portuguesa na

região. O oficialainda acrescentou que “de Gambia sahiam dois

navios a esperarme nabarra de Cacheu” — o que conseguiu evitar —

para “tirarme a BibianaVaz, e neste caso é certo havia de pelejar

até morrer”.

Na verdade, durante a ausência deNha Bibiana, toda a sua

riqueza foi guardada por seu primo, convenientemente ausente.

Portanto, sóseus escravos poderiam ser confiscados, porém todas

as tentativas defazê-lo levaram-nos, imediatamente, a fugir para o

“gentio”. Numa petição feita por Bibiana quando estava detida em

Cabo Verde, ela afirmou que levá-la para Portugal, para ser julgada,

não só a mataria, velhae doente como estava, atacada pela malária,

mas que sua contínua ausência da Guiné poderia levá-la a perder,

para seus rivais, todas as suasposses. Neste meio tempo, ela

obteve o apoio dos mais ricos e influentes comerciantes cabo-

verdianos, que garantiram sua segurança e sustento enquanto

esteve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão Atlântica de seu

status africano no contexto regional, sua influência e autoridade.

Quando a Nha Bibiana, finalmente, foi concedido o perdão real,após

ter pagado uma soma simbólica como indemnização pelas

perdassofridas pela Coroa, ela retornou à Guiné e moveu uma

vigorosa campanha para libertar seu irmão que, afinal de contas,

fora o seu principalparceiro nos eventos. No fim, tanto seu irmão

quanto seu primo foramperdoados. A lógica por trás desta mudança

de procedimento é significativa. Nem o facto de que o pagamento

de indemnização por parte doprimo tenha se mostrado impossível

de ser efectuado, nem o perdão aoprimo e irmão, por cuja soltura

ela tinha insistentemente lutado, aconselhavam a ser

imprudente:«se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e aos

Page 10: Nha Bibiana e a república de Cacheu

mais outrosmaiores subsidios, creio que tudo se perderá; porque

nem aspessoas se hão de colher para o castigo, nem se lhes hão

deachar os bens para satisfação das penas pecuniarias, e com

assuas ausencias e emnisios se inquietara a paz da praça,

comoexperimentei no tempo em que alguns deles passaram aos

gentios com o receio de serem prezos.

O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está

reduzidoa excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com

osextrangeiros, que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela

esterilidadedo negócio com os Portuguezes, e remeças destas Ilhas

[de Cabo Verde]”. Esta sua crítica estava claramente dirigida aos

comerciantes portugueses em geral, às autoridades em Cabo Verde

e, sobretudo, aogovernador que, obsessivamente, tinha perseguido

Nha Bibiana. A fim de resolver este impasse sem perder

completamente a influência naregião, os sindicantes decidiram

obter uma declaração escrita, uma promessa e obrigação , mas

que não foi assinada directamente por ela, jáque se declarou

“analfabeta”. Este documento formalizou o acordoentre a coroa

portuguesa e Bibiana, que prometeu construir uma fortaleza de

pedra em Bolor, defronte a Cacheu, na barra do mesmo rio,

numaposição estratégica que controlava o acesso ao rio. Mas ela

somente ofaria em troca da soltura e do perdão ao seu irmão e

primo. Entretanto,afirmou, com certa ironia, que, por ser mulher,

não poderia levar a caboa construção do forte. Além disto, na região

não havia pedra considerada boa para construção, a qual teria de

ser trazida de Cabo Verde. Todavia, ela se declarou pronta para,

“voluntária e livremente”, pagar pelaconstrução. Levando-se em

conta a perda de bens sofrida durante edevido à sua ausência — ela

disse que tinha sido deixada somente coma posse de alguns

escravos — e o fato de que seu primo estava naposse de todos os

seus bens, ela teve de contar consigo própria parahonrar o

pagamento. A primeira parcela, com a metade do valor, deveriaser

paga quando seu primo chegasse a Cacheu, para o que não foi

fixada uma data, e a segunda deveria ser efectuada um ano depois.

Ela acrescentou que se devia “mandar-lhe restituição ao dito seu

irmão a estapraça soltandose da prizão em que está porque com a

sua pessoa continuara o negocio que não se pode perder por ser

molher”. E, comoforma de assegurar o cumprimento de seu lado na

Page 11: Nha Bibiana e a república de Cacheu

barganha, ela deu emgarantia “todos os seus bens materiais”.

Depois de tudo o que foi dito efeito, pode-se imaginar o que, na

prática, realmente significava esta garantia, já que nenhum desses

bens podia ser acessado por estrangeiros.

Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo Francisco

tornaram-se alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné.

Francisco,referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de

crueldades, tais comoter matado brutalmente alguns de seus

escravos e “causado terror atodos e ao gentio” na área do Rio

Nunez mais ao sul. Um inquérito foiordenado para que se pudesse

dar-lhe um “exemplar castigo”. Ambrósio tornar-se-ia um dos

críticos mais abertos das políticas e do apoio — ouda falta de

ambos — de Lisboa, durante os trinta anos seguintes, incluindo a

falta de ajuda para lidar com as ameaças dos africanos. Quasetodas

as petições formuladas pelos comerciantes de Cacheu, nesse

período, traziam sua assinatura. Nada foi mencionado sobre Bibiana

nos documentos após 1694, o que não surpreende, levando-se em

conta asua idade já avançada e o seu estado de saúde.

Fonte:

Philip J. Havik

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO

COMERCIAL: UM BALANÇO COMPARATIVO DA PRODUÇÃO HISTÓRICA SOBRE

A REGIÃO DA GUINÉ-BISSAU SÉCULOS XVII E XIX

Afro-Ásia, número 027

Universidade Federal da Bahia

Bahía, Brasil

pp. 79-120