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34 SOCIEDADE tabernas No reino do antigamente ainda se come, bebe e discute QUEM ENTRA NUMA TABERNA, ENTRA NO PASSA- DO. ESPAÇOS DE COMER, BEBER E JOGAR QUE SE TENTAM MANTER IGUAIS AO QUE SEMPRE FORAM TEXTO MARCO ROQUE FOTOS PEDRO RAMOS

"No reino do antigamente ainda se come, bebe e discute"

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Reportagem sobre tabernas na região de Coimbra.

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sociedade tabernas

No reino do antigamente ainda se come, bebe e discuteQuem entra numa taberna, entra no passa-do. espaços de comer, beber e jogar Que se tentam manter iguais ao Que sempre foram texto Marco roque fotos pedro raMos

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Locanda, Tasca, chafarica, ermida. Ou, simplesmente, taberna. "Antigamente era outra vida, a malta vinha de bicicleta, pagava a conta do mês, ficava cá o dia todo, comia e bebia. Havia mais espírito. Agora, não há nada disso", conta Emílio Cera, dono de uma das mais antigas tabernas da região. "Foi aberta no dia 2 de novembro de 1942, pelo meu pai", revela. A Casa do Cera, mesmo no centro de Cantanhede, não tem identificação à porta, que está sempre aberta. "A feira costumava ser aqui ao pé, as pessoas começavam a comer às cinco da manhã, de forma que, à noite já nem havia comida", lembra. Lembra também "tempos da guerra", em que o espaço acabava por servir de depósito de milho e se registou como casa de pasto, "para ter mais senhas de comida". E onde está o louro à porta, identi-ficação de tabernas mais "urbanas", como as de Coimbra? "Queriam que pagássemos para ter isso, acabei por tirar", afirma, pragmático.Estamos numa sala ampla mas escura, com um balcão de mármore, uma mesa e alguns bancos de madeira. As prateleiras na parede guardam várias medidas de copos. Três pipas de vinho completam a simplicidade do qua-

dro. Tudo na mesma, já há mais de 60 anos. "Desde que ela foi aberta nada se alterou, até o balcão é o mesmo, as pipas é que já estão por estar, vende-se muito menos", destaca Emílio Cera. E lembra que "as pessoas paravam pela comida e pelo vinho, mas é o vinho que cria clientes habituais, neste caso, lavradores". Curiosamente, conta Emílio Cera, os melho-res a beber não sãos os homens do campo, são os do mar. "Quando morreu o dono de uma grande firma com barcos de pesca que morava aqui perto, vieram cá ter os capitães de navios e de traineiras", recorda. "Pediram vinho e eu pego nos copitos habituais, mas ele viram--se para mim e dizem: 'Isso não chega, dê-me aquele' [e apontaram para a picheira, a medida

de litro]", conta. "Ah, homens para beber d'um catano! Era cada martelada…", ri. Nessa tarde, "repetiram cinco ou seis vezes, porque o enter-ro demorou a sair". Assim se passavam os dias, entre jogos de cartas e encontros de negócios entre agricultores e compradores.

EntrE a Baixa E a altaNa Casa Chelense, em Coimbra, na rua das Rãs, a animação é grande. Discute-se ao bal-cão, as pombas entram alegremente, pode ser que ainda apanhem algumas migalhas. O dono, Manuel Fonseca, já está habituado a receber meios de comunicação: a parede está cheia de recortes de jornais, alguns datam já da década de 80. "Já tenho a casa há mais de 24 anos", conta. "O nome vem da minha aldeia, Chelo, perto do Lorvão, mas também é conhe-cida por Manuel do Garrafão". Isto porque há um garrafão à porta, bem como o louro. Foi um dos locais que entrou no circuito das taber-nas criado pela Câmara Municipal da cidade. Por isso, aposta forte na tradição, sem garan-tias de futuro. "Não sei se vai continuar depois de mim, são casas que não se podem passar a ninguém. Tem sido um erro das autoridades

implicarem com tudo e ma is a lg u ma coi-sa", desabafa Manuel Fonseca. Por cima do balcão uma coleção de notas ajuda à decora-ção. "Quando vim da América trouxe algu-mas notas, e meti-as aí. Com o tempo, as pes-soas foram-nas ofere-cendo. Estão sempre a chegar notas", revela, acrescentando que "há uma ligação muito for-te com a freguesia. Por isso é que gosto de tra-

balhar neste ramo: para falar com as pessoas e conviver". Mesmo ao lado, no Tapa, lê-se uma inscrição: "Quem vier a Coimbra sem visitar o Tapa, é como quem vai a Roma sem visitar o Papa". O nome - que surge porque quem lá ia beber tinha direito a algo para "tapar" a bebida - ante-cede a atual proprietária. Purificação, dona do espaço há de três anos, "manteve o espírito" e o estilo com que a casa foi fundada, "há mais de 60 anos". Um balcão corrido, agora metálico, antes de madeira, para comer de pé os petiscos da casa. "Coisas rápidas, sardinha e orelha saem muito", conta, acrescentando que "numa casa destas ou se mantém ou se fecha". Por isso aposta-se no vinho. "Olhe se vim cá ontem e

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hoje estou a repetir, é porque o vinho é bom", diz um cliente, disposto a pagar um copo aos jornalistas, para provar o que diz. Só não quer é aparecer na foto, "senão a minha mulher dá cabo de mim". Na alta, a taberna mais famosa está ligada à universidade. Na Tasca do Pinto, o traçadinho é rei entre os estudantes, que ado-tam o espaço como uma segunda casa. "Hoje, com 78 anos, olho para os caloiros quase como meus trinetos", conta Luís Pinto. Fundada em 1978, a tasca é uma instituição. "Há pais que trazem cá os filhos, houve até um que, quando descobriu que a filha tinha vindo morar por cima de nós, nunca mais a deixou mudar de

casa", conta. A quan-tidade de gravatas cortadas por cima do balcão só demons-tra o amor dos estu-dantes pela casa. Até fizeram uma home-nagem que o senhor Pinto não esperava. "Ainda no outro dia me disseram: 'venha aqui ver o Facebook'. E lá estava eu, de gar-rafão na mão", ri. D e volt a a C a nt a-nhede, Emílio Cera resume, sem saber, em nome de todos os taberneiros, o futuro. "Enquanto eu for vi-vo, isto vai andando, qua ndo eu bater o

olho acabou tudo", sublinha. Os meus filhos já trabalham, ninguém pega nisto. Se isto for abaixo, vão ter de ser feitas obras". A calma dos anos já domina, por isso não vale a pena ceder à preocupação. "Olhe, beba mais um copo, que a jeropiga é da casa", convida.

A sobrevivênciA das tabernas até pode passar por um aspecto despercebido a quem as associa só ao álcool. "As tabernas mantiveram-se durante muitos anos liga-das às letras, à poesia, às ideias, à música", conta Paulino Mota Tavares, historiador e membro da Liga dos Amigos das Taber-nas Antigas (LATA). "Temos de ter outra visão da taberna. Apontámos demasiado para o alcoolismo e para as grosserias, pa-ra as asneiras e a LATA quer mudar isso", completa. Até porque foi numa taberna da baixa de Coimbra que se ouviu "pe-la primeira vez as palavras 'em nome do povo, Viva a liberdade, viva a república!'. Isto a 26 de agosto de 1849, mais de 60 anos antes de 1910", revela. Mantendo

a cenografia base, "as pipas, as garrafas antigas, o papel, o lavatório ou bacia", o historiador propõe que se recuperam tradições culturais como "folhetos de cordel ou o fado, que nasceu na taberna". Foi nessa linha que a Câmara de Coimbra lançou um Roteiro das Tabernas. Mário Nunes, vereador da Cultura na época, acredita que as "tabernas eram importan-tes ao nível social, económico e cultural". Para além disso, "tiveram e ainda têm uma função especial. Eram um espaço de encontro, discussão, reunião, tudo isso era lá". Paulino Mota Tavares completa, sorridente, "eram espaços de beber, co-mer e disparatar - também precisamos disso".

Do Roteiro até à LATA

Vinho branco e gasosa, a receita do traçadinho do "Pintos"

tabernas

O mistério do louro à porta

Se as tabernas estão associadas ao povo, foi um nobre que introduziu o ramo de louro à porta. Conta a história que, certa vez, um ministro do rei decidiu beber alguns copos de vinho an-tes de falar com o soberano. À saída da tasca, apercebeu-se que o hálito denunciava a sua escapadela. Para o disfarçar, roeu umas folhas de louro. O final não é feliz para o ministro, o rei entendeu a artimanha. Mas a moda do louro à porta pegou e, dizem, já ajudou a evitar algumas zangas entre marido e mulher.