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Noiz Por Noiz O Corre d@s Funkeir@s

Noiz por Noiz - Funk

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Revista produzida pelo Observatório da Juventude - Zona Norte. Voltada para lideranças comunitárias, militantes, professores e jovens em geral. Nela abordamos o funk, propondo uma leitura que não o criminalize. Noiz por noiz!

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Noiz Por Noiz O Corre d@s Funkeir@s

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A segunda edição da revista “noiz por noiz: o ‘Corre’ d@s Funkeir@s” trata de um problema sério que assola a juventude da periferia e que alimenta o ciclo de violência que atinge essa parcela da nossa sociedade. O tema que abordaremos é a criminalização da cultura periférica, mais especificamente da cultura Funk, e as diversas formas desse processo. Para isto, essa revista pretende levantar alguns estudos sobre esse movimento e entender quais são as causas desse fenômeno, que não apenas desqualifica o movimento em seu aspecto cultural, como também colabora para políticas discriminatórias por parte do Estado, impedindo e reprimindo os bailes funk, desconsiderando o potencial empreendedor do movimento, no que diz respeito ao mercado de trabalho, bem como da capacidade do mesmo em contribuir na construção de um novo saber no quadro educacional da periferia.

Essa revista, diferentemente de sua primeira edição, readequou sua linguagem visando atingir movimentos sociais que trabalhem com as juventudes socialmente mais vulneráveis. Entendemos que é de suma importância à todos os grupos de militância social perceberem o ataque que uma cultura periférica e juvenil vem sofrendo no cenário recente da história do Brasil. É preciso perceber que a fonte da violência que atinge os bailes funk da periferia é a mesma que assola a juventude preta e pobre das regiões mais simples do Brasil, e que “justifica” políticas discriminatórias, como a redução da maioridade penal. Trata-se, portanto, de uma violência que se ampara na violação de direitos, no não reconhecimento das identidades juvenis da periferia e que, somada a uma política de guerra às drogas instituída no país em meados dos anos 1970, coloca como principal alvo o jovem preto e pobre morador da periferia e todas as manifestações

culturais que dele se expressar.Pretendemos aqui demonstrar que o estigma e a criminalização sofrida pelo funk

nada mais é que uma representação de um fenômeno que ocorre em escala social, resultante das políticas discriminatórias que a parcela preta e pobre da população sofre, ou seja, políticas públicas amparadas num viés classista e racista, oriundas dos grupos dirigentes que controlam as forças políticas e econômicas do Brasil.

NOta sObre O títulO da revista“Noiz por noiz: o Corre dos Funkeir@s”, tem a pretensão de aproximar sua visão sobre

o Funk dos termos usados por seus atores e públicos para tanto, vale esclarecer que o termo “corre” tem mais de uma possível interpretação: essa expressão pode se referir às atuações ilícitas de determinados grupos; quanto as atividades licitas como trabalho e estudo que fazem parte do cotidiano do jovem da periferia. É ao último sentido que nos referimos.

dediCatÓriaA segunda edição da revista “noiz por noiz: o ‘Corre’ d@s Funkeir@s” é dedicada,

primeiramente, a todos os jovens mortos vítimas da violência do Estado, sobretudo os mortos em ação policial.

Dedicamos também àqueles jovens que ousam sonhar com uma vida melhor por meio do Funk.

Editorial

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O Observatório da Juventude é um grupo que atua na pauta dos direitos humanos da juventude na zona norte de São Paulo. Nosso “escritório” são as quebradas da Zona Norte, mas estamos vinculados ao Centro Cultural da Juventude (CCJ), pertencente a Secretaria Municipal de Cultura, desde o inicio de nossas atividades em abril de 2014. Há quase 2 (dois) anos que acompanhamos e denunciamos as diferentes formas de violação dos direitos das juventudes, desde os altos índices de HIV/Aids por negligência da saúde pública é a violência policial praticada por agentes de (in)segurança integrante do braço armado do Estado. Diante disto articulamos os diferentes atores das lutas sociais nas periferias, rompendo a barreira regional e somando com os 5 (cinco) cantos da cidade para, juntos, articular e cobrar ações que visem a promoção de políticas públicas de juventude.

Atualmente compõem o Observatório da Juventude (na foto, da esquerda para a direita):

João Vitor Bortoleto, 23 anos: Estudante de História na USP, Pesquisador do PIBID e Jovem Monitor Cultural.

Marco Aurélio Moura, 23 anos: Estudante de Letras na USP, militante da Pastoral da Juventude e pesquisador do Núcleo de Antropologia Urbana - USP.

Gabriela Stephani, 19 anos: Estudante de Ciências Sociais na USP, militante da Pastoral da Juventude e Jovem Monitora Cultural.

Igor Gomes, 20 anos: Estudante de História na USP, militante da Pastoral da Juventude e um jovem poeta.

Mariana Souza, 18 anos: Estudante de História na FMU, militante da Pastoral da

Juventude e técnica em biblioteconomia.Contato:E-mail: [email protected]/ObservatorioDaJuventudeCCJ

obsErvatório da JuvEntudE – Zona nortE

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“Era trabalhador, pegava o trem lotado/ Tinha boa vizinhança, era considerado/ E todo mundo dizia que era um cara maneiro/ Outros o criticava porque ele era funkeiro/ O Funk não é modismo, é uma necessidade/ É pra calar os gemidos que existem nessa

cidade”(Mc Bob Rum – Rap do Silva)

Os sujeitos compõe o espaço e o espaço são os sujeitos. Não é de hoje que vemos pela cidade de São Paulo o que nos anos 1970 ficou pejorativamente chamado de “tribos urbanas”. Nos habituamos a conviver com pequenos grupos que “pintam” dados espaços da cidade segundo as cores da sua identidade. Os roqueiros escurecem com seus casacos pretos a Galeria do Rock na Avenida São João; os regueiros, quase que dividindo espaço com aqueles, tingem com as cores da bandeira da Jamaica a mais humilde Galeria do Reggae, adjacente a primeira. Vemos um amalgama de “tribos” se espalharem na madrugada da Rua Augusta, derivados das mais diferentes vertentes do Rock ‘N Roll; já os boêmios, admiradores da música nacional, colorem a simpática Vila Madalena.

Mas bem longe dali, afastado dos principais espaços de Lazer de São Paulo, longe dos holofotes das câmeras de TV e para cá da ponte, conforme os versos do grupo de Rap Racionais MC’s, uma “tribo” bastante particular toma para si um dado espaço da cidade, reivindicando como seu e o atrelando a sua identidade. Tal grupo, justamente, produz o espaço conforme sua cultura, e faz dele um papel de afirmação de sua subjetividade, preenche-o não apenas no plano físico mas também espiritual, porque por mais que não o encontremos ali, suas marcas ali se encontram. Sua presença transcende sua própria

presença, causando incomodo àqueles que o entendem como subversivo, desordeiro e criminoso.

O presente trabalho pretende abordar a cultura do Funk fora de uma visão elitista que sempre o rebaixou. Para tanto, exerceremos uma reflexão que nos aproxime dos(as) funkeiros(as), para compreender suas particularidades, mas que, em seguida, se distancie-se deles para colocá-los num plano maior e mais amplo, a fim de entendê-los como fruto de um dado contexto histórico e social. Esse trabalho nos permitirá compreender o Funk longe de uma visão preconceituosa, que ajudou a criminalizá-lo, e nos ajudará a fazer apontamentos mais justos a seu respeito.

É preciso, antes de mais nada, compreender que o Funk como o concebemos hoje é resultado de uma mudança histórica ocorrida no mundo. Sua instituição se deu em sintônia com as particularidades do caso brasileiro e, as mudanças que operam nele – o Funk –, também acompanharam as transformações ocorridas no país. Nesse sentido, a partir de uma análise sobre o Funk, podemos pensar não apenas esse movimento como ele o é, como também o atual contexto social brasileiro e as alterações históricas que ocorreram em nossa sociedade nos últimos anos.

O Funk, assim como ocorreu a outros movimentos culturais, vai além da própria música. Ele, na verdade, constitui um estilo de vida; uma identidade bastante particular que sofreu alterações nos últimos anos e, como dito acima, acompanhou as transformações ocorridas no país, em especial com as camadas mais pobres da sociedade. É imprescindível situarmos o Funk numa escala global da história. O exercício aqui, portanto, passa em entender não o Funk como uma manifestação deslocada das sociedades modernas ocidentais, mas, pelo contrário, um movimento em plena harmonia com o que há de mais moderno em termos de cultura juvenil no mundo, embora não reconhecido e valorizado pelos órgãos e agentes públicos.

O fim da segunda guerra mundial marcou um rompimento na sociedade ocidental. Os efeitos do radicalismo de governos autoritários ainda ressoava pelo mundo, em especial na Europa, que se reconstruía dessa experiência não apenas em termos físicos como também sociais e psicológicos. Fundamentou-se a partir daí uma grande crise de autoridade, da qual a filósofa Hanna Arendt dissertara brilhantemente em seus diversos trabalhos. Os chefes de estado deixam de carregar a figura de “pais” de suas respectivas

o funk no fluxo da história

Por João Vitor Bortoleto

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constituía enquanto identidade negra nos Estados Unidos. Mais tarde, derivado do Jazz e ainda associado à luta dos negros estadunidenses, surgirá o Hip-Hop, que influenciará bastante o movimento que pretendemos abordar nesse trabalho: o Funk brasileiro.

O Brasil não ficou de fora das transformações que envolviam o mundo pós-guerra no que tange ao campo da cultura. Os festivais de música, bastante comuns nos anos 1960, permitiram com que novas vertentes entrassem no Brasil e concorressem com a tradição das músicas regionais. O mundo se globalizava e, com ele, as transformações culturais iam acontecendo por toda parte, permitindo que elementos externos adentrassem e alterassem a ordem das coisas. As correntes modernistas brasileiras, que desde a década de 1930, se emprenhavam em valorizar as manifestações populares locais, eram deixadas de lados por jovens que se viam inspirados em criar um novo movimento a partir de uma mescla do tradicional com culturais estrangeiras. Assim surgia o marcante movimento da Tropicália, composto por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Jorge Ben Jor e o grupo Os Mutantes, que pretendiam promover uma revolução não só musical, mas estética e comportamental, além de romper com a visão engessada que a intelectualidade modernista, até então, concebia como “cultura brasileira”. O novo passou a ser a regra e, para tal, não importava de onde viessem os instrumentos que inspirassem sua criação, não se trata aqui mais de criar o popular, mas sim de fazer um novo popular. Com o golpe civil-militar dado em 1964, a Tropicália, movimento que pouco contestava a ordem política, foi desintegrada e seus principais integrantes foram exilados, revelando a ineficiência do Estado em lidar com as criações artísticas do público.

A partir de então a sociedade brasileira vai se “fragmentando” culturalmente. Fica cada vez mais difícil delimitar quais seriam as culturas essencialmente nacionais, como pretendiam os modernistas, que, inclusive, faziam de suas ideias, um tanto restritas às inovações, uma política de Estado. Vemos surgir nos espaços urbanos e rurais do país uma miscelânea de movimentos culturais que a todo tempo estão inovando através de uma interpretação e ressignificação das coisas que chegam de fora e das tradições regionais do Brasil, sempre levando em consideração a realidade em que o movimento está imerso. Assim vemos não apenas no que tangem as artes musicais, mas também a outras artes e/ou estilos de vida, como é o caso dos esqueitistas, dos grafiteiros, dos

pátrias para ganhar feições cômicas e serem extremamente ridicularizados. O Brasil não ficou fora deste contexto, a crise do varguismo nos anos 1950 foi um dos reflexos deste processo, que não era particular ao Brasil.

A partir dos anos 1960, grupos juvenis contrários a “herança” de governos autoritários passam a construir novas pautas no cenário político e cultural. Eclodiam movimentos que tentavam negar a cultura do autoritarismo, pregando a criação de sociedades alternativas e fora da polaridade “capitalismo x socialismo” que marcava a guerra fria, até então em seu auge. Essa juventude, que nascia com o nome de “contracultura”, visava constituir justamente a negação dos povos pré-guerra que ajudaram a erguer governos autoritários, como o de Adolf Hitler. Eles defendiam a liberdade, a flexibilidade das regras sócias e a paz. Podemos entender os anos 1960 como um divisor na história do Ocidente justamente por marcar o nascimento de movimentos sociais (no plural), abrindo campo para o reconhecimento que um povo não é mais coeso, ou divido em classes, conforme pensavam os marxistas, mas que poderia sim ser composto por diversos grupos, etnias ou, como chamaram-nos pejorativamente uma década depois, as “tribos urbanas”.

É a partir desse período que podemos ver uma eferverscência cultural e política dentro dos países ocidentais. O Rock ‘N Roll ganhava peso nos Estados Unidos e na Inglaterra, constituindo uma autêntica identidade juvenil e fazendo com que as autoridades não soubessem quais medidas tomar para conter aquele gênero músical “rebelde”. Os movimentos hippies não ficavam atrás da preocupação das autoridades públicas, em especial pelo uso de drogas entre os jovens adeptos dessa cultura e a liberdade irrestrita ao sexo.

Nesse período também vemos florescer os primeiros movimentos de luta por direitos civis que, ao contrário do que ocorrera anteriormente, não negavam a legitimidade dos Estados constituídos e dos seus respectivos modos de produção, mas buscavam, pela via do Estado, o reconhecimento de seus direitos e o acesso igualitário à sociedade civil. Isso se deu com os grupos feministas que passaram a reivindicar direitos iguais em relação aos homens e acesso ao mercado de trabalho; e também com o movimento negro que, na conjuntura dos Estados Unidos, não usufruíam das mesmas leis que os brancos estadunidenses. Associados a este último movimento, por exemplo, temos o jazz como um dos principais referenciais da cultura deste grupo e que também se

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grupos independentes de teatro e circo, de grupos juvenis religiosos etc.. Devemos, portanto, pensar o Funk e os funkeiros sob essa chave, de uma expressão artística que é, ao mesmo tempo, estilo de vida que configura uma identidade, característico a dados grupos periféricos. Para entender sua subjetividade faz-se necessário entender sua realidade, bem como as demandas oriundas desta. Eis o objetivo do presente trabalho: não apenas levantar uma reflexão sobre a cultura do Funk, como também fazer apontamentos que permitam o Estado, com suas políticas culturais e educacionais, ser mais efetivo a respeito deste movimento.

A pesquisa, desenvolvida pelo Observatório da Juventude – Zona Norte e com o apoio do Centro Cultural da Juventude, do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba e da Prefeitura de São Paulo, abordará o funkeir@ em quatro esferas de sua realidade, que seriam elas: o trabalho, a educação, o lazer e o consumo. Pretendemos ver como que, no caso do consumo, o funk elabora uma apropriação bastante particularizada deste, a fim de subjetivar sua identidade nos seus praticantes; no que tange ao lazer, pretendemos observar a relação entre regras e atores que ajudam a constituir o espaço dos bailes funk, fundamental na socialização dos funkeiros; no que diz respeito à educação, elaboraremos uma crítica de como as políticas pedagógicas das instituições de ensino, não levam em conta o funk como uma identidade intrínseca da juventude periférica, demonstrando assim uma defasagem acerca do tema e um erro metodológico do ensino; e, por fim, analisaremos a relação dos funkeiros com o trabalho, ressaltando a importância do movimento como gerador de renda para as regiões mais carentes.

Créditos: Leandro Fonseca e Maysa Marin/ Jovens Monitores(as) Culturais/ CCJ

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Desenvolvimento) com 24,3%, o Brasil tem a terceira maior taxa de abandono escolar entre os 100 países com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Esse problema afeta principalmente as escolas das periferias. Podemos elencar diversos fatores que causam essa evasão: gravidez na adolescência; a necessidade de trabalho; a cooptação para o crime; a falta de incentivo dos pais etc. Há diversos fatores que fogem ao nosso alcance imediato, mas existe um que pode (e deve) ser refletido entre os educadores: a falta de atrativos ao estudo dentro da própria escola.

Numa pesquisa realizada por nós, do Observatório da Juventude – Zona Norte, com jovens frequentadores do Rolezinho de Funk no Centro Cultural da Juventude, constatamos que a maioria dos jovens nunca estudaram a respeito do funk em sala de aula. Casos como o do professor de filosofia do Distrito Federal que utilizou uma letra da Valesca Popozuda são ainda muito raros. Em diversas aulas são utilizadas letras de artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa e outros da Música Popular Brasileira, porém é raro o uso dos conteúdos de funk, e até mesmo de Rap. Porém são estes estilos os mais fortes na cultura dos jovens de periferia. É reproduzido aqui o modelo de educação bancaria que ignora a bagagem do aluno na construção do conhecimento, e pode ser ele um dos fatores que levam a evasão de alunos que não se reconhecem no espaço da sala de aula.

Istvan Mészaros propõe na obra “A Educação Para Além do Capital” uma educação para a vida e não simplesmente para o mercado de trabalho. Utiliza-se de uma citação do filosofo Gramsci: “(...) fora do trabalho, todo homem desenvolve alguma atividade intelectual; ele é, em outras palavras, um “filósofo”, um artista, um homem com sensibilidade; ele partilha uma concepção do mundo, tem uma linha consciente de conduta moral e, portanto, contribui para manter ou mudar a concepção do mundo.” Podemos substituir a palavra trabalho, utilizada neste trecho, por escola, e assim entender que, fora do ambiente escolar, os jovens produzem cultura e conhecimento, ora pegando onda no que já é falado, ora produzindo uma nova forma de leitura do mundo. O funk é uma realidade. Uma realidade concreta em todas as periferias. Suas letras abordam um conteúdo rico (e incômodo aos ouvidos de muitos) que servem como ferramenta para que se compreenda um pouco mais da realidade periférica: afeto, drogas, sexo, mazelas sociais, racismo, machismo, homofobia, consumo, trabalho,

“Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes.” (Paulo Freire)

“Quantos de nós senta no fundo da sala pra ver se fica invisível?” (Emicida)

O pedagogo Paulo Freire afirma que os conhecimentos são diferentes, porém não existe uma hierarquia entre eles. Ou não deveria existir.

Desde que o Brasil é Brasil há uma perseguição e repressão às manifestações culturais e aos saberes da população negra e das populações marginais em geral. É de conhecimento geral a histórica perseguição à capoeira, ao candomblé, ao samba, ao Hip Hop. Um dos meios utilizados para essa repressão aos saberes tidos como menores (ou não oficial) é a escola: a grade curricular não é feita ao acaso, mas é fruto de uma seleção e essa seleção é marcada por uma leitura eurocêntrica e elitizada do mundo.

Ainda predomina, nos dias atuais, a educação bancária, aquela definida por Paulo Freire como a educação na qual “o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.” Isto é, o professor é tido como o que detém todo conhecimento e deve derramá-lo sobre a mente vazia do aluno. Nessa relação há uma nítida diferença com a supremacia de uma pessoa considerada poderosa sobre a outra considerada ignorante.

Um dos grandes problemas enfrentados pelos professores, além da baixa remuneração, falta de apoio, ausência de uma estrutura escolar adequada e a dificuldade em manter a ordem entre alunos, é a fuga dos estudantes. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento 2012 do PNUD (Programa das Nações Unidas para o

além dos muros da Escola: aprEndEndo com o funk

Por Igor Gomes Xavier

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do que um funcionário, é que o professor pode agir como mestre, e assim rever seus conceitos prévios, respeitar a bagagem e trajetória dos jovens estudantes funkeiros, e entender esse convívio como forma de construir uma verdadeira cidadania.

“Educação não transforma o mundo... Educação muda as pessoas... Pessoas transformam o mundo.” (Paulo Freire)

Saiba mais consultando o material abaixo:Funk Ostentação - O FilmeEdukatorsA Educação Proibida Preciosa - Uma história de esperançaSonhos RoubadosVaguei os livros, me sujei com a merda todaZumbi Somos NósMúsicas:Dexter e Mano Brown - Sô FunçãoMC Daleste - Mãe de TraficanteEmicida - Cê lá faz idéiaMC Garden - Isso é BrasilMC Marcinho - Festa da EscolaMC Primo - DiretoriaLIVROS:José Pacheco - Escola da PonteJosé Pacheco - Caminhos Para a InclusãoPierre Bordieu - A Economia das Trocas SimbólicasPaulo Freire - Pedagogia do OprimidoPaulo Freire - Pedagogia da AutonomiaPaulo Freire - Educação como prática de liberdade

etc. À escola, situada neste ambiente, cabe o papel de conhecer, reconhecer e respeitar a produção cultural desses jovens. Respeitar não significa uma postura passiva diante de tudo o que é dito nas letras ou praticado nos bailes, mas uma postura crítica. Essa postura crítica não pode vir de cima pra baixo como numa concepção bancária de educação, mas deve ser horizontal, problematizando as questões junto com os jovens. Como escreveu Paulo Freire: “A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham.”

Sendo o funk uma realidade da periferia, a escola, em seu dever de ser um instrumento de produção e disseminação do conhecimento, deve se enxergar como um espaço aberto, plural, comunitário, deve se colocar dentro da periferia como parte dela, e não como uma ilha isolada. Olhar ao seu redor e não somente para dentro de si mesma. A escola a serviço da comunidade e não o contrário. Muitas vezes, para essa comunidade, o baile funk é o único espaço de convivência; arrisco dizer que a escola, sem perder de vista o seu horizonte, pode aprender muito com esses bailes.

Compreendemos os motivos que causam, muitas vezes, a repulsa que os professores e a sociedade em geral alimentam quanto ao funk. Porém, uma educação libertadora exige uma visão compreensiva e mais aprofundada. Ainda que haja diversos problemas, o funk constitui uma realidade dentro da periferia, e esta realidade não pode ser simplesmente ignorada ou condenada pelos professores. Sabemos todos que essa postura não tem gerado bons frutos.

O educador, em seu compromisso com a educação, precisa garantir que, mesmo que a estrutura física da escola caia, o conhecimento continuará sendo produzido e disseminado por ali. Os jovens dançarinos, MCs, produtores, frequentadores do funk, possuem um impulso criativo que deve ser enxergado e aproveitado para esta construção. O sociólogo Pierre Bourdieu, em um artigo em que aborda o sistema educacional francês, publicado no livro “A Economia das Trocas Simbólicas”, utiliza-se de uma citação de Georges Gusdorf: “(...) a maioria dos docentes não são mestres. Dão suas aulas, realizam seus cursos, como bons funcionários. Redistribuem os conhecimentos acumulados, mas nunca lhes ocorreu que para além das verdades que defendem afirma-se a existência de uma verdade mais alta.” Somente se entendendo como mais

Créditos: Sarau no Kintal

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Para entender mais do mundo do Funk a partir da ótica dos que colam no fluxo, entrevistamos a jovem Maiara Mendes, 19 anos, moradora do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, mãe de uma menina de 1 ano e 2 meses.

Maiara, que trabalha como garçonete, parou de estudar no 2° ano do Ensino Médio mas pretende voltar. Diz curtir funk desde os 14 anos e desde então gosta de ir nos bailes de rua, porém, diferente da maioria de suas amigas funkeiras e daquilo que muitos acreditam ser o comportamento padrão das meninas do baile, Maiara não costuma dançar, prefere curtir a música e os amigos.

“É muito legal! Eu gosto. E se você sabe fazer certo, não sendo escrachado né?! Porque sabe como é aquele jeito de dançar feio, que fica todo mundo olhando, é vulgar, depois você vira assunto.” responde ao perguntarmos o que ela pensa sobre dançar nos bailes.

A preocupação de se tornar “mal falada”, comum entre as meninas da periferia, está ligada a forma que, de acordo com Maiara, o funk retrata a mulher: “ Ah mal falada né? Depravada, por causa das letras das músicas, nem tem o que falar porque são sempre xingamentos, ofensas.”

A jovem diz não conhecer MCs mulheres no bairro, mas menciona algumas como: Pocahontas, Tati Zaqui, Valesca e Ludmilla. Já os MCs homens do bairro, Maiara menciona três: Tchelo, Tota e Bruxo.

Os estilos de funk que mais bombam nos bailes, de acordo com Maiara, são: ostentação e putaria. Para além das músicas, o baile funk se mostra um espaco de

construção de amizades:“Tem os meus amigos que vão comigo e as amizades que a gente faz, as bebidas

que dividimos.”Por fim, a jovem diz que não pretende deixar sua filha ir aos bailes, mesma postura

tida por sua mãe e que acabou levando-a a ir escondido. Embora as proibições de sua mãe não tenham surtido efeito, ela revela que o nascimento da filha mudou sua relação com o baile:

Desde o nascimento da criança, Maiara nunca mais virou a noite na rua.

EntrEvista com maiara

Crédito: Hélvio Romero/Arquivo/Estadão Conteúdo (www.brasilpost.com.br/2015/03/02/moradores-favela-consumo-_n_6785984.html)

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Adriano Renê tem 22 anos, é morador da zona Oeste de São Paulo, e, atualmente, produz vídeo clipes para MC’s independentes. Suas palavras apresentam uma visão contestadora sobre as atuais tendências do Funk.

Adriano nos conta que a relação dele com o funk começou no tempo em que os jovens se reuniam em grupos chamados de “bonde” que tinham a sigla inicial “QZ”, que significa “Quebrada Zona...” e era complementado com a região de São Paulo, ao qual o grupo pertencia. No caso do Adriano, ele frequentava o grupo do “QZO” (Quebrada Zona Oeste). Nessa época, vários dos Mc’s, hoje famosos, também frequentavam esses “bondes”:

Nikiba - Nisso eu já comecei a colar nos shows do Guime, Rodolfinho e esses caras ae.

Marco - Mas na época o Guime não era famoso ainda?Nikiba - Não, cê é loco. Os caras estavam começando, eram tudo pé de chinelo ainda.

Os caras eram chavão, andavam de Juliete no baile.Essa dimensão do passado recente do funk nos ajuda a compreender a velocidade

com que esse fenômeno cresceu e ainda cresce nas grandes cidades. Adriano se mostra bastante consciente desse processo quando nos conta as dificuldades que enfrentou quando tentou ser Mc:

Nikiba - Quando eu conheci os parças do funk comecei a compor umas letras e colar num estúdio lá no Patriarca. Eu fiz uns quatro bailes, mas não ganhava dinheiro, os caras só pagavam com uísque. E foi assim com todos esses que hoje estouraram.

As dificuldades de inserção no mundo funk paulistano fizeram com que Adriano desistisse da carreira de Mc. Com isso sua visão passou a mudar e hoje faz muitas críticas a forma como as coisas estão sendo conduzidas no funk.

Nikiba - Os funkeiros que estouram saem e não voltam, não fazem um show na quebrada de graça pra molecada. Vai vê como era antes, é igual o Garden fala: antigamente você ia de chinelo para o baile e estava de boa, hoje é só ostentação.

Adriano sonha hoje com um funk que recupere as raízes que, segundo ele, foram perdidas.

EntrEvista com nikiba

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“Vivemos numa época em que os ideais de direitos humanos tomaram o centro do palco. Gasta-se muita energia para promover sua importância para a construção de um mundo melhor. Mas, de modo geral, os conceitos em circulação não desafiam de maneira fundamental a lógica de mercado hegemônica nem os modelos dominantes de legalidade e de ação do Estado. Vivemos, afinal, num mundo em que os direitos da propriedade privada e a taxa de lucro superam todas as outras noções de direito.” (Harvey, 2012).

Sobre o que falamos quando falamos de funk na cidade? Se o olhar assumir uma perspectiva histórica, o funk teve abordagens distintas ao longo do tempo. Nos anos de 1980, o funk era vinculado às páginas dos jornais que tratavam de cultura e tendência; nos anos de 1990, assume as páginas policiais como movimento a ser combatido, relacionando-o as favelas e ao crime. O funk vai ganhando espaço na medida em que aumenta o número de adeptos da expressão. Os morros cariocas viraram palco dos bailes funk, também chamados “pancadões”, atraindo pessoas de diferentes favelas e até jovens de classe média moradores da zona sul do Rio de Janeiro.

Esse cenário nos remete ao processo de urbanização brasileira. Os fins do século XIX marcou o Brasil por dois grandes eventos: a Abolição da Escravatura em 1888 e a Proclamação da República em 1889. Os dois eventos em questão prometiam um período de avanços para a jovem república, mas como expôs os estudos de Roberto Schwartz sobre a obra de Machado de Assis, “As ideias fora do lugar” marca nossa nação. Os negros, então libertos, foram privados da integração de fato na sociedade de classe e condenados a ocupar os territórios distantes das regiões centrais. A sobrevivência nos

espaços privados das politicas do Estado fez com que essas comunidades em formação buscassem suas próprias formas de sobrevivência. É neste momento também que o negro passa a ser associado à cultura da “malandragem”, tão bem descrita por Antônio Candido em seu clássico “A dialética da malandragem”.

O samba passa a ser a expressão desse povo marginalizado que resignifica suas duras vidas na dinâmica dos morros. No entanto, sua prática era associada à malandragem e foi criminalizada. Somente com o projeto de criação de uma “identidade nacional”, que articulava as politicas varguistas, e os jovens modernistas brasileiros de 1922, com o “Vamos descobrir o Brasil”, o samba, assim como a capoeira e o candomblé nas performances de Carmen Miranda, passam a ser encarados como símbolos nacionais, as escolas de samba “institucionalizadas” e a elite passa a consumir dessas expressões que antes reprimia.

Retomei esta perspectiva histórica para mostrar como o projeto de urbanização do Rio de Janeiro reflete o que aconteceu nas principais capitais brasileiras, guardadas as devidas proporções. O direito à cidade sempre provocou disputas territoriais, econômicas e também simbólicas.

O funk é uma expressão juvenil presente atualmente nas principais cidades brasileiras. Os jovens se articulam em torno de uma cultura que relaciona diversos aspectos que marcam no corpo sinais socialmente reconhecíveis na vestimenta, no linguajar, no consumo de determinadas bebidas etc.. Ao contrário do que aconteceu com o samba, o funk ainda não foi “acolhido” como expressão legítima da cultura jovem. A problemática aqui expressa são as características que implicam o “acolhimento” a tudo que não provém da cultura das elites. As condições de “acolhimento” geralmente perpassam a moralização da prática aos valores da burguesia e a normatização do Estado. Este processo descaracteriza significativamente a originalidade da expressão, ignorando, muitas vezes, a perspectiva dos atores principais do movimento enquadrando-os aos moldes do mercado.

À revelia de todas essas questões, o funk sobrevive e se materializa nas regiões periféricas das grandes cidades. As madrugas de várias “quebradas” são marcadas pelos bailes funk promovidos de forma espontânea, numa dinâmica própria, ainda por ser estudada, chamadas pelos jovens de “fluxo”. Os fluxos são espaços privilegiados de

o funk na cidadE

Por Marco Aurélio Cardoso Moura

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jovens de camadas pobres consumirem coisas nunca antes sonhadas. O funk atual manifesta muitas características desse processo, tendo na ostentação seu maior sinal.

Entender o baile funk (fluxo) como um aspecto da disputa pelo direito à cidade é fundamental para avançarmos na abrangência dos direitos humanos. A lógica interna dos bailes precisa ser respeitada e analisada pela mídia, poder público e a sociedade pela aproximação aos termos dos funkeiros(as). As atuais abordagens do tema tem sido etnocêntricas e não contribuem para um processo real de construção democrática que ainda está por vir.

vivência da cultura funk em sua totalidade. Os carros de som ou, esporadicamente, os MC´s tocam e cantam suas músicas de conteúdo socialmente reprovável. O consumo das bebidas alcoólicas e outras drogas lícitas, e ilícitas, é livre e as roupas de marca e grife são ostentadas principalmente pelos meninos, enquanto as meninas ostentam seus corpos com roupas curtas.

Toda e qualquer manifestação social no campo da cultura, política ou religião, está diretamente relacionado aos aspectos históricos, estruturais e conjunturais da sociedade. Entender a chamada pós-modernidade e a última década do governo Lula são fundamentais na compreensão real, sem discursos superficiais, do fenômeno funk.

Quando se fala em pós-modernidade a referência teórica principal é Zygmund Bauman, entretanto Jurandir Freire Costa nos oferece uma ideia importante no trecho que segue:

“Na moral do prazer sensorial, a função dos objetos é outra. O prazer das sensações se baseia na disposição física do corpo para ser estimulado. Diferentemente do prazer sentimental, que pode durar na ausência dos estímulos sensório-motores, o prazer sensorial depende do estímulo físico imediato e da presença do objeto fonte da estimulação”. (Costa, 2004).

A efemeridade que caracteriza diversas esferas da vida social, na chamada pós-modernidade, não deixaria a juventude de fora. O consumo passou a caracterizar a identidade que garante a inserção do individuo no convívio de algum grupo disponível para desenvolver a necessária sociabilidade. Podemos classificar o funk como uma possível identidade de grupo, apesar de sua fluidez e diferentes segmentações internas. Nesse aspecto o fluxo é justamente o espaço de “estímulo físico imediato” para o jovem ser reconhecido a partir de suas roupas, da bebida que estiver consumindo ou das relações que estever estabelecendo no momento. Tudo isso caracteriza a ostentação que ocupa papel fundamental para a identidade cultural do indivíduo no movimento funk.

O desenvolvimento deste fenômeno só é possível, nestas características, devido aos avanços sociais alcançados durante o governo Lula. Os programas sociais de acesso à renda, a diminuição dos índices de pobreza, o acesso a espaços antes de privilégio exclusivo das elites, dentre outras medidas importantes do governo do PT, proporcionaram aos

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“Inconscientemente/ Vem na minha mente inteira/ a loja de tênis /O olhar do parceiro feliz / De poder comprar/ O azul, o vermelho /O balcão, o espelho/ O estoque, a modelo/ Não Importa/ Dinheiro é puta/ E abre as portas”

(Racionais MC’s – Vida Loka Parte II)

A relação dos funkeiros(as) com o consumo é um fenômeno complexo que merece um olhar critico, mas que ao mesmo tempo se encontra dentro de um processo maior que marca a “cultura” do capitalismo e, mais especificamente, das noções de pertencimento das sociedades contemporâneas.

Com a ascensão do capitalismo comercial no século XV, a mercadoria, particularmente as importadas, configura entre as elites, europeias e coloniais, uma referência ao seu status social. Certas vestimentas ou especiarias importadas da Índia, o ouro e a prata trazidas da América, distinguiam os costumes dos grupos hegemônicos dos camponeses, na Europa, e dos escravos, no Novo Mundo.

Com a expansão do capitalismo industrial pela Europa, os produtos manufaturados se disseminaram pelo velho continente e se popularizaram, deixando de ser exclusivos às elites. A relação mais estreita entre sujeito e mercadoria, no velho continente, alterou sensivelmente a percepção destes a cerca do mundo, não somente por sua difusão em massa, como também pelas mudanças que ela orquestrou no espaço. Antigas regiões camponesas se transformaram em cidades bem urbanizadas e os antigos feudos se tornaram propriedades privadas conforme conhecemos hoje.

O mundo, dessa forma, saia de um estado natural para um estado da máquina,

o consumo como idEntidadE

Por Vitor Bortoleto

uma segunda natureza, esta, porém, construída pelo próprio homem. A aceleração da produção e circulação dos produtos alterou não apenas as relações dos sujeitos com os bens de consumo, mas também a própria percepção dos sujeitos acerca da sua realidade, acarretando uma transformação na cultura ocidental.

Assim, podemos dizer que as sociedades atuais se formaram a partir da íntima relação entre os sujeitos e as mercadorias, fenômeno esse que construiu uma cultura peculiar às sociedades capitalistas. A lógica por traz da noção de propriedade regulamenta não apenas os objetos passíveis de posse, como o carro, as roupas etc., mas também é sob essa mesma lógica que se fundamenta todo o pensamento da sociedade capitalista.

O sujeito capitalista interpreta o mundo como se este fosse todo composto pela mercadoria. Ela, que desde o capitalismo comercial está ligada ao status social de seu proprietário, avança sob outras áreas da vida das pessoas. Como dito acima, ela passa, no mundo capitalista, a intermediar as relações dos sujeitos com o meio em que eles vivem, as percepções destes ficam, digamos assim, viciadas sob sua ótica.

As necessidades humanas se associam às mercadorias, pois sob esta nova realidade não é mais possível que um dado homem cace, colete ou plante seu próprio alimento, ou mesmo faça sua própria roupa; precisa recorrer ao mercado para satisfazer suas necessidades fisiológicas, logo, desde os itens de subsistências aos bens mais insignificantes, tudo que o homem precisa é encontrado no mercado e sob a forma da mercadoria.

Ora, também associadas às mercadorias estão as necessidades fundamentais para a realização do sujeito capitalista. Para o psicólogo Maslow em sua “Pirâmide da hierarquia das necessidades” os seres humanos necessitam realizar as seguintes etapas para alcançar um grau pleno de felicidade: fisiológicas, segurança, amor/relacionamento, estima e realização pessoal. A visão fetichista da mercadoria, ou seja, essa ilusão que ela provoca nos homens, faz com que os sujeitos acreditem que somente por meio consumo das mercadorias é que eles possam-se tornar completamente realizados. As propagandas, bastante difundidas na televisão, internet e outros meios de comunicação, associam o uso de dados produtos ao alcance de tais etapas, vemos isso, inclusive, no caso dos relacionamentos amorosos, no qual certos produtos atribuem seu uso

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ao sucesso nas relações afetivas. Isso ocorre devido a essa necessidade do mercado capitalista de fazer aumentar cada vez mais o número de consumidores, a fim de escoar os produtos das prateleiras.

O enraizamento da forma da mercadoria na cultura das sociedades contemporâneas deslocou, inclusive, a ideia de cidadania para o campo do consumo. A partir das políticas neoliberais desencadeadas no início da década de 1980, a atuação dos Estados nos serviços sociais diminui drasticamente, delegando o Estado boa parte de suas responsabilidades à atuação do setor privado. Paulatinamente, os serviços essenciais, que constituem a cidadania, saem do plano do direito universal e se tornam um privilégio de poucos no restrito mundo do mercado. Nas sociedades que passaram por políticas neoliberais, o intermédio do cidadão com sua cidadania, ou seja, com seu pertencimento à comunidade, foi dado por meio da mercadoria, pois tanto educação, transporte, saúde e segurança se tornam comercializáveis e, consequentemente, de acesso exclusivo dos mais ricos, que podem comprá-los.

Pensar todo esse processo é fundamental para relacionar os funkeiros(as) a um de seus aspectos mais importantes, o consumo. Assim como aconteceu a outros grupos juvenis que criaram seu próprio estilo, em sua maioria, contestando os padrões normativos das elites, (dentre eles os hippies e os punks), o funk também elaborou sua identidade “subversiva” e contestadora. Mas ao contrários dos hippies, que negaram o mundo capitalista e tentaram constituir um modo de vida em paralelo a este, o funk o invadiu, passando a contestar as elites dentro de seus próprios espaços. Com os mesmos instrumentos que as elites forjaram, ou seja, a noção do consumo como forma de inserção social, o funk inverteu a lógica do consumo para si, utilizando-a de forma provocativa.

O funk, nesse sentido, se apropria da lógica do consumo, da qual lhe é passado pela cultura das elites, para ocupar os espaços tradicionalmente burgueses – o camarote, o shopping, a boate e etc – a fim de subverter a ordem desses locais e colocar sua marca. Os funkeiros quebram com a rotina dos ambientes das elites, impõe sobre eles a sua identidade se utilizam de uma linguagem própria, de elementos particulares, que provocam uma ruptura com a normalidade da burguesia, ruptura esta que os incomoda, gerando um conflito de classe. Sentindo-se acuadas e vendo os espaços que até então

eram de sua exclusividade serem “invadidos” por outros grupos, as elites conservadoras criminalizam ainda mais esses movimentos, proibindo o compartilhamento democrático do espaço, como podemos notar no caso da criminalização dos “rolezinhos” em São Paulo, que, na verdade, eram passeios de funkeiros, organizados pela internet, a dados shoppings da capital.

Com um olhar mais atento para a juventude em geral, foi possível detectar características regulares que se estendem a diferentes grupos de jovens. Ainda na ótica do medo, nossa geração teme principalmente morrer, sobrar e ficar desconectada. Aprofundando a análise no medo de “sobrar” é possível entender o funk integrado a uma totalidade social. O consumo, nesse sentido, passa a ser um ritual de inclusão no que concerne a cultura do funk e do capitalismo como um todo.

O medo de “sobrar” está relacionado ao que Bauman chama de “dor da inadequação”. O consumo se torna, com isso, uma estratégia de inserção grupal. O corpo no funk tem papel fundamental, ele é o principal alvo ao qual é direcionado as letras das músicas, a dança e, sobretudo hoje em dia, a vestimenta. A roupa quase que se tornou uma extensão do próprio corpo e é por ela que o individuo é imediatamente reconhecido

Crédito: Apu Gomes/ Folhapress (http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/22135-rolezinho-no-shopping-metro-tatuape#foto-354379)

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como pertencente ao grupo. Além disso, roupa e corpo se fundem, pois ambos são simbolicamente interpretados como propriedades, são ostentados nos fluxos do funk e possuem uma relação intrínseca entre os gêneros sexuais.

O conjunto composto por boné, óculos ray-ban, camiseta polo, shorts ou calça jeans ou moletom e tênis modelo esportivo para os meninos e blusinhas, shorts ou saias curtas e sandálias de salto ou tênis modelo esportivo para as meninas é o padrão a ser seguido. A marca/grife da roupa, tênis e acessórios também é critério importante no quesito ostentação. Abordar esse fenômeno a partir da realidade contextual é fundamental na medida em que os recursos motivados por esses jovens, predominantes das camadas pobres, porém pertencentes aos grupos que obtiveram melhorias econômicas na última década, são relevantes, pois o processo de aquisição dessas mercadorias envolve toda a dinâmica da vida social desses jovens. Seu trabalho e o dinheiro ganho são quase todo gasto com o consumo de roupas, bebidas e rolês.

A lógica da mercadoria que avança sobre diferentes aspectos da vida contemporânea tem um impacto fortíssimo na juventude. Um país cujas opções de lazer e cultura são um privilégio de poucos, as periferias criam suas próprias formas de vivenciar essa importante necessidade. O consumo dos artigos que constituem a identidade funk não está alheio aos aspectos ideológicos do mercado, mas já que a cidadania tem sido pautada mais pelos direitos do consumidor do que os direitos civis, o consumo passa a ser, sob essa concepção, o fator que os integra não só a seu grupo, como à sociedade capitalista.

Porém, vemos que tal integração ainda se mostra deficitária, e que o deslocamento da noção de cidadania para o campo do consumo provoca ainda certas distorções, tanto é, que a criminalização dos chamados “rolezinhos” evidenciou as limitações que o consumo tem em integrar os segmentos culturais oriundos das camadas mais baixas da população. Mas a relação entre o funk e o consumo está perfeitamente sincronizada com a cultura capitalista, e assim como qualquer outro grupo ligado a este mundo, como os roqueiros, sambistas etc.., os funkeiros não ficam atrás, e utilizam-se de forma peculiar o consumo para constituir sua identidade.

Fonte: https://latuffcartoons.files.wordpress.com/2014/01/alckmin-rolezinho-rolezodromo.gif

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“O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós fazemos com aquilo que fizeram de nós” (Jean-Paul Sartre).

Quando analisamos as condições de trabalho da juventude das periferias o que sempre vemos é uma situação de precariedade que vai desde a educação de má qualidade até os empregos de baixa remuneração e sem perspectiva de futuro. O funk é uma realidade cultural desses jovens que disputa os corações e as mentes das pessoas em diferentes âmbitos.

A criminalização a qual o funk sofre, principalmente, na sua imagem deturbada pela mídia, sobretudo o jornalismo policial, e a repressão policial aos bailes de rua, impede que o funk seja visto como realmente é. O funk se tornou um fenômeno que ultrapassa a ideia de lazer e cultura e a cada dia conquista mais espaço na ótica do empreendedorismo e da geração de renda.

O jovem periférico se depara com a realidade da necessidade de trabalhar desde muito cedo. A diferença entre estes e os jovens da classe média no quesito educação e trabalho são enormes.

“Para os jovens incluídos, a família é o grande ponto de apoio em sua travessia entre o mundo da educação e o mundo do trabalho. Quando eles se procuram e se experimentam, a família funciona como rede de proteção nos momentos críticos. Para os jovens ameaçados de exclusão, quando chega à adolescência, é a família que precisa deles para colaborar na estratégia de sobrevivência do núcleo familiar.” (Costa, 2004).

Os dados para o trabalho juvenil não são os mais otimistas: “Em pleno limiar

Quando o funk é trabalho

Por Marco Aurélio Cardoso Moura

do século XXI, a participação relativa do segmento etário de 15 a 24 anos no total da População Economicamente ativa (PEA) é de 25%, embora o jovem responda por 50% do desemprego nacional. Enquanto a taxa de desemprego aberto dos jovens gira em torno dos 18% a taxa média nacional esteve em 9,4% do total da força de trabalho, segundo o IBGE (PNAD), no ano de 2001.

A maior parte dos que não estudavam era composta de jovens que trabalhavam. Isto é, 10,6 milhões de jovens trabalhavam, porém não estudavam. Da mesma forma, percebe-se que entre os jovens inativos havia 35,3% que não estudavam, não trabalhavam nem procuravam emprego: algo em torno de 4,5 milhões de brasileiros (13,6% de todos os jovens no país).

Possivelmente isso aponta uma situação de inatividade forçada, que se associa ao curso da nova exclusão no Brasil. Isso se expressa e se reflete, em grande medida, em relação à escolaridade, logo que, do total dos jovens que estudam, 43,2% estavam no ensino fundamental, 43,5% estavam cursando o ensino médio e apenas 13,3% estavam no ensino superior.

Por outro lado, quando se leva em consideração os níveis de renda diferenciados, podem ser identificadas enormes desigualdades nas oportunidades de educação e trabalho entre os jovens. Constata-se que, na ocupação, são os jovens pertencentes às famílias de maior renda aqueles com maior acesso ao trabalho assalariado (77,1%), sendo que 49% dos jovens ricos que trabalham possuem contrato formal.” (Pochmann, 2004).

Os dados acima são uma amostra, um pouco desatualizada, mas eficiente da realidade juvenil no Brasil. Em meio a tudo isso, o funk tem criado algumas perspectivas para o jovem que se encontra excluído da inserção no mundo do trabalho.

O avanço da internet e das redes sociais tem criado um espaço privilegiado de divulgação do trabalho de muitos(as) jovens em diferentes segmentos artísticos e culturais. Os circuitos de Mc´s de funk aprenderam a potencializar o poder de divulgação dessas mídias e por elas lançam a todo momentos suas músicas e clips. Essas iniciativas que compõe verdadeiras cooperativas de gravadoras independentes é o espaço desenvolvido pelo próprio jovem para divulgar o seu trabalho.

Todos os Mc´s conhecidos atualmente como Guime, Pikeno e Menor, Ludmila,

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dentre outros, eram jovens periféricos que passaram pelo processo de divulgação na internet. Hoje são referências para outros jovens pobres que se reconhecem na imagem desses(as) Mc´s e os têm como espelho. Uma comparação feliz é o que acontece ainda com os jogadores de futebol que inspiram milhares de garotos a buscar um futuro melhor na prática do esporte.

Para além dos famosos Mc´s de funk há outros anônimos que já conseguem ganhar dinheiro com suas músicas e apresentações em pequenas casas de shows ou boates. O quadro que se desenha apresenta uma perspectiva ampliada do movimento funk e de como ele é capaz de mobilizar diferentes atores da comunidade.

As comunidades periféricas são palco dos pancadões ou fluxos. Estes são bailes funk promovidos pelos jovens que costumam acontecer durante a madrugada à margem da legalidade da lei. Um baile é composto por muitos aspectos: o público é predominantemente jovem; o consumo de álcool de outras drogas é intensivo; as músicas são, na maioria das vezes, tocadas em sons potentes de carros parados na rua e o fluxo de pessoas é constate e ininterrupto. A gestão deste espaço é feito por diferentes atores moradores; comerciantes e os próprios jovens. Nessa rede, a circulação de mercadoria e prestação de serviços movimenta um significativo capital dentro das comunidades.

O morador que possui um bar ou mercearia pode vender seus produtos durante os bailes. Os salões de cabeleireiro e de beleza recebe os/as jovens que frequentam o baile, atendendo a demanda do estilo funkeiro(a) desses(as) jovens. Lojas de roupas, tênis e bijuterias são frequentadas pelos jovens que buscam estar incluídos dentro da ostentação .

Neste cenário é possível observar que o funk é um movimento cultural que movimenta várias dimensões da vida social do jovem e das comunidades a que pertencem. Mais importante do que criminalizar é perceber o potencial de desenvolvimento local e de renda que o funk traz. Em um país tão desigual como o nosso, as fontes de sobrevivência dos excluídos deve ser não só acolhidas como valorizadas e incentivadas.

Assim como o funk, outras expressões culturais brasileiras foram desvalorizadas por não serem vistas como trabalho. O samba era criminalizado como ato de vadiagem. O sistema capitalista criou uma cultura de negação do direito ao ócio, repudiando aquilo

que não apresenta uma finalidade produtiva. Neste processo, o funk sofre aquilo que o samba sofreu no passado.

A epígrafe deste texto traz a seguinte mensagem: “O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós fazemos com aquilo que fizeram de nós” (Jean-Paul Sartre). O funk é recriação da realidade periférica. Os meninos e meninas envenenados pela desesperança de um sistema que os exclui, criam diariamente seus antídotos de voz e sobrevivência. Portanto, o funk é trabalho quando se dá as oportunidades para sê-lo.

Crédito: Making of do Fabrik Funk

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Tati: Iae Tchelo qual seu nome de verdade?Tchelo: MarceloTati: Então conta um pouco da sua história.Tchelo: Sou um moleque de quebrada, nasci na Brasilândia, moro no Elisa Maria. Sou

de família humilde. Nunca passamos fome, graças a Deus. Meu pai é motorista de ônibus e minha mãe costureira. Sempre estudei e meus pais sempre me deram educação, nunca precisei roubar, meus corres eram por mim mesmo. Terminei curso técnico, curso de inglês, curso de informática, mas meu gosto mesmo é pela música. Já tive grupo de pagode, mas não deu certo. Sempre me interessei por funk, dai um dia resolvi escrever umas músicas e agora vou por em prática. Isso tem uns dois anos e meio pra cá. Eu também danço Black, pagode, axé...

Tati: E como você vê o funk hoje?Tchelo: Hoje eu vejo o funk como uma expressão cultural que não para de crescer.

O funk não precisou das grandes mídias para crescer, hoje são elas que precisam de nós. As emissoras e rádios que chamam os Mc´s para cantar, falar e dar audiência.

Tati: E qual sua contribuição para o movimento?Tchelo: Em tudo que eu posso ajudar. Desde as letras das músicas que eu tento

que seja mais consciente, porque a molecada nos vê como exemplo. Pergunta lá pra molecadinha: Iae, o que você quer ser? Eu quero ser Mc.

Marco: Você percebe que é uma relação parecida com a que há com o jogador de futebol?

Tchelo: Igualzinho. Sabe por quê? Na minha época era assim com escolinha de

EntrEvista com tchElofutebol, todo mundo era de escolinha e queria ser jogador. Hoje isso mudou um pouco e ser Mc é opção. A galera tá vendo isso para além de diversão. Eles querem um futuro melhor.

Tati: Qual sua opinião sobre o seu público e as pessoas que não aprovam seu trabalho?

Tchelo: Eu acho que grande parte das pessoas que não aceitam é devido a algumas letras. Porque o ritmo do funk é gostoso, minha mãe é evangélica e curte.

Marco: E como vocês (Funkeiros) fazem essa separação no funk?Tchelo: Tem o proibidão que é um funk mais de apologia as drogas e ao tráfico. Tem

ostentação que é você mostrar o que já tem ou almejar o que quer ter um dia, e tem a putaria. Um senhor de 50 ou 60 anos ouvindo isso não vai aceitar e ai generaliza. Eu sofro preconceito, muita gente diz: Ah você cantava pagode e agora canta isso. Mas elas não vêm que eu fui buscar o meu melhor.

Marco: E suas letras se enquadram e quais dessas classificações?Tchelo: Ostentação. Eu mando ostentação e ousadia. Ousadia é um movimento que

apareceu ai para se distancia da putaria que é escrachado, fala desde os órgãos genitais, como fez, o que fez, quando fez. A ousadia não faz isso, a gente canta coisa do tipo: “Oh mulherada que dança é essa que o corpo fica todo mole...” Você está pondo o povo para dançar, você não está incentivando nada. Eu já fui evangélico e não consigo cantar putaria. O povo vai para o baile e quer o funk putaria.

Marco: E quem é a galera que vai para o funk?Tchelo: Os jovens. São os jovens de 30 para baixo.Marco: Mas você percebe qual a classe social mais presente.Tchelo: Tem gente que pensa que são só os pobres, mas eu vejo muito playboyzinho

no funk. Lá no Elisa mesmo vinha gente de todo lugar. A galera que só vai a balada vai ao funk em busca de aventura.

Marco: Mas o funk já entrou nas baladas.Tchelo: Sim, claro. Eu já fui fazer show em balada gringa mesmo.Tati: E o que você acha sobre os meninos da quebrada que ouvem ostentação, mas

não tem o dinheiro para comprar as roupas, os tênis, como fica isso?Tchelo: Eu acho que isso vai da cabeça de cada um. Eu sempre gostei de coisa de

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marca e eu sabia que meus pais não podiam comprar, mas nunca pensei em roubar, e eu tinha uns 10 anos na época, eram os anos 2000. A molecada de hoje já quer pensar logo em roubar para ter de qualquer jeito, eu não acho que é só o funk que está estragando as pessoas. Toda música tem ostentação e putaria.

Tati: Como você vê a imagem da mulher no funk?Tchelo: O funk tem muitas divisões. Tem a ostentação da mulher e a putaria. A

putaria é generalizada com a mulher, com casal, com grupo. Mas tem muita ostentação para mulher: “tá solteira tá na balada/ Esse é seu lema/ mulher ousada causadora de problema/ ela não quer compromisso/ não depende de ninguém/ na balada ou baile funk/ só gasta nota de 100”. A mina não depende de ninguém, ela vai com as amigas e tira a onda dela, então sabe qual é o mal das pessoas? É que elas só vêm o que acontece de ruim, não sabe valorizar as coisas boas. Teve família de funkeiros que saiu da miséria, deixou de passar fome porque conseguiu estourar no funk. Tem muito cara no funk que teve gente que investiu, mas têm outros que foi na raça, tocava uma música aqui, outra ali.

Marco: E qual a relação dos caras com as meninas que produzem funk?Tchelo: De igual para igual. Até mina que canta putaria é normal. O negócio é respeito. Marco: Como você entende a passagem rápida que alguns funkeiros têm com o

sucesso?Tchelo: Hoje tudo é novidade e tudo que é novidade impressiona. Mas não é que

o cara tá em baixa, mas ele sai de foco. Agora você saindo de São Paulo você vê que aquele cara que estava sumido está com muito show em Minas gerais, Bahia, Fortaleza... Os caras que estão famosos hoje em dia, o Mc Guime, Rodolfinho, Nego Blue não lança mais música, mas é que os caras estão trabalhando com aquelas musicas que estourou. É uma música por ano com clip e o nível dos caras é outro, radio e TV. Daí a batida muda.

Tati: E quais suas perspectiva pessoal para o funk no futuro?Marco: Ficar bem de vida. Eu querendo viajar, viajo. Quero comprar tal coisa, eu

compro. Não quero ser rico, tem muita gente que fica rico do nada e perde a vida, perde a paz. Eu almejo sucesso, mas ele não vem sem trabalho. Estou trabalhando, passando provação, mas é necessário. Eu quero correr atrás do meu, não quero nada de ninguém. Quero só o que é meu.

Marco: E você acredita que o funk te dará tudo isso? Tchelo: Tenho fé que sim.Marco: Como você enxerga o futuro do funk? Você consegue compará-lo ao

samba? Vai acontecer a mesma coisa? Pensando que o samba era criminalizado e hoje é reconhecido como símbolo nacional.

Tchelo: Acho que vai sim. O funk já ganhou seu espaço em nível nacional. No carnaval estava Claudia Leite, Psirico e Mc Guime. Daqui a pouco terá um trio elétrico só de funk na Bahia. Por isso quero correr atrás desse processo o quanto antes, quero tá junto desse progresso.

Marco: Você sofre preconceito dentro do funk?Tchelo: Não, no funk nunca. Agora sempre fui sossegado, não ligava quando me

chamavam de gordão, macaco, tento não me esquentar.Tati: E o que você deixa para a molecada da quebrada?Tchelo: Sempre digo para não desistir de seus sonhos. Se eu tivesse desistido lá

atrás eu não teria chegado até aqui. Eu ainda não ganho dinheiro, mas espero uma música estourar, hoje, onde canto de graça, vão pagar o meu preço.

Marco: Qual a importância dos funks de rua para o seu trabalho?Tchelo: Divulgação. Teve uma época que estava sem baile porque a policia tava

embaçando, fiquei chateado. Tinha feito uma música para dançar, era assim: “Ela vai no chão/ ela vai no chão/ batendo o bumbum no chão/ o bumbum no chão/ ai novinho tu é sensação”. Você estimula a dança e “novinha tu é sensação” é que tá o meu diferencial. Podia falar: “Ae novinha senta na piroca”, eu poderia falar isso, mas não fiz. Procurei fazer uma música para tocar em qualquer lugar. A vacilação tá ai, eu procuro não me envolver. Faz isso, pega a mina lá que não dá nada. O que? Dá nada o que. Tem que ter proceder.

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Sob um ponto de vista panorâmico, podemos perceber em qual posição o Funk se encontra na sociedade brasileira. Embora uma manifestação artística legitimamente brasileira e oriunda das mesmas camadas sociais que uma vez produziram o que é hoje considerado a maior referencia musical do Brasil: o samba; o funk se encontra definitivamente deslocado da proteção e do amparo das políticas públicas, seja em qual campo for: no lazer, no trabalho, na educação ou na cultura.

Percebe-se, com isso, que ao contrário de outros movimentos típicos entre jovens de classe média ou classe média alta, como o rock, o pop ou até mesmo o sertanejo, que vem ganhando espaço entre os jovens das grandes cidades do Brasil; o funk sofre ainda com um estigma que se deve à uma questão não só de luta de classes, mas também racial. Por suas principais referências provirem das regiões periféricas, tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro, e serem, em sua maioria, negros(as), há sempre uma tentativa classista e racista por parte da grande mídia em criminalizar o funk e rebaixá-lo quanto a sua “qualidade” artística e cultural.

Uma das forma de discriminação do funk é a sua associação ao uso de drogas, lícitas ou ilícitas. Como nosso trabalho bem salientou, a relação do movimento com as drogas é verídica, porém é válido ressaltar que o Funk não é exceção. Nas mais ricas baladas de música eletrônica do país há o uso indiscriminado de drogas ilícitas, não havendo nesse sentido qualquer perseguição ou proibição a elas por parte do Estado ou da grande mídia. Podemos alegar, nesse sentido, que a criminalização do Funk por parte do Estado tem uma íntima relação com um processo de luta de classes, escancarado no Brasil sob a forma de guerra às drogas, que atinge principalmente as regiões mais pobres e

conclusãodesamparadas de serviços sociais. Ora, já é sabido que a droga não é exclusiva às periferias das grandes cidades brasileiras e que o tráfico também estende seus tentáculos para as regiões mais nobres das mesmas, porém estas não sofrem cotidianamente com a violência da repressão policial como ocorre nos bairros periféricos.

A criminalização da pobreza, propagandeada pela grande mídia, ocorre de diversas maneiras. Uma delas, como dito acima, é a pretensa guerra às drogas, como forma de legitimação de um processo de massacre da população periférica, histórica no país. Outra faceta do mesmo processo é o que podemos chamar de marginalização da cultura periférica. Nesse sentido, o Funk passa hoje o que estilos musicais nacionalmente consagrados uma vez passaram, como o samba e o Rap, mas que só se firmaram no âmbito nacional depois de muita resistência por parte de seus atores.

A grande mídia reitera a associação da cultura do Funk com a criminalidade, legitimando as condutas de repressão por parte do Estado com base no combate às drogas e pela manutenção dos bons costumes – a moral das elites. O funk é “socialmente condenável” porque ele se apresenta como um estilo controverso a tais costumes, ele a todo momento questiona os padrões estéticos e morais das elites – inclusive dentro dos espaços tradicionais da burguesia.

É justamente por meio do Funk que a juventude periférica consegue se reconhecer enquanto uma coletividade, enquanto um grupo que compartilha de uma mesma realidade. O Funk, nesse sentido, é uma linguagem comum que lhes dá “liga”, que faz com que eles reivindiquem e constituam ao mesmo tempo seu próprio espaço, combatendo, através da estética e da performance, os costumes hegemônicos, ou seja, das elites. A educação, em especial quando ela é exercida nas periferias das grandes cidades, deve se voltar para esta linguagem. Não cabe à escola persistir em incutir a cultura das classes dominantes num ambiente onde já há valores estabelecidos, mas sim, cabe a ela desenvolver técnicas que se utilizem dessa linguagem – o Funk – em prol da construção de um novo conhecimento, como bem salientamos no texto sobre educação.

É por isso que há uma necessidade urgente, reconhecida pelo presente trabalho, em que os órgãos e as políticas públicas levem em consideração a realidade da juventude periférica, bem como o que há de mais autentico em sua cultura: o Funk. É preciso que o Estado, ao invés de se limitar às políticas de repressão ao movimento, incentive o

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Funk e consiga, por meio dele, formular novas políticas que ajudem a constituir entre a juventude uma noção de cidadania capaz de mudar definitivamente suas vidas. Que possam, por meio do Funk, atuar junto ao Estado na defesa de seus direitos, promovendo a cultura, a educação, o lazer e o trabalho.

agradeCimeNtOsAgradecemos primeiramente ao Centro Cultural da Juventude (CCJ) que vem nos

ajudando desde o começo com confiança e liberdade. Ao Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), que sempre esteve ao nosso lado. A Pastoral da Juventude da Arquidiocese de São Paulo por sua incansável luta pela juventude. E ao Instituto Pilar pela nova parceria.

Queremos lembrar das pessoas que trabalharam nesta edição: Rogério Fonseca e Pedro Barreto, nosso muito obrigado pela atenção e compromisso. E aos nossos familiares e amigos.

E a tod@s @s parceir@s.

CréditOsOrganização: Observatório da Juventude - Zona NorteDesigner gráfico: Pedro BarretoIlustração: Thiago FerreiraDiagramação: Rogério FonsecaRevisão: Brunno Figueiredo

CCJ - Centro Cultural da JuventudeTodas as atividades do CCJ são gratuitas.Horário de funcionamento: terça a sábado, das 10h às 22h; domingos e feriados, das

10h às 18h.Endereço.: Av. Deputado Emílio Carlos, 3641 - Vila Nova Cachoeirinha - 02721-200

- São Paulo/SP.Tel. (11) 3343-8999 | [email protected] | ccj.art.brFacebook.com/CCJuventude

são Paulo, Novembro, 2015Fonte: Amanhecer Contra a Redução

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POCHMANN, Marcio. Juventude em busca de novos caminhos no Brasil. In: Juventude e sociedade: Trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: ed. Fundação Perseu Abramo, 2004.

diCas Para saber mais:

Filmes: Documentário PIXO do diretor e produtor João Wainer. Escritores da liberdade.Fabrik funk: A realidade de um sonho é um documentário sobre o Funk em Cidade

Tiradentes.

rEfErências bibliográficas

Page 23: Noiz por Noiz - Funk

A arte da capa, produzida por Thiago Ferreira morador da Brasilândia Z/N, traz um dos contextos da diversidade do mundo do funk. A ostentação transmitida através de um diamante com as cores da Whipalla reflete os “batidões” nas caixas de som. O fluxo de pessoas segue na diversidade, afinal cada qual é diferente e tem seu protagonismo! O funk quanto cultura infere na sociedade juvenil e responde como forma de protesto nas periferias/quebradas.

Thiago tem 19 anos e desenha suas realidades transmitidas através de sua janela, cotidiano e coração.