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No meio de um causo

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Conto de Luíç Caixote lançado pela Editora Gaveta.

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Page 1: No meio de um causo

no meio deum causoluíç caixote

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texto Luíç Caixote

revisão Thalita E. Couto

i lustrações Luhan Dias

projeto gráfico 2d animação e artes gráficas

Caixote, Luíç, 1984-No meio de um causo / Luíç Caixote. Belo Horizonte:

Gaveta, 2012.

1 . Contos brasileiros. I . Título. I I . I lustrado.

CDD B869.35CDU 821 .134.3(81)-3

C138m

O trabalho No meio de um causo de Luíç Caixote foi l icenciado comuma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial -

SemDerivados 3.0 Não Adaptada . Com base no trabalho disponível emwww.diluiscaixote.blogspot.com . Podem estar disponíveis autorizaçõesadicionais ao âmbito desta l icença em www.diluiscaixote.blogspot.com .

Editora Gaveta Belorizonte VinteDoze

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Um caminhante solitário;

Há horas acompanho este rapaz que anda dentro domato. Parece que não sente fome; não bebeu nada deágua até agora; todo arranhado por gravetos não esboçanenhuma dor. Se eu fosse um narrador onisciente, cer-tamente, diria: nada pode atingí-lo porque seu propósitoé maior a tudo. Mesmo com uma noite semi-clara, gra-ças à lua cheia, sua mente vê o caminho de modo obs-

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curo, pois seus pensamentos e sentimentos misturam-se e corrompemas imagens. Então tudo é vulto à frente, vulto que dança para deixá-lodesnorteado. — Não sei de nada do que se passa em sua cabeça, sóposso dizer aquilo que vejo. Só posso narrar segundo o que deixatransparecer. Porém como narrador espectral tenho flexibil idade no ce-nário.Adiante surge um breve sinal de gente conversando, no entanto é

sinal muitíssimo breve e quase não determina o local exato de sua ori-gem — podem até ser as árvores que cantam em brincadeira de roda.

Tem junto ao corpo um embornal grande que de longese mostra graúdo de cheio e — O que será que ele tem ládentro? — de perto — Seria ele um bruxo? — parece sóum saco vazio. — Eu até poderia revirar seus pertences(tenho esse direito e dom), mas não quero faltar comrespeito, além de meus dedos trêmulos atrapalharem.

Anda só, porém leva consigo instrumentos

importantes;

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Tanto andar não é em vão;

Enfim chega ao local onde há pouco pessoas conver-savam até saírem correndo e gritando em desespero. Se-ria um lugar quase abandonado se não fosse pela fogueiraque deixaram ainda acessa. Parece que fugiram de algoperigoso — temo o que podemos encontrar aí à frente.Na fuga passaram muito rápido por nós, mesmo assim,antes de chegarem longe, advertiram:

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— Vai por aí não, Padreco. Lá na frente tem bichode assombração. Corre, Padreco, corre para se salvar!— Faz-se indiferente ao aviso, é aí que me mostro maissábio porque não me envergonho de meus temores.

Abaixou-se para pegar carvão na fogueira; esfreganas mãos e nos dentes. Do embornal tira um frasqui-nho, abre e sinto cheiro de pimenta. Pinga gotinhasnos dedos e depois esfrega nos olhos. — Não grita,porém vejo que ardeu muito — O rosto é de dor e osolhos ficam vermelhos em brasa. Já não se vê ospontos brancos em seu corpo: unhas, dentes, olhos.Mais à frente há uma luz de fogo serpenteando

por entre as moitas. Tento avisá-lo de todas as for-mas: cutuco seu ombro, bagunço seu cabelo, mexona lenha, imito coruja, chuto cascalho, mas não con-

O jovem que ignorou avisos;

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sigo chamar sua atenção... Resta-me apenas deixá-lo sozinho e su-bir nesta árvore; tentei avisar e não consegui.A luz de fogo caminha por entre o mato em ritmo de cascos de

animal. O jovem que chamavam de Padreco continua agachado (se-rá que não percebeu nada?). O fogo vem de mansinho pelas suascostas — como eu poderia avisá-lo? Talvez se jogasse uma pedra...Pena não ter nenhuma comigo! —; chega pertinho e faz barulhopara chamar-lhe a atenção.É um bicho medonho de cascos e com o pescoço cortado, pare-

ce que foi um golpe só de facão; jorra fogo ao invés de sangue. —Mesmo em cima da árvore sinto o calor que emana de suas ventase me faz tremer de medo. Agito a árvore com meu susto e as fo-lhas riem cantando sacolejos.Lá embaixo o rapaz levanta sem manifestar pavor algum. Man-

tém seu controle de modo medonho — digo outra vez, se eu fosseonisciente narraria assim: nada pode atingí-lo porque seu propósitoé maior a tudo. Contudo não posso afirmar nada —. Vira-se para obicho e dá boa noite. Agora ele se disfarçou de criatura noturna,vestiu-se de vulto, repito, não tem nada de branco visível : nemunhas, nem dentes, nem olhos.

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— Boa noite. O que procura, minha amiga? — Re-pete os cumprimentos ao monstro, acho que isso épara mostrar que não sente medo. Porém eu sintopor ele.O bicho geme, sem responder nada, dá meia volta

indicando ir embora.Ele mantém algo escondido em sua mão. Daqui

não posso ver direito, vou descer rápido para confir-mar de perto... Sim, tem algo mesmo. É um alfinete.

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A primeira tentativa fracassa;

Foi um golpe pouco certeiro que fez algumas gotasde sangue caírem sobre as brasas na fogueira. Explodi-ram quase nada de fagulhas no mesmo instante queuma chama pequenina brotou — posso ter me confun-dido, talvez por causa do medo, mas acho que ouvi ofoguinho chorar.A assombração com um ferimento pequeno nem se-

quer mancou quando fugiu para o mato. Antes de ir, emdefesa própria, desferiu um coice no rapaz que foi cair

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longe — se não desvio, também teria me acertado —.Enquanto ele se levanta, o bicho que lança fogo já sumiuna noite... — Juro que vi uma chaminha sair correndo dafogueira. Mas talvez seja um fogo que saiu queimandofolhas!Com muita dificuldade o rapaz se põe de pé. Pára

por um tempo olhando a sua volta até fixar os olhos nadireção que o bicho sumira. Perdeu seu alfinete, pois ta-teia na roupa em busca dele.— Eita, diacho! Mas não tem problema não... eu puri-

fico a faca no braseiro. — Revira seu embornal nova-mente, agora tira uma faca que deixa esquentar por umtempo na fogueira.

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Do mato vem correndo um pouco de fogo... — Não faz sentido, nãoé a assombração, parece mais com aquela chaminha que saiu correndohá pouco do braseiro. Acho que o pouco sangue do bicho fez nascerum outro ser de chamas; não é animal que cospe labaredas, é, sim, opuro fogo vivo e caminhante. Vou me proteger no alto da árvore outravez.Do mato vi voltar um pouco de fogo correndo. Uma chaminha que

— ainda mais estranhamente — gritava:— Alguém acode eu. Tem assombração daquele lado... — Esconde

atrás das pernas do jovem trajado de falsa assombração. — Acode eu,Sô Moço!Levanta a cabeça na direção apontada pelo foguinho. Com a faca

retirada do fogo e vermelha-quente em sua mão espera um pouco...Silêncio... Então movimenta-se em atitude desnecessária: corre. —Droga! Terei de seguí-lo até o perigo. Melhor ir pelo alto, vôo pela copadas árvores. Sim, posso voar porque, como já disse, sou dinâmico natrama.

Outros preparativos foram feitos;

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Diante do mal (segunda chance);

O animal-assombração empina diante dele que reageinstantaneamente. O segundo golpe foi bem dado paraque não houvesse mais nenhum erro. Tão bem aplicadoque muito sangue jorra para todos os lados e o jovemfaz-se totalmente pintado de vermelho.O bicho rodopia desnorteado ao perder tanta força

vital . Medonhamente emite um som de gente chorando.Choraminga, cai de joelhos e tomba ao chão. O rapazvermelho chega perto — eu vou para longe — e recobre

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o animal com uma manta que tirara do embornal . —Dou um tempo; vejo que há segurança e, então, volto ame aproximar.Agora é a vez de o corajoso rapaz mostrar fraqueza.

Afasta-se em desequil íbrio; cambaleante, antes de cair,apóia-se no tronco de uma árvore, suspira mostrandoalívio, escorrega até embaixo e, enfim, descansa de tra-balho árduo.Vira a cabeça para cima com os olhos presos por —

aparente — admiração à lua cheia.

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A manta mexe e emite um suspiro — minhas pernastremem e minha espinha gela de alto a baixo —. A man-ta mexe mais, parece que há algo se contorcendo de-baixo dela.. .Ele olha e ri.Uma mão de moça surge por um lado do cobertor.

Com o punho fechado faz movimentos de quem se es-preguiça — são cenas confusas —. Um pouco mais e amão se abre como a afastar a manta... — não arriscochegar mais perto por temor — Um braço surge e nasua ponta uma moça l inda que começa a se desnudar...— Ops... Ririri , que frizinho!.. . puxa de volta o pano para cobrir-se. Parece se

acanhar pouco mesmo ao cruzar com o olhar do jovem,pois abre um largo sorriso.Após risinhos avechados continua.

Chega uma nova manhã;

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— O que fazemos aqui?.. . Ririri , ai , como sou esqueci-da das coisas!Ele olha e ri.Moça-bonita levanta-se vestida com a manta, apro-

xima-se dele e o puxa pela mão. Talvez queira tirá-lo detamanha estagnação, entretanto ele não mostra ânimopara isso, o que seu rosto passa é a idéia de cansaço. —

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Minha tremedeira começa a passar porque acho que omal foi-se junto com a noite — Ele não se move e elacomenta:— Nossa! Que vermelhão todo é esse?Ele ri.Esse é o tempo daquela chaminha chegar vergonho-

sa, pois vem escondidinha atrás de troncos e pulando defolha em folha...A moça vê a criaturinha.

— Ai, que l inda! Quem é ela? Qual o nome dela,querido?— Não sei direito, acabei de conhecer.. . — A pequena

menina de fogo chega perto, pertinho e bel isca sua mãofazendo gracinha — Ai, sua chaminha malcriada!— Riririri . . . Que l inda. Quero batizar!

Adoção;

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O jovem guarda a criaturinha de fogo em um isqueiro,que é logo devolvido ao embornal .. . Segura na mão deMoça-l inda e a conduz por um caminho que parece sero de volta.Se eu fosse onisciente diria: nada pôde atingí-lo porque

seu propósito foi superior a tudo. Enfrentou frio, fome, se-de, distância e dor para salvar seu amor correspondido deuma maldição. Porém sou só narrador espectral que nãosabe nada disso, só consegue especular com as leiturasfeitas sobre os atos dos personagens.

“Leva eu, Sô Moço!”

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Interessante como as coisas terminam de formasimples. É nesse jeito simples que seguem por aquele ca-minho enquanto eu, como narrador inexistente na reali-dade deles, sigo pelo outro lado.

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Composto com a famíl ia

tipográfica Rawengulk .

Material em desacordo

ao Novo Acordo da Língua Portuguesa de 1990.

Todo o projeto gráfico e as i lustrações

foram desenvolvidos uti l izando Programas Livres (Gimp e Scribus).

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Um rapaz trajado de vulto se atrevendo

no atravessamento dessa noite clara,

parece que anda atrás de assombração.

Seria esse seu real propósito? E quan-

to a brasa e o fogo que correm mato

afora, seriam a tal assombração? Ou

essas coisas são enganos que a lua cria

quando resolve brincar de fazer confu-

são? Ou tudo é para se chegar a uma

espreguiçadela exclamada com um do-

ce sorriso de bom dia?