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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA UNB INSTITUTO DE LETRAS IL DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS E TRADUÇÃO - LET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE TRADUÇÃO POSTRAD NORMA LINGUÍSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA TRADUÇÃO DE PERSÉPOLIS ANA CLÁUDIA VIEIRA BRAGA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO BRASÍLIA DEZEMBRO/2013

Norma Linguística e Oralidade Fingida

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by Ana Claudia Vieira Braga

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB

    INSTITUTO DE LETRAS IL

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS E TRADUO - LET

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD

    NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA

    TRADUO DE PERSPOLIS

    ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA

    DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS DA TRADUO

    BRASLIA

    DEZEMBRO/2013

  • ii

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB

    INSTITUTO DE LETRAS IL

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS - LET

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD

    NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA

    TRADUO DE PERSPOLIS

    ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA

    ORIENTADOR: PROF. DR. MARCOS ARAJO BAGNO

    DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS DA TRADUO

    BRASLIA

    DEZEMBRO/2013

  • iii

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB

    INSTITUTO DE LETRAS IL

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS - LET

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD

    NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA

    TRADUO DE PERSPOLIS

    ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA

    Dissertao de mestrado submetida ao programa de ps-

    graduao em estudos da traduo, como parte dos

    requisitos necessrios obteno do grau de mestre em

    estudos da traduo.

    Aprovada por:

    ________________________________________________________________

    Dr. Marcos Arajo Bagno, Doutor Lingustica , UnB (orientador)

    ________________________________________________________________

    Dr. Mark David Ridd, Doutor Literatura Comparada, UnB (examinador

    interno)

    ________________________________________________________________

    Dr Patrcia Vieira Nunes Gomes, Doutora Lingustica, INEP (examinador

    externo)

    BRASLIA, 20 DE DEZEMBRO DE 2013

  • iv

    Ao Grande Esprito Criador, dono de toda a sabedoria.

    Ao meu orientador Marcos Arajo Bagno, que com sua

    generosidade e sabedoria me reensinou a aprender.

  • v

    Sou figura reduzida e de pouco aparecimento. Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa.

    Guimares Rosa

  • vi

    AGRADECIMENTOS:

    A Deus, sem o qual nem nada sou.

    Secretaria de Educao do Distrito Federal que proporcionou dois anos de afastamento

    remunerado para que eu pudesse realizar essa pesquisa e concluir meus estudos.

    Universidade de Braslia, ao Departamento de Lnguas Estrangeiras e ao Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Traduo (PsTrad) por oportunizar o desenvolvimento de meus

    estudos.

    Ao tradutor Paulo Werneck que gentilmente contribuiu com uma entrevista esclarecedora e

    que muito ajudou para o desenvolvimento dessa pesquisa.

    Ao professor Marcos Bagno, meu generoso orientador, sem o qual esse trabalho no poderia

    ser realizado. Sua pacincia, generosidade e sabedoria me ensinaram como o conhecimento

    pode ser compartilhado. Com ele aprendi a reaprender e principalmente aprendi a gostar de

    reaprender.

    Ao professor Mark David Ridd pelas contribuies dadas no Exame de Relatrio de Pesquisa.

    Aos professores do departamento e do programa, especialmente a Dr Junia Barreto e Dr

    Alice Maria de Arajo Ferreira que inspiraram em mim, por meio de suas aulas, o hbito da

    pesquisa.

    Aos meus amigos e familiares, minha me Amlia, minhas irms Rute e Aline, meus

    sobrinhos Bruno e Joo Pedro, meu sobrinho-neto Artur que so partes inerentes de minha

    histria.

    minha av Wanda Werneck, um agradecimento pstumo. Ainda hoje ouo sua voz dizendo:

    minha neta ser poliglota, estudar vrias lnguas. Para voc v, eu sou gratido.

    Ao meu tio/pai Humberto Karam, tambm uma homenagem pstuma, de quem pude seguir

    exemplos e receber incentivos para tudo na vida.

    minha amiga/irm Ana Alves, com quem partilhei todos os momentos desse Mestrado e de

    quem pude ouvir conselhos, sugestes e palavras motivadoras.

    Aos meus amados filhos: Wanda e Humberto, vocs so a razo de todo meu esforo para

    querer ser uma pessoa melhor.

    Ao meu marido Francisco Darci. Sou grata, meu amor, pela sua compreenso, seu carinho seu

    incentivo, seu apoio, sua pacincia, suas sugestes, dentre outras coisas. Voc , na minha

    vida, insubstituvel.

  • vii

    RESUMO

    Pode-se perceber, a partir de um primeiro contato, que as histrias em quadrinhos so um

    gnero de texto que requer uma leitura peculiar, visto que a unio da imagem com o texto

    escrito amplia o universo de percepo do leitor. Diante da voz do texto escrito e da imagem,

    como realizar a traduo de uma histria em quadrinhos? De certa forma, h uma ampliao

    dos recursos que sero aplicados na traduo: o autor utilizou a imagem que deve ser

    considerada pelo tradutor como chave de leitura. A partir dos elementos presentes na

    linguagem dos quadrinhos, o trabalho do tradutor dessas histrias no se restringe ao texto

    escrito, preciso levar em conta outros desafios que vo desde uma linguagem icnica at as

    vrias normas lingusticas incidentes no texto. Suas caractersticas de linguagem fazem do

    discurso dos quadrinhos um gnero parte principalmente pela presena essencial da imagem,

    pela linguagem icnica, oralidade fingida e o uso abundante dos dilogos. Analisaremos as

    representaes de normas presentes no romance grfico Perspolis de Marjane Satrapi por

    meio de exemplos de oralidade fingida com vistas anlise lingustica das normas que

    incidiram sobre o texto final traduzido, dando nfase aos traos gramaticais do portugus

    brasileiro: demonstrativos esse/este, formas do imperativo, relaes pronominais voc/te,

    emprego dos verbos ter e haver, emprego de ns e a gente.

    PALAVRAS CHAVES: traduo; norma lingustica; histria em quadrinhos; oralidade fingida

  • viii

    ABSTRACT

    It can be noticed from the first contact, the comics are a genre of text that requires a peculiar

    reading, as the union of the image with the text written broadened the range of perception by

    the reader. Faced with the written text and image voice, how to perform the translation of a

    comic ? In a way, there is an increase in resources to be applied in translation: the author used

    the image that should be considered by the translator as a key to reading. From the elements

    present in the language of comics, the work of the translator of these stories is not limited to

    written text , one must take into account other challenges ranging from an iconic language to

    the various linguistic norms incidents in the text . Their language features make discourse a

    genre of comics apart, mainly by the essential presence of the image, the iconic language,

    fictive orality and the abundant use of dialogue. Analyze the representations of rules present

    in the graphic novel Persepolis by Marjane Satrapi through examples of mock oral linguistic

    analysis with a view to the standards that focused on the final translated text , emphasizing the

    grammatical features of Brazilian Portuguese: demonstrativos esse/este, formas no

    imperativo, relaes pronominais voc/te, emprego dos verbos ter e haver, emprego de ns e

    a gente.

    KEYWORDS: translation, linguistic norm; comics; fictive orality

  • ix

    RSUM

    Il est possible, partir d'un premier contact, se rendent compte que les bandes dessines sont

    un genre de texte qui ncessite une lecture particulire, puisque lunion de l'image avec le texte crit largi le champ de perception du lecteur. A la voix de l'crit et de l'image, comment

    effectuer la traduction d'une bande dessine ? D'une certaine faon, il ya une augmentation

    des ressources qui doit tre applique dans la traduction : l'auteur a utilis l'image qui devrait

    tre examine par le traducteur comme une cl de lecture. A partir des lments prsents dans

    le langage de la bande dessine, le travail du traducteur de ces histoires n'est pas limit au

    texte crit, il faut tenir compte d'autres dfis comme le langage iconique et les diffrentes

    normes linguistiques incidents sur le texte. Leurs caractristiques linguistiques transforment

    les BD dans un genre spcial de discours principalement par la prsence de l'image essentielle

    du langage iconique, de l'oralit feinte et de l'utilisation abondante de dialogue. Nous allons

    analyser les reprsentations des rgles prsentes dans le roman graphique Perspolis travers

    des exemples de l'oralit feinte, l'analyse linguistique avec une vue sur les normes axes sur le

    texte final traduit en mettant l'accent sur les caractristiques grammaticales du portugais

    brsilien: l'usage de pronoms dmonstratifs este/esse , formes de l'impratif , relations de

    pronoms voc / te , l'emploi de verbes ter/haver et de a gente e ns.

    MOTS-CLS: traduction; norme linguistique; bande dessine; oralit feinte

  • x

    SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................1

    CAPTULO 1

    A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS

    1.1. Introduo ....................................................................................................................5

    1.2. Linguagem, que linguagem? ........................................................................................6

    1.3. De desenhos em quadrinhos a arte sequencial: elementos grficos dos quadrinhos...8

    1.4. A linguagem dos quadrinhos e a traduo: olhos de ler e ver ...................................11

    1.5. A oralidade fingida e os quadrinhos: do falado ao escrito representando o falado...17

    1.6. O romance grfico Perspolis ...................................................................................20

    CAPTULO 2

    NORMA LINGUSTICA E TRADUO

    2.1. A norma lingustica ....................................................................................................24

    2.2. Norma lingustica e traduo .....................................................................................29

    2.3. Lngua falada/lngua escrita: mais um caso de hibridismo.........................................31

    2.4. Portugus brasileiro contemporneo: um conceito ....................................................34

    2.5. Marcas de normas lingusticas analisadas na traduo do romance grfico Perspolis

    para o PB............................................................................................................................35

    CAPTULO 3

    CORPUS DA PESQUISA E PRESSUPOSTOS PARA ANLISE

    3.1. A estrutura do romance grfico Perspolis de Marjane Satrapi .................................38

    3.2.A oralidade fingida em Perspolis...............................................................................41

    3.3. Normas das ocorrncias lingusticas no portugus brasileiro.....................................46

    3.3.1. Nova gramtica do portugus contemporneo (1985)................................47

  • xi

    3.3.2. Moderna gramtica portuguesa (1999)........................................................49

    3.3.3. Gramtica Houaiss da lngua portuguesa (2008).........................................51

    3.3.4. Gramtica pedaggica do portugus brasileiro (2012b)..............................54

    CAPTLO 4

    A REPRESENTAO DE NORMA E OS TRAOS DE ORALIDADE FINGIDA NA

    TRADUO DE PERSPOLIS

    4.1. O hibridismo inevitvel das HQ e normas que se misturam.......................................59

    4.2. O portugus da traduo de Perspolis.......................................................................61

    4.2.1. Metodologia de anlise................................................................................61

    4.2.2. Pronomes demonstrativos- formas -ss- e -st-...............................................62

    4.2.3. Imperativo indicativo/subjuntivo..............................................................72

    4.2.4. Relaes pronominais...................................................................................81

    4.2.5. Verbos ter e haver.........................................................................................85

    4.2.6. A gente e ns................................................................................................91

    4.3. Concluses sobre a anlise das ocorrncias................................................................96

    CONCLUSO..................................................................................................................98

    BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................100

    ANEXO

  • 1

    INTRODUO

    Pode-se, a partir de um primeiro contato, perceber que as histrias em quadrinhos so

    um gnero de texto que requer uma leitura peculiar, visto que a unio da imagem com o texto

    escrito amplia o universo de percepo do leitor. Diante da voz do texto escrito e da imagem,

    como realizar a traduo de uma histria em quadrinhos? De certa forma, h uma ampliao

    dos recursos que sero aplicados na traduo: o autor utilizou a imagem que deve ser

    considerada pelo tradutor como chave de leitura.

    A partir dos elementos presentes na linguagem dos quadrinhos, o trabalho do tradutor

    dessas histrias no se restringe ao texto escrito preciso levar em conta outros desafios que

    vo desde uma linguagem icnica at as vrias normas lingusticas incidentes no texto.

    No gnero quadrinhos, os bales expressam a fala de cada personagem e os autores

    usam os recursos grficos para expressar a oralidade na escrita, o que leva o pesquisador (e,

    por conseguinte, o tradutor) a rever os conceitos de lngua falada e lngua escrita bem como

    suas inter-relaes. Nas histrias em quadrinhos (daqui em diante HQ) toda representao

    escrita de usos supostamente orais ser sempre um fingimento, impossvel de escapar do

    hibridismo que caracteriza todo e qualquer uso da lngua.

    O texto traduzido de HQ influenciado por uma grande variedade de normatizaes.

    Em geral, as escolhas do tradutor buscam corresponder ao gnero do texto, ao pblico alvo e

    s normas editoriais impostas pelos agentes normatizantes. A relao entre lngua

    falada/escrita muito estreita e a linguagem dos quadrinhos oferece uma caracterstica

    essencial a mais: a oralidade fingida.

    Alguns autores consideram, ainda hoje, as HQ um gnero paraliterrio, outros como

    um suporte para o texto narrativo ou literrio. No entanto, o gnero quadrinhos altamente

    representativo da cultura contempornea e ocupa um espao cada vez maior no campo

    editorial.

    As caractersticas de linguagem empregada fazem do discurso dos quadrinhos um

    gnero parte principalmente pela presena essencial da imagem, pela linguagem icnica,

    oralidade fingida e o uso abundante dos dilogos.

  • 2

    A unificao da imagem e do texto escrito apresenta algumas peculiaridades na leitura

    das HQ. O autor de quadrinhos usa a imagem para descrever personagens, ilustrar situaes

    narrativas e localizar espacialmente as histrias, o que resulta em um texto escrito com frases

    curtas, ausncia de explicaes textuais e descries limitadas, j que os desenhos esclarecem

    elementos importantes para o continusmo da narrativa quadrinhstica. A imagem substitui

    parte do contedo lingustico gerando um texto hbrido de imagem e linguagem escrita.

    A linguagem icnica dos quadrinhos a representao grfica da linguagem por meio

    de imagens, smbolos ou ilustraes. Imagens de rabiscos ou traados irregulares podem

    expressar ideias de dor ou palavras de difcil compreenso. Um smbolo convencional pode

    substituir uma descrio que exigiria um extenso texto escrito. O tamanho da letra ou sua

    forma de apresentao (negrito, itlico ou sublinhado) expressam sentimentos como raiva,

    tristeza ou intolerncia. As onomatopeias so tambm um exemplo de linguagem icnica

    porque cumprem a funo de representar graficamente um som de fala.

    Nos textos das HQ esto presentes recursos da oralidade fingida que so uma tentativa

    de representar a fala espontnea por meio da linguagem escrita. Essa representao da fala

    artificialmente construda na oralidade fingida aceita com naturalidade, no gnero

    quadrinhos, pelos leitores.

    O uso abundante de dilogos tem uma estreita relao com a oralidade fingida e as

    normas que incidem sobre o texto traduzido. A oralidade fingida influencia na forma de

    apresentao dos dilogos que precisam parecer o mais espontneos possvel. As normas da

    lngua falada espontnea incidem sobre o texto dos dilogos que so representados pela lngua

    escrita. Por fim, o texto do tradutor passa por agentes normatizantes antes da publicao que

    tambm adicionam ao conjunto suas normas, tornando o texto final um exemplo hbrido de

    texto normatizado.

    O romance grfico Perspolis, de Marjane Satrapi, traduzido do francs para o

    portugus brasileiro por Paulo Werneck, o corpus dessa pesquisa. um romance grfico

    (daqui em diante RG), porque conta uma histria em quadrinhos longa e em forma de livro.

    A iraniana Marjane Satrapi usou o gnero quadrinhos para contar sua biografia desde sua

    infncia em Teer at sua partida definitiva do Ir para a Frana.

    Analisaremos as representaes de normas presentes no RG por meio de exemplos de

    oralidade fingida com vistas anlise lingustica das normas que incidiram sobre o texto final

  • 3

    traduzido, dando nfase aos traos gramaticais do portugus brasileiro (daqui em diante PB):

    demonstrativos esse/este, formas do imperativo, relaes pronominais voc/te, emprego dos

    verbos ter e haver, emprego de ns e a gente.

    Os objetivos a serem alcanados so:

    Analisar a linguagem verbal/no verbal e a representao de marcas de normas

    lingusticas presentes na oralidade fingida no texto final traduzido de Perspolis para o PB.

    Analisar algumas ocorrncias de oralidade fingida na traduo dos quadrinhos;

    Identificar alguns fatos gramaticais presentes no texto do RG.

    Pretendemos com essa pesquisa responder s perguntas: que representaes de normas

    lingusticas do portugus brasileiro esto presentes no texto final traduzido de Perspolis?

    Quais so os traos de oralidade fingida presentes no texto traduzido para o PB? Como o

    tradutor Paulo Werneck e os agentes normatizantes trabalharam as representaes de norma e

    qual delas privilegiaram no seu texto final traduzido de Perspolis? Como a oralidade fingida

    foi considerada para a traduo dos bales que representam nas HQ a fala de cada

    personagem?

    Para tanto, no Captulo 1 apresentamos as caractersticas do gnero quadrinhos e uma

    definio de sua linguagem. Fazemos uma anlise do percurso dos quadrinhos at a atualidade

    com o fim de mostrar sua importncia enquanto gnero textual, buscando como referencial as

    obras de quadrinistas, linguistas e estudiosos do gnero. Trabalhamos termos prprios das HQ

    para conceitu-los e esclarecer seus significados e importncia na construo de uma

    linguagem especfica das HQ. Discorremos sobre a traduo de quadrinhos e a oralidade

    fingida. Para encerrar o captulo, trabalhamos o conceito de romance grfico e as

    caractersticas de Perspolis enquanto gnero quadrinhos.

    No Captulo 2, apresentamos a relao entre norma lingustica e traduo buscando

    referencial em linguistas e estudiosos. Levantamos questionamentos sobre a relao da lngua

    falada com a lngua escrita para compreender suas representaes de normas. Empregamos o

    conceito de portugus brasileiro contemporneo e justificamos as marcas de normas

    lingusticas analisadas na traduo do romance grfico Perspolis para o PB.

  • 4

    O Captulo 3 traz um panorama da estrutura do RG Perspolis. Apresentamos algumas

    ocorrncias de oralidade fingida e sua relao com as normas lingusticas. Fazemos tambm

    um levantamento comparativo do panorama descrito pelos especialistas gramticos e

    linguistas sobre as representaes das normas nas ocorrncias dos fatos gramaticais do RG

    Perspolis selecionados para essa pesquisa.

    O Captulo 4 apresenta os fatos lingusticos tabelados quantitativamente e uma anlise

    lingustica detalhada da oralidade fingida e dos fatos gramaticais selecionados de trs

    pranchas narrativas.

    Por fim, seguem-se as consideraes finais sobre esse trabalho.

  • 5

    1. A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS

    1.1. Introduo

    Ao pensarmos em histria em quadrinhos, vm tona os elementos de um texto

    ldico, uma linguagem simplificada especialmente direcionada para um pblico que busca

    facilidade e leitura banal.

    Cirne (2000) explica que as histrias em quadrinhos (daqui em diante HQ), em seus

    primrdios, foram consideradas por muitos estudiosos e psiclogos textos nocivos formao

    dos jovens, histrias escritas sem nenhuma expressividade artstica ou textual. Esse novo tipo

    de texto, considerado confuso, que era o novo suporte dos quadrinhos, foi apresentado ao

    pblico pelos especialistas da poca como uma mdia popular de pouca importncia e sem

    nenhum atrativo intelectual.

    Para muitos psiclogos, os malefcios da leitura de quadrinhos eram

    surpreendentemente maiores do que a total ausncia de leitura, j que viciava o crebro em

    uma estranha e limitada forma de escrever, fato explicado por Anselmo:

    Durante muito tempo as HQ, apontadas como prejudiciais ao desenvolvimento intelectual das

    crianas, sem qualquer fundamento cientfico, foram somente objeto de estudos de cunho

    histrico e artstico. (ANSELMO, 1975, p. 32).

    Anselmo retrata uma triste realidade do nascimento das HQ: o preconceito que

    recebeu sua linguagem. As acusaes que recebia o conjunto texto/figura iam desde

    desenvolvimento da preguia mental em seus leitores at a apresentao de material escrito ou

    tipogrfico falho. Mas o maior crime cometido pelas HQ se referia influncia negativa de

    suas histrias e personagens, principalmente com o aumento da violncia entre os jovens aps

    a Segunda Guerra Mundial.

    Quanto linguagem das HQ, Anselmo afirma:

    Coupire (1970) transcreve a atitude hostil de outro expert que assim se expressou: eu desprezo os comics porque eles no tm nenhuma sutileza, nenhuma beleza. Tornam as coisas

    demasiadamente fceis. Em lugar de boa descrio, colocam o mau desenho. Reduzem as

    maravilhas da linguagem a grosseiros monosslabos e a narrao no passa de um filme

    impresso. Detesto sua falta de estilo e de moral, o seu apelo ao analfabetismo e m gramtica.

    Abomino sua fatigante dureza, suas sensaes fceis e seu humorismo imbecil. (ANSELMO, 1975, p. 90).

  • 6

    Apesar de todos os descaminhos, os quadrinhos conseguiram se firmar, nos anos

    1980, como nona arte, antecedidos pelas oito primeiras que so a Arquitetura, a Pintura, a

    Escultura, a Gravura, o Desenho, a Fotografia, o Cinema e a Televiso.

    Com a linguagem oral mais estudada e valorizada, os textos de dilogos, to utilizados

    em quadrinhos, so enriquecidos por estruturas mais prximas da lngua falada caracterizando

    personagens e proporcionando variaes dos universos lingusticos aos seus leitores. Sendo

    assim, a to repudiada linguagem das HQ se transforma em um caminho plural de teorias e

    reflexes.

    1.2. Linguagem? Que linguagem?

    As HQ nasceram como um documento expressivo, textos repletos de uma linguagem

    peculiar: juno entre imagem e texto verbal. Unio que se transformou em uma linguagem

    especfica, segundo Eisner:

    Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma srie de imagens repetitivas, e

    smbolos reconhecveis. Quando so usados vezes e vezes para expressar ideias similares,

    tornam-se uma linguagem forma literria se quiser. E aplicao disciplinada que cria a gramtica da Arte Sequencial. (EISNER, 1995, p. 08)

    Mesmo com crticas contrrias, so consideradas um gnero literrio de grande acesso.

    Uma mdia popular extremamente requintada em alguns aspectos, que, ao contrrio de limitar

    a capacidade de desenvolvimento da leitura, contribuiu para um acesso mais popularizado e

    ldico s obras literrias clssicas, como a famosa reescrita em quadrinhos da obra Auto da

    barca do inferno de Gil Vicente, que conserva todos os dilogos do texto original de 1517,

    adaptao que foi feita para a linguagem dos quadrinhos pelo cartunista Laudo Ferreira

    (1977). Esse somente um dos vrios exemplos de obras literrias clssicas reescritas em

    quadrinhos, realizando, na prtica, o que denominado nos estudos da traduo como

    traduo intersemitica, definida em Plaza (2001):

    A traduo intersemitica ou transmutao foi definida por Roman Jakobson como sendo aquele tipo de traduo que consiste na interpretao dos signos verbais por meio de sistemas de signos no verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo da arte verbal para msica, a dana, o cinema ou pintura, ou vice-versa, poderamos acrescentar.(PLAZA, 2001, p. XII)

    Os quadrinhos como traduo so um produto da traduo intersemitica e

    demonstram que a linguagem das HQ transporta a literatura para outro campo semitico: o

  • 7

    indissocivel conjunto imagem/texto verbal da linguagem quadrinhstica, como afirma

    Guerini:

    Na transposio de um lugar (a literatura) para outro (HQ) torna-se imperativo conseguir no

    texto alvo aquilo que se realizou imagtica e poeticamente no texto de partida. (GUERINI,

    2013, p.16)

    Para que os quadrinhos sejam observados como um suporte de traduo, Guerini

    destaca as caractersticas da linguagem dos quadrinhos cuja compreenso passa tanto pela

    linguagem verbal como pela linguagem visual, as quais, como sistemas semiticos, trabalham

    conjuntamente na produo dos sentidos. Faremos, ento, um direcionamento terminolgico

    sobre qual conceito de linguagem ser usado na determinao de uma linguagem dos

    quadrinhos.

    A linguagem de domnio individual e de domnio social, ela no se classifica

    unicamente em uma categoria dos fatos humanos, dificultando a definio de sua unidade.

    Em cada texto est um sistema de linguagem. Sendo assim, cada texto nico e singular, e

    escrito com uma inteno especfica.

    Eisner explica o conceito de quadrinhos como arte sequencial e trata das temticas

    implcitas no universo artstico daqueles que trabalham com a linguagem especializada das

    HQ:

    A arte sequencial, particularmente como aplicada s histrias em quadrinhos, destina-se

    essencialmente reproduo. Portanto, devem visar quase simultaneamente esttica e s

    tcnicas. H poucas oportunidades para se improvisar nesta disciplina. A arte sequencial,

    especialmente nas histrias em quadrinhos, uma habilidade estudada, que pode ser aprendida,

    que se baseia no emprego imaginativo do conhecimento da cincia e da linguagem, assim

    como da habilidade de retratar ou caricaturar e de manejar as ferramentas do desenho.

    (EISNER, 1995. p.144)

    As situaes comunicativas em que as linguagens especializadas esto inseridas

    tambm cabem no universo de produo das HQ. Em geral quem procura informaes mais

    especficas sobre a produo das HQ um pblico que pretende aprender mais sobre a nona

    arte e tem um interesse explcito em suas tcnicas e estruturas peculiares.

  • 8

    1.3. De desenhos em quadrinhos a arte sequencial: elementos grficos dos quadrinhos

    As HQ apresentam um texto com intenes deliberadas de representar a fala, mas

    possvel reconhecer que, no incio, principalmente na era de ouro dos quadrinhos, os anos

    1930, surgiram clssicos do gnero como Flash Gordon de Alex Raymond que tem em sua

    linguagem um delineamento narrativo, envolvendo pranchas, conceito grfico assim

    explicado por Mota:

    A prancha a pgina desenhada hoje tambm uma unidade de significao desta forma de linguagem. Frequentemente, faz-se corresponder durao de uma cena com dimenses de

    prancha.

    Em primeiro lugar, possvel conceber-se um tipo de prancha em que existe autonomia entre

    texto e imagem e a narrativa dominante. (MOTA, 2000, p. 27)

    Nos valendo da definio de prancha enquanto bloco narrativo, importante destacar a

    diferena entre um momento de representao oral da linguagem dos quadrinhos e um

    momento especificamente narrativo.

    Relativamente aos quadrinhos e sequncia tempo/espao o autor se torna impessoal,

    fato que segundo McCLoud desencadeia um processo criativo significante:

    O quadrinista aprende a enxergar alm das tcnicas de diagramao e roteiro pra ver a imagem

    como um todo: ritmo, drama, humor, suspense, composio, tema. Logo, isso tudo est sob seu

    comando! (McCLOUD, 1995, p. 45)

    Em relao narrativa e s pranchas, Mota insiste na dependncia entre texto e

    imagem:

    A relao de dependncia pode surgir entre imagem e texto resultando a composio num

    domnio de elemento visual. A narrativa surge quase como uma consequncia necessria e

    lgica da organizao (grfica) da prancha. Nesta hiptese, a principal consequncia reflecte-se

    ao nvel do sentido de leitura, que posto em causa. A leitura, tal como conhecemos,

    desestabilizada, criando-se uma linguagem multimedia, com diferentes sentidos narrativos.

    O peculiar relacionamento entre imagem na banda desenhada vai ser relevante na prpria

    planificao da histria, para l da mera construo da vinheta, da sequncia ou da prancha.

    (MOTA, 2000, p. 33).

    medida que os quadrinhos passaram a fazer parte do cotidiano social, em sua

    elaborao se tornaram dispensveis as explicaes sobre as imagens, e para seu pblico a

    automatizao da compreenso da linguagem indissolvel entre imagem e texto escrito foi a

    consequncia inevitvel.

    Mesmo quando o autor da HQ disponibiliza somente o recurso do dilogo,

    apresentando um texto premeditadamente com inteno da oralidade, se houver uma relao

  • 9

    profunda entre a imagem e o texto, os quadrinhos so considerados uma arte sequencial da

    narrativa:

    As HQ so uma arte da narrativa construda por meio de mecanismos especficos que devem

    ser examinados sem jamais negligenciar como eles participam na narrao1. (COUPERIE,

    1967, p. 7) [traduo nossa]

    Um plano de imagem nas HQ ser s um desenho, se no houver um sentido narrativo

    em seu texto. Entra em cena, ento, o papel das sarjetas. Assim definidas por McCloud:

    O espao entre os quadros o que os aficionados das histrias em quadrinhos chamam de

    sarjeta. Apesar da denominao grosseira, a sarjeta responsvel por grande parte da magia e

    mistrio que existem na essncia dos quadrinhos!

    aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginao humana capta duas imagens distintas e as

    transforma em uma nica ideia.

    Nada visto entre os dois quadros, mas a experincia indica que deve ter alguma coisa l!

    (McCLOUD, 2005, p. 66)

    Esse espao entre os requadros, que caracteriza as HQ, o elo entre a compreenso

    das tcnicas de narrao dos quadrinhos e a continuidade da histria. Por causa das sarjetas, o

    ttulo de Arte Sequencial foi dado aos quadrinhos, arte da sequncia tambm a arte dos

    cortes. Saber espaar uma ideia e lanar mo do recurso das sarjetas so recursos

    comunicativos preciosos, como explica Cirne:

    Ousamos dizer: o corte que , por essncia crtica, um corte grfico ser uma das marcas registradas da especificidade quadrinhstica, naquilo que semioticamente constitui a sua

    narrativa. Isto , nos quadrinhos, o espao narracional se demarca pelo lugar do corte. Um no

    dito que pode ser preenchido pela imaginao do leitor a cada momento, a cada impulso, a cada

    vazio o vazio que antecede a nova imagem. (CIRNE, 2000, p. 13)

    Sendo assim, as sarjetas variam de acordo com o objetivo narrativo. Sem um corte a

    mensagem poderia ser prejudicada em sua continuidade. Deste modo, os autores variam as

    regras da narrao, aqui vistas em seu conceito descritivo, relacionadas imagem e ao verbal

    que tecem o texto. A continuidade est principalmente nos brancos entre as imagens, cada

    retngulo tem seu valor. O trabalho com a dosagem de informao nos quadros mede de

    forma importante o nvel de interesse das informaes: muita informao, menos interesse na

    ao. O dinamismo das imagens e dos textos caracteriza, em geral, a teia da ao e da

    compreenso do leitor. Resnais, falando sobre cinema, completa:

    1 La BD est un art du rcit qui se construit au moyen de mcanismes spcifiques dont on doit faire lexamen sans jamais ngliger dobserver comment ils participent la narration. (COUPERIE, 1967, p. 7)

  • 10

    A continuidade est nas lacunas entre os quadros de um filme. quase a mesma histria em

    quadrinhos, especialmente nas HQ de ao e aventura, nas quais cada requadro significativo.

    O desenho em si no to importante como o ritmo que vem da supresso do que acontece

    entre duas imagens ou dois requadros. Para a diegese, o que acontece entre os requadros to

    importante como o teor desses. O filme, como a histria em quadrinhos, pode perder muito do

    seu valor se muitas imagens so inseridas entre os intervalos. Cada requadro deve desfrutar do

    privilgio de construir uma corrente contnua com o seguinte2. ( RESNAIS, 1972, p. 44)

    [traduo nossa]

    Para estabelecer uma linguagem das HQ preciso haver uma conceituao mnima,

    tentar responder o que este labirinto semitico da arte sequencial. Falar somente de um texto

    com desenhos no atribui nona arte sua verdadeira funo enquanto linguagem. A definio

    de Cirne deixa claro o lugar relevante das sarjetas nessa caracterizao da linguagem da arte

    sequencial:

    Quadrinhos so uma narrativa grfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes

    que agenciam imagens coladas, rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas. O lugar significante do

    corte que chamaremos de corte grfico ser sempre de um corte espcio-temporal, a ser preenchido pelo imaginrio do leitor. Eis aqui a sua especificidade: o espao de uma narrativa

    grfica que se alimenta de cortes igualmente grficos. (CIRNE, 2000, p. 23)

    A linguagem especializada das HQ tem termos que so empregadas com significados

    especficos. O termo bales, por exemplo, para os profissionais dos quadrinhos, um recurso

    grfico que apresenta a fala dos personagens.

    No incio da histria das HQ a insero do texto nas imagens no ocorria da mesma

    maneira, mas em 1896, a partir da reunio dos notveis em Lucca na Itlia, o uso do balo foi

    o marco da estrutura de linguagem dos quadrinhos como conhecemos hoje. Mota define os

    bales, a partir de suas caractersticas, da seguinte forma:

    O balo torna visvel o som. O balo normal no compromete. O balo-bolha (ou balo-nuvem)

    reflecte no uma fala, mas um pensamento. O balo elctrico normalmente utilizado para

    sons provenientes de aparelhos. O balo fala-baixo exprime um sussurro. A enorme variedade de bales enquadra-se nas regras da leitura. Os cartuchos so explicaes do

    narrador. (MOTA, 2000, p. 113)

    2 La continuit rside dans les blancs entre les images dun film. Il en est presque de mme des bandes dessines, surtout dans les B.D. daction et daventure, o chaque rectangle est signifiant. Le dessin mme nest pas aussi important que ce rythme qui nat de la supression de ce qui se passe entre deux images et ou deux

    rectangles. Pour la digse, ce qui se passe entre les rectangles est aussi important que le contenu des rectangles

    mmes. Le film, comme la B.D., peut perdre beaucoup de son intrt si trop dimages sont insres entre les cadres. Chaque rectangle doit jouir du privilge denchaner en continu avec le suivant. (RESNAIS, 1972, p. 44)

  • 11

    A especificidade de caractersticas do termo balo na rea de especialidade das HQ

    reafirma sua linguagem especializada, bem como estrutura a temtica de insero do texto

    escrito na unidade imagem-texto da arte sequencial.

    As palavras da linguagem comum tm estatuto terminolgico na rea especfica das

    HQ e, no plano conceitual da especialidade instaurado pela comunicao especializada e

    divulgada atravs dos textos, elas traduzem perfeitamente a linguagem especializada da arte

    sequencial.

    1.4. A linguagem dos quadrinhos e a traduo: olhos de ler e ver

    possvel, a partir de um primeiro contato, perceber que as histrias em quadrinhos

    so um suporte semitico que proporciona uma leitura diferente, na medida em que sua

    linguagem resignifica a noo tradicional de texto, pois inclui em seu conceito no s o

    verbal, mas tambm o visual. Sendo assim, a traduo de HQ tambm apresenta importantes

    aspectos a serem considerados.

    Se para o leitor comum, aquele que faz das HQ um meio de entretenimento ou de

    leitura preferida e tem como acesso a esta mdia a tira diria do jornal e a revista, preciso

    exercer sobre a leitura da arte sequencial habilidades interpretativas, visuais e verbais,

    atribudas principalmente pelo cdigo nico entre texto e imagem (EISNER, 1995, p.8), para

    o tradutor de HQ, as habilidades necessrias esto contidas principalmente na considerao de

    que a linguagem verbal e a linguagem visual so indissociveis e formam uma unidade a ser

    considerada na traduo dos bales, que so os objetos da traduo nos quadrinhos.

    Para uma compreenso da linguagem das HQ, Cirne caracteriza a mdia dos

    quadrinhos por meio de seus elementos semiticos fazendo uma ponte entre a esttica e a

    semitica, disciplinas que, embora representem campos distintos, colaboram entre si na

    consolidao da linguagem das HQ como uma nova esttica:

    A rigor, a esttica e a semitica so campos distintos, mas ousemos pensar suas

    problematizaes. Qualquer nova perspectiva esttica, inclusive, s existe na medida em que

    uma conquista semitica, experimental ou no, se consolida formalmente enquanto signo capaz

    de investir, do social ao cultural, na aventura do imaginrio: a descoberta de novos caminhos

    significantes, como no dadasmo, como na antropofagia, como no neoconcretismo. Como no

    poema/processo. (CIRNE, 2000, p. 26)

  • 12

    Ao se deparar com as imagens, o tradutor tem uma ampliao dos recursos que sero

    aplicados na arte de traduzir: o autor utilizou a imagem como cdigo de leitura e essa deve ser

    considerada pelo tradutor.

    H tambm a caracterizao imagtica, na maioria dos textos em quadrinhos, da

    personalidade das personagens e, em alguns casos, da linguagem cmica/humorstica, jogo de

    palavras, expresses idiomticas, grias, ironia, dentre outras que exigem do tradutor uma

    sensibilidade para a seleo de recursos com a finalidade de utilizar adequadamente as

    imagens na realizao de seu texto final.

    De acordo com Rosas (2003), a traduo do humor/ironia requer um conhecimento

    das culturas de cada idioma, pois tanto o texto original de partida quanto o texto traduzido tm

    imagens prprias para sua leitura.

    Se acrescentarmos ao debate a necessidade do conhecimento da linguagem

    especializada das HQ pelo tradutor, a traduo da arte sequencial se torna ainda mais peculiar,

    pois as sugestes imagticas e a narrao dos textos em quadrinhos precisam ser consideradas

    como um discurso especializado.

    Pode ser simples a ideia de que o tradutor s traduz o texto dos bales e seus cartuchos

    e, porque no traduz as imagens, essas so irrelevantes no processo tradutrio. No entanto, a

    imagem e o texto so indissociveis na linguagem dos quadrinhos e a escolha do tradutor ao

    traduzir um balo sempre estar associada s imagens do quadro e estrutura narrativa que

    configuram a peculiaridade da linguagem das HQ.

    Para Meschonnic a traduo de textos uma traduo de discurso e no de lngua:

    No se traduz mais a lngua. Ou, ento, desconhece-se o discurso e a escritura. o discurso,

    e a escritura, que preciso traduzir. (MESCHONIC, 2010, p. 20)

    Considerando que a unidade da linguagem, para Meschonnic , no se resume s

    unidade da palavra, a unidade passa a ser o discurso, todo o sistema do discurso (p. 31), o que

    se traduz discurso. A partir dessa afirmao, a linguagem dos quadrinhos, que tem um

    discurso prprio, precisa ser bem conhecida para ser traduzida.

    Os quadrinhos se revelam como uma linguagem especfica que tem um discurso

    especfico. Ao traduzir um balo, o tradutor precisa conhecer as caractersticas do discurso

    quadrinhstico e a partir deste conhecimento estruturar suas escolhas, sempre respeitando a

    indissociabilidade entre o verbal e a imagem.

    H uma tendncia natural em interpretarmos as imagens apenas como uma ilustrao

    da realidade. No entanto, mais do que imagens de coisas, as ilustraes representam, na

  • 13

    maioria das vezes, um conceito ou uma ideia. Nos quadrinhos elas compem o discurso do

    autor, tanto quanto o texto verbal.

    Vejamos as pranchas a seguir da historia Love story do romance grfico Perspolis em

    francs e em portugus brasilero de Satrapi (2007/2011): a imagem da personagem atada aos

    locais no primeiro requadro sugere a diviso de tempo de Marjani entre os amigos e outras

    atividades. Na sentena em francs a autora usa a voz ativa: ses amis anarchistes

    madoptrent que poderia ser facilmente traduzida por uma sequncia direta: seus amigos

    anarquistas me adotaram, no entanto, por conta da imagem representar uma atitude pouco

    ativa da personagem, o tradutor, Paulo Werneck, optou pela voz passiva no portugus: fui

    adotada pelos anarquistas amigos dele. A imagem de uma ao sem a participao da

    personagem sugeriu uma opo verbal que tambm demonstrasse a passividade.

  • 14

    No primeiro requadro percebemos que o tradutor manteve o nome da escola em

    francs Lyce franais de Vienne. Esses elementos visuais-textuais que, nos quadrinhos, no

    so nem cartuchos narrativos e nem fala dos personagens so denominados inscries. As

    inscries em Perspolis aparecem tanto em farci como em francs e alemo e, na maioria das

    vezes, o tradutor optou por no traduzi-las. A razo dessa opo parece estar ligada ao idioma

    falado no momento em que essas inscries aparecem. O tradutor precisava passar a ideia de

    que, naquele momento, a personagem conversava, lia ou ouvia o farsi, francs ou alemo.

    Em Perspolis h uma presena marcante das onomatopeias, que para Saussure

    (1995), diferente de outras categorias lingusticas, representam signos motivados. Na prancha

    abaixo, aparecem representados sintomas de uma bronquite: chiados, tosse, espirro e tosse

    com sangue.

    Na verso francesa os sons so representados pela relao letra/fonema/pronncia do

    francs. Algo que, por semelhana, represente o cone referencial do som de uma tosse. O

    tradutor, a partir das imagens presentes na HQ, precisou buscar equivalentes onomatopeicos

    na relao letra/fonema/pronncia no portugus: som da tosse no francs: MPF KKOF KOF

    por outro lado no portugus: MPF COFF COF. O espirro no francs: KEUH KEUH, no

    Portugus TXIM TXIM.

  • 15

    Para Santaella (2005) existem trs tipos de signos icnicos, a saber: a imagem, o

    diagrama e a metfora. Quando tratamos de onomatopeia, que a representao de sons por

    meio de palavras ou letras, a autora cita Anderson e sua obra Uma gramtica do Iconismo

    (1999) para explicar que, ao se aprofundar nos conceitos sobre os signos motivados, Anderson

    demonstra que h uma padronizao de sons repetidos que representam fenmenos idnticos

    ou similares. No caso das onomatopeias representadas na prancha de Perspolis, considerando

    que os sons de cada letra em idiomas diferentes tambm so pronunciados de acordo com sua

    prpria conveno, as escolhas do tradutor esto relacionadas diretamente imagem e ao que

    ela representa enquanto mensagem icnica.

    Em seu artigo A imagem enformada pela escrita, Anne Marie Christin discorre

    sobre o emprego da imagem, no incio da escrita, como um smbolo dos pensamentos e no s

    como uma utilizao banal da representao do concreto. Para tanto, Christin recorre ao

    emprego da ideia humana de combinar figuras-smbolos com o fim de que o produto final

    fosse compreendido pelo leitor como um conjunto que produzisse um sentido, previamente

    concebido pelo autor, imaginado e ordenado premeditadamente (CHRISTIN, 2004, p. 65).

  • 16

    Nas HQ, as imagens representam o texto em si, que pode ou no ter como outro

    recurso a linguagem verbal. A imagem em um nexo narrativo conta uma histria implcita no

    universo dos desenhos, como afirma Barboza:

    E ainda que numa HQ se recupere todo um romance sem se fazer uso de uma palavra sequer,

    ainda assim, a fala subliminar do inventor da trama, rede textual repleta de frutos colhidos no

    mar da poesia, no silncio gritar.( BARBOZA, 2004, p. 11)

    Para o tradutor de HQ preciso considerar que os cones presentes no desenho tm

    relao intrnseca com o smbolo das palavras e que h uma premeditao do emprego das

    imagens com os desenhos. Relacionando sempre imagem e texto como indissociveis, o

    tradutor das HQ recebe dos desenhos informaes icnicas que determinam suas escolhas, a

    partir de uma anlise cultural, lingustica e/ou imagtica do texto das HQ, como no exemplo

    anterior da traduo das onomatopeias.

    Atentando para a observao de Anne-Marie Christin (2006) de que dando

    privilgio, na anlise da imagem, ao seu suporte que ser possvel encontrar as premissas

    icnicas da escrita, o tradutor poder optar por solues significativas em suas opes ao

    traduzir os textos das HQ, sempre relacionando imagem e texto, sem perder de vista as

    estruturas lexicais mais evidentes no discurso intrnseco e peculiar da linguagem dos

    quadrinhos.

    Isso implica em uma ratificao de que os quadrinhos tm um discurso especializado

    e, portanto, quando traduzido, trar no texto em outro idioma um discurso tambm

    especializado que leva em conta tanto as palavras dos bales como as imagens e as

    caractersticas narrativas presentes em seus textos.

    Para o tradutor, alm de ter em mente uma definio da linguagem dos quadrinhos,

    preciso reconhecer nas HQ seu suporte artstico de grande importncia, principalmente pelo

    seu alcance enquanto texto, literatura e produto da mdia de massas. J em 1975, Anselmo

    afirmava que as HQ deveriam ser classificadas como meio de comunicao de massa (MCM)

    porque tinham caractersticas essenciais como:

    Envolvimento com mquinas de mediao da comunicao, a impresso, por exemplo; atinge

    vasta audincia em breve perodo de tempo; as mensagens originam-se de uma ampla

    organizao de profissionais e diviso de trabalho; reflete a educao de um povo; difundem

    instantnea e rapidamente mensagens; estendem a informao, a diverso e o ensino ao homem

    comum, combatendo privilgios no acesso informao. (ANSELMO, 1975, p. 23)

  • 17

    Reportando a importncia que a leitura de quadrinhos tem para a educao do leitor e

    tambm para a formao do hbito de leitura, sempre pertinente lembrar que os quadrinhos

    se tornaram textos preferidos de crianas e adolescentes, alcanando os adultos de forma

    definitiva com o surgimento dos romances grficos (daqui em diante RG).

    Os RG (em ingls grafic novel) so, segundo Braga, livros que contam uma histria

    longa por meio da arte sequencial. O termo usado para definir as distines subjetivas entre

    um livro e outras histrias em quadrinhos (BRAGA & PATATI, 2006, p. 67). Foi Will Eisner

    quem popularizou o termo romance grfico, que apareceu na capa de seu livro A contract

    with God (1978). No entanto, o formato de histrias em quadrinhos mais extensas e com

    temticas sociais ou filosficas tem como precursor Richard Kyle que usou o termo nos anos

    1960 (BRAGA & PATATI, 2006, p. 68). Atualmente, o termo se aplica a edies

    encadernadas publicadas para estruturar uma histria longa em quadrinhos.

    1.5. A oralidade fingida e os quadrinhos: do falado ao escrito representando o falado

    Em geral, elementos da fala so transcritos para um texto em passagens de dilogos

    com objetivos variados, dentre eles o de caracterizar as personagens, sua personalidade, sua

    classe social, seu grau de instruo. Brumme (2008) conceitua a oralidade fingida como a

    variedade de manifestaes orais que se pretende refletir no texto escrito e que so

    confrontadas com problemas como as diferenas culturais, a relao norma-uso, a relao

    oral-escrito e os recursos de uma lngua para outra. A oralidade fingida tambm pode ser

    classificada como construda, j que h uma iluso de que uma representao fiel da

    linguagem falada na escrita.

    As histrias em quadrinhos so textos que, por causa de seus recursos grficos

    representados pelos requadros, bales e sarjetas, tm uma estrutura hbrida de gnero textual

    na qual esto presentes normas da linguagem oral e escrita. Os smbolos, imagens, expresses

    das personagens e caractersticas da fala estruturam uma oralidade fingida (fictive orality),

    conceito assim definido por Sinner:

    A oralidade fingida uma variedade lingustica situacional que difere da fala espontnea em

    vrios aspectos. A fala na fico o produto de recriao ou evocao estilizada por parte de

    um autor. Embora o realismo e a autenticidade possam ser as qualidades mais celebradas, em

    ltima instncia, as funes literrias e a dimenso semitica do dilogo impem restries

  • 18

    significativas sobre as decises tomadas tanto pelos autores do texto-fonte como pelo tradutor3.

    (SINNER, 2009, p. 436) [traduo nossa]

    Sinner chama a ateno para uma anlise da oralidade fingida com o intuito de

    observar a representao de norma especfica:

    Na maioria dos estudos sobre oralidade fingida realizados sob uma perspectiva translatolgica se enfoca a distncia da oralidade real para determinar os padres e as convenes da representao do oral na fico supondo, como j assinalei, que no coincidem com a prpria natureza do fictcio

    4. (SINNER, 2009, p. 437) [traduo nossa]

    Na narrativa contada em quadrinhos, cada personagem assume um estilo oral. H uma

    espcie de marca da oralidade. Como a linguagem das HQ composta por recursos especiais,

    termos especiais e ainda sofre certa oscilao dependendo das personagens, a oralidade

    fingida ainda mais marcante.

    Segundo Guilhelm Naro (2008, p. 107), as HQ so um gnero excepcional de

    oralidade fingida porque constituem uma representao do oral que aceita pelos leitores. H

    marcas profundas da oralidade nas HQ e os bales so uma representao grfica do falar. As

    onomatopeias, o jogo de palavras e at as interpretaes de estruturas completamente

    inventadas, como a linguagem de animais, caracterizam a linguagem das HQ e suas

    especificidades.

    Alm desses fatores, a histria em quadrinhos tem a mensagem visual, que de forma

    definitiva parte integrante do corpus da mensagem. O tradutor precisa levar em

    considerao o elo indissolvel entre texto e desenho, fato que condiciona suas escolhas ao

    traduzir.

    Pensando na traduo e no tradutor, a predominncia da representao oral na escrita

    das histrias em quadrinhos necessita de uma ateno especial. Uma ironia em francs pode

    no representar o mesmo efeito quando traduzida para o portugus brasileiro

    3 The fictive orality, a situational linguistic variety, differing from spontaneous speech in various respects. Speech in fiction is the product of stylised recreation or evocation by an author. While realism and authenticity

    may be the most celebrated qualities, ultimately, the literary functions and the semiotic dimension of dialogue

    place significant constraints on the decisions taken both by the source text authors and the translator. (Sinner,

    2008, p.436) 4 En el grueso de los estudios de la oralidad fingida se han realizado muchos trabajos recientemente desde una

    perspectiva translatolgica se enfoca la distancia de la oralidad real, para determinar las pautas y convenciones de la representacin de lo oral en la ficcin suponiendo, como he sealado, que no coinciden por la propia naturaleza de lo ficticio. (Sinner, 2009, p. 437)

  • 19

    (daqui em diante PB). Alm do mais, apesar dos bales representarem a fala dos personagens,

    essa representao est efetivada em um texto escrito, que limita muitos aspectos reais da

    oralidade.

    Nos requadros abaixo, que fazem parte da prancha narrativa La fte (A festa) de

    Perspolis aparece um ditado infantil em francs que tem rimas: sors de ta cachtte, ne sois

    pas mauvitte! No texto traduzido para o PB por Paulo Werneck, o ditado no foi escrito com

    rimas e nem mesmo pareceu uma quadrinha infantil: sai do esconderijo, no seja frouxo! As

    escolhas do tradutor no consideraram a rima. O tradutor tambm no buscou expresses no

    PB que refletissem um ditado popular ou infantil como no texto em francs:

    Na traduo desses requadros, Werneck considerou a espontaneidade da fala das

    crianas e optou pelo adjetivo frouxo que poderia ter sido traduzido por covarde. Outra

    observao diz respeito norma do modo imperativo: conforme j habitual no PB, h o uso

  • 20

    simultneo de formas atribudas pela norma-padro tradicional ao pronome tu (sai) e ao

    pronome voc (seja). Cabe lembrar que a forma prevista por essa norma-padro para o

    pronome tu (s) totalmente desconhecida dos falantes do PB.

    Esse hibridismo de normas denominado terceiro cdigo por Baker, que assim o

    explica:

    O conceito de terceiro cdigo deve ser mais explorado se quisermos explicar as peculiaridades

    da lngua de traduo de uma forma mais matizada, como um fenmeno distinto. Por exemplo,

    inegvel que a copresena de cdigos no a nica restrio em vigor na traduo: outras

    presses podem ocorrer e contribuir para a estrutura distintiva do texto traduzido. Alm disso, a

    prpria natureza dessa copresena de cdigos tem de ser esclarecida. Esta exigncia surge do

    fato de que a mera presena de dois cdigos em um nico evento no suficiente para

    distinguir a traduo de outros processos, tais como em um enunciado ou texto escrito de um

    aluno de uma segunda lngua nos quais se reconhece igualmente que o aprendiz emprega

    conscientemente dois cdigos5. (BAKER, 1998, p. 3) [traduo nossa]

    Para Baker, o tradutor utiliza um terceiro cdigo lingustico nas tradues. Esse cdigo

    um processo consciente ou inconsciente de representaes do idioma de chegada. Variaes

    lexicais e de normas so processadas e aparecem de forma marcante no texto traduzido.

    1.6. O romance grfico Perspolis

    Perspolis uma srie de quatro histrias em quadrinhos autobriogrfica e histrica

    realizada em preto e branco por Marjane Satrapi e tem caractersticas de um romance grfico.

    A autora retrata as etapas marcantes de sua infncia e adolescncia em Teer at sua difcil

    entrada na vida adulta. Essa srie um grande sucesso de edio mundial e em 2003 vendeu

    sessenta mil exemplares de seus trs primeiros livros, o sucesso se manteve at 2007 quando a

    obra foi adaptada para o cinema por Vincent Paronnaud e pela prpia autora, quando obteve

    o prmio do festival de Cannes. Foi traduzida para o PB por Paulo Werneck e editada pela

    Companhia da Letras em 2007.

    5 La notion de troisime code doit tre examine plus fond si nous voulons rendre compte des particularits de la langue de traduction d'une faon plus nuance en tant que phnomne distinct. Par exemple, il est indniable

    que la coprsence de codes n'est pas la seule contrainte jouer en traduction : d'autres contraintes s'exercent et

    contribuent la structuration distinctive du texte traduit. De plus, la nature mme de cette coprsence de codes

    demande tre clarifie. Cette exigence dcoule de ce que la simple prsence de deux codes dans un mme

    vnement ne suffit pas distinguer la traduction d'autres processus, tels un nonc ou le texte crit par un

    apprenant de langue seconde, o on reconnat galement que l'apprenant ou l'interlocuteur emploie

    consciemment deux codes. (Baker, 1998, p.3)

  • 21

    Perspolis apresenta em seu texto recursos lingusticos bem caractersticos que

    enfatizam a ironia, pois uma histria poltica e religiosa com facetas de crtica social

    revoluo islmica que ocorreu no Ir no fim da dcada de 1970. Por ser uma narrativa em

    quadrinhos, apresenta uma linguagem especfica na qual o verbal e o imagtico so

    indissociveis.

    A opo de Satrapi foi pelo desenho em preto e branco em tons de cinza, sem o

    rebuscamento grfico de algumas HQ. Os desenhos tm traos arredondados e no tm

    tridimensionalidade. A distribuio das histrias na obra no tem numerao de pginas e na

    verso francesa est dividida em livros. Perspolis foi publicada aos poucos e est organizada

    em blocos numerados de um a quatro. No interior dos livros so apresentadas pranchas

    desenhadas com ttulos que procuram demonstrar a ideia principal de cada bloco narrativo.

    Pensando na oralidade representada nos textos escritos das HQ, se verifica a

    necessidade de se considerar o texto de Perspolis, em sua maioria, como uma representao

    escrita da fala. Para Bagno (2012b), as semelhanas entre lngua escrita e lngua falada so

    significativas e por isso devem ser valorizadas enquanto texto com parmetros e registros

    semelhantes de uso. Os textos carregam em si um hibridismo de gneros. Nos quadrinhos a

    oralidade e a escrita convivem de forma a caracterizar e estruturar uma manisfestao

    semioticamente hbrida, assim explicada por Bagno:

    Toda produo textual na atualidade, falada e/ou escrita, se configura inexoravelmente como

    uma manifestao semioticamente hbrida que mobiliza os multimeios sonoros visuais,

    grficos, tridimensionais etc. que as novas tecnologias de comunicao e informao tm

    colocado ao nosso dispor. (BAGNO, 2012b, p. 347)

    A linguagem dos quadrinhos em Perspolis corresponde a um gnero hbrido textual

    que intenta representar a fala atravs de textos escritos e demonstra com marcas especficas a

    oralidade fingida. Elementos da comunicao oral so transcritos para o texto com objetivos

    variados, dentre eles caracterizar as personagens, sua personalidade, sua classe social, seu

    grau de instruo.

    Nos prximos requadros, retirados da prancha La fte (A festa) de Perspolis, temos

    exemplos da inteno de representar a fala a partir das caractersticas dos personagens com

    elementos da oralidade fingida e representao de normas. Na fala da reprter de televiso o

    tradutor buscou estruturas lingusticas mais monitoradas como: recusou-se a dar asilo ao X e

  • 22

    sua famlia e quem vai receb-lo , j na fala da criana: quem esse a?, a espontaneidade

    prevalece.

    No RG Perspolis existe a presena marcante de grias para os jovens, termos polticos

    para os adultos ditos engajados, termos especficos para os revolucionrios e tambm, nos

    textos narrativos, em que os bales da oralidade no aparecem frequentemente, nos

    deparamos com termos histricos.

    O idioma de partida, no caso o francs, recebe a influncia de grias, expresses

    idiomticas, ironia, regionalismos, e no caminho para a chegada ao idioma alvo, o PB, o

    tradutor busca os mesmos efeitos na lngua alvo com o objetivo de transmitir a mensagem

    atrelada aos cones dos desenhos.

    Podemos observar que as sarjetas em Perspolis so bem definidas, h espaos

    brancos largos que delimitam a narrativa quadrinhstica, proporcionando ao leitor uma

    organizao na continuidade narrativa. A presena de onomatopeias, os desenhos de bocas e

    olhos nas personagens demonstram a inteno icnica de ilustrar as reaes emocionais das

    personagens.

  • 23

    Na anlise do texto traduzido de Perspolis preciso considerar que a autora, Marjani

    Satrapi, no tem como lngua materna o francs, e sim o farsi, principal lngua do Ir. Satrapi

    nasceu em Rasth, no Ir, e aprendeu francs no Liceu Francs de Teer. Publicou Perspolis

    em francs, que deve ser considerado como um texto hbrido, j que no produto de um

    falante nativo da lngua. possvel que, para a verso final de seu texto, Satrapi tenha

    recorrido a revisores e falantes nativos. Ao escrever em francs as falas de iranianos, a autora

    recorre oralidade fingida, na medida em que aparecem nos dilogos em francs aspectos

    traduzidos do discurso de cada personagem. Bagno enfatiza o processo pelo qual passa um

    texto traduzido antes de sua publicao e explica:

    Por fim, preciso recordar que, entre a traduo feita pelo profissional e a chegada de um livro

    (ou outra forma de suporte) publicao (impressa ou on-line), o texto passa por diversas

    etapas de retextualizao, constitudas pelos trabalhos de reviso, preparao, diagramao,

    copydesk etc. Em cada uma dessas etapas estar em ao, inevitavelmente, a representao de

    norma prpria a cada um desses profissionais. (BAGNO, 2012a, p. 30)

    No caso de Perspolis, tanto o texto em francs como o texto traduzido para o PB

    passaram por essas instncias de normatizao. Para o texto em francs o intuito de

    normatizar o francs de Satrapi que no falante nativa e, para o texto em PB, normatizar as

    escolhas do tradutor Paulo Werneck.

    Em entrevista dada por Paulo Werneck para esse trabalho (anexo), o tradutor afirma

    que as intervenes dos editores em seu trabalho com Perspolis foram bem-vindas, abaixo o

    trecho completo da resposta de Werneck.

    h) Em seu texto traduzido final, houve muita interferncia da editora antes da

    publicao? Voc considera essa interferncia como um grau muito ou pouco alto?

    Houve, mais do que uma interferncia, uma interlocuo de alto nvel com a Marcia Copola,

    que uma das profissionais de texto mais competentes e sensveis do pas. Ela fez a preparao

    de texto, que, para alm das questes tcnicas, de padronizao, uma experincia de

    interlocuo intelectual, de leitura cerrada. A Companhia das Letras tem uma cultura

    intervencionista, americana, na qual me criei e que julgo necessria. Sem ela, o tradutor fica

    sozinho tomando decises solitrias e difceis. Ter um interlocutor nessa hora um privilgio.

    Eu j trabalhava cotidianamente com a Marcia, observava o trabalho dela, mas ser editado por

    ela foi muito importante. O trabalho dela uma coisa que ainda precisa de um reconhecimento

    mais amplo. O Milton Hatoum, se no me engano, abriu para pesquisa os originais de livros

    dele preparados por ela. Elio Gaspari fez uma nota sobre ela que diz tudo sobre esse

    participante secreto da edio de livros. Ela ainda preparou o texto do Bernardo Carvalho e

    muitos outros grandes autores. (Entrevista com Paulo Werneck, 12/09/2013, anexo)

    Pela resposta do tradutor, inegvel a comprovao de que as tradues so o

    resultado de um hibridismo de normas que incluem as regras ditadas por agentes

    normatizantes influentes.

  • 24

    2. NORMA LINGUSTICA E TRADUO

    2.1. A norma lingustica

    As normas tm em seu histrico terminolgico significados abrangentes que

    envolvem uma obrigao, um caminho estabelecido anteriormente ou numerosas regras e

    princpios.

    Moiss, personagem bblico, revelou os Dez mandamentos no livro do xodo. Eram

    normas sociais e morais que detiveram os desmandos do povo judeu que no conhecia a vida

    seus algozes egpcios. Por meio de dez normas de conduta moral e comportamental, o povo

    ali reunido conseguiu uma organizao social sustentvel. Na Poltica, Aristteles definiu

    configuraes sociais como cidade, famlia, democracia, e determinou normas rgidas para

    que cada instituio poltica, organizacional ou social contivesse os preceitos, por ele

    definidos, que coubessem nos conceitos ideais por ele estabelecidos como, por exemplo, o

    conceito de governo domstico:

    Vimos que o governo domstico divide-se em trs partes ou poderes: o do senhor, do qual

    acabamos de tratar, o do pai e o do marido. O chefe da casa governa sua mulher e seus filhos

    como seres livres, mas no da mesma maneira: relativamente sua mulher, o poder poltico,

    relativamente aos seus filhos, o poder de um rei. Pois, embora haja excees antinaturais, na

    ordem natural o macho mais talhado para o comando que a fmea, do mesmo modo que o

    mais velho, que atingiu seu desenvolvimento completo, superior ao mais jovem e imaturo.

    (ARISTTELES, 2006, cap. XII)

    Ao levarmos em conta o tempo em que essas normas eram consideradas pertinentes,

    ficamos aliviados com a existncia de normas sincrnicas e anacrnicas em nossa sociedade,

    e percebemos que uma norma no cabe para todos, ao mesmo tempo e em um mesmo espao.

    Ainda, no mundo contemporneo, muitas mulheres so submetidas ao governo domstico

    masculino, mas a regra ocidental de governo do lar envolve uma mulher que capaz de

    liderar tranquilamente um ncleo familiar. Os mais velhos ainda tm influncia na famlia,

    mas os jovens exercem cada vez mais seu poder filial na organizao de uma casa.

    As normas lingusticas refletem essa dinmica social, assim explicitada por Faraco:

    Por isso que tendemos a dizer hoje, nos estudos cientficos da linguagem verbal, que uma

    lngua uma entidade cultural e poltica e no propriamente uma entidade lingustica. Ou seja:

    no h uma definio de lngua por critrios puramente lingusticos, mas fundamentalmente

    por critrios polticos e culturais. (FARACO, 2009, p. 32)

    A partir de critrios culturais possvel determinar as normas lingusticas de um

    idioma e trabalhar com as variaes de normas presentes no uso de uma lngua. As variaes

  • 25

    podem ser diatpicas ou diastrticas. As variaes diatpicas envolvem o uso do mesmo

    idioma em lugares especficos: ingls britnico X ingls americano. As variaes diastrticas

    incluem as variaes de normas em grupos sociais especficos como variedades da classe

    mdia X variedades da classe operria.

    Em uma comunidade lingustica coexistem vrias normas, que esto relacionadas ao

    modo peculiar do falar. Segundo Faraco o comportamento normal do falante variar sua fala

    de acordo com a comunidade de prtica que ele/ela fala. (2009, p. 38). mais uma vez o

    critrio cultural ou social que influencia a constituio da norma lingustica com variaes

    diastrticas, evidenciando a importante relao entre norma lingustica e normas sociais.

    Um falar correto evidencia uma posio social diferente do falar errado. Seguir as

    normas prestigiadas demonstra escolaridade, conhecimento e acima de tudo poder social. Ao

    dizermos: Me d licena? fica claro o desconhecimento ou o conhecimento sem aplicao

    da regra-padronizada de que considerado errado comear uma sentena com pronome

    oblquo tono. Para aqueles que adotam essa regra padronizada como critrio de correo, a

    fala: Me d licena? estigmatiza o falante e define sua posio intelectual inferior diante do

    conhecimento das normas do idioma. Da mesma forma, para algumas comunidades

    lingusticas dizer: D-me licena? ou D-me licena? parecem escolhas pedantes do

    falante.

    Para Bagno, a lngua para o falante mais do que um instrumento de comunicao, h

    no discurso do falante um comprometimento humano e social evidente:

    A lngua nossa faculdade mais poderosa, nosso principal modo de apreenso da

    realidade. Vivemos mergulhados na linguagem, no conseguimos nos imaginar fora

    dela estamos mais imersos na lngua do que peixes na gua. (BAGNO, 2012b, p. 75)

    Pensando nessa relao entre lngua e falante, entre normas lingusticas e sociedade, o

    conceito de norma lingustica evoca tambm elementos sociais de mudana. Reportando a

    definio inicial de Aristteles sobre o governo domstico, preciso considerar a posio

    feminina na sociedade da poca. As mulheres gregas eram submissas? Elas viviam a expensas

    do marido? Elas podiam trabalhar? Elas podiam aprender uma atividade econmica? Todos

    esses questionamentos respondem demanda para o entendimento das normas sociais

    impostas por Aristteles em seu texto.

    Da mesma forma, muitas perguntas precisam ser respondias quando se pensa em

    norma lingustica: em que usos lingusticos est baseada essa norma? Como posso reconhecer

    meu discurso nessa imposio? O que imposto? O que natural na aplicao da norma? O

    que artificial?

  • 26

    Bagno, para explicitar a duplicidade de sentido encontrada nos conceitos de norma

    descritos nos dicionrios, discute o contraste entre normal e normativo. Includos na

    dinmica da norma, esses conceitos oferecem um contraste claro entre os usos intuitivos e

    normatizados da lngua. O normal de uso corrente, real, remete a comportamento e

    observao em situaes objetivas. O normal medido por mdia estatstica de frequncia e

    h uma tendncia geral e habitual no uso das normas. Em contraste, o normativo impe

    preceitos e descreve uma lngua ideal. A aplicao das normas consciente e exige

    elaborao com intenes subjetivas em conformidade com juzos de valor para uma

    finalidade designada.

    A gramtica o suporte que descreve as normas de uma lngua: quando se dedica a

    investigar e apresentar os usos normais, ela chamada de gramtica descritiva; quando se

    interessa por estabelecer e fixar normas, mesmo que no sejam de uso frequente, chamada

    de gramtica normativa ou prescritiva. Com a preocupao cada vez mais crescente de uma

    descrio gramatical que tem como fonte o normal, tm surgido gramticas baseadas na

    realidade do uso, abandonando a anlise do discurso literrio como modelo da norma padro.

    possvel encontrar descries variadas de usos lingusticos que tm como exemplo gneros

    textuais variados e que demonstram as transformaes do discurso. No Brasil, livros como

    Gramtica do portugus brasileiro de Mrio Perini e Nova gramtica do portugus brasileiro

    de Ataliba de Castilho so, segundo Bagno:

    Uma radical mudana na histria das publicaes gramaticais brasileiras. Alm de trazer no

    ttulo o nome de nossa lngua, tal com vem sendo usado em pesquisas mais avanadas sobre a

    realidade lingustica brasileira, essas duas obras rompem com a tradio de vincular sempre o

    estudo gramatical da lngua da maioria dos brasileiros comparao entre essa lngua e a

    lngua dos portugueses (e sempre sob a perspectiva literria, como se sabe). (BAGNO, 2012b,

    p. 25)

    O mesmo autor explica que contra a mudana lingustica no h nada que se possa

    fazer: ela inevitvel, da prpria natureza das lnguas (p.27), assim como a mudana social

    acontece, a mudana lingustica tambm um processo inevitvel e por isso as normas

    precisam ser descritas acompanhando essas mudanas.

    Considerando a necessidade de conceituar norma lingustica dentro desse universo

    social e dinmico, Faraco define:

    possvel, ento, conceituar tecnicamente norma como determinado conjunto de fenmenos

    lingusticos (fonolgicos, morfolgicos, sintticos e lexicais) que so correntes, costumeiros,

    habituais numa dada comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade,

  • 27

    ou seja, com o que corriqueiro, usual, habitual, recorrente (normal) numa certa comunidade de fala. (FARACO, 2009, p. 35)

    O normal a palavra-chave do conceito e expressa bem os usos habituais de uma

    comunidade lingustica.

    Assim como as regras sociais mudam e as pessoas precisam se adaptar a essas

    mudanas,as normas lingusticas tambm passam por mudanas inevitveis que transformam

    os usos lingusticos de toda uma comunidade, como afirma Bagno:

    A presso da mudana que se processa na sociedade impulsionada pelos falantes em suas interaes acaba por transformar uma forma lingustica inovadora num uso to normal que, mesmo enfrentando a reao de uma minoria (os gramticos mais prescritivistas, os puristas, os

    reacionrios em geral), acaba por se impor ao conjunto da sociedade. (BAGNO, 2012b, p.33)

    Reaes contrrias a usos lingusticos costumeiros da comunidade falante se baseiam

    no conceito de norma padro. A norma padro descrita como um modelo artificial de

    preceitos institucionalizados que representam uma classe social especfica e que Bagno afirma

    ser um padro: um modelo artificial, arbitrrio, construdo segundo critrios de bom gosto

    vinculados a uma determinada classe social, a um determinado perodo histrico e num

    determinado lugar. (BAGNO, 2003, p. 65)

    A norma padro representa uma fora social minoritria que exclui as mudanas de

    uma lngua em constante transformao. Por utilizar exemplos de usos descontextualizados

    em sua descrio, a norma padro, em geral, se afasta do discurso real do falante de um

    determinado idioma e serve muito mais como um controle de casta social do que como uma

    descrio cientfica das normas de uma lngua.

    A norma culta tambm tem em seu histrico terminolgico muitas discusses. Por trs

    do termo norma culta esto dois conceitos que para Bagno (2003) so totalmente opostos:

    um modelo de atividade escrita inspirado nos usos que aparecem nas grandes obras literrias

    criando um padro a ser observado por qualquer falante (p. 43) e outro conceito que se

    refere linguagem concretamente empregada pelos cidados que pertencem aos segmentos

    mais favorecidos da nossa populao (p. 51).

    Em contraste com as duas normas anteriores padro e culta temos a norma

    popular, termo que designa uma norma lingustica sem regras especficas ou que no segue

    nenhuma regra. Bagno explica que a norma popular designa as variedades lingusticas

    relacionadas aos falantes sem escolaridade superior completa, com pouca ou nenhuma

  • 28

    escolarizao, moradores da zona rural ou das periferias empobrecidas das grandes cidades

    (p. 59).

    Tanto norma culta como norma popular expressam conceitos com problemas de

    definio. Para tanto, Bagno (2003) prope uma nova terminologia: (1) norma padro

    porque exprime verdadeiramente seu sentido: um ditame, uma lei artificial e arbitrria; (2)

    variedades prestigiadas porque variam e enfatizam que o que est em jogo no a lngua

    propriamente dita, mas sim o prestgio social dos falantes (p. 65); (3) variedades

    estigmatizadas porque variam e caracterizam os grupos sociais desprestigiados do Brasil (p.

    67).

    Na Gramtica pedaggica do portugus brasileiro (2012), Bagno retoma o conceito

    de norma culta com o intuito de abranger as variedades urbanas de prestgio e adota a

    terminologia portugus brasileiro contemporneo, por considerar que:

    uma lngua plena, perfeita para atender a todas as necessidades da interao social e da

    construo da identidade dos cidados de uma nao soberana, rica e importante. Temos que

    estudar e ensinar a nossa lngua com base no que ela aqui e agora, no Brasil do sculo XXI.

    (BAGNO, 2012b, p. 111)

    Com a mudana inevitvel das regras lingusticas e a adoo dessas mudanas como

    uma modalidade aceitvel de normas, o falante se identifica com as variedades e reconhece

    nelas uma dinmica sem artificialismos ou heranas normativas impostas.

    Descrever uma lngua uma atividade que parte do uso dessa lngua no discurso dos

    falantes. Uma norma lingustica nasce e se impe na interao incessante entre discurso e

    regras gramaticais que para Bagno so indissociveis.

    Para a anlise de normas lingusticas nesse trabalho usaremos o referencial do

    portugus brasileiro contemporneo explicitado por Bagno, cujas caractersticas sero

    apresentadas no item 4 desse captulo. Para o momento, preciso adiantar que a base das

    concluses est ligada ideia de que a relao norma/lngua ter como ponto de partida as

    formas genuinamente brasileiras de falar e escrever. (BAGNO, 2012b, p. 33).

  • 29

    2.2. Norma lingustica e traduo

    A traduo interlingual (entre lnguas diferentes), vista a partir da definio de Baker

    (1998) como um evento comunicativo, que moldado por suas prprias metas, presses e

    contexto de produo6 (p. 175) [traduo nossa], implica na anlise de normas que

    acompanham o ato de traduzir. A traduo um fenmeno comunicativo influenciado pelas

    restries normatizantes que emergem tanto do texto a ser traduzido como das escolhas do

    tradutor.

    Para Baker (1998), o confronto entre o texto fonte e a lngua alvo gera, durante o

    processo tradutrio, um terceiro cdigo: o cdigo da traduo. Esse cdigo criado na

    traduo porque o ato de traduzir deve ser considerado como um processo comunicativo nico

    e no porque o texto traduzido final deve estar conforme a norma. Seguindo o caminho das

    normas, Baker afirma que h uma copresena de cdigos, uma espcie de hibridismo, que

    contribui para a estruturao distintiva de um texto traduzido.

    Em geral, os tradutores utilizam inconscientemente estruturas lingusticas que estejam

    de acordo com as expectativas dos leitores e crticos e tambm selecionam as normas

    consideradas por ele mesmo, tradutor, como corretas ou mais bem aceitas em sua opinio.

    Baker lista em seu estudo algumas tendncias observadas nas tradues para o ingls a

    partir de corpus como:

    simplificao da lngua alvo;

    normatizao da pontuao quando o texto da lngua fonte foi pontuado de forma

    experimental;

    finalizao de sentenas que so deixadas em suspenso no texto de lngua fonte;

    omisses de hesitaes ou enunciados fora do contexto gramatical no texto fonte.

    Ao observar essas tendncias, Baker percebe um terceiro cdigo evidente presente nos

    textos que tende a normatizar as tradues:

    Esta tendncia a "normatizar" a linguagem da traduo e acompanhar de perto as convenes

    da lngua-alvo sugere, mais uma vez, que os tradutores respondem inconscientemente

    6 communicative event which is shaped by its own goals, pressures and context of production (BAKER, 1998 , p. 175).

  • 30

    percepo que tm do status do texto ou do enunciado que eles produzem.7 (BAKER, 1998, p.

    4) [traduo nossa]

    O tradutor, de forma consciente ou no, normatiza seu texto final com vistas ao idioma

    alvo, mesmo que o texto fonte no siga a mesma variedade da lngua.

    Schaffner (1998) descreve essa relao norma/traduo como um fenmeno ligado aos

    conceitos de exatido, preciso, boa formao e relacionamento com a qualidade da traduo.

    Nas tradues, as normas desempenham um papel importante e representam o conceito de

    correto a partir das variedades cultas ou estigmatizadas. Partindo de estudos comparados com

    intuito de criar mecanismos de princpios normativos na traduo, Schaffner discute a ideia de

    que as normas do idioma de partida alcanam o idioma de chegada.

    As normas e convenes nas abordagens da lingustica textual definem o texto como

    unidade bsica de comunicao e, portanto, como o objeto principal da pesquisa.

    Para os estudos de traduo, isso significa que o texto em si considerado como a

    unidade de traduo. A traduo no mais definida como transcodificao de signos

    lingusticos e sim como texto reescrito. Meschonnic (2010) se refere ao ato de traduzir como

    uma reelaborao de texto. A traduo no deve ser considerada como um meio de se atingir a

    lngua de chegada no texto da lngua de partida. H nesse crculo vicioso, segundo

    Meschonnic (2010), uma valorizao do signo em detrimento do discurso. A equivalncia

    signo/signo mais valorizada do que o discurso final do texto traduzido. O autor considera

    que esse olhar sobre a lngua de partida um olhar em direo forma (p. 14) e

    complementa:

    Claro, o problema terico no negar que a cada vez h uma lngua de partida e uma lngua de

    chegada, mas que esta posio do problema totalmente viciosa, porque conhece apenas a

    noo de lngua e a noo de signo. (MESCHONNIC, 2010, p. 27)

    Relativamente s normas, o tradutor percebe a norma lingustica do texto inicial da

    lngua de partida, mas em geral suas escolhas estaro mais influenciadas pela normatizao

    mais aceita no idioma de chegada, isso principalmente pelos julgamentos do pblico e das

    7 Cette tendance normaliser la langue de traduction et suivre de prs les conventions de la langue cible laisse croire, encore une fois, que les traducteurs rpondent inconsciemment la perception qu'ils ont du statut

    du texte ou de l'nonc qu'ils produisent. (BAKER, 1998, p. 4 )

  • 31

    normatizaes mercadolgicas, aqui includas as regras das editoras em relao publicao

    das tradues.

    Refletindo sobre o uso desses conceitos na traduo de quadrinhos, ainda preciso

    considerar a questo de que a especificidade da linguagem das HQ est na ideia de que o

    tradutor traduzir o texto dos bales aliado imagem indissocivel. Os bales so estratgias

    de representao da oralidade que Ramos (2012) chama de turnos conversacionais (p. 63)

    segundo o conceito de unidade conversacional de Urbano: Unidade conversacional uma

    unidade estrutural que se define como aquela em que o falante diz alguma coisa durante uma

    abordagem interativa continuada (RAMOS, 2012, p. 91).

    H na linguagem dos quadrinhos uma oralidade representada a partir de recursos

    grficos e lingusticos especficos.

    Nos recursos grficos e icnicos encontraremos bales com linhas contnuas ou

    descontnuas designados como balo-fala, balo-pensamento, balo-cochicho, balo-berro,

    balo-sonho (RAMOS, 2012, p. 37). Estar presente tambm o negrito nas fontes, letras com

    tamanhos variados para indicar uma entonao diferente na fala ou volume de voz mais

    elevado (RAMOS, 2012, p. 57).

    Quanto aos recursos lingusticos, a pontuao diferenciada sem pausas ou com muitas

    reticncias pode indicar uma forma rpida de falar. A repetio de slabas ou palavras pode

    indicar engasgos ou reformulao de pensamentos. H ainda a escolha do vocabulrio que

    ser feita com base na caracterizao de cada personagem.

    Considerando que, na maioria dos casos, as HQ so textos que representam uma

    oralidade conversacional, a questo das normas para o tradutor recai sobre os conceitos muito

    explorados de lngua escrita e lngua falada e suas normas.

    2.3. Lngua falada/ lngua escrita: mais um caso de hibridismo

    Ao tratar de lngua falada e lngua escrita, convm mencionar que h uma tendncia

    tradicional a evidenciar suas diferenas primordiais. A lngua falada considerada mais

    informal e catica, enquanto a lngua escrita vista como mais formal e estruturada. Para

    Roberts & Street (1997) h uma posio alternativa que pe em relevncia os sentidos de um

  • 32

    texto nas prticas sociais e no discurso e no nas propriedades formais da lngua (p. 169). A

    partir dessa posio, o foco da anlise de lngua falada e lngua escrita deixa de ser suas

    diferenas e passa a ser os sentidos construdos por elas, oferecendo assim uma possibilidade

    de anlise contextualizada de cada uma delas. Roberts &Street complementam:

    A aplicao dessa perspectiva s prticas orais e letradas desloca o foco da preocupao

    tradicional com as diferenas entre os canais para lan-lo sobre os modos como os sentidos

    so construdos localmente dentro de contextos particulares. Tambm sinaliza que os sentidos

    no discurso oral e escrito so processos estruturadores que se nutrem de formaes sociais mais

    amplas. (ROBERT & STREET, 1997, p. 168)

    O conceito de prticas letradas, para o estudo da relao entre lngua oral e lngua

    escrita, tem como base os estudos de letramento em referncia s prticas de leitura e escrita,

    segundo Corra (2010). O autor define prticas letradas em seu sentido restrito como:

    [...] proponho lidar com dois sentidos de letramento, que convivem em vrios trabalhos sobre o assunto, os quais, porm, tm sido reduzidos a um deles, a saber o que chamarei

    sentido restrito. Nesse sentido restrito, letramento designa a condio do indivduo que exerce,

    direta ou indiretamente, prticas de leitura e escrita. (CORRA, 2001, p. 137)

    Esse sentido de letramento traz a alfabetizao como caracterstica essencial para um

    letramento formal desenvolvido e no considera as prticas de letramento que envolvem a

    tradio oral e que nem por isso desmerecem o ttulo de letradas. H, no entanto, uma anlise

    mais ampla de letramento para Corra (2001), a saber:

    O sentido mais amplo do letramento, muito menos explorado nas pesquisas lingusticas que

    lidam com essa questo, designa um outro aspecto da escrita. Nesse segundo sentido,

    letramento liga-se ao carter escritural de certas prticas, presente mesmo em comunidades

    classificadas como de oralidade primria (aquelas que no tiveram contato algum com a escrita

    tal como a conhecemos). Esse tipo de registro que aparece nas prticas orais apresenta um

    carter de permanncia no tempo semelhante ao que normalmente se atribui escrita.

    (CORRA, 2001, p.137)

    Partindo, assim, de uma anlise mais ampla do letramento que confere fala um

    carter permanente caracterstica atribuda anteriormente s escrita a relao lngua

    falada/lngua escrita pode ser vista mais pelas suas caractersticas comuns do que pelas

    diferenas apontadas. J que tanto as prticas orais quanto as escritas so manifestaes de

    uma mesma lngua, o recurso de aproxim-las, ampliando o conceito de letramento, oferece

    uma ponte metodolgica mais coerente para uma aceitao de que lngua falada e escrita tm

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    mais semelhanas do que diferenas. A partir desse sentido amplo possvel usar o termo

    letramento no plural, aceitando que no h s um conceito para os possveis letramentos.

    A relao entre oralidade e letramento faz justia a uma demanda de vrios estudiosos

    da lngua que pretendem mostrar que a escrita uma manifestao do oral em seus diversos

    registros de usos.

    Bagno (2012b) se refere aos estudos sobre a lngua falada e a