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NILEN LIZETH VERGARA COHEN
PIXAÇÃO DE MONUMENTOS PÚBLICOS: UM PROCESSO DE MISCIGENAÇÃO
CELACC/ECA-‐USP
2014
2
NILEN LIZETH VERGARA COHEN
PIXAÇÃO DE MONUMENTOS PÚBLICOS: UM PROCESSO DE MISCIGENAÇÃO
Trabalho de conclusão do curso de pós-‐graduação latu sensu em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos produzido sob a orientação do Prof. Dennis de Oliveira.
CELACC/ECA-‐USP
2014
3
SUMÁRIO
1. Introdução.........................................................................................................................................5
2. Pixação de monumentos públicos: o surgimento de um híbrido cultural a partir
de uma antropofagia artística...................................................................................................7
3. A pixação e a memória paulistana........................................................................................11
4. Considerações finais...................................................................................................................16
5. Referências bibliográficas.......................................................................................................17
4
PIXAÇÃO DE MONUMENTOS PÚBLICOS: UM PROCESSO DE MISCIGENAÇÃO
Nilen Lizeth Vergara Cohen
Resumo São Paulo é uma das cidades com um dos visuais mais particulares no mundo. Não é precisamente sua arquitetura que a faz tão peculiar e sim sua pixação. As edificações e os monumentos públicos interagem direta ou indiretamente com um estilo distintivamente paulistano. Porém, longe de ser considerado patrimônio cultural, é criminalizado pelo Estado como um ato vandálico contra a memória histórica da cidade. Com base nisso, o presente artigo pretende estimular uma reflexão sobre a constituição daquela memória analisando a apropriação do monumento pela pixação, considerando a possibilidade de repensar a interação pixação-‐monumento, desde o Canclini, como um híbrido cultural procedente de uma coautoria antropofágica. Palavras-‐chave: Pixação, monumento público, híbrido cultural, antropofagia, memória.
Abstract São Paulo is one of the most particular-‐looking cities in the world. It is not precisely its architecture what makes it so peculiar, but its pixação. Buildings and public monuments Interact directly or indirectly with a distinctively paulistano style. However, far from being considered cultural heritage, it is criminalized by the State as a vandalic act against the historical memory of the city. On this basis, this paper aims to encourage reflection on the formation of that memory by analyzing the appropriation of monuments by pixação, considering the possibility of rethinking the interaction pixação-‐monument, from Canclini, as a cultural hybrid proceeding from an anthropophagic co-‐authorship. Key words: Pixação, public monument, cultural hybrid, anthropophagy, memory.
Resumen São Paulo es una de las ciudades con una de las fachadas más particulares en el mundo. No es precisamente su arquitectura lo que la hace tan peculiar y sí su pixação. Los edificios y los monumentos públicos interactúan directa o indirectamente con un estilo distintivamente paulistano. Sin embargo, lejos de ser considerado patrimonio cultural, es criminalizado por el Estado como un acto vandálico contra la memoria de la ciudad. Basándose en esto, el presente artículo tiene el objetivo de estimular una reflexión sobre la constitución de esa memoria analizando la apropiación del monumento por parte de la pixação, considerando la posibilidad de repensar la interacción pixação-‐monumento, desde Canclini, como un híbrido cultural procedente de una coautoría antropófaga. Palabras clave: Pixação, monumento público, híbrido cultural, antropofagia, memoria. 1. Introdução
5
Rabiscar as paredes não é uma novidade no presente, de fato, além de ser um
impulso natural e comum nas crianças, foi uma das primeiras formas de expressão e
comunicação do ser humano, como certamente testemunham as cavernas de Lascaux,
Chauvet e outros locais com arte rupestre. Mesmo que a tecnologia relacionada com o
intercâmbio de informações esteja progredindo rapidamente, ainda hoje observamos
frequentemente o emprego dos muros como um meio de diálogo e difusão de grande
impacto dentro das cidades. Grafite, pixação, tag, estêncil, lambe-‐lambe, sticker e
instalações são algumas das técnicas mais visíveis atualmente, que em conjunto
conformam o que se conhece como arte de rua, a qual, em sua maioria, originou-‐se nas
periferias urbanas.
A arte de rua possui uma forte presença na cidade de São Paulo, a qual
apresenta um estilo muito particular de uma das técnicas mencionadas
anteriormente: a pichação ou pixação1, como é mais comumente identificada pelos
seus autores e a qual é caracterizada por Canevacci como “um fenômeno ‘já clássico’
(e odiado por muitos cidadãos) da comunicação urbana em São Paulo (...), um estilo
que se tornou verdadeiramente característico da capital paulistana” (CANEVACCI,
2004, p. 203). Essa prática, frequentemente associada ao vandalismo tem tido
dificuldade para ser aceita pela sociedade, pois sua mira costumam ser edificações
públicas ou privadas quanto mais visíveis melhor, em outras palavras, a cara da
cidade.
Por outro lado, ao considerar que “na pixação, quem pixa no maior número de
lugares, em pontos de maior destaque e em lugares mais arriscados consegue mais
status dentro do circuito dos pixadores” (BARBOSA, 2010), não surpreende que
prédios históricos como o Teatro Municipal ou o MASP sejam os principais alvos desse
fenômeno transitório, provocando indignação entre vários cidadãos a medida que,
segundo muitos deles, a memória histórica da cidade é agredida. Contudo, existem
1 Os termos pixação, pixador e/ou pixo, ao invés de pichação e seus equivalentes, serão
6
outras estruturas além dos prédios que comportam a cara e memória da cidade e,
quando pixadas, geram ainda mais polêmica entre os habitantes: os monumentos
públicos, mais especificamente, as esculturas situadas em praças, rodovias e outros
locais abertos às pessoas.
A partir desse contexto, o principal objetivo do presente artigo é estimular uma
reflexão ao redor do papel da pixação na cidade de São Paulo considerando que
qualquer forma de expressão faz parte da cultura de uma determinada sociedade, que
possui um papel essencial na construção da memória e que sua complexidade deve ser
examinada evitando qualquer tipo de preceito estético externo ao local. Para isso, este
trabalho, além de analisar os processos de apropriação da cidade, busca estudar o
encontro da pixação com os monumentos públicos, fora o impacto que isso gera na
população, a partir dos conceitos de híbrido cultural do sociólogo argentino Néstor
Garcia Canclini e antropofagia do escritor Oswald de Andrade. Da mesma forma,
pretende ponderar a possibilidade de considerar a interação pixação-‐monumento
público como produto de uma coautoria antropofágica entre artistas.
7
2. Pixação de monumentos públicos: o surgimento de um híbrido cultural a
partir de uma antropofagia artística
Como qualquer outro centro urbano, São Paulo possui uma série de
monumentos que integram o patrimônio cultural da cidade, resistindo o passo do
tempo e as constantes mudanças inerentes da modernização. Segundo Cristina Freire,
“ao conceber a cidade como um terreno de investigações estéticas, os monumentos
são suas peças fundamentais” (FREIRE, 1993, p. 55). Porém, essa afirmação, feita
numa época na qual no Brasil o grafite era ilícito, perde a sua vigência quando
analisamos as recentes intervenções dos artistas contemporâneos, as discussões
atuais sobre arte urbana e os avanços sobre aquilo que se considera como bem
cultural. Hoje, aquele ‘terreno de investigações estéticas’ se apresenta como um palco
de luta pela apropriação do espaço, uma luta que acontece não só entre artistas,
legítimos e ilegítimos, senão também entre os artistas e outros agentes sociais que
tentam regular a sua visibilidade. A partir da teoria do capital cultural de Bourdieu,
Canclini faz a seguinte síntese:
A investigação sociológica da arte deve examinar como se
formou o capital cultural do respectivo campo e como se
luta por sua apropriação. Os que detêm o capital e os que
aspiram a possuí-‐lo promovem batalhas que são
essenciais para entender o significado do que é produzido;
porém essa competição tem muito de cumplicidade e
através dela também se afirma a crença na autonomia do
campo. Quando nas sociedades modernas algum poder
estranho ao campo – a Igreja ou o governo – quer intervir
na dinâmica interna do trabalho artístico mediante
censura, os artistas suspendem seus confrontos para aliar-‐
se em defesa da “liberdade de expressão” (CANCLINI, 2003,
p. 36).
8
A pixação em São Paulo tem ganhado cada vez mais aceitação como uma forma
autêntica de expressão por parte da comunidade artística. O seu reconhecimento
como ‘arte urbana’ fez com que pudesse participar da 29º Bienal de São Paulo. Três
dos polêmicos 40 pichadores da bienal de 2008 “foram convidados pela curadoria, na
condição de artistas, para representar o movimento do ‘pixo’. O que era intervenção
urbana ganha agora status de arte, arte marginal, urbana, proibida e transgressora”2.
No entanto, aquela transgressão própria da pixação transpassa os limites da
aceitação quando fazem dos monumentos históricos a sua tela urbana, como foi o caso do
Monumento às Bandeiras pixado em 2013, (Figura 1) pois o que se vê em um primeiro
momento é uma tentativa de agressão contra a preservação da memória da cidade.
Contudo, quando repensamos a interação entre o monumento e a pixação em um segundo
momento, é possível reconhecer nessa interação o encontro do passado com o presente de
uma maneira mais intensa, vemos uma apropriação inquestionável da memória
paulistana.
Figura 1: Monumento às bandeiras pixado3
2 TOMAZ, Kleber. Após invasão em 2008, pichadores são convidados a volta à Bienal. G1, São Paulo, set. 2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-‐paulo/noticia/2010/09/apos-‐invasao-‐em-‐2008-‐pichadores-‐sao-‐convidados-‐voltar-‐bienal.html>. Acesso em: 4 set. 2014. 3 Disponível em: <http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/?id=100000635195&t=> . Acesso em: 9 ago. 2014.
9
Na obra Culturas Híbridas Canclini questiona: “que sentido conservam ou
renovam [os monumentos], em meio às transformações da cidade, em competição
com fenômenos transitórios como a publicidade, os grafites e as manifestações
políticas?” (CANCLINI, 2003, P. 291) ao qual responde:
Na rua, seu sentido se renova ao dialogar com as contradições
presentes. Sem vitrinas nem guardiães que os protejam, os
monumentos urbanos estão felizmente expostos a que um grafite ou
uma manifestação popular os insira na vida contemporânea. Mesmo
que os escultores resistam a abandonar as fórmulas do realismo
clássico ao representar o passado, a fazer heróis de manga curta, os
monumentos se atualizam por meio das "irreverências" dos cidadãos
(CANCLINI, 2003, P. 301).
Desde essa perspectiva, podemos considerar que a pixação atualiza o
monumento pela força, gerando assim um híbrido, um elemento totalmente novo para
a sociedade paulistana na conformação do seu espaço, o qual permite aliviar as
tensões visuais entre a memória histórica e o cenário intrínseco das cidades
modernas. Ao olhar esse híbrido, o monumento pixado, desde uma perspectiva de
degradação, não será possível reconhecer as dinâmicas sociais contemporâneas que
nascem na cidade e a transformam decisivamente todos os dias, dito de outra
maneira, o que testemunhamos é a reinvenção da cidade e da sua memória.
Mesmo que a pixação seja ‘limpada’, a intervenção já foi feita e ficará na
memória do próprio monumento, pois se falará daquele momento em que foi pixado e
houve tanta controvérsia. Por outro lado, a limpeza do monumento abre a
possibilidade de que outro pixador aja sobre a estrutura, gerando no próprio
monumento a construção de uma memória. Embora o desvanecimento da pixação faça
com que deixe de existir o híbrido fisicamente, sempre permanecerá um ‘híbrido
simbólico’, aquele que, a partir das lembranças, constatará a ação passageira das
mudanças inerentes à modernidade sobre os elementos do passado.
10
Se considerarmos que os monumentos são resultado de uma hibridação que
reúne vários estilos de diversos períodos históricos e artísticos, não parece tão ilógico
pensar a pixação como a geradora de mais uma hibridação intercultural. Da mesma
maneira, a partir da interação monumento-‐pixo, não reconhecemos somente a
inserção do monumento na modernidade, senão também é possível observar uma
interferência de autorias ou de auras, como seria definido por Benjamin, isto é, a
apropriação da obra de um autor por outro. Isto parece familiar quando se revê o
conceito de Antropofagia do escritor Oswald de Andrade, no qual “o primitivismo
aparece como signo de deglutição crítica do outro”4.
“As manifestações artísticas são uma forma de resgatar o questionamento num
momento em que a força avassaladora do capital golpeia tudo o que se contrapõe aos
valores hegemônicos” (MIERS, 2006). Assim, a pixação não se apresenta mais do que
um ato primitivo que de fato proporciona uma crítica forte sobre a visibilidade da
periferia nos centros urbanos. O híbrido pixação-‐monumento evidencia um exemplo
claro do movimento antropofágico ao denunciar a realidade excludente da memória
paulistana e ao procurar criar um sentido de pertencimento. É evidente que os
monumentos não geram esse sentido de pertencimento à cidade para os pixadores, o
que revela uma possível perda do sentimento coletivo de identificação.
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (...) Uma
consciência participante.5
4 Manifesto Antropofágico. São Paulo. Itaú Cultural. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339 . Acesso em: 5 set. 2014. 5 ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico. Disponível em: http://www.tanto.com.br/manifestoantropofago.htm. Acesso em: 5 set. 2014.
11
3. A pixação e a memória paulistana
As “tensões que se estabelecem entre a memória histórica e a trama visual das
cidades modernas” (CANCLINI, 2003, P.300) revelam que o público na cidade
encontra-‐se limitado pela propriedade privada e pelo próprio Estado, responsável por
regular e determinar o envolvimento dos cidadãos na construção de sua memória
histórica. Antes de ser descriminalizado pela Lei 12.408 de 2011, o grafite, junto à
pixação e à conspurcação, era considerado crime segundo o disposto no artigo 65 da
lei 9.605/98, sobre os delitos contra o ordenamento urbano e o Patrimônio Cultural.
Atualmente, essa prática não constitui crime sempre e quando for:
realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado
mediante manifestação artística, desde que consentida pelo
proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem
privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão
competente e a observância das posturas municipais e das normas
editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação
e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.6
Se o grafite, antes considerado sujeira e motivo de repulsão, conseguiu ser
descriminalizado e visualizado como parte do patrimônio cultural, por que a pixação
não?7 Essa questão parece um pouco irônica quando analisamos o surgimento e
desenvolvimento de ambas as técnicas. Embora o grafite tenha se disseminado pelo
mundo rapidamente depois de ter nascido em Nova York na década de 70, não se
criaram estilos nacionais fortes ou facilmente discerníveis. A diferença de estilos, no
que se refere a essa técnica, encontra-‐se mais integrada com o próprio artista ou
6 Presidência da República. Artigo disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm#art65>. Acesso em: 09 abr. 2014. 7 “Enquanto em outras cidades do mundo o que aqui se denomina pixação é apenas um estilo dentro do grafite, na capital paulistana ela é vista por uns como o seu oposto – o grafite é entendido como arte enquanto ela é considerada sujeira e poluição visual – e, por outros, como um estágio inferior do grafite, que seria o patamar mais alto dessa for-‐ ma de expressão” (BARBOSA, 2010).
12
coletivo do que com um país específico. Dito de outro modo, é arriscado falar de um
grafite brasileiro para categorizar, dentro de um mesmo grupo, artistas tão diferentes
quanto o são, por exemplo, Os gêmeos e Binho, quem somente compartilham sua
nacionalidade.
Esse não é o caso da pixação, a qual, longe de ser uma questão individual,
surgiu na década de 80 e desenvolveu um estilo exclusivo em São Paulo reconhecido
no mundo inteiro pelos artistas de rua. A pixação paulistana se caracteriza por possuir
uma tipografia influenciada pelas runas anglo-‐saxônicas8, diferente do estilo tag,
caracterizado por formas geralmente mais arredondadas.
Imagem 2: Pixação paulistana feita com tintas spray versus estilo tag feito com
pincéis atômicos ou giz de cera (Pereira 2010)
Ao considerar a pixação como mais um exemplo de antropofagia no Brasil,
criando uma mistura cultural do externo com o interno, parece um pouco
8 Assistir documentário Pixo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JjS0653Gsn8. Acesso em: 10 abr. 2014.
13
contraditório que seja considerada unicamente como sujeira e motivo de detenção,
resultando imprescindível refletir sobre os parâmetros que determinam aquilo que se
encaixa como patrimônio nacional e aquilo que não, pois a memória histórica de uma
nação é um assunto que se encontra em constante mudança e que não pode ficar
preso à épocas e ideais remotos. Isto último concorda com a definição de patrimônio
cultural estabelecida pela UNESCO:
El patrimonio cultural no se limita a monumentos y colecciones
de objetos, sino que comprende también tradiciones o
expresiones vivas heredadas de nuestros antepasados y
transmitidas a nuestros descendientes9
Imagem 3: Monumento a amizade sírio libanesa pixado
Fonte: site da São Paulo Antiga10
9 UNESCO. ¿Qué es el patrimonio cultural?. Disponível em: < http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=es&pg=00002>. Acesso em: 10 abr. 2014. 10 Disponível em: <http://www.saopauloantiga.com.br/top-‐7-‐monumentos-‐abandonados-‐de-‐sao-‐paulo/>. Acesso em: 09 ago. 2014.
14
Por outro lado, quando essa apropriação ocorre através dos monumentos,
evidencia-‐se e problematiza-‐se também a questão daquilo que entendemos como
público, pois, qual ação pode ser mais pública do que a apropriação? Talvez, o que
resulta mais importante aqui seja o fato de conscientizarmos sobre a nosso
pertencimento à cidade e sobre o tanto que podemos considerá-‐la nossa. Se a história
constitui um processo de hibridação temporal que acumula elementos de diferentes
épocas, por que os monumentos não podem evidenciar isso e se transformarem em
um mestiço que junta o passado e o presente? Mesmo que esteja interferindo com a
propriedade privada e os monumentos públicos, e até em alguns casos
propositalmente os agredindo, é um fato inquestionável que a pixação faz parte da
cultura paulistana. Transformou-‐se em uma prática cotidiana que, além de reaparecer
apesar das constantes limpezas, não vai ser corrigida com detenção e repressão
policial.
Pereira (2012) comenta sobre um caso específico relacionando a pixação com a
criação de memória:
No final dos anos 1990 e início dos 2000, a administração municipal
da época iniciou um plano de recuperação do monumento da Ladeira
da Memória e impediu, com a presença constante de agentes da
guarda civil metropolitana, a concentração de pixadores no local.
Tentou-‐se preservar, assim, uma parte da história da cidade. Porém,
há que se indagar, qual e de quem? Porque, talvez para espanto dos
defensores do patrimônio e dos bens históricos urbanos,
principalmente daqueles de “pedra e cal”, os jovens pixadores
também se mostram preocupados com a história e com a memória. E
é justamente essa preocupação com a memória e a história da pixação
que faz com que muitos deles deixem suas marcas em prédios
históricos, bens tombados e monumentos importantes da cidade
(PEREIRA, 2012).
15
Aqui a pergunta chave é: quem cria a nossa memória? Não faz sentido manter
qualquer tipo de preceito fixo para decidir o que faz parte do patrimônio cultural,
quando a cultura se apresenta como um fenômeno longe de ser estático.
16
4. Considerações finais
Neste momento nos encontramos diante de um fenômeno impossível de
ignorar. A pixação em São Paulo encontra-‐se presente no cotidiano do paulistano, em
todas as regiões da cidade e nos lugares mais inimagináveis. Faz parte da cultura
periférica e os próprios pixadores estão se encarregando de que faça parte da cultura
da cidade através dos processos de apropriação, os quais resultam em hibridações que
estabelecem novas relações de significados com o espectador, como é o caso dos
monumentos pixados. Evidencia-‐se o surgimento de uma mistura, de uma
miscigenação artística, a qual precisa ser analisada e interpretada sob um olhar
pronto para assimilar as mudanças inevitáveis que vêm junto com a modernidade.
A pixação é uma manifestação cultural que evidencia a trajetória da história
brasileira na sua busca pelo reconhecimento e pelo pertencimento. Negar a sua
participação na conformação da memória da cidade é negar a existência de uma fração
da população, considerando que evidencia uma oportunidade de apropriação da
cidade por parte da juventude periférica, uma chance de se tornar visível ao resto da
sociedade, de deglutir a sua própria cultura e história, de participar da criação de
memória.
“quem não é visto, não é lembrado” 11
11 PEREIRA, 2012.
17
6. Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, vol. 1. 3a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. 3º ed. São Paulo: EDUSP, 2003.
CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: ensaio sobre a antropologia da
comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.
FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano
contemporâneo. São Paulo: ANNABLUME, 1993.
ECO, Humberto. Interpretación y sobreinterpretación. 2a ed. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997.
FOUCAULT, Michel. Qu’est-‐ce qu’un auteur?. Disponível em:
http://1libertaire.free.fr/MFoucault349.html. Acesso em: 01 abr. 2014.
MARCUSE, Herbert. Repressive Tolerance. 1965. Disponível em: <
http://www.marcuse.org/herbert/pubs/60spubs/65repressivetolerance.htm>.
Acesso em: 09 abr. 2014.
MIERS, Joost. Artes sob pressão. São Paulo: Pensarte/Iluminuras, 2006.
MONUMENTOS DE SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.monumentos.art.br/>.
Acesso em: 09 abr. 2014.
18
PEREIRA, Alexandre Barbosa. As marcas da cidade: a dinâmica da pixação em São
Paulo. Lua Nova: Revista de Cultura e Politica, n. 79, São Paulo: 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-‐
64452010000100007&script=sci_arttext>. Acesso em: 09 abr. 2014.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. Quem não é visto, não é lembrado: sociabilidade,
escrita, visibilidade e memória na São Paulo da pixação. Cadernos de Arte e
Antropologia, vol.1, no. 2, São Paulo: 2012. Disponível em:
<http://www.portalseer.ufba.br/index.php/cadernosaa/article/view/5990/4490>.
Acesso em: 11 abr. 2014.
RAMOND, Serge. Un patrimoine culturel oublié: les graffiti. Revue Archeologique de
L’Oise, v. 23, n. 23. 1981. Disponível em: <
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/pica_0752-‐
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WAINER, João; OLIVEIRA, Roberto. Pixo. São Paulo: 2009. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=JjS0653Gsn8>. Acesso em: 11 abr. 2014.