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"NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS” Eduardo Nazareth Paiva Professor Colaborador HCTE-UFRJ [email protected] RESUMO A proposta deste trabalho será refletir sobre os não-humanos em nossa sociedade, suas ações e suas parcerias. Vemos nossas sociedades cada vez mais sendo populadas de não-humanos que convivem com nossos cotidianos. São computadores, Internet, SmartPhones, Câmeras de Vigilância, Assistentes não humanos e Bots de toda ordem, desde aqueles que atuam nos atendimentos dos bancos e lojas que mais investem em novas tecnologias, até aqueles que assistem eletronicamente, por exemplo, a frenagem e a estabilidade de nossos veículos ou mesmo nossos avatares. Os produtos da tecnociência invadem inclusive nossos corpos, como próteses, marcapassos, entre outros. Além de produtos das tecnociências, digamos assim, mais duras, dividimos nosso mundo ainda com produtos de naturezas diversas de outras e tantas ordem tais como aqueles oriundos da química, da informática, e das biotecnociências, etc; estes se misturam e reagem em nosso ambiente e em nossos corpos: são vírus (virtuais, atenuados, etc); agrotóxicos, medicamentos, mosquitos transgênicos, nanodispositivos, etc. Para nossa tranquilidade, em primeira instância, pensamos que eles sempre aprendem conosco, os humanos, mas não temos garantias disso. Os não-humanos das tecnociências mais duras saem dos laboratórios e podem continuar a atuar de forma similar no ambiente. Já os produtos da inteligência artificial, nos confundem e prenúncios dessas relações e intervenções podem ser experimentadas, por exemplo, no filme Her (Ela) de 2013, dirigido por Spike Jonze. Assim como a Ciência e a Tecnologia acabaram por construir um mundo em que Deus não seria mais necessário, paradoxalmente a moderna Tecnociência parece conjurar com a nossa sede por avanços tecnocientíficos em um mundo em que o ser humano parece que não será mais necessário; ou, ao menos, não será mais existente puro. Ate que ponto somos cada vez mais parceiros de não-humanos? Como lidar com parcerias humanos-não-humanos marcadas pela ampliação dos gaps, das irreversibilidades, das ubiquidades e das produções de obsolescências determinando relações assimétricas de parceria entre o

NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

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Page 1: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

"NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

Eduardo Nazareth Paiva

Professor Colaborador

HCTE-UFRJ

[email protected]

RESUMO

A proposta deste trabalho será refletir sobre os não-humanos em nossa sociedade, suas

ações e suas parcerias. Vemos nossas sociedades cada vez mais sendo populadas de

não-humanos que convivem com nossos cotidianos. São computadores, Internet,

SmartPhones, Câmeras de Vigilância, Assistentes não humanos e Bots de toda ordem,

desde aqueles que atuam nos atendimentos dos bancos e lojas que mais investem em

novas tecnologias, até aqueles que assistem eletronicamente, por exemplo, a frenagem e

a estabilidade de nossos veículos ou mesmo nossos avatares. Os produtos da

tecnociência invadem inclusive nossos corpos, como próteses, marcapassos, entre

outros. Além de produtos das tecnociências, digamos assim, mais duras, dividimos

nosso mundo ainda com produtos de naturezas diversas de outras e tantas ordem tais

como aqueles oriundos da química, da informática, e das biotecnociências, etc; estes se

misturam e reagem em nosso ambiente e em nossos corpos: são vírus (virtuais,

atenuados, etc); agrotóxicos, medicamentos, mosquitos transgênicos, nanodispositivos,

etc. Para nossa tranquilidade, em primeira instância, pensamos que eles sempre

aprendem conosco, os humanos, mas não temos garantias disso. Os não-humanos das

tecnociências mais duras saem dos laboratórios e podem continuar a atuar de forma

similar no ambiente. Já os produtos da inteligência artificial, nos confundem e

prenúncios dessas relações e intervenções podem ser experimentadas, por exemplo, no

filme Her (Ela) de 2013, dirigido por Spike Jonze. Assim como a Ciência e a

Tecnologia acabaram por construir um mundo em que Deus não seria mais necessário,

paradoxalmente a moderna Tecnociência parece conjurar com a nossa sede por avanços

tecnocientíficos em um mundo em que o ser humano parece que não será mais

necessário; ou, ao menos, não será mais existente puro. Ate que ponto somos cada vez

mais parceiros de não-humanos? Como lidar com parcerias humanos-não-humanos

marcadas pela ampliação dos gaps, das irreversibilidades, das ubiquidades e das

produções de obsolescências determinando relações assimétricas de parceria entre o

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Global e o Local?

1. INTRODUÇÃO

O trabalho começa reconhecendo, de antemão, as suas contradições e paradoxos ao

tentar buscar uma simetria daquilo que reconhecemos como sendo humano em suas

ações e parcerias com aquilo que não reconhecemos como humano, no stricto sensu da

palavra. Tentaremos dialogar com os não-humanos, pressupostos aqui como os

criadores e origem dos chamados humanos. Assim sendo, este trabalho se interessará

pelos não-humanos em suas diversas identidades, biológicas ou não, sociológicas ou

não, produtoras de cultura ou não, etc. Não é o objetivo do trabalho buscar e demonstrar

possíveis essências dos não-humanos, ou seja, não nos aprofundaremos nas suas

constituições em si, mas sim investiremos nas observações e materialidades produzidas

pelas suas coexistências. A estratégia aqui é buscar um recurso analítico-textual que nos

permita descrever estas coexistências humanos-não-humanos a partir das conexões,

historicidades e semióticas das materialidades envolvidas e produzidas nestas

convivências humanos-não-humanos. Em síntese, este movimento pode ser descrito

como uma tentativa de mirada na sociologia das associações para tentar produzir esta

análise e narrativa de como a interação humano-não-humano é repleta de coexistências

e, por extensão, eivada de parcerias. O trabalho se apoia e é influenciado por ideias e

por autores como Gabriel Tarde (VARGAS, 2000; VARGAS, 2000), Bruno Latour

(LATOUR, 2013), Viveiros de Castro (CASTRO, 2005), Ivan da Costa Marques

(MARQUES, 2014) entre outros (PASTOR, 2019).

2. INTERAÇÕES E PARCERIAS HUMANAS-NÃO-HUMANAS

Vamos explorar um pouco, inclusive etimologicamente, o que seria uma parceria. A

palavra parceria é derivada da palavra parceiro ou parceira, do latin "partiarĭum" (que

participa). Ela tem como sinônimos as palavras sociedade, acordo, união, companhia

entre outras. Pode ser vista como um acordo, uma união ou contrato firmado entre

indivíduos ou empresas que têm um mesmo propósito, às vezes indecifrável. É o

resultado de algo que faz par com outro, que não apresenta diferença em relação a outro;

semelhante, um próximo na visão cristã. É o resultado de um pareamento de algo com o

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que (ou com quem) se joga, dança, atua ou pratica alguma atividade. É o resultado de

uma companhia, de uma cumplicidade, de uma sociedade. É um resultado no qual cada

um dos indivíduos ou empresas ao se associarem para realizar ou desenvolver projetos

comuns, permitindo a cada uma das partes servir melhor os interesses da outra. A

parceria é participação e de acordo com a etimologia da palavra, "participação" origina-

se do latim "participatio" (pars + in + actio) que significa ter parte na ação. Assim,

poderíamos dizer que uma parceria efetiva se desenvolve quando temos as partes

envolvidas em ação. É isto que tentaremos desenvolver a partir de então, como humanos

e não-humanos se envolvem, entram em ação ou permanecem juntos em potencial.

Julgamos secundário para os objetivos deste trabalho, debater ou rebater o uso de

argumentos que busquem diminuir a autonomia e o poder de decisão dos não-humanos.

Afinal são questões que demandam muito mais do que algumas páginas. Ou será que

temos autonomia plena sobre nossos destinos no universo? Ou somos o resultado dos

destinos de todos, humanos e não-humanos sem distinção? Ou sabemos bem quando,

como e por quem fomos criados? Queremos mesmo salvar o planeta ou nos salvar? Pois

é, melhor deixarmos estes grandes temas para outros momentos e espaços. Trazê-lo

aqui, nestes termos, penso, levaria a discussão para uma argumentação e retórica que

poderia tender a se aproximar da chamada “falácia do espantalho” ou “falácia do

homem de palha”. Muitos debates para pouco rendimento mútuo. Aqui busco exercitar

em que lê o trabalho a reflexividade e a alteridade humana-não-humana.

Superadas estas possíveis divergências, poderíamos ver as questões situadas das

parcerias entre humanos e não-humanos como as pontas dos icebergs do que Bruno

Latour denominou de Princípio de Simetria Generalizado, ou ainda, a ousadia de tentar

buscar uma posição triplamente simétrica, qual seja: tentar explicar com os mesmos

termos as verdades e os erros - primeiro principio de simetria; tentar estudar ao mesmo

tempo a produção dos humanos e dos não-humanos - segundo princípio de simetria;

tentar ocupar uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos, por

tentar suspender toda e qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os

ocidentais dos outros - terceiro princípio de simetria (LATOUR, 2013, p. 93-95;101-

102).

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Eu penso que outra forma de apresentar o Princípio de Simetria Generalizado é vê-lo

como uma parceria articulada, nem sempre harmônica, entre o Programa Forte de

Edimburgo (BLOOR, 1991), os Estudos Culturais (WILLIAMS, 2015), as

Epistemologias Ciborgues (HARAWAY, 2016) e os Estudos Fronteiriços (PALERMO

e QUINTERO, 2014) ou Decoloniais (MIGNOLO, 2003).

Consideramos particularmente importante um olhar para a forma como se estabelecem

as parcerias humanos-não-humanos, na medida que observamos que os não-humanos

estão desempenhando um papel cada vez mais importante e funcionando como um

agente determinante na produção de irreversibilidades, obsolescências e ubiquidades em

nossas sociedades, especialmente por parte daqueles oriundos da tecnociência, os

chamados artefatos ou dispositivos tecnocientíficos.

Interessante observar como estão sendo feitas as substituições de alguns serviços e

atribuições que eram evidentemente desempenhados por humanos, mas que estão, cada

vez mais, sendo executados por não-humanos, com convincente aumento de potência e

eficiência.

Para um relato sintético e panorâmico desta situação, ao longo da existência da

humanidade, destacaremos alguns eventos que poderiam ser considerados marcos

emblemáticos do uso desses artefatos na história (real e ficcional) da humanidade:

- No importante filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”, de 1968, dirigido por Stanley

Kubrick e que teve coproduzido o livro homônimo de Arthur Charles Clarke

(CLARKE, 1968), é reproduzida uma região na África, 3 a 4 milhões de anos atrás,

onde um dos macacos utiliza um grande um fêmur como um porrete para definir, a seu

favor, o resultado de um conflito com outros macacos que lutavam por comida. Após

vencer o conflito, o macaco arremessa o osso para cima e este é acompanhado pela

câmera. Ao chegar ao ápice de sua trajetória, o osso se transforma (de forma semiótica)

na nave espacial onde, então, se desenvolve a famosa obra da ficção científica no

cinema e, porque não dizer, na nossa própria realidade humana dominada belicamente

pelos artefatos tecnocientíficos desde então.

Page 5: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

- Há mais de dois mil anos atrás é creditada a Arquimedes a invenção da “alavanca”,

que permitia mover pesadas cargas e que teve o seu princípio usado na construção das

"catapultas”, um dos mais importantes artefatos bélicos da época, usados na defesa da

cidade de Siracusa diante do cerco imposto pela República Romana (214-212 a.C).

- Em agosto de 1945, nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, as cidades de

Hiroshima e Nagasaki (do Império Japonês de então) foram bombardeadas pelos

Estados Unidos com bombas atômicas. Estes foram os primeiros bombardeios

nucleares, e, quiçá, os últimos usados em guerra e contra alvos civis. (RHODES, 2012).

Muitos consideram este evento como sendo o marco do início da pós-modernidade, da

consciência e da afirmação da capacidade humana de se autodestruir.

- No plano global, durante o pós-guerra, algumas iniciativas militares nos fazem

confundir ficção e realidade como, por exemplo, a criação da ARPANet (considerada

por muitos a “mãe’ da Internet), em 1969, pela agência estadunidense ARPA (Advanced

Research and Projects Agency). Nesta mesma linha chegamos aos anos 80, no auge da

chamada Guerra Fria (1945-1991) protagonizada pelas superpotências da época (os

Estados Unidos da América e União Soviética) com a criação do Projeto Strategic

Defense Initiative (SDI), que ficou conhecido mundialmente como “Star Wars” (Guerra

nas Estrelas), o mesmo nome da série de oito filmes ( de 1977 a 2017) criada pelo

cineasta estadunidense George Lucas, perfazendo um encontro de ficção e realidade

planetária.

- Mais recentemente, já no Antropoceno, expressão cunhada pelos cientistas Paul

Crutzen e Eugene F. Stoermer para designar o período onde as atividades humanas

começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento

dos seus ecossistemas, as preocupações com o aquecimento global, têm produzido

diversas ações e controvérsias. A região da Amazônia tem desempenhado, cada vez

mais, papel de protagonista neste contexto. Estes debates de alcance mundial chegam às

Nações Unidas sendo manifestados em diversos protocolos (1992- Rio - 1997 Kyoto –

2015 Paris- Mudanças Globais) e produzindo grandes investimentos em laboratórios

especializados para este fim, em escalas de investimentos nunca vistas mundialmente.

(REPORT, 2019)

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Os humanos ao estabelecerem as parcerias com os não-humanos materializados na

forma de osso-porrete, alavanca-catapulta, átomo-bomba, rede-guerra, indústria-

aquecimento global produzem novos híbridos cheios de ambivalências.

Alguns dizem que aí surge o mundo ciborgue, ou seja, o mundo dos humanos acoplado

ao mundo dos não-humanos (HOQUET, 2019).

Estas ambivalências são especialmente produzidas nas regiões de contato, nas fronteiras

entre o que seria humano e o que seria não-humano. Ali, novas demandas, novas

expectativas, novos vínculos são criados. Quer sentir na pele esta sensação? Veja como

nos transformamos em outros humanos quando configuramos e somos configurados

com e pelos nossos smartphones, nossos computadores pessoais, com os sistemas de

identificação e de segurança a que estamos sendo submetidos em nossos cotidianos,

com os radares e lombadas eletrônicas, com a nossa interação uma gama cada vez maior

de coisas que são ditas eletrônicas (em geral precedidas pela letra “e”- e-commerce, e-

mail, e-MEC, e-Título, e-CAC, e-Proc, e-social, e-cartorio, etc) e alguns, até com suas

tornozeleiras eletrônicas. Experiência pessoal destas fronteiras produtoras de

ambivalências, eu peguei recentemente um Uber (taxi por aplicativo de smartphone) na

cidade de Belo Horizonte. O motorista da “corrida” (jargão muito usado no mundo dos

taxis) usava uma dessas tornozeleiras eletrônicas. Em determinado momento da corrida

ele recebeu uma ligação no seu celular perguntando por onde ele andava. Eu assistia ali

uma síntese materializada de um coletivo de humanos-não-humanos monitorados

multiplamente e produzindo intervenções de diversas naturezas e culturas. Ou não?

É importante considerar que esta transição do que era só humano (uma pessoa

caminhando descalça pelas areias de uma praia) naquilo que nos transforma em

ciborgues (um passageiro de aplicativo de transporte) não é nem automática nem plena.

Esta transição se dá de uma forma, digamos assim, metafórica e analógico-digital.

Como exemplo, vamos citar o serviço dos correios. Ele é um daqueles serviços que já

veicularam um dos principais objetos de interesse da sociedade: a carta, a missiva. Pois

bem, os servidores de e-mails, responsáveis pelo gerenciamento dos serviços de correio

eletrônico, oferecem ao seu usuário uma forma de comunicação que usa como endereço

do destinatário o endereço de e-mail do destino da mensagem. É grande a similaridade

Page 7: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

metafórica das funções e atribuições dos serviços do tradicional serviço dos Correios.

Nós vamos nos enredando, nos submetendo, aproveitando as facilidades, nos

modernizando, nos tornando mais eficientes e pronto: estamos diante do praticamente

onipresente, irreversível e ubíquo Correio Eletrônico ou e-mail, como queiram. Tenho

dificuldades de lembrar quando enviei minha última carta, daquelas que a gente escreve

o texto com a mensagem numa folha de papel, coloca no envelope, leva numa agência

dos correios, coloca selos, registra ou não e entrega a responsabilidade dela ser entregue

ao destinatário, devidamente identificado no envelope, para o serviço postal.

Aliás, é interessante observar esta categoria de prestadores de serviços, como eles estão

migrando cada vez mais dos chamados servidores humanos, ou simplesmente servidores

para os servidores não-humanos. Alguns exemplos desses novos servidores não-

humanos: servidores de e-mail, servidores de arquivos, servidores de streaming (de

mídias) de músicas, de podcasts, de vídeos, servidor de páginas web, servidor de

impressão, servidor de banco de dados, servidor DNS: converte endereços de sites em

endereços IP e vice-versa, servidor proxy: servidor que armazena páginas da internet

recém-visitadas servidor de mídia: análogo ao servidor de arquivos, servidor de games,

servidor de CFTV (Circuito Fechado de Televisão), etc.

Estamos diante de níveis de eficiência, confiabilidade e disponibilidades jamais

experimentadas, a famosa disponibilidade 24 x 7 ( disponível 24 horas nos 7 dias da

semana) de onde você estiver (desde que tenha acesso à Internet e um dispositivo

minimamente configurável – dispositivo este que a convergência tecnológica hoje

escolheu como sendo um smartphone “moderninho’- que custa em média algo entre

quinhentos e mil reais – um salário mínimo). Isto parece um pouco caro, mas parece

bom. Não?

Eu me sinto atendido pelo automóvel japonês, pelo meu celular estadunidense, pelo

meu computador coreano (do sul), etc. Meus dispositivos para operarem 24x7 usam: os

sistemas operacionais Android e Windows (estadunidenses) e Ubuntu (inglês). Alguns

aplicativos, cada vez mais usados: Uber (estadunidense), Google (estadunidense),

Spotify (sueco), SciHub (cazaque), Microsoft Office (estadunidense), LibreOffice

(alemã), Telegram (russo), Whatsapp (estadunidense), Adobe (estadunidense), etc.

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Quando estamos todos juntos (eu, meus dispositivos e aplicativos), produzimos um

todo, na maioria das vezes coerente, que dão o ritmo, a pegada do meu cotidiano. Os

meus dispositivos e meus aplicativos me ajudam tanto que, confesso, sou dependente

deles. Enfim, eu me imagino outra pessoa sem tê-los interagindo comigo, torno-me

praticamente irreconhecível quando fico sem acesso ao automóvel, ao smartphone, ao

computador, à Internet. Alguém conseguiria experimentar o desafio de ficar, por

exemplo, um mês sem acesso a eles (dispositivos e aplicativos) atualmente? Será que só

eu sinto esta dependência? Lembrei-me agora do Poema em linha reta do Fernando

Pessoa: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

(https://www.pensador.com/frase/MjYzMjY0/).

Pois bem, estas capacidades destes dispositivos e seus aplicativos (todos não-humanos)

de serem capazes de se tornarem ubíquos, de produzirem obsolescências e

irreversibilidades ao seu redor os tornam produtores de “GAPS” cada vez maiores entre

as regiões, sociedades e mundos. Quando nos vemos no Brasil, na latino-américa,

poderemos perceber que com a produção, cada vez maior desses gaps, o que é afetado

na forma direta e imediatamente é tudo aquilo que possamos chamar de local, de coisa

produzida por aqui. Esta sensação de que tudo que é originalmente local ir se tornando

obsoleto, esta situação praticamente ubíqua parece cada vez mais irreversível,

especialmente quando nos defrontamos com o cenário tecnocientífico.

Como conviver com esta situação e condição? Como continuar a estabelecer parcerias

com o que outros, de outros locais, nos induzem (para não dizer nos impõem)? Como é

que nos aliamos a estas parcerias que se configuram simultaneamente entidades globais-

locais e humanas-não-humanas (smartphones, computadores, automóveis, aplicativos,

algoritmos, sistemas operacionais, etc)?

Tentaremos enfrentar estas questões com duas frentes: uma epistêmica e outra

estratégica.

Para tentar dar conta dos dilemas apresentados envolvendo a hegemonia do global sobre

o local, lançarei mão da frente epistêmica denominada pensamento antropofágico. Este

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pensamento foi inspirado na Semana de Arte Moderna de 1922, onde alguns dos artistas

participantes defenderam um rompimento radical com a arte eurocentrada, em vigência

na época. Este movimento, também sintetizado como Antropofagia, tem como marco de

criação mais importante a publicação do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade

no primeiro número da Revista de Antropofagia (Ano I, No. I) de maio de 1928.

(http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf).

Encontramos no Manifesto Antropofágico:

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.

Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os

individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os

tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as

catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei

do homem. Lei do antropófago.

Outro importante símbolo do Movimento Antropofágico é o quadro Tarsila do Amaral

de nome Antropofagia. Tarsila do Amaral produz neste quadro a fusão de dois outros

importantes quadros seus: “A Negra” e o “Abaporu”.

Page 10: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

ANTROPOFAGIA -1929 http://tarsiladoamaral.com.br/obra/antropofagica-1928-1930/

Abaporu "homem que come gente" (canibal ou antropófago) é uma junção dos

termos aba (homem), pora (gente) e ú (comer) é uma espécie de símbolo do movimento

antropofágico.

Adicionalmente, recomendo que assistam ao vídeo de título: "Conhecimentos

Brasileiros e Antropofagia", apresentado pelo Pesquisador e Professor Ivan da Costa

Marques (MARQUES, 2019). Neste vídeo Ivan da Costa Marques ilustra como

poderíamos estabelecer relações entre as ideias do Movimento Antropofágico e as

opções possíveis para a Tecnociência Brasileira e dá uma dimensão da importância do

tema da hegemonia do Global sobre o Local.

Ainda como explicação das ideias antropofágicas, segue o texto de Benedito Nunes:

Page 11: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

Como símbolo da devoração, a Antropofagia é, a um tempo, metáfora,

diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira

da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando

tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa

autonomia intelectual; diagnostico da sociedade brasileira como sociedade

traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento, e

cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual pelos Jesuítas,

e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática, contra os

mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações

literárias e artísticas, que, até à primeira década do século XX, fizeram do

trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar, uma

instância censora, um Superego coletivo. Nesse combate sob forma de ataque

verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto

antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do

espírito nacional. E esse mesmo remédio drástico, salvador, serviria de tônico

reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina ativadora

de seu desenvolvimento futuro. A jocosa alternativa do dilema hamletiano

parodiado — Tupy or not tupy, that is the question — que parece ter sido a

célula verbal originária do Manifesto, resolve-se pois numa rebelião completa

e permanente. (NUNES, 1970, p. 25-26)

Como uma frente estratégica para dar conta do enfrentamento necessário para lidar com

as problemáticas parcerias humanos-não-humanos oriundas da hegemonia do Global

sobre o Local com suas evidentes consequências geradoras de irreversibilidades,

obsolescências e ubiquidades, irei lançar mão da chamada ‘Avaliação Construtivista da

Tecnologia” (ACT).

Segundo (CALLON, 1995, p. 307-308), para se realizar uma Avaliação Construtivista

da Tecnologia (em inglês ‘Approach of Constructive Technology Assessment”)

precisaremos considerar três hipóteses:

1ª. O desenvolvimento tecnológico resulta de um grande número de decisões feitas por

numerosos atores heterogêneos. Estes naturalmente incluem os cientistas e engenheiros

envolvidos diretamente, mas cada vez mais envolvem a participação dos usuários, dos

mundos dos negócios e das finanças e de todos os níveis de governo. Estes parceiros

negociam as opções técnicas e, em alguns casos – depois do que pode ser uma longa

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série de aproximações sucessivas – atingem acordos mutuamente satisfatórios. A

diversidade de centros e critérios de decisão implica em algum grau de plasticidade

técnica.

2ª. As opções tecnológicas nunca podem ser reduzidas à sua dimensão estritamente

técnica. O projeto e a introdução de um novo veículo, um novo processo de produção de

energia, ou um novo eletrodoméstico são indissociáveis de algum grau de reestruturação

social e distribuição de papéis (a serem desempenhados). Portanto, a avaliação das

opções tecnológicas é uma questão para debate político.

3ª. As opções tecnológicas trazem situações irreversíveis, resultantes do

desaparecimento gradual das margens de escolhas disponíveis para aquele que decide:

com o tempo, suas escolhas são inexoravelmente predeterminadas pelas decisões

anteriores. Ao contrário de algumas decisões que sempre permanecem passíveis de

serem revistas, existem outras que são materializadas em enormes compromissos

técnicos, tais como, por exemplo, o capital investido na opção pela energia nuclear.

Estas decisões podem conduzir a desequilíbrios duráveis e ao consequente descarte de

opções que, numa visão retrospectiva, poderiam ter sido pensadas como preferíveis a

aquelas que foram efetivamente tomadas.

Ainda segundo CALLON (ibidem), a implementação de uma Avaliação Construtivista

da Tecnologia deve, portanto, levar em conta as seguintes questões:

a) Como nós podemos assegurar que todos os atores envolvidos, especialmente os não

especialistas e os mais sem recursos, sejam apropriadamente ouvidos durante a

discussão das opções técnicas e nos momentos das tomadas de decisões?

b) Como podem várias opções tecnológicas alternativas serem mantidas abertas o tempo

todo, tendo em mente que uma variedade delas deve existir para que a própria noção de

escolha não desapareça, e com ela toda a possibilidade do debate político?

c) Como nós podemos evitar a emergência de situações irreversíveis que excluem certas

opções tecnológicas meramente porque elas não foram apoiadas em um determinado

tempo?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta comunicação procurei explorar as relações e associações existentes nas parcerias

humanos-não-humanos, especialmente aquelas existentes nos nossos cotidianos,

atualmente repletos de artefatos tecnocientíficos. Fica evidente o meu pertencimento ao

coletivo de pensamento dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (Science

Studies ou Science and Technology Studies, ou ainda Science, Technology and Society

Studies) com um viés decolonial e preocupado com as questões brasileiras e, por

extensão, latino-americanas.

As relações de parceria humanas-não-humanas no contexto tecnocientífico implicam em

artefatos tecnológicos com origem hegemonicamente fora de nossos locais. Somos

povoados de dispositivos, algoritmos e aplicações concebidas e produzidas no exterior e

adaptadas ao nosso uso e interesse. Isso implica em neocolonizações, em neocatequeses.

O global impondo o local. O centro determinando as periferias. Existe uma solução

trivial para romper esta arquitetura de poder e dominação? Não. Não existe solução

trivial.

Para tentar dar conta deste dilema, esta comunicação ousou experimentar uma frente

epistêmica baseada no pensamento antropofágico e outra frente estratégica inspirada na

abordagem construtivista da tecnologia, descritas no corpo do trabalho.

São experiências analíticas e narrativas de buscar encontrar abordagens alternativas para

enfrentar este drama de conviver com estas parcerias assimétricas postas pela

governança global à soberania e autonomia de tudo que é local entre nós.

Segundo e seguindo (LATOUR, 2013, p. 9):

“Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio

atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os

conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura.

Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das

instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço de nós

somos instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas

onde quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de

Page 14: NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”

tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a

de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne

destas histórias confusas.”

Seguindo as instruções e as inscrições, submeto este trabalho no formato do Word, da

estadunidense Microsoft, atendendo ao previsto nas “Normas para trabalho completo”,

( https://www.historiaeparcerias.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=589 ),

pago minha anuidade da nossa sociedade, SBHC, pela também estadunidense empresa

de pagamento PAYPAL ou, alternativamente, pelo Internet Banking do Banco do

Brasil. Nas mesmas normas, em seu item 2 está prescrito que a fonte do texto deve ser

“Times New Roman”, uma fonte criada pelo jornal inglês “The Times of London”, em

1931. Também não consigo de deixar de conectar, em parceria, com a logomarca da

UFRJ, a Minerva, deusa romana das artes, do comércio e da sabedoria e que também

rege as estratégias de guerra.

Enfim, já que estamos falando de Nova Roma (New Roman), diria Darcy Ribeiro:

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e

tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude

populacional, e começa a sê‐lo também por sua criatividade artística e cultural.

Precisa agora sê‐lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se

fazer uma potência econômica, de progresso auto‐sustentado. Estamos nos

construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça

e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor,

porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à

convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais

bela e luminosa província da Terra.

A gente escreve o que ouve, nunca o que houve

(Oswald de Andrade – Serafim Ponte Grande)

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