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Dezembro 2014 Tese de Doutoramento em História Contemporânea Norton de Matos, o improvável republicano: Um olhar sobre Portugal e o império entre Afonso Costa e Salazar Helena Teresa Ribeiro Pinto Janeiro

Norton de Matos, o improvável republicano: Um olhar sobre ... · toda a prova até a ver chegar a bom porto, ... de manifestar o meu reconhecimento a Maria Emília ... PALAVRAS-CHAVE:

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Dezembro 2014

Tese de Doutoramento em História Contemporânea

Norton de Matos, o improvável republicano:

Um olhar sobre Portugal e o império entre Afonso Costa e Salazar

Helena Teresa Ribeiro Pinto Janeiro

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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutor em História Contemporânea, realizada sob a orientação científica de Fernando José Mendes Rosas

Apoio financeiro da FCT por fundos nacionais do MEC

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À memória do Gil e da Constança À memória de Jorge Calheiros

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AGRADECIMENTOS

O meu primeiro agradecimento vai para o Professor Doutor Fernando Rosas e

para a equipa do Instituto de História Contemporânea (IHC). Ao primeiro devo, entre muitas outras coisas, a ideia desta tese, os comentários cirúrgicos e uma paciência a toda a prova até a ver chegar a bom porto, possível a quem sabe que há vida – e história – para além da academia. Devo-lhe, ainda, ter-me formalmente acolhido no IHC, muitos anos após aí ter dado, com o seu incentivo, os primeiros passos na investigação, em tempos menos institucionais, e ter tido o privilégio de integrar aquela que viria a ser a primeira geração de historiadores sem memórias pessoais do Estado Novo que se abalançaram a fazer a história desse regime, numa época em que essa era uma tarefa tudo menos pacífica. Passados tantos anos, vim reencontrar paixões historiográficas (quase) tão acesas como então aquelas o eram. E, mais uma vez, o IHC participa e enforma – com uma rede de outras instituições, é certo – debates da nossa contemporaneidade com uma pluralidade de perspectivas teóricas e, sobretudo, com aquilo sem o qual o exercício interpretativo corre o risco de passar ao lado da história: o avanço da investigação fortemente ancorado em fontes.

Tenho, de seguida, de manifestar o meu reconhecimento a Maria Emília

Calheiros e ao Dr. José Maria Calheiros que escolheram o caminho nem sempre fácil, mas sem dúvida o mais nobre, de preservar e disponibilizar à comunidade científica o espólio pessoal do seu tio-bisavô. À Mió e seu Pai vai a minha gratidão pela forma inigualável como fui acolhida na Casa Norton de Matos, de Ponte de Lima. Infelizmente, Jorge Calheiros, com quem tantas vezes debati os méritos e deméritos de biografias várias, não chegará a ler e criticar a minha. Embora, com propriedade, não se lhe possa chamar biografia, nem, menos ainda, seja, como ele mais gostava, uma biografia romanceada, seguramente iria animar muitas conversas à lareira e ser alvo de uma crítica tão impiedosa quão impecavelmente civilizada, de que infelizmente já não poderei beneficiar. Agradeço ainda ao Dr. José Norton, por ter colocado à minha disposição o espólio da Casa do Bárrio, com outra parte do acervo epistolar da família Norton de Matos, mesmo se, na versão final da tese, acabei por não citar directamente estas fontes por si largamente utilizadas enquanto biógrafo do general. Vale pela atitude, galhardia que se estendeu à forma como decorreram os debates em diversos fora, em que partilhámos diferentes visões do general, também com a participação do académico que mais proliferamente tem publicado sobre a vida de Norton de Matos, o Professor Doutor Armando Malheiro da Silva.

Um agradecimento especial é devido a este último pela generosidade com que

partilhou comigo o seu saber ímpar sobre o Arquivo Norton de Matos. O meu agradecimento, ainda, ao Professor Doutor Nuno Severiano Teixeira, por, numa fase precoce desta investigação, me ter disponibilizado o acesso ao armazém onde o espólio mais recente do Ministério da Administração Interna então aguardava transferência para local mais definitivo, sem o que, inapelavelmente, teria ficado sem o poder consultar em tempo útil, já no seu arquivo de destino. Não tanto devido a cautelas burocráticas excessivas mas, sobretudo, à endémica escassez de recursos humanos e logísticos, com que se debruça a generalidade dos arquivos em Portugal,

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que seria escandalosa se o país fosse dado a escândalos por motivos tão prosaicos como a cultura sem visibilidade imediata. O que torna ainda mais precioso o empenho de funcionários e responsáveis de muitos dos arquivos por onde passei, a quem deixo o meu agradecimento colectivo. Outro tanto posso dizer dos vários colegas, que nomeio ao longo do trabalho, que me facultaram o acesso a trabalhos não publicados ou documentos que teria sido difícil, senão mesmo impossível, consultar de outra forma.

O meu reconhecimento vai ainda para várias outras pessoas. Aos Professores

Doutores Luís Reis Torgal e Heloísa Paulo, que tornaram possível que Coimbra fosse o pólo nacional da evocação histórica dos 60 anos da campanha eleitoral de Norton à Presidência da República. Aos Professores Doutores António Reis e António Ventura, bem como à Dra. Helena Serpa por me terem disponibilizado a consulta cirúrgica de papéis do Arquivo do Grémio Lusitano e, sobretudo, por terem partilhado comigo muito do seu saber sobre a história da Maçonaria Portuguesa, ajudando-me a compreender melhor esse mundo de que Norton fez parte e, inclusive, liderou. Aos Professores Doutores Luís Salgado de Matos, António Matos Ferreira e Ana Isabel Madeira pelos estimulantes debates intelectuais que com eles tive o privilégio de ter sobre as relações entre o Estado e as Igrejas e o universo missionário que muito me ajudaram a contextualizar a acção de Norton nestes domínios. Ao Professor Doutor Nuno Valério pelos esclarecimentos sobre as questões orçamentais em Angola. Aos Professores Doutores Ana Cristina Nogueira da Silva, Alexander Keese, Fernando Tavares Pimenta, Samuël Coghe e, ainda, Sílvia Correia pelas reflexões que comigo partilharam, respectivamente sobre escravatura e trabalho forçado em Angola e sobre cultura de guerra.

Todos eles e Maria Inácia Rezola, Pedro Aires de Oliveira, João Madeira e Maria

da Conceição Neto, a quem devo um ‘obrigada’ muito especial, ajudaram a

transformar estes últimos anos numa viagem intelectual menos solitária e, seguramente, muito mais estimulante. O meu reconhecimento, ainda, ao Daniel Alves, que me ajudou a sobreviver à adesão tardia a um software de gestão bibliográfica, bem como à Anabela Fonseca, à Aurora Almada e Santos, à Margarida Gomes e à Maria Catarina Santos, pela ajuda na revisão final.

À família e amigos fora destas lides académicas, que nunca falharam com o seu apoio, não vou nomear porque são os primeiros a saber a quem me refiro e porque sei que se vão sentir incluídos na saudade que comigo partilham pelo Gil e pela Constança, a quem esta tese também é dedicada.

Apesar de tão largamente devedora do apoio de outrem, os eventuais erros ou omissões são, naturalmente, da minha inteira e exclusiva responsabilidade.

S. Julião da Barra, Dezembro de 2014

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NORTON DE MATOS, O IMPROVÁVEL REPUBLICANO: UM OLHAR SOBRE PORTUGAL E O IMPÉRIO ENTRE AFONSO COSTA E SALAZAR

Helena Teresa Ribeiro Pinto Janeiro

RESUMO

Discutir o papel político de José Norton de Matos (1867-1955) na galáxia republicana portuguesa entre 1910 e 1955 é o objectivo principal desta tese. A alteração do prisma de análise mais habitual quando se fala de Norton, do colonial para o político, foi acompanhada pela opção de privilegiar os seus escritos contemporâneos, em detrimento das muitas análises retrospectivas posteriormente publicadas, e de cotejar a sua voz com múltiplas vozes de Portugal e do império, entre muitas outras com que se cruzou.

Tentámos compreender como é que um liberal como Norton, monárquico de tradição embora não de filiação, usa as suas credenciais coloniais para entrar na política republicana à boleia da polémica do cacau escravo e da Sociedade Portuguesa Anti-Esclavagista. Com a aproximação a Bernardino Machado, aos Jovens Turcos, à maçonaria e à facção do PRP dominada por Afonso Costa, insere-se na órbita democrática e afonsista e ganha o cargo de governador-geral de Angola. Aos africanos, cuja definição legislativa como uma categoria distinta da de cidadão (o indígena) antecipa em 1913, leva as luzes da educação laica e a liberdade de trabalho mas paradoxalmente convive com as escolas das missões e o trabalho forçado.

A fibra de político que revela na gestão das tensões entre as elites coloniais e metropolitanas irá ser apurada como ministro da Guerra. Discutimos, em especial, o seu papel político num ambicioso projecto: transformar dezenas de milhares de portugueses, pobres, analfabetos e vindos de meios rurais com parcas simpatias republicanas, em cidadãos e soldados da República. A improvisação, que possibilitou que o Corpo Expedicionário Português fosse combater em França ao lado dos britânicos, teve o rasgo de asa e os problemas inerentes à megalomania que o caracterizava. No Verão de 1917, o prestígio com que regressa à capital após difíceis negociações com o governo de Lloyd George torna-o um sério concorrente de Afonso Costa embora com ele partilhe também o ónus da crescente impopularidade da guerra. Reencontrar-se-ão, após o exílio sidonista, na Conferência da Paz em Paris mas, ao contrário de Costa, que não regressará à política activa, Norton tornar-se-á o alto-comissário mais marcante e polémico da nova República do pós-guerra.

Após a queda do regime e dois novos exílios, será Norton de Matos a fazer os compromissos necessários para permanecer no país e, aí, combater a Ditadura Militar e o Estado Novo de Salazar. Quando, em 1931, consegue unir a oposição em torno da Aliança Republicano-Socialista, começa a impor-se como símbolo da I República. É com esse estatuto que integrará as frentes unidas antifascistas dos anos 40 que culminarão na sua candidatura à Presidência da República em 1948/1949. O modo como consegue fazer a ponte entre os vários ciclos e gerações da oposição e, simultaneamente, resistir às pressões para romper a unidade com os comunistas na fase mais crispada da Guerra Fria será uma última manifestação do seu talento político, cuja análise poderá ajudar a enriquecer o debate sobre essa realidade plural e multipolar que foi a galáxia republicana na primeira metade do século XX.

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PALAVRAS-CHAVE: Primeira República, Ditadura Militar, Estado Novo, Primeira Guerra Mundial, Missão civilizadora, Portugal, Angola, século XX

NORTON DE MATOS, THE IMPROBABLE REPUBLICAN: PORTUGAL AND THE EMPIRE FROM AFONSO COSTA TO SALAZAR

ABSTRACT

This thesis examines the political role of Norton de Matos (1867–1955) in the

context of the Republican constellation in Portugal between 1910 and 1955. As well as focusing on Norton’s role in politics – even when he assumed colonial positions –, this study privileges his contemporaneous writings rather than the many retrospective analyses, and compares his voice with that of many others in Portugal and the Empire, and elsewhere.

We have tried to understand how a liberal like Norton de Matos, coming from a monarchist background, used his colonial credentials to enter Republican politics, taking up the issue of “cocoa slavery” and joining the Portuguese Anti-Slavery Society. Moving close to Bernardino Machado, the “Young Turks”, the masonry, and the

“Democratic” faction of the Portuguese Republican Party led by Afonso Costa, he

gained the position of Governor-General of Angola. He brought to the Africans – whose legal definition as “indigenous” he pioneered in 1913 – freedom of labour and lay education despite compromising with mission schools and forced labour.

His political stamina became evident in his handling of the tensions between colonial and metropolitan elites, and was further enhanced when he returned to Portugal as Minister of War. We discuss, in particular, the political significance of his most ambitious project, to turn tens of thousands of Portuguese — poor, illiterate, and coming from rural areas with few Republican sympathies — into citizens and soldiers of the Republic. This undertaking, which enabled the Portuguese Expeditionary Corps to fight in France alongside the British, embodied all the audacity and the problems inherent in his megalomania. On his return to the capital, in the summer of 1917, after difficult negotiations with Lloyd George, his prestige made him a serious contender to Afonso Costa, even though he shared with him the burden of the unpopularity of the war. During the Sidónio Pais dictatorship they both went into exile, but they would meet again at the peace conference in Versailles. Unlike Afonso Costa, though, who never returned to active politics, Norton de Matos would serve as the post-war Republic’s most notable and controversial High Commissioner, in Angola.

After the fall of the First Republic, and two further periods of exile, Norton de Matos made the necessary compromises to return to Portugal, where he combatted the Military Dictatorship and Salazar’s New State. When, in 1931, he was able to unite the opposition around the Republican-Socialist Alliance, he put himself forward as a paradigm of the First Republic; it was with this status that he joined the anti-fascist fronts of the 1940s, which culminated in his candidacy for President of the Republic, in 1948/49. The way in which he was able to build bridges between different generations of the opposition, while simultaneously resisting the pressure to break with the communists at the height of the cold war, was a sign of his political talent, the analysis

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of which can help to enrich the debate over the plural and multipolar reality that was Republicanism in the first half of the twentieth century.

KEYWORDS: Portuguese First Republic, Military Dictatorship, New State, First World War, Portugal, Angola, twentieth century.

ESCLARECIMENTO

1. Optámos por apresentar esta dissertação seguindo o regulamentado no Acordo

Ortográfico de 1945, conforme disposto no Decreto-Lei n.º 35-228 de 8 de

Dezembro de 1945.

2. Foi nossa opção manter a grafia original das citações incluídas tanto no corpo

do texto como nas notas, sem proceder a correcções ou actualizações.

Procedeu-se de igual modo quanto aos nomes das obras e jornais constantes

nas notas e na bibliografia.

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ÍNDICE

Agradecimentos …… ................................................................................................................ p. iv Resumo .................................................................................................................................... p. vi Índice ....................................................................................................................................... p. ix Lista de acrónimos, siglas e abreviaturas .............................................................................. p. xiii Introdução ............................................................................................................................... p. 1 1. Objecto de estudo ................................................................................................... p. 1 2. Reflexões sobre metodologia .................................................................................. p. 4

3. Estado da arte .......................................................................................................... p. 6 4. Objectivos ................................................................................................................ p. 16 5. Fontes ...................................................................................................................... p. 19 6. Plano da tese ............................................................................................................ p. 21

Capítulo I – Um político acidental? Os anos decisivos, com a revolução a quente (1910-1912) ............................................................................................................................. p. 22

I.1. O namoro, parte 1: Norton e a polémica do cacau escravo .................................... p. 22

I.2. O namoro, parte 2: Norton e o PRP, os Jovens Turcos e a maçonaria .................... p. 30

Capítulo II – Um político faz-se: que missão civilizadora para a República laica (1912-1915)? ...................................................................................................................................... p. 49

II.1. Norton, Lisboa e as elites coloniais e nativas de Angola: a crise inaugural ............ p. 51

II.1.1 Uma secretaria para os negócios indígenas: primeira tentativa ..................... p. 55

II.1.2. Norton, um herói angolano: todos contra o decreto fazendário ................... p. 57 II.1.3. De herói a vilão: (quase) todos contra Norton. A nova extensa porcaria e o fim do estado de graça ........................................................................................... p. 67

II.2. Missão civilizadora e trabalho forçado: novos episódios de uma crise larvar ....... p. 77

II.2.1. A saga da criação da Secretaria dos Negócios Indígenas, parte 2 .................. p. 78

II.2.2. Os indígenas, versão nortoniana ..................................................................... p. 84

II.2.3. Trabalho escravo ilegal: o alvo a abater. A meta a atingir: o trabalho livre ............................................................................................................................ p. 86 II.2.4. Trabalho forçado: um mal menor e transitório. O direito de ser civilizado e o dever de deixar-se civilizar .................................................................................. p. 97

II.3. Missão civilizadora, educação e anticlericalismo ................................................... p. 101

II.3.1. Projecto educativo de Norton ......................................................................... p. 102

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II.3.2. Missão civilizadora da República e as missões................................................ p. 112

II.3.2.1. Missões cristãs e educação em Angola, entre a monarquia e a República .............................................................................................................. p. 114 II.3.2.2. Anticlericalismo na bagagem? ................................................................. p. 116 II.3.2.3. Primeiras impressões sobre as missões católicas e protestantes ........... p. 119 II.3.2.4. A separação de águas entre a administração eclesiástica e as missões católicas. Norton e as autoridades católicas e protestantes .................. p. 120

II.4. Norton e Lisboa: a vitória, arrancada a ferros, antes da crise final ........................ p. 129 Capítulo III – Ascensão e queda de uma nova estrela democrática (1915-1917). ............... p. 137

III.1. O baptismo de fogo revolucionário ....................................................................... p. 137 III.2. A longa marcha para a guerra: uma luta em várias frentes .................................. p. 144 III.3. O milagre de Tancos: facto que dispensa propaganda? ........................................ p. 160

III.3.1. A operação Tancos e o conceito de propaganda pelo facto .......................... p. 160 III.3.2. O Ministério da Guerra e os repórteres da palavra: censura, sedução e o caso do comboio especial ...................................................................................... p. 163 III.3.3. Norton, o povo em armas e os repórteres da imagem. A operação Tancos no cinema ...................................................................................................... p. 173 III.3.4. Tancos, entre o mito e a realidade ................................................................. p. 178

III.4. Do teatro de Tancos ao teatro da Flandres: o milagre posto à prova ................... p. 182

III.4.1. Eu e a República ............................................................................................. p. 182 III.4.2. Da fita de Tancos à Secção Fotográfica e Cinematográfica do Exército ........ p. 187 III.4.3. Missão a França e Inglaterra: revista de tropas ou política pura? ................. p. 194 III.4.4. Um novo protagonismo na frente interna: os dividendos e os ónus ............ p. 214

III.4.4.1. Em vias de ‘eclipsar o glorioso astro’? .................................................... p. 214 III.4.4.2. Um novo racha-sindicalistas? ................................................................. p. 218 III.4.4.3. Na gestão de um governo em crise ........................................................ p. 221 III.4.4.4. A rebelião dos jornalistas ....................................................................... p. 225 III.4.4.5. O rosto da queda do afonsismo ............................................................. p. 229

Capítulo IV – Um velho republicano na Nova República (1919-1926) .................................. p. 235

IV.1. Norton na Conferência da Paz ............................................................................... p. 235 IV.1.1. Negociar a paz para salvar a memória e o futuro da República, com o império no horizonte ................................................................................................. p. 235 IV.1.2. Na negociação dos acordos de Saint-Germain-en-Laye ................................ p. 241

IV.2. Missão civilizadora da República revisitada: o alto-comissariado de Norton em Angola ...................................................................................................................... p. 248

IV.2.1. Um presente envenenado? ............................................................................ p. 248

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IV.2.2. O aparente paradoxo: o campeão do trabalho livre patrocina o trabalho forçado ........................................................................................................ p. 253

IV. 2.2.1. Os princípios .......................................................................................... p. 254 IV.2.2.2. Obras do Estado ..................................................................................... p. 258 IV.2.2.3. O pacto com o colosso ........................................................................... p. 268 IV.2.2.4. Trabalhadores em troca de capital e... trabalhadores contra a alta finança .................................................................................................................. p. 275

IV.2.3. A educação e o triângulo missionário em Angola: tensões e compromissos. A elite dos filhos de Angola .............................................................. p. 280 IV.2.4. Quem paga a factura da civilização ............................................................... p. 290

Capítulo V – Um símbolo da República e um chefe para a oposição? (1926-1935) ............. p. 309

V.1. A insanável divisão da oposição. Norton e a via golpista: chefe militar ou chefe político? ................................................................................................................ p. 310 V.2. À frente do Grande Oriente Lusitano Unido: o combate pela democracia e pela sobrevivência .......................................................................................................... p. 317

V.2.1. Um novo ciclo .................................................................................................. p. 318 V.2.2. Entre a transição e a revolução ....................................................................... p. 323

V.3. O feito da unidade, sob o patrocínio de Norton. A via legal: o inusitado fulgor da Aliança Republicano-Socialista .................................................................................. p. 328

V.3.1. A ARS e o seu directório .................................................................................. p. 330 V.3.2. O programa: o mínimo denominador comum ................................................ p. 335 V.3.3. A questão das condições mínimas: do recenseamento à ida a votos ............ p. 339

V.4. Um grão-mestre no exílio ....................................................................................... p. 345

V.5. A fase simbólica: de elemento decorativo a capitão do navio a afundar-se .......... p. 355

Capítulo VI – Política nunca mais? Um senador para as frentes unitárias da oposição (1943-1955) ............................................................................................................................. p. 358

VI.1. Depois da ARS, o MUNAF e o MUD: de promotor a ‘senador’ .............................. p. 358

VI.1.1. Esperando ‘que a noite acabe’ ....................................................................... p. 358 VI.1.2. Na presidência do Conselho Nacional da Unidade Antifascista… …. ...... p. 361 VI.1.3. … e da Comissão Consultiva do Movimento de Unidade Democrática ......... p. 369 VI.1.4. O duplo registo antifascista ........................................................................... p. 376

VI.2. A candidatura à Presidência da República: uma unidade à prova de Guerra Fria? ................................................................................................................................ p. 379

VI.2.1. A ponte entre os dois tempos da oposição ................................................... p. 379 VI.2.2. Apoiantes ....................................................................................................... p. 384

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VI.2.2.1. O pleno da unidade? .............................................................................. p. 384 VI.2.2.2. Jovens, propaganda e mobilização......................................................... p. 387 VI.2.2.3. Mulheres, religião e liberdade ............................................................... p. 395

VI.2.3. A aliança com os comunistas: sobreviver à Guerra Fria, custe o que custar ......................................................................................................................... p. 401

VI.2.3.1. Com os comunistas, contra a miséria e o medo .................................... p. 402 VI.2.3.2. Verão, 1948: a corda estica mas não parte ............................................ p. 405 VI.2.3.3. A batalha pelo controlo das comissões de apoio ................................... p. 409

VI.2.4. Liberdade: da embriaguez à ressaca .............................................................. p. 414

VI.3. Das frentes unitárias ao… Partido Republicano Unido .......................................... p. 419

Conclusão ................................................................................................................................ p. 425 Fontes e Bibliografia ............................................................................................................... p. 444

1. Fontes ......................................................................................................................... p. 444 1.1. Fontes de arquivo ............................................................................................... p. 444 1.2. Fontes de arquivo acedidas exclusivamente via Internet .................................. p. 446 1.3. Fontes publicadas ............................................................................................... p. 446

1.3.1 Publicações de Norton de Matos ................................................................ p. 446 1.3.2 Outras publicações ...................................................................................... p. 449

1.3.2.1. Periódicas ............................................................................................ p. 449 1.3.2.2. Não periódicas .................................................................................... p. 450

1.4. Fontes avulso ...................................................................................................... p. 452

2. Bibliografia ................................................................................................................. p. 453 2.1. Bibliografia sumária sobre Norton de Matos ..................................................... p. 453 2.2. Bibliografia geral ................................................................................................. p. 456

2.2.1. Obras de referência .................................................................................... p. 456 2.2.2. Estudos........................................................................................................ p. 456

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LISTA DE ACRÓNIMOS, SIGLAS E ABREVIATURAS ACRÓNIMOS E SIGLAS ABM Arquivo Bernardino Machado ABMRR Arquivo Biblioteca-Museu República e Resistência AC Alto-comissário ACB Associação Comercial de Benguela ACL Associação Comercial de Luanda AECP Associação dos Engenheiros Civis Portugueses AEF África Equatorial Francesa AFMN Arquivo da Fundação Mário Soares AGOLU Arquivo da Grande Oriente Lusitano Unido AHD-MNE Arquivo Histórico-Diplomático –

Ministério dos Negócios Estrangeiros AHM Arquivo Histórico da Marinha AHM Arquivo Histórico-Militar AHP Arquivo Histórico-Parlamentar AHU Arquivo Histórico Ultramarino AIST Arquivo do Instituto Superior Técnico ALP Arquivo da Legião Portuguesa AMAI Arquivo do Ministério da Administração Interna AMI Arquivo do Ministério do Interior ANA Arquivo Nacional de Angola ANM Arquivo Norton de Matos ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo AOF África Ocidental Francesa AOS Arquivo Oliveira Salazar APF Archivio Storico della Congregazione de Propaganda Fide APIDE Arquivo da Polícia de Internacional e de Defesa do Estado –

Direção-Geral de Segurança ARS Aliança Republicano-Socialista ASV Archivio Secreto Vaticano BNP-ACPC Biblioteca Nacional de Portugal – Arquivo de Cultura Portuguesa

Contemporânea BNU Banco Nacional Ultramarino BOPA Boletim Oficial da Província de Angola CBMS Conference of British Missionary Society CC Conselho Colonial CEP Corpo Expedicionário Português CG Conselho de Governo CGD Caixa Geral de Depósitos CM Câmara Municipal CNUAF Conselho Nacional de Unidade Nacional Antifascista CO Conselho da Ordem DCD Diário da Câmara dos Deputados

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DG Diário do Governo DS Diário do Senado FO Foreign Office GGA Governo-Geral de Angola GM Gabinete do Ministro GOLU-SCMP Grande Oriente Lusitano Unido – Supremo Conselho da

Maçonaria Portuguesa IST Instituto Superior Técnico KCL-LHCMA King’s College London - Liddell Hart Center for Military Archives MUD Movimento de Unidade Democrática MUNAF Movimento de Unidade Nacional Antifascista NATO North Atlantic Treaty Organization NA-UK National Archives - United Kingdom OCN Organização Cívica Nacional PCP Partido Comunista Português PP Portaria Provincial PRP Partido Republicano Português REAA Rito Escocês Antigo e Aceito SCGNM Serviços Centrais da candidatura do General Norton de Matos SFCE Secção Fotográfica e Cinematográfica do Exército SGL Sociedade de Geografia de Lisboa SNI Serviços dos Negócios Indígenas / Secretaria dos Negócios

Indígenas SSNI Secretaria Superior dos Negócios Indígenas SOAS - MA School of Oriental and African Studies - Missionary Archives SPLAL Sociedade Portuguesa de Levantamentos Aéreos, Lda. UN União Nacional UON União Operária Nacional ABREVIATURAS Vol. Volume Of. Ofício Arqº Arquivo ass. assinado dact. dactilografado / dactiloescrito fl. / fls. folha /folhas mns. manuscrito P. pasta p./pp. página /páginas Of. ofício polic. policopiado S.d. sem data S.l. sem local Tel. telegrama

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ABREVIATURAS MAÇÓNICAS

Adj Adjunto e Era Cam /CCam Câmara/câmaras Cons Conselho G /GG Grande/grandes, grão, grau Ger /GGer Geral/gerais II Ilustre Insp /IInspect Inspector/inspectores Ir Irmão L Loja, lusitano, luz Lit Litúrgico Loj /lloj Loja/lojas M Mestre, muito Maç /mmaç Maçonaria, maçónico, maçon/maçonarias, maçónicos, maçons Mest Mestre Obed Obediência Ofic / OOf Oficina/oficinas Obr /Oob Obreiro/obreiros Or Oriente Ord Ordem Pod Poderoso Pres Presidente prof Profano res /rresp Respeitável/respeitáveis Sap Sapientíssimo Sup Supremo triang Triângulo v Vulgar, virtude Val Vale Ven Venerável

N.B. - As abreviaturas maçónicas foram retiradas de A.H. de Oliveira Marques, A Maçonaria portuguesa

e o Estado Novo, 2. ed., rev. e aumentada, Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1983, pp.367-369.

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INTRODUÇÃO

1. Objecto de estudo

Um imponente corpo celeste com o seu rosto, em vias de eclipsar o sol com o

semblante de Afonso Costa (1871-1937), num firmamento republicano onde se

movem astros como António José de Almeida (1866-1929) e Manuel de Brito Camacho

(1862-1934), não será seguramente a imagem mais óbvia que alguém se lembraria de

associar a José Mendes Ribeiro Norton de Matos (1867-1955), comummente

conhecido por Norton de Matos ou, simplesmente, Norton. Por dois motivos, um

estético e outro político.

I. Valaria, «Principia a eclipsar-se o glorioso astro»,

Caricatura publicada no jornal O Dia, 12-07-1917, p.1

A caricatura, publicada na primeira página do principal diário monárquico de

Lisboa no Verão de 1917, é desprovida de qualquer pretensão artística, ficando a anos-

luz de retratos, caricaturais ou nem por isso, que pintores de primeira água fizeram de

Norton. Não é nada que se possa comparar à plasticidade e impacto dramático das

telas que Adriano de Sousa Lopes pintou de um Norton de corpo inteiro com uma

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mole de combatentes da Grande Guerra em pano de fundo1. Nada que se compare,

tão pouco, à caricatura assassina que José de Almada Negreiros dele faz, retratando-o

como o Calígula de Angola, na capa de um livro que deu brado, ampliando

exponencialmente uma das mais célebres controvérsias do Parlamento português do

pós-guerra, protagonizada pelo mais eficaz polemista da sua geração, Francisco Cunha

Leal. Nada que remotamente se possa equiparar, para dar apenas mais um exemplo,

ao talento com que o jovem Júlio Pomar, em apenas meia dúzia de traços do seu lápis

a carvão, definirá um Norton já octogenário, num desenho que circulou pelo país sob

as mais variadas formas, para uso da campanha à Presidência da República que

protagonizou contra Carmona, o candidato de Salazar, em 1948/19492.

Do ponto de vista político, o rápido esquecimento a que foi votada a caricatura

do sol, inversamente proporcional à fama que gozou a caricatura do Calígula, não se

deverá apenas à menor qualidade estética e à maior volatilidade do suporte em que

foi difundida a primeira, por contraposição com o da segunda. Caiu no esquecimento

por retratar uma faceta política que tende a ser ofuscada pelo rótulo que se colou a

Norton como uma segunda pele: o de colonial3. O homem caricaturado na capa do

livro de Cunha Leal é o colonial, ao passo que o Norton da primeira página do jornal O

Dia é o político. E é sobre o político que nos iremos focar, mesmo quando este se

esconde, ou é escondido, sob a capa do colonial. O corpo celeste, em movimento

ascendente, é o improvável político republicano que logra ombrear com o carismático

Afonso Costa, embora, para desgosto dos leitores do jornal monárquico — que

apreciam ainda menos Costa do que Norton — não chegue a eclipsar «o glorioso

astro», pelo menos não no ciclo da República que é encerrado com a revolução

sidonista. Permanecerá com ele, porém, na galáxia republicana4 ao longo da nova

1 Em especial do estudo preparatório, a carvão e pastel, de colecção particular, que pode ser visto na

exposição «Portugal nas Trincheiras – a I Guerra da República», organizada pelo Museu da Presidência da República em Lisboa, em 2010. 2 Vide, respectivamente, Cunha Leal, Caligula em Angola, Lisboa, 1924, capa; e Fernando Rosas (coord.),

Norton de Matos, Uma Oposição Indomada e Indomável. Campanha eleitoral do General Norton de Matos 1948/1949, S.l., ed. CML/BMRR, S.d, p.35, imagem 3.16. 3 Termo que usamos aqui, tal como era uso na época em que viveu, como substantivo e não como

adjectivo. 4 Esta caricatura é uma de muitas expressões do mosaico que constituiu o republicanismo em Portugal,

antes, durante e após a I República. O republicanismo como movimento, do estudo clássico de Fernando Catroga, é retomado e desenvolvido por Alice Samara, que usa dois conceitos que nos parecem

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República do pós-guerra, distanciado do primeiro plano da política nacional mas,

mesmo assim, com cargos políticos de relevo. Norton continuará a ganhar pontos a

Costa quando, em plena ditadura militar, assume a chefia da maçonaria e patrocina a

Aliança Republicano-Socialista. Sobreviver-lhe-á, literal e politicamente, para crescer

como símbolo da I República a ponto de conseguir ser, em vários momentos cruciais

da resistência ao Estado Novo de Salazar, ponto de unidade das várias e muito

heterogéneas oposições.

Em 5 de Outubro de 1910, quando a monarquia constitucional portuguesa é

derrubada, Norton de Matos vivera já em três continentes diferentes. Tinha 43 anos e

o posto de capitão. Nascido em Ponte de Lima, no Norte de Portugal, concluíra o

bacharelato em Matemática na Universidade de Coimbra (1888) e o curso do Estado-

Maior na Escola do Exército (1890), em Lisboa. Fora dirigente na administração

colonial da Índia portuguesa (1898-1908), onde formara um corpo de agrimensores e

pessoalmente supervisionara o levantamento geodésico e cartográfico moderno.

Episodicamente, desempenhara funções de governador militar de Satary e Sanguem,

também na Índia, com a tarefa cirúrgica de debelar revoltas contra o poder colonial.

Fizera uma incursão no mundo diplomático ao integrar a equipa do general Joaquim

José Machado que fora negociar a delimitação de fronteiras de Macau com a China, ao

serviço de Sua Majestade o rei D. Manuel II.

Nascido e formado no caldo dos valores da revolução liberal, que nunca

renegará, Norton autodefine-se politicamente durante toda a sua vida como um

liberal, num figurino monárquico, primeiro, e republicano, depois. Membro da elite

social extraordinariamente restrita que, no Portugal de oitocentos, tinha condições de

frequentar a universidade, pertence, igualmente, à geração que atingiu a idade adulta

em plena comoção nacional por via do Ultimato britânico de 1890 que obrigou os

portugueses a confrontarem as suas ilusões de grandeza imperial com a crua realidade

da incipiente ocupação das suas colónias africanas, num contexto internacional particularmente interessantes para o nosso trabalho: galáxia ou polifonia republicana: «O movimento republicano era uma rede de diversos agentes, associações e instituições. Sendo uma galáxia, o republicanismo foi uma polifonia. Assim, pode ser visto como emprego simultâneo de muitos instrumentos que não executam em uníssono.». Maria Alice Dias de Albergaria Samara, As repúblicas da República: História, cultura política e republicanismo, Tese de doutoramento na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010, policopiada, p. 68.

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marcado pela Conferência de Berlim. É a mesma geração que adoptou como heróis

nacionais os militares que protagonizaram as campanhas de conquista e ocupação em

África que se seguiram, eufemisticamente chamadas campanhas de pacificação. Para

desagravo da honra nacional ofendida, estes conquistadores de terra africana, de que

Joaquim Mouzinho de Albuquerque é provavelmente o mais emblemático, foram

vistos por jovens da geração de Norton como o garante da reinvenção, em versão

contemporânea, da mística de Portugal como a pátria imperial de antanho.

A vida política de Norton de Matos, iniciada com a implantação da República,

prolonga-se até meados do século XX. Ao longo da que constituiu a segunda metade

da sua longa vida, desempenhará uma grande variedade de papéis políticos, cívicos e

profissionais. Oficial do Estado-Maior, será também professor catedrático das

primeiras gerações de engenheiros civis portugueses formadas numa escola superior

não-militar, criada pela República, o Instituto Superior Técnico. Militante do Partido

Republicano Português, será governador-geral e alto-comissário da República em

Angola, revolucionário, ministro e deputado. O seu desempenho como ministro da

Guerra valer-lhe-á o posto de general por distinção. Desempenhará funções de

embaixador de Portugal em Londres e de grão-mestre da maçonaria, até à passagem

desta à clandestinidade sob o Estado Novo. Será, ainda, empresário, pioneiro da

aplicação da fotogrametria aérea em Portugal, colunista prolífico na imprensa

generalista e especializada, escritor, além de destacado oposicionista à ditadura militar

e ao Estado Novo até à sua morte, em 1955.

2. Reflexões sobre metodologia

Sol ou Calígula, qualquer das duas representações caricaturais de Norton com

que iniciámos esta introdução é a de um de homem de poder. Norton faria então parte

daquele núcleo de grandes homens cuja biografia mereceria ser escrita, de acordo com

os parâmetros da velha história, cujo retorno já foi aclamado como abençoado5 por

historiadores descontentes com uma história sem lugar para a singularidade de

pessoas concretas. Para outros, pelo contrário, esse retorno pouco ou nada tem de

5Maria de Fátima Bonifácio, «O abençoado retorno da velha história» in Análise Social, Vol. XXVIII, 122,

1993, pp. 623-630.

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abençoado, muito menos se circunscrito a grandes homens ou, até, a grandes

mulheres, assim consideradas pela sua proximidade ao poder político de topo6.

François Dosse, um dos mais estimulantes teorizadores da «aposta biográfica»7, rompe

com esta visão dicotómica. Para o historiador francês, não se trata propriamente de

um retorno, nem tão pouco de uma reedição, de variantes das biografias heróicas

tradicionais. Trata-se, pelo contrário, de uma reinvenção do género, após a «saída do

purgatório»8 a que esteve votado durante décadas. Uma reinvenção que é sempre

plural e, nunca, definitiva:

«(...) ce champ d’investigation est devenu, en son âge herméneutique, un lieu privilégié de l'expérience de recherche. Les études actuelles se caractérisent par la variation de la focale d’analyse, le changement constant d’échelle qui permet de faire apparaître des significations différentes des figures biographées. Le cadre moniste, unitaire de la biographie s'en trouve défait, le miroir est brisé pour mieux laisser affleurer la saisie de l’unité par la singularité, et en même temps la pluralité des identités, le pluriel des sens d’une vie.» 9

Revendo-nos neste último quadro teórico, está fora do nosso horizonte

escrever algo que se assemelhe a uma biografia definitiva, mesmo que ‘apenas’ do

Norton republicano. Tão pouco temos a pretensão de, a pretexto da vida política de

Norton, escrever a história ou, sequer, uma história de Portugal e da sua principal

colónia africana entre 1910 e 1955, embora olhemos para estas geografias, neste arco

cronológico, a partir da carreira política de um homem que é, também ele, um homem

entre dois mundos, o longo século XIX e o breve século XX10, um homem que viu

mundo e um homem com mundo.

6Pelo menos enquanto der azo a livros como as biografias das amantes dos reis de Portugal, pretexto

para um extenso exercício crítico de Ângela Miranda Cardoso, «O Historiador, o Leitor, o Rei e as Amantes deles : Sobre alguns efeitos perversos do fim das teorias», Working Paper 9, Cria - Centro em Rede de Investigação em Antropologia, http://cria.org.pt/site/images/ficheiros_imagens/ working_papers/wp_cria_9_o_historiador_o_leitor_angela_cardoso.pdf, acedido a 10-10-2013. 7François Dosse, Le pari biographique: écrire une vie, Paris, La Découverte, 2011.

8«La vogue de l’événement et de la biographie ne relève pourtant d’un simple “retour” aux conceptions

restrictives du XIXe siècle: elle est souvent même révélactrice d’avances significatives dans la connaissance historique après leur sortie du purgatoire». François Dosse, «Préface à l’édition de 2010» in François Dosse, L’histoire en miettes : des “Annales” à la “nouvelle histoire”, Paris, La Découverte, 2010, pp. XI-XII. 9François Dosse, Le pari biographique, p. 397.

10Retomamos aqui a periodização proposta por Hobsbawm, de acordo com a qual Norton teria entrado

no “breve século XX” já aos 47 anos. Eric John Hobsbawm, Age of extremes: The short twentieth century 1914-1991, London, M. Joseph, 1994.

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É também, naturalmente, um olhar de uma historiadora com a sua história

pessoal e o seu percurso historiográfico, agudamente consciente, desde as primeiras

reflexões sobre o seu ofício, de que a objectividade é tão inalcançável quão perigosa

pretensão, não vá o sujeito que a pretende praticar convencer-se que conseguirá

alcançar esse patamar superior, ideal e idealizado, de fazer história. Ao assumir, à

partida, a subjectividade como inevitável, poderemos, deste modo, estar mais

conscientes de que as nossas escolhas — do objecto de estudo, do tipo de fontes, da

metodologia, das teses que guiarão a nossa pesquisa, das palavras com que iremos

escrever a história — são opções que informam e enformam o nosso objecto de

estudo de um modo indelével. O que não significa, naturalmente, que não baseemos

as nossas interpretações no manuseamento e cruzamento de um amplo corpo de

fontes de diversas proveniências, mesmo as menos prováveis, respeitando

escrupulosamente as regras da arte.

A consciência de quão impossível é a objectividade, pura e dura, relembra a

necessidade de reforçar o estado de alerta para o perigo de contaminação por

preconceitos, quer pelos nossos quer pelos das próprias fontes. Ao enveredar pelo

método biográfico, então, a consciência do risco de contaminações desse jaez tornou-

se mais aguda, por via da necessidade, nomeadamente, de não nos deixarmos

confundir pela imagem que Norton quis deixar para a posteridade, através dos seus

inúmeros escritos e cuidadosa organização de um arquivo pessoal, consciente e

meticulosamente preparado para esse objectivo. Significa, ainda, que, embora

rigorosa, a nossa é uma de várias interpretações históricas que qualquer pessoa e, em

especial, este homem que sempre dividiu águas nas várias vidas públicas que teve,

suscita.

3. Estado da arte

A literatura crítica sobre a vida e obra do general Norton de Matos é ainda

relativamente escassa11. Os primeiros ensaios biográficos sobre Norton surgem entre o

11

O que não impede que o seu nome marque presença em muitas obras de história do final da monarquia constitucional, da I República e das oposições à Ditadura Militar e ao Estado Novo e – transversalmente a vários períodos e disciplinas académicas – na literatura crítica dos chamados estudos africanos. Muitos deles abordam aspectos da acção política de Norton, e a eles nos reportaremos

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final dos anos 40 e o início dos anos 50, o primeiro ainda em vida do visado e com a

sua colaboração, o seguinte já após a sua morte. Ambos são da autoria do poeta

Augusto Casimiro, antigo colaborador de Norton e grande admirador da sua obra. Em

Janeiro de 1948, Casimiro contacta-o para confirmar alguns dados cronológicos e

solicitar-lhe uma auto-apreciação sobre qual teria sido o ponto mais alto da sua vida12.

Estava-se nas vésperas do lançamento da sua candidatura à Presidência da República,

já na recta final da vida do general e depois de o próprio ter de certa forma

condicionado a visão que pretendia que dele fosse tida, através da publicação de um

extenso exercício memorialístico, em quatro tomos que constituíram grande sucesso

editorial em Portugal, na recta final da II Guerra Mundial13. Apesar da cumplicidade

entre biografado e biógrafo, a entrada de Casimiro para a Grande Enciclopédia

Portuguesa e Brasileira14, publicada pouco após a apresentação da candidatura de

Norton à Presidência em Julho de 1948, mantém-se num registo parco em adjectivos,

mesmo se claramente admirativo.

Já o mesmo não se pode dizer do artigo publicado pelo mesmo autor no livro

(dedicado a) Os Grandes Portugueses15. Naturalmente, a escolha do nome de Norton

para integrar a galeria restrita de 69 personalidades que, em toda a história de

sempre que pertinente, no curso da nossa dissertação. Para o presente estado da arte, no entanto, considerámos apenas os estudos especificamente a ele dedicados. 12

A resposta à carta de Casimiro, de dia 1, encontra-se na BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL - ARQUIVO DE CULTURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA (BNP-ACPC), Espólio de Augusto Casimiro, Cx. 3, Carta de Norton de Matos a A. Casimiro, Ponte de Lima, 11-01-1948, mns. 13

Publicados entre 1944 e 1945. Norton de Mattos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida: Factos, Acontecimentos e Episódios que a Minha Memória Guardou: Conferências, Discursos e Artigos e Suas Raízes no Passado, Lisboa, Editora Marítimo Colonial Lda., 4 tomos; Norton deixou prontos mais dois tomos que permaneceriam inéditos até 2005. Nesta data, foram reeditados os quatro primeiros tomos, agora em 2 volumes, juntamente com os dois tomos até então inéditos, reunidos num 3

o volume: TOMO

V, «A intervenção de Portugal Grande Guerra (1914 a 1918): Segunda Parte, A Caminho da Formação do Corpo do Exército Português Do Início da Primeira Guerra Mundial (3 de Agosto de 1914) à Parada de Montalvo em Tancos», seguido de Apêndices; e TOMO VI, «[Portugal Maior], Primeira Parte: A Projecção do Passado Sobre o Presente e o Futuro da Nação»; «Segunda Parte: Os Regimes Aduaneiros do Ultramar Português no Quadro da Unidade Nacional». Deste modo, a edição completa das Memórias, com os 6 tomos, data apenas de 2005: Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida: Factos, Acontecimentos que a Minha Memória Guardou Conferências, Discursos e Artigos e Suas Raízes no Passado, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005, 3 volumes. De ora em diante, usaremos sempre esta última edição. 14

[Augusto Casimiro], «Norton de Matos (José Maria Mendes)», Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa e Rio de Janeiro, S.d., Vol. 18, pp. 906-908. 15

Augusto Casimiro, «Norton de Matos» in Hernâni Cidade (coord.), Os grandes portugueses, Vol. 2, Lisboa, Arcádia, S.d.

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Portugal, são julgadas merecedoras de tal epíteto é, só por si, reveladora do espírito

encomiástico do empreendimento, levado a cabo entre finais dos anos 50 e inícios da

década seguinte. Hernâni Cidade, o coordenador do projecto, coloca Norton, a par de

Mouzinho de Albuquerque e Pereira da Eça, como um dos «construtores de império,

ou, se se preferir, de futuras pátrias ligadas à espiritualidade lusitana»16. Casimiro vai

mais longe, falando de um «chefe predestinado», autor de uma «obra criadora,

transfiguradora»17 em Angola, para já não falar de ter sido, à frente do Ministério da

Guerra, «o primeiro e principal obreiro do que se chamou o Milagre de Tancos»18. O

tom épico deste artigo de Casimiro é a ampliação do elogio fúnebre que em 1955, ano

da morte do general, lhe fora feito em número especial da revista Seara Nova, a

múltiplas vozes, sobretudo de intelectuais e militares ligados à oposição ao Estado

Novo19.

O primeiro trabalho académico sobre Norton, dedicado ao seu Alto-

Comissariado em Angola mas abordando, igualmente, o primeiro mandato nessa

colónia, surge em 1970, embora nunca tenha chegado a ser editado em livro. Trata-se

da tese de licenciatura de Renato Mascarenhas, apresentada no seio da instituição

académica que acolhia a nata dos estudiosos portugueses sobre questões ultramarinas

e formava os futuros administradores coloniais, o Instituto Superior de Ciências Sociais

e Política Ultramarina20. Mascarenhas, aluno do professor Silva Rego, reclama um

olhar «imparcial» que reflecte «a verdade», o que não lhe permite subscrever «certas

16

Hernâni Cidade, «Do último romântico ao nosso tempo: Introdução» in Hernâni Cidade (coord.), Os grandes portugueses, Vol. 2, Lisboa, Arcádia, S.d., pp. 328-329. Neste texto introdutório, apesar de também evocar como parte da «série de construtores de império» nomes como António Enes e Paiva Couceiro, apenas o trio Mouzinho – Eça – Norton tem direito a figurar na galeria das 17 personalidades maiores do período entre o final do século XIX e 1

a metade do século XX, com direito a textos biográficos

autónomos. No capítulo anterior, dedicado ao século XIX, Cidade incluíra outros três construtores de império: Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto. 17

Augusto Casimiro, «Norton de Matos» in Hernâni Cidade (coord.), Os grandes portugueses, p. 371. 18

Idem, p. 374. 19

Seara Nova: Número de Homenagem a Norton de Matos, Lisboa, Empresa de Publicidade Seara Nova, 1955. 20

Renato Mascarenhas, Norton de Matos. Alto Comissário e Governador de Angola, 1970, Lisboa, Dissertação de Licenciatura apresentada ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina da Universidade Técnica de Lisboa. Seis anos antes, fora apresentada no mesmo Instituto uma tese de doutoramento sobre Angola em que os governos de Norton surgem como parte integrante de um processo de integração da colónia na Nação Una que o Estado Novo iria continuar e desenvolver. João Pereira Neto, Angola: Meio Século de Integração, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, 1964.

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opiniões que, embora pouco objectivas, por reflectirem paixões políticas e pessoais,

tiveram todavia certas expansão e aceitação»21. Afastadas as paixões, conclui que a

acção de Norton «foi justificada»22. Além de ter sido «um dos maiores doutrinadores

coloniais», o general foi, defende, «dos melhores representantes da missão histórica

de Portugal no Mundo»23. A chancela da academia é concomitante com um assomo de

reabilitação da memória do velho republicano, patrocinado por organizações oficiais

do Estado Novo. É o caso da Mocidade Portuguesa, cujo Comissariado de Publicações

Provincial de Luanda acabara de publicar, numa antologia dedicada à portugalidade

editada por Antero Simões, uma nota biográfica de Norton. Nela, fala-se de um

«insigne General», autor de uma «obra gigantesca» só possível a um «notável chefe»24

«Grande homem da governação pública, professor, escritor e colonialista, Norton de Matos foi bem o Homem Providencial, de altos pensamentos e carácter íntegro, ao serviço duma nobre causa, que lutou, pela palavra e pela acção, em prol da nossa Política Ultramarina.»25

A nota é secundada por extractos de escritos do biografado, convenientemente

retirados do contexto e transformados em máximas de propaganda que emparelham

com máximas de Salazar para tentar justificar a manutenção de Portugal no clube dos

colonizadores, num ambiente de crescente hostilidade internacional perante as

práticas colonialistas portuguesas26.

É ainda a propósito de Angola que, já depois da revolução de 25 de Abril de

1974, surge o livro de António Durães, Norton e Angola, em tom assumidamente

admirativo. Apresenta-se, em subtítulo, como «Subsídios para a História e para uma

Biografia»27, tendo evoluído para a forma de livro, em edição de autor, a partir do

21

Renato Mascarenhas, Op. cit., p. XIX. 22

Idem, p. XXI. 23

Idem, p. XVIII. 24

Antero Simões, «Norton de Matos – um “Homem do Ultramar”» in Nós somos todos nós: antologia portugalidade, Luanda, Serviços de Publicações do Comissariado Provincial M.[ocidade] P.[ortuguesa], 1969, pp. 283-284. 25

Idem, p. 285. 26

Antero Simões, Nós somos todos nós: antologia portugalidade, Luanda, Serviço de Publicações do Comissariado Provincial M.P., 1969. Sobre o processo de aproveitamento do pensamento colonial de Norton pelo Estado Novo, veja-se Douglas L. Wheeler, «José Norton de Matos (1867-1955)» in Peter Duignan, Lewis Henry Gann (eds.), African Proconsuls: European Governors in Africa, New York, Free Press, 1978, pp. 460-461. 27

António A. Durães, Angola e o General Norton de Matos. Subsídios para a História e para uma Biografia, Melgaço, Edição do Autor, 1976.

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pedido de alguns amigos para que falasse do governo de Norton em Angola.

Preparava-se, então, uma homenagem ao general na sua terra-natal, Ponte de Lima,

com a inauguração de um busto num largo da vila, erecto pela autarquia local com

base numa subscrição promovida no Rio de Janeiro por um limiano aí radicado. Apesar

de invocar o distanciamento do tempo já passado sobre os factos que relata e de citar

alguma documentação, o livro vale, sobretudo, como testemunho do autor sobre as

eleições presidenciais de 1949, visto ter feito parte da comissão provincial de Benguela

da candidatura de Norton à Presidência da República.

Em 1978, é finalmente dado à estampa, nos EUA, o primeiro ensaio biográfico

académico sobre o general, que permaneceria praticamente desconhecido em

Portugal. Elaborado por Douglas L. Wheeler, o artigo surge numa obra colectiva

dedicada aos governadores europeus em África28. Por comparação quer com os seus

antecessores na colónia de Angola, quer com os seus pares noutros contextos

imperiais, Norton não se sai mal do retrato que dele faz o historiador norte-americano:

«All in all, he did more than any other governor to bring to Angola a modern colonial administration that compared favorably with those of Britain and France in West Africa.»29

Embora dedique alguns parágrafos à sua acção como ministro da Guerra e

chame a atenção para o facto de, durante o Estado Novo, o general se ter

transformado num «personal symbol of the ‘mith’ of the first republic»30, é a faceta

colonial, na dupla vertente de governador e pensador colonial, que, para Wheeler,

sobreleva sobre todas as outras.

Pouco depois, no 25º aniversário da sua morte, será a vez da historiografia

portuguesa se interessar pelo general. O seu perfil biográfico, acompanhado de uma

cronologia da vida e obra, é traçado por A. H. de Oliveira Marques na introdução do

catálogo de uma exposição pioneira organizada na Biblioteca Nacional de Portugal. A

iniciativa deve-se à obediência maçónica a que tanto Norton como o historiador

28

Seis franceses, quatro britânicos, dois belgas, dois portugueses e dois alemães. O outro governador português que tem direito a capítulo autónomo, também da autoria de Wheeler, é Joaquim Mouzinho de Albuquerque. 29

Douglas L. Wheeler, «José Norton de Matos (1867-1955)» in Peter Duignan, Lewis Henry Gann (eds.), African Proconsuls: European Governors in Africa, New York, Free Press, 1978, p. 460. Em textos escritos noutras sedes, este mesmo autor fará um balanço mais severo sobre a actuação de Norton. 30

Idem, p. 456.

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pertenceram (o Grande Oriente Lusitano Unido, na sua veste profana de Grémio

Lusitano), integrando objectos e documentos do espólio pessoal do general. O texto

seria republicado em várias ocasiões, com ligeiras nuances31. O rigor dos dados

cronológicos apresentados por Oliveira Marques, com novidades no que respeita,

nomeadamente, ao percurso maçónico do general, vai a par com uma admiração não

disfarçada do autor pelo ex-grão-mestre, indo ao ponto de defender que:

«Os dois governos de Norton [em Angola] foram quase tão importantes para a feitura de um novo Estado africano como a estadia de D. João VI na América o foi para o futuro Brasil independente.»32.

No contexto do surto historiográfico de estudos sobre o Estado Novo do final

dessa década e da década seguinte, será a vez de uma outra faceta de Norton começar

a ser explorada: o seu perfil anti-salazarista, com destaque para a candidatura à

Presidência da República em 1948/1949. Após um artigo da historiadora canadiana

Dawn Linda Raby33, um trabalho de investigação coordenado por Fernando Rosas, na

FCSH/UNL, deu origem a uma exposição realizada em 1993 na Biblioteca-Museu da

República e Resistência, de Lisboa, e ao catálogo respectivo34. Um dos autores, Daniel

Melo, redigirá também um verbete biográfico sobre Norton no Dicionário de História

do Estado Novo35.

31

A. H. de Oliveira Marques, «Norton de Matos» in A.H. de Oliveira Marques (coord.), Norton de Matos (1867-1955) no 25

o Aniversário da Sua Morte. Exposição na Biblioteca Nacional, Lisboa, Grémio

Lusitano, 1980; «Norton de Matos» in A. H. de Oliveira Marques, Ensaios de História da I República Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, pp. 161-175; «Matos (José Mendes Ribeiro Norton de)» in A. H. de Oliveira Marques (coord.), Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Editorial Delta, 1986, Vol. II, cols. 960-961; «Matos, José Mendes Ribeiro Norton de» in A. H. de Oliveira Marques (coord.), Parlamentares e Ministros da 1

a República (1910 - 1926), Porto, Ed. Afrontamento, 2000, pp. 292-294.

32A. H. de Oliveira Marques, «Norton de Matos», Ensaios de História da I República Portuguesa, p. 163.

33Dawn Linda Raby, «The Portuguese Presidential Election of 1949: A Successful Governmental

Maneuver?» in Luso-Brazilian Review, Vol. 27, No. 1 (Summer, 1990), pp. 63-77. 34

Fernando Rosas (coord.), Norton de Matos, Uma Oposição Indomada e Indomável. Campanha eleitoral do General Norton de Matos 1948/1949; Alexandre Reis, Amílcar Braga, Daniel Melo, As Eleições Presidenciais de 1949. Estudo Monográfico do Primeiro Processo Eleitoral com Oposição sob o Estado Novo português, Lisboa, 1992 (policopiado). Agradecemos a Daniel Melo ter-nos facultado este texto. Veja-se, ainda, Alexandre António da Costa Luís, «As Eleições Presidenciais de 1949: dois “Portugais” em confronto» in Revista de História das Ideias, nº 16, 1994, pp. 283-322. 35

Na sequência de outras entradas sobre o general já então publicadas em vários dicionários temáticos portugueses, para além dos da autoria de Oliveira Marques, já referidos, temos Daniel Melo, «Matos, José Maria Mendes Ribeiro Norton» in Fernando Rosas, J. M. Brandão de Brito (dir.), Dicionário de História do Estado Novo, Vol. 2, Venda Nova, Bertrand, 1996, pp. 553-555; Jofre Amaral Nogueira, «Matos, José Mendes Ribeiro Norton de (1867-1955)», in Joel Serrão (coord.), Dicionário de História de Portugal, Vol. IV, Porto, Livraria Figueirinhas, 1984, pp. 229-230; Manuela Rego, «Matos, Norton de»,

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O acesso a documentação dos arquivos da família, e nomeadamente do

Arquivo de Norton de Matos em Ponte de Lima, organizado pelo professor da

Universidade do Porto e colaborador do CEIS20 da Universidade de Coimbra Armando

Malheiro da Silva36, deu origem a uma série de artigos nas duas últimas décadas. Trata-

se, nomeadamente, de textos de Malheiro da Silva, sozinho ou em conjunto com

outros autores do CEIS20, em que são explorados vários aspectos específicos do seu

pensamento e acção política. É o caso da questão colonial, em que Malheiro da Silva e

José Lima Garcia enfatizam o que consideram ser a «crítica democrática ao ‘Império

Colonial’ do Estado Novo»37, protagonizada por Norton, desvalorizando, como

superficiais38, outras leituras que sublinham pontos de contacto, senão mesmo de

sintonia, em torno do conceito, tão caro a Norton, da «nação una». Outros artigos,

como o de Luís Reis Torgal e Malheiro da Silva39, concentram-se em períodos

específicos, como a II Guerra Mundial, analisando o pensamento de Norton sobre o

conflito bélico e nomeadamente os alemães, a partir de escritos coevos do general,

alternando entre o registo diarístico e o memorialístico, encontrados entre os seus

papéis pessoais da casa de Ponte de Lima. O período da candidatura presidencial do

final dos anos 40, é, também, alvo da atenção de Malheiro da Silva, na sequência, aliás,

de um importante capítulo de José Pacheco Pereira sobre essa campanha eleitoral

incluído na sua biografia política de Álvaro Cunhal40. Num artigo de 2003, porém,

António Barreto, Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal, Suplemento, Vol. VIII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1991, pp. 436-438. 36

Armando Malheiro da Silva, «Norton de Matos através da informação sobre si» in Blogue História Lusófona, http://www2.iict.pt/index.php?idc=102&idi=13894, acedido a 30-10-2008. 37

Armando Malheiro da Silva, José Luís Lima Garcia, «Norton de Matos e a Oposição à Política Colonial de Salazar» in Separata da Revista de História das Ideias, Vol. 17, 1995, p. 377. Parte deste artigo é retomado em Armando Malheiro da Silva, Heloísa Paulo, «Norton de Matos, o Brasil e as Raízes do Paraíso. A Construção da colónia ideal e o ideal colonialista» in Maria Bernardete Ramos, Élio Serpa Serpa, Heloísa Helena Paulo (org.), O Beijo através do Atlântico. O lugar do Brasil no panlusitanismo, Chapeó, Argos, Editora Universitária, 2001, pp. 279-326. 38

Armando Malheiro da Silva, José Luís Lima Garcia, «Norton de Matos e a Oposição à Política Colonial de Salazar», p. 402. 39

Luís Reis Torgal, Armando Malheiro da Silva, «Norton de Matos e a Alemanha na II Guerra Mundial: Impressões de um Diário» in Portugal – Alemanha – África: Do Colonialismo Imperial ao Colonialismo Político: Actas do IV Encontro Luso-Alemão, Lisboa, Colibri, 1996, pp. 99-138. 40

José Pacheco Pereira, «Campanha de Norton de Matos – 1948-49» in Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Volume 2, “Duarte”, o Dirigente Clandestino, 1941-1949, Lisboa, Temas e Debates, 1999, pp. 805-833; Armando Malheiro da Silva, «Para a História da Oposição ao Estado Novo: a candidatura à Presidência da República do general Norton de Matos e o Boletim Eleições Livres no distrito de Braga (1949)» in Bracara Augusta, Vol. 50, nº 104-105, 02-2001, pp. 327-405 (texto publicado, sem os

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aquele autor ensaiará um perfil biográfico mais abrangente de Norton41, embora faça

questão de destacar a faceta de colonialista, que considera o traço dominante da sua

vida42.

É precisamente o prisma colonial que suscita o interesse dos autores

estrangeiros que escreveram sobre Norton no virar do século, na senda do que já

Wheeler fizera, no trabalho pioneiro de 1978. Significativamente, Todd Cleveland, um

seu aluno, intitula a tese de mestrado que dedica a Norton, defendida em 2000 na

universidade norte-americana de New Hampshire, The Life of a Portuguese

Colonialist43. De igual modo, o historiador francês Yves Léonard considera que todo o

percurso político de Norton na metrópole vem por acréscimo a uma carreira que,

antes de tudo, está ancorada no pilar colonial44.

Dois anos depois, é dada à estampa a primeira biografia de fôlego do general,

da autoria de José Norton, um seu familiar45. Além da consulta de alguns arquivos

institucionais, o autor contou com o acesso privilegiado aos arquivos da família, muito

em especial a um conjunto significativo de cartas particulares inéditas entre o seu tio-

documentos anexos e ligeiras variações, em duas outras ocasiões: «O Major e o General: O Apoio de Miguel Ferreira e de Seus Correligionários, no Distrito de Braga, à Candidatura Presidencial de Norton de Matos (1948-49)» in Actas das Terceiras Jornadas de História Local: Fafe Século XX: alguns aspectos. Fafe, Câmara Municipal, 2002, p. 455-551; e «A Candidatura à Presidência da República do General Norton de Matos e o Boletim Eleições Livres no distrito de Braga (1949)» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, Lisboa, Colibri, 2010, pp. 57-83). 41

Armando Malheiro da Silva, «General Norton de Matos (1867-1955): Aspectos Maiores de um Perfil Histórico-Biográfico – O Militar, o Colonialista e o Democrata» in Africana Studia: Revista Internacional de Estudos Africanos, nº 6, 2003, pp. 173-200. 42

Idem, p. 174. Como já anteriormente defendera, «a vocação colonialista dominou o pensamento e a acção de Norton de Matos, condicionando fortemente a sua militância política e cívica». Armando Malheiro da Silva, José Luís Lima Garcia, «Norton de Matos e a Oposição à Política Colonial de Salazar» in Separata da Revista de História das Ideias, Vol. 17, Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, pp. 354-355. 43

Todd Cleveland, The Life of a Portuguese Colonialist: General José Norton de Matos (1867-1955), Dissertação de mestrado apresentada à University of New Hampshire, Durham, 2000 (policopiado). Agradecemos ao autor ter-nos facultado este e outros textos seus. 44

«L’administration colonial est bien le principal pilier sur leque s’édifie sa carrière. Son action politique en métropole (...) vient en sus, élargissant son champs de compétence et enrichissant son expérience des affaires publiques. Mais (...) elle ne constitue pas son objectif premier, ni ne semble obéir à un quelconque “plan de carrière”.[§] Même lorsqu’elle ne se déroule pas directement sur son terrain de prédilection, l’outre-mer, l’action politique de Norton de Matos reste largement conditionnée par les questions coloniales et l’impératif de grandeur qui leur est lié». Yves Léonard, «Le Général Norton de Matos (1867-1955): Une “Certaine Idée” du Portugal» in Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Vol. XXXIX, 2000, p. 194. 45

Sobrinho-neto e afilhado do biografado. José Norton, Norton de Matos: Biografia: Fronteiras do Tempo, Lisboa, Bertrand Editora, 2002.

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avô e alguns familiares, conservadas numa das casas da família no Minho, a casa do

Bárrio. Esta correspondência, citada com abundância, embora, infelizmente, sem

qualquer indicação de fonte, fornece uma imagem antes desconhecida do homem,

ajudando a esclarecer traços da sua personalidade e acção nos múltiplos cargos que

desempenhou ao longo da vida. De salientar, em particular, os dados novos fornecidos

sobre a infância e adolescência, a vida de estudante e de jovem militar e, sobretudo,

sobre o seu tirocínio como colonial na Índia e na China nos doze anos que precederam

a implantação da República, que moldaram indelevelmente o seu pensamento e acção

futuras. Este período, prévio à entrada de Norton na política, ocupa uma parte

importante do livro.

Na primeira década do século XXI, a aproximação do 50º aniversário da morte

do general suscita nova homenagem da maçonaria portuguesa, desta feita através da

edição de dois livros pelo Grémio Lusitano, da autoria de António Faria. O primeiro,

inteiramente dedicado a Norton, centra-se na sua acção em Angola, confrontando-a

com os princípios maçónicos que Norton advogava, fazendo «o confronto do indivíduo

com a exequibilidade prática da sua concepção do mundo»46, tendo por base,

essencialmente, as publicações mais conhecidas de Norton. O segundo pretende

prestar justiça ao trio de personalidades que exerceram o cargo de grão-mestre

durante os difíceis períodos da ditadura militar e da clandestinidade — Magalhães

Lima, Norton de Matos e Luís Rebordão —, assumindo-se como um exercício de

memória e gratidão, a «memória narrativa» do tríptico escultórico de Lagoa Henriques

e Carlos Amado então inaugurado no Palácio Maçónico, em Lisboa47. Além do

objectivo mais vasto de demonstrar o papel desses vultos maçónicos na preservação

dos valores da liberdade durante esse quase meio século português, Faria pretende

46

António Faria, O Real e o Possível: Norton de Matos, Etiologia de um Estado e Fim do Império, Lisboa, Grémio Lusitano, 2004, p. 9. 47

António Faria, «Norton de Matos: Nota biográfica» in António Faria, Memória e Gratidão: Magalhães Lima. Norton de Matos. Luís Rebordão: Grão-Mestres durante a Ditadura e na Clandestinidade (1926-1974): Memória narrativa do monumento erigido no Palácio Maçónico em Agosto de 2005 sendo Grão-Mestre António Arnaut, Lisboa, Grémio Lusitano, 2005, pp. 27-31 e «Post–scriptum», pp. 75-91.

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repor a verdade quanto ao que considera ser a usurpação e manipulação do

pensamento colonial de Norton pelo Estado Novo48.

Que a memória é sempre uma construção — mais ou menos rigorosa mas

incontornavelmente subjectiva — é algo que Malheiro da Silva vem recordar num

artigo de 2008, no qual reflecte sobre os cuidados a ter face ao exercício de memória

que Norton fez sobre si próprio49. Nesse mesmo ano, é publicada a tese de mestrado

de Maria Alexandre Dáskalos, defendida na FCSH da UNL, sobre o primeiro governo de

Norton em Angola50.

A esta literatura crítica juntaram-se, nos últimos anos, mais alguns títulos sobre

aspectos específicos da acção de Norton no campo oposicionista, para além do

colonial51, e de textos de carácter mais biográfico. Estes últimos, da autoria de

Cleveland e de Janeiro, mantêm-se num registo sintético, próprio de dicionários

temáticos para os quais escrevem, respectivamente nos EUA e em Portugal. Cleveland

que, na sequência da sua investigação de doutoramento sobre a Companhia de

Diamantes de Angola, chamara já a atenção para as discrepâncias biográficas entre o

48

Relativamente à primeira, afirma categoricamente que: «Está fora de dúvida que é Norton de Matos quem cria a unidade da Nação portuguesa, do Minho a Timor (…)», defendendo que se deu depois uma apropriação ilícita dessa unidade: «O Estado Novo usurpou e manipulou a acção política de Norton de Matos, criada com carácter e fundo maçónico, fraterna, humanista e universalista». Idem, pp. 31-32. 49

Armando Malheiro da Silva, «Norton de Matos e a Auto-Defesa Face à História Coeva e Futura» in Luís Reis Torgal, Heloísa Paulo (coord.), Espaços Autoritários e Totalitários e Suas Representações, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2008, pp. 355-376. 50

Maria Alexandre Dáskalos, A política de Norton de Matos para Angola, 1912-1915, Coimbra, Livraria Minerva, 2008. 51

Armando Malheiro da Silva, «Norton de Matos e as diferentes maneiras de ser contra o 28 de Maio de 1926. As revoltas de 1931, o reviralhismo e/ou a “via ordeira”» in Os Açores e a revolta de 1931: comunicações apresentadas no Colóquio Comemorativo do 75

o aniversário, Angra do Heroísmo, Instituto

Açoriano de Cultura-IAC, 2007; Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, Lisboa, Colibri, 2010; Helena Pinto Janeiro, Os Militares na Aliança Republicano-Socialista: Um Triunvirato Militar para uma Transição Civil, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2011; Helena Pinto Janeiro, «A Aliança Republicano-Socialista no Rescaldo da I República/Republican Socialist Alliance in the Aftermath of the First Republic” in Congresso Internacional I República e Republicanismo: Atas, Lisboa, Assembleia da República, 2012; Armando Malheiro da Silva, «A intolerância antimaçônica e a resistência impossível: Norton de Matos e Fernando Pessoa» in Maria Luiza Tucci Carneiro, Frederico Croci (org.), Tempos de Fascismos. Ideologia. Intolerância. Imaginário, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2010, pp. 161-179. Sobre a faceta colonial do general, foi recentemente defendida (Maio 2014) a tese de Sérgio Neto, Do Minho ao Mandovi: um estudo sobre o pensamento colonial de Norton de Matos, Tese de doutoramento em História Contemporânea apresentada à Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013 (policopiada). Ainda em curso de elaboração encontra-se uma outra tese, de Maria Alexandre Dáskalos, sobre o alto- comissariado de Norton, a apresentar na UNL.

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discurso de Norton, por um lado, e a sua acção no terreno, por outro52, publica em

2011 uma nota biográfica num dicionário dedicado à vida dos homens e mulheres que

moldaram a história de África53. Cleveland sublinha o perfil colonial, ao passo que

Janeiro, que escreve num dicionário sobre a I República e o Republicanismo em

Portugal, prefere acentuar a sua faceta de político — que não exclui, muito pelo

contrário, a sua acção como colonial54. É precisamente esta perspectiva política que

agora nos propomos desenvolver.

4. Objectivos

A compreensão do papel político de Norton no seio da galáxia republicana

portuguesa, durante e após a I República, é o objectivo principal desta dissertação.

Apesar de não prescindirmos de ensaiar um quadro global deste político

republicano na política republicana, não iremos desenvolver de igual forma os vários

períodos da sua vida pública nem, sequer, tratar de forma exaustiva todos os aspectos

dos períodos em que nos detemos mais demoradamente. Na verdade, iremos centrar-

nos num conjunto de perguntas que são as teses que pretendemos testar,

seleccionando para tal alguns períodos e prismas a aprofundar. Concomitantemente,

teremos de dedicar algum tempo a um labor mais positivista, indispensável para

esclarecer o fio dos acontecimentos que, para alguns desses períodos e espaços

geográficos menos estudados, nem sempre encontrámos estabelecidos de forma

inequívoca. Oscilaremos, assim, entre um registo mais narrativo e outro mais

interpretativo.

52

Em especial no que respeita ao trabalho indígena. Todd Cleveland, «Biographical Discrepancies: José Norton de Matos, the Portuguese Colonial State and the Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), 1912-1975», Comunicação apresentada à African Studies Association (ASA) Annual Meeting. New Orleans, 2009 (texto policopiado, cedido pelo autor). 53

Todd Cleveland, «Norton de Matos, José Mendes Ribeiro (1987)» in Henry Louis Gates Jr., Emmanuel Kwaku Akyeampong (eds.), Dictionary of African Biography. New York, Oxford University Press, 2011. 54

Helena Pinto Janeiro, «Matos, José Mendes Ribeiro Norton de» in Maria Fernanda Rollo (coord.), Dicionário de História da I República e do Republicanismo, Volume II, Lisboa, Assembleia da República, 2014, pp. 791-792. Não por acaso, «o colonial» foi o epíteto atribuído, pela redacção de um periódico de divulgação histórica de Lisboa, a Norton, num número especial que dedicou a uma galeria de personalidades da I República, por ocasião do centenário da sua implantação. Helena Pinto Janeiro, «Norton de Matos, o Colonial» in Visão História: 41 Grandes Figuras da I República, Nº 10, Setembro 2010, pp. 74-75.

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Em primeiro lugar, iremos tentar perceber o que foi preciso para que um liberal

de tradição monárquica como Norton aderisse à República, por um lado, e a sua

adesão fosse desejada pelos republicanos vencedores do 5 de Outubro, por outro.

Discutiremos se a adesão à maçonaria e a aproximação a grupos paramaçónicos, como

os Jovens Turcos, fizeram ou não parte dos requisitos facilitadores daquele processo.

Analisaremos, ainda, se a adopção de um discurso e práticas anticlericais, tendo em

vista a maior laicização da sociedade e da política, foi também uma condicionante a ter

em conta. Pela parte de Norton, veremos até que ponto a adesão ao novo regime não

estará ligada à convicção de que a República se encontrava determinada a dar as

condições necessárias e suficientes para, finalmente, transformar o terceiro império

português de uma realidade em grande parte virtual num império efectivo.

O segundo grupo de perguntas gira em torno do conceito e prática da missão

civilizadora da I República em África, que discutiremos essencialmente a partir de dois

indicadores: o trabalho e a educação. Estando a educação do ‘homem novo’

republicano no cerne do projecto laicizador da República Portuguesa, pretendemos

compreender como Norton conciliou a sua política educativa e o projecto das missões

laicas com a rede escolar das missões religiosas que foi encontrar fortemente

implantada no terreno. O tema parece-nos duplamente relevante, não apenas por a

religião ser uma questão politicamente fracturante durante a I República mas também

por as missões terem uma relevância dificilmente contornável para a integração das

populações indígenas na órbita colonial através da instrução. O outro indicador

escolhido, o trabalho, encontra-se no âmago da questão colonial, atravessando

transversalmente todo o espectro de problemas levantados pela dominação dos

africanos e a sua transformação em súbditos coloniais. É, por isso, especialmente

interessante a compreensão do modo como Norton lidou com as inevitáveis

contradições entre as duas apostas políticas que perduram como a imagem de marca

da sua acção em Angola. Nomeadamente, como conciliou a defesa intransigente dos

direitos dos indígenas, em especial o direito a escolherem livremente o seu trabalho,

por um lado, com a sua política de investimento em obras públicas e fomento

económico a implicar o aumento exponencial das necessidades de mão-de-obra, por

outro.

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Em terceiro lugar, queremos compreender se o papel de Norton, enquanto

protagonista do milagre de Tancos, se circunscreveu à organização da operação militar

que colocou de pé um exército para a República poder combater no teatro europeu da

Grande Guerra. Queremos testar a hipótese de que, pelo contrário, o ministro da

Guerra teria tido um desempenho eminentemente político que extravasou em muito o

papel de braço militar de um grupo fluido de políticos que, dentro do campo político

republicano e, em especial, no seio do partido democrático e do afonsismo, apostaram

na beligerância portuguesa. Para tal, focar-nos-emos menos nos aspectos militares e

mais na política, em especial na propaganda, discutindo o impacto político da sua

acção no seio do Partido Democrático e no seio da galáxia política republicana.

Um outro eixo interpretativo irá centrar-se na segunda metade da vida pública

de Norton, a sua vida de oposicionista, começando por tentar perceber se terá sido

apenas por acidente ou exclusão de partes que Norton se torna um símbolo da I

República durante a Ditadura Militar e o Estado Novo. Neste que é o nosso quarto

objectivo específico, interrogar-nos-emos se o general não terá sido, ele próprio,

candidato a ditador, contribuindo assim, pela sua ambição, para frustrar o sucesso das

tentativas de criar frente unitárias e acabar com Ditadura ou se, pelo contrário, terá

sido, sem aquela agenda escondida, um promotor de unidade entre as várias

oposições. Discutiremos, ainda, se a sua liderança do Grande Oriente Lusitano Unido,

nas vésperas da passagem forçada à clandestinidade dessa instituição, foi ou não

eminentemente política.

Por fim, pretendemos compreender a margem de manobra de Norton no

exercício do papel de figura referencial da República no seio das oposições, nos anos

finais da II Guerra Mundial e no pós-guerra, até à sua candidatura presidencial de

1948/1949. Em especial, se se terá limitado a ser uma figura pouco mais que

instrumental de agendas que não dominava, nomeadamente da agenda comunista. Ou

se, pelo contrário, não terá sido por instrumentalização alheia que se impõe como

figura tutelar dessa última e improvável frente unitária oposicionista já no período

mais agudo da Guerra Fria, fazendo a ponte entre as várias gerações e ciclos da

oposição.

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5. Fontes

Para tentar responder a este conjunto de questões, socorrer-nos-emos de um

amplo conjunto de fontes que, no entanto, procurámos utilizar de forma cirúrgica, em

função das teses que orientam a nossa investigação.

Procurámos ouvir longamente a voz de Norton mas raramente recorremos aos

seus livros mais famosos e mais citados. Na verdade, além de não serem os seus

escritos mais interessantes do ponto de vista literário55, estão longe de ser os

testemunhos mais relevantes para a compreensão da sua acção política e, mesmo, do

seu pensamento. De facto, mesmo se nos confinarmos unicamente às publicações do

próprio, cuja lista é assaz extensa, verificamos que as mais importantes são as coevas,

editadas durante e imediatamente após os cargos políticos que exerceu: portarias,

decretos, discursos, relatórios, conferências, entre outras. Não pretendemos com isto

subestimar a importância do manancial de publicações e outros escritos que Norton

foi produzindo, nomeadamente sobre questões coloniais, nas décadas que se seguiram

ao abandono de cargos públicos na esfera do poder. Simplesmente, não se nos

afiguram como as fontes mais operativas para testar os objectivos a que nos

propusemos, além de o estudo de um tal corpo documental implicar, só por si, a

produção de uma (ou várias) tese(s) suplementares. Se, em tudo o que produz, Norton

tem geralmente a preocupação de deixar uma imagem para a história, esse cuidado

tende a estar particularmente presente nos livros e artigos que publicou a posteriori,

retocando a sua acção política passada sempre que conveniente, tanto para si como

para o que considerava ser o interesse do país. Não que essa vontade não estivesse

presente nos textos coevos que produziu, incluindo os oficiais. Simplesmente, então, a

sua linha de pensamento é, regra geral, mais clara, o raciocínio mais articulado,

permitindo além do mais ir monitorizando o modo como foi evoluindo ao longo do

tempo.

55

Entre as suas muitas qualidades não se incluiria «o dom da escrita» (Mário Soares, «Prefácio» in Armando Malheiro da Silva, José Pedreira Castro Norton, Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida: Factos, Acontecimentos que a Minha Memória Guardou Conferências, Discursos e Artigos e Suas Raízes no Passado, Vol. 1, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005, p. 11). De facto, em especial nas suas memórias, a fluência da escrita nem sempre é a melhor, com a frequente inclusão de longas transcrições de escritos anteriores, com prejuízo para a coerência do conjunto.

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Aos escritos publicados, juntam-se os não editados, produzidos quer em âmbito

oficial, quer em âmbito privado, como correspondência e diários. Nem sempre, porém,

são necessariamente estes últimos aqueles em que mais abertamente exprime o seu

pensamento. Não obstante, o arquivo de Norton tem a enorme vantagem de, além dos

seus papéis mais privados, conservar papéis oficiais que, frequentemente, ou não

constam dos arquivos institucionais no âmbito dos quais foram produzidos, ou,

podendo eventualmente constar, não estão inventariados ou, sequer, identificados,

não havendo como os encontrar a não ser por uma sucessão de acasos — com

resultado feliz apenas em alguns casos. O que não significa que não tenhamos

recorrido, com proveito, a vários arquivos oficiais, em que avultam o Arquivo Histórico-

Militar (AHM), o Arquivo Histórico-Ultramarino (AHU), o Arquivo Histórico-Diplomático

do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHD-MNE), o Arquivo Nacional da Torre do

Tombo (ANTT) e os National Archives-United Kingdom (NA-UK).

Além da voz de Norton, procurámos ouvir várias outras vozes com quem se

relacionou. Além da correspondência recebida de muitos deles, conservada no arquivo

pessoal (Joaquim José Machado, António Simões Raposo, Augusto Casimiro, Afonso

Costa, José Ferreira Dinis, Freire de Andrade, Cerveira de Albuquerque, Almeida

Ribeiro, Sá Cardoso, Vitorino Guimarães, António de Almeida, Ernesto Vilhena,

Rodrigues Gaspar, António Sérgio, Mário de Azevedo Gomes, entre muitos outros),

consultámos os papéis privados de Fernando Tamagnini Abreu e Silva (no AHM), de

Nathaniel Walter Barnardinston (no Liddell Hart Center for Military Archives – LHCMA),

Bernardino Machado (Arquivo Bernardino Machado – ABM, e Arquivo da Fundação

Mário Soares – AFMS), Augusto Casimiro e António Ginestal Machado (Arquivo de

Cultura Portuguesa Contemporânea – Biblioteca Nacional de Portugal – ACPC/BNP),

Bento de Jesus Caraça, Teófilo Carvalho dos Santos e Mário Soares (AFMS). Outras

vozes surgem maioritariamente em contextos mais institucionais, de que salientamos

as de autoridades católicas, como D. João Lima Vidal, Manuel Alves da Cunha, e de

missionários espiritanos como Louis Keiling ou Faustino Moreira dos Santos (Arquivo

Secreto do Vaticano e Arquivo da Congregação da Propaganda Fide), além das de

missionários protestantes, como o congregacionista canadiano John Tucker

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(Missionary Archives – School of Oriental and African Studies), ou o bispo metodista

norte-americano Joseph C. Hartzell.

6. Plano da tese

Começaremos, no Capítulo I, por compreender como se deu a entrada de

Norton de Matos na política após a implantação da República em Portugal. Com alguns

flashbacks sobre a carreira anterior de Norton como militar e fazedor de império na

Índia e na China, analisaremos as duas partes do seu namoro com os republicanos, em

Lisboa: o envolvimento na polémica do cacau escravo, por um lado, e a aproximação

aos Jovens Turcos e à maçonaria, por outro.

Seguir-se-á um segundo capítulo sobre o primeiro mandado de Norton à frente

do governo de Angola, ao serviço da República. Após uma abordagem inicial mais

narrativa, indispensável para reconstituir o fio cronológico dos acontecimentos dos

primeiros tempos da sua acção governativa, passaremos a uma análise mais temática.

Focar-nos-emos em dois aspectos essenciais para compreender a missão civilizadora

preconizada pela República para a sua maior colónia em África: as questões do

trabalho e da educação dos africanos negros, os chamados ‘indígenas’.

O terceiro capítulo será dedicado ao processo de ascensão e queda de Norton

na política nacional, em sede partidária e governamental. Após um primeiro ponto

dedicado ao seu baptismo de fogo como revolucionário, analisaremos a luta que

travará, em várias frentes, para que o exército português vá combater na Flandres,

antes e depois de conquistar a pasta ministerial da Guerra. Concentrar-nos-emos, em

especial, na operação de treino militar que promoveu no Verão de 1916, em Tancos,

que analisaremos segundo o prisma do conceito coevo de propaganda pelo facto.

Passaremos, depois, ao estudo da missão diplomática que o levou a França e a

Inglaterra e à análise do seu desempenho durante a crise social e política interna nos

meses que precederam a revolução sidonista e a sua partida para o exílio.

No capítulo IV, procuraremos reflectir sobre o papel de Norton na Nova

República do pós-guerra. Discutiremos o significado do seu regresso à política para

lidar com o legado da guerra e do império, como delegado à Conferência da Paz em

Paris e de novo à frente do governo de Angola, agora como alto-comissário da

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República. Analisaremos o modo como revisitou, com novos poderes e meios, o

conceito e a prática da missão civilizadora.

Os dois últimos capítulos serão dedicados à vida pública de Norton como

adversário da Ditadura Militar e do Estado Novo. Veremos, no Capítulo V, como vai

crescendo como figura de referência da República, com as tensas relações com a Liga

de Paris, o patrocínio da Aliança Republicano-Socialista (ARS), o mandato à frente da

maçonaria portuguesa, para além de uma passagem pela prisão e por dois longos

períodos de exílio político.

Finalmente, no último capítulo, debruçar-nos-emos sobre o segundo ciclo de

Norton como oposicionista, a partir dos anos finais da II Guerra Mundial. Analisaremos

o seu papel de senador da República no seio das várias frentes unitárias da oposição

ao Estado Novo, após a experiência percursora de promotor da ARS: o MUNAF, o MUD

e, finalmente, na candidatura à Presidência da República contra o candidato de

Salazar, Carmona.

CAPÍTULO I. UM POLÍTICO ACIDENTAL? OS ANOS DECISIVOS, COM A REVOLUÇÃO A QUENTE (1910-1912)

I.1. O namoro, parte 1: Norton e a polémica do cacau escravo

O percurso de José Norton de Matos na cena política republicana portuguesa é

tão mais inesperado quanto se sabe que, ainda no Verão de 1910, recém-chegado a

Portugal depois de mais de uma década no Oriente, ponderava a filiação num partido

monárquico, o Partido Regenerador, no qual já o seu pai e avô tinham militado56. Aos

43 anos, o capitão Norton de Matos é, porém, mais um monárquico de tradição do que

de convicção, apesar de, nos seus tempos de juventude, ter chegado a confessar ao pai

56

José Norton, Norton de Matos: Biografia: Fronteiras do Tempo, p. 173. Sobre o período de Norton no Oriente, cf. Idem, pp. 113-172; e Sérgio Neto, Do Minho ao Mandovi: um estudo sobre o pensamento colonial de Norton de Matos, pp. 118-167.

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que, se dependesse de si, não teria escrúpulos em mandar fuzilar os cabecilhas da

revolta republicana que eclodira no Porto a 30 de Janeiro de 189157.

A ida a banhos, em vésperas da revolução de 5 de Outubro de 1910, a uma

estância de veraneio em Moledo do Minho, onde Bernardino Machado (1851-1944)

tinha casa de férias58 e as longas conversas que aí teve com esse que era um dos mais

emblemáticos e populares rostos da oposição republicana e da maçonaria, será, ao

que tudo indica, decisiva para o seu futuro político. A capacidade de atracção de

liberais como Norton, à causa republicana, era, aliás, uma característica marcante do

perfil político de Bernardino, ele próprio um antigo monárquico convertido ao

republicanismo59.

Norton não perde tempo e, ainda nem duas semanas tinham passado após a

revolução, escreve a Bernardino, agora ministro do governo provisório da República,

enviando-lhe um artigo que acabara de publicar sobre dois temas eminentemente

políticos que, acredita, «hão-de merecer a cuidadosa attenção do Governo da

Republica»60: o caso do Crédito Predial Português61 e, em especial, o caso dos serviçais

angolanos nas fazendas de cacau de São Tomé, ambos escândalos que mancharam a

reputação internacional da monarquia portuguesa no seu final.

57

A carta, conservada no Arquivo da Casa do Bárrio, em Moreira do Lima, é citada por José Norton, Norton de Matos: Biografia: Fronteiras do Tempo, p. 78. 58

Idem, p. 174. 59

Maria Alice Dias de Albergaria Samara, As repúblicas da República: História, cultura política e republicanismo, p.73. 60

ARQUIVO BERNARDINO MACHADO (ABM), José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Carta de Norton Matos a [Bernardino Machado], Lisboa, 18-10-1910, mns. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta carta. 61

Norton volta a este tópico, que já tinha abordado em artigo no Verão anterior, acrescentando agora um comentário claramente de aproximação ao novíssimo regime entretanto implantado, ao identificar «as roubalheiras» envolvidas no escândalo do Crédito Predial Português com o próprio regime monárquico dos últimos 50 anos: «a historia da C

a de Credito Predial, a sua organisação, os

escandalosos privilegios que obteve, a usura com que sugava os mutuarios, que lhe cahiam nas garras, a maneira dolosa como a encobria, a qualidade e cathegoria dos homens que, em regra, fizeram parte dos seus corpos gerentes, a sua administração, e as trapaças que a caracterisaram, e por fim as monumentaes roubalheiras ha pouco tempo descobertas, tudo isto ligado á existencia de uma lei iniquia sobre execuções prediaes e arrematações, que deitou por terra os principios liberaes e justos das antigas Ordenações, forma, a meu vér, um conjuncto, que traduz e resume o passado regimen nos seus ultimos 50 annos». O artigo é assinado sob pseudónimo de Mendes Ribeiro, «Credito Predial Portuguez» in O Economista Portuguez. Revista de Politica Economica e de Finanças (Metropole e colonias), Nº 226, 16-10-1910, p. 703. A aposta forte de Norton nos artigos que publica n’O Economista Portuguez nestes primeiros tempos do novo regime será, porém, no tema da escravatura/trabalho forçado.

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E não fosse acontecer que à atenção do governo escapasse que este capitão

recém-chegado de uma missão diplomática à China sobre eles vinha «advogando sã

doutrina», Norton apressa-se a enviar cópias a Bernardino. Significativamente, Norton

não «abusa da bondade» do ministro republicano pedindo-lhe para ler sobre temas e

geografias que melhor dominava e sobre os quais abundantemente escrevera na

mesma revista todo o Verão: a Índia Portuguesa, sobre a qual tinha um livro aprazado

para publicação62, ou, então, os meandros das relações luso-chinesas a propósito de

Macau63. Pelo contrário, a aproximação de Norton ao regime republicano, com a

revolução ainda quente, é feita com temas que envolvem Angola, a mais rica colónia

portuguesa, tocando num ponto nevrálgico do ideário maçónico, que será bandeira da

I República: o fim efectivo de práticas remanescentes de escravatura no império

português, muito tempo após a abolição legal da dita. A polémica internacional sobre

o cacau escravo (conhecida em Portugal como a ‘questão dos serviçais’), produzido em

São Tomé com mão-de-obra angolana, está ao rubro nos anos finais da monarquia

portuguesa64 e será mais uma pedra na engrenagem do reconhecimento diplomático

do novo regime pela Grã-Bretanha.

Em 1910, Norton não é, ainda, o sobranceiro estadista que mais tarde se

recusará a responder, pelo menos em público, às acusações de esclavagismo no

império português feitas por estrangeiros que considera moverem-se por

inconfessáveis fins (a cobiça das colónias portuguesas). Em Outubro de 1910, Norton é

um candidato a político que vê a janela de oportunidade que se lhe abre com o novo

regime, em pleno período revolucionário, e aproveita-a. A hora não é de moderação, é

62

O livro, aprazado para edição em fascículos pela editora A Nacional, fora apresentado ao público nesse Verão: José Norton de Mattos, «India Dez Annos De Residencia Em Goa, Damão E Diu – O Passado E O Presente De Uma Colonia Portugueza – Duas Palavras De Introducção» in O Economista Portuguez, Nº 219, 21-08-1910, pp. 580-581. 63

M.[endes] R.[Ribeiro], «CHINA CONTRA PORTUGAL: Perigo amarello em fundo negro: Os chineses preparam uma reclamação E o statu quo? Foi-se?» In O Economista Portuguez, nº 220, 28-08-1910, pp. 600-601; Mendes Ribeiro, «CHINA CONTRA PORTUGAL Perigo amarello em fundo negro: A China tem tentado, tenta e tentará expulsar-nos. Mandem soldados para Macau! Soldados é o que mais é preciso!» in A Instrucção Commercial Da Casa: Revista Quinzenal Encyclopedica De Instrucção Commercial E Interesses Do Commercio, nº 223, 18-09-1910, pp. 649-650. 64

Jeremy Ball, «’Alma Negra’ (Black Soul): The Campaign for Free Labor in Angola and São Tomé, 1909-1916» in Portuguese Studies Review, Vol. 18, Nº 2, 2012, pp. 51-72; James Duffy, A Question of Slavery: Labour Policies in Portuguese Africa and the British Protest, 1850-1920, Oxford, Oxford University Press, 1967; Miguel Bandeira Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras: A “Missão Civilizadora” do Colonialismo Português (c. 1870-1930), Lisboa, Impr. de Ciências Sociais, 2010.

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de cortar a direito. Assim, fala claro, sem verniz diplomático. Num artigo publicado

onze dias após a revolução65, afirma não se importar se são estrangeiros ou

portugueses a denunciar a persistência de escravatura. Se ela realmente existe, a única

atitude decente é não tentar esconder o sol com a peneira mas fazer de tudo para

exterminar o problema. E sugere que o novo regime faça da questão uma bandeira,

transformando a fragilidade num trunfo diplomático, que ajude a novel República a ser

reconhecida pelas potências estrangeiras campeãs do antiesclavagismo. Afinal,

estamos perante o

«crime de lesa-civilisação» da «escravatura, o trafico do homem, o atentado constante ás suas mais essenciaes liberdades, a postergação dos seus mais sagrados direitos [que] se exerciam na Provincia de Angola e nas ilhas de São Thomé e Principe (...) costumes nefandos» tolerados pela «nociva acção dos governos do regimen monarchico».

O autor confessa ter-se sentido desanimado por, entre outros indícios

desoladores, se sucederem as demissões dos altos funcionários do Ultramar que

intentaram refrear ou acabar com práticas de escravatura. Acrescenta, porém, estar

convencido que:

«Hoje as cousas mudaram: a politica em Portugal soffreu já uma transformação profunda, a sociedade portugueza está rapidamente passando por ella, e o advento da Republica, trazida dos braços de uma revolução popular, há-de forçosamente traduzir-se na constituição de governos e de parlamentos, dotados do mais liberal espirito, da maior independencia, e que porão acima de tudo o interesse, o bom nome e a honra do paiz.

Por isso voltamos confiadamente á carga para pedirmos ao Governo Provisorio da Republica que dê ao mundo inteiro um testemunho do seu civismo e do seu espirito altamente liberal, supprimindo a escravatura em Angola e S. Thomé e Principe, de vez, immediatamente, e por fórma completa e radical.».

Para atingir esse objectivo, e ir de encontro ao

«grande e brilhante grupo de coloniaes portuguezes – commerciantes, industriaes, agricultores, funccionarios civis e militares -, que nos ultimos annos (...) tanto teem feito progredir e prosperar as possessões ultramarinas»,

Norton propõe uma série de medidas que são todo um programa de governo e que

visam

65

Mendes Ribeiro, «Arte De Compellir: Grandes Remedios Para Grandes Males» in O Economista Portuguez, Nº 226, 16-10-1910, pp. 700-701. Até referência em contrário, todas as citações que se seguem são deste artigo, publicado por Norton sob pseudónimo.

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«transformar radicalmente as actuaes condições do recrutamento de serviçaes em Angola, revestindo esse acto de formas de trabalho livre (..) [por] processos que envolvam sempre o respeito pelo negro, e a certeza de que elle compreende tão bem como o trabalhor dos nossos campos, a diferença entre aquella especie de de trabalho e o trabalho escravo, forçado ou compellido».

Ao invés de os serviçais irem para nunca mais voltarem, deveriam ir protegidos

por contratos de trabalho de curto prazo (dois anos), providenciando-se a título

transitório, durante dez anos, o repatriamento obrigatório dos serviçais no fim de cada

contrato; protecção do indígena em Angola e no caminho para o repatriamento; ser

assegurada a fiscalização rigorosa de todo o processo pelo governador-geral de Angola

e seus funcionários, que deverão conhecer as línguas indígenas; velar para que o

recrutamento não provoque a dissolução da família do contratado; severa punição de

quaisquer práticas de maus-tratos e ofensas corporais durante as operações de

engajamento bem como as dos proprietários das roças; pagamento de um salário

justo; melhoria das condições de habitação, alimentação, regime do trabalho e

higiene; horário de trabalho máximo de oito horas/dia e um dia de descanso

obrigatório por semana; supressão do abuso do álcool nas roças; proibição dos

roceiros fazerem negócio com os serviçais, devendo ser fechadas todas as lojas nas

roças; e, finalmente, publicação de estatísticas para melhor conhecer e dar a conhecer

que o trabalho dos serviçais angolanos em São Tomé passou a ser livre e só livre. Tudo

isto,

«em logar de os embrutecermos com a perspectiva de um degredo perpetuo, com salarios ridiculos, com trabalho excessivo, com habitação e alimentação de problematico prestimo, de os acasalarmos á guisa de um reproductor de raças cavallares, de os castigarmos como o é qualquer mula de carroça, longe das vistas da Sociedade Protectora dos Animaes.»

O capitão desafia o Governo da República a, sem demora, tomar estas ou

medidas idênticas, dando, assim,

«uma clara e alta prova do espirito de liberdade e de justiça que com certeza o anima e guia na ardua e grande tarefa que tem de executar».

Duas semanas mais tarde, Norton irá mais longe na sua aproximação ao novo

regime, apresentando aos seus leitores as primeiras medidas anticlericais do governo

provisório como o início do processo de saneamento moral da sociedade portuguesa

que deveria prosseguir com a tomada urgente de medidas antiesclavagistas.

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Congregações religiosas e escravatura seriam, assim, duas realidades moralmente

equivalentes:

«O que o Governo Provisorio da Republica tem a fazer, no caso da escravatura de Angola, é, a nosso vêr, o mesmo que fez, com mão de mestre, no caso das ordens religiosas e congregações religiosas: – arranque do flanco d’esta colonia portugueza, o escalracho [sic] da escravatura, com a mesma mão enérgica, e o mesmo gesto rapido e firme, com que limpou da herva daninha e estiolladora de frades e freiras a sociedade portugueza. E profunda confiança nos anima ao escrever estas palavras em que uma nova era de prosperidades se ha de de abrir para aquellas colonias pelo simples facto de tão radical medida. O que principalmente carece o nosso dominio ultramarino é de ser moralmente saneado.»

Com isso haverá prejuízos económicos,

«Mas paciência, porque acima de lucros maiores ou menores de um limitado grupo de proprietarios de roças está a enorme multidão de negros, que apresentamos ao mundo como subditos portugueses e está a dignidade da nação.» 66

No futuro, porém, acredita o articulista, a plena difusão do trabalho livre

acabará por atenuar esses prejuízos, libertando os patrões de pagarem aos

engajadores. Aqueles ficariam, consequentemente, com margem para aumentarem os

salários aos trabalhadores – condição essencial para que os indígenas, livremente,

queiram trabalhar.

Nas tomadas de posição públicas de Norton entre Outubro e Novembro

ressalta, claramente, o tópico do apelo ao fim efectivo da escravatura nas colónias

portuguesas. Fá-lo a título individual67 mas não só. Em conjunto com um grupo

heterogéneo de personalidades da sociedade metropolitana e luandense, será um dos

membros fundadores da Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza, com sede provisória

na Sociedade de Geografia de Lisboa. A sua adesão ao grupo é feita nos primeiros dias

em que o manifesto, ainda numa versão provisória, é divulgado, o que lhe permitirá

figurar como um dos seus membros fundadores. A ligação é feita através d’O

Economista: Revista de Politica Economica e de Finanças (Metrópole e colónias), e

nomeadamente através do seu director, Augusto Soares, que figura entre o grupo

66

J. Norton de Mattos, «Arte de compellir. O que se vae passando na casa do vizinho – Há exemplos a seguir e outros a pôr de reserva – Uma conferencia notável» in O Economista Portuguez, Nº 228, 30-10-1910, p. 741. 67

No curto período de um mês publica quatro artigos sobre esse assunto, o primeiro dos quais sob pseudónimo (Mendes Ribeiro) e os seguintes já com o seu nome. Além dos dois artigos atrás citados, veja-se também: J. Norton de Mattos, «Arte de compellir [Traduzida da lei belga]» in O Economista Portuguez, Nº 229, 06-11-1910, pp. 758-760 e «LEITURA RETROSPECTIVA. Mão d’obra em S. Tomé» in O Economista Portuguez, Nº 232, 27-11-1910, pp. 802-803.

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promotor. Por intermédio d’O Economista, aderem também outros dois «amigos»68: o

director do Hospital da Marinha, Rodrigues Braga, e o capitão-tenente Leotte do Rego.

Norton, o terceiro amigo (e colaborador), do jornal e da causa antiesclavagista, é

apresentado como capitão do Estado-Maior e ex-director dos Serviços de Agrimensura

na Índia.

Da iniciativa de um correligionário de Afonso Costa, Alfredo da Silva, professor

no Instituto Industrial e Comercial do Porto, a Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza

teria sido concebida em estreita articulação com o Governo Provisório da República,

desejoso de desafrontar a honra de Portugal, violentamente fustigada nos fora

antiesclavagistas estrangeiros. Através da tentativa de identificação entre a

implantação da República, por um lado, e a liquidação efectiva da escravatura nas

colónias portuguesas, por outro, o novo regime demarcar-se-ia, também nesse

domínio, da derrubada monarquia. As garantias oficiais dadas pelo Governo Provisório

da República nesse sentido seriam secundadas pela formalização, na sociedade civil,

de um movimento antiesclavagista que, à imagem das sociedades congéneres de

outros países, velaria pela erradicação total de práticas esclavagistas, onde quer que

elas se manifestassem69.

Em circular70, a Sociedade apresenta os seus propósitos:

«Ilustre cidadão: Portugal, agora despertado á vida, precisa de integrar-se em todos os grandes

movimentos que preocupam as sociedades modernas e agitam os grandes povos. Destes movimentos, um dos mais generosos, por certo, é o que tem por fim

despertar a consciencia universal contra essa nodoa da civilisação, a venda do

68

«Echos: Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza - Damos como primeur, o texto de uma circular que vae ser distribuida a todas as energias da Nação» in O Economista Portuguez, Nº 229, 06-11-1910, p. 756. 69

Segundo Alfredo da Silva, os objectivos da Sociedade foram articulados com o ministro da Marinha e Ultramar, Azevedo Gomes, «ficando (...) assente o seguinte plano: Fundar-se-hia em Portugal uma Sociedade Anti-Esclavagista, que teria o tríplice fim: 1

o - Esclarecer a opinião publica sobre a questão, e

assim mostrar a necessidade das reformas que o governo iria fazendo e prevenir os possiveis ataques dos roceiros a essas reformas; 2

o - Mostrar ao estrangeiro que os portuguezes são tão anti-esclavagistas

como os demais povos civilizados; 3o - Estabelecer relações com as sociedades anti-esclavagistas

estrangeiras e informa-las das reformas feitas, afim de ir acabando com a campanha de descrédito contra Portugal». Alfredo da Silva, O Monstro da Escravatura: a minha Defesa na Campanha Levantada a Propósito da Publicação do Folheto Alma Negra, Porto, Tipografia Mendonça, 1913, p. 17. 70

Magalhães Lima et alia, «[Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza - Circular de Apresentação]», Lisboa, 21-10-1910 in Alfredo da Silva, O Monstro da Escravatura: a Minha Defesa na Campanha Levantada a Propósito da Publicação do Folheto Alma Negra, pp. 17-19.

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homem pelo homem, a escravatura. É a obra das sociedades anti-esclavagistas, que ainda não temos em Portugal.

A alma portugueza, toda feita de amor e liberdade, odeia a escravatura. Apezar disso, Portugal é considerado pelo mundo como uma nação de esclavagistas. Algumas das nossas colonias são tidas como centros de escravidão.

Das duas uma: ou essa acusação é verdadeira e então urge unirmo-nos todos e, reconhecendo francamente o mal, ajudarmos o governo a acabar, para decoro da nação, ainda com os mais insignificantes resquícios dessa barbárie, ou esse conceito é falso, e então devemos pôr-nos em comunicação com as sociedades anti-esclavagistas do estrangeiro e leva-las lealmente a reconhecer o engano.

Para isto, que já não é pouco, e para acompanharmos o movimento mundial de proteção ás raças chamadas inferiores, era urgentíssimo fundar em Portugal a Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza, unindo todos os que, na metrópole ou nas colonias, ciosos do bom nome portuguez, desejam colaborar nesta obra patriotica e altruista.

Nesta convicção, os abaixo assinados, constituidos em comissão organisadora, resolveram fundar hoje a Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza e publicar esta circular para colher as adesões de todos quanto possam interessar-se por tão momentosa questão. Podem fazer parte da sociedade pessoas de ambos os sexos. As cotas dos socios serão facultativas, a principiar em 1$200 réis anuais.

Lisboa, 21 de Outubro de 1910 Saude e Fraternidade»

Significativamente presidida pelo grão-mestre da Maçonaria Portuguesa,

Sebastião Magalhães Lima, da Sociedade fazem parte71 vários outros republicanos

históricos e maçons, como o engenheiro António Maria da Silva o professor José

António Simões Raposo Júnior, com que Norton se cruzará em várias circunstâncias da

sua vida pública. Igualmente presente, Leote, o governador-geral de São Tomé

nomeado no Verão pelo último governo da monarquia, para logo ser demitido por ter

tido a veleidade de querer aplicar ao Estado os mesmos princípios que se queria

obrigar os roceiros cumprir, nomeadamente o princípio da liberdade de trabalho dos

serviçais angolanos, garantido por um contrato a termo que não se transformasse, na

71

A circular é subscrita por uma comissão organizadora com a seguinte composição: Presidente, Magalhães Lima, Grão-Mestre da Maçonaria Portugueza. - Secretários, Alfredo H. da Silva, Professor do Instituto Industrial e Comercial do Porto, José de Macedo, Professor e publicista. - Tesoureiro, Francisco Marques Ribeiro, Presidente da Câmara Municipal de Loanda. - Vogaes, Alvaro Afonso Roque Barbosa, Professor. - Alvaro Côrte Real, Comerciante em Angola. - A. J. Pires Avelanoso, Funcionário da Direcção do Ultramar. - António José Rodrigues Braga, Médico Nava. - António Maria da Silva, Engenheiro. - António Simões Raposo, Juiz em Angola. - Augusto Soares, Director do “Economista Portuguez”. - Carlos Braga, Comerciante em Luanda. - Francisco Arrobas da Silva, Capitão do Exército. - Jaime de Moraes, Secretário do Governo de Angola. - Jaime Leote do Rego, Ex-Governador de S. Tomé. - J.M.R. Norton de Matos, Capitão de Estado Maior. - José António Simões Raposo, Professor. - José de Magalhães, Professor da Escola de Medicina Tropical. - João de Barros, Director Geral da Instrução Primaria. - D. Matilde Agrela de Oliveira, Professora. Cf. Idem, pp. 18-19.

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prática, em ‘contrato’ e degredo perpétuo. Assim que ordena o repatriamento, no

primeiro vapor, dos serviçais ilegalmente ao serviço da Direcção de Obras Públicas de

São Tomé, anos após os seus contratos terem terminado, é imediatamente demitido

sem que o repatriamento chegue a ter lugar72. Que melhor bandeira para a Sociedade

Anti-Esclavagista patrocinada pela novíssima República do que ter consigo um

governador colonial da monarquia cuja acção humanitária terá sido travada pelo

regime derrubado?

Marcam ainda presença personalidades radicadas em Angola, entre as quais o

juiz de direito António Simões Raposo, com quem Norton muito em breve, nos

primeiros tempos do seu governo de Angola, muito virá a contar. Chegará a propor ao

ministro das Colónias o seu nome para chefiar a nevrálgica Secretaria dos Negócios

Indígenas, que repetidamente insistirá para que seja criada em Angola. Antes que

consiga ganhar esta batalha junto da arrastada máquina burocrática de Lisboa, as

relações entre Norton e Raposo azedar-se-ão, em parte, paradoxalmente, devido à

questão da escravatura, e a nomeação nunca chegará a ter lugar. Como mais adiante

veremos, entre o Norton candidato a político e o futuro Norton político a sensibilidade

a críticas alheias – nacionais ou estrangeiras, certeiras ou simplesmente demagógicas –

alterar-se-á substancialmente.

I.2. O namoro, parte 2: Norton e o PRP, os Jovens Turcos e a maçonaria

A comissão de Norton no Ministério da Marinha e Ultramar acaba na semana

a seguir ao 5 de Outubro e é para um Ministério da Guerra em plena efervescência

revolucionária que o capitão regressa. O ministro, coronel Correia Barreto73,

comanda, além do ministério, uma falange de oficiais mais jovens, quase todos, como

ele, maçons, conhecidos por Jovens Turcos. À imagem da organização reformista

homónima turca74, o grupo pugna para que o país saia do atraso em que a monarquia

teria deixado o país. Embora inclua membros não maçons, vários dos seus membros

72

«S. Thomé, Reino Independente», [O Correio da Manhã, extractos transcritos in] O Economista Portuguez, Nº 220, 28-08-1910. 73

Paulo Mendes Pinto, António Xavier Correia Barreto. Biografia de um Presidente do Senado, Assembleia da República e Edições Afrontamento, 2002. 74

M. Sükrü Hanioglu, Preparation For a Revolution: The Young Turks, 1902-1908, Oxford, New York, Oxford University Press, 2001.

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vêm da loja maçónica Portugal. Do ponto de vista político, o grupo virá a aderir ao

Grupo Parlamentar Democrático. Segundo o historiador Oliveira Marques, os Jovens

Turcos aceitariam, assim, «em última análise, a chefia superior do maçon Afonso

Costa»75. Circulando embora nas órbitas da maçonaria e do PRP, movem-se com

grande autonomia. O Ministério da Guerra do governo provisório da República é por

eles controlado e não unicamente por o seu líder ser o ministro. Na verdade, Correia

Barreto rodeia-se de vários dos seus Jovens Turcos no ministério: o capitão Alfredo Sá

Cardoso é seu chefe de gabinete; o tenente Hélder Ribeiro, seu ajudante-de-campo; e

o capitão João Pereira Bastos, chefe de Estado-Maior da 1ª Divisão. Estes homens

serão determinantes na aproximação de Norton ao PRP e à Maçonaria. Desde então

fica sob o radar de ambas as agremiações.

Em Dezembro, pelo menos a acreditar nos testemunhos indirectos do jornalista

Rocha Vieira e do general Tamagnini Abreu e Silva, Norton ainda terá sido aliciado, na

2ª Divisão Militar, em Viseu, onde se encontra então colocado, para uma conspiração

monárquica76. A balança pende, no entanto, para o lado republicano e isto desde os

primeiros dias da revolução.

Ao longo do ano seguinte, Norton continua a colaboração regular iniciada no

Verão anterior na revista A Instrução Comercial da Casa, renomeada, a partir de

Janeiro, Revista Commercial e Industrial: Publicação quinzenal illustrada de instrucção

commercial, profissional e interesses do commercio e da industria77. Embora a crónica

dedicada às Colónias Portuguesas, que aí iniciara no Verão anterior, prossiga, Norton

discorre agora igualmente sobre outros aspectos da governação, nomeadamente

financeiros. É, aliás, ele a abrir o número que inaugura a nova fase da revista, com uma

75

«Jovens Turcos» in A. H. de Oliveira Marques, Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Editorial Delta, 1986, Vol. II, col. 807-808. 76

Rocha Martins, Pimenta de Castro, Lisboa, Edição do Autor, S.d., p. 113; Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, Viseu, SACRE, 2004, n. 19 in p. CCXXXIX: «Sendo Ministro da Guerra, foi procurado por um camarada a quem indeferiu qualquer pretensão; e quando este lhe recordou a epocha em que tinham conspirado juntos, respondeu: “fui mais esperto que você...affastei-me a tempo”». 77

A revista gaba-se, no seu cabeçalho, de promover a «Organisação moderna» e os «Novos metodos de trabalho», bem como de ser «Collaborada pelos principaes escriptores, contabilistas e advogados» e «Recommendada pela Associação dos Lojistas de Lisboa».

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série de novas crónicas sobre «Finanças»78, num tom eminentemente prático. Depois

de discorrer sobre câmbios e os principais produtos do comércio mundial, explicados

de forma muito simples para o seu público-alvo de não especialistas, Norton entra

claramente por temas mais políticos na sua terceira crónica desta nova série,

propondo remédios para pôr cobro aos embaraços financeiros do país. A receita inclui

pôr um ponto final nos empréstimos contraídos no estrangeiro e amortizar a dívida

rapidamente, sem recurso a empréstimos para extinguir o deficit, apostando antes na

redução das despesas improdutivas e na atracção de capitais estrangeiros para,

juntamente com os nacionais, se poder investir no sistema produtivo da metrópole e

colónias e, assim, criar riqueza. O corte nas despesas inúteis não significa, para Norton,

em 1911 como mais tarde na sua prática política, pagar mal nem cortar nos serviços

prestados pelo Estado. Muito pelo contrário, implica pagar muito bem a menos

funcionários, a quem muito mais será exigido, tanto em habilitações como em

desempenho. Dar-se-ia assim um

«fundo golpe na empregomania (..) deixando braços e energias livres, para explorar e fazer render as riquezas latentes de Portugal e das suas colónias.».

Para libertar esses braços e essas energias, seria imprescindível, a par da

reorganização dos serviços públicos em moldes novos, tornar o sistema fiscal mais

simples, mais justo e equitativo e, concomitantemente, levar a cabo uma reforma do

ensino

«que tenha em mira a preparação de um numero reduzidíssimo de sábios e de professores, de médicos e de advogados, de pequeno numero de empregados públicos civis e militares, e de um grande numero de industriaes, de commerciantes, de agricultores, de coloniaes, de conductores de trabalhos, que d’aqui a 20 ou 30 annos se substituam por completo ao bacharel inútil, em cata de sinecuras e de noiva rica.»

Norton, com o bacharelato em Matemática pela Universidade de Coimbra, o

curso do Estado-Maior pela Escola do Exército e uma significativa experiência

profissional, não se incluía seguramente no grupo dos bacharéis inúteis79. Considerava-

78

J. Norton de Mattos, «FINANÇAS» in Revista Commercial e Industrial, Nº 29, 05-03-1911, pp. 49-51. As citações que se seguem são deste artigo, das pp. 49-50. 79

Norton, tal como «Os cerca de 3000 oficiais que, nos anos precedentes à implantação da República, enquadravam e comandavam o Exército português, podem ser considerados como pertencentes às primeiras gerações de profissionais militares formados em Portugal». Maria Carrilho, Forças Armadas e

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se, antes, um bacharel superiormente habilitado, com direito a um rendimento

também ele superior. Da leitura da correspondência para a família nos anos

anteriores80 não é descabido inferir que as motivações de índole pessoal,

nomeadamente as preocupações em progredir na carreira e manter o nível de vida a

que estava habituado na Índia – e que, admite, chocavam o restante funcionalismo

público, mas que considerava indispensáveis à dignidade do seu posto, para além de

seguirem a bitola dos seus colegas da Índia britânica –, não serão alheias à

aproximação à República. Na verdade, Norton já há algum tempo almejava chegar a

governador colonial81. A geografia é que aparentemente se altera, após a queda da

monarquia. De facto, Norton rapidamente muda de agulha, das distantes e minúsculas

remanescências do império colonial português no Oriente, para a rica e imensa Angola.

É verdade que chega a escrever parte de um livro sobre a Índia Portuguesa, com

contrato assinado com uma editora e direitos de autor já recebidos a título de

adiantamento. Após dez meses de namoro com o novo regime, porém, não hesitará

em rescindir o contrato, assumindo pessoalmente os custos financeiros pela rescisão82.

Do livro virá a publicar apenas um extracto, significativamente com a história crítica do

Padroado do Oriente83, sendo que para a escolha do extracto terá pesado bem mais a

oportunidade política do que a geografia. Como sublinha a redacção da revista, em

‘caixa’, trata-se de uma «questão da maior actualidade em face da lei da separação da

Egreja e do Estado» 84.

Já em Maio, apenas um mês após a aprovação da Lei da Separação, Norton

fizera um balanço da obra da República em Portugal, destinado a uma ampla e

qualificada audiência estrangeira, então presente em Lisboa para essa grande

operação de relações públicas do novo regime que constituiu o acolhimento do IV

Congresso Internacional do Turismo, com os seus 1500 congressistas, número nunca Mudança Política em Portugal no Séc. XX. Para uma explicação sociológica do papel dos militares, Lisboa, IN-CM, Col. «Estudos Gerais – Série Universitária», 1985, p. 138. 80

Citada por José Norton, Norton de Matos: biografia: fronteiras do tempo, Lisboa, Bertrand Editora, 2002, passim. 81

Idem, p. 141. 82

ARQUIVO NORTON DE MATOS (ANM), P. Correspondência, Declaração selada e assinada pelo editor, mns., 19-07-1911. 83

J. Norton de Mattos, «Índia» in Revista Commercial e Industrial, Nºs 39-48 (Nº Extraordinário Consagrado ao 1º Aniversário da Implantação da República), 10-1911, pp. 258-263. 84

Idem, p. 258.

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visto em Portugal para um evento do género85. Num artigo bilíngue, em francês e em

inglês86, Norton apresenta a obra dos seis meses do novo regime como

«monumental», sobre a qual se poderia escrever já «um livro» e que trouxe aos

portugueses a possibilidade de «respirar livremente», «a plenos pulmões» o ar que

lhe trazia «a saúde, o vigor e a energia da raça dos tempos passados». De que se

libertara então o país, segundo Norton? Da «asa negra» e dos «sintomas de

degenerescência» do clericalismo e da «opressão religiosa» na vida pública e privada

dos portugueses – na sua opinião, «a principal, senão a única causa de todos os

males» do país no último período da monarquia. É verdade que Norton tem o cuidado

de distinguir os alegados malefícios da «oligarquia de monges e de monjas» da

sinceridade das crenças religiosas que, subentende-se, respeita. Contudo, a sua crítica

não se fica pelas congregações religiosas, com destaque para a Companhia de Jesus,

fustigando igualmente o clero secular. Deplora o padre que, na província,

«comandava», imiscuindo-se «na vida íntima das famílias» e, de um modo geral, na

coisa pública:

«a influência clerical e o espírito de intriga, de baixeza e de incapacidade intelectual que daí derivam constituíam obstáculos intransponíveis à formação de governos que soubessem e pudessem fazer administração.»

Está explicada, assim, a razão pela qual o Governo Provisório da República

Portuguesa teve de se concentrar primacialmente na liquidação do

«clericalismo, a opressão religiosa», esse «tronco de árvore gigantesca, cujas raízes invadiam todo o solo do país e cuja sombra fúnebre pesava sobre todo o território português», essa «verdadeira excrescência sobre o/no corpo da nação contra a qual esta se tinha sempre revoltado».

A rematar o encómio ao novo regime, Norton junta ainda outras realizações,

todas elas merecedoras de elogio: os inquéritos aos serviços públicos; a legislação

85

AAVV, Congresso do Centenário do Turismo em Portugal, Lisboa, Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal in http://issuu.com/leading/docs/programa_congresso_centenario/1?mode=a_p, acedido a 05-07-2012. 86

Até referência em contrário, as citações que se seguem são retiradas, e traduzidas para português, deste importante artigo, publicado em francês e inglês, num n

o especial dedicado ao IV Congresso

Internacional do Turismo: J. Norton de Mattos, «L’ oeuvre de la Republique» in Revista Commercial e Industrial: Publication mensuelle illustrée, d’ instruction commerciale, professionelle et tecnique, baseée sur l’Organisation moderne des méthodes de travail, Edition extraordinaire dediée au IVe Congrés International de Turisme, Nºs 33-34, 04-1911, pp. 97-98; J. Norton de Mattos, «The Performance of the Republic» in Idem, pp. 113-114.

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sobre a instrução; o movimento a favor das colónias; as comissões para a

reorganização dos serviços públicos, da administração colonial, do exército e da

marinha; a propaganda dos princípios democráticos por todo o país; e, finalmente, a

forma hábil e digna como conduziu as relações diplomáticas com o estrangeiro.

Alguma vez na história se terá produzido uma «transformação tão radical, feita com

tanta rapidez e tão pacificamente»? É a pergunta retórica com que conclui o seu

texto. Em Portugal, em síntese, ter-se-ia produzido uma verdadeira «revolução social

e política». Após a publicação de um artigo com este teor, quaisquer dúvidas que

pudessem ainda subsistir entre a elite republicana sobre o posicionamento do capitão

face ao novo regime ter-se-ão dissipado. Definitivamente, tínhamos republicano.

Afirmar, porém, que a sua aproximação ao regime se deveu apenas ao

aproveitamento de uma janela de oportunidade para satisfazer os interesses pessoais,

seria demasiado redutor. De facto, à sua adesão à República não é alheio o

agastamento que vinha a sentir pelo fraco desempenho colonial da monarquia

constitucional e a esperança que essa situação pudesse agora mudar no sentido que

considerava ser o interesse do país. Desempenho esse que dependia de algumas

premissas básicas, a começar pelo conhecimento e delimitação dos territórios

coloniais. O seu trabalho, anos a fio, de lançamento das bases dos serviços de

agrimensura da Índia Portuguesa, a elaborar e concretizar um projecto de triangulação

de segunda ordem para o levantamento geodésico e topográfico, parecia ter ficado

comprometido, após a sua saída. Ainda no Verão de 1910, Norton interpelava

publicamente o último ministro da Marinha da monarquia para que desse

«ordens urgentes ao sr. Governador da Índia para não deixar acabar de comer pela bicharia tropical os trabalhos de agrimensura e cadastro, quasi por completo abandonados de 1906 para cá, e que podemos afirmar, modéstia á parte, constituírem em matéria topográfica o que há de melhor n’estes reinos e colonias. Se não fosse o gravíssimo erro da suspensão dos trabalhos cadastraes, teríamos, com o terminar de 1911, a planta cadastral perfeitíssima da colonia e, portanto, completo conhecimento da área e da distribuição geográfica das suas florestas. Assim só conjecturas podemos fazer.»87

87

Na verdade, a «bicharia tropical» teve com que se ocupar durante mais de meio século. Seria preciso chegar ao final de Outubro de 1961, para, da Missão Geográfica de Angola, ser constituída a Brigada Geográfica do Estado da Índia. Esta brigada acabou, no entanto, por exercer funções apenas durante três meses. Cf. João Matos, «Engenharia Geográfica nos Séculos XIX e XX» in Manuel Heitor, José Maria Brandão de Brito, Maria Fernanda Rollo (coord.), Momentos de Inovação e Engenharia em Portugal no

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A exasperação de Norton face à displicência manifestada pelos últimos

governos da monarquia constitucional face ao imperativo de levantar, com rigor

científico e simultaneamente técnico, os territórios coloniais, poderá ajudar a

compreender a sua atracção por esta outra faceta da República: a aposta na

modernidade. A valorização do saber-fazer tecnológico e a sua colocação em diálogo

com o conhecimento científico para, em conjunto, promoverem o progresso da nação

era algo que, para um homem como Norton, aparecia como extraordinariamente

apelativo. Quando o ministro do Fomento do governo provisório, Brito Camacho, cria,

a 23 de Maio de 1911, aquele que seria o primeiro instituto superior não militar a

formar engenheiros em Portugal, o Instituto Superior Técnico (IST), a República dá um

sinal público nesse sentido. Com uma autonomia inédita em Portugal, o Conselho

Escolar do IST depende apenas e directamente do ministro do Fomento. Na comissão

de instalação do novo instituto encontra-se o professor Luís Feliciano Marrecas

Ferreira, também presidente da direcção da Associação dos Engenheiros Civis

Portugueses (AECP), na qual Norton fora admitido no ano anterior. Marrecas, então

vice-presidente, estivera presente na sessão na qual o general Joaquim José Machado

fizera um elogio rasgado ao trabalho de topografia e geodesia que Norton

desenvolvera na Índia, propondo-o para sócio88.

Não deixa de ser significativo que, dos oito sócios efectivos que entram na

AECP durante o ano de 1910, apenas Norton não exiba o título de engenheiro. A

fundamentação que o general apresenta para a entrada de Norton não é, porém,

apenas de circunstância. Pelo contrário, deixa perceber que Norton o conquistou pelo

mérito do seu trabalho prático, de extremo rigor, numa época em que a profissão de

engenheiro, em Portugal, correspondia a uma prática fluida, encontrando-se ainda em

busca de uma definição clara e de um estatuto social equivalente aos de profissões de

Século XX, Vol. 3 Grandes Temas, Lisboa, CEITPD do IST – Publicações D. Quixote, 2004, p. 191; Mendes Ribeiro, «Índia Portugueza II» in O Economista Portuguez, Nº 213, 10-07-1910, p. 481. 88

Augusto Luciano Simões de Carvalho, Luís Feliciano Marrecas Ferreira, Antonio Augusto Nogueira de Campos, et alia, «Associação dos Engenheiros Civis Portugueses: Gerencia de 1910: Relatorio da Direcção» in Revista de Obras Publicas e Minas, Vol. Tomo XLII, 493 e 494, Janeiro-Fevereiro 1911, pp. 44-45.

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formação mais livresca89. Na sua acção, o então director dos Serviços de Agrimensura

da Índia revelara ainda outras qualidades, sublinhadas por Machado: capacidades de

liderança e de gestão da coisa pública. Na verdade, Norton criara uma escola para dar

a formação necessária aos indígenas que depois empregou como seus ajudantes nos

trabalhos práticos, o que permitiu não apenas uma grande economia de dinheiros

públicos, como, sobretudo, que o trabalho fosse levado avante em tempo útil em vez

de ficar bloqueado à espera do envio de técnicos e dinheiro de Lisboa. Tanto a

qualidade técnica do seu trabalho como a sua capacidade de realização o deixaram

positivamente «maravilhado» – nada mais, nada menos. Marrecas Ferreira, presente

na sessão, não terá deixado de ficar bem impressionado.

No ano seguinte, com o IST em fase de instalação, Norton, em Lisboa para fazer

o exame para major, aproveita a ocasião para concorrer a um lugar de professor

ordinário, cargo vitalício cuja obtenção carecia da chancela do ministro do Fomento.

Na primeira reunião do Conselho Escolar da nova instituição universitária, a 11 de

Agosto, o seu nome é proposto pelo director, Alfredo Bensaúde, para professor

ordinário da cadeira de Geodesia e Topografia. Bensaúde expõe ao Conselho os

trabalhos a que procedeu nesse sentido e que o habilitam a propor a nomeação de

Norton, bem como a de outros cinco nomes, para outras tantas cadeiras.

«O Conselho aprova por unanimidade que sejam propostas ao Govêrno as referidas nomeações, ficando o Director encarregado de nomear as comissões que devem assinar os respectivos pareceres, nos termos regulamentares.»90.

A decisão estava já tomada, como comunicara a Norton o próprio Bensaúde

dois dias antes, embora solicitando-lhe que não desse publicidade à notícia enquanto

o ministro do Fomento não desse o seu acordo91. A avaliação, curricular, já realizada

89

Maria de Lurdes Rodrigues, «O Papel Social dos Engenheiros» in Manuel Heitor, José Maria Brandão de Brito, Maria Fernanda Rollo (coord.), Momentos de Inovação e Engenharia em Portugal no Século XX, Vol. 1 Contexto, Lisboa, CEITPD do IST – Publicações D. Quixote, 2004. 90

ARQUIVO DO INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO (AIST), Livro de Actas do Conselho Escolar, 1991, «Acta nº 1 Sessão de 21 de Agosto de 1911». Presentes na reunião, além de Bensaúde e de um secretário, os professores Vilaça, Roquete, Marrecas Ferreira, Lino Neto e Álvaro Machado. Além de Norton, são aprovados os nomes de António Lobo de Aboim Inglês, para a cadeira de Estradas e Caminhos de Ferro; Giovanni Constanzo, para as cadeiras de Físico-Química e Radioctividade; Charles Lepierre, para as cadeiras de Química Analítica e Química Tecnológica, sendo este último também proposto para chefe do laboratório de análises. 91

ANM, P. Correspondência, Carta do director do IST, em papel timbrado do IST – Gabinete do Director, Lisboa, 19-08-1911, mns.

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pelo professor Francisco Ferreira Roquete, é formalizada num parecer, de que este é

relator, assinado por mais dois docentes (um deles o professor Marrecas Ferreira), em

que é sublinhada «a sua sólida instrucção scientífica», «o seu profundo conhecimento

pratico da geodesia e topografia» e as suas «apreciáveis qualidades pedagógicas»92.

Em Setembro, quando toma posse como professor do IST e é eleito pelos seus

pares para o Conselho Disciplinar93, a actividade político-partidária de Norton está ao

rubro. Aderira à facção democrática do PRP, que virá a ficar com a sigla oficial do velho

Partido Republicano Português, embora popularmente conhecido por Partido

Democrático. Quanto é aberto, no Palácio da Regaleira, em Lisboa, o primeiro Centro

Republicano Democrático, ligado ao Grupo Parlamentar Democrático, Norton

encontra-se entre os primeiros sócios94. «Nunca em Lisboa tão prontamente se fundou

um centro, porque poucas semanas se gastaram para a fundação», assegura o jornal

lisboeta afecto aos democráticos, O Mundo. Foram as semanas que mediaram entre a

substituição do governo provisório pelo 1º Governo Constitucional, chefiado pelo

almeidista Pinheiro Chagas, ao qual os democráticos se declaram em oposição. O

discurso proferido no Palácio da Regaleira por Afonso Costa, ruidosamente aplaudido,

é revelador das ideias deste PRP no qual Norton se filia: pretende servir a Pátria e a

República e combater o clericalismo, de que a incursão monárquica de Paiva Couceiro,

então ao rubro no Norte do país, não passa de uma expressão. De «onde sopra o mal»,

pergunta Afonso Costa. «O mal provém evidentemente do clericalismo; o fundo das

forças reaccionárias é meramente clerical.» E o Governo é avisado: contra o mal não

pode haver contemporizações, nem amnistias de espécie alguma. Garante que os

democráticos não têm «pressa de governar, desejando somente contribuir, mesmo do

lado da oposição, para que o país seja bem governado.». Depois do discurso de Afonso

92

Francisco Ferreira Roquete, Antonio Eduardo Vilaça, Luís Feliciano Marrecas Ferreira, «Parecer sobre a nomeação de José Mendes Ribeiro Norton de Matos para o cargo de professor ordinario da cadeira de geodesia e topografia, anexo ao despacho de nomeação de 9-9-1911», Diário do Governo (DG), Nº 212, 11-09-1911. 93

Toma posse a 22 (AIST, Livro de tomadas de posse, 1911). A 30, participa pela primeira vez no conselho escolar do IST, sendo eleito para a comissão disciplinar do Técnico, juntamente com o professor Dias Costa (AIST, Livro de actas do Conselho Escolar, 1911, «Acta nº 5»). 94

A abertura dá-se a 1 de Outubro. Norton alegará ter feito parte do grupo de sócios-fundadores do Centro, embora, na realidade, esse facto não seja absolutamente inequívoco. A sua adesão ao Centro aparece publicitada pelo jornal O Mundo no mês seguinte à sua fundação: «Mais 338 sócios do Centro Republicano Democrático», O Mundo, 19-11-1911, p. 3.

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Costa, todos sobem a Avenida da Liberdade juntando-se à homenagem promovida

pela mocidade republicana a Bernardino Machado, esse

«illustre homem público, que brilhantemente tem sustentado cá fora, dentro da sua independência política, os nobres e alevantados princípios democráticos que são a base do programa do novo Centro.»95.

Clarificada publicamente a sua posição face ao novo regime e formalizada a sua

adesão à facção democrática do PRP, onde imperam Afonso Costa e Bernardino

Machado, Norton sente-se já suficientemente à-vontade para manifestar

publicamente as suas apreensões e críticas face à política colonial da República96. Um

ano passado sobre a sua implantação, o regime,

«em matéria de colónias pouco ou nada fez (…) quase nada se tentou sequer para o lançamento das bases da nossa politica colonial e para a collocação das primeiras pedras no edifício projectado».

É verdade que, nos primeiros meses do regime republicano, concede Norton,

produziu-se a favor das colónias um movimento «verdadeiramente notável», com

multiplicação de conferências, comissões de estudo, ensino e propaganda colonial,

publicações coloniais e novas associações. E tudo isto para quê?

«para tudo, ou quasi tudo, desapparecer poucos mezes depois, por falta de ligação, por falta de apoio n’uma acção governativa creadora, transformadora e enérgica, que todos esperavam e que ninguém viu apparecer.».

É uma crítica frontal que tem o cuidado de intercalar com elogios à «grandiosa

obra da República» e com um toque de anticlericalismo pois, se o regime «em matéria

de colónias pouco ou nada fez», foi porque era «humanamente impossível» desviar

«uma parcella da sua energia» da «luta titânica» contra vários problemas endémicos

da sociedade portuguesa, com o clericalismo à cabeça. Manifesta, ainda, fé em que o

regime apostará decididamente nas colónias, ou não dependesse a própria vida do

país dessa aposta. Conclusão? A conservação e o progresso das colónias «tem de ser a

obra suprema da Republica.».

95

«A abertura do Centro Republicano Democratico: Importantes Afirmações Políticas do Sr. Dr. Affonso Costa» in O Mundo, 02-10-1911, pp. 1-2. 96

Cf. J. Norton de Mattos, «Um Imperio Colonial» in Revista Commercial e Industrial, Nºs 39-48 (Nº Extraordinário Consagrado ao 1º Aniversário da Implantação da República), 10-1911, pp. 229-231. Até menção em contrário, as referências que se seguem são deste artigo.

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E o articulista, respaldado quer na sua adesão ao novo regime, quer no facto de

ter passado uma parte considerável da sua vida adulta, até às vésperas da revolução,

«no Ultramar Portuguez, longe da miséria politica e da miséria social que corroíam o

paiz», sente-se com autoridade para traçar todo um programa de acção política para

as colónias, em especial para as duas principais: Angola e Moçambique97. Exorta a

República Portuguesa e nomeadamente o Governo contra qual o seu partido está em

oposição, a colocar, à frente das colónias,

«homens d’elite, cuidadosamente seleccionados pelo seu valor intellectual e moral, pelas suas qualidades de caracter, activos, energicos, convencidos da grandeza da missão de que a Patria os encarregou».

Poucas dúvidas restarão entre os seus leitores que Norton está em campo para

um cargo de governador-geral. No mês seguinte, a sua eleição para vice-presidente da

União Colonial Portuguesa é mais um reconhecimento das suas credenciais coloniais.

Com a queda do Governo e a subida à pasta das Colónias de um ministro democrático,

o oficial da Marinha José de Freitas Ribeiro, esse horizonte começa a ficar menos

distante. O seu correligionário ministro escolhe-o para árbitro de uma questão relativa

à Companhia de Caminho-de-Ferro de Ambaca, juntamente com Domingos Eusébio da

Fonseca, que Norton conhecera na Índia98 e agora é director-geral de Fazenda das

97

De seguida, discorre sobre as três bases em que deve assentar a política colonial portuguesa em Angola, Moçambique e Guiné, agora que «a corrente de civilisação e progresso passou a ser dupla, não só, como d’antes, do mar para o interior, mas tambem, como agora, do centro d’Africa para as duas costas, irradiando da grande actividade anglo-saxonica e da exuberancia industrial dos belgas»: 1

a)

«fazer administração essencialmente portugueza»; 2a) atrair o capital nacional, pondo fim aos entraves

que até à data se têm posto «de variadas fórmas, qual d’ellas a mais inepta»; 3a) atrair o capital

estrangeiro, aproveitando-o para benefício nacional, ao invés de tentar evitar que ele inunde as colónias portuguesas, o que, seja como for, acabará por acontecer, por mais «infantis obstáculos que queiramos oppôr-lhe». E o major dá um exemplo que, terá pesado alguma coisa no primeiro convite do governo, embora ainda não para uma nomeação política, já no mês seguinte: ser Portugal o principal explorador de uma linha férrea de penetração que «partindo de um dos nossos portos vá ter o seu terminus no coração da Africa». Para isso, não é necessário que seja ele o construtor da linha (podem muito bem ser capitais estrangeiros) mas, sobretudo, que seja ele a administrar intensivamente «a região aberta por esta fórma á exploração mundial». Como? Estabelecendo posto militares e civis; criando uma força de polícia para dar tranquilidade aos colonos que, vindos de Portugal, para aí terão de ser canalizados; construindo estradas perpendiculares à linha férrea «que a liguem com os centros da povoação, com as terras ricas da zona a que serve de eixo»; criando «escolas, granjas agrícolas e missões laicas, que aliem a um fim industrial, commercial ou agricola a civilisação e a educação da raça negra»; fazendo o levantamento topográfico da região para nele assentar «uma racional lei de concessões de terras». Ibidem. 98

Onde Eusébio estivera, entre 8 de Maio de 1907 e 4 de Abril do ano seguinte, como inspector dos serviços relativos à administração de Fazenda do Estado da Índia. Norton, ao reassumir a chefia da secção de Agrimensura, de onde andara arredado vários meses, toma a iniciativa de pedir ao Inspector

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Colónias. Pouco tempo depois, a 10 de Janeiro de 1912, Freitas Ribeiro voltará a

escolher Norton para presidir a uma comissão governamental, desta feita com o fito

de reorganizar as missões ultramarinas e o colégio das Missões, embora a queda do

ministro, na sequência da polémica sobre a questão de Ambaca, acabe por colocar

esta comissão no limbo, tanto que o novo ministro acabará por nem dela ter

conhecimento, tenho nomeado uma nova99.

A ‘questão de Ambaca’ visava resolver um impasse em que os termos da

concessão vigente, feita pelo Estado à Companhia de Caminho-de-Ferro de Ambaca,

antiga Real Companhia dos Caminhos-de-Ferro através de África, colocava a República

Portuguesa, bloqueando o desenvolvimento de Angola. De facto, ter uma linha

ferroviária de penetração a ligar um porto do litoral (no caso, Luanda) até ao interior

africano, faria da colónia portuguesa uma das principais artérias do trânsito económico

internacional, dando um impulso vital à efectiva ocupação e exploração do interior de

Angola por colonos portugueses. Essa política ferroviária era, como Norton defendera

em artigo publicado apenas dois meses antes100, absolutamente decisiva para

Portugal. Ora a situação herdada da monarquia dificultava a resolução deste problema,

pois, dessa artéria só dois troços de linha estavam concretizados: 364 km entre Luanda

e Lucala, administrados pela Companhia de Ambaca, e 140 km de Lucala a Malange,

administrados pelo Estado. Mesmo se a linha de Malange fosse prolongada até à

fronteira Leste, de pouco serviria à República Portuguesa caso não pudesse ser

administrada conjuntamente com a linha de Ambaca, jogando com as tarifas de modo

que verificasse o inventário desse serviço. Cf. Domingos Eusébio Fonseca, Índia: Relatorio Sobre os Serviços de Fazenda por Domingos Eusebio da Fonseca Sub-Inspector Geral de Fazenda do Ultramar 1907-1908, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, p. 103. 99

Só mais tarde se aperceberá que já existia uma comissão presidida por Norton que é dissolvida já após a nomeação da nova. Os trabalhos da nova comissão, presidida por Ernesto Vasconcelos, prolongar-se-ão até 1917, ano em que finalmente sairá a reforma do Colégio das Missões Ultramarinas. João M. F. da Costa Seabra, A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911, Tese de doutoramento apresentada à Pontefícia Universidade Urbaniana – Faculdade de Direito Canónico, Lisboa, Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano, 2008, pp. 421-425. 100

J. Norton de Mattos, «Um Imperio Colonial» in Revista Commercial e Industrial, Ano II, Nº 39-48, 10-1911, pp. 230-231.

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a fomentar o desenvolvimento de Angola ao invés de alimentar a especulação

financeira improdutiva101.

Em Dezembro, Norton recebe novo convite de outro democrático, desta feita o

próprio Bernardino Machado, então presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa

(SGL). O objectivo é que Norton, sócio da SGL desde 1909102, passe a integrar uma

comissão especial de estudos coloniais. Na verdade, o diagnóstico da direcção dessa

Sociedade sobre a situação colonial da República não diverge muito do de Norton:

«A nossa administração colonial é incerta; não tem uma orientação definida e pratica, e agrava-a ainda a mudança incessante de governadores e de ministros, que desfasem constantemente o que os seus antecessores fizeram, só pelo prurido das reformas; processo esse que não nos acredita perante as nações coloniaes. (...) [É preciso criar] uma forte corrente de opinião que nos retire d’esta especie de marasmo colonial.»103

O capitão integra ainda, juntamente com Almeida Ribeiro, Fernandes Rego e

Loureiro da Fonseca, comissão idêntica criada no seio do PRP. A Comissão de Estudos

Coloniais do Directório deste partido elabora um projecto de reorganização da

Secretaria das Colónias e, ainda, as bases em que deveria assentar o Conselho Colonial,

onde são introduzidos «alguns principios novos que reputa indispensaveis para a boa

admnistração do nosso vasto imperio ultramarino»104. O primeiro autor dos projectos,

101

Nos termos do contrato em vigor, como frisa Adelino Torres, «o interesse da Companhia não residia essencialmente no desenvolvimento do tráfego, mas de certo modo na sua restricção, o que, à primeira vista é pelo menos paradoxal. De facto, a Companhia recebia do Estado uma garantia de juro de 6% sobre o montante de 19.999$000 réis por cada quilómetro construído e dispunha igualmente de uma verba complementar de 1.200$000 réis por cada quilómetro explorado, ou, mais precisamente, o Estado cobria a diferença entre esse montante e as receitas de exploração que lhe fossem inferiores. Estando assim garantido, na prática, um rendimento fixo, a Companhia preocupou-se, principalmente, em reduzir os custos de exploração (material fixo, manutenção, pessoal) sobrecarregando especulativamente as tarifas por tonelada quilométrica. Se os accionistas e obrigacionistas receberam, na Metrópole e no estrangeiro, dividendos e lucros, os colonos de Angola ligados à agricultura (proprietários de fazendas) e ao comércio (importadores de produtos do interior), muitos dos quais na tripla qualidade de agricultores/comerciantes/exportadores, pagavam tarifas que, nalguns casos, chegaram a ser 10 vezes mais elevadas do que as do caminho de ferro do Congo Belga». Adelino Torres O Império Colonial Português entre o Real e o Imaginário, p. 89. 102

A 8 de Março de 1909 fora eleito sócio ordinário da SGL, por proposta de Joaquim José Machado, Alfredo Barjona de Freitas e Ernesto de Vasconcelos. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 27.

a

série, Nº 7, Julho de 1909, p. 257. 103

Questões coloniaes. Proposta apresentada pela Direcção na sessão ordinaria de 11 de Dezembro de 1911, Casa da Sociedade [de Geografia de Lisboa], 05-02-1911, imp., p. 2. 104

As bases são apresentadas ao ministro das Colónias a 30 de Abril de 1912. ANM, P. Governo-Geral de Angola (GGA) 1, Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro, Norton de Mattos, Fernandes Rego, Loureiro da Fonseca, Cópia de Relatório justificativo de propostas de modificação ao Conselho Colonial, Lisboa, 30-04-1912, 5 pp., mns.

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o juiz Almeida Ribeiro, será um dos vários titulares que se sucederão à frente da pasta

das Colónias com quem Norton irá ter de lidar, quando vier a estar à frente do

governo-geral de Angola. O magistrado é, desde 1911, membro do Conselho Colonial,

tal como, aliás, o próprio irmão de Norton, Arnaldo Norton de Matos.

Na data em que assina este segundo projecto da Comissão Colonial do

Directório, Norton já tinha sido nomeado governador-geral de Angola. O seu nome,

plebiscitado na sessão do Senado de 18 de Abril, fora proposto pelo novo ministro das

Colónias do Governo de Augusto Vasconcelos, o democrático Cerveira de

Albuquerque, e merecera já votação unânime em Conselho de Ministros.

O rescaldo da questão de Ambaca vale a Norton os primeiros dissabores

públicos e as bolas pretas de seis senadores no plebiscito, embora a sua nomeação

como governador-geral de Angola seja confirmada no Senado por uma maioria de 39

votos105. É certo que a sua intervenção na arbitragem é de natureza mais técnica que

política. Seja como for, tanto a sua nomeação como perito pelo governo como a forma

como lidará com a tempestade política subsequente, que levará inclusive, à queda do

ministro Freitas Ribeiro a 23 de Janeiro de 1912, não estão isentas de leituras políticas.

Muito pelo contrário. Afinal, é Norton e não Domingos Eusébio da Fonseca, quem sai à

liça em defesa do ministro quando estala a polémica no Parlamento contestando a

solução encontrada bem como o método para lá chegar, sem consulta prévia do

Conselho de Ministros nem do Parlamento. Usa a imprensa especializada106 e o palco

partidário, como democrata que se preza ser – precisamente, o Centro Democrático de

Lisboa – para uma conferência que deu origem a uma brochura107.

Ao contrário do ex-ministro, cujo discurso de 14 de Fevereiro na Câmara dos

Deputados também é incluído nesta última publicação, Norton posiciona-se como um

estadista que fez o que tinha que fazer, o que considerava ser o melhor para o país e

não tem qualquer desculpa a pedir por isso. O contraste não poderia ser mais flagrante

105

Diário do Senado (DS), Sessão de 18-04-1912, p. 8. 106

J. Norton de Mattos, «A Questão de Ambaca» in Revista Commercial e Industria, Nº 52, 02-1912, pp. 69-71. 107

Freitas Ribeiro, Norton de Mattos, Questão de Ambaca : Discurso proferido pelo Sr. Freitas Ribeiro na Camara dos Deputados na Sessão de 14 de Fevereiro de 1912: Conferencia Realisada no Dia 23 Fevereiro de 1912 pelo Major Norton de Mattos no Centro Republicano Democratico, Lisboa, Centro Republicano Democratico, 1912.

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com a atitude de Freitas Ribeiro que, ao invés, confessa não ser um político mas um

mero capitão-de-fragata que, no papel acidental de ministro, assume ter agido com

boa intenção embora de forma desastrada, ao não se ter assegurado previamente do

apoio político dos seus colegas de Governo nem dos deputados, falta pela qual se

penitencia.

Norton, muito pelo contrário, é peremptório em defender que

«(..) todo o homem de governo, digno d'este nome, tinha restricta obrigação de procurar desviar, sem demora e de uma vez para sempre, a situação irregular, o descredito, os perigos que as reclamações da Companhia de Ambaca envolviam.»108

Feito o acerto de contas indispensável – que, aliás, apenas atendeu a menos de

metade das reclamações da Companhia, através de uma arbitragem realizada nos

termos previstos pelo contrato vigente –, foi então possível chegar a uma solução que

permitia ao Estado passar a administrar a linha de Ambaca e os terrenos envolventes,

desde já e por um prazo de 73 anos, através de uma renda que Norton demonstra ser

muito vantajosa o Estado109. Este ficaria, assim, livre para executar «uma política ferro-

viaria rasgadamente enérgica, caracterizada por uma decisão prompta, livre de peias e

de embaraços burocráticos.»110

O que, contudo, não chegaria a acontecer, pois a solução encontrada para a

questão de Ambaca não vinga. «Não o consentiu (...) a desgraçada política do meu

108

Norton de Mattos, «Conferencia Realisada no Dia 23 Fevereiro de 1912 pelo Major Norton de Mattos no Centro Republicano Democratico» in Questão de Ambaca, Lisboa, Centro Republicano Democratico, 1912, p. 19. 109

Do ajuste de contas entre as reclamações abonadas à Companhia (menos de metade das reclamadas) e o crédito do Estado, ficou um saldo a favor deste último de 16. 637$710 réis. «Em consequencia d’este ajuste de contas obrigou-se a Companhia a ceder a linha ferrea e os terrenos ao Estado mediante um arrendamento por 73 annos (…) [num total de 9.500 contos de réis ]. Nenhuma forma de trespasse da linha, quer o seu resgate, nos termos do contracto, quer a sua compra (...) é tão vantajosa como a que o terceiro governo da Republica contractou. Para se fazer ideia de quão rasoavel é a renda fixada, basta supor, por absurdo, que a linha ferrea, com as suas estações, com o material circulante, e com 18.200 hectares de terras ao longo da linha, vale apenas 10 contos por kilometro ou sejam 3.640 contos. - Uma renda calculada sobre este valor a 5 por cento, seria de 182 contos por anno, ou de 13.286 contos nos 73 annos. Eis a que se resume a questão de Ambaca: - a um contracto de arrendamento feito em condições muito vantajosas para o Estado, e precedido de uma liquidação de contas indispensavel e necessaria. E é este contracto que odios pessoaes e uma politica daninha estão esfacelando, sem vantagem alguma para o Thesouro Portuguez, com grande prejuizo dos interesses vitaes da provincia de Angola, e com gaudio dos adversarios da Republica». J. Norton de Mattos, «A Questão de Ambaca» in Revista Commercial e Industrial, Nº 52, 02-1912, p. 71. 110

Norton de Mattos, «Conferencia Realisada no Dia 23 Fevereiro de 1912 pelo Major Norton de Mattos no Centro Republicano Democratico», p. 17.

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paiz»111, lamenta Norton. De facto, uma vez transformada numa questão partidária,

nunca mais se livrará desse cariz, com centros democráticos a receberem oradores

para defender a solução e centros evolucionistas a contestá-la virulentamente. O

ponto principal da contestação tem a ver com o encontro de contas entre a

Companhia e o Estado que, de acordo com os seus opositores, teria sido lesivo para

este último. O deputado por Angola, Camillo Rodrigues, chegará a propor no ano

seguinte, em plena Câmara dos Deputados, que o caso seja levado à justiça, proposta

que, por uma unha negra, não chega a ser admitida à discussão. Mesmo se não será

seguramente coincidência que este ataque surja no ponto mais agudo da contestação

movida, em Angola e na metrópole, às políticas de Norton enquanto governador-geral

de Angola, só uma análise mais aprofundada de toda a questão de Ambaca, que sai

fora do âmbito do nosso estudo, poderá tirar a limpo se houve ou não algo lesivo para

o Estado em todo este processo.

Seja como for, vale a pena realçar que o próprio Camillo Rodrigues reconhece

que Norton não teve qualquer intervenção no ajuste de contas, pois quando entrou no

processo já o encontro de contas estava decidido, no decurso de negociações que

tinham decorrido previamente no Ministério das Colónias entre a Companhia e o

ministro e os seus directores-gerais. Sobre um destes, precisamente Eusébio, há na

altura um inquérito a decorrer por suspeitas de abuso de dinheiros públicos, o que,

naturalmente, suscita algumas reservas. Acresce que o ministro, fazendo jus à sua

declaração de não ter jeito para a política, só adensou as suspeitas ao pedir à comissão

parlamentar que investigava o caso, que, se concluísse pela sua culpa, só apresentasse

publicamente as suas conclusões após a arbitragem estar assinada, para não prejudicar

a resolução da questão de Ambaca.

Seja como for, mesmo não tendo tido intervenção nas contas para o ajuste,

Norton não tem dúvidas quanto à lisura com que foram feitas nem, menos ainda,

sobre a urgência em resolver o impasse que há anos se arrasta, fazendo com que o

Estado perca muito dinheiro todos os anos e, sobretudo, deixe de ganhar dinheiro por

a linha não estar concluída – isto para não falar de danos internacionais que o

111

J. Norton de Mattos, «A Questão de Ambaca» in Revista Commercial e Industrial, p. 70.

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protelamento da ocupação efectiva de grande parte do território de Angola, só

possível com meios de comunicação eficazes, provoca a Portugal.

A defesa da bondade da solução então encontrada para a questão de Ambaca

passa, em 1912, também pela defesa do seu bom nome que considera ter sido posto

em causa pelo deputado unionista e ainda seu parente afastado, Egas Moniz, que o

atacara no Parlamento, em Fevereiro. Norton espera pelo fim do inquérito

parlamentar sobre a questão de Ambaca, que termina em Abril, para só então resolver

a pendência de honra com Egas. Recorre, para tal, a um método arcaico, em teoria

liquidado pela República. Ofendido e ofensor enfrentar-se-ão num duelo de espadas

francesas, a 19 de Abril de 1912, que termina com ambos feridos112. Será o primeiro

acto público, digamos assim, após a sua nomeação como governador.

Mais significativo para a nossa análise é, não tanto o duelo em si, pouco

surpreendente num homem da sua geração e criação, mas, sobretudo, os nomes das

suas testemunhas no duelo e que também o representaram na reunião prévia, de

tentativa de reconciliação e de acerto dos pormenores da refrega, que tem lugar na

véspera, às seis da tarde, precisamente após a reunião do Senado que elegera Norton

governador. Além do médico, que assegura a previsível prestação de cuidados, as suas

testemunhas são, significativamente, dois Jovens Turcos, respectivamente João Pereira

Bastos e Alfredo Sá Cardoso. Seguramente não por acaso, Pereira Bastos é membro da

loja maçónica Pátria e Liberdade, onde Norton será iniciado apenas um mês após o

duelo, a 17 de Maio.

A loja Pátria e Liberdade, nº 332, do Vale de Lisboa, seguidora do Rito Escocês

Antigo e Aceito, sob os auspícios do Grande Oriente Lusitano Unido (GOLU), fora

fundada no ano anterior expressamente para aliciar militares. No final de 1911, no

primeiro relatório para o GOLU, a Pátria e Liberdade resume a sua actuação em oito

pontos113. Antes de mais, estabeleceu relações com os militares

112

ANM, Alfredo Ernesto de Sá Cardoso, João Pereira Bastos, António Maria de Azevedo Machado dos Santos, Alexandre José Botelho de Vasconcelos e Sá, Acta nº 2, [Lisboa], 19-04-1912, 2 pp., mns. 113

«L Patria e Liberdade no 332, ao V de Lisboa» in Sup Cons dos GG IInspect GGer do Gr 33

do Rito Escocês Antigo e Acceito para Portugal e suas colonias Annuario dos seus trabalhos 1910 e 1911, Lisboa, 1912, pp. 158-160. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste relatório, p. 159.

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«promovendo nos quarteis do paiz festas de caracter patriótico com palestras aos soldados, de modo a incutir-lhes a noção do dever, o respeito pelas auctoridades e o amor pela Patria e pela Republica.»

Em segundo lugar, enviou várias missões

«para principalmente no norte do paiz e outros logares e regiões quasi selvagens, onde mais campeiam a reacção e a ignorância, promoverem uma intensa e extensa propaganda liberal e democrática, cujos relatórios, largamente elucidativos foram entregues no Ministerio da Guerra e nelles claramente se evidenciam as causas do obscurantismo d’aquellas populações»

Dedicou-se, ainda, à promoção de palestras sobre a Lei da Separação das

Igrejas do Estado, expressamente dedicadas às senhoras, tendo, concomitantemente

promovido o culto da bandeira e a execução do hino nacional, zelando pela dignidade

desses actos. Por outro lado, «conseguiu pelos seus diversos elementos obter uma

vigilância extraordinária e meios repressivos», evitando assim a entrada de

armamento pela fronteira que fizesse perigar a República. Dedicou-se, igualmente, ao

estudo do problema económico do país, com destaque para as colónias, em especial

em tudo o que respeita à colonização europeia e à regeneração dos degredados, tendo

igualmente analisado a problemática das casas de trabalho para as raparigas.

Finalmente, estudou, indo em breve apresentar ao Governo, o modo de organizar e

controlar os batalhões voluntários de defesa da República, pois

«como estavam não podiam nem deviam continuar, porque seriam assim contrários aos altos interesses da Republica: era necessário organisa-los, dar-lhes a força necessária de modo a aproveitar todas as dedicações, e disciplina-los para lhes utilizar o valor.».

Norton era especialmente sensível a este último tema, ele que, mesmo nesta

sua fase menos conservadora, nunca deixou de ser um firme adepto da disciplina

militar, para já não falar da disciplina tout court, que absolutamente não dispensava,

em si como nos outros. Por outro lado, Norton era um recruta ‘natural’ para a

maçonaria. O facto de ser um quadro militar e colonial muito qualificado e com grande

experiência não terá deixado de pesar na balança, bem como o facto de ser próximo

de várias figuras públicas maçónicas de grande prestígio (Bernardino Machado, Jovens

Turcos, Freitas Ribeiro).

O motivo central para o recrutamento, porém, terá tido mais a ver com a

recente nomeação de Norton como governador-geral de Angola, após ano e meio de

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intensa campanha na imprensa em que advogara alguns temas caros à maçonaria,

como o fim efectivo da escravatura. Caros à maçonaria e à novel República, a braços

com os estilhaços da campanha internacional que se abatera contra Portugal desde os

finais da monarquia, contra práticas esclavagistas em Angola e São Tomé, práticas que

o primeiro governador nomeado pela República, o também maçon Manuel Maria

Coelho, não tivera força política para debelar, face às enormes resistências

encontradas114, isto apesar de ter chegado a deportar colonos pelo crime de

escravatura.

No acto da sua iniciação na loja Pátria e Liberdade, no qual adopta o nome

simbólico de Danton, Norton prometerá abolir «efectivamente» a escravatura115. Na

véspera da iniciação, é-lhe oferecido um jantar no Hotel de Inglaterra por convivas do

PRP. Marcam presença no jantar, além do próprio Afonso Costa, o actual e anterior

ministro das Colónias (respectivamente Freitas Ribeiro e Cerveira de Albuquerque); o

homem-chave dos Democráticos na imprensa, França Borges; e os Jovens Turcos Sá

Cardoso, Álvaro de Castro, João Pereira de Bastos e Hélder Ribeiro, bem como o seu

líder, o antigo (e futuro) ministro da Guerra, Correia Barreto. Só um não é maçon.

Seguramente não por acaso, este grupo de convivas acompanhará Norton ao longo do

seu percurso maçónico e político. Da sua loja maçónica, está presente a já nossa

conhecida primeira testemunha de Norton no duelo com Egas Moniz, Pereira Bastos.

Da loja para onde uns anos mais tarde transitará, a Acácia, marcam presença a sua

outra testemunha no duelo, Sá Cardoso, além do próprio Correia Barreto.

Nem chega a duas semanas a participação efectiva de Norton na vida da Pátria

e Liberdade, pois, a 1 de Junho, embarca para Luanda. Não obstante, as relações com a

sua loja irão ser estreitas durante toda a sua governação, com frequente troca de

correspondência e favores. Constituirão, igualmente, uma almofada importante, na

retaguarda da metrópole, quando começar, logo no início do seu mandato, a ter de

114

Douglas L. Wheeler, René Pélissier, História de Angola, Lisboa, Tinta-da-China, 2009, p. 168. 115

ANM, Cópia de carta da Loja Patria e Liberdade, assinada pelo venerável Fernando Larcher, o secretário Jorge Augusto Rodrigues e o orador José Dias Veloso, «Ao II e P Ir Dr. Bernardino Machado», 27-05-1914, em anexo a carta da mesma Loja, assinada pelo secretário, a Norton de Matos, 30-05-1914.

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gerir conflitos complicados, tanto na colónia como em Lisboa, com a máquina do

ministério e com os titulares que se vão sucedendo na pasta das Colónias.

Com a confiança política de Afonso Costa, Bernardino Machado, Correia

Barreto e dos Jovens Turcos, o novo governador-geral leva a incumbência de cumprir o

que Manuel Maria Coelho, republicano de credenciais bem mais sólidas do que as

suas, estivera longe de conseguir plenamente: levar a República a Angola. Agora, que

República é essa, qual será a missão civilizadora da República Portuguesa que ele irá

encarnar em Angola, é o que iremos discutir a seguir.

CAPÍTULO II – UM POLÍTICO FAZ-SE: QUE MISSÃO CIVILIZADORA PARA A REPÚBLICA

LAICA (1912-1915)?

Norton parte para Luanda agudamente consciente da urgência de lançar mãos

à obra não apenas para liquidar os vestígios de escravatura mas, sobretudo, para

ocupar, desenvolver e civilizar Angola. Uma vez atingido este duplo desiderato,

ninguém poderia dizer que Portugal não possuía capacidade civilizadora. Convencido

da grandiosidade da missão que tem pela frente, avisa o ministro Cerveira de

Albuquerque116 que, «se nada podermos fazer em Angola dentro de cinco anos, será

isso o princípio do fim do nosso império colonial.»117

Angola é, então, a maior e potencialmente mais rica colónia portuguesa, com

mais de 1,2 milhões km². As suas fronteiras não se encontram, porém, totalmente

definidas face aos territórios vizinhos, à época sob a tutela de quatro outros impérios:

o francês, o belga, o britânico e o alemão118. Escassamente ocupado por colonos

portugueses119, o território angolano está longe de estar, na sua totalidade, sob a

116

Joaquim Basílio Cerveira e Sousa de Albuquerque (1863-1925), comumente conhecido por Cerveira de Albuquerque, é coronel de Engenharia e membro do Partido Democrático. 117

ANM, P. Correspondência, Rascunho de carta de Norton Matos ao ministro das Colónias, Porto da Madeira, 03-06-1912. 118

A norte, por via do enclave de Cabinda, Angola faz fronteira com o Congo Francês, então parte integrante da uma confederação de colónias, a África Equatorial Francesa (AEF). A norte e nordeste, confina com o Congo Belga e, a leste, com britânica Rodésia do Norte. Finalmente, a sul, a Damaralândia ou Sudoeste Africano Alemão, que, em 1915, será ocupado pela União Sul-Africana. 119

Situação que está longe de ser rara no universo das colónias africanas sob tutela de outros impérios. Apesar das dificuldades em obter dados estatísticos fiáveis para este período, F.T. Pimenta apresenta, já para 1920, dados comparativos relativos a nove colónias africanas pertencentes a diferentes impérios

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tutela da administração colonial, para não dizer ocupado, ou mesmo conhecido, pelo

colonizador. O general Joaquim José Machado não poupa nas palavras quando afirma

que o mapa de Angola pouco mais é do que «uma pintura»120, insistindo com Norton

para este promover campanhas de reconhecimento geográfico de modo a alterar essa

situação, tão prejudicial, e até humilhante, para os interesses portugueses. Nele

habitam povos de várias etnias e línguas cuja subjugação ao domínio colonial não é a

regra. Povos para quem a noção europeia de fronteira é um conceito completamente

estranho121. Zonas há em que as missões são a única presença europeia.

O que não impede que a tal «pintura» do mapa da colónia esteja então

dividida, para efeitos da administração colonial, em seis distritos: Congo, Lunda,

Luanda, Benguela, Moçâmedes e Huila. Uma vez que a governação do distrito de

Luanda é assumida, de facto, pelo governador-geral, Norton conta basicamente com o

concurso de cinco governadores distritais122, cuja coordenação não é fácil devido,

sobretudo, à dificuldade de comunicações e transportes que continuam grandemente

devedores do recurso sistemático aos carregadores indígenas. Tenta-se, assim,

compensar a inexistência de uma rede de estradas dignas desse nome e, sobretudo, de

linhas de caminhos-de-ferro que sejam algo mais do que pequenos troços, desgarrados

de uma rede de comunicações global, e geridos numa lógica quase exclusiva de

exploração especulativa.

A margem de manobra do novo governador-geral para alterar este estado de

coisas é escassa. Mau grado as suas intenções e declarações grandiloquentes,

encontra-se muito dependente do governo metropolitano, do ministro e da máquina

europeus. Em 2/3 delas, a minoria de origem europeia é inferior a 1% do total da população. Em Angola, esse valor corresponderá, nessa data, a 0,6%. Cf. «Quadro 17 - População dos países africanos com relevantes minorias de origem europeia em 1920» in Fernando Tavares Pimenta, Brancos de Angola : Autonomismo e Nacionalismo (1900-1961), Coimbra, Minerva Coimbra, 2005, p. 195. 120

ANM, P. Correspondência, Carta de Joaquim José Machado a Norton Matos, Lisboa, 30-12-1913. 121

Cf. João Carlos Garcia, Maria Emília Madeira e Santos, «A representação antes da alienação: imagens cartográficas da organização do espaço angolano (c. de 1883-1930)» in M.E.M. Santos (coord.) A África e a instalação do sistema colonial (c. 1885 - c. 1930): III reunião internacional de história de África - actas, Lisboa, IICT, CEHCA, 2000, pp. 91-115. 122

Respectivamente: José Cardoso (interinamente substituído, em Janeiro de 1914, por Jaime de Morais), Fernando Utra Machado, Manuel Espregueira Góis Pinto, Henrique Corrêa da Silva e César Augusto de Oliveira Moura Brás.

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do Ministério das Colónias e, em geral, da pressão das elites metropolitanas,

partidárias e outras.

II.1. Norton, Lisboa e as elites coloniais e nativas de Angola: a crise inaugural

Ainda a viagem de Norton a caminho do novo cargo em Angola vai no início e

são já visíveis os sinais de tensão que irá enfrentar, mesmo no seio dos correligionários

democráticos que deixara em Lisboa. Levar a República, ou melhor, uma versão

republicana da missão civilizadora de Portugal, para a sua mais extensa e rica colónia

na África subsaariana, significava diversas coisas, às vezes substancialmente diferentes,

de republicano para republicano. Norton, apesar da sua inexperiência política, não se

deixa apanhar de surpresa nem condicionar facilmente, mesmo quando entre o grande

leque de personalidades que o brindam com conselhos, mais ou menos interessados,

surgem políticos com a influência de um Afonso Costa. No porto da Madeira, onde o

vapor que o leva a Luanda faz a primeira escala, Norton confessa ao ministro Cerveira

de Albuquerque o seu incómodo por um alvitre que acabara de receber de Costa, com

o qual manifesta divergências não despiciendas. Aconselhado por este a, no governo

que ia assumir, não deixar de contar com as grandes companhias para o

desenvolvimento do território angolano, Norton põe-se em campo e apressa-se a

solicitar ao ministro que não tome decisão alguma em Lisboa sem o consultar

primeiro. E avança, desde já, a sua visão, de grande reserva, em relação à eventual

concessão de poderes latos sobre territórios demasiados extensos a companhias

estrangeiras:

«Mal impressionado me deixou a comunicação que me fez o Afonso Costa – apesar d’ella não constituir inteira novidade para mim. Sou absolutamente contrário ás grandes concessões, às que abrangem, por exemplo, um districto inteiro, às que envolvam direitos de soberania ou os antigos direitos majestáticos – Na carta que hoje escrevo ao Afonso digo-lhe: “Temos de resistir concedendo o que podemos e devemos conceder, o que é útil que se conceda: a navegação livre com prémios para os navios nacionaes; um regimem pautal, em que apenas um pequeno diferencial proteja os productos da metropole; concessão de terrenos individuaes e em pequenos lotes, a estrangeiros; por excepção, concessões de maiores areas a companhias estrangeiras, mas nunca abrangendo regiões inteiras e procurando-se sempre cortar-lhes a continuidade por concessões ou obrigação de concessões a nacionais”. Há ainda a acrescentar: concessões a nacionais e estrangeiros da exploração, por um determinado numero de anos, dos productos do solo – borracha, cera, ou o que seja – sem direito à posse do terreno –. Por estes processos julgo que poderemos tornear as dificuldades. – Eu hei de propor medidas neste sentido dentro

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de pouco tempo. – O que peço encarecidamente a V. Ex.ª é que não façam ahi nada sem me ouvirem- É indispensavel pucharmos no mesmo sentido e guiados pela mesma orientação. – Sem isso nada se poderá fazer.»123.

Não será a última vez que Norton e Afonso Costa abordarão esse tema de

comum interesse (embora não propriamente pelas mesmas razões) das grandes

concessões.

A 17 de Junho de 1912, quando, já em Luanda, toma posse para o primeiro

mandato à frente do governo-geral de Angola, Norton recebe a notícia da queda do

governo da República que propusera a sua nomeação e da constituição de um novo

ministério sob a chefia de Duarte Leite. Visto o titular da pasta das Colónias, o

democrático Cerveira de Albuquerque, se manter no novo governo com o mesmo

pelouro, a incerteza que Norton poderia sentir, sobre as orientações que de Lisboa

viriam, não será grande. Ou, pelo menos, assim ele o pensaria nesta fase inicial. Seja

como for, será a primeira mudança do governo central com que terá de lidar. No total

dos dois anos e meio de mandato, terá como interlocutores cinco governos centrais e

outros tantos ministros das Colónias. A Cerveira de Albuquerque suceder-se-ão na

pasta, respectivamente, Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro, Alfredo Augusto Lisboa

de Lima, Alfredo Rodrigues Gaspar e, finalmente, Teófilo José da Trindade. À excepção

do juiz Almeida Ribeiro, todos os outros são militares: três oficiais do Exército, da arma

de Engenharia, e um oficial da Marinha124.

Norton tenta, desde o início, descolar da imagem de homem de mão dos

democráticos, colocando-se, ao invés, na posição que lhe era mais cara: a de estadista.

No discurso que profere na tomada de posse125, declara enfaticamente ao que não

vem (fazer política partidária) e ao que vem (servir a Pátria e a República, pugnando

pela Ordem e pelo Progresso). Para isso, apela não apenas ao auxílio e ao «concurso

de todos os republicanos, sem uma única excepção» mas igualmente ao «apoio

123

ANM, P. Correspondência, Rascunho de carta de Norton ao ministro das Colónias (Cerveira), Porto da Madeira, 3 de Junho de 1912. 124

Coronel de Engenharia Cerveira de Albuquerque, capitão de Engenharia Lisboa de Lima, coronel de Engenharia Teófilo José da Trindade. O oficial da Marinha é o capitão-de-mar-e-guerra Alfredo Rodrigues Gaspar. 125

José Mendes Ribeiro Norton de Matos, «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Governador Geral, major do serviço do Estado Maior, ao assumir o Governo de Angola» in Supplemento ao Boletim Official da Província de Angola (BOPA), Nº 24, 18-06-1912, pp. 1-2.

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patriótico de todos os habitantes de Angola que sabem trabalhar e que sabem

pensar», desafiando a que se congreguem em torno de si pois,

«não se trata da obra de um só homem, ou de um grupo de homens, mas de uma obra nacional, em cuja execução desapparecem os individuos perante o esforço collectivo, que tem que ser feito por todos, sem distincção de partidos, de rivalidades pessoais, sem divisões sejam de que natureza fôrem».

O discurso curto, de um homem de acção cuja «natural impaciencia» o

«impele» a «abreviar tudo o que» o «separa do momento em que principie a metter

mãos á obra de tanta responsabilidade», parece indicar que não pretende perder

tempo com questões partidárias. Norton tem um projecto para Angola e sabe que não

pode levá-lo a cabo senão com o apoio de todas as forças vivas da colónia. Não é do

seu estilo perder tempo com guerras inúteis, mesmo se não se coibirá de travar todas

as que considerar úteis para afastar quem não se enquadre na sua linha de

pensamento e de acção.

Começa cedo, com a demissão, logo no dia seguinte, do chefe de Estado-Maior

da Província de Angola, o major de Infantaria Manuel de Oliveira Gomes da Costa, que

substitui por um homem da sua confiança, o capitão de Artilharia Carlos Henrique da

Maia Pinto. Trata-se, como transparece da versão que contará mais tarde nas suas

Memórias126, de uma questão de choque de personalidades e de estilos mas sobretudo

da afirmação da sua autoridade na colónia perante um poderio militar que, logo na

cerimónia de tomada de posse, pretendeu pública e ostensivamente condicionar o

governador recém-chegado. Mas é também expressão de diferentes visões políticas

para Angola por parte dos dois militares. De um lado, Gomes da Costa, que quer

fustigar pelas armas os recalcitrantes ao poder colonial português. Do outro, Norton,

que considera os raides militares avulso geralmente inúteis, sobretudo se não

integrados numa acção política mais global, que vá à raiz dos problemas, ao invés de

gerar mais problemas que, seja como for, com os reduzidíssimos meios militares de

que a colónia dispõe, o governo de Angola nunca conseguirá resolver militarmente de

modo definitivo. Pelo menos enquanto Portugal não apostar decididamente no

essencial: a ocupação de toda a malha territorial de Angola com o envio maciço de

126

Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 2, Ed. de 2005, pp. 122-129.

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colonos portugueses, a par do consequente avanço da administração civil colonial, em

detrimento da militar127.

O governador-geral parece determinado em cumprir o prometido de contar

com o concurso de todos em Angola para o seu governo. É certo que nomeia um

pequeno grupo de homens da sua confiança pessoal para lugares-chave. Além do novo

chefe de Estado-Maior, escolhe para chefe de gabinete o tenente de Artilharia Thomaz

Fernandes128 e para administrador do concelho de Luanda o capitão Bragança, «um

velho amigo da Índia»129. De Lisboa, ainda demorarão alguns meses a chegar Pedro

Tavares Lopes da Silva e José Ferreira Diniz. O primeiro assumirá o cargo de secretário-

geral do governo, em acumulação de funções com a de procurador da República130.

Diniz, embora venha a desempenhar funções de importância nevrálgica no governo de

Norton, relativas aos Negócios Indígenas, não é a primeira escolha para esta pasta, que

começa por destinar a um homem já no terreno, como adiante veremos.

De facto, Norton socorre-se sobretudo dos notáveis locais. Logo a 28, nomeia

uma comissão de 39 personalidades, representativas da opinião pública de Angola, a

que preside, para propor as medidas mais urgentes para a boa administração da

província131. Nela se inclui dirigentes civis e militares, judiciais e associativos, mas

igualmente um número não despiciendo de pessoas nomeadas a título individual. É

certo que a medida surge na sequência de uma recomendação do Ministério das

Colónias mas Norton conferir-lhe-á um papel bem mais do que simbólico, tentando

tecer uma rede de alianças que por um lado lhe permita levar a cabo os seus

127

Três meses depois, ao avançar voluntariosamente com a fundação da cidade do Huambo num amplo espaço livre no cruzamento de estradas e caminho-de-ferro, Norton dá um sinal dessa mesma opção pelo povoamento europeu, comércio e controlo político em detrimento da vertente militar. Maria da Conceição Neto, In Town and Out of Town: A Social History of Huambo (Angola) 1902-1961, Tese de doutoramento em História, School of Oriental and African Studies - University of London, 2012 (policopiada), p. 131. 128

Exonerando o tenente de Infantaria José Marcellino Barreira «por ter desistido da sua commissão de serviço». BOPA, Nº 24 de 1912, Suplemento, p. 3. 129

J. Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. II, 2005, p. 129. 130

Apesar de requisitado por Norton antes de partir para Luanda, em Outubro ainda não chegara e Norton insiste com o ministro para que o faça seguir com urgência. Tel. cifrado do Governador-geral de Angola ao ministro das Colónias, 1912-10-19 in ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU), P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, fl. 73. 131

BOPA, Nº 27, 10-07-1912, Suplemento, p. 24.

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objectivos e, por outro, que o respalde relativamente aos conflitos que vai tendo com

a máquina do ministério132.

Começaremos por dois casos que, logo no início do mandato, irão dividir águas

entre Norton e as elites políticas quer de Angola quer da metrópole, com

consequências para todo o seu mandato: a crise do decreto fazendário e a saga da

criação da Secretaria dos Negócios Indígenas (SNI). Entre os dois episódios, temos um

par de elementos em comum. Por um lado, serão um teste à relação de forças entre o

governador e o Ministério, em que, simultânea e paradoxalmente, ambos perdem e

ambos ganham. Por outro, constituirão um teste à relação entre Norton e as elites que

se movimentam em Angola no universo colonial. É um grupo muito heterogéneo que

inclui a elite do funcionalismo público e dos colonos que para Angola vão com intenção

de voltar logo que termine a comissão de serviço ou obtenham algum retorno

financeiro mas, igualmente, os que permanecem há décadas na colónia e já a sentem

como a sua casa. Inclui, ainda, os colonos de segunda geração, de «brancos de um só

sangue ou de sangues misturados»133, que partilham com a elite negra ocidentalizada

o facto de serem naturais de Angola e um desejo comum de autonomia face ao

centralismo de Lisboa. Por muito que pela palavra possam entender, e deveras

entendam, coisas substancialmente diferentes.

II.1.1 Uma secretaria para os negócios indígenas: primeira tentativa

A primeira medida de Norton destinada aos naturais de Angola que não

comungam dos padrões civilizacionais europeus é apresentada ao Conselho de

Governo logo a 9 de Julho. Consiste num projecto de lei, posteriormente enviado ao

ministro das Colónias134, para a criação de uma secretaria governamental

exclusivamente dedicada à maioria da população de Angola: a SNI. No final do mês,

Norton indica, em telegrama ao ministro, o nome do bacharel Simões Raposo como

132

A operacionalidade da comissão de notáveis é facilitada pela sua divisão em subcomissões temáticas, entre as quais sendo a Comissão de Estudo do Trabalho Indígena, a Comissão de Estudo da Fixação, Regulamentação e Cobrança dos Impostos Indígenas e a Comissão de Estudo do Orçamento da Província para o Ano Económico de 1913-1914. 133

J. Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. II, p. 46. 134

AHU, 807A, Cx. 23A, Ofício nº 274 do governador-geral de Angola Norton de Matos ao ministro das Colónias, Luanda, 27-07-1912.

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sendo «muito bom para secretario negocios indigenas cuja creação insisto cuja

necessidade V. Ex.ª reconhecerá [a] exemplo [de] Moçambique»135. António Simões

Raposo136 é uma aposta pessoal do novo governador, partilhando com Norton a

militância antiesclavagista. Afinal, ambos são membros fundadores da Sociedade

Portuguesa Anti-Esclavagista, cujo manifesto assinaram no ano anterior. No seio da

comissão de notáveis a que atrás aludimos, Raposo participa já em duas subcomissões

de estudo: uma dedicada à análise do regulamento das circunscrições e outra ao

trabalho indígena, ambas presididas pelo presidente do Tribunal da Relação137. Raposo

fora, ainda, incumbido por Norton da melindrosa sindicância a um governador

provincial, capitão Albuquerque Felner, que o magistrado terminará nesse Verão,

concluindo pela sua não pronúncia138.

A 22 de Agosto, não tendo vindo de Lisboa o aval para a criação da nova

secretaria, Norton avança com a nomeação de nova comissão, presidida por Raposo,

dedicada ao tão melindroso quão vital tema do trabalho indígena139: fazer com que

patrões serviçais entrem «francamente e sem sophismas de qualquer natureza no

regimen de contracto» e, em especial, fazer compreender a estes últimos que estão

moral e legalmente obrigados a «procurar adquirir pelo trabalho os meios de subsistir

e de melhorar a propria condição social e a respeitarem os contractos feitos». À

comissão compete fazer as «diligências, inspecções e visitas que julgar necessarias, de

harmonia com as instruções» dadas pelo governador-geral.

135

AHU, 807A, Cx. 23A, Ofício nº 250 do governador-geral de Angola Norton de Matos ao ministro das Colónias, Luanda, 27-06-1912. 136

Não confundir com o professor José António Simões Raposo Júnior (1875-1948), com quem Norton também se cruzará noutras ocasiões da sua vida pública. 137

Cf. Portaria Provincial (PP) nº 802, de J.M.R. Norton de Matos, Loanda, 28-06-1912, BOPA, Nº 26, 29-06-1912, pp. 395-396; e Secretaria Geral do Governo, [Constituição das sub-commissões em que se subdividiu a commissão nomeada por portaria provincial nº 802, de 28 de junho de 1912, conforme deliberado na sua primeira sessão, realizada em 8 do corrente], BOPA, Nº 27, Suplemento, 10-07-1912, p. 23-24. 138

Contra a vontade de Norton, o capitão Alfredo Frederico de Albuquerque Felner será reintegrado no cargo que tinha antes da sua suspensão, governador do distrito da Huíla, que exercerá novamente entre 1913-1914. 139

Preside o bacharel António Simões Raposo, assessorado do curador dos serviçais e colonos da respectiva comarca, do administrador ou capitão-mor do respectivo concelho, circunscrição ou capitania-mor, de um agricultor que empregue serviçais, nomeado pela respectiva Câmara ou Comissão Municipal ou, em alternativa, pela autoridade administrativa civil ou militar existente. PP nº 1092, de J.M.R. Norton de Matos, Loanda, 22-08-1912, BOPA, Nº 34, de 24-08-1912, p. 508. Até referência em contrário, as citações são desta portaria.

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Porém, Raposo demite-se-á, após duas semanas, desta e de todas as outras

comissões para as quais fora escolhido por Norton, pedindo a este que retire a

proposta, apresentada ao ministro, do seu nome para secretário dos negócios

indígenas. Para a criação da SNI será necessário esperar um ano e muitos telegramas

mais, que provavelmente continuariam na gaveta caso Norton não tomasse, a certa

altura, uma posição de força, que adiante analisaremos. Terá, entretanto, que

encontrar um substituto para a liderança da SNI. Isto porque o homem-chave da sua

política indígena é a primeira baixa sofrida da que ficaria conhecida por crise do

decreto fazendário.

II.1.2. Norton, um herói angolano: todos contra o decreto fazendário

Quando, na tarde de 1 de Setembro, Norton desembarca no porto de Luanda,

de regresso de uma viagem a Benguela, espera-o no cais toda a notabilidade

luandense, de semblante fechado140. O motivo para a consternação geral é a chegada

à província do decreto de 31 de Agosto, com as assinaturas de Manuel de Arriaga e

Cerveira de Albuquerque, reorganizando os serviços de Fazenda das Colónias em

Angola e Moçambique141. De acordo com este diploma, passa a haver, em

permanência em cada uma das colónias, um inspector-geral de Finanças de Angola.

Apesar de, em termos de carreira, se encontrar ao nível de um chefe de repartição, o

inspector gere uma rede de inspectores distritais, entendendo-se directamente com o

Ministério, via Direcção-Geral da Fazenda das Colónias, em matérias financeiras. O

governador seria, assim, colocado, na província que governava, perante uma

autoridade paralela e, de certo modo, concorrente à sua, o que comprometeria a sua

autoridade e acção, passando tudo a ser (ainda) mais centralizado numa Direcção-

Geral em Lisboa. A raiz do problema vinha de trás, de 1901, quando, precisamente,

fora criada a nova Direcção-Geral de Fazenda das Colónias, sujeitando a administração

das colónias a um jugo centralizador ainda mais apertado. O facto de a República ter

colocado à cabeça dessa Direcção-Geral Domingos Eusébio da Fonseca, sob quem 140

Cf. Independente: Semanario Colonial, Literario e de Informação, 09-10-1912. O estado de espírito das personalidades pelas quais é recebido ao desembarcar é descrito por Norton na correspondência para o Ministério das Colónias. ANM, passim. 141

Decreto de 31-08-1912, de Manuel de Arriaga e Cerveira de Albuquerque, reorganizando os serviços de Fazenda das províncias de Angola e Moçambique, BOPA, Nº 42, 19-10-1912, pp. 715-717.

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pendiam suspeitas de má gestão de dinheiros públicos, especialmente lesivos para os

interesses económicos de Angola142, já tinha tornado Eusébio persona non grata em

Luanda.

O decreto de 1912 vem apenas agudizar mais os problemas, pois dificilmente

alguém em Angola se deixaria iludir pelo argumento de que o decreto visava moralizar

as finanças da colónia, ao colocá-las sob a vigilância de um inspector independente do

governo da colónia, reportando directamente a Lisboa. O que as elites da Angola

colonial vêem é o aumento dos poderes centralizadores da metrópole e a menorização

das estruturas governativas da colónia, por cujo reforço todos – ou, pelo menos, todos

os que não estão apenas de passagem em Angola – aguardam desde a proclamação da

República. As promessas republicanas de maior descentralização eram, deste modo,

claramente defraudadas. Naquela que será a primeira de muitas comunicações para

Lisboa sobre o que virá a apelidar de «malfadado decreto»143, Norton chama a atenção

do ministro para os «gravíssimos inconvenientes»144 que ele implica. Além de ser

centralizador, defraudando, assim, o prometido no artigo 67º da Constituição da

República de 1911145, o diploma é desprestigiante para a autoridade do governador-

geral, a quem cria uma situação verdadeiramente insustentável, da qual é imperioso

retirar as devidas consequências. Para grandes males, grandes remédios, que Norton

não é homem para tolerar desprestígios deste jaez: nada mais, nada menos do que a

ameaça de um pedido de demissão. Se o coloca em cima da mesa logo neste primeiro

telegrama ao ministro, apresenta dois motivos para não o concretizar de imediato.

Antes de mais, não quer incendiar ainda mais os ânimos antimetropolitanos, o que

seria «muito inconveniente para [o] futuro [d]esta colónia»146. Depois, tem ainda

142

Nomeadamente com o alegado uso indevido, pela Direcção de Fazenda, de dinheiros da Comissão de Dívida de Angola. Cf. «RESPEITE-SE A LEI! A provincia reclama o Cumprimento do Decreto de 27 de Maio de 1911 II» in Independente…, 09-10-1912, p. 1; «RESPEITE-SE A LEI! Para que é o do Decreto de 27 de Maio de 1911? III» in Independente…, 21-10-1912, p. 2. 143

ANM, P. GGA 2, Cópia de of. confidencial [nº 61] do governador-geral Norton de Matos ao ministro das Colónias, Loanda, 14-10-1912. 144

Cf. AHU, Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida, cópia de tel. cifrado de Norton de Matos ao ministro das Colónias, Loanda, 02-10-1912. 145

«Na administração das Províncias Ultramarinas predominará o regime da descentralização, com leis especiaes adquadas ao estado de civilização de cada uma d’ellas». Constituição politica da República Portuguêsa de 21 de Agosto de 1911, Coimbra, Liv. Ed. F. França Amado, 1911, p. 17. 146

AHU, Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida, cópia de tel. cifrado de Norton de Matos ao ministro das Colónias, Loanda, 02-10-1912.

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esperança que o ministro reconsidere, suspendendo a execução do decreto para, no

mínimo, ser revista a situação do inspector-geral de Finanças face ao governador-geral.

Caso outra seja a decisão e,

«Se por desgraça esta colónia tal decreto houver de ser mantido peço me seja communicada essa resolução afim publicar boletim official. Mas esse caso rogo V. Ex.ª me mande substituir limitando-me lembrar que visto estado esta província e dado bom nome aqui tenho sabido adquirir será conveniente esperar meu sucessor.»147

O governador-geral é secundado por um movimento de protesto das elites

coloniais angolanas que, no entanto, acabará por ir mais longe do que ele gostaria.

Norton abrira, malgré lui, uma caixa de Pandora. A liderança é assumida por uma

associação comercial e por um jornal de Luanda – a Associação Comercial de Luanda

(ACL) e o jornal Independente – e o movimento alastrar-se-á em mancha de óleo pela

colónia, a outras associações, câmaras e comissões municipais, notabilidades locais,

órgãos da imprensa, lojas maçónicas, etc..

A ACL acende o rastilho na assembleia-geral extraordinária de 3 de Outubro,

expressamente convocada pela direcção para debater o decreto fazendário. Em

moção, aprovada por unanimidade148, exige-se ao ministro a sua «imediata

revogação», felicita-se o governador-geral «pelo acto de civismo que

desassombradamente acaba de praticar», manifestando apoio a essa

«sua louvável resolução pelo dever social que a esta Associação assiste de fazer manter o prestígio da primeira autoridade da província e pela sympathia e consideração que nos merece».

É verdade que os associados retomam, quase palavra por palavra, um dos

argumentos de Norton, reclamando, tal como este, contra

«a determinação mais revoltante que é o governador-geral ficar sobre a alçada de um inspector geral de Finanças que está ao nível de um chefe de repartição».

A Associação acaba por ir mais além, ao concentrar o seu ataque na «cada vez

mais inoportuna» «acção tutelar do Governo Central» e ao pessoalizá-lo. De facto, o

repúdio da tutela de Lisboa visa, em especial, Eusébio da Fonseca. A Direcção-Geral da

147

Idem. 148

«Moção» in Independente…, Suplemento ao Nº 32 (98), 04-10-1912. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta moção.

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Fazenda das Colónias actuaria em Angola de «maneira nefasta», a ponto de Eusébio, o

«bem malquisto funcionário» que a dirige, querer tornar Angola um seu «feudo».

A revogação do decreto é solicitada não apenas em nome dos «interesses que

defende» mas, de igual modo, em nome dos «legítimos interesses [da] província

gravemente ameaçados», nomeadamente o «direito que assiste [a] Angola [de]

uzufruir [de] uma administração descentralista». O decreto não ofende apenas a

«dignidade» e o «prestígio» da «autoridade» do governador-geral de Angola, a quem a

Associação secunda no seu acto de desafronta. De facto, o decreto ofende a província

inteira sendo, como é, (mais uma) expressão da «revoltante e vexatória acção tutelar

[da] absorvente direcção [geral da] fazenda [das] colónias».

Uma bateria de telegramas é enviada a várias personalidades e entidades na

metrópole e na colónia, convidando-as a secundar esta luta, intervindo junto do

ministro e publicitando essa intervenção. Em Lisboa, são interpelados o deputado por

Luanda, o delegado de Angola no Conselho Colonial e o delegado da ACL em Lisboa.

Em Angola, todas associações e colectividades são convidadas a juntar-se ao protesto.

O parceiro da Associação Comercial de Luanda, na linha da frente da luta, é o

jornal Independente que, no dia seguinte, data em que segue o telegrama para o

ministro149, edita um suplemento especial com a moção, encimando-a com uma

“caixa”, significativamente intitulada «VIVA A REPÚBLICA». Nela sublinha-se que a

«forma tão vexante e tão indigna para Angola»150 como decorreu a reorganização dos

serviços de Fazenda levou o governador-geral a pedir a demissão ou a revogação do

decreto. Está-se na véspera do segundo aniversário da revolução do 5 de Outubro.

Nas comemorações oficiais da revolução republicana que têm lugar em Luanda,

a tensão com o governo metropolitano fica, aparentemente, em suspenso. O relevo é

149

«o seu profundo descontentemento por tão retrogada disposição de lei e em nome interesses que defende e no direito que assiste Angola usufruir uma administração descentralista protesta contra offensa província que revoltante e vexatória acção tutelar absorvente direcção Fazenda Colonias expressa esse decreto traduz e apoiando acto governador-geral em desafronta dignidade do cargo e a bem prestigio sua auctoridade solicita V.Ex.ª imediata revogação decreto que legítimos interesses província gravemente ameaçados não permitem aceitar». Tel. da Associação Comercial de Luanda (ACL) ao ministro das Colónias, 04-10-1912 in AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-912 a 07-01-1913, Lisboa, mns., f. 63vº. 150

«VIVA A REPÚBLICA» in Independente…, Suplemento ao Nº 32 (98), 04-10-1912.

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dado à instrução profissional dos indígenas, com o lançamento da primeira pedra para

a construção do edifício da escola profissional do sexo feminino indígena e a

inauguração da Escola Agrícola em Luanda151.

À noite, porém, enquanto Norton dá um jantar de 72 talheres, com a presença

do cônsul inglês e o comandante da canhoeira alemã, então de visita ao porto de

Luanda, na rua fronteira os ânimos vão-se exaltando. Alguns transeuntes ponderam

passar das palavras aos actos e partir as lanternas do edifício da Repartição de

Fazenda, o símbolo odiado da sofreguidão centralizadora de Lisboa que nem a

República consegue comemorar com dignidade, ironiza o jornal Independente:

«Dos edifícios oficiais, destacava-se brilhantemente, como o ano passado, o Hospital, cujo efeito, à distancia, era verdadeiramente encantador! A contrastar com ele estava o edifício da Repartição de Fazenda, miseravelmente iluminado com meia dúzia de indecentíssimas lanternas, provocando o ridículo e a indignação também.

Quando para aqui se decreta uma reorganização fazendária trazendo á provincia o encargo de dezenas e dezenas de contos de reis – não houve, na Repartição de Fazenda meia dúzia de patacos a dispender com uma iluminação decente no edifício, que fica fronteiro ao Palacio do Governo!

Passamos por lá numa ocasião em que alguns se propunham deitar abaixo as lanternas á força de pedrada, - para remate de escarneo.

Afinal nada sucedeu. Mas foi pena…»152

Se os desacatos acabam por não se concretizar e o brilho do jantar de gala

oferecido pelo governador-geral no palácio fronteiro acaba por não ser beliscado, o dia

do segundo aniversário da revolução marca o início do fim da colaboração privilegiada

entre o juiz António Simões Raposo e Norton e, em geral, do início do fim do estado de

graça de Norton na colónia. É o dia em que Simões Raposo publica o primeiro de uma

série de violentos artigos no semanário Independente cuja autoria, apesar de não

constar no jornal, assume a título privado perante Norton em carta que no próprio dia

lhe dirige, na qual, igualmente, comunica desligar-se de qualquer serviço público, para

manter a sua liberdade de republicano e poder criticar o Governo sem peias de

qualquer espécie153.

Norton, que aprecia o homem e o gesto, manifesta o seu pesar por «perder os

seus serviços, o seu trabalho e os seus muitos conhecimentos de assuntos coloniaes».

151

Respectivamente a 5 e 6 de Outubro. BOPA, Nº 40, 05-12-1912, pp. 689-690. 152

«5 de Outubro: As Festas em Loanda» in Independente…, 09-10-1912, p. 2. 153

ANM, P. GGA 2, Carta de António Simões Raposo ao Governador-geral de Angola, 05-10-1912, mns.

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Recomenda-lhe serenidade e prudência nos protestos e aconselhando que devem ser

feitos «friamente» «ainda que com firmeza», de modo a não comprometer o «período

de acalmação»154 que a colónia estava atravessando. Está ainda longe de imaginar que

o seu ex-colaborador se virá a tornar, a breve trecho, um dos seus piores pesadelos.

No dia seguinte, a Câmara Municipal de Luanda perfilha o pedido da associação

comercial da cidade, manifestando também o seu aplauso à «patriótica atitude do

governador-geral»155. A 8 e a 10 é a vez, respectivamente, das câmaras de Moçâmedes

e da Catumbela, logo seguidas, dois dias mais tarde, da Comissão Municipal de

Malange156. As associações comerciais por toda a colónia fazem também chegar o seu

protesto ao ministro: a de Benguela logo a 6 de Outubro e as de Moçâmedes e da

Lunda, a 9157.

Apesar do protesto, este e outros telegramas chegados a Lisboa dos vários

pontos da colónia mantêm-se num registo menos agressivo do que o da Associação

Comercial de Luanda (e seguramente menos agressivo do que os que esta Associação

faz circular dentro da colónia e publicar na imprensa local). Norton, no próprio 5 de

Outubro, tratara de diligenciar junto da sua rede de governadores distritais para que

usassem a sua influência junto das associações dos respectivos distritos para que a

serenidade fosse mantida. Até ver, parece ter conseguido.

O rastilho da revolta, porém, tinha sido já ateado. E, apesar de o Ministério

estar convencido que tudo fora arquitectado por Norton, a verdade é que o telegrama

seguira para Lisboa sem o conhecimento do governador, que escreve ao presidente da

ACL, admoestando-o pelos termos desabridos do seu protesto e recomendando-lhe

contenção158. Debalde. A elite dos comerciantes de Luanda considera-se num campo

que não é o do governador-geral. São colonos – e possivelmente alguns

representantes da elite nativa – que não estão dispostos a colocar a lealdade a Lisboa

à frente da lealdade à terra onde vivem e a que têm os seus interesses e a sua vida

154

ANM, P. GGA 2, Rascunho de carta de J. Norton de Matos a Simões Raposo, 05-10-1912, mns. 155

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Cópia de tel. da Câmara Municipal de Luanda ao ministro das Colónias, 06-10-1912. 156

Cópias in Idem, fls. 66-67. 157

Cópias in Idem, fls. 64-66.

158ANM, P. GGA 2, Rascunho de of. nº 709, de 06-10-1912 do governador-geral ao presidente da ACL.

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ligados. Em resposta à carta de admoestação de Norton, o presidente da ACL traça

essa linha de separação entre quem está de passagem na colónia e quem é da colónia,

seja porque lá nasceu ou porque lá vive há tanto tempo que, na hora da verdade, se

sente mais do lado de Angola do que do lado da metrópole. A leitura do que está em

causa para um e para outros é clara. O máximo que pode acontecer a Norton é voltar

para a metrópole e seguir com a sua vida. Ao invés, os comerciantes e agricultores de

Angola têm a sua vida ligada à colónia, o que faz toda a diferença: tratando-se de uma

«luta de vida ou de morte para Angola», é igualmente uma luta de vida ou de morte

para quem lá vive159.

É esta a ideia principal publicada em letra de forma na edição do dia 9 do jornal

Independente, semanário que prossegue a sua saga contra o decreto fazendário,

apresentada como uma luta de toda a colónia pela democracia. Trata-se de um

«singular combate»:

«Dum lado, atraiçoando – em proveito das suas ambições o regímen que os elevou, dois funcionários superiores que ocupam os mais altos cargos do ministério. Do outro, uma colonia inteira, luctando pela democracia e procurando livrar o ministro – mesmo contra a sua vontade – de quem abusa d’elle e o engana criminosamente.» 160

Para arbitrar este desigual combate, são chamados à colação os notáveis que

encarnam os três partidos em que se fragmentou o antigo PRP – Afonso Costa, António

José de Almeida e Brito Camacho –, interpelados a pugnar pela revogação do

inconstitucional decreto e, assim, livrarem o ministro do abuso e engano de que

estaria a ser vítima por parte da sua dupla de directores-gerais. Desta feita, o jornal

não se limita a atacar Eusébio, ataca também Freire de Andrade, director-geral das

Colónias. Como bons monárquicos que continuariam a ser, estariam a manobrar nos

bastidores para, com habilidades e subterfúgios, levar o ministro a assinar um novo

decreto que só na aparência modificasse o anterior. A agenda oculta da dupla seria

afastar o ministro. Este, alegadamente vítima do embuste, uma vez confrontado, em

sede parlamentar, com a inconstitucionalidade do decreto, ver-se-ia forçado a pedir a

demissão. A rebuscada argumentação, seguramente da pena do ex-juiz Simões

159

ANM, P. GGA 2, Carta do presidente da AC a Norton de Matos, Luanda, 08-10-1912. 160

«CONTRA O DECRETO DE 4 DE SETEMBRO! PELA REPÚBLICA!», Independente, 09-10-1912. Até referência em contrário, as citações são deste artigo.

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Raposo, por enquanto poupa Norton da acusação de monárquico elevado pela

República aos mais altos cargos. Pelo contrário, num post-scriptum ao artigo que vimos

analisando, o autor tece-lhe um rasgado elogio. O governador-geral, que nunca é

nomeado, embora para todos seja evidente que é de Norton que o articulista fala,

«saberá cumprir o seu dever. Que – seguindo-lhe o exemplo – o povo d’Angola vá ate

ao fim no cumprimento do seu.».

O ‘povo’ de Angola (leia-se: a elite colonial de Angola) está disposto a lutar com

outros argumentos além da palavra, caso o decreto não seja revogado. De

Moçâmedes, em telegrama enviado à Associação Comercial de Luanda pelas principais

casas do comércio, agricultura e indústria, chega o alvitre: «Quando não satisfeitos

nossos desejos comercio aqui sendo secundado provincia fecha suas portas.»161.

Enquanto a ameaça fica a pairar, gastam-se todos os cartuchos da palavra. Além do

ministro das Colónias e da Câmara dos Deputados, nomeadamente, do deputado por

Angola, tenta-se sensibilizar o Lusitano Unido. Os remetentes são, respectivamente, a

Câmara Municipal de Luanda (secundando os já enviados pela ACL) e o Grémio

Português162. Os Democráticos de Angola apostam em Afonso Costa, a quem enviam

um eloquente telegrama:

«Amigos políticos de V.Ex.ª solicitam sua patriótica intervenção para revogação do Decreto sobre a Fazenda por prejudicial à continuação da obra de ressurgimento colonial, nefasto à administração de Angola, deprimente para a situação do governador e funcionários, inconstitucional, contrario afirmações republicanas, anti-economico, agravo feito metrópole, inutilização do triunfo dos princípios democráticos. Estado de exaltação grande. Todos lamentariam a exoneração pedida pelo governador, assim manifestaram as corporações da colonia, porque seu honrado governo, suas qualidades de administrador criterioso, ponderado, trabalhador, enérgico e infatigável são penhor seguro capaz [de fazer] ressurgir colonia.»163

O governador-geral prossegue o protesto pelas vias oficiais, jogando o seu

cargo na resolução do conflito a seu favor. O facto de receber garantias telegráficas do

ministro, de que a sua autoridade não será beliscada, não o convence. No início de

Outubro, volta à carga num dos longos telegramas cifrados sobre o tema com que

161

Tel., assinado por 14 firmas de Moçâmedes, à ACL, 09-10-1912, transcrito em «O nosso Suplemento» in Independente, 09-10-1912, p. 1. 162

Tels. transcritos e/ou noticiados em «O nosso Suplemento» in Independente, 09-10-1912, p. 1. 163

Idem.

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bombardeará o Ministério das Colónias164. Primeiramente, começa por afastar

suspeitas de que teria receio de ser fiscalizado. Assevera, muito pelo contrário, que

está muito à frente de qualquer inspector de Finanças no combate à ilegalidade e ao

despesismo. Garante, nomeadamente, não ter problemas em sujeitar-se ao visto

prévio do inspector em questões financeiras, pois, se não concordasse com ele,

resolveria superiormente com o ministro. Esse visto, defende, não é por si só garantia

de legalidade, tanto que quando chegou a Luanda encontrou, com visto prévio do

inspector, muitas despesas ilegais, tendo sido, ele, governador, a colocar tudo nos

eixos: «Mandei cessar, mandei repor. Faziam-se despezas sem respeito lei e

orçamento. Isso pus cobro.»

Em segundo lugar, Norton explicita pormenorizadamente os motivos da sua

«discordância absoluta [face a] esse decerto [e à] impossibilidade [de] continuar [a]

governar com elle.» No fundo, todas as objecções se resumem a uma: Lisboa tem de

descentralizar o seu poder em Luanda, à imagem das colónias inglesas.

Em terceiro lugar, Norton, garantindo embora ter tentado conter os excessos das

manifestações públicas de desagrado das forças vivas de Angola, elabora sobre as

consequências de a República Portuguesa defraudar as expectativas

descentralizadoras da colónia:

«É do meu dever lembrar V.Ex.ª que parte pensante Angola há muito aspirar instituições administrativas baseadas princípios descentralisação. Proclamação Republica representou para ella principalmente satisfação esse desejo primeiras palavras Governo provisório boca Affonso Costa mais enraizar essa convicção artigo numero 67 da constituição confirmar mas é o contrario que se tem feito. Julgo imprudente anti-economico erro administrativo e politico contrariar mais tempo esses justos desejos. Creia V.Ex.ª não se trata de mim. No caso de não ser satisfeitos meus pedidos terei de insistir minha demissão mas enquanto estiver frente esta colónia serão cumpridas rigorosamente determinações V. Ex.ª por mais contrarias sejam meu modo de ver e affirmo ordem será mantida. Lembro suspensão decreto até ser apreciado Parlamento. Repito julgo muito inconveniente.» (...)

Uma semana depois, e apesar de admitir que os telegramas contemporizadores

recebidos de Lisboa tinham suavizado a sua mágoa, Norton reitera a sua posição sobre

164

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Tel. cifrado do Governador-geral de Angola ao Ministro das Colónias, Loanda, 07-10-1912. Até menção em contrário, as referências que se seguem são deste telegrama.

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o «malfadado decreto»165, indiferente à exasperação que a sua insistência

crescentemente provoca no ministério:

«(...) muito firmemente e muito categoricamente se deve dizer que quem tenha carácter não se pode conservar á frente de uma colónia com um regime de administração centralisador e humilhante, como aquele que tem sido posto em vigor desde os últimos anos da monarchia, e cada vez com mais intensidade, na administração ultramarina. Pode conservar-se mais uns mezes, se o seu patriotismo e os altos interesses do paiz a isso o obrigarem; mas de modo algum pode e deve, como era mister, fazer o sacrifício de dedicar anos seguidos a uma obra de verdadeira colonisação que o seu estudo e o seu conhecimento de assuntos coloniaes lhe permitiu projectar, mas que as realidades praticas, traduzidas na catadupa de decretos que, sem consulta ou aviso prévio ao governador-geral e aos seus conselhos, estão continuadamente cahindo sobre as colónias, lhe mostram claramente não poder realisar. (…)

Todos estavam a ver em mim, principalmente depois do conhecimento do meu projecto da carta orgânica, o homem que queria governar com processos novos, verdadeiramente democráticos, que havia de concorrer para dotar a colónia com leis que ela deseja, que ela merece e que lhe serão altamente proveitosas.

O decreto de 31 de Agosto veiu mostrar quanto todos se tinham enganado.».

O desgosto que tudo isto lhe causa leva-o a não tirar de cima da mesa o cenário

da demissão, adiando-a apenas para quando o estado de exaltação na colónia estiver

ultrapassado. No dia seguinte, quando finalmente tem conhecimento da versão

rectificada do decreto de 31 de Agosto, saída em Diário de Governo de 10 de

Setembro, volta à carga, pedindo que o ministro publique uma portaria aclarando o

seu sentido. Mesmo rectificado, o decreto não serve166.

Em Lisboa, os altos dirigentes do ministério não podiam estar mais incrédulos

com a atitude de Norton. Eusébio fica umas semanas sem lhe escrever e, quando

finalmente o faz, manifesta o seu espanto e decepção167. Anteriormente, confessara já

ao irmão de Norton, Arnaldo, estar convencido que ele «deixou-se um tanto ou quanto

enredar pelo meio», tendo colocado a questão «com forma agressiva e para mim

165

ANM, P. GGA 2, Cópia de of. confidencial [nº 61] do GG NM ao Ministro das Colonias, Loanda, 14-10-1912, dact. A citação que se segue é deste ofício. 166

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Cópia de tel. cifrado do governador-geral de Angola ao ministro das Colónias, 15-10-1912. 167

«Eu esperaria de todos os ilustres governadores coloniaes um telegrama desabrido, um protesto violento, menos do meu Amigo Norton, um procedimento semelhante». ANM, P. GGA 1, Carta de D. Eusébio Fonseca a Norton de Matos, 21-10-1912, mns.

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muito desagradável.»168. O outro director-geral do Ministério das Colónias, Freire de

Andrade, avisa Norton que os seus longos telegramas estão a causar má impressão169.

O ministro, esse, está furioso. Marques Ribeiro, representante de Angola no Conselho

Colonial, escreve de Lisboa:

«Devo dizer-lhe que o Ministro não gostou do seu protesto contra a lei e por tal forma se manifestou que, a mim disse-me que V.Ex.ª tinha cá deixado a cabeça ou a tinha perdido ahi (…)170

Cerveira terá inclusive, pensado em demitir Norton, no que terá sido apoiado

por Afonso Costa171. Na verdade, outros motivos existem para descontentar alguns

membros proeminentes do partido de Afonso Costa, como França Borges, o poderoso

director do jornal O Mundo, e Luís Dérouet. Norton atrevera-se a mandar de volta para

Lisboa um protegido destes dois últimos. É certo que o cargo por ele ocupado –

inspector de circunscrição – fora extinto mas o facto de não lhe ter sido dado um outro

lugar foi visto como uma afronta. O ministro, para remediar o caso, logo o nomeia seu

secretário172.

Ao descontentamento do ministro e do governo de Lisboa com o modo como

Norton está a lidar com a situação juntar-se-á um crescente mal-estar na colónia com a

actuação do seu governador-geral face a Lisboa. Não faltará muito para que passe a

ser visto como um homem de mão dos interesses de Lisboa. Será o começo do fim da

fugaz aura de herói angolano que chegara a ter no início da crise.

II.1.3. De herói a vilão: (quase) todos contra Norton. A nova extensa

porcaria e o fim do estado de graça

168

ANM, P. GGA 2, Carta de D. Eusébio Fonseca ao irmão de Norton de Matos (seguramente Arnaldo Norton de Matos), [Lisboa], 18-10-1912, mns. 169

Idem. Tel. particular de Freire de Andrade a Norton de Matos, 01-11-1912. 170

Idem. Carta de F. Marques Ribeiro a Norton de Matos, Lisboa, 22-10-1912, mns. 171

Eusébio da Fonseca confidencia ao irmão de Norton, numa longa conversa que Arnaldo relata para Luanda, que «o ministro se chocára egualm[en]te e que poderias ter sido exonerado no que chegou a concordar o Aff

o Costa, que tudo viu e não concordara contigo» Idem. Carta de Arnaldo [Norton de

Matos] a José [Norton de Matos], Lisboa, 21 [?]-10-1912, mns. 172

Eusébio faz sentir a Norton o desagrado de Lisboa: «Fiz-lhe um telegrama sobre o Simões Rapozo que o meu amigo collocou addido ao mesmo tempo que mandou embora o Ferreira, secretº do Ministro e o ai Jesus do Mundo. Isto fez mto má impressão. Desculpe-me falar-lhe com franqueza, mas não sei ser de outra forma». Idem. Carta de D. Eusébio F. a Norton de Matos, [Lisboa], 21-10-1912, mns.; cf., ainda, Idem. Carta de Arnaldo [Norton de Matos] a José [Norton de Matos], Lisboa, 21[?]-10-1912, mns.

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A situação arrasta-se sem uma resolução clara e o mal-estar na colónia persiste.

Continuam a chegar ao ministro, de vários pontos da província, telegramas de

protesto. A 17 de Outubro, a Associação Comercial da Lunda manifesta-se novamente,

tal como a Câmara Municipal de Golungo Alto173. A 18, a sede da ACL acolhe nova

reunião sobre o decreto fazendário, desta feita também com a presença das direcções

de outras entidades: a Câmara Municipal, o Grémio Portuguez, a Associação dos

Empregados do Comércio e a Associação do Tiro Civil. Em conjunto, decidem recorrer

aos bons ofícios do Presidente da República junto do governo para que, no mínimo, a

execução do decreto seja suspensa até o Congresso da República se poder pronunciar

sobre ele. O telegrama segue no dia seguinte, com a ameaça velada de «desastrosas

consequências», caso a opinião da província, cujos «direitos» e «interesse» estão

«gravemente ameaçados», não seja atendida174.

No dia 19, o tão falado decreto é mandado publicar pelo governador-geral no

Boletim Oficial da Província de Angola, juntamente com um telegrama do ministro,

comunicando que sairá posteriormente uma portaria aclarando o seu conteúdo. Já na

véspera, o chefe de gabinete de Norton emitira um comunicado igualmente anódino,

anunciando que o ministro assegurara ter satisfeito o pedido do governador-geral de

Angola quanto à posição relativa do inspector superior de fazenda na administração de

Angola175. Dificilmente algo tão vago, porém, lograria acalmar os ânimos exaltados da

colónia.

173

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Tel., respectivamente, do presidente da AC de Lunda e do presidente da Câmara do Golungo Alto ao ministro das Colónias, ambos de 17-10-1912. 174

Tel. ao Presidente da República dos Presidentes Cª Municipal, Associação Comercial, Empregados do Comércio, Tiro Civil, Gremio Portuguez, 19-10-1912 in «EM DEFEZA DE ANGOLA // A TODOS OS HABITANTES DESTA PROVINCIA» in Independente…, Loanda, 1912 Suplemento ao N

o 34 (98), 19-10-

1912. 175

«Sua Ex.ª o Governador Geral, logo que teve conhecimento do decreto de 31 de agosto, que reorganizou os serviços de fazenda, pediu a Sua Ex.ª o Ministro das Colónias a suspensão dêsse diploma ou que nele fossem introduzidas algumas alterações. Tendo obtido de Sua Ex.ª o Ministro esclarecimentos que claramente lhe mostraram não ser nem o espírito nem a intenção daquele decreto o que da sua leitura se pode deduzir quanto às relações entre os governadores gerais e os inspectores superiores de fazenda, limitou o seu pedido à publicação de uma portaria ministerial, que esclarecesse o decreto no sentido da interpretação dada por Sua Ex.ª o Ministro, e no dos reparos que Sua Ex.ª o Governador Geral, protestando o seu inteiro acatamento pelas leis da República, respeitosamente apresentou. Sua Ex.ª o Ministro telegrafou a Sua Ex.ª o Governador Geral, comunicando-lhe ter sido satisfeito o seu pedido, com a publicação, em 16 do corrente, de uma portaria esclarecendo o decreto». BOPA, Nº 42, 19-10-1912, p. 729.

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De Lisboa, começam a chegar ecos de que a portaria ministerial de 19 de

Outubro, que tudo pretendia esclarecer, afinal nada resolvia. Não obstante só um mês

mais tarde ser publicada no Boletim Oficial da Província de Angola176, os seus efeitos

começam logo a fazer-se sentir. O deputado por Luanda telegrafa de Lisboa avisando

que não passa de uma burla. Mais uma vez, a emenda provará ser pior do que o

soneto.

De facto, ao invés de colocar água na fervura, a portaria, assinada, tal como o

decreto inicial, por Cerveira de Albuquerque e Manuel de Arriaga, vem acirrar ainda

mais os ânimos em Angola. Na verdade, visa apenas esclarecer «dúvidas sobre a

interpretação a dar» a algumas disposições do decreto anterior. Esclarece, em

especial, que o inspector-geral é obrigado a dar conhecimento ao governador-geral de

tudo o que enviar para Lisboa. O inspector limitar-se-á a preparar o projecto de

orçamento da colónia de acordo com as rúbricas estabelecidas por Lisboa, enviando-o

ao governador-geral que introduzirá as propostas de alteração que entender. O

inspector é obrigado, ainda, a enviar e a justificar, perante a autoridade máxima da

colónia, as propostas de alteração relativas a impostos e contribuições que fizer para

Lisboa. Terá, por outro lado, que submeter «à aprovação do mesmo magistrado

quaisquer instruções relativas a assuntos de administração de fazenda e contabilidade

pública, que devam ser observadas por quaisquer repartições ou funcionários da

província.».

O jornal Independente considera este rol de justificações metropolitanas um

«novo escárneo»177. O que não impede que «o sr. Fonseca», que, venenosamente, a

imprensa de Luanda lembra ser «primo do Eusebio»178, embarque a 22 de Outubro em

Lisboa para assumir o seu novo e muito rendoso cargo de inspector superior de

Fazenda de Angola.

É o dia em que Norton, que entretanto fizera a opção de manter longe da praça

pública o seu combate ao decreto fazendário, profere um discurso perante o Conselho

de Governo que aponta para um futuro diferente: o futuro em que colonos e os

176

In BOPA, Nº 46, de 16-11-1912, pp. 791-792. 177

«Novo escárneo» in Independente…, 21-10-1912, p. 1. 178

A Verdade, 27-10-1912, p. 1.

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indígenas179, finalmente civilizados, assumirão eles próprios a administração da

província. Enquanto esse futuro não chega, aconselha ambos a passarem por um

processo de aprendizagem, através da participação cada vez maior na administração

local, por meio de corpos municipais.

As elites da colónia não se deixam comover com essa perspectiva distante.

Juntando-se ao jornal Independente, que se começara a publicar nos inícios desse ano,

nasce em Outubro, por via de toda esta polémica, um novo título na imprensa

periódica luandense, A Verdade. Depois de, no primeiro número, ter clamado contra a

inconstitucionalidade do decreto, no seguinte, faz um trocadilho que não deixa

dúvidas sobre o que pensa das longas explicações dadas na portaria ministerial: é «a

nova extensa porcaria», ou não consagrasse a Direcção-Geral da Fazenda das Colónias

como o verdadeiro poder político e militar de Angola. Assim, o homem de mão de

Lisboa, o inspector superior de Fazenda, poderia, com mais propriedade – ironiza o

novo jornal luandense –, ser chamado «“governador-geral de Fazenda”, quando em

assuntos civis, e “general da divisão de Fazenda”, quando em assuntos militares»180.

A Verdade apresenta-se, em subtítulo, como um Órgão Republicano

Independente – Defensor dos Interesses de Angola. Arvorando a bandeira do

republicanismo, o jornal não a reconhece nem nos responsáveis do Ministério das

Colónias em Lisboa nem nos do governo-geral de Angola. A indirecta para o

republicanismo de fresca data de Norton é evidente, mesmo se A Verdade não vai ao

ponto de nomear este último181.

179

Sendo estes últimos «os indígenas que o nosso esfôrço, a nossa obra de civilização há de mais e mais arrancar do estado primitivo em que se encontram». «Discurso Pronunciado, em 22 de Outubro de 1912, pelo major Norton de Matos, Governador Geral de Angola, na sessão do Conselho de Govêrno em que foi presente o projecto da “Lei orgânica das instituições administrativas da Província de Angola”» in J.M.R. Norton de Matos, Projectos de Lei Orgânica da Provincia de Angola e de Organização de Alguns Serviços Provinciais Submetidos à Apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador Geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional, 1912, p. 17. 180

«Os complementos…» in A Verdade, 27-10-1912. 181

«(…) onde é que á testa de quaisquer serviços do Ministerio das Colonias está um antigo e autentico republicano? O sr. Cerveira de Albuquerque, antigo progressista? O sr. Freire de Andrade, ex-franquista? O Euzebio, ex-camaleão de todos os partidos monárquicos? E na provincia de Angola - onde é que estão? Quem nos indica um único que seja? …Talvez o sr. Inspector de Fazenda - não? - por ter contribuído com 6 vintens para a construção da “Escola de 31 de Janeiro”, nos seus tempos de estudante, ou por se ter filiado agora nas hostes afonsinas? Ou então o nomeado Inspector Superior de Fazenda que, quando escrivão de Malange (...) todo se irava contra aqueles que defendiam a Republica?

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71

No novo jornal, tal como no Independente, a redacção é dominada por um

homem de leis. Se no Independente impera o ex-juiz Simões Raposo, agora advogado

no tribunal da Relação e nas comarcas da Luanda e Malange182 (que, não tarda,

assumirá a própria direcção do jornal), no jornal A Verdade o capitão José Maria da

Rosa Júnior, também advogado, acumula as funções de director, editor e proprietário.

A entrada de Rosa Júnior para a liça não tem apenas a ver com o facto de a sua

formação jurídica na Universidade de Coimbra lhe dar argumentos sólidos para

contestar a constitucionalidade do decreto fazendário. Está seguramente ligada ao

facto de, como oficial do Exército, se sentir atingido na sua dignidade com uma

disposição menos feliz do diploma que não teve na devida conta as hierarquias

castrenses. De facto, o decreto colocava militares sob a chefia de inspectores distritais

de Finanças que, além de civis, muitas vezes tinham habilitações muito inferiores aos

seus subordinados militares. Era uma situação potencialmente explosiva.

Em devido tempo, Norton alertara o ministro para a necessidade de reformular

a redacção dessa parte do decreto. De igual modo, quer oficiais a nível individual quer

o próprio chefe de Estado-Maior da colónia de Angola escrevem a Norton solicitando a

sua intervenção junto do ministro no sentido de este ser alertado para os efeitos

desastrosos do decreto para a disciplina militar. Norton envia a exposição ao ministro,

assinando por baixo183. O ambiente fica tão efervescente nos quartéis que o

governador-geral é obrigado a intervir, deslocando-se a reuniões de militares para os

dissuadir de quaisquer veleidades de desobediência à lei. O que não impede o capitão

Silveira Machado, do serviço da Administração Militar, de apresentar o seu pedido de

exoneração da chefia da 2ª Repartição da Secretaria Militar, solicitando a sua

(...) Com gente desta força, como esperar uma verdadeira política republicana? E é um homem, como Afonso Costa, quem lhes dá alento e vida! A quanto faz descer a miserável necessidade de ter um grande partido!». «Onde estão?» in A Verdade, 27-10-1912, p. 1. 182

Cf. «Anúncio» in A Verdade, 27-10-1912. 183

ANM, P. GGA 2, Cf. Cópia de of. do chefe do Estado-Maior de Angola, Carlos Maia Pinto, Loanda, 22-10-1912, dact., ass. que Norton reenvia ao ministro das Colónias e ao Director Geral da Fazenda, acrescentando: «com o qual absolutamente concordo». Cf, ainda, Idem, requerimento ao governador-geral de Angola, em papel selado, do tenente de Administração Militar, Júlio César de Almeida, Loanda, 25-10-1912, dact., ass.

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nomeação para qualquer outra comissão. O motivo apresentado é, precisamente, o

decreto de 31 de Agosto184.

Quando começa a circular em Angola uma brochura publicada em

Moçambique, da autoria de um oficial do exército, que atacava de forma violenta o

decreto fazendário185, a sua distribuição é severamente reprimida. O segundo oficial

da Fazenda, José Marcelo Fernandes da Silva, apanhado a distribuir exemplares da

brochura na Repartição Superior de Fazenda e noutras repartições públicas, é punido

com quinze dias de suspensão pelo inspector-geral de Finanças. Norton, com mão

bastante mais dura, quadruplica a pena, para 90 dias186.

É um aviso à navegação aos funcionários públicos, civis e militares, que serve

também para as elites económicas da província, especialmente numa altura em que

estas últimas ponderam passar das palavras aos actos. Se umas semanas antes já

ventilavam fechar as portas do comércio, num movimento concertado entre as várias

associações comerciais de Angola, agora falam em cortar relações comerciais com a

metrópole até o decreto ser revogado. Na sua edição de 27 de Outubro, o novo jornal

de Luanda desafia-as a tomarem esta medida, visto ser o único meio legítimo de

defesa com possibilidade de ter sucesso no imediato:

«Para se conseguir isso ha so um meio: todo o comercio da provincia suspende telegraficamente para a metropole os pedidos feitos de mercadorias, e a remessa dos gêneros coloniais, justificando perante as respectivas casas interessadas o motivo dessa resolução que mantem até ser revogado o decreto de 31 de agosto. (..)

A luta mais grave será, pois, travada na metropole, e lá teremos a trabalhar por conta desta questão de moralidade e económica, os dois grandes colossos financeiros: a Emprêsa Nacional de Navegação, com os navios vasios, e o Banco Nacional Ultramarino, com altos interesses lezados.(...)

Deste modo cai o decreto antes de abrir o Congresso. Se assim não fizer, arriscamo-nos a ve-lo transformado em lei, ou decreto com força de lei, porque ha dois nomes a subscreverem esse diploma [além do ministro Cerveira de Albuquerque, também Manuel de Arriaga, Presidente da República], os quais, por todos os motivos, são inculpados dessa burla jurídica, e por isso mesmo têm de ficar salvos pelo Congresso, no meio de toda esta questão.

184

ANM, P. GGA 2, Reqtº do capitão Francisco Xavier da Silveira Machado ao governador-geral de Angola, Loanda, 24-10-1912, mns., ass. 185

Manoel Simões da Silva, Palavras Rebeldes: Carta-Protesto Contra as Imoralidades da Direcção Geral de Fazenda das Colonias, Lourenço Marques, Typografia Minerva Central, 1912. 186

PP nº 1299, de Norton de Matos, de 30-10-1912 In BOPA, Nº 44, 02-11-1912, p. 757.

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Sejamos, pois, correctos, sim, mas firmes, inteligentes e seguros nos meios de combate se queremos vencer.»187

Nesse final de Outubro, Norton coloca-se em campo para conter quer a luta pela

palavra quer a luta económica. Relativamente à primeira, além de, como vimos, ter

cortado cerce a difusão da brochura editada em Moçambique, apreende a edição do

dia 29 do jornal Independente188. É verdade que já fizera o mesmo à edição do dia 7,

por via dos ataques de natureza pessoal feitos aos directores-gerais do ministério, mas

nunca chega ao ponto de suspender quer a sua publicação quer a d’ A Verdade.

Demorará ainda alguns meses a ter aliados suficientes na colónia para dar esse passo,

como mais adiante veremos.

No que respeita à arma económica, que, a ser concretizada, teria consequências

bem mais gravosas, Norton conta com a acção preventiva da sua rede de governadores

distritais e, igualmente, com os bons ofícios de uma instituição especialmente

interessada em que o boicote comercial não vá avante: o BNU. Será o director da filial

de Luanda do banco, José Manuel de Oliveira e Castro, a mobilizar a sua rede de

influências. A 30 de Outubro, avisa confidencialmente Norton de que já não se

realizaria nova assembleia da ACL para propor o boicote, tendo sido resolvido, antes,

fazer uma consulta a toda a província sobre os meios de luta a adoptar189. De

Benguela, o governador distrital telegrafa a Norton assegurando que, caso chegue de

Luanda qualquer proposta de corte de relações com metrópole, será «repelida com

energia pelo comercio distrito»190. De Moçâmedes, são as principais firmas comerciais

que telegrafam directamente a Norton garantindo que não desejam que «atitude

provincia chegue até rompimento relações comerciais com metrópole relações que

por patriotismo deseja manter»191. Muito embora acrescentem que se sentem ligadas

por declaração de solidariedade à atitude que a «província» tomar, é evidente que a

declaração é sobretudo retórica. O protesto está em fase descendente, apesar do

alarme que a ameaça de boicote comercial levanta em Lisboa, alimentado por

187

«A questão», A Verdade, 27-10-1912, p. 1. 188

ANM, P. GGA 2, Rascunho, do punho de Norton, de tel. ao ministro das Colónias, 01-11-1912. 189

Idem, Carta confidencial de José Manuel d’Oliveira e Castro ao governador-geral de Angola, 30-10-1912, mns., Idem. Rascunhos de tels., do punho de Norton, aos governadores de Moçâmedes, Benguela e Lunda, 30 e 31-10-1912. 190

ANM, P. GGA 2, Tel. do governador de Benguela para o governador-geral de Angola, 01-11-1912. 191

Idem, Tel. de Seraphim Simões et alia ao governador-geral de Angola, 31-10-1912.

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informadores confidenciais que telegrafam para a capital, levando o ministro a duvidar

que Norton tenha a situação sob controlo.

Claramente, não é esse o caso, tanto que, apesar dos rumores de que o novo

inspector superior de Finanças seria recebido com desacatos, este desembarca em

Luanda sem quaisquer incidentes192. Ironia do destino, Norton acaba convencido que a

única contestação pública que resta, após o pico do protesto amainar, é animada pela

curibeca193, a maçonaria local, de que Simões Raposo era membro. Não andaria muito

longe da verdade, pois, pelo menos uma das lojas maçónicas de Angola, a

Independência Nacional, não deixará de recordar ao seu irmão governador-geral que o

mês de Outubro de 1912 fora aquele em que ele tivera toda a colónia do seu lado mas

optara por deixá-la cair, ao fazer a escolha de passar a ser um mero «delegado político

do Governo central»:

«Quando em Outubro do ano findo, a provincia de Angola, em movimento unissono, expontaneo, se ergueu n’um impulso de nobre protesto contra o vexatório decreto dos serviços de fazenda, colocando-se ao vosso lado em desafronta da dignidade do Governador Geral e a bem do prestigio da sua autoridade, apoiando o acto, que constou, haveis praticado, vós, Resp Ir procedesteis em seguida, n’esse momento (…) por maneira que representou um abandono completo da opinião publica, assim tão unanime, sincera e nobremente manifestada e em cuja fôrça vos podíeis ter apoiado a bem da provincia e do prestigio da autoridade governativa.

Fazendo assim, Resp Ir , tereis procedido em armonia com os interesses da vossa situação de delegado politico do governo central mas (…) como a função do cargo de Governador Geral, no exercício de administrador dos interesses e necessidades da provincia, briga com a áção de Delegado do poder central, vós, Resp Ir , ao preferirdes o cumprimento dos deveres d’esta áção, declinasteis as responsabilidades d’aquelas funções e assim alheastes-vos da opinião publica, em tal conjuntura, tão unanimente manifestada e tão rudemente desprezada. D’ahi a razão justificada do isolamento que apontaes.» 194.

Na verdade, Norton, ao longo de toda esta crise, encontra-se numa posição

impossível. Se esticasse a corda até ao limite, perante o ministro que o escolhera e

logo lhe retirara o tapete, teria de concretizar a ameaça de apresentar a demissão.

192

Idem, Rascunho, do punho de Norton, de tel. particular para «Fazenda Colonia», 13-11-1912. 193

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Tel. cifrado de Governador-geral de Angola ao Ministro das Colónias, 31-10-1912. Sobre a curibeca, ou kuribeca, cf. António Ventura, Uma história da Maçonaria em Portugal 1727-1986, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013, pp. 773-774. 194

ANM, P. GGA 1, Prancha (of.) do venerável da Loja Capitular Independência Nacional, Gabriel de Oliveira ao Irmão J.M.R. Norton de Matos, Val de Loanda, 23-07-1913, dact.; ass., em papel timbrado da Loja.

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Sairia como um verdadeiro herói angolano, é certo, mas sem ter tido a possibilidade

de fazer a obra que tanto almejava.

Se, pelo contrário, aceitasse a solução de compromisso oferecida pelo

Ministério das Colónias, teria ganho alguma coisa, visto que obtivera o suficiente para

salvaguardar a sua autoridade, e poderia fazer ainda um bom lugar em Angola. Norton,

que esperara muito tempo por um lugar de governador e não desejaria morrer na

praia, escolhe a segunda opção, embora faça questão de frisar que a aceita a título

provisório, até que a prometida e sempre adiada carta orgânica da colónia de Angola

passe a regular um novo cenário global que vá no sentido da descentralização. Lisboa

já não perderia a face, pois as alterações aos serviços de Fazenda na colónia surgiriam

no âmbito de um novo quadro geral.

Seja como for, os danos (assim como os ganhos) para a sua imagem junto do

ministro e da máquina do ministério eram já irreversíveis, independentemente da sua

escolha. Por um lado, garantida tem já a má vontade militante dos serviços do

Ministério face a qualquer proposta que venha a fazer no futuro mas, por outro lado,

ganha o respeito e o receio dos altos funcionários do ministério que, doravante,

pensarão duas vezes antes de o afrontarem directamente.

Já para as elites coloniais angolanas só a primeira opção, aquela que Norton

afasta, seria aceitável. Ao escolher ficar e conviver com o malfadado decreto, por

muito que o abominasse e que tivesse a intenção – real – de continuar a fazer-lhe

guerra em privado, Norton ganha a antipatia de parte considerável das forças vivas da

Angola colonial que não lhe perdoarão o que vêem como uma traição. O que não

impede que, independentemente da crise do decreto fazendário, da parte das elites

económicas, essa fosse uma guerra que Norton tinha por garantida devido,

nomeadamente, à sua política laboral – por mais ambivalente que esta viesse a

revelar-se. Da parte das elites intelectuais e do funcionalismo público, tanto de

europeus como de africanos ocidentalizados, serão também vários os desencontros e

expectativas frustradas, por entre alianças pontuais em temas e conjunturas

particulares.

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A rapidez com que Norton passa de herói a vilão, para largas franjas das elites

de Angola como da metrópole, é apenas uma pequena amostra do que está para vir.

Relativamente às primeiras, a vontade de tomar o destino nas próprias mãos,

ao invés de estar à mercê dos interesses centralizadores da metrópole, revela-se, em

1912, um desejo que atravessa transversalmente os vários grupos de influência na

colónia, quer os económicos, quer os do funcionalismo público e intelectualidade,

tanto de «europeus» como de indígenas «africanos civilizados». É uma espécie de

mínimo denominador comum a todos os que, independentemente da cor ou do

continente em que nasceram, habitam em Angola colonial. Mesmo se, no seu quadro

mental, a civilização europeia é a civilização, a verdade é que a sua vida e o seu futuro

estão indissociavelmente ligados a Angola, cujos destinos e benefícios, mais tarde ou

mais cedo, querem tomar em mãos.

No que respeita à relação de Norton com as elites metropolitanas, a crise do

decreto fazendário será a primeira manifestação das contradições e tensões com que

irá ter de lidar durante o seu primeiro governo-geral. De Lisboa, apesar de irem saindo

alguns decretos propostos por Norton – que, de alguma forma, prenunciarão as

propostas legislativas do ministro Almeida Ribeiro em 1914 – os directores-gerais do

Ministério das Colónias continuam a comportar-se, para exasperação de Norton, como

«governadores de facto». Tal situação tem de mudar, avisa Norton:

«Creia V. Ex.ª que se não entrarem no caminho de terem absoluta confiança nos governadores geraes e de passarem os snrs Directores Geraes a serem directores ahi e não governadores de facto, as colonias irão á vida.»195.

A autonomia prometida pela República para as colónias tarda em chegar, quer

a autonomia como Norton a entende, centrada no poder do governador-geral, quer a

autonomia como um cada vez maior número de membros das elites de Angola a vêem,

em que seriam elas próprias, que aí vivem, a ter uma palavra, cada vez mais decisiva, a

dizer sobre o seu próprio destino. Em qualquer dos casos, com menor ou maior poder

195

ANM, P. GGA 2, Anotação do punho de Norton, com caneta vermelha, e por ele assinada, sobre a fl. 1 de projecto de portaria ministerial sobre o decreto fazendário, S.d. [Novembro 1912] dact.: «É esta a portaria que eu tencionava publicar no mesmo Boletim Oficial em que publiquei o decreto de 31 de agosto. Não a publiquei em vista da ordem que de V. Ex.ª recebi; mas ainda estou na minha: - melhor era tel-a publicado com autorização expressa de V. Ex.ª. Mais uma vez se não tem confiança em mim nem n’as minhas medidas».

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concentrado na figura do governador-geral, o sentimento larvar nas elites da colónia é

que esta deve ser governada por quem está em Angola e não na distante Lisboa.

As colónias tão cedo não irão à vida, mas a dupla de directores dos jornais que

mais se distinguiram na crise do decreto fazendário irá canalizar, através de novos

alvos, o seu protesto contra Lisboa nos meses que se seguirão. Por um lado, insistindo

nas alegações da existência de escravatura em Angola e, por outro, denunciando a

ilegalidade de um novo serviço dedicado aos negócios indígenas, cuja criação Norton

tentará de novo forçar na Primavera de 1913.

Após a solução de compromisso aceite por Norton, ao menos em público, a

propósito do decreto fazendário, passará a ser ele o alvo privilegiado dos ataques da

imprensa luandense, de forma cada vez mais aberta. O que não o impedirá de, perante

cada novo ministro que se suceder a Cerveira na pasta das Colónias, insistir vezes sem

conta, tanto em correspondência oficial como privada, pela revogação do malfadado

decreto, ameaçando, mais ou menos veladamente, demitir-se se de Lisboa não vierem

sinais que lhe permitam governar Angola sem peias.

II.2. Missão civilizadora e trabalho forçado: novos episódios de uma crise

larvar

Desde o início de Janeiro de 1913 e durante pouco mais de um ano, Norton

passará a ter como interlocutor, em Lisboa, o primeiro Governo da República

inteiramente dominado pelos democráticos. A chefiá-lo, o próprio Afonso Costa e, na

pasta das Colónias, o juiz Artur Almeida Ribeiro. São boas notícias para Norton. Pode

contar com um executivo do seu partido e reencontra Almeida Ribeiro, com quem já

trabalhara na Comissão de Estudos Coloniais do Directório, a que já aludimos.

Nem por isso a sua relação com Lisboa será fácil. Só que desta vez, o estado de

graça que gozara junto das elites da colónia, durante a fase inicial da crise do decreto

fazendário, não mais voltaria. As tensões com estas últimas manifestar-se-ão sob os

pretextos os mais variados. Na raiz de quase todas encontram-se diferentes

concepções sobre o modo de encarnar em Angola a missão civilizadora da República

Portuguesa. Isto numa altura crucial da definição desse conceito colonial por

excelência que é o indígena e tudo o que estava associado a essa classificação. Além de

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ser excluído da cidadania, o indígena passava a ser o alvo forçado de um processo

civilizador que assumia várias facetas, a mais importante das quais incidia sobre o

trabalho.

II.2.1. A saga da criação da Secretaria dos Negócios Indígenas, parte 2

A missão civilizadora que Norton quer protagonizar em Angola passa pela

criação, dentro da orgânica do governo-geral, de um organismo especificamente

dedicado aos indígenas. A importância que dá ao assunto está bem patente na

insistência com que, durante mais de um ano, pugnará junto de Lisboa pela criação da

Secretaria dos Negócios Indígenas. O longo processo iniciara-se, como vimos, logo

após ter assumido o cargo de governador.

Não tendo Lisboa avançado com a criação da nova secretaria, Norton adianta

ele próprio uma proposta concreta de decreto. Socorre-se, para tal, do apoio do

Conselho de Governo que, a 22 de Outubro de 1912, sanciona, por unanimidade e sem

alterações, o seu projecto, juntamente com a Lei orgânica das instituições

administrativas da província de Angola196. Nos seus considerandos, o projecto da

futura SNI deixa claro o que está em causa: ocupar administrativamente a totalidade

da área da colónia, assegurando, consequentemente, que a principal riqueza da

colónia (o indígena) é devidamente cadastrada de modo a pagar o imposto indígena e

a fornecer a prestação em trabalho nos moldes definidos pelo poder colonial. O intuito

é promover e acelerar o processo civilizacional de modo a que, um dia os indígenas

possam usufruir dos benefícios da civilização portuguesa. Enquanto não atingem a

civilização plena, a SNI deve recenseá-los e codificar os seus usos e costumes,

aproveitando as instituições tradicionais, nomeadamente no que respeita à

administração da justiça. Deve, por outro lado, velar pela sua saúde e bem-estar, com

especial destaque para a assistência infantil e para a fiscalização das condições de

trabalho. Deve ser a SNI a organizar e regulamentar o fornecimento de trabalhadores

para as necessidades da colónia. O decreto prevê, ainda, que a nova secretaria

determine e fixe zonas reservadas aos indígenas. Em suma, seria uma mega-secretaria

196

Projectos de Lei Orgânica da Provincia de Angola e de Organização de Alguns Serviços Provinciais Submetidos à Apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador-geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional, 1912, pp. 65-66.

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que tendencialmente se ocuparia de todos os assuntos relativos à esmagadora maioria

da população de Angola de uma forma específica e separada do resto da população.

Para a dirigir, Norton já não conta com Simões Raposo. Uns dias antes

telegrafara ao ministro a retirar a proposta de nomeação deste último para o lugar197,

invocando a atitude incorrecta deste último para com o ministério, durante a crise do

decreto fazendário. Não era esse, porém, o único motivo. Na verdade, Raposo abrira

dias antes uma outra frente de combate contra o jugo centralizador de Lisboa: as

práticas esclavagistas. Ao publicar no jornal Independente, como veremos mais em

pormenor no ponto II.2.3., que se comprava gente em Angola, Raposo pisa uma linha

que para Norton é inultrapassável, agora que se encontra na posição de estadista e já

não apenas de colunista.

É longe dos ouvidos públicos que Norton, dias antes da apresentação do

projecto da SNI em Conselho de Governo, telegrafa para Lisboa admitindo que, sim, a

escravatura existe em Angola, daí precisar de

«homem [de] absoluta confiança [para] tratar [das] questões indígenas principalmente sob ponto vista [da] pratica [de] escravatura [que] estou [a] reprimir continuadamente»198.

O bacharel José Ferreira Diniz é o homem que agora propõe para o lugar.

Embora não inicialmente pensado para este cargo, Diniz fazia já parte do núcleo de

altos funcionários requisitados por Norton ainda antes da sua partida para Luanda199.

Depois deste telegrama de Outubro insistindo na sua vinda, para este cargo concreto,

seguir-se-ão ainda vários outras comunicações reiterando tanto o pedido da vinda do

funcionário como o pedido de que a nova secretaria que ele iria chefiar fosse

finalmente criada. Se, quanto a esta última, nada acontece, já, quanto ao primeiro, o

ministro transige, no final de Novembro, que Norton o requisite, dando-lhe depois «o

197

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Cópia de tel. cifrado do governador-geral de Angola ao ministro das Colónias, 19-10-1912. 198

Idem. 199

«Estou aqui há 4 mezes. Funcionarios agora requisito já ahi requisitados. Careço desviar pessoal antigo e que me é pouco affecto». Idem.

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destino que entender»200, o que o governador-geral faz a 9 de Dezembro. O cargo

fictício será o de administrador de concelho pois «Como disse tenciono nomeal-o

comissão questões indígenas.»201. Nas vésperas de Natal, Diniz é finalmente

«nomeado para exercer o lugar de administrador de concelho na Provincia de Angola

que lhe fôr destinado pelo governador-geral da mesma Província» e, a 24 de Janeiro de

1913, é colocado pelo governador-geral como administrador do concelho do

Ambriz202. Seguir-se-á um arrastado processo burocrático até que, primeiro, Diniz

receba qualquer vencimento, e tenha oficialmente um cargo compatível com as

funções para que Norton o pensou203.

Na colónia, a situação não era melhor. Na verdade, os inimigos que ganhara na

imprensa luandense aquando da crise do decreto fazendário – os jornais Independente

e A Verdade – estão mais activos do que nunca nos primeiros meses de 1913. No

primeiro, Simões Raposo rapidamente passa de jornalista a director do jornal. No

último, continua a destacar-se a voz virulenta do oficial do exército e advogado Rosa

Júnior. Entre os pretextos para atingir o governador destacam-se dois.

O primeiro é o melindroso tema das práticas esclavagistas que já viera à tona

em Outubro do ano anterior, à boleia da polémica do decreto fazendário. Desta feita,

porém, o Independente já não se limita a colocar em causa o Ministério das Colónias,

assestando baterias também sobre o governador, assunto a que ainda regressaremos.

O segundo motivo para atacar Norton é a nova repartição que este teria criado

na colónia, com a nomeação do respectivo chefe, à revelia de Lisboa e comportando

gastos extra para a colónia. Na verdade, pela Portaria Provincial n.º 372, de 17 de Abril

de 1913, Norton não cria uma repartição mas antes os Serviços dos Negócios

Indígenas, a funcionar de forma «provisória e incompleta» junto da repartição do

gabinete do governador-geral, enquanto não sair a lei que permita a criação oficial de

200

«Não existindo comissão para que V.Exª requisita Ferreira Diniz impossível fazer nomeação, mas poderá V.Exª requisital-o qualquer cargo existente dando-lhe depois ahi destino entender». Idem, Tel. cifrado de «Ultramar» a governador-geral de Angola, 28-11-1912. 201

Idem, Tel. cifrado do governador-geral de Angola a «Ultramar», 09-12-1912. 202

Cf., respectivamente, portaria ministerial de 23-12-1912, despachada na mesma data pelo Ministério das Colónias in BOPA, Nº 4, 25-01-1913, p. 36; e BOPA, Nº 4, 25-01-1913, p. 47. 203

ANM, P. GGA 1, Rascunho de carta particular de Norton de Matos ao ministro das Colónias Almeida Ribeiro, mns., emendado e ass., 29-01-1913.

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uma nova repartição204. A imprensa luandense não saberia que Ferreira Diniz,

indigitado para essa chefia, durante longos meses limita-se a exercer oficiosamente o

cargo. Na prática, enquanto o ministério não sancionar oficialmente a criação da

secretaria, nada muda em relação à situação de facto que, desde Janeiro de 1913,

existia no governo-geral, com a sanção do ministério: Ferreira Diniz trata dos assuntos

indígenas, na directa dependência de Norton. Fazia-o inicialmente no gabinete pessoal

do governador e depois no que este último, na portaria provincial de Abril,

pomposamente apelida de Serviços dos Negócios Indígenas, tentando forçar a mão do

ministro das Colónias. Na prática, os Serviços eram compostos unicamente pelo seu

putativo ‘chefe’ que, mesmo quando passa a ser chefe oficial da SNI finalmente

institucionalizada em Outubro, continua a contar com recursos pouco mais que

simbólicos205.

Vale a pena reflectir sobre a atitude algo contraditória de Rosa Júnior neste

caso. Passados alguns meses após ter investido na criação de um novo jornal em

Luanda para combater a centralização de Lisboa, parece ter passado a defender

precisamente o oposto. De facto, já na Primavera de 1913, passa a criticar o

governador-geral por agir com independência face à metrópole, ao forçar a criação de

um novo organismo que reputava fundamental para a boa administração da colónia.

Na verdade, porém, a contradição é apenas aparente. A partir do momento em que

Norton escolhera não continuar a afrontar Lisboa publicamente por via do decreto

fazendário, torna-se, para Rosa Júnior como para muitos em Angola, um símbolo da

centralização da metrópole – e todos os pretextos passam a ser bons para o atacar.

Desta feita, Norton toma medidas mais drásticas, não se limitando a suspender

números avulso, como fizera no ano anterior ao Independente. No final de Maio de

1913, é a publicação de ambos os jornais, A Verdade e o Independente, que será

204

PP nº 372, de 17 de Abril de 1913 in BOPA, Nº 16, 19-04-1913, pp. 266-267. 205

Como transparece dos seus sucessivos relatórios anuais entre 1913 e 1915. É o caso do relatório escrito no final do seu segundo ano em Angola a ocupar-se das questões indígenas, dos quais pouco mais de um ano já a exercer oficialmente o cargo de Secretário dos Negócios Indígenas (a que se junta, desde 14 de Outubro de 1914, o cargo de Curador Geral), retrata uma SNI que tem vindo a funcionar de forma deficiente e incompleta, devido à falta de pessoal e de meios, em total desproporção com a latitude das suas atribuições, incluindo toda a província. José Ferreira Diniz, Negócios Indígenas. Relatório do ano de 1914 elaborado por José de Oliveira Ferreira Diniz, Secretário dos Negócios Indígenas e Curador Geral da Província de Angola, Luanda, Imprensa Nacional, 1915.

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impedida, quando as tipografias de Luanda são intimadas a não publicar esses dois

títulos. Interpelado na Câmara dos Deputados por este caso, Afonso Costa defende

publicamente a hombridade de Norton206 e remete o caso para o seu ministro das

Colónias, ausente dessa sessão do Parlamento de Lisboa. Será Almeida Ribeiro quem,

duas semanas mais tarde, em telegrama particular a Norton, pede «licença» para

«indicar [a] conveniência» de cessar a suspensão dos jornais bem como de evitar

tomar contra Simões Raposo uma medida violenta como a expulsão da colónia207.

Acontece, porém, que Raposo, já não sendo funcionário público, continuará em

Angola, gabando-se de saber tudo o que se passa no gabinete do governador-geral.

Virá a provocar, indirectamente, a exoneração do secretário-geral do governo de

Angola, Pedro Tavares Lopes da Silva, suspeito de ter fornecido documentos ao agora

arqui-inimigo do governador208. Note-se que não será uma baixa de somenos

importância no círculo mais próximo de Norton. Afinal, Tavares fazia parte do grupo

restrito de funcionários de confiança por si requisitados ainda em Lisboa e tinha um

lugar sensível na orgânica do governo-geral, acumulando o lugar de secretário-geral

interino do governo com as funções de procurador da República.

Rosa Júnior, uma vez que é oficial do exército, sofre um castigo correccional e a

sua resistência à prisão acarretará a expulsão da colónia, a prisão no forte de São

Julião da Barra e, já por decisão do próprio, o abandono do Exército209.

Simbolicamente, a criação de um serviço separado para tratar dos indígenas, no

que respeita a todos os aspectos das suas vidas, é um passo muito importante no

caminho no sentido da evolução separada dos não-cidadãos relativamente aos

cidadãos, que são os colonos brancos europeus e a percentagem mínima dos nativos

206

Em resposta a interpelação do deputado por Luanda, Camilo Rodrigues, que lê em sessão plenária um telegrama de Simões Raposo e pede providências, afirma «Tomo nota da comunicação que fez o Sr. Deputado e pedirei ao Sr. Ministro das Colónias para examinar o telegrama e recolher as informações que o caso comporta. Mas o que posso afirmar, é que o Sr. Norton de Matos é um homem que sabe bem quais são os seus deveres, não saindo dêles e cumprindo a lei, o que me tranquiliza com relação ao que S. Exa. disse». Diário da Câmara dos Deputados (DCD), Sessão de 29-05-1913, pp. 3-4. 207

ANM, P. GGA 1, Tel. nº 101, particular, do ministro das Colónias ao governador-geral de Angola, 15-06-1913. 208

AHU, 807A, Cx 23A, Of. nº 176, confidencial, da Repartição do Gabinete do governador-geral de Angola, 17-09-1913. 209

Segundo o jornal A Reforma, Nº 94, 03-09-1913, transcrito por Maria Alexandre Dáskalos, A política de Norton de Matos para Angola, 1912-1915, 1. ed., Coimbra, Livraria Minerva, 2008, p. 157.

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negros e mestiços que cumprem os critérios europeus de civilização, mais tarde

chamados assimilados. Esta elite angolense não aparece como protagonista no

protesto contra Norton a propósito da criação dos Serviços dos Negócios Indígenas ou

da campanha antiesclavagista da Primavera de 1913, que iremos desenvolver mais

adiante. Já o mesmo acontecera na crise do decreto fazendário, embora não faltassem

descontentes também entre os «africanos civilizados», como o próprio Norton não

deixara de registar. A verdade é que parte significativa destes últimos parece estar

mais interessada em organizar-se em associações próprias, como a Liga Angolana e o

Grémio Lusitano210, cujos estatutos saem em Boletim Oficial durante o mês de Março

desse ano, sob o patrocínio do governador-geral. Não por acaso, assim que a proibição

de publicação de jornais políticos em Luanda é levantada, o novo semanário colonial

afecto ao governador-geral, cujo arranque tivera de ser adiado por via da crise211,

publica no seu número inaugural um telegrama da Liga Angolana ao ministro das

Colónias:

«Liga Angolana, representante população indígena provincia, manifesta V. Exa. a satisfação medidas boa administração tomadas governador geral, representativas não vulgar inteligência, honradez, energia ha pouco manifestada com medidas manutenção ordem publica.»212

Esta aliança inicial de Norton com os naturais de Angola será posta à prova logo

no ano seguinte, quando alguns membros da Liga forem acusados de estarem a

preparar uma revolta separatista em Malange. Embora as acusações nunca tivessem

chegado a ser provadas, a verdade é que o que estará sobretudo em causa serão os

abusos relacionados com a cobrança do imposto de cubata aos indígenas, a par dos

bloqueios sentidos pelos seus membros mais qualificados em singrarem na função

pública. É verdade que, inicialmente, a Liga apoia Norton na sua campanha

210

Eugénia Rodrigues, A Geração Silenciada: A Liga Nacional Africana e a Representação do Branco em Angola na Década de 30, Porto, Edições Afrontamento, 2003, pp. 26-32. 211

O arranque do novo jornal teve de esperar pelo levantamento da proibição imposta por Norton às tipografias de Luanda, de não imprimirem quaisquer jornais políticos: «Mal interpretada também foi a ordem que dei para não se imprimirem outros jornais enquanto não houvesse plena liberdade de circulação para os jornais o “Independente” e a “Verdade”. Estava anunciada para breve a publicação de um jornal que se dizia não seria hostil ao Governo Geral da Província e não quis que se pudesse pensar que eu procedia de maneira que esse jornal ficasse só em campo». ANM, Rascunho de carta de Norton de Matos ao Venerável da Loja Capitular Independência Nacional, Val de Loanda, 29-06-1913, mns., do punho de Norton. 212

In O Progresso: Semanario Colonial, No 1, 26-06-1913, p. 2.

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moralizadora de práticas abusivas, quando não mesmo esclavagistas, que envolviam o

trabalho indígena. Isso não impedirá que, em 1914, um dos mais destacados membros

da Liga, António Joaquim de Miranda, saia à liça a denunciar os abusos que, durante a

administração do mesmo governador, envolverão a cobrança do imposto de cubata

aos indígenas213.

A cobrança do imposto era, precisamente, uma peça fundamental do sistema

de indigenato então em curso de implementação, tendo um fim essencialmente

político. Norton di-lo em 1913 com uma clareza lapidar: quem paga, entrega muito

mais que dinheiro, devendo exprimir com o imposto a sua gratidão por ser colonizado;

quem recebe, recebe algo muito mais importante do que dinheiro: o reconhecimento,

pela parte de quem é colonizado, da soberania do ocupador214. Para se chegar a este

ponto na relação entre as partes, era preciso começar pelo cadastro da parte mais

fraca, os ‘indígenas’, com a correspondente imposição da obrigatoriedade de trabalhar

nos moldes impostos pelo colonizador. Para este tríplice controlo (recenseamento,

imposto e trabalho) poder avançar era necessário clarificar quem cabia sob a sua

alçada.

II.2.2. Os indígenas, versão nortoniana

Do mesmo modo que avança por moto próprio com a criação de uma estrutura

na administração específica para os indígenas, o governador-geral avança com uma

definição para eles. É certo que para um qualquer europeu do primeiro quartel do

século XX não há dúvidas sobre o que um indígena não é: alguém que não vive de

213

Será por isso suspenso das funções de 2º escriturário da Fazenda e transferido para o Congo por Norton de Matos (PP nº 295, 05-03-1914, BOPA, nº 10, 07-03-1914, p. 209). Sobre o nativismo e a ruptura da aliança inicial de Norton com os filhos da terra, cf. Mª Alexandre Dáskalos, A política de Norton de Matos para Angola, 1912-1915, pp. 147-155. 214

«o imposto que a lei os obriga [aos indígenas] a pagar deve ser tomado por eles como um acto de gratidão pelos benefícios e protecção que recebem do Estado, e ao mesmo tempo como reconhecimento e acatamento da soberania portuguesa» (artº 146º, nº 1). Para o ocupador, por seu turno, o imposto «tem um intuito mais político do que financeiro, deve considerar-se como o acto final da ocupação, pacificação e administração» (artº 147º). J.M.R. Norton de Matos, «CIRCULAR Aos Srs. governadores dos distritos, ao sr. Secretário Geral do Govêrno, ao sr. chefe do Estado Maior, aos srs. administradores das circunscrições civis e capitães-mores da Província de Angola», Loanda, 17-04-1913, in Regulamento das Circunscrições Administrativas da Província de Angola: Decreto de 2 de Novembro de 1912: Portarias Provinciais e Circular de 17 de Abril de 1913, Loanda, Imprensa Nacional de Angola, 1913, pp. 105-121. Quase 40 anos depois, Norton republica, em Ponte de Lima, a circular em forma de brochura: Circular do Governador-geral de Angola: Em Data de 17 de Abril de 1913: Aos Srs. Governadores dos Distritos (….): Pró-memória, Ponte do Lima, Tipografia Augusto de Sousa, 1952.

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acordo com os padrões civilizacionais europeus, um não-civilizado, portanto. A

diversidade dos povos e civilizações presentes no território colonial angolano é

obnubilada pelo colonizador e reduzida a uma não-categoria: os que não comungam

da civilização do colonizador. Não obstante o consenso em torno deste conceito geral,

ou não-conceito, o avanço da administração colonial vai obrigar a uma cada vez maior

clarificação legislativa.

À falta, em legislação anterior, metropolitana ou outra, de uma definição «clara

e explícita»215, Norton trata de estabelecer, em portaria de 20 de Janeiro de 1913,

«ouvido o Conselho de Govêrno e com o seu voto deliberativo», a sua própria

«definição precisa de tal entidade, pois dela depende a fruição de direitos da maior

importância, principalmente no que diz respeito a questões de propriedade e à

aplicação da justiça». Para que não restem dúvidas:

«1º São considerados indígenas os indivíduos dos dois sexos, de côr, naturais ou residentes na Província, que não estejam nas condições do nº 2º desta Portaria».

As condições imperativas para sair da condição de indígena, definidas no artigo

2º, são basicamente duas. Ter «hábitos ou costumes europeus» (alínea b), e, em

alternativa, um de três indicadores: «Saber falar correctamente português, ou exercer

arte ou profissão liberal, ou pagar contribuição predial ou industrial» (alínea a)216.

Antecipa assim, em ano e meio, «a consagração geral do conceito de indígena e

a regulamentação do seu estatuto civil, político e criminal» que só terá lugar quando

for publicada a primeira Lei orgânica da Administração Civil do Ultramar, a 15 de

Agosto de 1914217. Mesmo assim, esta lei da República dará do indígena uma definição

215

Norton invoca vários diplomas, como o «Regime provisório para a concessão de terrenos do Estado na província de Angola», então em vigor, que, no cap. I («Das concessões a indígenas»), define: «É considerado indígena, para efeitos dêste capítulo, apenas o indivíduo de côr, natural ou residente na província, que, pelo seu desenvolvimento moral e intelectual, se não afaste do comum da sua raça» (art

º

38º) in José de Oliveira Ferreira Diniz, Negócios Indígenas. Relatório do ano de 1913 elaborado por José

de Oliveira Ferreira Diniz, Secretário dos Negócios Indígenas da Província de Angola, Loanda, Imprensa Nacional de Angola, 1914, p. 127. 216

PP nº 43, de 20-01-1913, definindo a classificação de indígenas, para os efeitos de disposições de leis em vigor in BOPA, Nº 4, 25-01-1913, p. 42. 217

Cristina Nogueira da Silva, «Cidadania e representação política no império» in Fernando Catroga, Pedro Tavares de Almeida (coord.), Res publica, 1820-1926: cidadania e representação política em Portugal, Lisboa, BNP e AR, 2010, p. 108.

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muito mais aberta218, deixando para os conselhos de governo de cada colónia a tarefa

de a concretizar no futuro. No caso de Angola, o conselho de governo, presidido por

Norton, já tinha providenciado a sua. Afinal, como virá ainda a recordar ao ministro

Almeida Ribeiro, no final de 1913, contrapondo o indígena (que nessa altura apelidará

de «súbdito das colónias da República Portuguesa») ao verdadeiro cidadão da

República Portuguesa:

«Que essa diferença existe realmente, ninguém que cousa alguma conheça de colonias, ou que n’elas tenha vivido o pode negar.» 219

II.2.3. Trabalho escravo ilegal: o alvo a abater. A meta a atingir: o trabalho

livre

Que os indígenas, assim definidos, são para tutelar e proteger pelos cidadãos

da República Portuguesa, Norton não tem dúvidas. Pelo menos até que, um dia mais

tarde, todos eles, já civilizados pelo trabalho e confrontados com a bondade e a justiça

do tratamento dos colonos, possam estabelecer relações de trabalho completamente

livres, baseados já não no indigenato mas no direito comum.

Tanto no pensamento coevo como na acção governativa de Norton, tudo o que

resta de práticas esclavagistas ilegais em Angola é para acabar já. No plano das

intenções, defendera-o publicamente aquando da sua intervenção na polémica do

cacau escravo e, mesmo antes de partir para Angola, perante os irmãos da loja

maçónica onde fora iniciado, como vimos no capítulo anterior.

A mudança de regime criara grandes expectativas nesse capítulo. É certo que o

principal foco das acusações de esclavagismo fora temporariamente estancado com o

prolongamento da suspensão da ida de novos trabalhadores angolanos para as

218

«As leis e outras disposições, exclusivamente adoptadas para indígenas, só são aplicáveis aos indivíduos naturais da colónia ou nesta habitando, assim considerados por deliberação do Conselho de Govêrno. Todos os outros indivíduos são isentos desta aplicação e tem garantido o pleno uso de todos os direitos civis e políticos, concedidos pelas leis em vigor». Base 17ª da Lei 277, de 15 de Agosto de 1914, DG, I Série, Nº 143. 219

Propusera, portanto, ao ministro que a distinção entre um e outro ficasse consagrada nas futuras leis orgânicas das províncias ultramarinas. Com a distinção ficariam claras «as condições para a acessão dos subditos portuguezes das nossas colonias á qualidade de cidadãos portuguezes», que o governador-geral propõe sejam as mesmas que vigoram na África Ocidental e Equatorial Francesa. AHU, 807A, Cx 23ª, Of. 2090 de Norton de Matos ao ministro das Colónias, Luanda, 26-12-1913, dact, ass.

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fazendas de São Tomé. Determinada ainda em Julho de 1910, a proibição da ida de

novos ‘contratados’ de Angola para as ilhas do cacau vai sendo sucessivamente

prorrogada pela República e a emigração oriunda desta colónia só será efectivamente

retomada em 1913220, embora o processo de recrutamento se inicie ainda no ano

anterior, após nova legislação reguladora ser publicada.

Quando, a 7 de Setembro de 1912, o Boletim Oficial de Angola publica o

decreto com força de lei de 20 de Julho que volta a permitir o recrutamento de

serviçais de Angola para os serviços agrícolas de São Tomé e Príncipe221, está-se em

plena crise do decreto fazendário. Na linha da frente da contestação a este último,

encontra-se um homem particularmente sensível à questão dos serviçais de São Tomé.

Afinal, Simões Raposo dera, tal como Norton, o seu nome à sociedade antiesclavagista

nascida em Lisboa dois anos antes, precisamente devido à polémica do cacau escravo.

E, como bom polemista que é, não hesita em usar o decreto de 20 de Julho como

argumento suplementar para atacar o governo de Lisboa, especialmente quando a

Luanda chegam ecos do boato que o ministro das Colónias ordenara a suspensão dos

jornais que ofendessem o bom nome da República Portuguesa, nomeadamente

apelidando-a de esclavagista. Dia 9 de Outubro o Independente responde com um

desafio:

«A ameaça do sr. Ministro (em que nos custa, positivamente, a crêr) não nos intimida. Mas se é verdadeira, rimo-nos dela. Nós, os que aqui estamos, e os que aqui vivemos, é que podemos saber, e é que podemos afirmar, se em Angola a escravatura existe ou não existe, e se é preciso ou não, vergastar, sem tibiezas, aqueles que a não evitam e que por isso são os principais culpados do desprestígio do nome de Portugal.

Cumpra primeiro o Governo Central com o seu dever! Saiba evitar essa escravatura, com energia e com sinceridade!

Mas emquanto forjar providencias como o Decreto de 20 de Julho, que dá margem á pratica da perfeita escravatura, e emquanto, nesta provincia, se comprar gente, e houver gente escrava dessa compra, nós não nos calaremos um só instante! Suspendam-nos o jornal! Querelem-nos! Processem-nos! Inutilisem mesmo todos os jornais de Angola!

Pouco importa! Tudo isso é que desprestigiará a Republica e o proprio governo será o direto responsavel desse facto.

220

James Duffy, A Question of Slavery: Labour Policies in Portuguese Africa and the British Protest, 1850-1920, Oxford, Oxford University Press, 1967, p. 216 e segs. 221

Decreto de Manuel de Arriaga, Joaquim Cerveira e Sousa Albuquerque e Castro, de 20-07-1912, BOPA, Nº 36, 07-09-1912, pp. 552-553.

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Nós ficaremos sempre no mesmo campo, deplorando e amando a Republica, mas gritando, hoje, como hontem e como amanhã: VIVA A LIBERDADE!»222

A isto Norton responde mandando o seu chefe de gabinete emitir um

comunicado no qual se garante peremptoriamente:

«Que nesta província não se compra nem se vende gente, nem há escravatura, e quando alguns casos isolados dêsses se dêem, como se pode dar um crime de homicídio ou de estrupo, teem sido êles e continuarão a ser punidos com o mais

severo rigor da lei.» 223.

O governador até tem as suas razões para se sentir de alguma forma traído

pelo antigo colaborador. Afinal, não só a repressão das práticas esclavagistas estava

efectivamente no cerne das suas preocupações, como o próprio Raposo tinha estado

pessoalmente envolvido em todo o processo relacionado com o trabalho indígena. Por

outro lado, Raposo estava a tocar numa corda sensível para uma personalidade como

a do governador. Na verdade, no seu primeiro governo de Angola, como em muitas

outras ocasiões da vida pública, Norton tendia a agir como se as suas palavras fossem

lei e as suas ordens realidade imediata. Podia, quando muito, admitir em privado que a

realidade não correspondia plenamente aos seus desejos (embora fosse apenas uma

questão de tempo até que viesse a acontecer). Admiti-lo em público, pelo contrário,

apenas serviria para atrapalhar o objectivo que queria alcançar, lançar a incerteza

sobre a possibilidade de atingir a meta, duvidar da sua capacidade de realizador,

mesmo se, nesta fase, é o governo de Lisboa, e não o de Luanda, que é colocado em

cheque por Raposo.

Seja como for, alguns progressos tinham efectivamente sido feitos. Durante o

período de suspensão da emigração para São Tomé, os governos republicanos

apostam na melhoria da fiscalização das condições laborais na ilha e na promoção do

retorno a Angola dos velhos ‘contratados’, para provar ao mundo que estes são livres

de partir e não escravos. Em ambos os processos, a República sujeita-se à fiscalização

da rede consular britânica no triângulo Luanda – Benguela – São Tomé bem como ao

escrutínio dos activistas ligados aos chocolateiros britânicos (que mantêm o boicote ao

cacau santomense) e da opinião pública de Angola. Em Dezembro de 1912, nos meses

222

«Uma ameaça e uma declaração» in Independente, 09-10-1912, p. 2. 223

Comunicado do chefe de gabinete do governador-geral de Angola, tenente Tomás Fernandes, 10-10-1912, in BOPA, Nº 41, 12-10-1912, p. 704.

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que Norton levava já de governo, cerca de três centenas e meia de serviçais tinham

regressado, não lhe constando que tenha havido algum problema semelhante «aos

que se deram antes minha chegada colonia», assevera para Lisboa224. Balanço que não

impede o reacendimento da pressão internacional, precisamente nesse final de ano.

Novos artigos saídos em Inglaterra retomam as velhas acusações de

escravatura, provocando uma resposta agastada do director-geral do Ministério das

Colónias, Freire de Andrade225. Em Luanda, Raposo não perde a oportunidade para

atacar o poder central no seu ponto mais vulnerável e, de caminho, o governador que

considerava ter-se rendido aos interesses de Lisboa. O modo escolhido é

particularmente venenoso. Na verdade, recicla uma petição colectiva que cerca de

uma centena e meia de auto-intitulados «filhos de Angola», tinham entregado ao

governo provisório logo após a implantação da República, dois anos antes226. O

problema é que o texto, publicado na edição do jornal Independente de 10 de

Dezembro de 1912, parecia ter acabado de ser escrito e referir-se à situação actual.

Norton não perde tempo e, no mesmo dia, solicita ao procurador da República

que apure o fundamento das denúncias, nomeadamente se há gente escrava e se se

compra gente em Angola227. O administrador do concelho de Luanda recebe instruções

no mesmo sentido:

«No jornal Independente, n.º 2 (106), 2.º ano, de 10 de Dezembro do ano corrente, publicado nesta cidade, lê-se uma representação dirigida ao governo da República, e assinada por grande número de indivíduos naturais e residentes nesta Província, onde se afirma, positivamente, a existência de escravatura em Angola: “O que é facto, o que ninguem de consciência sã e escrupulosa pode negar, é que existe escravatura nesta Província. Compra-se e vende-se gente, exactamente como se vendem e compram animais, não só para fora da Província, como tambêm para dentro dela.”

Afirma-se, que as providências adoptadas para acabar com prática vergonhosa, repugnante e altamente criminosa da escravatura “não teem obstado à compra e

224

AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo da Correspondência recebida e expedida] Angola 29-04-1912 a 07-01-1913, Tel. cifrado do governador geral de Angola a «Ultramar», 19-12-1912. 225

James Duffy, A Question of Slavery: Labour Policies in Portuguese Africa and the British Protest, 1850-1920, pp. 223-225. 226

Os extractos do artigo, transcritos no auto de averiguações, mandado instaurar por Norton em Dezembro de 1912, correspondem ao original da petição de 1910, depositada no AHU, 807/ Cx 23, Petição de 157 «filhos de Angola» ao Governo provisório da Republica Portuguesa, Loanda, 19 de Novembro de 1910, [ 9] fls. dact., ass. 227

ANM, P. GGA 2, Rascunho de of. confidencial de Norton de Matos ao Procurador da República, 10-12-1912.

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venda de homens, mulheres e crianças”. Afirma-se que os contractos, os interrogatórios, os autos, “tudo tem sido uma burla indecorosa”

Estas afirmações, destituídas de todo o elemento de prova, não podem passar em silêncio, sobretudo no momento presente, em que nos movem sobre o assunto uma campanha desleal, que tanto prejudica os nossos interesses e o bom nome de nação livre, civilizada e civilizadora; nestas circunstâncias, sendo a escravatura punida como repugnante facto criminoso, rogo a V.Ex.ª, em nome de Sua Ex.ª o Governador Geral, que mande proceder imediatamente a uma rigorosa investigação, ouvindo os signatários da representação referida, a fim de se apurarem os factos que, rigorosamente constatados, serão julgados e punidos nos tribunais competentes, ou concluir-se, caso esses factos se não constatem, que a representação não passa de uma vergonhosa campanha interna, tornando-se, neste caso, os signatários responsáveis pelas suas afirmativas de descrédito.»228

Começam então a ser formalmente inquiridos os signatários, um a um. Todos

coincidem em garantir que a mensagem se referia exclusivamente a factos passados,

que nada têm a ver com «o aparecimento agora da transcrição da parte relativa à

escravatura» e

«Que essa transcrição é extemporânea e antipatriótica, e, pela forma como está feita, omitindo-se a data e truncando-se os outros assuntos nela tratados, parece fazer crêr que os casos de escravatura se referem à actualidade, o que é falso.

(...) declaram que não teem conhecimento de caso algum de escravatura nesta Colónia, nem haver motivo para reclamações, em virtude de medidas enérgicas que o Ex.mo Governador Geral tem tomado. (...)»229

Uma vez que as declarações de quinze «dos mais conceituados» angolenses

que assinaram a mensagem de 1910 são coincidentes em que as práticas esclavagistas

acabaram, as autoridades decidem que não vale a pena prosseguir com a inquirição

dos restantes signatários. As declarações são devidamente publicitadas, com direito a

transcrição em Boletim Oficial230. É a nata do funcionalismo público angolense a

garantir publicamente que, sob o governo de Norton, não há lugar a qualquer

tolerância com o esclavagismo. Da secretaria-geral do governo, testemunha o oficial-

maior Manuel Vasco Galiano, declarando

228

Of. confidencial nº 84, do Secretário Geral do Governo Geral de Angola, Pedro Tavares Lopes da Silva, ao administrador do concelho de Loanda, 16-12-1912, transcrito por ordem superior em nota da Secretaria Geral do Governo in BOPA, Nº 4, 25-10-1913, pp. 47-48. 229

Of. nº 690 do administrador do concelho de Luanda, Manuel Henriques Lopes Bragança, ao secretário geral do governo, resposta à nota 84/910/1912 in BOPA, Nº 4, de 25-01-1913, p. 48. 230

Administração do Concelho de Luanda, «Auto de investigação [1º ao 3º interrogados]», Luanda, 22-12-1912 in BOPA, Nº 4, de 25-01-1913, pp. 48-49; e Idem, «Auto de investigação [4º ao 15º interrogados]», Luanda, 23-12-1912 in BOPA, Nº 4, de 25-01-1913, pp. 49-52. Até referência em contrário, as citações são destes autos.

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«Que na época em que a representação foi feita tinha o interrogado notícia de que em alguns concelhos e designadamente no Bailundo e Novo Redondo, se fazia escravatura, facto que levou o Govêrno Geral a providênciar, expulsando alguns indivíduos para fora da Colónia. (...) Perguntado se conhece algum caso concreto, na actualidade, de compra e venda de escravos e, no caso afirmativo, quem são os

compradores e vendedores, respondeu que nada sabe.».

Declarações do mesmo teor são feitas por dois outros colegas da secretaria do

governo-geral, o 1º amanuense Eduardo de Carvalho Vieira e o 2º amanuense

Francisco de Paula Baptista: a mensagem era relativa a factos que em 1910 se davam

em Benguela, não lhes constando que actualmente se faça escravatura em Angola.

Da Câmara Municipal, três outros funcionários corroboram os factos. O

tesoureiro António Ribeiro da Costa reitera que em 1910 existia escravatura, em

especial nos concelhos do sul, mas, actualmente, nada lhe consta a esse respeito. O

oficial Manuel Ferreira Rodrigues de Almeida especifica que os factos davam-se na

época, «designadamente no Bié e Novo Redondo» mas «actualmente não lhe consta

que haja escravatura». Por fim, o amanuense Miguel Ângelo Bolonhês lembra a

«compra e venda de escravos, designadamente nos concelhos do Sul» mas assegura

não ter conhecimento de que tal prática persista.

Idênticas declarações são feitas por funcionários do sector das obras públicas (o

apontador Geraldo Pio do Amaral Gurgel, o fiel Generoso Alves Sardinha e o

despachante Fernando Torres Vieira Dias), do sector dos caminhos-de-ferro (o

desenhador José Alberto Nozolino de Azevedo, dos Caminhos-de-Ferro de Loanda e o

empregado do Caminho-de-Ferro de Ambaca, Aurélio de Oliveira Neves), entre

outros231.

O chefe do movimento da fiscalização do governo junto do Caminho-de-Ferro

de Ambaca, João de Almeida Campos, é particularmente enfático:

«actualmente não lhe consta que se faça tão repugnante quão criminoso negócio. Que considera a transcrição em questão anti-patriótica e inconvenientíssima, visto, como já disse, não haver actualmente motivo para reclamações sôbre escravatura, em vista das medidas que teem sido e estão a ser tomadas com toda a energia.»

231

A este grupo, junta-se as declarações de um outro funcionário público, Augusto Archer da Silva Wilson, que refere ter tido conhecimento de tais práticas nos concelhos do Bailundo e Bié mas que eram coisas passadas; do guarda-livros da Empresa Nacional de Navegação, Joaquim de Brito Pires; e do jornalista Augusto Silvério Ferreira.

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Não será um acaso que o autor destas palavras de apreço pela acção de Norton

neste capítulo venha a tornar-se um dos principais dirigentes da Liga Angolana232,

apadrinhada por Norton precisamente nos primeiros meses desse ano de 1913. Na

verdade, todos os apoios que o governador possa obter são poucos até porque, da

metrópole, chegam ecos alarmados com a celeuma internacional e luandense.

As notícias correm céleres e, logo no dia seguinte à publicação do artigo que

recicla a petição velha de dois anos no Independente, Norton recebe um telegrama de

Lisboa recomendando o máximo rigor na punição de esclavagistas bem como na

protecção dos serviçais, nomeadamente assegurando-se que os salários estão em dia,

de modo a esvaziar a campanha internacional que se prepara contra Portugal233. O

governador-geral garante que continua a tomar medidas para o integral cumprimento

da lei de trabalho. Atribui alguns protestos públicos contra o curador dos serviçais em

Malange à falta de ponderação deste último, cuja substituição aconselha, mas garante

que não tiveram consequências, tendo logo os ânimos serenado, apesar de se

manterem as representações da Câmara de Malange e da Associação Comercial da

Lunda. Em algumas roças da Lunda, as suas medidas contra os abusos laborais foram

mal compreendidas, tendo-se dado uma tentativa de greve dos serviçais «que

facilmente autoridade convenceu não abandonar trabalho»234.

Quando o ministério expede um segundo telegrama a insistir que «precisamos

absolutamente demonstrar que acabou escravatura Angola ainda mesmo quando

encoberta com nome de serviçaes»235, Norton já fora pessoalmente tomar o pulso da

232

Eugénia Rodrigues, Op. cit., p. 231. 233

Logo no dia seguinte: «Peço dizer destino tiveram indivíduos expulsos como esclavagistas por governador Coelho e se alguns voltaram ahi. Peço dizer indivíduos pronunciados últimos anos como esclavagistas (...) sentenças e destinos teem tido. Situação muito grave internacionalmente visto campanha contra nós ir recomeçar apoiada fortes elementos; recomendo todo rigor punição esclavagistas, absolutamente indispensável cumprir lei protecção serviçaes pagamento salários em dia. Todo individuo suspeito escalavagismo deve ser vigiado expulso». AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo…], Tel. cifrado de «Ultramar» ao governador-geral de Angola, 11-12-1912. 234

Idem, Tel. cifrado do governador geral de Angola a «Ultramar», 11-12-1912. Sobre estes incidentes, veja-se também José de Oliveira Ferreira Diniz, Negócios Indígenas. Relatório do ano de 1913 elaborado por José de Oliveira Ferreira Diniz, Secretário dos Negócios Indígenas da Província de Angola. 235

«Inconveniente agora mudança curador poderia ser atribuída seu desejo proteger serviçaes. Campanha consta vae começar muito perigosa para nós, precisamentos absolutamente demonstrar que acabou escravatura Angola ainda mesmo quando encoberta com nome de serviçaes. Confio V.Ex.ª máximo rigor contra contraventores lei empregando força sendo necessário expulsando esclavagistas se

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situação nas circunscrições e fazendas agrícolas nas margens do rio Cuanza, de onde

envia, no dia 13, ao ministro dados concretos de como o assunto está a ser levado a

sério:

«(..) Não descuro tal assunto [serviçais] não permito menor abuso. Visitei hontem fazenda Bom Jesus Companhia Cazengo, tem 150 homens recrutados intermedio autoridade administrativa para trabalho de 20 a 60 dias uteis com salario entre 120 a 180 reis predominando este ultimo e 450 serviçaes 1910 (?) por 5 anos vencendo homens 120 reis e mulheres 90 reis dias descanso com cubatas, terra para lavrar e creação á custa do proprietário. Pagamento a dinheiro e vae passar a ser feito estrictos termos § 3º artigo 19 decreto 27 Maio 1911. Afirmo são exageradas acusações relativas irregularidades caracter geral mão d’obra constituem excepção cada vez menor numero que espero em poucos mezes reduzir a zero.»236

É certo que, através de uma bateria de portarias e instruções administrativas, o

governador-geral há meses que andava a preparar o terreno, por demais hostil a tratar

o indígena de forma justa, nomeadamente na questão do trabalho237. Está, porém, na

hora de avançar com medidas drásticas para levar a todos os indígenas a boa nova de

que são livres de trabalhar onde quiserem e para obrigar os patrões a não lhes sonegar

essa liberdade. São forçados a libertar os indígenas ao seu serviço, de que em muitos

casos continuavam a dispor, como se continuassem legalmente a ser escravos,

privando-os de liberdade de trabalho e de circulação. Isto para já não falar do

desrespeito pelas condições de trabalho quanto a horários, pagamentos, bem como da

persistência da prática de castigos corporais.

Não que, logo após a implantação da República, o governador Manuel Maria

Coelho não tivesse já dado instruções precisas para pôr cobro a essa situação, tendo

mesmo expulsado alguns colonos acusados de esclavagismo. Simplesmente, o

governador do distrito de Moçâmedes que fizera as acusações «teve como

recompensa uma sindicância», lembra Ferreira Diniz no seu primeiro relatório à frente

não fôr possível dar-lhes mais rigoroso castigo que merecem». AHU, P. 4547/GM/D1/1912-1913, [Livro de Registo…], Tel. cifrado de «Ultramar» ao governador-geral de Angola, 12-12-1912. 236

Idem, Tel. cifrado do governador-geral de Angola a «Ultramar», 14-12-1912. 237

Como explicará aos seus correligionários de partido em 1914 (A Situação Financeira e Economica da Provincia de Angola : Conferencia Realisada em Maio de 1914 no Centro Republicano Democratico pelo Major Norton de Matos Governador Geral de Angola, Lisboa, Tipografia da Cooperativa Militar, 1914) e mais tarde nas suas memórias.

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dos Negócios Indígenas de Angola238. Com esse precedente e a substituição de Coelho,

não admirava que poucos acreditassem que, nesse início de 1913, a «rara energia»

com que Norton estava a atacar o problema tivesse outras consequências que não a de

vir a ser recambiado para a metrópole:

«Que necessidade, pois, havia em pensar, sequer, na modificação do que estava estabelecido, seguindo a nova orientação, se o sr. Norton de Matos era homem ao mar?»

Será, precisamente em regiões mais problemáticas, como Moçâmedes, que

Norton toma medidas draconianas para que a lei passe a ser cumprida, determinando

que comissões oficiais do Estado239, acompanhadas por vezes de jornalistas, vão de

fazenda em fazenda reunindo os trabalhadores, a quem é solenemente declarado:

«Que ao Governo da Republica Portuguesa consta que muitos serviçais de Mossamedes, não obstante o que muitas e repetidas vezes lhes tem sido declarado por todas as autoridades do Distrito, persistiam em considerar-se sem liberdade, o que não é verdade. Por este motivo, por ordem do Governo da Republica, se lhes declarava solenemente que eram homens perfeitamente livres, tão livres como qualquer dos europeus presentes, podendo por isso escolherem trabalho onde e

como melhor lhes conviesse, com o actual ou outro patrão, ou por conta própria»240.

A comissão interroga formalmente os trabalhadores, um a um, para que digam

se pretendem mudar de trabalho, registando os seus nomes em auto e fornecendo-

lhes guia. Os proprietários, por seu turno, são formalmente notificados de que devem

pagar os salários nos termos da lei e indicar a data mensal de pagamento para que

uma autoridade possa, querendo, deslocar-se à fazenda para confirmar o acto.

Verifica, ainda, se nas fazendas existem barreiras à livre saída e entrada de

trabalhadores, o que é frequentemente o caso241, intimando os proprietários a retirá-

238

Até referência em contrário, as citações são de José de Oliveira Ferreira Diniz, Negócios Indígenas. Relatório do ano de 1913 elaborado por José de Oliveira Ferreira Diniz, Secretário dos Negócios Indígenas da Província de Angola, p. 76. 239

Cf. Idem, pp. 81-82; e William G. Clarence-Smith, Slaves, peasants and capitalists in southern Angola 1840-1926, Cambridge, Cambridge University Press, 1979, pp. 41-42. A formalidade e aparato da visita dessas comissões a cada uma das fazendas podem ser conferidos nos respectivos autos de visita in AHU, 807A, Cx. 23 A, passim. 240

AHU, 807A, Cx 23 A, Cópia de «Auto de notícia» [da visita da comissão à fazenda de S. Pedro, propriedade de José do Nascimento Ribeiro da Cruz], 15-05-1913, dactil. Esta comissão era composta pelo secretário do governo, o delegado da comarca, um primeiro-tenente da marinha, o capitão do porto de Moçâmedes, um capitão médico e, a servir de escrivão, um segundo tenente de artilharia. 241

Na «visita de estudo» que Norton fizera ao distrito verificara pessoalmente isso mesmo: «sanzalas que cercadas de altos muros mais pareciam prisões». AHU, 807A, Cx. 23, Of. confidencial nº 8 de Norton de Matos ao ministro das Colónias, 15-03-1913.

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las num prazo curto sujeito a fiscalização. Em suma, uma autêntica revolução das

práticas, senão ainda das consciências242, para acabar com a escravatura, mesmo se,

como referia o ministro, encoberta sob o termo serviçais. Ilegalizada há décadas na

letra da lei243, parece que por fim os africanos podem acreditar que vale a pena

recorrer às autoridades coloniais para se libertarem desse jugo na prática do dia-a-

dia244.

A fúria dos colonos brancos de Moçâmedes abate-se sobre Norton mas

igualmente sobre a metrópole. Numa concorrida reunião no centro colonial da cidade,

no início de Maio, chega-se a ameaçar pedir ajuda a um governo estrangeiro, caso o

governo metropolitano não revogasse imediatamente as ordens do governador-geral

sobre trabalhadores indígenas245. O projectado telegrama não chega a seguir para

Lisboa, mas o desconforto está instalado.

242

Como se dizia na petição dos «filhos de Angola»: «Sim, é preciso revolucionar as consciências para acabar com a escravatura». AHU, 807/ Cx 23, Petição de 157 «filhos de Angola» ao Governo provisório da Republica Portuguesa, Loanda, 19-11-1910, [ 9] fls. dact., ass. 243

É importante sublinhar este facto pois não é indiferente as práticas esclavagistas serem legais ou ilegais (o que não significa, naturalmente, que não seja perfeitamente legítimo dar primazia, na análise interpretativa, à realidade praticada no terreno, independentemente da legislação em vigor). Confundir as duas realidades pode levar a afirmações como a aventada por Linda Heywood, que teria sido a República a ilegalizar a escravatura em Angola em 1910, o que, manifestamente, não foi o caso, pois há décadas que ela era ilegal. Linda Heywood, «Slavery and forced labor in the changing political economy of central Angola 1850-1946» In Suzanne Miers, Richard L. Roberts (eds.), The End of slavery in Africa, Madison Wis., University of Wisconsin Press, 1988, passim. Agradeço a Ana Cristina Nogueira da Silva, Samuël Coghe e Maria da Conceição Neto as reflexões que partilharam comigo sobre a importância do factor legalidade/ilegalidade na análise das práticas esclavagistas. 244

Maria da Conceição Neto, «A República no seu estado colonial: combater a escravatura, estabelecer o “indigenato”» in Ler História, Nº 59, 2010, pp. 208-212. 245

«Em virtude da minha atitude perante a questão do trabalho indigena em Mossamedes, em 4 de Maio ultimo houve uma concorrida reunião no Centro Colonial d’ aquela cidade, e após longa discussão foi apresentada uma proposta verbal para que se telegrafasse ao Governo de Lisboa, pedindo-lhe para que imediatamente fossem revogadas as minhas ordens sobre trabalhadores indigenas, na certeza de que se o não fizesse se ia pedir auxilio a um gabinete extrangeiro. [§] Esta proposta, ou melhor telegrama, seria lido por um membro da Comissão de Melhoramentos que no dia seguinte reunia afim d’esta se pronunciar. Avisado o Governo do Distrito do que se tencionava pôr em pratica, foi para a sessão resolvido a prender o membro da Comissão que tentasse ler o telegrama. Tal telegrama não foi lido e na sua substituição apareceu um ofício em que apenas se pedia a colaboração da Comissão de Melhoramentos, de que por maioria a Comissão decidiu não tomar conhecimento. [§] (…) Nestas condições e parecendo-me que houve apenas intenção de praticar um crime, de que não há prova alguma, entendi não tomar qualquer procedimento conformando-me sobre este assunto com a opinião do Governador do distrito. [§] Deve declarar ser minha convicção que os desvairados que se atreveram a fazer e secundar tão inconveniente proposta não mediram o seu alcance e que, em todo o caso não teriam coragem de a efectuar». AHU, Cx 23A, Of. nº 23, confidencial, de Norton de Matos ao ministro das Colónias, Loanda, 26-06-1913.

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É um mês em que Norton enfrenta todas as fúrias de sinais opostos: à ira dos

esclavagistas junta-se a dos antiesclavagistas que na, imprensa de Luanda, não se

mostram particularmente impressionados com a publicitação das novas declarações

dos «filhos de Angola» que um par de anos antes tinham denunciado a escravatura e

agora negavam a sua existência, nem com a boa nova levada pelas comissões oficiais

em Moçâmedes. Afinal, há meses que a governação de Norton vem sendo criticada,

por este e outros pretextos, pelos jornalistas luandenses, em especial pela dupla que

se destacara no pico da crise do decreto fazendário, Simões Raposo e Rosa Júnior.

Como vimos anteriormente, é precisamente neste final de Maio que o governador-

geral proíbe as tipografias de Luanda de imprimirem quaisquer jornais políticos (leia-

se: Independente e A Verdade), e a celeuma chega a Lisboa, à Câmara dos Deputados.

Apesar de Afonso Costa, então chefe do Governo, o defender em sede

parlamentar, embora sem se comprometer em demasia, a verdade é que a maioria dos

ministros do seu executivo acaba por não subscrever o voto de louvor ao governador-

geral de Angola, proposto pelo ministro das Colónias, a 16 de Junho, pela

«sensata e honesta orientação que tem imprimido ao seu govêrno no tocante à instrução, trabalho e assistência indígenas e exprimir-lhe a confiança em que está o Govêrno da República de que ele continuará a manter essa orientação procurando tornar efectivas, no interêsse geral da colonização e da prosperidade da província, embora em benefício directo das populações nativas, as medidas protectoras até agora adoptadas, sem prejuízo das modificações que a experiência fôr aconselhando a introduzir-lhes tendentes ao mesmo fim.»246

Apesar de chegar a ter sido publicado no Boletim Oficial de Angola no mês

seguinte, terá apenas a assinatura do ministro Almeida Ribeiro. Num exemplar do

jornal de Luanda que anuncia o louvor, guardado no seu arquivo pessoal para memória

futura, Norton anota, pelo seu punho:

«Este louvor foi proposto em Conselho de Ministros pelo Dr. Almeida Ribeiro, ministro das Colonias, mas depois reconsiderou-se: – a maioria dos ministros, meus correligionários e cujos princípios democráticos tanto apregoam, não se quis solidarizar comigo na grande obra que levei a cabo da emancipação dos pretos.»247

246

O louvor, assinado apenas pelo ministro das Colónias, Artur Almeida Ribeiro, acaba no entanto por ser publicado no BOPA, N

o 29, 19-07-1913, p. 526.

247ANM, P. GGA 2, Anotação mns., do punho de Norton, ao artigo de jornal «Portaria de Louvor» in O

Progresso, Ano I, Nº 1, 26-06-1913.

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Visto pelo lado destes últimos – mesmo se deles quase não resta voz –, a

situação, ainda que momentaneamente melhor, irá rapidamente piorar, com o avanço

da malha administrativa colonial e a implantação do sistema do indigenato. Na

verdade, se a determinação nortoniana de libertar os ‘indígenas’ de quaisquer

vestígios de condição escrava era sincera e se traduziu numa eficácia acentuada,

estavam ainda muito longe de ser «homens perfeitamente livres, tão livres como

qualquer dos europeus presentes».

II.2.4. Trabalho forçado: um mal menor e transitório. O direito de ser

civilizado e o dever de deixar-se civilizar

O busílis da questão estava no conceito da liberdade de trabalho, ou melhor, do

grau de liberdade com que um indígena seria capaz de lidar, pelo menos da

perspectiva do colonizador. De facto, se qualquer remanescência de escravatura era

para ser liquidada sem quaisquer contemporizações, já o trabalho livre para todos é,

para Norton, uma meta a atingir sim, mas num futuro sempre adiado. Isto apesar de

retoricamente garantir, em finais de 1912, ser «um facto de todos conhecido» que a

liberdade de trabalho existe em Angola. É pelo menos essa a mensagem que Norton

quer fazer passar através da circular que a 20 de Dezembro envia à sua rede de chefias

em toda a colónia, desde os governadores distritais e o curador geral dos serviçais e

colonos até, a um nível mais local, aos administradores de concelho e circunscrição,

capitães-mores e curadores de serviçais. Embalado pelos próprios desejos, transforma

o que seria, quando muito, uma realidade residual, em algo bem mais substancial: em

algumas das empresas de Angola os indígenas apresentar-se-iam «às centenas e aos

milhares, voluntariamente, solicitando trabalho»248.

No futuro, quando as «correntes de trabalho voluntário» do indígena (sendo

que trabalho voluntário significa aqui, geralmente, trabalho por contrato) forem

prática generalizada em Angola, então as autoridades poderão dedicar-se apenas à

fiscalização. Enquanto isso não acontece, estas têm de auxiliar ou, pelo menos,

248

J.M.R. Norton de Matos, «Circular aos Governadores de distrito, ao curador geral dos serviçais e colonos, aos administradores de concelho e circunscrição, aos capitães-móres e aos curadores de serviçais» anexa à PP N

o 1457, de 20-12-1912 in BOPA, N

o 51, de 21-12-1912, pp. 899-900. Até

referência em contrário, as citações são desta circular.

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favorecer a acção de agentes recrutadores, intimando os indígenas ao «trabalho

civilizador». Os quatro meses por ano (que mais tarde serão aumentados para seis)

que, por lei, o indígena tem de trabalhar para quem pretende civilizá-lo, são, no fundo,

para seu bem. Intimá-lo a praticar este «trabalho civilizador» é algo que Norton faz,

afirma, «convencido de que presto um alto serviço às populações indígenas».

Já no mês de Agosto o governador determinara o recurso ao trabalho

compelido (de vadios) e a uma variante dele, o trabalho correccional (degredados a

cumprir pena de prisão). As duas categorias de trabalhadores compelidos deveriam ser

requisitadas pelos governadores distritais ao quartel-general. O objectivo era construir

o maior número de quilómetros de estradas possível para garantir «a rapida e efficaz

occupação dos territorios, ainda não de todo colocados sob a acção administrativa do

Governo da Provincia»249, bem como facilitar «o policiamento e a organisação dos

serviços n’aquellas regiões». Mais genericamente, o governador determinara que, na

construção e conservação das estradas, fosse empregado o trabalho indígena, «nos

termos da legislação em vigor, e bem assim os soldados250 indigenas sempre que o

serviço militar o permita.».

A legislação em vigor a que se refere é o Decreto republicano de 27 de Maio de

1911, aprovando o Regulamento Geral do trabalho dos Indígenas nas Colónias

249

PP No 998, de 01-08-1912 in Idem, N

o 31, 03-08-1912, p. 463. Até referência em contrário, as citações

são desta portaria. 250

Se os soldados podem ser utilizados pontualmente para obras do Estado, já este, por determinação de Norton, deixa de poder a continuar a dispor de tropas milicianas como mão-de-obra a distribuir por fazendas de privados. O recurso a praças de «2.ª linha», antiga reserva de tropas para servirem de combatentes ou carregadores, era prática corrente para muitos administradores de concelho na colónia, que dela retiravam receitas apreciáveis. Era, além disso, uma prática indigna, razão pela qual Norton acaba com ela: «O preto ia trabalhar para a fazenda agricola por ordem do governo, representado pelo administrador do concelho, distribuido a este ou áquela sem para nada entrar n’isso a sua vontade, como uma cousa de que se dispõe como melhor se entende: – calcula-se facilmente a soma de abusos originados por esta situação. (…) [§] Acabei com a 2ª linha: – era preciso um golpe radical, cortar cerce os abusos, as irregularidades, a imoralidade, o desprestígio do funcionalismo administrativo que na existência desta instituição se tinha originado». Norton Matos, A situação financeira e economica da provincia de Angola…, p. 28. Inicialmente, a medida de Norton causa algumas perturbações pois, como lembra Ferreira Diniz: «Nem outra cousa era de esperar de tão viciosa organização, pois o indígena, tendo ligado o serviço militar ao de prestação de serviço nas fazendas agrícolas, logo que teve conhecimento que esta vinha sido extinta concluiu que ipsu facto estava dispensado da obrigação imposta pela lei de trabalho». José de Oliveira Ferreira Diniz, Relatório do ano de 1913, p. 52.

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Portuguesas251 que não traz grande alteração ao anteriormente estabelecido no

regulamento monárquico de 1899, apesar de introduzir um prazo máximo de dois anos

para o contrato de trabalho (artº 17º) e de proibir expressamente que os serviçais

sejam maltratados, «detidos em lugares insalubres» e que lhes sejam colocadas

«algemas, grilhetas, gargalheiras» (artº 19 § 5º).

Se esta última proibição diz muito quer sobre a realidade dos abusos quer

sobre a vontade do legislador em acabar com eles, a verdade, porém, é que a

substância da legislação se mantém. Na verdade, os «indígenas» (artº 1º) têm a

obrigação de, pelo trabalho, «melhorar a própria condição social», têm «plena

liberdade» para escolher como cumprir tal obrigação mas «se não a cumprem de

modo algum, a autoridade pública pode impor-lhes o seu cumprimento». Os

«indígenas intimados e compelidos», que desobedecerem à intimação, podem ser

requisitados às autoridades administrativas por quem precisar «empregar serviçais em

mesteres lícitos» (artº 34º), para o que pagarão uma quantia módica (artº 47º).

Norton promove activamente a aplicação deste decreto, pois julga

«indispensavel fazer comprehender aos indígenas d’esta colonia que esse decreto da Republica os obriga moral e legalmente a procurar adquirir pelo trabalho os meios de subsistir e de melhorar a propria condição social e a respeitarem os contractos feitos, e que, nos termos d’esse mesmo decreto, serão capturados, julgados e punidos os que se evadirem da officina ou fazenda onde trabalharem, os que desobedecerem e os que se recusarem a prestar trabalho.»252

A terminologia usada é significativa: quebrar um contrato de trabalho é como

sair de uma prisão pois, para o fazer, o indígena terá que se «evadir» do seu lugar de

trabalho, forçando as autoridades a ir «capturá-lo» para o julgar e punir pelo seu

crime, o que implicava geralmente prendê-lo e obrigá-lo ao trabalho correcional.

A contrapartida para a lógica prisional que ressalta destas palavras é o

paternalismo do governo, expresso na alusão à obrigação dos patrões entrarem «sem

sofismas» no regime de contrato (visto agora como um meio de proteger os direitos

dos indígenas face aos abusos dos patrões). Uns meses mais tarde, Norton toma

medidas mais concretas nesse sentido:

251

Decreto com força de lei, de 27 de Maio de 1911, alterando o Regulamento Geral do trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas de 1899, DG, N.

o 124, 29-05-1911.

252PP nº 1092, de 22-08-1912, BOPA, Nº 34, de 24-08-1912, p. 508.

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«Tendo chegado ao conhecimento dêste Govêrno Geral que, tanto nesta Província como fora dela, algumas pessoas interpretaram a disposição do artigo 18.º do Decreto de 27 de Maio de 1911 de forma absolutamente errónea, e contrária não só à letra e espírito daquele Decreto, mas tambêm aos principios fundamentais das leis da República;

Sendo certo que o desempenho dos deveres morais de tutela bem fazeja para com os trabalhadores indígenas, e o emprego de correcções moderadas para lhes melhorar a educação de modo algum se pode tomar como consentimento tácito do emprego de castigos temporais, que o artigo 14.º do mesmo Decreto expressamente proíbe:

Hei por conveniente determinar:

1º Que sejam julgados e punidos, nos termos do artigo 20º do Decreto de 27 de maio de 1911, os patrões que inflijam maus tratos aos trabalhadores, ainda que para isso invoquem a faculdade do exercício da tutela que a lei lhes confere sôbre os trabalhadores indígenas;

2.º que as autoridades administrativas e os curadores exerçam a mais severa fiscalização para que à sombra da disposição do mencionado artigo 18.º se não pratiquem quaisquer abusos. (...)»253.

Sendo um trabalho com direitos específicos que o empregador tem o dever de

respeitar, o trabalho para o colonizador é considerado, em si mesmo, um direito

fundamental do indígena. No âmago do conceito da missão civilizadora que justificava

o colonialismo – na monarquia como, agora, na República – encontrava-se esta

convicção eurocêntrica de que se estava a conceder ao indígena o acesso ao mais

fundamental dos direitos humanos: o direito a ser civilizado254. Nas palavras de

Norton, trata-se da «obra meritória, civilizadora e desinteressada» assumida pelas

autoridades coloniais «de habituarem ao trabalho os indígenas»255. Se ele não quiser

ser ‘civilizado’, o colonizador, que se arroga o direito de o tutelar, obrigá-lo-á a

‘civilizar-se’, forçando-o a trabalhar nos termos por si definidos. O direito a ser

civilizado transforma-se, assim, num dever: o dever de se sujeitar ao processo

civilizador.

253

PP No 1453, de 20-12-1912, BOPA, N

o 51, de 21-12-1912, p. 897, sublinhados nossos.

254«A missão civilizadora aparece pois como um prolongamento lógico dos direitos humanos - o direito a

ser civilizado. [§] Este princípio, absolutamente fundamental para os republicanos, pois cria a ilusão de uma suposta igualdade dos povos a concretizar-se em tempos diferentes, institui a desigualdade racial no coração do dispositivo republicano nacional e colonial». Isabel Castro Henriques, «A África e a Primeira República: Paradoxos, Estratégias e Práticas Coloniais» in José Miguel Sardica (coord.), A Primeira República e as colónias portuguesas, Lisboa, EPAL e CEPCEP/UCP, 2010, pp. 152-154. 255

Norton de Matos, «Circular aos Governadores de distrito, ao curador geral dos serviçais e colonos, aos administradores de concelho e circunscrição, aos capitães-móres e aos curadores de serviçais» anexa à PP Nº 1457, de 20-12-1912 in BOPA, N

o 51, de 21-12-1912.

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Uns meses mais tarde, em discurso à Junta Geral da Província, Norton já não

será tão enfático na defesa das virtudes do trabalho compelido, declarando estar

«convencido de que o trabalho compelido é um mal que só se justifica em face de um

bem maior»256. É um mal transitório que no futuro será dispensável – afirmará no ano

seguinte, desta feita aos seus correligionários políticos no Centro Republicano

Democrático, em Lisboa257 – quando, depois de uma «política indígena bem

orientada», «de uma acção contínua e persistente» «o indígena de Africa» se

transformar «num agricultor ou num artífice independente e livre, possuidor de uma

gleba de terra ou de uma pequena oficina, com instrução profissional e instrumentos

que lhe permitam viver com relativo conforto e produzir mais do que precisa para a

sua alimentação e sustento, inundando assim o mercado de géneros e artefactos de

toda a espécie».

É certo que é isso o que o ‘indígena’ efectivamente já faz, sempre que é do seu

próprio interesse, as mais das vezes sem qualquer intervenção ‘civilizadora’ da

autoridade colonial. Chamar-lhe vadio é, admite Norton, acreditar numa verdadeira

«história da carochinha do preto deitado todo o ano à sombra da bananeira (…) quando do seu trabalho em Angola e São Tomé há tantos anos nós estamos em grande parte a viver.»

Naturalmente, o avanço da malha administrativa colonial obrigará a que os

interesses do poder colonizador se continuem a sobrepor, e se sobreponham de forma

cada vez mais sistemática, aos interesses dos africanos – mesmo se, do ponto de vista

dos primeiros, seja sempre do interesse destes últimos subordinarem-se ao programa

civilizador europeu. É um programa que dificilmente poderia prescindir do contributo

das missões cristãs, por mais vontade que a República tivesse de o fazer nestes seus

primeiros anos de vida.

II.3. Missão civilizadora, educação e anticlericalismo

256

Norton de Matos, Discurso Pronunciado, em 1 de Agosto de 1913, pelo Major Norton de Matos, Governador-geral de Angola, na Sessão de Abertura da Junta Geral da Provincia, Luanda, Governo Geral da Provincia de Angola, 1913. 257

Norton de Matos, A Situação Financeira e Economica da Provincia de Angola…. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta conferência.

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A questão da educação, a par da do trabalho, encontra-se no âmago da missão

civilizadora de que a I República Portuguesa se considerava investida perante os

indígenas do seu império, tal como, aliás, acontecia, com menores ou maiores

cambiantes, com as restantes potências colonizadoras europeias face aos impérios

respectivos em África, nas primeiras décadas do século XX.

Na verdade, para compreender que modelo civilizador encarnou Norton à

frente do seu primeiro governo de Angola, em nome da República laica, é

imprescindível conhecer a sua política educativa e o modo como lidou com os

principais agentes educativos no terreno, os missionários. Por um lado, a margem de

manobra do governador-geral para conferir um cunho próprio a essa política era

bastante lata, estando, como estava, num território muito afastado de Lisboa, quer em

termos de geografia, quer de comunicações, quer, sobretudo, do grau de

conhecimento das reais implicações da debilíssima capacidade administrativa

portuguesa, que as várias retóricas das elites metropolitanas sobre o império, tal qual

o imaginavam, regra geral não alcançavam. Por outro, o gigantismo da tarefa que tinha

pela frente, conjugado com a falta de autonomia financeira do seu governo, neste seu

primeiro mandado em Angola, acaba por comprometer fortemente a concretização do

seu projecto. A alternativa passou pela negociação de alianças com quem

efectivamente hegemonizava a educação dos indígenas na colónia: as missões

católicas e protestantes. Para isso era necessário, antes de mais, estabelecer um

mínimo denominador comum para o que uns e outros entendiam por missão

civilizadora.

II.3.1. Projecto educativo de Norton

«a República não há-de ter ocasião de se arrepender de ter concebido o plano altamente democrático de entregar a instrução e a educação do grande número dos habitantes de Angola aos indígenas seus irmãos.»258

Quando Norton chega a Angola, o ensino público em toda a colónia é

assegurado por 44 professores, todos do ensino primário, sendo que apenas uma

258

J.M.R. Norton de Matos, «Organização da instrução pública na Província de Angola: Relatório», Loanda, 08-04-1913 in José Mendes Ribeiro Norton de Matos Matos et alia, Projecto de Organização de instrução pública na província de Angola Submetido à apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador-geral José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional de Angola, 1913, p. 8.

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parte deles exerce funções a tempo inteiro259. Para um universo populacional que

estima em cinco milhões de habitantes, aquele número de docentes é deveras

«lastimável», admite o governador. É, pois, especialmente verdade em Angola que não

foi criando escolas que se chegou à República260. Que, pelo contrário, a elite dos

«filhos de Angola» esperava que, com a República, viessem as escolas que almejava

para «saciar a sede de saber» que a «devora»261, não há dúvidas. Para tal tinham

peticionado publicamente junto do governo provisório da República262 e para tal se

mobilizaram em associações e iniciativas várias263.

É perante alguns deles, mais precisamente na sessão inaugural da Liga

Angolana264, que Norton apresenta publicamente o seu projecto de instrução. O

projecto fora anteriormente discutido em duas sessões do Conselho Inspector de

Instrução Pública e aprovado por unanimidade na última delas, a 22 de Março de 1913,

após a introdução de algumas alterações que, no entanto, respeitavam à direcção e

fiscalização do ensino e não propriamente à restante arquitectura do sistema e,

sobretudo, à filosofia a ela subjacente. Nestas últimas, o cunho de Norton é marcante

embora não deixe de ser significativo o modo como envolve o pequeno grupo de

personalidades do Conselho a que preside, entre as quais se inclui um homem que

desempenhará um papel fulcral nas relações entre Estado e Igreja católica durante os

dois mandatos de Norton em Angola, monsenhor Manuel Alves da Cunha265.

259

Idem, p. 12; Os números apresentados por Samuels (49 professores) não diferem muito dos apontados por Norton, acrescentando a informação relevante de que apenas um terço dos professores trabalhavam a tempo inteiro. Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914), Luanda, Mayamba Editora, 2011, p. 174. 260

O republicano francês Jules Férry, aqui parafraseado, é expressamente invocado por Norton na proposta que a 7 de Maio de 1913 envia ao ministro: «Não é criando escolas que se chega à República mas sim criando a República que se obteem escolas». J.M. R. Norton de Matos, Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914 Acompanhado das respectivas propostas orçamentais e de um Projecto de empréstimo para ocupação e fomento da Província, Loanda, Imprensa Nacional, 1913, p. 57. 261

«Assim como estamos, sem instrucção litteraria nem profissional, sem podermos saciar a sêde de saber que nos devora, assim è que não pode continuar, nem ao Governo da Republica convirá que continue». AHU, 807/DGU/1

aRep./Cx. 23, Petição «Nós, os filhos de Angola...», 19-11-1910, 16 fls. dact.,

c/ 157 assin. 262

Idem. 263

Como a associação Educação do Povo – Socorros Mútuos e a Liga Nacional de Instrução. Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914), pp. 162-165. 264

Idem, p. 165. 265

Além de Norton e Alves da Cunha, também assinam o projecto Pedro Tavares Lopes da Silva, Aníbal Celestino Correia Mendes e José Joaquim Teixeira. José Mendes Ribeiro Norton de Matos Matos et alia,

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O plano educativo projectado pelo governador-geral pode ser aferido por dois

textos coevos que são mais conhecidos pela versão que Norton deles apresenta nas

suas Memórias…, escritas três décadas mais tarde266. São eles um relatório de 8 de

Abril de 1913, em que o projecto de instrução é apresentado, e o texto justificativo da

sétima proposta de aumento de despesa, relativa à instrução pública, que expõe ao

ministro a 7 de Maio, no âmbito de uma proposta de orçamento para o ano económico

de 1913-1914267.

Num nível mais básico, o do ensino primário elementar, todos os rapazes e

raparigas entre os seis e os quinze anos seriam obrigados a ir à escola, estando sujeitos

a multa se não o fizessem. Este ensino deveria ser obrigatório e universal, englobando

«a grande massa dos habitantes da província, ainda envolvidos nas trevas das

civilizações primitivas»268. Para tal, seriam criadas escolas em todas as cidades, vilas e

povoações da província, embora nele se incluam, além das do Estado, também as

municipais e as particulares, a subsidiar pelo governo.

A um segundo nível, criar-se-iam nas capitais de distritos (a estender

posteriormente às sedes de concelho mais importantes) escolas de ensino primário

complementar, a par de escolas profissionais de artes e ofícios. Estas últimas incluiriam

dezoito horas semanais de trabalho manual e visariam a formação de artífices a quem

seria dada preferência para admissão nas oficinas ou estabelecimentos do Estado (cf.

Artº 15º).

A um terceiro nível, para suprir uma «propositada [sic] lacuna do projecto» (o

não prever nenhum liceu), Norton propõe duas escolas de ensino primário superior,

Projecto de Organização de instrução pública na província de Angola Submetido à apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador-geral José Mendes Ribeiro Norton de Matos. 266

Samuels, que escreveu uma importante tese de doutoramento sobre a educação em Angola que se mantém como uma referência sobre o tema, apesar de escrita há 4 décadas (a edição original em língua inglesa é de 1970), usa a versão das Memórias. Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914). 267

J.M.R. Norton de Matos et alia, Projecto de Organização de instrução pública na província de Angola; J.N. de Matos, «7

a Proposta: Instrução pública» in J.M.R. Norton de Matos, Projecto de orçamento para

o ano económico de 1913-1914…, pp. 56-66. 268

J. M. R. Norton de Matos, «Organização da instrução pública na Província de Angola: Relatório», Loanda, 08-04-1913 in José Mendes Ribeiro Norton de Matos Matos et alia, Projecto de Organização de instrução pública…, p. 3.

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uma em Luanda e outra em Moçâmedes, destinada tanto aos filhos dos europeus

como aos angolenses que

«pelo seu constante esfôrço, pela continuada aspiração a saírem das trevas do passado, teem conseguido vencer mal entendidas oposições e a carência quási

absoluta de estabelecimentos de educação e instrução»269.

Não sendo ainda o almejado liceu, ao fim do curso de três anos proporcionado

por esta escola os alunos teriam a hipótese de ingressar no quarto ano do liceu na

metrópole, desde que aprovados em exame.

Esta instrução de cariz mais literário, equivalente aos três primeiros anos do

liceu, cujas matérias (cf. artº 22º) proporcionariam «um cabedal de instrução muito

acima do que geralmente se encontra em colónias portuguesas e estrangeiras»270 era,

no entanto, uma excepção, pois a prioridade reside no ensino «pratico e utilitário»271.

O plano era que os naturais de Angola já «civilizados» tivessem acesso a cursos

técnicos especiais de mais dois anos, que constituiriam o quarto nível do sistema de

ensino angolano. Visavam um objectivo muito concreto: formar os funcionários

públicos qualificados que a administração colonial cada vez mais precisaria, à medida

que avançava a malha da ocupação efectiva.

Entre esses cursos técnicos especiais, um destacava-se pela importância

estratégica no plano global de ensino preconizado por Norton: um curso de dois anos,

em Luanda, regido por professores vindos da metrópole, que habilitasse os naturais de

Angola a se tornarem eles próprios ensinantes da grande massa dos indígenas

incivilizados, ao nível do ensino primário elementar272.

Além do «professorado elementar» assim criado, os restantes cursos técnicos

especiais, igualmente de dois anos, deveriam formar «o estado menor das repartições

e serviços da Província, incluindo, no caso do curso comercial, também de dois anos,

os funcionários da Fazenda e alfândegas (§1º do artº 16º). Além destes, seriam

igualmente formados apontadores, agrimensores, regentes agrícolas, maquinistas,

269

Idem, p. 4. 270

Idem, p. 9. 271

Idem, p. 7. 272

Os candidatos a professores, para frequentarem este curso, deviam ter concluído com sucesso o nível anterior, equivalente aos três primeiros anos do liceu.

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telegrafistas, pilotos e enfermeiros273. A par de aulas teóricas, os alunos começariam

desde logo a estagiar junto dos serviços provinciais correspondentes, «dando-lhe

frequência do curso foros de candidato aos lugares a cuja especialidade dedica a sua

aptidão.»274. E aqui Norton socorre-se da sua experiência pioneira na Índia Portuguesa,

que, aliás, lhe valera o lugar de professor catedrático no Instituto Superior Técnico.

Enquanto chefe dos serviços de agrimensura, não dispondo de agrimensores para o

coadjuvar, concebera um plano de estudos, elaborara os manuais e ministrara ele

próprio as aulas teóricas e práticas, formando, a partir do zero, um corpo de

funcionários especializados que ingressaram nos serviços públicos275. Agora era só os

seus chefes provinciais fazerem o mesmo que ele próprio, governador, fizera já.

Na arquitectura do sistema de ensino nortoniano previa-se, igualmente, um

quinto nível, em dois tempos. Através de um sistema de bolsas de estudo financiar-se-

ia a ida para a metrópole dos melhores, tanto dos naturais de Angola como dos filhos

de europeus residentes na colónia, para aí frequentarem o liceu, a partir do quarto

ano.

Se a colónia poderia financiar, a título excepcional, o ensino puramente literário

de nível secundário de alguns, já o financiamento do acesso ao ensino universitário,

igualmente previsto, estava limitado a duas áreas muito definidas. Assim, na condição

de os beneficiados se comprometerem a regressar à colónia para nela trabalhar

durante seis anos, poderiam usufruir de bolsas para frequência de institutos privados

273

Além do Estado, também o sector privado comercial poderá, com vantagem, beneficiar do trabalho especializado destes «civilizados», devidamente instruídos para tal. 274

J. M. R. Norton de Matos, «Organização da instrução pública na Província de Angola: Relatório», Loanda, 08-04-1913 in José Mendes Ribeiro Norton de Matos Matos et alia, Projecto de Organização de instrução pública…, p. 10. 275

Não dispondo, à partida, de qualquer pessoal técnico que o coadjuvasse, Norton desenhara um curso de formação, com aulas teóricas de manhã e práticas à tarde e com esse método criou na Índia «um numeroso grupo de agrimensores que encetou os importantes trabalhos de cadastro que se levaram a cabo naquela colónia». Idem, p. 11; Norton refere ainda o trabalho idêntico que, também na Índia, o general Castelo Branco fizera nos serviços de hidráulica agrícola. Castelo Branco, por seu turno, reconhece que, para o bom êxito do seu trabalho, contribuíram decididamente os agrimensores, formados e treinados por Norton. José Emilio de Sant’Anna da Cunha Castel Branco, «Notícia dos trabalhos realizados pela Direcção dos Estudos de Hydraulica na Índia Portuguesa (Janeiro de 1904 a Março de 1906)» in O clima da Índia portuguesa, Bastorá, SGLx - Tipografia Rangel, 1921, p. 123. Entre os vários textos que Norton publicou sobre o seu trabalho, durante a sua estadia na Índia, inclui-se o manual de ensino para os técnicos que formou: J.M.R. Norton de Mattos e Repartição d’Agrimensura do Estado da Índia, Manual do Agrimensor, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1904.

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industriais e de escolas superiores de agricultura, na metrópole ou no estrangeiro.

Apesar de a sua proposta de orçamento para 1913-1914 não prever ainda quaisquer

destas bolsas de estudo, o caminho fica apontado.

Não são ainda os liceus, nem, menos ainda, escolas superiores, como a de

medicina, enfermagem e outras, que os filhos de Angola tinham reclamado da

República assim que ela fora implantada em Portugal, mas é um projecto com uma

coerência global que, a ser concretizado, implicaria, a prazo, uma autêntica «revolução

das consciências», para retomar a linguagem reivindicativa da petição nativa de

Novembro de 1910.

Em primeiro lugar, por determinar a obrigatoriedade e universalidade do

ensino elementar em português a todos os indígenas. Não podia deixar de ser uma

meta muito longínqua, se atendermos quer ao ponto de partida em recursos humanos

e logísticos, quer ao facto de a esmagadora dos destinatários ter outras línguas que

não a portuguesa como língua materna. Naturalmente, era um óbice que o recurso às

elites nativas europeizadas, que dominavam as línguas nativas, como base de

recrutamento do professorado visava ultrapassar. Era este o aspecto mais

revolucionário do plano de Norton, tivesse ele ido avante: o papel central nele dado à

elite nativa na função pública colonial, alicerçado numa formação de um total de cinco

anos após o exame de nível primário complementar. Essa elite assumiria, a médio

prazo, o protagonismo do ensino elementar à grande massa dos habitantes de Angola

e, de forma transversal aos diferentes serviços públicos coloniais, teria acesso

facilitado ao funcionalismo público. Pode argumentar-se, com razão, que os filhos de

Angola já estavam na função pública. A verdade, porém, é que, pelo menos ao nível da

educação formal, tinham habilitações muito escassas, a não ser os pouquíssimos que

tinham frequentado o seminário católico ou, então, que tinham podido frequentar

escolas na metrópole. Além disso, sentiam os seus lugares crescentemente

ameaçados.

Não admira que, na Primavera e Verão de 1913, a Liga Angolana não se tenha

melindrado particularmente pela «propositada lacuna» de faltar um liceu neste plano

de ensino, nem por os lugares de funcionalismo público reservados aos

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alunos/formandos dos cursos técnicos especiais serem para «o estado menor das

repartições e serviços da Província». Se, mesmo com estas características, o plano

fosse cumprido, seria muito melhor do que já alguma vez tinham tido. E, por

enquanto, podiam ter a ilusão de que o governador os considera ao nível das famílias

europeias, acima até de alguns europeus que, lastima Norton, renegaram a sua

identidade a ponto de se terem integrado na vida e civilização dos nativos, «donde

será difícil arranca-los».

A elite dos indígenas que fora capaz de fazer o percurso inverso, das trevas para

a civilização276, não podia, no entanto, ser confundida com um outro grupo nativo que

Norton abomina e expressamente quer eliminar com o seu projecto: aquele «a quem

um inconvenientíssimo método de ensino armou com uns rudimentos de leitura e de

escrita, sem cuidar na educação e na formação de caracteres, criando um elemento

nocivo e inconveniente ao meio social em formação»277. Tinha recebido alguma

instrução literária e, com ela, esperanças e aspirações que fazem dele um híbrido

«semieducado», «semicivilizado» «que é mister estripar por completo»278 com escolas

que «sejam mais oficinas do que escolas». Para a grande massa dos indígenas

angolanos está fora de questão uma escola que os arranque rapidamente do seu modo

de viver. A ideia é «fazê-los evolucionar dentro dos quadros da sua própria civilização

para uma civilização mais perfeita»279. Mais claro não podia ser: é o conceito de

evolução separada, alimentado por um sistema de ensino a duas velocidades que será

formalizado com a atribuição da tutela das escolas profissionais à SNI em Fevereiro de

276

São ainda muito poucos pois «a grande massa de habitantes da província» estão «ainda envolvidos nas densas trevas das civilizações primitivas», sendo necessário, para os fazer chegar à luz da civilização «abrir brecha na ignorância, nas superstições, nos preconceitos e nos vícios das populações de Angola», como defende no preâmbulo da portaria de criação de uma escola profissional do sexo feminino em Luanda: PP nº 1107, de Norton de Matos, de 03-10-1912 in BOPA, Nº 41, de 12-10-1921, p. 698 (versão rectificada). Anos mais tarde, Norton empregará palavras mais violentas do que trevas, mesmo se densas, explicando que os «pretos a civilizar» vivem a «vida vegetativa das raças primitivas». Seriam uma «massa amorfa» que é preciso arrancar «da selvajaria» da «vida vegetativa ou grosseiramente animal» que levariam. Norton de Matos, «Como pretendi povoar Angola» in Boletim Geral das Colónias, II Série, Nº 100, Outubro de 1933, p. 93. 277

J.M.R. Norton de Matos, «Organização da instrução pública na Província de Angola: Relatório», Loanda, 08-04-1913 in J.M.R. Norton de Matos et alia, Projecto de Organização de instrução pública…, p. 3. 278

Idem, p. 6. 279

Idem, p. 5.

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1914, enquanto as restantes escolas ficavam sob alçada da secretaria-geral do

governo280.

O projecto de instrução de Norton só não implica necessariamente um ensino

separado porque o pequeno grupo de civilizados281 poderia ter acesso, em pé de

igualdade, a prosseguir os estudos além dos três anos da escola primária elementar.

Na prática, porém, o ambicioso plano – que, numa parte já muito substancial,

consubstancia já na sua proposta orçamental para o ano económico de 1913-1914, a

cujas implicações voltaremos – esbarra na máquina burocrática do Ministério das

Colónias.

As resistências em investir na colónia, na educação como noutros sectores, não

residiam unicamente no Ministério das Colónias, cioso do seu poder, tendo sobretudo

a ver com o modo como a sociedade portuguesa encarava as colónias. Freire de

Andrade, que na altura ocupa uma das duas direcções-gerais do ministério, lamenta-se

disso mesmo a Norton: não pode ao ministério ser assacada a culpa da mentalidade

generalizada entre os portugueses de que as colónias são uma espécie de quintas de

rendimento282 que existem para delas se sacar o maior lucro possível no imediato, sem

se olhar aos interesses das próprias colónias. Não estava a sociedade metropolitana

preparada para financiar os planos educativos de Norton nem, tão-pouco, a conjuntura

280

A superintendência das escolas profissionais é entregue ao Secretário dos Negócios Estrangeiros pela portaria provincial nº 214, de 13 de Fevereiro de 1914. Cf. J. Ferreira Diniz, «Protecção e assistencia às populações indígenas de Angola: Conferência em 15 de junho de 1915, pelo sr. dr. Ferreira Diniz, secretario dos negocios indigenas da provincia de Angola» In Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Nºs 7 e 8, Julho 1915. Como já foi sublinhado, a SNI «é crucial para a compreensão do ensino em Angola», simbolizando não apenas uma divisão administrativa mas, igualmente, «a separação do pensamento e planeamento educativo para os dois grupos». Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914), p. 173. 281

A que curiosamente, apesar da portaria em que pouco tempo antes definira os indígenas por oposição a civilizados, ainda chama de «indígenas», embora acrescentando o qualificativo «apresentando-se como civilizados». 282

«O que mais me tem custado e custa é o caminho que as coisas tomam. Tendo lutado e continuado a lutar e a levantar dificuldades contra mim por manter e defender a descentralização administrativa e querendo dar aos governadores geraes toda a força e independência, é das colónias que vêem as queixas de centralização (..) contra o ministério, como se a D[irecç]ão Geral das colónias pudesse (..) modificar a opinião publica que considera as colónias portuguesas como quintas de rendimento onde porem não se precisa despender dinheiro e adubos e pudesse conseguir que o Parlamento pusesse de parte as questões da metrópole e tratasse, com conhecimento de causa, das colónias. Desculpe este desabafo mas deixe-me dizer-lhe que o Norton também tem acreditado um pouco nestes desejos (..) da direcção geral, esquecendo o que aqui tantas vezes falámos». ANM, P. GGA 1, Carta de A. Freire de Andrade a Norton de Matos, Lisboa, 06-06-1913, mns.

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era a melhor, estando o Governo de Afonso Costa empenhado em provar que, ao

contrário do que acontecera na monarquia, a República conseguia equilibrar as

finanças públicas.

O que, não dispondo de autonomia financeira, Norton consegue concretizar no

campo da educação acaba por ser escasso. A menina dos olhos é uma escola

profissional para raparigas indígenas em Luanda, a que dá o nome da filha, Rita Norton

de Matos. A primeira pedra fora lançada em Outubro de 1912, no âmbito das

comemorações oficiais do segundo aniversário da revolução republicana. A ela terá

associado o simbolismo de ser a primeira escola construída em Luanda expressamente

para esse fim283. Dois anos e meio depois, Ferreira Diniz gaba-se que a escola já

formara duas criadas de servir e uma «hábil costureira que a escola pretende colocar

ou estabelecer»284. A distinta audiência da Sociedade de Geografia de Lisboa, na qual

marca presença o próprio Norton, na altura já ministro das Colónias, ouve Diniz

explicar que este é um resultado da maior importância «como factor primordial da

evolução da raça negra»285, de acordo com a orientação do antigo governador

«fundada em bases científicas e confirmada pelos factos»286. E, para que não restem

dúvidas, cita longamente o relatório que precede o projecto de organização da

instrução na província de 1913, na parte em que Norton critica o ensino literário que

cria «esperanças e aspirações» que levam os indígenas a afastar-se do trabalho manual

de onde, porém, só estarão em condições de sair depois de muitos séculos, à imagem

do que aconteceu com «as civilizações literárias dos povos mais cultos da Europa»287.

Ainda segundo Diniz, o balanço do período de quase três anos de administração

do primeiro governador que «pensou em dar aos indígenas uma instrução adequada à

sua mentalidade»288 inclui, além da Escola Rita Norton de Matos, uma escola-oficina

283

Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914), p. 174. 284

J. Ferreira Diniz, «Protecção e assistencia às populações indígenas de Angola (…)» in Boletim da SGL, Nºs 7 e 8, Julho 1915, p. 317. 285

Idem, p. 316. 286

Idem, p. 315. 287

Citado in Idem, p. 316. 288

Idem, p. 315.

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em Pungo Adongo e duas escolas profissionais em Cacongo e Caconda289. Isto apesar

de ter criado mais escolas que ou não passaram do papel ou tiveram uma existência

precária e efémera, como a Escola Agrícola de Luanda para indígenas do sexo

masculino e a Escola de Artes Gráficas e a Escola de Correios e Telégrafos, inauguradas

respectivamente em 1912 e 1913290.

Projectos e portarias à parte, a realidade fica aquém das intenções de Norton e,

mais ainda, das altas expectativas dos filhos de Angola que, a 10 de Junho de 1914,

assinam nova petição colectiva para que as escolas a cargo do clero português não

sejam afectadas pela aplicação da Lei da Separação entre o Estado e as Igrejas.

Referem-se, em especial, ao único estabelecimento de ensino que, na prática, ministra

ensino ao nível secundário em Angola: o seminário-liceu de Luanda. Não entrando, por

ora, no modo como Norton lidou com a questão religiosa, vale a pena sublinhar que o

objectivo da petição (pedir a suspensão da Lei da Separação) é sustentado

maioritariamente em argumentos de cariz educativo. Os peticionários pretendem

demonstrar, basicamente, que, a serem afectadas as escolas geridas pela Igreja

Católica, o Estado não tem como oferecer alternativas. Na verdade, «o clero nacional

tem sido, aqui, o único ministrador consciente da luz da ciência» e «principalmente»

«não vemos quais os estabelecimentos com que o Estado venha a suprir a enorme falta

que estes farão»291.

Norton partira para Lisboa há mais de dois meses, de onde só voltaria já em

Setembro, de modo que será ao encarregado que deixara à frente do governo, António

Mimoso Guerra, que os peticionários dirigem o requerimento, pedindo-lhe que o

289

Situação à data da conferência de Diniz que temos vindo a seguir, Junho de 1915. Sobre o assunto, veja-se, também, J. O. Ferreira Diniz, A missão civilizadora do Estado em Angola, Lisboa, Centro Tip. Colonial, 1926, pp. 76-77. 290

Entre outras que vão sendo mencionadas nos vários relatórios anuais da SNI relativos a 1914 e 1915 mas depois não constam do balanço final de Diniz nem em 1915 nem em 1926, atrás referidos. Apesar do reduzido desempenho no que respeita às escolas oficiais, devido ao bloqueio do governo metropolitano, há um dinamismo não despiciendo no que respeita a escolas municipais e particulares. Cf. Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução: a história do ensino em Angola (1878-1914), p. 175. 291

Sublinhado no original. O texto da petição, com mais de uma centena de assinaturas, da «população de Luanda, reunida em comício» foi transcrito, do AHU, por Brásio: AAVV, «Requerimento ao Encarregado do Governo de Angola», Luanda, 10-06-1914 in António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica: Series Africana 5 Angola, Vol. V (1904-1967), Pittsburgh, Pa & Louvain, Duquesne University Press & Editions E. Nauwelaerts, 1971, pp. 298-301.

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transmita ao ministro das Colónias e que assuma ele próprio, como sua, essa patriótica

petição. O despacho de Guerra, quase um mês depois, é de indeferimento:

«O Estado cuidará da instrução na província, como julgar mais conveniente aos interesses e desenvolvimento e propagação daquela.»292

A verdade, porém, é que o Estado, ou melhor, o governo de Norton em Angola,

acabou por achar mais conveniente aos interesses da instrução na província trabalhar

com as estruturas que se encontravam já no terreno a providenciar educação aos

indígenas: as missões cristãs. Apesar de o plano «altamente democrático» concebido

pela República, em versão nortoniana, de entregar a instrução e a educação do grande

número dos habitantes de Angola «aos indígenas seus irmãos», não ter passado do

papel, a verdade é que o fosso entre o projecto republicano e o ensino nas missões

cristãs não é assim tão grande. Curiosamente, em muitas das missões cristãs, os

agentes educativos são frequentemente os próprios africanos, depois de devidamente

«civilizados» à maneira ocidental pelos missionários europeus e americanos. Além do

mais, o ensino ministrado nas missões e postos catequéticos tem uma feição

essencialmente prática e técnica, com muitos pontos de contacto com as ideias de

Norton. Como homem prático que é, além de político com um crescente jogo de

cintura, o governador rapidamente percebe que tem muito mais a ganhar do que a

perder com as escolas das missões. Assim consiga aproveitar o seu potencial, controlá-

las e subordiná-las aos objectivos do seu governo.

II.3.2. Missão civilizadora da República e as missões293

292

Idem, p. 301. 293

Retomamos aqui, em parte, as conclusões de um artigo e de duas comunicações que foram sendo apresentadas ao escrutínio da comunidade académica, ao longo do período de elaboração desta tese, nomeadamente: Helena Pinto Janeiro, «La Primera República Portuguesa y Las Missiones Católicas y Laicas en Angola: Financiación y Poder» in Historia y Política, Nº 29, 2013/1, pp. 161-191; Helena Pinto Janeiro, «A questão religiosa em Angola: Norton de Matos e as missões» in FERREIRA, António Matos (coord.), Religião, Sociedade e Estado: 100 anos de separação, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa, no prelo; Helena Pinto Janeiro, «Financiou ou não a I República Portuguesa as missões? O caso de Angola». Comunicação apresentada ao Seminário Permanente sobre as Relações entre o Estado e as Igrejas, organizado pelo CEHR da Universidade Católica e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Lisboa, ICS, 27 de Março de 2012). Aproveitamos para agradecer os comentários e sugestões que fomos recebendo, em especial dos Professores Maria da Conceição Neto, Luís Salgado de Matos, António Matos Ferreira, Ana Isabel Madeira e Nuno Valério, do Dr. Amadeu Gomes Araújo, e dos dois referees, anónimos, que avaliaram o artigo para a revista Historia y Política.

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Encontrando-se a educação do ‘homem novo’ republicano no cerne do projecto

laicizador da I República Portuguesa, e sendo a rede escolar oficial incipientíssima em

Angola, colocava-se também a ela, como à outra República europeia na qual a

portuguesa se inspirara, a III República Francesa, o dilema de como se posicionar

perante as missões, tendo em conta, especialmente, as escolas por elas geridas. Uma

vez que a medida mais drástica da expulsão era inviável por via dos acordos

internacionais assinados por ambos os países294, a primeira alternativa exequível seria

deixar de financiá-las ou até de lhes facilitar a vida. A segunda seria, pelo contrário,

tolerá-las e, inclusive, financiá-las para que as missões cristãs fizessem o trabalho que

o Estado colonial não era, à época, capaz de fazer: instruir as populações indígenas, de

acordo com cânones definidos pelos europeus, para melhor as integrar na órbita

colonial. Se a tolerância era uma imposição dos tratados internacionais, já a

colaboração e, mais ainda, a eventual concessão de subsídios levantam outras

questões. Com uma nuance importante, para o caso português: a introdução, em

Angola e Moçambique, de um projecto estatal295 concorrente, criado à imagem e

semelhança das missões religiosas mas expurgado de outra religião que não a religião

civil da própria República.

Teremos, assim, que tentar perceber até que ponto a relação entre o Estado e

as missões religiosas, já no terreno, foi afectada pela aposta inovadora da I República

Portuguesa no projecto das missões civilizadoras laicas, gizadas para serem as

genuínas missões da República e, a prazo, substituir as religiosas na tarefa de civilizar

os indígenas, levando-lhes a luz da República a par da luz da civilização europeia.

Durante o primeiro governo de Norton, visto as missões laicas existirem apenas em

projecto, essa influência será apenas retórica, embora, mesmo assim, tenhamos que

ter em conta os seus efeitos ao nível do clima psicológico criado em Angola.

Mesmo com este projecto alternativo português ainda fora da equação em

termos práticos, vale a pena lembrar que nas relações entre as missões cristãs e os 294

No âmbito nas Conferências de Berlim de 1884-1885 e de Bruxelas de 1890, aplicáveis respectivamente à bacia convencional do Congo e a todo o continente negro onde se supusesse a existência de escravatura. 295

Embora haja quem defenda que não terá passado de um projecto pessoal do seu mentor, Abílio Marçal. Amadeu Gomes Araújo, «A República e a laicização das missões» in Igreja e Missão, Janeiro-Abril 2010, p. 127.

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impérios em geral, que não apenas no português, a ambiguidade foi sempre uma

constante296, tal como a complexidade. Longe de ser um jogo apenas bilateral, teve, de

cada lado, múltiplos interlocutores institucionais em várias esferas

(metropolitana/colonial, secular/regular, etc.). Por outro lado, envolveu e foi envolvido

pela realidade cultural, também ela multifacetada, já no terreno: os africanos que

estiveram longe de ser receptores passivos do modelo civilizador europeu297.

Feita esta ressalva, começaremos por traçar um panorama das escolas das

missões cristãs e do seu papel no sistema educativo em Angola no início da República.

De seguida, tentaremos perceber se Norton terá levado na sua bagagem para Angola

os sentimentos anticlericais, que publicamente vinha manifestando após a

implantação da República, e em que medida isso terá interferido na sua política

missionária. Em terceiro lugar, analisaremos a forma como a Lei da Separação entre as

igrejas e o Estado, bem como a legislação e medidas conexas que foram definidas pela

metrópole para a realidade colonial, por um lado, e, por outro, como essa legislação e

orientações foram aplicadas em Angola pelo governo de Norton. Tentaremos

compreender, em particular, que tipo de relações estabeleceu com as autoridades

eclesiásticas, católicas e protestantes, com especial destaque para a frente

missionária.

II.3.2.1. Missões cristãs e educação em Angola, entre a monarquia e a

República

296

«Imperial control, colonial societies, and the missionary movement intertwined in divergent and ambiguous ways. Home and colonial governments supported ecclesiastical and missionary expansion wherever it was likely to buttress their authority and promote social order. Nevertheless, religious dynamics proved unpredictable and often counter to imperial needs». Andrew Porter, «An Overview, 1700-1914» in Norman Etherington (ed.), Missions and Empire, Oxford, New York: Oxford University Press, 2005, p. 40. Para o caso português cf. António Matos Ferreira, «A missionação como dinamismo social nas sociedades coloniais durante a I República» in José Manuel Sardica (coord.), A primeira República e as Colónias Portuguesas, Lisboa, EPAL e CEPCEP/UCP, 2010, p. 131. 297

Cf. Didier Péclard, «Savoir colonial, missions Chrétiennes et nationalisme en Angola» in Genèses. Sciences sociales et histoire, 45, 2001, p. 114; e Andrew Porter, Religion versus empire?: British Protestant missionaries and overseas expansion, 1700-1914, Manchester University Press, 2004, pp. 317-318.

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Entre o final da monarquia e o início da República, existem em Angola cerca de

27 missões católicas e pouco mais de 30 de várias denominações protestantes298.

Nestas últimas, entre as de maior expressão encontram-se: as baptistas inglesas, no

Norte; as metodistas americanas no corredor Luanda-Malange; e as congregacionais

norte-americanas e canadianas na faixa central de Angola, no interior de Benguela. Às

missões estavam ligados um número muito maior de “estações” ou “postos” que, além

do trabalho catequético asseguravam uma incontornável rede de estabelecimentos de

ensino e saúde. Os dados de que dispomos são parcelares e variam conforme as

fontes. Não obstante, ajudam, ao menos, a fornecer uma ordem de grandeza relativa

do número de alunos que frequentam as suas escolas. Em 1910, eram 7345 nas

missões baptistas e congregacionistas, a que há ainda a juntar os alunos que

frequentavam as escolas metodistas299. Já os alunos nas escolas das missões católicas

eram, no mesmo ano, cerca de 10 000300.

Das missões católicas, só três são de padres seculares portugueses, com os

quais colaboram as Irmãs Franciscanas de Maria. Sob a República, os padres de

Cernache, como são conhecidos301, continuam a ser pagos pelo Estado e a ser

considerados funcionários públicos, embora não seja permitido o recrutamento de

novos elementos nem a renovação dos existentes.

298

Os números raramente coincidem, mesmo em fontes eclesiásticas oficiais. A ordem de grandeza, no entanto, não varia muito em relação aos números apontados pelo padre José Maria Antunes em dois documentos coevos publicados por António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica (…) Angola,Vol. V (1904-1967), pp. 220–221 e 234. 299

Para os números relativos à frequência das escolas baptistas e congregacionistas em 1910 cf. Michael Anthony Samuels, Educação ou instrução…, p. 131. Para as escolas metodistas, existem dados sobre a escola de Luanda em 1907 (90 alunos) e 1913 (107), bem como sobre as escolas do Quessua e Quiongua, em Malange, no ano de 1911: 129 alunos. Idem, p. 133. 300

Mais exactamente, 9.979. Aos 2235 alunos de escolas de natureza mais institucional, juntam-se 7734 alunos das escolas rurais de catequese e primeiras letras, cuja frequência é mais irregular, como lembra o próprio D. João Vidal, bispo d’Angola e Congo, Relatorio sobre as missões diocesanas (1909-1910), Coimbra, Typografia França Amado, 1912, p. 5. Esta oscilação ajudará a explicar a variação face aos dados do ano seguinte, 1911, recolhidos por Samuels no Arquivo do Paço de Luanda: 8944, correspondentes a 1442 estudantes e 7502 alunos de catecismo. Por lapso, na tradução portuguesa do livro, falta a coluna relativa ao número dos estudantes que consta da edição original em língua inglesa. Michael Anthony Samuels, Education in Angola, 1878-1914: a history of culture transfer and administration, New York, Teachers College Press, 1970. 301

Por terem recebido formação específica para o trabalho missionário no seminário de Cernache de Bonjardim.

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A maioria das missões, porém, está a cargo da Congregação do Espírito Santo

cuja sede se situa em França, estando parte delas integradas no bispado de Angola e

Congo, ao passo que as restantes pertencem a duas Prefeituras Apostólicas, a do Baixo

Congo, a Norte, e a da Cimbebásia (mais tarde rebaptizada Cubango), a Sul,

directamente subordinadas à Congregação da Propaganda Fide, no Vaticano. Com os

espiritanos trabalham as irmãs de São José de Cluny. A maior parte dos missionários

do Espírito Santo em Angola é estrangeira. Não obstante, os dois prefeitos apostólicos

– respectivamente o português José Joaquim Magalhães e o alsaciano Luís Alfredo

Keiling – mantêm um entendimento cordial com D. João Lima Vidal, bispo de Angola e

Congo desde 1909, e, a partir de final de 1915, com o vigário capitular monsenhor

Manuel Alves da Cunha, até então o número dois da hierarquia católica secular.

II.3.2.2. Anticlericalismo na bagagem?

Leis e declarações anticlericais à parte, a verdade é que fora um bispo a

primeira personalidade a assinar o auto de tomada da posse de Norton de Matos

como governador-geral, imediatamente após o empossado e o governador interino

cessante. É a D. João da Lima Vidal, bispo de Angola e Congo, que cabe a primazia,

antes de qualquer outra autoridade civil302. É verdade que nem o bispo, nem qualquer

outra personalidade eclesiástica, constam da comissão de personalidades

representativas da opinião pública da Angola nomeada pelo governador poucos dias

depois para, sob a sua presidência, propor ao ministro das Colónias medidas para a

boa administração da província303, mesmo se o bispo continuará, pelo menos

enquanto o ministro das Colónias não determinar o contrário, a fazer parte do

Conselho de Governo.

Já no que respeita à bagagem das convicções pessoais do recém-chegado a

África, no que ao clero diz respeito, temos um documento precioso que nos ajuda a

perceber que as suas públicas tomadas de posição nos meses que se seguiram à

implantação da República, sobre o efeito deletério da Igreja Católica, não foram

302

Cf. «Auto de posse do Governo Geral da Provincia de Angola e suas dependencias, conferida ao Ex.mo sr. major do Serviço do Estado-Maior, José Mendes Ribeiro Norton de Mattos», Supplemento ao BOPA, Vol. 40, Nº. 24, 18-06-1912, p. 3. 303

Portaria No 802, de 29 de Junho, in Idem, pp. 395-396.

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meramente oportunistas, mesmo se claramente marcadas pela exaltada conjuntura

anticlerical dos primeiros tempos do regime.

Numa viagem ao Congo nos últimos dias de 1913, onde rebentara a revolta de

Tulante Álvaro Buta, Norton atribui segundas intenções ao relato do superior da

missão do Lunuango sobre as causas da revolta da população de uma povoação em

particular, o Quifumo. Segundo o missionário, tratar-se-ia de uma reacção a actos de

prepotência do administrador colonial. No seu diário pessoal, o governador-geral

regista o seu desagrado: trata-se de uma «critica, encapotadamente e jesuiticamente

feita, tendente a deitar por terra o ad[ministrad]or»304. É certo que a má

administração do funcionário é corroborada por outras fontes e Norton acabará por

afastá-lo do posto. Não obstante, o padre, apesar de não pertencer ao clero regular e

muito menos à ordem dos Jesuítas, não se livra de ser qualificado com as

características maléficas que muitos republicanos coevos, Norton incluído, atribuem

aos membros desta congregação religiosa.

Já faltas pontuais de natureza moral por parte do clero são, na sua opinião,

fruto da concupiscência, «irmã gémea» do celibato, estado ainda mais pernicioso em

terras de missão isoladas. E quando a acção pastoral entra em choque com os

costumes autóctones, provocando a animosidade da população, é o «papel civilizador

e de ocupação» da missão que fica comprometido. A «falta de tacto» com que os

padres insistem na pregação do matrimónio religioso e da monogamia aos indígenas

perturba desnecessariamente a organização familiar tradicional dos africanos.

Resultado? A insatisfação dos sobas que, ao invés, o governador precisa ter do seu

lado.

304

«Chegamos hoje ás 7h50m á Cabeça de Cobra. O Ambriz fundeou a proximamente uma milha da praia. Mandamos um escaler a terra para nos trouxe o superior da missão de Lunuango. Disse-me em resumo que o Governador do Congo tinha seguido para S.to Antonio bastante doente; que o gentio da Quifuma se tinha revoltado porque o administrador José Felix tinha feito umas descargas a um dos povos mais importantes sem razão plausivel para isso; que estava certo que eles se apresentaram logo que nada tivessem a temer; que gentios fieis que se tinham apresentado foram presos. Enfim uma critica, encapotadamente e jesuiticamente feita, tendente a deitar por terra o ad.or J. Felis[?]. Não me resta duvida que a acção deste administrador não tem sido inteligente: - é indispensavel tirar-lhe esta região de sob a sua administração». ANM, 2

a viagem ao distrito do Congo. Diário, 30-12-1913 a 7-1-

1914, caderno mns.

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«Vieram cumprimentar-me os sobas e povo dos arredores e foi uma carga cerrada nos padres. - Davam maus conselhos ás mulheres, alterando o uso antigo da terra sobre contractos de casamento, dizendo-lhes que elas tinham inteira liberdade de irem para onde quisessem, de abandonarem os maridos, porque era nulo o casamento que não fosse feito á face da egreja: – d'ahi uma perturbação grande na pratica de tão importante acto da vida dos povos.»

Estes eram dos poucos que, no Congo, não alinharam com os sobas que, sob a

liderança de Buta, se revoltaram contra o ‘rei’ do Congo, Kiditu, por não defender

como devia os interesses dos seus súbditos, alinhando de forma demasiado estreita

com os portugueses na promoção, frequentemente por meios violentos, do

recrutamento de trabalhadores. Embora o alvo principal da revolta fosse Kiditu305,

acabava por ser também, naturalmente, uma revolta que colocava em causa a

administração portuguesa. Punha em causa, em especial, a estratégia do governador

de distrito José Cardoso, sancionada e elogiada por Norton, de reconhecer o poder

tradicional dos sobas306, transformando-os assim em peças-chave na transmissão das

instruções do governo-geral de Angola aos indígenas, em zonas onde a máquina

administrativa do colonizador estava ainda longe de conseguir substituir-se às redes de

poder tradicional. A acção civilizadora do poder colonial deveria fazer-se sentir através

de alianças com os sobas para a cobrança do imposto de cubata e para o fornecimento

de trabalhadores. O recrutamento forçado, a destruição de aldeias cujos habitantes se

atreviam a deixar desertas quando o angariador oficial de trabalhadores aí chegava,

entre outras violências do género, começaram a fazer com que sobas que, como Buta,

até então tinham colaborado com o governo fornecendo trabalhadores, começassem a

colocar em causa a aliança do seu rei tradicional com os portugueses. 305

Como demonstrou Jelmer Vos. O facto de visarem sobretudo o rei do Congo e só subsidiariamente a administração portuguesa mostra como os sobas do Congo andavam equivocados sobre a verdadeira sede do poder político, numa altura em que o poder colonial começa a fazer sentir de forma mais sistemática a sua força, apertando a malha administrativa com a imposição do imposto de cubata e da obrigação de trabalho, pela via do recrutamento. Jelmer Antoon Vos, The kingdom of Kongo and its borderlands, 1880-1915, PhD thesis SOAS-University of London, London, 2005 (policopiado), pp. 216 e segs (cap. 7: «Forced Labour and the Revolt of Tulante Álvaro Buta»). 306

As instruções regulamentares dos serviços das capitanias-mores do distrito do Congo, apresentadas por Cardoso, são aprovadas por Norton, na PP nº 1374, de 23-11-1912, na qual se determina que os governadores dos distritos da Lunda, Benguela e Huila elaborem propostas idênticas. As instruções regulamentares de Cardoso, incluíam, como dever dos capitães-mores, «enraizar no ânimo do gentio a ideia que o soba é uma autoridade reconhecida pelo Govêrno, representando uma garantia para os direitos dos indígenas, quando esteja perfeitamente subalternizada ao respectivo capitão mór e sirva de medianeiro lial e consciente entre as autoridades regulares e o gentio». «Instruções regulamentares pelas quais devem conduzir a sua acção os capitões-mores do Cuango, Damba e Bembe» in BOPA, Nº 47, 23-11-1912, pp. 823-824, alínea h.

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Agravados pelos «maus conselhos» às mulheres ou não, a verdade é que é aos

missionários baptistas e católicos que os sobas revoltados reconhecem idoneidade307

para serem testemunhas das partes, na cimeira de guerra com o administrador de

circunscrição, nos dias seguintes ao ataque de Buta à zona católica de São Salvador,

precisamente a parte da cidade onde residia o rei.

II.3.2.3. Primeiras impressões sobre as missões católicas e

protestantes

Inicialmente, as boas disposições do governador-geral para com o clero católico

parecem manifestar-se quase apenas ao nível da urbanidade institucional e, quando

muito, à admissão, em tese, de um potencial valor civilizador futuro. Se o reconhece

como tendo existido no passado, não poupa nas críticas à real valia das missões que

encontra na primeira fase do seu primeiro governo.

Em 1913, Norton tece críticas públicas às missões dos espiritanos, que eram a

maioria, e, em privado, às missões do clero secular. Das primeiras dirá que são

estrangeiras, sendo «muito duvidosos» «os benefícios» que da sua acção possam

surgir para o «exercício da soberania portuguesa»308. Ministrariam, na sua opinião,

educação e instrução bem menos «racional e proveitosa»309 do que a prestada pelas

missões protestantes americanas. Das segundas, mais especificamente da acção

educativa da missão do Lunuango, onde encontra dois padres «novos, barbados,

rubicundos de Cernache [de Bonjardim]», escreverá palavras duras no seu diário:

«Uma miseria! Miseria moral e miseria material... As instalações são pessimas e principalmente descuidadas e abandonadas. Não sei o que teem feito ao subsidio anual de 2450$ que ha muitos anos recebem. (...)

A escola, se este nome se lhe pode dar, está instalada num alpendre: – duas toscas mesas a topo; o quadro preto deitado para um canto, os quadros parietaes do metodo de João de Deus, em monte, cheios de pó, mostrando que não eram ha muito usados; uma so lousa em cima de uma das mesas; vestigio algum de metodico, apropriado e seguido ensino. Os alunos descontentes e com má aparencia. Queixaram-se-me de má alimentação (...) um só fato ha muito tempo, excessivo trabalho na construção do edifício. É natural que não tenham razão em tudo o que dizem (...) Mas o descontentamento dos alunos é sempre uma prova segura de deficiencias e defeitos pedagogicos.

307

Jelmer Antoon Vos, Op. cit., p. 228. 308

J.M.R. Norton de Matos, Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914…, p. 27. 309

Idem, p. 28.

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Tudo ruminando[?] porcaria, desleixo, miseria.»310.

Impressões privadas à parte, será sobre o clero regular e não sobre os padres

de Cernache que o seu escrutínio será mais apertado, pois é aquele a assegurar a

maior parte das missões, cuja valia educativa e papel civilizador acabará por

reconhecer e mesmo louvar. A incipiência da rede estatal de educação e de saúde face

à rede missionária e, numa perspectiva mais global, o papel civilizador das missões faz

com que, como mais tarde dirá, missionários e governador, «cacem» ambos «na

mesma propriedade»311, estando, por isso, condenados a entender-se.

Podemos concluir que o novo governador, se leva na bagagem alguns

sentimentos e retórica anticlerical, de que não faz demasiado alarido público, coloca-

se sobretudo no plano do que poderíamos chamar a razão de Estado. Como adiante

veremos, sempre que a acção do clero choca com a sua visão do que é o interesse do

Estado português em Angola, pode contar com a oposição do governador, sendo que a

inversa também é verdadeira.

II.3.2.4. A separação de águas entre a administração eclesiástica e as

missões católicas. Norton e as autoridades católicas e protestantes

Num registo oficial, Norton faz questão de cultivar boas relações com as

autoridades eclesiásticas católicas, na senda, aliás, do seu antecessor, o histórico

republicano Manuel Maria Coelho, ambos sancionados pelos mesmos governos

republicanos que, na metrópole, legislavam e aplicavam medidas anticlericais.

À parte o encerramento, em cidades do litoral, de duas comunidades de

religiosas católicas, que as próprias irmãs se apressaram a aceitar sem qualquer

reclamação, no que o próprio bispo D. João Lima Vidal considera ter sido uma

precipitação312, a verdade é que, nas missões propriamente ditas, os missionários e

310

ANM, J.M.R. Norton de Matos, 2a viagem ao distrito do Congo. Diário.

311Norton de Matos, «Missions Catholiques en Angola», [inícios anos 40], s.p., Microfilme do texto

dactilografado do artigo, nos Archives du Saint Esprit, Chevilly, Cópia consultada no Arquivo dos Missionários do Espírito Santo, Lisboa, s.p. 312

«Em 1912, por motivos acidentaes, foram mandadas sahir de Loanda e de Mossamedes as Irmas da Congregação de S. José de Cluny, que, ao que me consta, se submetteram sem protesto à illegitima expulsão. O Governo pretendeu justificar-se, distinguindo entre interior e littoral e allegando que a Conferencia de Bruxellas só diz “interieur d’Afrique”». ARCHIVIO SEGRETO VATICANO (ASV), Archivio della Nunziatura Apostolica di Lisbonna (ANL), 1910-1922, Vol. 403, João, bispo de Mytilene, Carta ao Encarregado da Nunciatura da Santa Sé em Lisboa, Lisboa, 09-09-1916.

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religiosas permanecem. Sofreram, é certo, alguns dissabores e mesmo ataques, de

alguma gravidade, de elementos mais exaltados da população e de uma ou outra

autoridade local. Porém, o governo-geral de Angola não lhes dá cobertura e assegura a

manutenção do statu quo, como reconhece o próprio D. João perante Norton:

«Alguns prejuízos de ordem material e moral resultaram do encerramento da missão de Calulo-Libolo, ordenado pela autoridade administrativa local em 1910 a 1911. A prontidão com que o Governo Geral da Província ordenou a reabertura da missão e o restabelecimento do statuo quo, tanto quanto o podiam permitir as circunstâncias, desvaneceu completamente o desprestígio sofrido pelos missionários perante o gentio.

Por outro lado, a continuação dos auxílios materiais e da protecção do Governo Português têm compensado amplamente os danos de ordem material que resultaram do encerramento da casa missionária. Reconhecendo isso o missionário alemão Oscar Kohler pediu-me para fazer chegar às mãos de V. Ex.a a desistência inclusa da qual faz cientes, pelo mesmo correio, as autoridades diplomáticas do seu

País.»313.

O bispo contribui, aliás, sobremaneira para a desvalorização deste tipo de

incidentes. Com grande habilidade política, contém potenciais danos colaterais que daí

pudessem advir para as relações entre o Estado e a Igreja Católica em Angola, de

reacções menos ponderadas da parte de membros do clero a provocações e ataques

pontuais, da responsabilidade (ou com a conivência) de pequenos funcionários civis ou

militares. Norton não deixa de apreciar a actuação diplomática do dignatário católico,

tecendo-lhe público elogio na sessão de abertura da Junta Geral da Província, em

Agosto de 1913:

«Estou há quási um ano à frente desta colónia, e devo declarar que da parte do clero português da Província, a principiar no homem de elevado carácter que é o Sr. Bispo de Angola e Congo e a terminar no menos graduado dos padres ou missionários, não tem recebido o meu govêrno senão manifestações de boa vontade, de inteligente e decidida cooperação, que levo à conta de um grande patriotismo, empenhado em pôr de parte divergências fundamentais perante um Governador que tem dado sobejas provas de querer, pelo menos com árduo trabalho e com constante fiscalização de todos os serviços, levantar esta colónia a um nível moral e económico

muito superior ao actual.»314.

O elogio visa, em grande parte, mitigar o desconforto da Igreja perante a

proposta de orçamento da colónia, enviado meses antes ao ministro, que anuncia 313

Of. de João, bispo de Angola e Congo, ao Governador-geral de Angola, Malanje, 05-11-1912 in António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica (…) Angola, Vol. V (1904-1967), p. 250. 314

Norton de Matos, Discurso Pronunciado, em 1 de Agosto de 1913, pelo Major Norton de Matos, Governador-geral de Angola, na Sessão de Abertura da Junta Geral da Provincia, Luanda, Governo Geral da Provincia de Angola, 1913, p. 21.

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publicamente em Luanda neste mesmo discurso à Junta Geral. Além dos cortes no

financiamento, de que adiante falaremos, é feita uma comparação entre as missões

católicas e as protestantes reveladora de como as primeiras ficam mal no retrato que o

governador delas tira, por comparação com estas últimas. Na verdade, Norton corta a

direito:

«São muito duvidosos para mim os benefícios que, para a Província e sobretudo para o exercício da soberania portuguesa, teem resultado da existência de certas missões [católicas]. Alêm disso, não vejo razões para subsidiar estas missões e não ar idênticos subsídios às missões protestantes americanas e suissas, que, pelo menos,

ministram educação e instrução mais racional e mais proveitosa»315.

De facto, o governador aprecia o trabalho dos protestantes no campo da

educação, fazendo questão de cultivar relações cordiais com os representantes das

missões metodistas e congregacionistas. A aproximação é mútua. Joseph Hartzell,

bispo para África da Igreja Episcopal Metodista, considera que a mudança da política

portuguesa relativamente às igrejas protestantes, colocando-as, pelo menos na letra

da lei, em pé de igualdade perante a lei, é muito significativa, tendo recebido, logo em

Janeiro de 1911, garantias do próprio governo provisório da República Portuguesa, na

presença do próprio Afonso Costa, de que a cooperação das missões metodistas nas

colónias era vista pelo novo regime como benéfica316. Dois anos mais tarde, o bispo

manifesta, em Luanda, o seu apreço às públicas declarações de apoio às missões

protestantes por parte do novo governador:

«Coming from the head of the Government, they were quite opposite to the former policy under the monarchy, when as far as possible the old Papal Bull was obeyed, which said: “The movements of the heretics are to be followed up and their efforts harassed and destroyed.”. The policy of the Republic is much wiser and is sure to bring prosperity to all. That policy gives religious liberty as well Civil protection to all

people.»317.

315

Idem, pp. 21-22. A versão retocada para efeitos de discurso é um pouco mais diplomática do que a versão original anteriormente enviada ao ministro e publicada num número muito restrito de cópias: já não são duvidosos os benefícios «dessas missões» (todas as católicas, no geral) mas apenas «certas missões» católicas. Na versão discurso, acrescenta às missões protestantes americanas também as suíças. A versão original pode ser conferida em J.M.R. Norton de Matos, Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914…, p. 28. 316

Maria Lúcia Brito de Moura, A “guerra religiosa” na I República, 2a ed. revista e aumentada, Lisboa,

CEHR/UCL, 2010, p. 172. 317

ANM, P. GGA 1, Joseph C. Hartzell, Carta ao Governador-geral Norton de Matos, Baía do Lobito, 17-09-1913, mns.

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Será, porém, com o reverendo John Tucker, homem-forte das missões

congregacionistas em Angola durante as décadas que se seguirão à sua chegada a

Angola em 1913, que Norton estabelecerá as relações mais estreitas, de proximidade

pessoal e institucional, com pontos de entendimento comum sobre o desenvolvimento

das sociedades africanas318.

Se é verdade que Norton cultiva boas relações, pessoais e institucionais, com

representantes de várias igrejas, dando-lhes, inclusive, o apoio do seu governo, este só

se justifica, na sua visão, pela acção civilizadora das missões por elas geridas – se e

quando ela se enquadrar nos objectivos do próprio governo. Na visão do governador,

tudo o que tenha que ver exclusivamente com o trabalho catequético deve ser

excluído desta equação. Assim, que o seu governo apoie a administração eclesiástica

não faz sentido mas, ao invés, que apoie as missões sim, desde que estas passem a

funcionar nos termos definidos pelo poder político.

É esta separação das águas que Norton faz no primeiro orçamento da província

em que pode ter alguma palavra a dizer, o relativo ao ano económico de 1913-1914.

Numa proposta apresentada ao ministro das Colónias, o governador declara

categoricamente que não vê

«razões para subsidiar essas missões [estrangeiras, como são as do Espírito Santo] e

não dar idênticos subsídios às missões protestantes americanas»319.

Mesmo no caso das missões portuguesas, estabelecidas ou a estabelecer-se, os

subsídios e concessões apenas deverão, na sua opinião, ter lugar

«desde que se obriguem a ministrar o ensino primário e o ensino profissional de artes e ofícios, nos termos da legislação que vigorar, subordinando-se a um programa mínimo de ensino e de acção civilizadora que, de harmonia com aquela legislação,

lhes será fixado pelo Governador Geral, em Conselho.»320.

Para começar, propõe que sejam oito as missões subsidiadas no ano económico

de 1913-14. A eventualidade de receberem outras concessões materiais é ainda

prevista,

318

Cf. Didier Péclard, État colonial, missions chrétiennes et nationalisme en Angola, 1920-1975 : aux racines sociales de l’UNITA, Thèse de Doctorat de Science Politique, Paris, Institut d’Etudes Politiques de Paris, 2005. 319

J.M.R. Norton de Matos, Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914…, p. 28. 320

Ibidem

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«em proporção com a sua utilidade educadora e civilizadora ou com os benefícios de

reconhecida utilidade social prestados em assistência ou beneficência públicas.»321.

Não obstante a retórica, a porta fica aberta para que o subsídio seja estendido

às missões estrangeiras (do Espírito Santo), na condição de que, também elas, se

subordinem ao programa mínimo de ensino e de acção civilizadora definido pelo

governo da província.

O que não impede que, a ter sido aprovada, a proposta teria significado uma

diminuição substancial nas verbas para a administração eclesiástica, apesar de não tão

radical quanto o título fazia prever: «eliminação das despesas com o culto». Na

verdade, o governador começava por proclamar que o capítulo da «administração

eclesiástica» devia, pura e simplesmente, ser eliminado do orçamento. Numa proposta

que previa aumentos para a generalidade dos capítulos, a administração eclesiástica

apenas era acompanhada nos cortes por uma outra que Norton, como toda a gente

em Angola, gostaria de ver varrida da colónia: as despesas com os degredados, essa

ominosa imposição da metrópole que tanto vexava Angola, identificando-a com uma

espécie de colónia penal. O simbolismo da associação não terá passado despercebido e

não foi seguramente inocente. Como explica num discurso à Junta Geral da Província,

«quer-me parecer que, a ser aprovada, será ela o primeiro passo para o estabelecimento na província da Lei da Separação das Egrejas do Estado.»322.

Nesse ano, porém, por determinação do Ministério das Colónias, a verba da

província para a Igreja Católica pouco diminui. O que não significa que Norton não

estivesse em sintonia com a vontade do governo da metrópole que, com o decreto de

17 de Agosto de 1912, publicado em Angola no segundo aniversário da revolução de

Outubro323, determinara já a diminuição do montante atribuído a título de subsídio a

sete missões do distrito da Huila, entre outras reduções nas verbas para a

administração eclesiástica. Era um pequeno passo no sentido da concretização do

disposto na Lei da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911324 que, no

seu art.º 190º, determinava que «as despesas do Estado e dos corpos administrativos,

321

Idem, p. 29. 322

Norton de Matos, Discurso Pronunciado, em 1 de Agosto de 1913, pelo Major Norton de Matos, Governador-geral de Angola, na Sessão de Abertura da Junta Geral da Provincia, p. 20. 323

BOPA, Vol. 40, 05-10-1912, p. 645. 324

DG, Nº 92, 21-04-1911, pp. 1619-1624.

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relativas ao culto» fossem «reduzidas, desde já, ao estritamente indispensável»,

enquanto as determinações da lei não fossem estendidas às colónias e tais despesas

então definitivamente «suprimidas nos orçamentos do Estado» (artº 4º) 325.

Os motivos apresentados pelo governador para os cortes propostos nas

despesas com a Igreja indicam o caminho que a política missionária da República

Portuguesa irá seguir em Angola nos anos seguintes. Por um lado, têm a ver com a

retirada de toda e qualquer despesa exclusivamente cultual do orçamento do governo,

de acordo com o espírito e a letra da Lei da Separação, mas, por outro, visam uma

racionalização e uma disciplinação do uso das verbas que as missões religiosas

pudessem receber do governo, aplicando-as de acordo com um programa mínimo de

ensino e de acção civilizadora nos termos definidos pelo governo. Uma vez garantida

esta subordinação, os subsídios, que, nesse ano, Norton propunha que abrangessem

oito missões católicas, poderiam ser alargados, no futuro, a um maior número de

missões, além de poderem ser acompanhados de concessões de terrenos e outros

benefícios. O objectivo não era propriamente atacar as missões mas antes subordiná-

las à batuta do seu governo. Uma vez estabelecido quem mandava na colónia e

ficando as missões, em tudo o que não fosse estritamente catequético, em sintonia

com a política civilizadora do governo de Norton, o apoio deste estava assegurado.

É uma fonte insuspeita de anticlericalismo, o bispo de Angola e Congo, quem o

assegura, um ano mais tarde, a monsenhor Masella que, mesmo após a ruptura de

relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé, permanece em Lisboa como o canal

oficioso entre a Igreja portuguesa e o Vaticano326. Quando, a 1 de Abril de 1914, viaja

325

Na realidade, as missões católicas, tanto do clero secular como do regular, nunca deixaram de ser subsidiadas pelo Estado ao longo de toda a I República, como provam, nomeadamente, os orçamentos coloniais e os relatórios eclesiásticos constantes dos arquivos do Vaticano, por nós analisados para o caso de Angola. Cf. Helena Pinto Janeiro, «La Primera República Portuguesa y Las Missiones Católicas y Laicas en Angola: Financiación y Poder», pp. 161-191. Para uma visão global dos números, veja-se a evolução dos valores orçamentados (nominais e corrigidos face à inflação) e do número de missões financiadas no Quadro 2 («Tabla 2. Gastos con la Iglesia católica / misiones católicas en los presupuestos de Angola durante la I República»), Idem, pp. 173-174. 326

Masella continua a desempenhar, a título oficioso, o papel de encarregado de Negócios da Nunciatura de Lisboa, apesar de oficialmente as relações diplomáticas entre a República Portuguesa e a Santa Sé estarem cortadas. Sobre este assunto, cf. Bruno Cardoso Reis, «Portugal e a Santa Sé no sistema internacional (1910-1970)», Análise Social, Nº 161, Inverno 2002, p. 1023.

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para Lisboa, o governador teria levado na bagagem o patrocínio da causa das missões

católicas junto do governo central:

«O sr. Governador Geral da Provincia, que sahiu para Lisboa no passado dia 1 d’este mês, reconhece a necessidade dos serviços missionarios em Angola e levava a intenção de patrocinar junto do Ministerio das Colonias as medidas necessarias para garantir a continuação dos mesmos serviços (…) circunstancia que representa para

nós pelo menos uma leve esperança»327

Na verdade, com a sua proposta de corte e reajuste das despesas com a Igreja

Católica, Norton pretendera sobretudo dar um aviso à navegação, mostrando que

quem mandava em Angola era o Estado e não a Igreja e, simultaneamente, mostrar

que estava em sintonia com o anticlericalismo dos democráticos, pela mão de quem

tinha entrado na política. O seu verdadeiro empenho nesta ida à capital, no entanto,

era obter o grande empréstimo que lhe iria permitir fazer a obra de fomento e

civilização que pretendia, sacudindo, de caminho, o jugo de Lisboa que tanto lhe tolhia

os movimentos.

No início de Setembro, será já o vigário capitular do bispado, monsenhor Alves

da Cunha a intervir junto do recém-regressado governador pela causa das missões.

Recorda-lhe que, embora tenham sido pagos os duodécimos de Julho às missões do

Espírito Santo e tenham sido dadas superiormente garantias de que o statu quo

missionário, no que às dotações das missões pelas tabelas orçamentais dizia respeito,

iria manter-se, seria preciso assegurar-se de que tal iria efectivamente acontecer328.

Na prática, os duodécimos continuam a ser pagos às missões católicas até que, em

Outubro, o Ministério das Colónias sanciona indirectamente o statu quo determinando

que se mantenham em vigor as tabelas orçamentais da despesa ordinária do ano

anterior329. O que não impede que, para chegar a este resultado, a batalha não tenha

327

ASV, ANL, Vol. 397, João, bispo d’Angola e Congo, Carta [a Aloisi Masella], Loanda, 05-04-1914, mns. 328

Cf. carta do governador do bispado, Manuel Alves Cunha ao Governador-geral de Angola, Luanda, 09-09-1914 in António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica (…) Angola, Vol. V (1904-1967), pp. 302–305. 329

Decreto No

959, de 19-10-1914, BOPA, 1914, pp. 1060–1061. Na colónia de Angola, o sistema de duodécimos que vigorou em 1914-1915 prolonga-se para o ano seguinte, apesar de ter existido uma proposta alternativa, que não chegou a entrar em vigor: cf. República Portuguesa – Governo Geral de Angola, Projecto do orçamento da receita e tabelas da despesa ordinária e extraordinária da província de Angola para o ano económico de 1915-1916: Propostas orçamentais aprovadas pelo Conselho do Govêrno da Colónia, Loanda, Imprensa Nacional, 1915. A monsenhor Masella, o bispo D. João Lima Vidal, já na sua nova qualidade de arcebispo de Mitilene (e, logo, vigário geral do Patriarcado de Lisboa),

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sido dura e outros desenlaces não tivessem estado no horizonte. Em Novembro de

1914, o procurador das missões do Espírito Santo em Luanda, em carta ao Superior da

sua Congregação em França, faz-se eco do trabalho de bastidores em prol da

continuação dos subsídios governamentais às missões católicas, em que os espiritanos

puderam contar com um aliado particularmente hábil, monsenhor Alves da Cunha:

«Depois de Deus, é ao nosso grande amigo, o Sr. Vigário-Geral, Dr. Cunha, que devemos este resultado; soube advogar tão bem a nossa causa, que venceu.»330.

Pela sua parte, Norton acabará por revelar um tacto inesperado no

cumprimento do Decreto nº 233, que, em Novembro de 1913, aplicará a Lei da

Separação às colónias. Em especial no que respeita ao arrolamento dos bens

eclesiásticos, como dá conta D. João Lima Vidal ao secretário de Estado da Santa Sé,

em Março de 1914:

«Tenho prazer de communicação a V. Excia Revma que a operação dos arrolamentos (...) não nos deu nenhum desgosto. O Governo Geral da Provincia só mandou arrolar os bens pertencentes ao Estado, e deixou-nos plena liberdade de fazer e entregar a relação d’elles. De maneira que a egreja d’Angola ficou com tudo o que lhe pertencia. Mesmo os bens do Estado continuam na posse dos antigos detentores. Houve além

d’isto muita delicadeza no modus faciendi.»331

Semanas mais tarde, o bispo reforça a ideia, dando um panorama mais

alargado das consequências da aplicação daquele decreto a Angola, que considera

estarem liquidadas, «sem desgostos nem injustiças» para a Igreja, apesar de um

incidente em Malange332.

Independentemente da retórica e da legislação, o governo de Norton nunca

deixa de apoiar as missões religiosas. O resto, como instruirá o seu chefe de gabinete a

confirma, em 1916, que, na verdade, as missões nunca deixaram de ser subsidiadas: «O novo regimen ainda não supprimiu de facto estes subsídios [do Estado às missões católicas da diocese de Angola e Congo], embora tivessem deixado de figurar nos orçamentos em virtude do decreto [nº 233,] de 22 de Novembro de 1913». ASV, ANL, Vol. 403, João, bispo de Mytilene, «[Carta ao Encarregado da Nunciatura da Santa Sé em Lisboa]», Lisboa, 09-09-1916. 330

Excerto de carta particular de 30-11-1914, do Padre Lourenço André ao Superior Geral da Congregação do Espírito Santo, Mons. Alexandre Le Roy, citada por António Brásio, História e missiologia: inéditos e esparsos, Luanda, Instituto de Investigação Científica de Angola, 1973, p. 882. 331

ASV, ANL, Vol. 402, Carta de João, bispo de Angola e Congo, Loanda, 15-03-1914, mns. 332

Idem, Carta de João, bispo de Angola e Congo, 20-03-1914, mns. O problema é outro, e a esse Norton não pode acudir: «A grande, a verdadeira difficuldade para a diocese, é a falta irremediavel e angustiosa do pessoal. Eu já nem sei se poderei celebrar o pontifical da Paschoa. Agora em Abril e Maio sahe grande parte dos que ainda estavam na expectativa dos acontecimentos. O decreto de 22 de Novembro, não garantindo subsidios senão ao pessoal presente, fez desvanecer as esperanças no futuro».

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comunicar a D. João Lima Vidal, não passaria de boatos de «indivíduos mal-

intencionados e tendo só em vista criar dificuldades à República»333. Como vimos, o

próprio bispo católico parece concordar com esta versão ou, pelo menos, considerar

que, dentro do caldo republicano onde se confrontam várias visões contraditórias

sobre o rumo a dar à política religiosa da República, Norton é, apesar de tudo, um

aliado334. Norton, por seu turno, nunca deixa de considerar o clero como um parceiro

estratégico, mesmo se faz questão de cultivar inicialmente alguma distância. Com o

avanço da sua governação e a perda do apoio de algumas pessoas em quem começara

por apostar, acabará por se aproximar de D. João Lima Vidal e de monsenhor Manuel

Alves da Cunha:

«Em Luanda o Governador Geral, que se conservava afastado do clero, repelido pelos outros elementos, aproxima-se agora do Bispo e do seu Vigário-Geral, que é, talvez, na Colónia, o homem mais competente.»335

O bem maior da missão civilizadora a que Norton se tinha proposto enquanto

governador-geral da maior colónia da República laica assim o aconselhara. Embora não

isenta de tensões, a plataforma de entendimento a que chega tem a ver com a

questão da civilização pela educação mas, igualmente, pelo trabalho. A data em que o

padre Cancela escreve estas palavras ao superior geral da sua congregação em França,

333

Cópia de ofício no 174/23 chefe de gabinete do Governo Geral de Angola, Tomás Fernandes, ao bispo

de Angola e Congo, 07-02-1914 in António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica(…) Angola, Vol. V (1904-1967), p. 283. É reiterado, nesse mesmo ofício, «Que S. Ex.

a o Governador-geral está resolvido a

prestar às missões religiosas, nacionais e estrangeiras, existentes nas província de Angola, além da protecção a que o obrigam os acordos internacionais, todo o auxílio moral e material que lhe seja permitido dentro das leis em vigor, desde que elas concorram para a instrução e civilização dos indígenas da província, para a sua civilização e para firmar na colónia o respeito pela soberania da República, constituindo-se assim em valiosos auxiliares da obra de civilização e progresso que a República Portuguesa tanto tem feito já nesta colónia». Idem, p. 284. 334

O que não impede que a principal reivindicação de D. João (a possibilidade de formar e enviar novos padres para Angola) fique por atender. O bispo, que viajara para Lisboa também em Abril, já não regressaria a Angola. Tão cedo não virão novos padres seculares para Angola mas, ao menos, também não se constituirão aí quaisquer comissões cultuais, como confirmará, em 1917, o vigário capitular do bispado, monsenhor Alves da Cunha. A conjuntura da guerra terá facilitado a manutenção do status quo: «As circunstancias derivadas do estado de guerra levaram o governo d’esta provincia a suspender sine die a execução da lei de separação quanto à organisação das associações cultuais, que deviam estar organisadas, segundo essa lei, em 1 de Janeiro de 1915 e que aqui, como ve. bem conhece podiam aceitar-se desde que fosse possivel organizarem-se.// Não tem havido a menor difficuldade para o exercicio do culto por parte do governo». ASV, ANL, Vol. 397, Cópia de of. nº 108 do vigário capitular do bispado, Alves da Cunha a Aloisi Masella, Loanda, 30-07-1917, que a envia ao cardeal Gasparri a 11-10-1917. 335

Excerto de carta de 15-04-1913, do Padre Cancela ao Superior Geral da Congregação do Espírito Santo, Mons. Alexandre Le Roy, citada por António Brásio, História e missiologia: inéditos e esparsos, pp. 881–883.

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monsenhor Alexandre Le Roy, é a este último respeito muito significativa. Em Abril de

1913, no auge da sua ofensiva antiesclavagista e de protecção dos direitos

elementares dos trabalhadores indígenas, Norton estava a ser atacado, a um tempo,

pelas elites económicas e intelectuais da colónia, as primeiras acusando-o de proteger

os indígenas em demasia e as segundas acusando-o precisamente do contrário. É certo

que tanto os ataques como os apoios não se dão em bloco, sendo atravessados

transversalmente por fracturas que têm a ver com convicções e interesses pessoais. É

o caso das lojas maçónicas locais que ora o atacam frontalmente, como foi o caso da

Loja capitular Independência Nacional, de Luanda, a que já anteriormente nos

referimos, ora o defendem apaixonadamente, como a Loja Pátria Integral, n.º 363, de

Luanda336.

Num contexto de ataque cerrado e lealdades divididas entre aqueles que, em

teoria, constituiriam a sua base de apoio natural, contar com o apoio das associações

de elites nativas – que, aliás, virá a revelar-se assaz fugaz – é demasiado pouco para

Norton. Compreende-se, assim, que não só não descarte o apoio das elites religiosas

em Angola, no campo católico como no protestante, como acabe por o procurar

activamente.

Não é, porém, apenas no seio das elites em Angola que tem de estar

constantemente a negociar e renegociar equilíbrios delicados. Outro tanto continua a

acontecer na metrópole, para onde parte em Abril de 1914, sem saber se conseguirá

reunir os apoios suficientes para poder manter-se no cargo e regressar a Luanda.

II.4. Norton e Lisboa: a vitória, arrancada a ferros, antes da crise final

Ao fim de dois anos em Angola, debaixo do fogo cruzado intermitente das elites

coloniais e metropolitanas, o major Norton de Matos terá de dedicar uma atenção

especial a estas últimas, o que fará pessoalmente entre Abril e Agosto de 1914. Era, há

já dois anos, governador-geral e crescera como político. Para surpresa de muitos, a

começar pelos seus correligionários no partido e nos vários governos que se vão

336

José Manuel da Costa, delegado da «Pátria Integral» ao congresso maçónico nacional, realizado no Porto em 1914, propõe ao congresso medidas para defender o bom nome de Portugal contra acusações de escravatura, tecendo um elogio rasgado à obra de Norton em Angola. Congresso Mç Nacional realisado no Porto nos dias 19, 20, 21, 22 e 23 de Junho de 1914 (e v ): Relatorio, 1914, pp. 144 e segs.

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sucedendo em Lisboa. Julgavam ter enviado para Angola um colonial, um executor de

políticas definidas por outrem e, afinal, saíra-lhes um político. Um político que, debaixo

de um vendaval de críticas de várias proveniências, decide ir a Lisboa procurar os

apoios, políticos e financeiros, que reputa essenciais para a sua acção.

Investe, antes de mais, junto das bases do partido. A 13 de Maio, discursa no

Centro Republicano Democrático de Lisboa. O tópico é a situação financeira e

económica da província de Angola. Após dois anos a arrumar a casa em Angola, pondo

alguma ordem no caos financeiro e administrativo que foi encontrar, manifestando,

simultaneamente, a sua compreensão pela necessidade de não onerar, com os

problemas de Angola, a política de equilíbrio orçamental protagonizada por Afonso

Costa na metrópole337, defende ser agora a hora certa para enfrentar a situação de

Angola de frente e dar à colónia a margem de manobra política e financeira de que ela

absolutamente precisa para sair do ponto morto em que se encontra. Que não é com a

exploração boçal da mão-de-obra indígena que se chegará lá, é, para si, uma evidência.

A revolução que alega ter feito neste domínio é, não apenas, um feito humanitário

mas, também, a base essencial para um desenvolvimento económico sustentado.

Poucos dias depois, a 17, intervém no congresso do PRP, no casino da Figueira

da Foz338 onde, perante os seus correligionários, elogia a acção da Republica e,

nomeadamente, dos ministros democráticos, cujos efeitos, defende, se têm feito

sentir beneficamente, tanto no país como nas colónias. Significativamente, não é

Lisboa de Lima, que então titula a pasta das Colónias, o alvo do seu elogio. O destaque

vai, antes, para o seu antecessor, Almeida Ribeiro, e para a orientação que imprimiu à

regularização da questão da mão-de-obra, a menina dos olhos da política nortoniana

que, mesmo em sede partidária, é controversa. De facto, não se livra de um seu colega

de partido protestar energicamente um «não apoiado».

337

Cf. Norton de Matos, A Situação Financeira e Economica da Provincia de Angola…, pp. 8-9. 338

«Norton de Mattos disse que a acção da Republica se tem feito sentir beneficamente, tanto no Paiz como nas colonias. Arthur Leitão gritou: não apoiado, peço a palavra! mas o orador, continuando, elogiou as medidas tomadas nas colonias pelos ministros do partido republicano, e apontou especialmente a orientação de Almeida Pinheiro [sic; refere-se a Almeida Ribeiro] para regularizar o regimen da mão d’obra. (..) Arthur Leitão, a proposito do seu aparte quando fallava o sr. Norton de Mattos, diz que se reserva para expor com mais vagar, em outra sessão, as suas opiniões acerca do problema colonial». Cf. «Ultimas notícias. O Congresso da Figueira da Foz. Não se procederá a eleição do Directorio, passando os substitutos para efectivos», A Capital, 17-05-1914.

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Defende a sua posição, igualmente, junto da maçonaria, em sessão da sua loja,

a Pátria e Liberdade. O venerável desta última apressa-se a diligenciar junto de

Bernardino Machado, apelando para a qualidade de maçon do chefe do governo para

fazer justiça à obra de Norton na protecção aos indígenas339.

O lobbying em sede partidária, maçónica e governamental será exponenciado

por uma acção especificamente direccionada à opinião pública, nomeadamente junto

da imprensa. Contará, para tal, com um gabinete informal de três colaboradores,

consigo na metrópole: Fernando Utra Machado, José Cardoso e Tomás Fernandes,

respectivamente governadores da Lunda e do Congo340 e seu chefe de gabinete.

Enquanto Norton descansa em Ponte de Lima, tratam da revisão do texto da

conferência no Centro Democrático, confirmando dados estatísticos e tratando da

edição da brochura correspondente, contactando entretanto a imprensa para fazer

publicar artigos com extractos da conferência, o que acontecerá com o jornal O

Século341. É preciso não baixar a guarda, até porque continuam os boatos, na

metrópole como na colónia, sobre a substituição de Norton, com nomes alternativos

para putativos governadores-gerais a serem constantemente ventilados. Sondado

sobre a possibilidade de Teixeira de Sousa vir a ser o novo governador-geral, Mariano

339

O governador-geral prometera, no acto da sua iniciação à maçonaria, extinguir «efectivamente» a escravatura em Angola, desfazendo as calúnias que sobre Portugal impendiam relativamente a este assunto, e cumprira a promessa. Se sobre a valia da sua obra administrativa em Angola, a loja não se pronuncia, pois o chefe de governo melhor que ninguém a conhecerá, já sobre a valia humanitária da sua obra, com todas as consequências positivas para o bom nome de Portugal, a ‘Pátria e Liberdade’ não pode deixar de chamar a atenção de Bernardino. ANM, Cópia de carta de Fernando Larcher, Jorge Augusto Rodrigues e José Dias Veloso, da Loja Pátria e Liberdade «Ao II e P . Ir Dr. Bernardino Machado», 27-05-1914, mns. e ass., em anexo a carta da mesma Loja a Norton de Matos, 30-05-1914. 340

Cardoso fora substituído interinamente por Jaime de Morais no governo distrital do Congo. 341

A 10 de Junho, Utra Machado informa Norton ter saído o primeiro extracto da conferência de Norton no jornal «O Século» e que sairá um segundo na 6ª feira seguinte. Durante a sua estadia em Ponte de Lima, entre o final de Maio e Junho, Utra Machado manterá contacto epistolar com o seu governador, colocando-o ao corrente das diligências que, juntamente com Cardoso e Tomás, estão a desenvolver para fazer propaganda do governo de Angola. Cf. ANM, P. Correspondência, Cartas de Utra Machado a Norton de Matos, Maio e Junho de 1914. Não é, porém, apenas em Portugal que Norton investe em relações públicas ao seu governo, pagando do seu bolso a viagem a Londres, em comissão de serviço gratuita, para visitar a Exposição Internacional de Produtos Tropicais, na qual Angola ganhará a medalha de ouro para a melhor exibição de sisal e cânhamo (ANM, P. GGA 2, Credencial do Ministério das Colónias, 29-06-1914; e ANM, P. Correspondência, Carta de Wanders a Norton de Matos, dact. e ass., Londres, 27-07-1914).

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Machado responde que se Norton não voltasse, seria uma calamidade para Angola. A

não ser que Paiva Couceiro fosse degredado para a colónia342…

A ida a Lisboa e o investimento na propaganda das suas ideias começam,

entretanto, a compensar. No final de Junho, os ventos começam a soprar de feição

para o desbloqueio da questão crucial do financiamento do seu governo. Na verdade,

sem financiamento adequado, não há missão civilizadora que possa efectivar-se. Para

a República fazer em Angola a obra que na monarquia não foi possível fazer343,

finalmente cumprindo a aspiração histórica do país de constituir um grande império

contemporâneo, é preciso dinheiro. Na visão de Norton, mais do que uma

necessidade, trata-se de um axioma344.

Apesar do grande potencial de crescimento de receitas como o imposto de

cubata345, devido ao avanço quer da malha administrativa quer do grau de

monetarização da economia, a pedra-de-toque do plano financeiro de Norton, que há

um ano tenta fazer aprovar, reside na realização de um empréstimo para ocupação e

fomento de Angola. Para estar à altura do empreendimento, não poderá ser um

empréstimo qualquer, terá de ser feito em grande:

«Para fazer de Angola uma grande colónia é necessário um grande empréstimo. Sem uma operação financeira desta natureza não conseguiremos tirá-la do ponto morto em que se encontra, não conseguiremos fazer a obra a que nos comprometemos perante o mundo (...), continuaremos a caminhar tão vagarosamente que daremos ao estrangeiro, amigo ou inimigo, a impressão de que estamos parados, não poderemos de modo algum iniciar a política de actividade económica sem a qual as

342

ANM, P. Correspondência, Carta particular de Manuel Goes, governador interino do distrito de Benguela, a Norton de Matos, Loanda, 25-04-1914. 343

Norton de Matos, A situação financeira e economica da provincia de Angola…, p. 36. 344

«(…) é bom que se diga que considero como axioma de administração colonial terem as despesas de colónias como Angola de aumentar sucessiva e rapidamente, durante um longo período, até um ponto de saturação, a um estado de desenvolvimento económico, que se revelará por um lento crescimento de receitas próprias da colónia e com empréstimos, cujos encargos sejam compatíveis com os seus recursos». (Norton de Matos, Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914…, 07-05-1913, p. VI). 345

Além deste imposto que, à data, ainda não é pessoal mas sim predial, Norton identifica, no primeiro projecto de orçamento que apresenta ao ministro, outras receitas que podem crescer: receitas provenientes da monetarização da economia da província, acabando-se, assim, de vez com pagamento em géneros e reformando o regime monetário; concessão de salinas do Estado e imposto sobre o sal; imposto sobre o tabaco; imposto de farolagem e balizagem; emolumentos e licenças das capitanias dos portos. Norton de Matos, «Propostas de aumento de receita» in Idem, pp. 3-25.

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colonias de África desaparecerão pela integração em territórios de colónias mais activas, mais empreendedoras.»346

As colónias de outros impérios europeus, cuja radiografia de desenvolvimento

económico Norton tratara de incluir na fundamentação do seu projecto, aí estão para

o comprovar347. A ideia fora advogada um ano antes, em Maio de 1913, acompanhada

de um projecto que a concretizara ao pormenor. Propunha-se pedir emprestado, com

a garantia da metrópole, 20 000 contos, destinados a obras públicas e instalação de

serviços e despesas de ocupação.348 Era o equivalente a 12% do valor das receitas

próprias da colónia do último ano económico cujas contas se encontravam já

fechadas349. Juntamente com o projecto de orçamento para 1913-1914350, o projecto

de empréstimo constitui todo um programa político. A descentralização prometida

pela República tardava em concretizar-se mas nunca poderia deixar de passar, na visão

346

«Empréstimo de 20.000:00 escudos, para ocupação e fomento da Provincia de Angola» in Idem, p. 79. 347

«a curva ascendente que marca êsse desenvolvimento é paralela à que indica os capitais lançados na colónia respectiva por meio de empréstimos». É o caso das colónias da coroa britânica, do Congo Belga e das colónias francesas. Idem, p. 79. 348

O fomento diz respeito a construção, conservação e pessoal de obras públicas, nomeadamente: linhas telegráficas, telegrafia sem fios, estradas, ramais e caminhos-de-ferro de via reduzida (que não incluem, naturalmente, as despesas com os caminhos de ferro de penetração, que deverão ser asseguradas pela metrópole e por grandes companhias que o governo possa fiscalizar), reconhecimento e obras para a navegação dos rios e obras nos portos. A outra tranche do empréstimo é relativa a instalação de serviço e despesas de ocupação, a saber: instalação das circunscrições civis e capitanias-mores e respectivos postos civis e militares (material); aquisição de material de transporte e de animais de tracção; hospitais, ambulâncias, combate da doença do sono e outras, bem como assistência médica aos indígenas; criação de escolas; e serviços agrícolas e pecuários. Idem, pp. 83-84. 349

Em 1911-1912, as receitas próprias da colónia, efectivamente obtidas, foram de 2471 contos: Idem, p. 85. 350

Além da eliminação de verbas destinadas à Igreja, a que já atrás aludimos (demonstrando que a eliminação era apenas da rubrica orçamental com esse nome e não propriamente do financiamento, apesar de se propor que este diminuísse, sendo as verbas destinadas ao pessoal eclesiástico e às missões englobadas noutras rubricas), e da diminuição das despesas com os degredados vindos de fora para a colónia (a diminuição deveria ser o primeiro passo para a eliminação completa tanto desse encargo como da realidade subjacente que fazia de Angola uma espécie de colónia penal de Portugal), Norton faz doze propostas de aumento de despesa que passam pela necessidade de ter um aparelho de funcionários que possa dar corpo ao avanço do controlo da administração colonial sobre o território angolano: 1ª) equiparação dos vencimentos dos governadores dos distritos; 2º) permanência do abono de verba para despesas de representação dos governadores de distrito; 3º) aumento de vencimento a alguns chefes de serviço provinciais; 4º) criação dos lugares de secretários dos governos dos distritos; 5º) reorganização do quadro e vencimentos do pessoal da Imprensa Nacional da Província de Angola: 6º) regularização das despesas com a Guarda Fiscal (Círculo Aduaneiro de Angola); 7ª reorganização da instrução pública; 8ª) criação da Secretaria dos Negócios Indígenas; 9º) aumento de vencimento aos oficiais dos quadros do ultramar em serviço em Angola; 10ª) instalação e conservação do Arquivo Geral da Província de Angola; 11ª) reorganização do serviço dos correios e telégrafos; 12ª) alterações do quadro aduaneiro do distrito do Congo.

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de Norton, por uma diminuição acentuada da dependência financeira do governo da

colónia face ao governo central.

Demorou mais de um ano, e foi preciso que Norton se deslocasse a Lisboa

expressamente para fazer lobbying por essa causa, para conseguir das elites políticas

metropolitanas a concessão dessa que é a sua proposta angular. O valor de 20.000

contos que propusera será, inclusive, duplicado, sendo-lhe concedidos 40.000 contos,

embora apenas ainda em tese. É esse o montante previsto no projecto de lei

submetido por Tomás Cabreira e Lisboa de Lima, respectivamente ministros das

Colónias e das Finanças, à Câmara dos Deputados e ao Senado a 29 de Junho de 1914,

com extensas transcrições das propostas de Norton351. No Parlamento, porém, o

empréstimo acaba por ser dividido em dois: 8000 contos, numa primeira fase, e os

restantes 32.000 contos posteriormente. O deputado Vitorino Guimarães, na

qualidade de relator do parecer emitido pela Comissão de Finanças, justifica esta

emenda com questões técnicas e com a necessidade de salvaguardar os interesses do

Estado, atendendo aos altíssimos valores em jogo, embora elogie o projecto nas suas

linhas gerais352. Já a Comissão das Colónias, num extenso parecer de que António Paiva

Gomes é relator, dá ao projecto o seu «mais caloroso aplauso.»353. Gomes, tal como

Guimarães, é deputado pelo Partido Democrático.

Vemos, assim que, na hora da verdade, os deputados do seu partido acabam

por apoiar Norton, «a cujo zelo pela administração da sua província» o antigo ministro

Democrático, agora deputado, Almeida Ribeiro folga, igualmente, «de prestar

homenagem». Ribeiro deixa, no entanto, antever algumas reservas face ao projecto,

ou não tivesse ele, durante o tempo em que fora titular da pasta das Colónias,

351

O debate mais importante tem lugar no Parlamento (Cf. DCD, Nº 136, Sessão de 29 de Junho de 1914, pp. 70-99), onde são apresentados os pareceres da Comissão das Colónias e da Comissão de Finanças, e intervêm vários deputados, sendo o Projecto de Lei nº 187 -I, subscrito por Tomás Cabreira e Lisboa de Lima (respectivamente ministros das Finanças e das Colónias), aprovado com várias alterações e enviado ao Senado, onde, nesse mesmo dia, é aprovado na sua versão final: «Projecto de lei nº 177-A [para criar um fundo especial para despesas de fomento]» in DS, Nº 130, 29-06-1914, pp. 56-57. 352

Joaquim Basílio Cerveira e Sousa de Albuquerque e Castro, Tomás de Barros Queirós, Joaquim José de Oliveira, Joaquim Portilheiro, Francos de Sales Ramos da Costa, José Dias Alves Pimenta, João Pessanha, Philemon Duarte de Almeida, Vitorino Guimarães (relator), «Parecer da comissão de finanças», 29-06-1914, pp. 93-94. A intervenção de Guimarães no parlamento precede o parecer in Ibidem. 353

Joaquim Basílio Cerveira e Sousa de Albuquerque e Castro, Prazeres da Costa, Álvaro Nunes Ribeiro, Sá Cardoso, António de Paiva Gomes (relator), Parecer n.º 272, sobre o fomento de Angola, da Comissão das Colónias, 12-06-1914 in DCD, Nº 136, 29-06-1914, pp. 70-81.

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protelado a concretização da proposta de Norton. Votaria contra, declara, se não

tivesse, dias antes, aprovado um projecto de lei estipulando que a iniciativa de

qualquer empréstimo era sempre privativa da colónia; e se o projecto não tivesse sido

inspirado numa proposta de um homem da craveira de um Norton. Lisboa de Lima, em

resposta, resume numa frase o que está em jogo: «Lembro a V. Ex.ª que um

empréstimo da natureza dêste nunca se fez.».A verdade é que tão cedo não se fará,

apesar de aprovado também pelo Senado, e de ter sido, parcialmente, transformado

em lei da República no mês seguinte354.

Já em Agosto, na véspera do embarque de Norton para Luanda, serão

publicadas as duas leis orgânicas pelas quais tanto pugnara, finalmente concedendo,

na letra da lei, autonomia administrativa e financeira às colónias355. Aparentemente a

sua ida a Lisboa fora um sucesso. Afonso Costa, desculpando-se por não lhe ter sido

possível ir pessoalmente despedir-se, escreve-lhe a oferecer a sua

«cooperação em tudo o que possa ser útil», fazendo «ardentes votos» para que o seu «queridíssimo amigo, possa no desempenho das altas funções em que está investido, augmentar a lista dos numerosos e valiosíssimos serviços que à nossa Republica e à nossa querida Patria tem prestado»356

«Para guardar», anota Norton na missiva, que recebe já em Luanda. Não

obstante, autonomia, financeira ou administrativa, é coisa que, no terreno, continuará

a não ter nos meses que ainda levará à frente do governo de Angola. Pelo contrário, a

Grande Guerra, que estala nesse Verão, acabará por ser o pretexto para um

cerceamento, no plano militar, dos seus poderes como governador. É certo que

antecipa a data do seu regresso a Angola para poder preparar a recepção e apoio de

retaguarda às forças expedicionárias enviadas por Lisboa para proteger o sul da

colónia de um eventual ataque dos alemães da Damaralândia. Contudo, o comandante

das forças, tenente-coronel Alves Roçadas, irá reportar directamente ao governo

354

A lei respectiva será publicada quase um mês mais tarde, já com a assinatura do novo ministro das Finanças, Lisboa de Lima (Lei nº 256, de 22-07-1914, criando um fundo especial destinado às obras necessárias ao fomento da província de Angola e autorizando o Govêrno a contrair um empréstimo até a quantia de 8.000.000$00 para o início das referidas obras, amortizável a 60 anos, DG, Nº 123, I Série, 22-07-1914, pp. 526-527). Dias antes saíra já uma lei, autorizando o Governo a contrair um empréstimo até a quantia de 2000 contos para pagamento de despesas urgentes da província de Angola, amortizável a 20 anos (Lei nº 252, de 18-07-1914, DG, Nº 120, I Série, 18-07-1914, p. 510). 355

Lei nº 277, DG, Nº 143, Série I de 15-08-1914 e Lei n.º 278, DG, Nº 143, Série I de 15-08-1914. 356

ANM, P. Correspondência, Carta de Afonso Costa a Norton de Matos, Lisboa, 18-08-1914, mns. (mas não do punho de Costa).

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metropolitano. O comando militar da colónia é, assim, subtraído a Norton, o que

considera um golpe mortal na sua autoridade como governador-geral, além de

seriamente prejudicial à eficácia da acção das próprias forças.

Norton ainda tenta, em privado, articular a sua acção com Roçadas e, em

público, manter a aparência de que é ele quem manda. Não obstante, são demasiadas

as vezes em que é mantido no escuro pela metrópole sobre questões militares da

colónia, o que, para uma personalidade como Norton, está no limiar do intolerável.

Vai, não obstante, testando os limites que lhe são impostos pelo Governo de Lisboa.

Como quando, no rescaldo do desastre militar de Naulila357, para conter o

descontentamento e as especulações políticas em Luanda, decide expulsar os alemães

da colónia e apreender os seus navios surtos em portos angolanos, à revelia das

instruções de Lisboa358. Até que a ditadura de Pimenta de Castro sele a sua saída do

governo-geral de Angola359 e o regresso a Lisboa, em Março de 1915.

357

Após um primeiro incidente em 19 de Outubro de 1914, em que o administrador alemão de um distrito do Sudoeste Africano Alemão, acompanhado de algumas tropas, entrou sem autorização em Angola e é morto, juntamente com alguns dos seus homens, em circunstâncias pouco claras (em que as dificuldades de comunicação se juntam ao nervosismo latente na zona de fronteira), no posto de Naulila, para onde fora sob escolta de uma patrulha portuguesa, as tropas alemãs retaliam dia 31, massacrando a guarnição portuguesa do Cuangar, e atacando outros postos militares portugueses até ao Dirico. Em consequência, Alves Roçadas concentra tropas no sul, prevenindo uma possível invasão. Não se dá a invasão mas sim um ataque alemão a 18 de Dezembro, sob o comando do major Franck, ao posto de polícia de Naulila. O destacamento português, comandado pelo capitão Mendes Reis, com 580 homens, sofre uma pesada derrota e retira-se para o Dongoena. O pânico e o caos da retirada impressionaram vivamente Norton que se desloca logo a seguir aos Gambos, onde lhe é feito o relato dos acontecimentos em primeira mão, por um transtornado Alves Roçadas, tendo mais tarde decidido, por motivos patrióticos, destruir as páginas que no seu diário escreveu com as impressões desses dias. Nas suas memórias, não se cansará de sublinhar que na raiz do desastre se encontram as instruções absurdas do governo de Lisboa, mais preocupado em manter a ilusão da neutralidade do que cuidar do prestígio do país. Cf. N. de Matos, Memórias…, Vol. 2, 2005, pp. 399-426. 358

Idem, pp. 425-426. 359

A 30 de Janeiro, dias após a tomada de posse do novo governo, coloca o seu lugar à disposição. Na ausência de resposta do novo ministro das Colónias, coronel Teófilo José da Trindade, apresenta a sua demissão a 4 de Fevereiro. A 8, embarca para a metrópole no vapor Moçambique, deixando o governo entregue ao secretário-geral do Governo de Angola, bacharel Mário Teixeira Malheiros. Não aguarda pela chegada do seu sucessor, general Pereira da Eça, por se ter sentido insultado na sua dignidade pelo ministro, que coloca em causa as suas diligências para resolver a questão do transporte das forças expedicionárias para o sul. (Cf. AHU, Norton de Matos, 9º Relatório Confidencial para Sua Ex.ª o Ministro das Colónias, iniciado no Lobito, 23-02-1915 e finalizado em Loanda, 06-03-1915, 52 fls. dact., com emendas e acrescentos mns. do punho de Norton, ass., c/ carimbo de entrada na Direcção Geral das Colónias em 27-03-1915. Publicado pelo autor nas suas Memórias…, Vol. II, 2005, pp. 436-477, ao qual apõe uma nota introdutória (in Idem, pp. 435-436); PP nº 168, de 08-03-1913 e «Convite» in Suplemento ao BOPA, II Série, Nº 10, 08-03-1915.

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Nos quase três anos que levara à frente do governo de Angola medrara como

político. Não obstante, fora o pequeno círculo que, no partido e no país, se interessa

por temas coloniais, o seu peso no panorama político nacional é ainda pouco mais que

irrisório. Como é que, assim sendo, a sua influência política crescerá a ponto de, pouco

depois, em 1917, ser já um sério concorrente de Afonso Costa e, não tarda, um

símbolo da própria República? O busílis da questão reside na guerra, que irá acelerar

dramaticamente o processo de ascensão do major Norton de Matos na política

democrática e, mais globalmente, na República.

CAPÍTULO III — ASCENSÃO E QUEDA DE UMA NOVA ESTRELA DEMOCRÁTICA (1915-1917)

III.1. O baptismo de fogo revolucionário

É num momento de grande efervescência política que Norton de Matos

regressa a Lisboa, mesmo a tempo do congresso extraordinário do PRP. Será o tiro de

partida para a anunciada revolução que apeará, mês e meio mais tarde, a ditadura de

Pimenta de Castro.

Logo ao desembarcar, a 26 de Março, o ex-governador-geral concede uma

entrevista ao jornal O Povo. Numa altura em que da metrópole embarcam mais

soldados para África, a questão quente é a militar e, em especial, a polémica gerada à

volta dos incidentes de Naulila360, assunto sobre o qual é inquirido. Norton desmente,

como caluniosas, as acusações de cobardia das tropas bem como de deficiência de

direcção e de falhas no transporte e abastecimento dos contingentes. Após protestar

energicamente contra as primeiras duas, atestando a valentia das tropas e a valia da

direcção militar, trata de pôr a tónica naquilo em que teve acção mais directa: o

serviço de abastecimentos e transportes, que dirigiu pessoalmente. Mantém, como é

360

Como já foi sublinhado, «Apesar de na prática este acontecimento ter tido um escasso significado militar e poucas consequências práticas, ele será um dos episódios destas campanhas que a historiografia oficial irá depois recuperar e mitificar, tornando-o um dos símbolos da participação portuguesa nesta guerra, quase ao nível do discurso profundamente mitificado que se construiu em torno da presença nacional na Flandres e sobretudo na Batalha de La Lys. (...) este episódio pela carga de dramatismo que encerrou, pelo tratamento que lhe foi dado pela imprensa, pela sua durabilidade em termos de permanência na agenda política e diplomática, acaba por entrar na dimensão do mito (…)». Marco F. Arrifes, A Primeira Guerra Mundial na África portuguesa: Angola e Moçambique (1914-1918), Lisboa, Cosmos, 2004, pp. 159-160.

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seu timbre, as aparências, calando a realidade da retirada das tropas portuguesas após

a derrota militar, que mais tarde descreverá como um crescendo de pânico, loucura e

delírio361. Cala também a fúria por ter sido ultrapassado na chefia militar máxima da

colónia, defendendo a expedição militar como sua.

Para o balanço da sua obra de reforma e melhoramentos na colónia — o outro

grande tópico da entrevista —. Norton vem prevenido com uma colecção de recortes

de jornais angolanos, de várias tendências políticas, elogiosos da sua acção política,

que prontamente cede ao repórter. Alegando modéstia, quer que a sua obra fale por si

e pelo seu republicanismo, calando os inimigos362. Trata-se da «obra inteligente e

patriotica de um republicano», resume o periódico, que teria sido interrompida por

razões políticas:

«A imprensa de todos os partidos lamenta que renasça o criterio de mudar os governadores segundo a situação politica, prejudicando assim uma campanha metodica e dedicada, que começava a produzir os seus brilhantes frutos.».

Assim sendo, Norton possui dois pergaminhos que lhe serão deveras vantajosos

para franquear a porta da ‘grande’ política nacional em 1915: é militantemente

belicista e foi demitido por Pimenta de Castro. Mais uma vez, está do lado certo da

barricada.

Não admira que, no dia seguinte, os 1200 congressistas do PRP, acolham «com

estrondosos aplausos»363 a moção de louvor a Norton, apresentada, antes da ordem

do dia, pelo vice-presidente da sessão e primeiro orador no congresso, Álvaro de

Castro:

361

«Fomos derrotados em Naulila; retirámos precipitadamente, sem olhar para trás, sem queremos cuidar do que fazia o inimigo; o pânico acompanhou-nos e foi crescendo até se tornar em loucura e delírio.». Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, ed. 2005, Vol. 2, p. 422. 362

«”O que eu fiz póde resumir-se no seguinte: concorrer, por uma administração honesta e bem orientada, para que a Republica se radicasse no coração de todos — europeus e indigenas. Creio que o consegui. O que me preocupou mais foi o desenvolvimento agricola da provincia e, neste ponto, afirmo, sem vaidade, que houve consideraveis progressos. Basta analisar as estatisticas de exportação. Tambem me interessei muito pela organisação administrativa, pela viação, construindo centenas de quilometros de estradas... Mas para que estar-me a ocupar-me de mim? Aqui tem o meu amigo alguns jornaes e representações que respondem, eloquentemente, aos meus inimigos”». «O EX-GOVERNADOR DE ANGOLA CHEGOU ONTEM A LISBOA», O Povo: Diario Republicano da Noite, 27-03-1915, p.2. Até referência em contrário, as citações são desta mesma entrevista. 363

«Situação política: Congresso do Partido Republicano Português», Diario de Noticias, 29-03-1915, p.1.

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«O Partido Republicano Português, interpretando o sentir nacional, saúda nas

pessoas do ex-governador geral de Angola, Norton de Matos, do chefe do estado

maior da coluna em operações em Angola, Maia de Magalhães, e na do clarim do 1º

esquadrão de dragões, Augusto Reis, os gloriosos militares que se batem em Africa

pela honra e integridade da Patria, e afirma a sua fé inalterável no futuro da nação

portuguesa independente, dentro das instituições que o povo livremente adoptou e

manterá pelo seu próprio esforço, sem interferência de quaisquer influencias

estranhas, confiando também em que, através de todos os sacrifícios, se respeitarão

e executarão os compromissos internacionais em que está empenhada a honra

nacional»364.

Vemos, assim, o próprio líder dos Jovens Turcos a elogiar publicamente Norton

e, note-se, a louvá-lo como militar. Norton fora para Angola com a bênção dos Jovens

Turcos e é no seu seio que é acolhido, mal regressa a Lisboa, como não poderia deixar

de ser estando aqueles na vanguarda do movimento pró-belicista em Portugal e, mais

no imediato, na vanguarda da conspiração que desembocará na revolução de 14 de

Maio de 1915 e permitirá o regresso ao poder dos democráticos e da estratégia

belicista.

De volta ao Ministério da Guerra, o major é afecto ao serviço de Estado-Maior

mas é política que fará até à revolução. Os meses de Abril e Maio são passados em

reuniões por todo o país a «preparar o meio revolucionário», falando «a milhares de

pessoas, individualmente, em pequenos grupos e em reuniões maiores à porta

fechada»365. Perante militares e civis, pugna pelo derrube da ditadura, de modo a

acabar com todas as dúvidas em torno da entrada de Portugal na frente europeia da

guerra, essa causa que vê como eminentemente nacional. Sem dar esse passo, está

convicto, Portugal perderá as suas colónias, independentemente do número de

soldados que envie para África.

Em África, os alemães o que fazem sobretudo é ‘provocar’ revoltas indígenas,

incentivando estes últimos a desafiar a autoridade portuguesa. As provocações dos

colonizadores da colónia vizinha a Sul tiveram esse efeito lateral de finalmente

convencer Lisboa a enviar contingentes militares capazes de efectivar a conquista

militar em áreas de Angola onde ela era pouco mais do que simbólica. Foram muitos

364

«Partido Republicano Português. A 1ª Sessão do congresso (…)», O Mundo, 29-03-1915, p.1. 365

De acordo com a versão dada pelo próprio décadas mais tarde. Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 3, Ed. 2005, p. 102.

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soldados do continente e, na visão de Norton, deviam ter ido bem mais. Até porque, é

sua firme convicção, se o país perder as colónias, é a própria independência nacional

que de seguida se perderá. Para a gravidade do que está em causa — o «futuro da

nação portuguesa independente» — a frente africana não basta, é preciso que a

República Portuguesa se bata na Europa.

Se para isso for preciso tornar-se revolucionário, Norton não hesita. Está, aliás,

na companhia lógica dos correligionários que anos antes patrocinaram a sua entrada

na política e que agora o trazem para a junta revolucionária. É não apenas o caso de Sá

Cardoso e Álvaro de Castro mas também de Freitas Ribeiro e António Maria da Silva.

Como de uso, os democráticos contam com um argumento militar de peso: a marinha

de Lisboa, liderada por Jaime Leote do Rego. O sinal para o arranque das hostilidades é

um tiro de canhão do cruzador “Vasco da Gama”, aguardado no quartel-general dos

conspiradores que acaba por ser a casa de Norton em Lisboa, na Rua Sousa Martins.

A oferta da própria casa para o efeito é reveladora do quanto o major está

disposto a arriscar na aventura revolucionária. E também da teia de relações

partidárias, maçónicas e sociais que ligam os revolucionários e os seus apoiantes de

retaguarda… como a que permite a Norton oferecer o telefone de casa do seu ilustre

vizinho do rés-do-chão, o general Correia Barreto, para garantir as comunicações entre

os revolucionários, através do jornal dos democráticos, O Mundo366. À acção da

Marinha, seguir-se-á, sobretudo, a acção da rua, a rua republicana que tão bem os

democráticos sabem movimentar.

Os acontecimentos acabam por sair do controlo dos revoltosos e o resultado

será a mais sangrenta de todas as revoluções ocorridas durante a I República. Para a

imprensa aficcionada, porém, é sangue abençoado:

«Foi sustada a tempo a traição e se bastante sangue custou, bemdito seja ele, porque evitou á Republica um tremendo golpe, que se estava preparando, tão certeiro que decerto a aniquilaria.»367

Norton, que execra turbas à solta, dá o seu melhor para neutralizar os excessos

revolucionários, como a mais que provável morte de Machado de Santos368 ou a

366

Rocha Martins, Pimenta de Castro, Lisboa, Edição do Autor, [S.d.], pp. 199-200 e p. 222. 367

«O que é preciso», O Povo, Suplemento de 16-05-1915, p. 1.

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chacina dos alunos da Escola de Guerra que, segundo boatos em circulação, seriam

todos partidários do derrubado governo de Pimenta de Castro. Quando populares

armados tomam conta da rua, mesmo após a vitória garantida, e, juntamente com os

marinheiros, tentam assaltar essa escola, Norton procura evitar o pior. No balanço do

incidente ficar-lhe-á um amargo de boca por não ter conseguido impedir a morte de

um oficial armado apenas com a bandeira da República369. Tão pouco logrou evitar a

pública humilhação a que foram sujeitos pela turba revolucionária os alunos, futuros

oficiais do Exército. A humilhação terá tido a sua quota-parte de responsabilidade na

criação de um estado de revolta larvar que muito irá comprometer o seu

empenhamento no esforço de guerra futuro.

O que não obsta a que Norton emerja da revolução com uma legitimidade

política acrescida, vital para um republicano de fresca data como ele poder almejar

voos mais largos: a legitimidade revolucionária.

Se a questão da guerra europeia surge como justificação para fazer a revolução,

a verdade é que há quem se reveja numa explicação mais crua: a revolução teria sido

feita para os democráticos voltarem ao poder. O povo teria confiado ao novo governo,

«ainda com as mãos negras da pólvora, a missão de consolidar definitivamente as

instituições e sobretudo — e é este o principal significado da Revolução — a missão

de limpar o funcionalismo militar e civil dos maus elementos e de pedir

responsabilidades dos factos ocorridos.»370

Depois da ‘limpeza’, os democráticos voltam a imperar no aparelho militar e

civil do Estado. Apesar de os membros da Junta Revolucionária, e Norton com eles,

terem feito gala em publicitar que não fizeram a revolução para obter cargos no

governo, a verdade é que garantiram desde logo posições-chave que lhes permitirão

controlar o poder executivo.

Norton adquire uma posição privilegiada junto do chefe do Governo e ministro

da Guerra, o grão-mestre-adjunto José de Castro, pai do líder dos Jovens Turcos. A

imprensa democrática atesta aquela proximidade, sublinhando a superlativa

actividade desenvolvida por Norton. O homem de acção resistiria a perder tempo com 368

José Norton, Norton de Matos: biografia: fronteiras do tempo, p. 223. 369

Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 3, pp. 109-110. 370

«O que é preciso», Suplemento a O Povo, 16-05-1915, p. 1.

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tudo o que o pudesse desviar da tarefa hercúlea de que estava incumbido. Dela

aparta-se momentaneamente apenas para esclarecer os leitores:

«O nosso amigo snr. Norton de Matos - relata o jornal O Povo no dia 16 -, membro da Junta Revolucionária, tem sido de uma prodigiosa actividade. Encontrámo-lo esta tarde no ministério da guerra, onde auxiliava o snr. Dr. José de Castro, que interinamente ocupa a pasta da guerra. Aproximámo-nos e o ilustre republicano olha-nos quási aterrado, receando que fôssemos propor-lhe uma larga entrevista. Queriamos apenas que nos désse uma impressão, embora rápida, do momento e do

que fará o governo. - É simples o que deseja. A ordem está assegurada. As autoridades militares que não mereçam confiança vão ser substituídas por quem a mereça, de forma a evitar perturbações, represálias ou injustiças. A República está hoje consolidada e mais forte do que nunca. Por enquanto nada mais posso dizer-lhe. Mas o que lhe afirmei deve satisfazer todos os republicanos… O snr. Norton de Matos estende-nos a mão, com um amavel sorriso de despedida, e volta á actividade a que o fomos arrancar por um momento.»371

Quatro dias passados sobre a revolução, a posição de Norton na máquina

governamental institucionaliza-se com a nomeação oficial como chefe da Repartição

do Gabinete do ministro da Guerra372, pasta que se encontra nas mãos do próprio

chefe do Governo. A 13 de Junho, é eleito deputado pela sua terra natal, Ponte de

Lima, em eleições ganhas, como é de tradição na I República, pelo partido que domina

o governo que as convocou: o PRP.

Não chega a aquecer o lugar, pois, a 19, assume, finalmente, uma pasta

ministerial: a das Colónias. Já dois dias antes, o seu antigo braço-direito em Angola

para os Negócios Indígenas, Ferreira Diniz, discursando na Sociedade de Geografia de

Lisboa sobre a protecção e assistência às populações indígenas de Angola,

cumprimentara o seu ex-governador, presente na assistência, já como ministro das

Colónias. Não há dúvida que o cargo lhe assenta que nem uma luva e que o próprio

não pretende deixar por mãos alheias o crédito acumulado em Angola. O que não

impede que, sendo um crédito colonial, seja sobretudo um crédito político. É, porém,

um crédito que apenas uma elite lhe atribui. Na verdade, o novo ministro é pouco

conhecido do grande público. Fora da esfera colonial e de um certo círculo partidário e

371

«No ministério da guerra: Duas frases rápidas com o snr. Norton de Matos», Suplemento a O Povo, 1915-05-16, p.2. 372

ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR (AHM)/FO/33/1/Cx 438, [Processo] Nº 956, General reformado José Mendes Ribeiro Norton de Matos.

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maçónico, Norton cai ainda na categoria dos “ilustres desconhecidos”, epíteto com

que a imprensa classifica os ministros do Governo do independente José de Castro373.

O exíguo mês que passa à frente da pasta das Colónias não será suficiente para

alterar essa situação. Tão pouco chegará para justificar a imensa esperança que uma

quantidade inusitada de fãs da longínqua Índia Portuguesa374 nele depositam, ou não

considerassem Norton, de alguma forma, um deles. Na verdade, facto inédito na

história dos ministros da pasta, o ministro conhecia a longínqua colónia como a palma

da sua mão. Não apenas por lá ter vivido largos anos mas, sobretudo, por a ter

literalmente cartografado.

Apesar das expectativas, o novo ministro terá oportunidade, quando muito, de

satisfazer alguns pedidos vindos da grande família maçónica em Angola,

nomeadamente da Loja Pátria Integral, de Luanda, enviados via conselho da ordem do

GOLU.375. Pequenas coisas que o conhecimento do terreno e das pessoas lhe permitem

fazer.

Dificilmente, porém, num mês como ministro em Lisboa poderia concretizar o

que em quase três anos como governador-geral não lograra alcançar em Angola, a

começar pela ocupação efectiva do território. E não apenas no Sul de Angola, onde

continua a decorrer a guerra de conquista. Em carta vinda do Ambriz, António

Figueiredo lembra ao agora ministro o que se passa no Norte da colónia, e, pior ainda,

nos Dembos, às portas de Luanda, no concelho e capitania-mor do Eucoge:

«A area desta ultima deve regular por metade de Portugal e não tendo senão dois postos com 15 soldados indígenas, como se tornará efectiva? Tem V. Ex.ª na provincia soldados e oficiaes bastantes, para agora poder ocupar uma grande parte dela; aproveite-os V. Ex.ª, mandando que, os destrictos do Congo, Quanza e Lunda do Norte, vejam desta vêz realisado o seu sonho de tantos anos “a sua ocupação

373

Sobre este governo que reúne a 22 de Junho para elaborar o programa do governo, o jornal República comenta: «Os ilustres desconhecidos que o compõem com o independente snr. José de Castro á frente» («O dia político», República, 23-06-1915,p.1). 374

E que o bombardeiam com uma chuva de cartas, guardadas por Norton no seu arquivo pessoal. A maior parte terá seguramente chegado às mãos de Norton já após a sua saída da pasta das Colónias, pela qual tão fugazmente passou. 375

Além da colocação de um ‘irmão’ maçon, Norton publica legislação a pedido, como a que aplica às colónias o decreto de 2 Junho de 1911, relativo a pequenas dívidas, com benefícios para o comércio. Concorda ainda em introduzir na futura Carta Orgânica de Angola um preceito remodelando a forma de escrituração usada na Fazenda. ANM, P. Correspondência, Of. 179 da Loja Pátria Integral n

o 363, Val de

Loanda, 21-08-1915, ass. venerável José Augusto Fraco.

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efectiva”. Se por qualquer motivo senão poder realisar, ao menos que se ocupe as regiões dos vários dembos que habitam entre os rios Loge e Bengo. É uma vergonha que às portas da capital da provincia exista tanta gente, sem prestar vassalagem efectiva aos seus dominadores.»376

Providências para alterar duradoiramente este estado de coisas o ministro não

terá tempo de tomar, ocupado como estava em transitar para a pasta onde, na sua

visão do mundo, se jogava o verdadeiro destino das colónias e, em última análise, o do

país: a guerra.

III.2. A longa marcha para a guerra: uma luta em várias frentes

A oportunidade surge a 21 de Julho, num Conselho de Ministros

particularmente agitado que se prolonga pela madrugada de 22 adentro. O tema

quente da reunião é apresentado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros que dá

conhecimento aos colegas do executivo da nota do Governo britânico aconselhando

Portugal a desistir da ideia da intervenção na guerra. Não sendo propriamente um

orador carismático, Norton empolga-se na denúncia da afronta que uma tal nota

constitui para Portugal e, concomitantemente, na defesa da urgência de o país

acelerar, custe o que custar, os preparativos militares para estar em condições de se

defender de qualquer agressão externa. Até ao dia em que até a própria Grã-Bretanha

se veria forçada a emendar a mão e vir solicitar o concurso militar da sua mais antiga

aliada377. Foi, escreverá mais tarde, «uma noite memorável»378 e «uma das grandes

horas»379 da sua vida. Acabado o discurso, a pasta da Guerra era sua. Ganhara

finalmente a nomeação para o cargo, que nesse mesmo dia 22 é formalizada, com a

recomposição ministerial do Governo de José de Castro.

A partir de então Norton enceta uma marcha para a guerra que irá ser longa e,

sob vários aspectos, assaz solitária. Juntamente com Afonso Costa e Augusto Soares

376

ANM, P. Correspondência, Carta de António Augusto Figueiredo a Norton de Matos, Ambriz, 06-06-1915, mns. 377

Sobre o longo período, anterior à oficialização da beligerância, de avanços, recuos e ambiguidades que caracterizou as relações de Portugal com a sua mais antiga aliada, sem o apoio da qual não poderia abandonar a posição oficial de neutralidade, cf. Nuno Severiano Teixeira, O poder e a guerra, 1914-1918: objectivos nacionais e estratégias políticas na entrada de Portugal na Grande Guerra, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp. 183-372; e L. Alves de Fraga, O fim da ambiguidade: a estratégia nacional portuguesa de 1914-1916, Lisboa, Universitária, 2001. 378

Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 3, ed. de 2005, p. 129. 379

Idem, p. 127.

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constituirá o trio que ficará conhecido como a equipa da guerra. Soares encontrava-se

já no Governo, com a pasta dos Negócios Estrangeiros. Costa seguir-se-lhe-á quando

assumir a chefia do Executivo no final de Novembro. Dos três, Norton é o político que

mais literalmente faz para que a República Portuguesa possa ir à guerra. Se Costa e

Soares têm uma acção político-diplomático mais notória, Norton que, como mais

adiante veremos, também actuará no plano da diplomacia de guerra, faz380, antes de

mais, o exército que vai à guerra. Fá-lo para ir à guerra e fá-lo para provar, interna e

externamente, que Portugal estava em condições de o fazer.

O ministro da Guerra é aquele que mais acredita na estratégia do facto

consumado: preparar no imediato o exército como se a República fosse já beligerante

é a única forma de conseguir concretizar posteriormente a acção guerreira. Estar à

espera, pelo contrário, que as diligências diplomáticas surtam efeito, deixando a

preparação do exército para a guerra em banho-maria, é algo contra o qual Norton

luta tenazmente. A identificação com a tendência política que, dentro do PRP, assim

pensa (os Jovens Turcos), não podia ser maior. De facto, não foi apenas por terem sido

estes últimos a patrocinar a sua entrada na política republicana que o ex-governador a

eles de novo se acolhera, à vinda de Angola. Àquela pertença política inicial junta-se

uma identificação de posições quanto ao tempo certo para a guerra. E o tempo certo é

ontem, já passou e deve ser, quanto antes, apanhado. Norton não se podia identificar

mais com esta posição e este timing. Não por acaso, fora Álvaro de Castro a promovê-

lo publicamente na abertura do Congresso Democrático que dera o tiro de partida

para a revolução. Na verdade, já no anterior congresso do PRP, em Maio de 1914,

Castro advogara que o país deveria investir seriamente no rearmamento, com base

num aumento de impostos, sem estar à espera para tal que Inglaterra alterasse a sua

posição quanto à hipótese da beligerância portuguesa. Contudo, a posição dele não

vingara no seio do partido381.

380

Quando falamos aqui em fazer – fazer o exército ou fazer a guerra – recorremos a um conceito usado por dois políticos coevos, António José de Almeida e Jaime Cortesão, quando abordaram o tema da propaganda de guerra em Portugal: a propaganda pelo facto, que desenvolveremos mais adiante. 381

«Álvaro de Castro entrara em conflito com o partido democrático, desde que, em Maio de 1914, no congresso, propusera um aumento dos impostos para se custear o rearmamento». José Adelino Maltez, Tradição e revolução: Uma biografia do Portugal Político do Século XIX ao XXI, Vol. 2, (1910 - 2005), Lisboa, Tribuna da História, 2004, p. 219.

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A partir do Verão de 1915, é Norton quem protagonizará esta tendência, antes

de mais, tudo fazendo para convencer os seus pares no Governo que os preparativos

para a guerra têm de avançar e já. Toma posse da pasta da Guerra no final de Julho e

logo em Agosto chama o general Fernando Tamagnini Abreu e Silva, então

comandante da 5ª Divisão em Coimbra, ao Ministério informando-o que o vai nomear

para comandar uma divisão que ia mobilizar

«em Mafra, Tancos, Vendas Novas, ou onde melhor conviesse, instruíl-a, equipal-a e municihal-a, de forma a estar prompta para qualquer emergência acrescentando que poderia a Divisão ter de marchar para a França para a Africa, ou não chegar mesmo a sahir de Portugal»382.

Nada estando definido politicamente, Norton trata de se acautelar para

qualquer emergência, começando por escolher, do leque de oficiais com a patente de

general não hostis ao regime, um homem que conhecia bem para chefe da futura

Divisão de Instrução. Tamagnini, oficial de Cavalaria de 59 anos, mais onze do que

Norton, acabara de ser promovido a general. Os dois conhecem-se há mais de vinte

anos, quando o então capitão Tamagnini comandava o 3º esquadrão no Regimento

nº4 de Cavalaria do Imperador Guilherme II da Alemanha. Norton, promovido a alferes

a 8 de Janeiro de 1981, fora tirocinar para esse regimento onde, «durante dois annos

consecutivos de intimidade na vida do regimento»383, se criaram as relações pessoais

entre os dois.

O general continuará, durante alguns meses ainda, a exercer o comando da 5ª

Divisão, mas começa desde logo a trabalhar com a equipa que trata dos preparativos

para a mobilização, organização, concentração e instrução das tropas e tudo o mais

necessário para tornar possível que o Exército português fosse à guerra na Europa.

Norton admite, no entanto, que a colocação em marcha da máquina de guerra

foi, em muitos aspectos, mais simbólica do que efectiva durante os meses que

382

Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, Viseu, SACRE, 2004: [1915-1919], p. XVI. 383

Ibidem; Cf., ainda, AHM/FO/33/1/Cx. 438, [Processo] Nº 956, General reformado José Mendes Ribeiro Norton de Matos; São elementos que apontam para que para a escolha deste general em particular não terá contado, unicamente, a escassez de alternativas, pelo menos politicamente correctas, no leque de oficiais com patente de general então disponíveis. Para uma boa fundamentação do argumento da exclusão de partes, veja-se Vitorino Magalhães Godinho, Vitorino Henriques Godinho (1878-1962): Pátria e República, Lisboa, AR & D. Quixote, 2005, p. 139.

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duraram os sucessivos e fugazes governos de José de Castro. O estado lastimoso do

Exército não era nada que, na sua opinião, não se pudesse ultrapassar. Assim houvesse

vontade, organização e dinheiro para o equipar e treinar. É certo que as verbas

previstas estiveram longe de ser efectivamente disponibilizadas, mas o ministro não

desiste. Resguardando-se para melhores dias, Norton finge não parar, como admite

num curioso relatório, em que revela possuir um jogo de cintura político cada vez mais

apurado:

«Varias vezes levei o assunto a conselho, frisando bem a situação em que a Republica ia ficar se mais uma vez suspendesse a sua preparação para a guerra. Reconheci, porem, que tinha quasi que parar e quasi que parei, ou antes parei na realidade e apenas fingi que não parei, porque este fingir o julguei de conveniencia para a Republica.»384

Se o núcleo duro da equipa que o vai auxiliar nos preparativos militares para a

guerra está escolhido385 e, apesar de tudo, a trabalhar, a verdade é que, nos meses

que se seguirão, a sua marcha para a guerra será feita de forma algo voluntarista e

solitária. Basta ler as actas dos Conselhos de Ministros do Governo seguinte, chefiado

por Afonso Costa, para o qual Norton transitará com a mesma pasta. Entre o final de

Novembro de 1915 e o crítico mês de Março do ano seguinte, que finalmente verá a

beligerância acontecer, tanto os seus pares no Governo como o próprio líder parecem

ter alguma dificuldade em acompanhar a pressa de Norton em querer actuar como se

o país estivesse já em guerra. Ou melhor, em actuar como um país empenhado em ter

um exército para entrar nesta guerra e ter um exército para ser país: seja como for, em

ambos os casos, trata-se de salvar Portugal.

Logo na primeira reunião do conselho de ministros do segundo Governo de

Afonso Costa, o ministro dos Negócios Estrangeiros faz de alguma forma depender a

concretização de novas diligências diplomáticas junto de Inglaterra, para conseguir que

esta solicite a beligerância portuguesa, das garantias que o seu colega da Guerra lhe

384

AHM, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1292, Nº 3, Rascunho de «Relatorio do major Norton de Mattos sobre a gerencia da pasta da guerra ao ministério da presidencia do Dr. José de Castro (23 de Julho a 29 de novembro de 1915)», S.l., S.d., 3 +12 fls mns, 1915, fls. 8-9, sublinhados nossos. 385

A equipa, coordenada pelo chefe do Estado-Maior da Divisão de Instrução, major Roberto Batista, é composta pelo major Ivens Ferraz e um conjunto de capitães, entre os quais Maia Magalhães, Matias de Castro, Vitorino Godinho, Fernando Freiria e Helder Ribeiro. Cf. Apêndice nº 105 in Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 3, Ed. 2005, p. 466.

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possa dar386. É verdade que Norton defende, em resposta, que é preciso avançar com

segurança, pois o Exército estava como em Outubro de 1914, aquando do convite de

de Inglaterra para Portugal enviar divisão387. Mas é logo nessa primeira reunião que

Norton propõe que o conselho o oiça sobre os preparativos já feitos para a guerra e os

que falta fazer.

O alvitre repetir-se-á em todos os conselhos de ministros que se seguirão. A

ocasião para discutir o assunto nessa sede, porém, nunca aparecerá. Estranhamente,

os preparativos militares para a guerra não parecem ser suficientemente prioritários

para que o Governo discuta extensamente no seu órgão colegial máximo o que o

ministro da Guerra tem para propor. A excepção são decisões pontuais que vão

paulatinamente sendo tomadas, como o contrato para abastecimento de água ao

polígono militar de Tancos que Norton consegue fazer aprovar em conselho de

ministros a 25 de Janeiro de 1916388.

A posição de Norton nessas reuniões oscila entre a insistência e a exasperação.

Afinal, apesar de todas as palavras e promessas, o Governo e, nomeadamente, Afonso

Costa, sob cujas ordens pela primeira vez Norton trabalha, deixam-no a falar — e a

trabalhar — muito por sua conta. Logo a 30 de Novembro, Norton anuncia que «deseja

poder informar o governo numa das suas próximas sessões»389. A 4 de Dezembro,

reforça a «urgência [que tem em] que o Conselho se dispusesse a ouvi-lo numa sessão

a respeito das aquisições feitas na preparação para a guerra. A 6, fica acordado a

realização de um conselho para conhecimento da preparação que se tem feito pela

pasta da Guerra. Três dias mais tarde Norton volta a insistir «na conveniência de um 386

«Seria uma vergonha que isso [a nossa colaboração] fosse novamente solicitado e nós não pudéssemos corresponder imediatamente. Assim, ele, ministro, actuará quando o seu colega da Guerra o informar satisfatoriamente». A. H. de Oliveira Marques (ed.), O Segundo Governo Afonso Costa (1915-1916): Actas dos Conselhos de Ministros, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1974, p. 11. 387

A. de Paula Coelho and et alia (ed.), Portugal na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Tomo I, As negociações diplomáticas até à declaração de guerra, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, p. 79, doc. 94. 388

Oliveira Marques (ed.), O Segundo Governo Afonso Costa (1915-1916): Actas dos Conselhos de Ministros, p. 96. Na reunião anterior vira, porém, protelada a decisão de avançar o transporte dos quase 300 camiões comprados nos EUA. Norton conforma-se mas deixa registado que, com a continuação dos problemas de transportes marítimos que estão a tornar-se um problema candente, Portugal ainda se arrisca a ficar com os camiões na América, sem ter quem os transporte: «O seu receio é que os transportes se vão tornando cada vez mais difíceis e, não se conseguindo a utilização dos navios alemães, venhamos a ficar com os camions na América.» (Idem, p. 87). 389

Idem, p. 15, até referência em contrário, as citações que se seguem são deste livro de actas, passim.

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Conselho só para assuntos da preparação para a guerra», a verdade é que no início do

ano seguinte ainda nada tinha acontecido. Na reunião de 3 de Janeiro, insta para que

ele se realize para que possa o que tem feito no sentido da preparação para a guerra e

quer «saber também a opinião do Conselho, pois que a resolução de mobilizar quatro

divisões é do Ministério transacto» mas a discussão é mais uma vez protelada.

A clarificação política que anseia tarda a acontecer. E ela é tão mais necessária

quanto o espírito de descrença grassa no seio do próprio Estado-Maior, avisa Norton,

espírito de descrença que se vem juntar ao cepticismo de muitos outros no país,

alimentada pelos mais desencontrados boatos dos vários lobbies antibelicistas.

O boato de que o Depósito Central de Fardamentos iria arder é um deles.

Norton toma medidas extra de prevenção e verifica pessoalmente que estão a ser

seguidas. Debalde. Sabotagem antiguerrista ou não, a verdade é que o Depósito

começa a arder na noite de 13 de Janeiro, estava o Governo em peso a jantar na

embaixada do Brasil. Nas notas que toma no autointitulado Diário do Ministro da

Guerra390 não deixa transparecer que se incline para a hipótese de fogo posto. Nessas

folhas soltas, expressamente escritas para a posteridade, o acento é colocado nas

medidas que tomou antes, durante e logo após o incêndio. Ainda em traje de

cerimónia, dirige-se para o local do sinistro e nele permanece pela noite dentro,

assegurando o controlo dos danos. Consegue que muitos dos artigos sejam salvos, que

a laboração não pare e que tudo fique a postos para que, em algumas semanas, os

artigos destruídos possam ser substituídos.

Aos boatos, Norton prefere responder com realizações e energia, ao contrário

da imprensa e do próprio Congresso da República, que discute e alimenta a tese de

crime. O matutino de referência da capital, O Século, acentua a dimensão do desastre

(«O fogo, pavoroso, de uma grandiosidade invulgar, destruiu quasi totalmente um

390

ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea. Na verdade, esta miscelânea inclui duas versões de um mesmo diário, cuja sequência não é evidente. Mais do que é habitual em Norton de Matos, são ostensivamente escritas para a posteridade, com entradas da mesma data e teor diverso, indicando que pelo menos uma delas terá sido escrita em data posterior. De resto, como é habitual em vários dos diários de Norton, são intercaladas com outro tipo de materiais oficiais e recortes de imprensa.

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dos mais vastos e importantes estabelecimentos do Estado»)391

e as suspeitas do crime. A Câmara dos Deputados quer ouvir o ministro sobre esta

última hipótese e uma comissão de inquérito acaba por ser criada a 19 de Janeiro, por

proposta dos deputados evolucionistas e apoio dos camachistas. A maioria

democrática acaba por viabilizá-la, a contragosto.

A comissão, além de querer saber se terá existido um eventual crime de fogo

posto, aproveita a ocasião para colocar igualmente sob escrutínio parlamentar

alegadas irregularidades na questão da compra de materiais necessários ao esforço de

guerra. O deputado Simas Machado resume assim os boatos que circulam no país e

alarmam a opinião pública:

«É a atoarda que culmina na aleivosia de que o incêndio foi mandado lançar pelos oficiais que são contrários à ida do exército para a guerra. Outra diz que o incêndio foi pôsto para se encobrir desfalques que havia no conselho administrativo daquele estabelecimento militar e ainda uma terceira assevera que se trata de liquidar certos e determinados abusos que se tem dado na compra de artigos e material destinado à preparação para a guerra. É uma atmosfera asfixiante, que é preciso desfazer-se, por qualquer forma, para honra e prestígio das instituições.»392.

Presente na sessão parlamentar, o ministro da Guerra dá o seu voto à proposta

«porque entende que ao Parlamento não deve ser coarctado o amplo direito que

tem de examinar todos os assuntos.»393.

Lembra, não obstante, que está já a decorrer um inquérito militar e que se

deve ter a maior cautela em lidar com a questão, pois os inimigos do país estão à

espreita. Falar do assunto desta forma pública, transformando-o num mote de chicana

partidária, é, para o ministro, algo absolutamente contrário aos interesses nacionais.

Numa palavra: inconvenientíssimo, como dirá aos deputados democráticos Barbosa de

Magalhães e António da Fonseca, eleitos para a comissão de inquérito, quando, na

noite do dia 25, o visitam em sua casa para o pôr a par da evolução dos trabalhos:

«Mais uma vez disse que tudo, sem uma única excepção, seria mostrado a Comissão; que era absolutamente necessário o maior sigilo em tudo que dissesse respeito a nossa preparação militar; que de modo algum podia permitir que me colocassem na situação de ministro sindicado; que preferia dar por escrito os esclarecimentos que a

391

«Um incêndio formidável: O Deposito de Fardamentos para o Exercito Destruido pelo Fogo», O Século, 14-01-1916. 392

DCD, Sessão nº 24, 19-01-1916, pp. 250-251. 393

DCD, Sessão nº 24, 19-01-1916, p. 253.

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comissão entendesse dever pedir-me.»394.

Bem ele sabe que o que o coloca nas bocas do mundo é a determinação em

avançar, contra ventos e marés, no sentido da beligerância. A comissão não passaria,

na sua opinião, de uma manobra

«contra a preparação do nosso exercito e contra a nossa logica intervenção na guerra, que será um facto desde que um exercito esteja preparado: - quer-se envolver o ministro numa onda de lama, que afogue todas as vontades, todas as energias, que faça cahir o ministério da Guerra numa onda de lama, que faça cahir o ministro e dispersar todos aqueles, poucos ainda, que o cercam.»395

Nesses dois meses de intensa ambiguidade antes que tudo se passe a encaixar

sob o chapéu oficial da beligerância, o ministro alterna entre a acção enérgica e

fazedora e o desânimo:

«Tenho horas em que o desanimo me dilacera, e esta é uma delas. - As encomendas feitas no Estrangeiro, e com as quais tanto dinheiro já se gastou, estão cercadas de milhões de dificuldades para se realizarem: - são demoras continuadas na remessa do latão de Hespenha; a despeito do fornecimento de granadas levantam-se duvidas que não sei como hei-de resolver; a remessa dos camions da America para Lisboa, quer pela elevação do preço dos transportes e das dificuldades de os arranjar, quer pela exigência do governo inglês em não deixar vir os artigos de borracha, que aos camions pertencem, se não via Inglaterra; a dificuldade de transporte dos cavalos adquiridos na Argentina; e todas as outras demoras, entraves e dificuldades de toda a espécie relativas a encomendas feitas la fora, - preocupam-me sobremaneira. Na montagem do campo de Tancos vejo também parado, ou a andar com assombroso vagar, apesar de todas as minhas instancias e insistências, a montagem da agua e a construção das barracas. Agora o incêndio do Deposito Central de Fardamentos, os enormes prejuízos que representa, as dificuldades quasi insuperáveis em que me coloca. Isto tudo junto ao resto: - á falta de organização de quasi todos os serviços do Paiz; ás resistências passivas e más vontades de toda a espécie; aos nenhuns hábitos de trabalho; á perturbação causada em serviços que exigem a maior atenção do Ministro em cada instante pelas estéreis e irritantes questões parlamentares; os milhares de assuntos requeredores mas inadiáveis, a tratar pela pasta da guerra.

Poderei vencer tudo isto…»396.

Quando, a 22, o Executivo discute a polémica gerada à volta do caso do

incêndio, Norton volta a lembrar que ainda não tinha podido partilhar com o conselho

«tudo o que sobre preparação para a guerra se tinha feito», «como repetidamente o

tem pedido». Ainda não será dessa vez que lhe será dada essa oportunidade, pois, na

394

ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea, entrada de 25-01-1916, mns. 395

Idem, entrada de 22-01-1916, mns. 396

Idem, entrada de 06-01-1916, mns.

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semana seguinte, 28, relembrará os colegas da urgência em pôr termo à indefinição

quanto aos preparativos militares para a guerra pois

«há muito que desejava saber se a opinião deste ministério é conforme á resolução do anterior, de se prepararem quatro divisões, a fim de se poder fazer qualquer expedição sem que o País ficasse desguarnecido e sem reforços preparados.»397.

Não consegue levar a sua avante em sede de conselho de ministros. Na véspera

à tarde, porém, dera cartas no Senado. Na verdade, o senador António Campos, que o

acusara na imprensa de ter praticado no Ministério da Guerra irregularidades graves, é

incapaz de as concretizar398, situação que se repete em sessões subsequentes, para

desgosto da oposição camachista, nomeadamente do seu líder, Brito Camacho399.

Norton, no seu diário, não poupa nas palavras. As oposições estarão a fazer um

descarado aproveitamento político do sinistro no Depósito Central de Fardamentos. A

reboque do evento, são levantadas suspeitas sobre alegadas irregularidades nos

fornecimentos para o Exército:

«As oposições, e principalmente os camachistas, desceram ás maiores baixezas para criarem dificuldades ao governo e aos democráticos. Sahi enojado e desanimado com tal procedimento; e a direita da Camara figuram-se-me como aqueles pinhaes da

397

E reforça a ideia: «É necessário assentar nisto, independente de irmos ou não para a beligerância. Depois das expedições [em África] ficámos sem valer militarmente nada. Não se trata já de dar execução imediata à execução do exército, mas de sair da situação vergonhosa em que estávamos, sem material, sem organização, sem disciplina – um zero. Assim nunca poderemos servir senão de impedimento. Poderemos receber uma ou outra amabilidade devido aos serviços económicos prestados, mas nunca receberemos a consideração e conta devidas. Hoje tem a impressão de que alguma coisa se pode fazer para até ao fim de 1916 não continuarmos nesta vergonha. Há pessoal, e o animal [sic] do País, com as compras feitas lá fora, é suficiente. Dos 4000 cavalos precisos, há já adquiridos 1500. De fora precisa de receber artilharia, camions e armas, visto termos só uns 50 000 cartuchos e as máquinas encomendadas para os trazerem terem ficado em Hamburgo por motivo do começo da guerra, não podendo ser substituídas pela indústria nacional antes de um ou dois meses mais. Para o resto conta com a indústria nacional. A verdade é que a incerteza em que andamos prejudica fundamentalmente todo o trabalho. Crê que a nossa posição geográfica, colonial e relações internacionais nos impõem cuidar da organização do exército. Vamos para a guerra? Não vamos? O caso não influi na necessidade de nos prepararmos para a guerra. O exército não serve para outra coisa, e nós ou temos ou não temos exército. Continuar no regime de manifestação em que temos vivido, não. As ordens que tem dado são para se prepararem quatro divisões, mas tem tudo quase suspenso. Se lhe derem facilidades económicas, conta corresponder militarmente. Mais tarde será impossível porque até o pouco material encomendado já lá ficava fora por falta de transportes.». Oliveira Marques (ed.), O Segundo Governo Afonso Costa (1915-1916): Actas dos Conselhos de Ministros, pp. 101-102. 398

ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea, entrada de 27-01-1916, mns. 399

«Foi mais uma machadada que o homem deu em si mesmo. Detalhe lastimável: - o Brito Camacho, apesar da sua situação, não resistiu a entrar a passo de lobo (…), no Senado, logo que A. Campos principiou a falar, afim de assistir a qualquer escândalo. Pouco tempo depois sahiu desiludido e triste.». Idem, entrada de 15-02-1916, mns.

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minha terra a respeito dos quaes, ao passar por eles, na minha infância me contavam historias de quadrilhas de salteadores, que assaltavam os transeuntes desprevenidos com tiros de bacamarte á queima roupa, com punhaladas á queima roupa pelas costas, para lhes roubarem a bolsa e a vida para, muitas vezes, fazerem desaparecer, a soldo e por ordem de outrem, qualquer existência que não lhes convinha, por ser externo ou impecilho a qualquer procedimento menos digno. Sicarios infames e cobardes…» 400

A marcha do ministro Norton de Matos para a guerra é, na verdade, uma luta

em múltiplas frentes. À frente militar, governamental e partidária, Norton junta ainda

uma outra: a rua. Ainda antes de a beligerância portuguesa estar definida, a crise das

subsistências, agravada pelo açambarcamento e especulação económica, faz-se sentir

fortemente em Portugal. O novo conceito de guerra em curso — total no modo como

envolve o conjunto das sociedades e das economias — não poupa os neutros, com

efeitos devastadores a nível social.

Na noite de 29 para 30 de Janeiro de 1916, eclodem motins populares, com

saques e destruição de estabelecimentos de venda e armazenamento de alimentos,

que preanunciam as revoltas da fome do ano seguinte. Com o chefe de Governo e o

Presidente da República no Porto, onde foram comemorar o 25º aniversário da revolta

republicana de 1891, serão os ministros da Guerra e do Interior a lidar com a onda de

assaltos descontrolados a mercearias por populares em fúria em Lisboa401. Norton vê

aí a mão dos espanhóis cujo fito seria causar a queda do Governo e travar a marcha

para a guerra. É verdade que é nesses termos que informadores vários o previnem na

noite de 28 de Janeiro: após o saque geral da cidade, seguir-se-ia uma revolução. O

ministro corre a avisar os colegas dos Estrangeiros e do Interior e fica em casa deste

último até altas horas da madrugada.

A responsabilidade do «movimento», como se lhe referirá o Governo em nota

oficiosa que publica na imprensa do dia 31, teria sido de «agitadores dos movimentos

operarios»402. Frustrados por não terem conseguido levar avante uma greve geral,

400

Idem, entrada de 11-02-1916, mns. 401

O “movimento” da madrugada do dia 30 em Lisboa insere-se numa onda de contestação com protagonistas, características e geografias variadas, que vão desde o movimento grevista de Dezembro de 1915, à tentativa falhada da UON de greve geral, comícios, greves e motins em Lisboa, Évora, Santo Tirso e outros locais. Cf. Ana Paula Pires, Portugal e a I Guerra Mundial : A República e a Economia de Guerra, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2011, pp. 171-175. 402

«Nota oficiosa», O Mundo, 31-01-1916.

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teriam aproveitado a carestia da vida como pretexto para agitar a população. A nota

lança ainda uma suspeita nebulosa sobre gente que teria sido recrutada pelas casas de

jogo. A alegada intenção seria provocar uma manobra de diversão para manter o

Governo ocupado com outros assuntos que não a repressão do jogo.

À rebuscada explicação do Executivo, O Século da Noite contrapõe «a situação

aflitiva das classes pobres» e o «desespero d’uma população que se vê lutando com as

maiores dificuldades económicas»403. Estas causas explicariam, respectivamente, os

assaltos a armazéns de víveres e a fúria gratuita com que a populaça destruira

património. E aconselha o Governo a atalhar o mal de vez, controlando os

especuladores e os açambarcadores.

É uma revolução que Norton acredita ter evitado, no balanço que faz no seu

diário, já depois de tudo passado, dia 31:

«Os tumultos da noute de 29 para 30 foram o inicio de uma revolução que se sufocou, porque se manteve a ordem publica (exercito, guarda republicana e fiscal) numa só mão, - a minha. Se não fora isso, se não fossem as ordens que dei, a confiança que a todos inspirei, talvez hoje tivéssemos no poder Pimenta de Castro ou

cousa peor.»404

A convicção do ministro não é, no entanto, partilhada pelos 17 grémios e

grupos que, reclamando falar pelo povo republicano, assinam um manifesto

distribuído pelas ruas de Lisboa no dia 5 de Fevereiro, reclamando a demissão do

ministro do Interior por, apesar de todos os sinais, não ter prevenido os tumultos nem

os ter reprimido com suficiente «decisão, energia e acção»405. Um incrédulo Norton

anota na cópia que guarda no seu arquivo pessoal para memória futura:

«Profundamente injusto, sem a menor razão de ser e altamente inconveniente.»406

Ainda não será desta vez que Norton assumirá publicamente o ónus da

repressão da rua republicana. É apenas uma pequena amostra do que o espera

quando, no ano seguinte, for ele a liderar publicamente a repressão.

403

O Século da Noite, 30-01-1916. 404

ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea, entrada de 31-01-1916, mns. 405

ANM, União Lusitana et alia, «MANIFESTO AO POVO REPUBLICANO, Lisboa, Tip. d’ A Modesta, S.d. [distribuído a 05-02-1916], 1 fl. imp., anotado por Norton de Matos, incluído no Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea . O ministro do Interior é atacado pela inércia e ineficácia com que teria lidado com os assaltos, de que se falava há pelo menos 2 meses. 406

Idem, anotação de Norton de Matos.

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Os acontecimentos entretanto precipitam-se, conjugando-se para que Portugal

entre oficialmente na guerra em Março. O ministro da Guerra já não precisará de

insistir com os colegas de Governo para a clarificação dos termos em que devem ou

não ser reforçados os preparativos para a beligerância. Na verdade, a urgência da Grã-

Bretanha em neutralizar os navios alemães surtos em portos portugueses, forçando o

Governo português a apreendê-los, leva-a a ceder à pressão deste último: a requisição

dos navios será feita, sim, mas ao abrigo da Aliança Anglo-Portuguesa. A contragosto,

o Governo inglês concorda com a invocação da Aliança e a República Portuguesa

consegue, finalmente, a garantia desejada. Apreende os navios a 23 de Fevereiro

sabendo que, quando a Alemanha previsivelmente declarar guerra a Portugal por via

desse acto, a Inglaterra apoiará a beligerância do velho aliado. O acto da apreensão,

bem como o modo como é realizada, é considerado por Norton como uma

manifestação de patriotismo e de vitalidade do país:

«Realisou-se finalmente hoje a requisição dos navios alemães. Tudo correu bem. Talvez fosse melhor dispensar a salva á bandeira portuguesa; mas por outro la[do] temos necessidade de firmar o nosso patriotismo, de praticarmos certos actos que mostrem a nossa vitalidade. Hontem alguém aventou a ideia, de se esperar ainda mais, que não estavam as cousas preparadas, que eram absolutamente necessárias pelo menos 24 horas… Opus-me tenazmente; eram 11 horas; pois tudo devia estar feito antes do pôr do sol. E assim foi apesar de só se conseguir dar a ordem ao Leote do Rego ás 13 horas.

Veremos agora o resto. Mas julgo que isto um grande passo para diante, e sinto -me com mais animo e vontade para trabalhar.»407

Quando, a 9 de Março acontece o expectável — a declaração de guerra da

Alemanha a Portugal — e o país entra formalmente em guerra, Norton conserva a

pasta da Guerra no Governo dito de União Sagrada, formado logo na semana seguinte.

Pode finalmente acelerar os preparativos militares, altamente ambiciosos. O objectivo

é, a um tempo, tornar o polígono de Tancos, no centro do país, numa estrutura capaz

de acolher duas dezenas de milhares de portugueses e transformá-los em soldados

prontos para ir combater na frente europeia.

Nem por isso pode abrandar a sua luta no plano político, nas várias frentes,

incluindo a maçónica. Tal como na frente partidária, também a maçonaria é

407

ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea, entrada de 23-02-1916, mns.

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atravessada por fracturas no posicionamento de cada um dos seus membros perante a

beligerância portuguesa. Compreensivelmente, Norton permanece fiel ao grupo que,

entre o mundo partidário e o mundo maçónico, mais se identifica com a Jovem

Turquia, para o qual a ida para a guerra não admite tergiversações. A este propósito, a

reaproximação de Norton a este núcleo, com a sua inesperada incursão pela via

revolucionária no ano anterior, poderá ajudar a explicar a mudança de loja maçónica,

da Pátria e Liberdade para a Acácia, e, sobretudo, a altura em que a mudança se dá, a

12 de Maio de 1916408.

No início do mês, Norton recebera uma convocatória do Supremo Conselho do

33º Grau do Rito Escocês Antigo e Aceito (Grémio Luso-Escocês)409, Obediência

maçónica surgida em 1914 em dissidência ao Grande Oriente Lusitano Unido, levando

consigo muitas lojas, entre as quais a loja de Norton, Pátria e Liberdade. O Supremo

Conselho, em conjunto com a Comissão Central, os Veneráveis das Lojas e os

presidentes das Câmaras rituais, informam ter reunido

«para resolver sobre o modo de agir na presente conjuntura em que fomos compelidos a entrar como beligerantes»410.

Na magna-reunião fora decidido indigitar uma Grande Comissão para tratar do

assunto, composta por dois membros do Governo (além de Norton, também o seu

colega da pasta do Fomento, Francisco Costa) e várias outras personalidades. Entre

elas, o venerável da Pátria e Liberdade, Fernando Larcher, e, presidindo à comissão, o

próprio grão-mestre da Obediência, o general Luís Augusto Ferreira de Castro.

Apesar de, em circular anexa à convocatória, constar um programa de

trabalhos que passa por acções de propaganda patriótica que incentivem «actos de

coragem, patriotismo, decisão e solidariedade» para que Portugal não sucumba no

408

ARQUIVO DO GRÉMIO LUSITANO (AGL), Livro 5, Registo 8351. 409

O Supremo Conselho do 33º Grau do Rito Escocês Antigo e Aceito, também conhecido pela associação de instrução e recreio que lhe dava personalidade jurídica e existência legal, Grémio Luso-Escocês, estava separado, desde 1914, do Grande Oriente Lusitano Unido, constituindo-se desde então como Obediência maçónica autónoma, de que a loja de Norton, ‘Pátria e Liberdade’, passara também a fazer parte, desligando-se do GOLU. 410

ANM, P. Grande Guerra e Diversos, Supremo Conselho do 33o Grau do Rito Escocês Antigo e Aceito,

«Convocação ao muito caro Irmão José Mendes Ribeiro Norton de Mattos», Lisboa, 4-5-1916.

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conflito411, dificilmente a visão de Norton em relação à entrada de Portugal na guerra

podia ser mais oposta ao texto e, sobretudo, ao subtexto daquela convocação,

segundo a qual Portugal teria sido compelido a tornar-se beligerante.

Na visão do ministro da Guerra, trata-se precisamente do oposto. A

beligerância portuguesa fora uma conquista do lobby guerrista, pela qual tivera de

lutar tenazmente, inclusive no seio dos vários ministérios de que fez parte, para fazer

vencer. É fácil compreender como para Norton seria delicado permanecer numa loja, e

numa obediência maçónica, que, apesar de pretender colaborar no esforço de

propaganda, sofria, compelida, a beligerância, ele que era o ministro que tudo fizera

para que essa beligerância se tornasse realidade.

Vencida já essa batalha, começavam a chegar a Tancos as primeiras

companhias da Divisão de Instrução. Norton encontra-se numa fase crucial da missão

pela qual batalhara contra ventos e marés. Assim, dificilmente será coincidência que

apenas uma semana após a recepção da convocatória do Grémio Luso-Escocês, o

ministro da Guerra se mude para a Acácia, de Lisboa, do Rito Francês, reentrando

assim na obediência do Grande Oriente Lusitano Unido. Na nova loja, reencontra o

amigo Sá Cardoso, expoente dos Jovens Turcos.

A mudança para a Acácia consagra, concomitantemente, a mudança ocorrida

no perfil de Norton desde que saíra de Lisboa para assumir o governo de Angola. A

Pátria e Liberdade, para a qual fora primeiramente recrutado, era uma loja

profissionalmente engajada como loja de militares, como vimos no Capítulo 1. A

Acácia, a que agora se liga, é mais heterogénea do ponto de vista profissional, além de

ter um perfil mais político. É indiscutivelmente mais consentânea com o perfil de

Norton em 1916, definitivamente muito mais político do que apenas militar ou

colonial.

Se a maçonaria o recrutara para uma loja de militares numa altura em que

acabara de ser nomeado para um palco político secundário em relação à ‘grande’

política metropolitana (basta lembrarmo-nos que, em 1912, um governador-geral nem

411

ANM, P. Grande Guerra e Diversos, Supremo Conselho do 33º Grau do Rito Escocês Antigo e Aceito, Circular «Ás RResp CCam e OOf da Obediencia», 5 de Maio 1916, anexa à «Convocação» citada na nota anterior.

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o orçamento do seu governo podia decidir), as provas dadas no seu primeiro governo

de Angola, e a forma decidida como lidara com os interesses contraditórios das

oficinas maçónicas angolanas e, sobretudo, com os governos metropolitanos,

provaram que tínhamos político. E tínhamos maçon.

A esses activos, Norton juntara entretanto outros trunfos. Não só passara pela

prova de fogo da revolução, como trabalhara pela causa da guerra de tal forma que,

declarada a beligerância, se encontrava numa posição-chave para conduzir o exército

para a guerra europeia — tarefa com uma vertente eminentemente política.

Na verdade, entre a Primavera e o Verão de 1916, o campo militar de Tancos

será o argumento fulcral que espalda as negociações portuguesas com Londres para

definir os termos em que se efectivará a cooperação por causa da guerra. A 15 de

Julho, com a operação Tancos já em marcha, Portugal está em condições de

finalmente corresponder ao convite formal do Governo de Sua Majestade que

«cordially invite any further military cooperation on the side of the Allies in Europe that She feels Herself able to afford»412.

A fórmula diplomática usada para o cordial convite de 15 de Julho, apesar de,

por si só, constituir já uma vitória diplomática para o Governo da União Sagrada, não

significa que as tropas portuguesas treinadas em Tancos fossem desejadas pela Grã-

Bretanha na frente ocidental. Na verdade, dois dias após o convite formal dos

britânicos para a cooperação militar portuguesa na frente europeia, a Grã-Bretanha

manifesta uma forte resistência a que o adido militar britânico marque presença no

maior exercício militar da história de Portugal, preparado para mostrar que estava

pronto a combater na Europa ao lado da sua velha aliada. O Governo francês de

Aristide Briand ainda não conseguira convencer o Foreign Office a enviar à parada

militar de dia 22 o major Grant, adido militar britânico junto da Legação Britânica em

Madrid que acumulava funções idênticas junto da Legação do seu país em Lisboa. O

receio que os espanhóis considerassem uma provocação a presença em Portugal de

412

«H.M.’s Government fully reconizes the loyalty of Portugal and the assistance She is already giving, and cordially invite any further militar cooperation on the side of the Allies in Europe that She felles Herself able to afford. The War Committee is being consulted as to the steps that should be proposed in order to concert the necessary arrangements for that object». Of. de Sir Eyre Crowe ao Ministro de Portugal em Londres, citado e comentado por Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, vol. 3, ed. 2005, p. 224.

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um diplomata britânico sediado em Madrid, a assistir a manobras militares num país

beligerante, acaba por ser ultrapassado in extremis pela pressão diplomática

francesa413. O major Grant acabará por estar presente na parada de Montalvo,

juntamente com o colega francês:

«Dans la pensée de M. Briand cette manifestation permettra de faire avancer la question de la Mission Militaire Mixte Franco-Anglaise en vue de déterminer la valeur d’un coopération portugaise sur le front français.»414.

Norton, que interinamente acumulava a pasta dos Negócios Estrangeiros com a

da Guerra, bem conhecia a força da pressão espanhola. Tinha, aliás, protagonizado um

incidente com o ministro da Espanha em Lisboa. Este manifestara-lhe, de forma que

considerara insolente, preocupações com as manobras militares em preparação em

Tancos, não fossem elas significar intuitos bélicos contra Espanha. Colocado o

representante diplomático espanhol no seu lugar, Norton não se livra depois de ouvir

comentários depreciativos ao facto de não ser, ele próprio, diplomata de carreira.

Leva, porém, a sua avante. De facto, consegue, na hora, o apoio do chefe do Governo e

do Presidente da República para que seja feito um protesto formal junto do Governo

espanhol pelo que é considerada uma tentativa de ingerência nos assuntos

portugueses415. Acabará, sobretudo, por ter a satisfação de verificar que não só o

Governo do conde Romanones não consegue evitar a vinda de Madrid do adido militar

britânico como, até, envia expressamente para assistir à parada de 22 de Julho dois

oficiais seus.

Após uma prolongada luta em sede governamental, partidária, maçónica e

diplomática — para já não falar da frente militar e da própria ‘rua’ – Norton investe

fortemente num tipo peculiar de propaganda: a propaganda pelo facto.

413

NATIONAL ARCHIVES - UNITED KINGDOM (NA-UK), FO 371/2761, Paper 138943, Tel. urgente do Foreign Office (FO) a Sir A. Hardinge, embaixador em Madrid, 19-07-1916: «Military authorities are doubtful how Spanish government would view visit of Military Attaché to a belligerent coutry and think it might prejudice his position vis-à-vis Spanish Military Authorities on his return. They would like your opinion on the matter and will abide by your decision. Please reply as soon as possible whether you see any grave objection: French Government are most anxious that Military Attachés should attend. As Military Attaché was appointed to both Lisbon and Madrid, it would be unreasonable that an official visit to the former place should cause him any prejudice in eyes of Spanish Military authorities». 414

NA-UK, FO 371/2761, Paper 138943. 415

Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, vol 3, ed. 2005, pp. 226–230.

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160

III.3. O milagre de Tancos: facto que dispensa propaganda?416

III.3.1. A operação Tancos e o conceito de propaganda pelo facto

A consagração de Norton na hagiografia republicana como o grande obreiro do

milagre de Tancos não surge apenas por via dos seus méritos intrínsecos por ter sido o

cérebro da complexa operação logística de transformação do polígono de Tancos

numa nova cidade portuguesa. Nem tão pouco apenas por via da sua capacidade de

coordenação da complexa máquina organizativa que permitiu mobilizar, transportar e

treinar militarmente várias dezenas de milhares de portugueses, vindos de todos os

pontos do país, preparando-os para o combate no teatro europeu da guerra no que

virá a ser o Corpo Expedicionário Português (CEP).

A essa consagração, que se inicia nos cerca de três meses de maior intensidade

do treino militar em Tancos, de finais de Abril a finais de Julho e inícios de Agosto de

1916, e que fará estrada por muitos e longos anos, não é alheia a atenção que desde

cedo o ministro da Guerra prestou à propaganda política417, a par de todos os outros

aspectos logísticos cuja montagem teve que providenciar, ou seja, da realidade de

Tancos propriamente dita418.

416

Para a redacção final deste subcapítulo retomámos, parcialmente, textos nossos que foram sendo, em versões preliminares, apresentados a debate no seio da comunidade académica, ao longo do período de elaboração da tese: Helena Pinto Janeiro, «Norton de Matos e o Milagre de Tancos: Entre o Mito e a Realidade» in Maria Fernanda Rollo et alia (coord.), From the Trenches to Versailles: War and Memory (1914-1919), Colibri, no prelo [texto de 2009]; Helena Pinto Janeiro, «Tancos: A Génese de um Milagre» in Pedro Aires Oliveira, Maria Inácia Rezola (coord.), O Longo Curso: Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira, Lisboa, Tinta-da-china, 2010, pp. 87-106; Helena Pinto Janeiro, «The People in Arms in the People’s Entertainment: Cinema and Political Propaganda in Portugal (1916-1917)» in E-Journal of Portuguese History, vol. 11, nº 2, Winter 2013, pp. 50-73. O corpo de fontes trazidos à colação nos primeiros dois textos que referenciámos foram posteriormente revisitados, sob a perspectiva das Ciências da Comunicação, por Noémia da E. P. Malva Novais, A imprensa portuguesa e a guerra 1914-1918: os jornais intervencionistas e anti-intervencionistas: a acção da censura e da propaganda, Tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, FCSH da UNL, 2013, pp. 182-193 (policopiada). 417

Sobre a acção de Norton de Matos no campo da propaganda, veja-se, para além dos textos referidos na nota anterior, Jorge Pais de Sousa, «Da propaganda da guerra nos governos da “União Sagrada”, à construção de uma máquina de propaganda política, em plena ditadura, ao serviço do militar e catedrático Sidónio Pais (1916-1918)» in Maria Fernanda Rollo et alia, From the Trenches to Versailles: War and Memory (1914-1919), Colibri, no prelo (policopiado). Agradeço ao autor ter-me facultado este texto. Num outro registo, ensaístico, Vasco Pulido Valente considera que toda a acção de Norton de Matos enquanto ministro da Guerra e, nomeadamente, a criação do Corpo Expedicionário Português, na sequência da operação Tancos, não terá passado, ela própria, de «uma pura peça de propaganda.» (A “República Velha”(1910-1917): Ensaio, Lisboa, Gradiva, 1997, p.97). 418

Sobre o milagre de Tancos, neste seu significado mais literal, veja-se Isabel Pestana Marques, «O Show de Tancos», Das Trincheiras, Com Saudade: A Vida Quotidiana dos Militares Portugueses Durante

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O ministério de Norton promove, ao mais alto nível, um leque de reportagens

sobre Tancos muito variado, usando vários suportes ao seu dispor: a escrita, a

fotografia e o cinema, recursos militares e controlando de várias maneiras os civis,

nomeadamente os jornalistas e, em especial, os repórteres.

É neste aspecto em particular de Tancos que nos iremos concentrar de seguida

porque nos parece particularmente revelador do talento político de Norton. No que só

aparentemente é um paradoxo, o ministro fazedor não desdenha a propaganda – um

conceito então em mudança acelerada.

Quanto o ministro português da Guerra finalmente avança com a operação

Tancos, está em curso uma autêntica mudança de paradigma na relação entre os

Estados e a propaganda que já foi caracterizada como «the world-wide 20th century

shift to massive state participation in the manipulation of public opinion»419. É uma

viragem que se dá a ritmos e escalas diferentes nos vários países beligerantes420.

Em todos eles, as fronteiras entre propaganda e informação eram, então,

extraordinariamente fluidas. Propaganda era frequentemente sinónimo de informar,

dar a conhecer, mais do que controlar ou manipular. A necessidade de «medidas de

carácter moral tendentes a preparar o espírito público para a cooperação na guerra

europeia»421 é, no entanto, defendida por intelectuais portugueses, como o deputado

a Primeira Guerra Mundial, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008, pp. 23-32; L. Alves de Fraga, «As Manobras de Tancos», Do intervencionismo ao sidonismo: os dois segmentos da política de guerra na 1a República, 1916-1918, pp. 280-285; Idem, «Divisão de Instrução: As Manobras de Tancos» in Aniceto Afonso, Carlos de Matos Gomes (coord.), Portugal e a Grande Guerra: 1914-1918, Matosinhos, QuidNovi, 2010, pp. 265-269; sobre o pólo que, no Entroncamento, foi transformado para dar apoio de retaguarda ao polígono de Tancos, cf. Manuela Poitout, «As primeiras instalações militares no Entroncamento e a sua ligação com os caminhos de ferro» in O foguete, nº 15, 2005, pp. 27-31. 419

Gary S. Messinger, «An Inheritance Worth Remembering: the British approach to official propaganda during the First World War» in Historical Journal of Film, Radio and Television, vol. 13, nº 2, 1993, p. 117. 420

Em Portugal, o investimento estatal na propaganda de guerra é geralmente considerado como pouco relevante, embora não falte quem defenda, pelo contrário, que o investimento estatal nesse domínio não deva ser subestimado. Os fracos resultados obtidos pela propaganda de guerra, visto os governos da República não terem logrado conquistar os portugueses, à excepção de algumas elites, para a causa da guerra, são um forte argumento para os defensores daquela primeira visão, sintetizada por Filipe Ribeiro de Meneses (União sagrada e sidonismo: Portugal em guerra (1916-18), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp. 81-96) e contestada por Jorge Pais de Sousa (O fascismo catedrático de Salazar, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 94-99). Falta ainda, no entanto, uma obra de fôlego especificamente dedicada a este tema que reflicta os resultados de estudos de carácter mais sectorial surgidos por ocasião do recente centenário da República e que aprofunde o muito que falta investigar. 421

Intervenção de Jaime Cortesão na Câmara dos Deputados. DCD, Sessão de 20-05-1916, p. 7.

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democrático Jaime Cortesão, ele próprio autor de uma brochura de propaganda

dedicada ao soldado, que recebeu o beneplácito e o apoio de Norton e do seu

ministério422. Na visão de Cortesão, como na de muitos intelectuais que, na Grã-

Bretanha ou em França, trabalharam como propagandistas ao serviço do Estado, não

se trataria propriamente de manipular mas antes de «preparar o espírito» da

população para «cooperar». O busílis da questão era a bondade da causa e essa

defendia-se sobretudo indo combater.

O que mais interessava era o propósito de Portugal ir à guerra, ou seja, ter um

exército em condições de fazer a guerra no espaço europeu — e fazê-la. Estava, deste

modo, feita quase toda a propaganda — precisamente porque o facto era,

alegadamente, a melhor propaganda possível. O argumento é defendido pelo chefe do

governo da União Sagrada em resposta à interpelação de Cortesão, dois meses após a

Alemanha ter declarado guerra a Portugal. Se as «duas propagandas» são úteis, a

«propaganda pelo facto é sempre a melhor»423.

A alegação de que os factos falam por si424 é, naturalmente, ela própria uma

forma de propaganda, cujas virtualidades Cortesão rapidamente reconhece. Poucos

meses depois, o intelectual retoma o conceito, dando-lhe uma cara, ou melhor duas:

Norton de Matos e Leote do Rego. Os dois encarnariam a propaganda pelo facto, pela

força da vontade e da acção. Norton fez o exército, Leote fez a marinha. São «duas

forças. Duas tremendas vontades»425. A marinha não estava capaz de ir à guerra mas

com meios incipientes acaba por fazer «verdadeiros milagres de improvisação»426 na

422

Jorge Pais de Sousa, O fascismo catedrático de Salazar, p. 95. 423

Almeida admite, no entanto, que as acções de carácter moral que visem a «transformação do estado de alma portuguesa relativamente à guerra» são necessárias, até porque não é propriamente Portugal que está a ferro e fogo, excepção feita às longínquas colónias portuguesas de África (DCD, Sessão de 20-05-1916, pp. 11-12). 424

Esta alegação é, igualmente, uma característica marcante da propaganda de guerra britânica. Sobre a objectividade e a subjectividade do facto moderno, cf. Mark A. Wollaeger, Modernism, media, and propaganda: British narrative from 1900 to 1945, Princeton, Princeton University Press, 2006, pp. 22-24. 425

Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra (1916-1919), Porto, Ed. da “Renascença Portuguesa,” 1919, p. 25. 426

António José Telo, «A República e as Forças Armadas» in João Medina (coord.), História de Portugal: Dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias, vol. XI, A República II: O nó górdio e as espadas, Amadora, SAEPA, S.d., pp. 258-262; Tal não impediu que, no final da República, a marinha portuguesa se encontrasse próxima do «zero naval». João Freire, A marinha e o poder político em Portugal no século XX, Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 71.

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defesa da costa portuguesa e na escolta de navios. O Exército não estava em condições

de ir à guerra mas, com Norton e a sua operação Tancos, a verdade é que vai.

Não por acaso, Cortesão escreverá este texto no final do Verão de 1916, após o

acontecimento que, em Portugal, simboliza o próprio conceito, um ano depois da tal

«noite memorável», em que Norton ganhara a pasta da Guerra. O facto é a operação

militar de mobilização, transporte e treino militar de dezenas de milhares de

portugueses num campo de treinos militar no centro do país, o polígono militar de

Tancos, reconstruído para o efeito numa cidade de “pau e lona”.

Cinco anos após a ambiciosa reforma do exército de 1911, que representava

uma autêntica mudança de paradigma mas não tinha sido plenamente concretizada,

era finalmente a prova de que seria possível transformar os portugueses em algo

semelhante a um “povo em armas”, enquadrado embora por um corpo de militares

profissionais427. Ao fim de escassos três meses de treino, o depauperado Exército

português dá prova de vida e de vitalidade. O feito é logo baptizado de milagre,

celebrado como uma liturgia civil republicana que recorre e se apropria do imaginário

tradicional do catolicismo, e simultaneamente, como uma manifestação de

modernidade da República428.

III.3.2. O Ministério da Guerra e os repórteres da palavra: censura,

sedução e o caso do comboio especial

A imagem do ministro como homem do terreno, sem grande tempo nem

paciência para jogos políticos, não deixa de ser uma imagem eminentemente

cultivada. Nas suas visitas à Divisão de Instrução em Tancos, Norton tem geralmente o

cuidado de se fazer acompanhar por repórteres da escrita e da imagem que

testemunham a diligência com que o ministro toma pessoalmente nota das

insuficiências encontradas para rapidamente serem eliminadas. A eficácia com que faz

427

A um exército profissional, de privilegiados, pretendia a República que se sucedesse um exército miliciano, em que cada cidadão é um soldado, seguindo o modelo suíço da nação em armas. A nova organização geral do exército acabou, no entanto, por ficar a meio caminho entre os dois modelos. Decreto com força de lei de 25-05-1911, DG, nº 122, 26-05-1911. 428

Sobre a religião cívica republicana cf. Fernando Catroga, Entre Deuses e Césares : Secularizacão, Laicidade e Religião Civil: Uma Perspectiva Histórica, 2

a ed., Coimbra, Almedina, 2010.

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e manda fazer, para que seja mesmo feito é enfatizada na entrevista que dá ao Diário

de Notícias no final de Junho:

«-Um dos defeitos grandes que eu procuro remediar, e que é vulgar no nosso país, consiste no processo do papelório.

Para a resolução de qualquer assunto gastam-se resmas de papel e perde-se um tempo precioso. É preciso acabar de vez com isso. A mania da nota tem de acabar, substituindo esta por ordem que se cumpra imediatamente.

O chefe de determinada unidade precisa urgentemente de qualquer coisa, e manda fazer uma nota reclamando o que precisa. E, feita a nota, não pensa mais nisso. Passam-se dias, lembra-se de novo da falta sobre que reclamou e... manda fazer segunda nota, voltando a não pensar mais no caso, até que dali a dias faz outra e assim sucessivamente.

Chega-se um dia em que o ministro ou um a outra autoridade aparece e, notando a falta a que as tais notas se referiam, pergunta naturalmente, e com espanto, por que é que tal obra não está feita, dispondo-se até a castigar a incúria de quem superintende no serviço, mas não o pode fazer, porque invariavelmente a resposta é esta:

— Já fiz tantas notas a tal respeito.

E, diz-nos o sr. Norton de Matos, como a nota ou notas foram feitas, julga a sua responsabilidade ilibada. Consegui acabar com este sistema em África e aqui procuro também eliminá-lo, substituindo-o por ordens rápidas, para serem imediatamente cumpridas.»429

A redução ao máximo do processo do papelório implica um acompanhamento

preciso de quem tem autoridade para tomar decisões. Norton fá-lo-á amiúde,

pernoitando numa tenda de campanha no acampamento, sempre acompanhado do

seu bloco de notas, velando para que tudo se faça.

Assim se explicará, como mais adiante se verá, que de certas decisões

ministeriais, de que restam outros vestígios indubitáveis, não sobeje rastro legislativo

ou, sobrando, tenha a marca pessoal do ministro que tudo quer fazer e pretende não

ter tempo, muito menos paciência, para perder com tudo o que não seja estritamente

necessário. O essencial é fazer obra, construir, com toda a polissemia associada a este

verbo. Não admira que, em Tancos, se sinta «como peixe na água»430. Nem por isso

deixa de fazer questão de partilhar esse à-vontade com os jornalistas.

429

«Em Tancos Uma visita ao acampamento da divisão de instrução», Diário de Notícias, 23/6/16, p.1. 430

Como, décadas mais tarde, dirá, numa parte das suas memórias que permanecerá inédita até 2005 Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, vol. 3, ed. 2005, p. 245.

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Os primeiros enviados dos jornais O Século e A Capital ao acampamento militar

de Tancos431 não manifestam incómodo quer pelo acompanhamento dos seus

movimentos no perímetro militar quer pela própria censura. Vêem o primeiro como

uma deferência, atendendo às pequenas amabilidades de que são alvo, como a

disponibilização de automóvel, por especial determinação do ministro da Guerra, os

jantares na barraca do comandante juntamente com comitivas oficiais de alto nível de

visita ao campo ou as pequenas confidências deixadas cair pelos seus guias. Até a

censura militar é, nesta fase, vista como natural. O capitão Abreu de Campos, por cujo

crivo passavam os textos que saíam do polígono de Tancos para a imprensa, exercê-la-

ia «com criterio e delicadeza», na avaliação do repórter de O Século432. O elogio ao

censor e, em geral, a benevolência face à censura («naturalmente tão necessária») não

é apenas explicável por se tratar de um jornal simpatizante dos democráticos, numa

época em que as fronteiras entre jornalismo e propaganda são extraordinariamente

fluidas. Na verdade, a compreensão da imprensa face ao cerceamento da liberdade de

expressão, mesmo se justificada por um argumento patriótico, é, na verdade,

conjuntural. Tancos beneficia ainda de um certo estado de graça perante a imprensa

portuguesa.

O que, sendo fruto de uma estratégia de sedução por parte do ministro da

Guerra, está longe de o deixar sossegado com o deficiente funcionamento da censura.

Esta última, à excepção das reportagens enviadas de instalações militares, está por

enquanto fora do alcance do seu ministério, para além de estar longe de ter critérios

afinados. Quem não vai em reportagem ao local e escreve nas redacções os jornais

está sujeito ao escrutínio das comissões de censura prévia433, então a cargo do

Ministério do Interior. O controlo escapa, assim, ao crivo militar, para exasperação de

Norton que, em Junho, solicita expressamente ao seu colega do Interior,

431

Parte das crónicas que aí escreveram foram reunidas em livro: cf. Adelino Mendes e Oldemiro César, A cooperação de Portugal na Guerra Europeia: O Milagre de Tancos, Prefácio de Leote do Rego, Lisboa, Empresa Lusitana Editora, S.d. 432

Na apreciação de Oldemiro César, repórter de O Século (In Idem, p. 32). 433

A censura «preventiva» foi instituída pela Lei nº 495 de 28-03-1916 (DG, I Série, Nº 59), «enquanto durar o estado de guerra», abrangendo «os periódicos e outros impressos e os escritos ou desenhos de qualquer modo publicados» (artº1º). As comissões eram nomeadas pelo governo, nas capitais de distrito, ou pelos governadores civis, no caso dos concelhos (cf. artº 3º). Em todo o caso, dependem do Ministério do Interior.

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«que nenhuma noticia ou artigo que diga respeito a essa Divisão [de Instrução] e á instrução que se está realisando no campo de Tancos, se publique sem que o original respectivo seja visado nesta Secretaria da Guerra ou no Quartel General da Divisão de Instrução.»434.

No final de Agosto, a situação não melhorou pois a imprensa, queixa-se o

ministro da Guerra,

«continua a dar publicidade a noticias militares que pela sua natureza são altamente inconvenientes e prejudiciais para os interesses da República nas actuais circunstâncias»,

rogando novamente ao seu colega do Interior que

«se digne dar as mais urgentes e terminantes ordens a todos os membros da respectiva censura para que, não sendo mandadas publicar pelas estações oficiais, directa ou indirectamente digam respeito a quaisquer resoluções tomadas pelas unidades mobilisadas ou a mobilizar, sua organização e fim a que se destinam, e, bem assim, das noticias que interessam á organização e funcionamento dos diversos serviços do exercito em campanha.»435.

O ministro da Guerra alerta ainda para a necessidade de não deixar que as

divergências de critérios entre censores sejam aproveitadas pelos jornais, que

frequentemente apresentam pela segunda vez a um censor menos escrupuloso uma

notícia anteriormente censurada por outro. Demorará ainda alguns meses até as

comissões de censura passarem a estar sob a alçada do seu ministério, o que só

acontecerá a 10 de Novembro436.

Se, por enquanto, o controlo da censura em grande parte lhe escapa, Norton

continua a investir na sedução, organizando a parada de 22 de Julho de uma forma

particularmente ambiciosa. Na verdade, será a maior operação de relações públicas e

propaganda jamais organizada pelo Exército em Portugal. Os jornalistas de Lisboa

recebem um convite, assinado pelo próprio ministro, para viajarem no comboio

especial que levará uma extensa comitiva de personalidades nacionais e estrangeiras

até à estação de Tancos e, de lá, ao local da parada, os campos de Montalvo.

434

AHM, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1298, Of. confidencial nº 828 do ministro da Guerra ao ministro do Interior, 15-06-1916. 435

AHM, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1298, Of. confidencial nº 1051 do ministro da Guerra ao ministro do Interior, 28-08-1916. 436

O argumento para essa transferência de tutela reside no facto de entretanto ter saído a lei no 815, de

6 Outubro, que restringe a acção da censura preventiva às notícias contrárias à defesa nacional, económica e militar, às operações de guerra ou à propaganda contra a guerra. Assim, «deixa de se justificar que o respectivo serviço se mantenha na sua organização inteiramente alheio ao Ministério da Guerra». Decreto n

o 3.534, de 10-11-1917, DG, I Série, N

o 195.

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A organização do comboio está a cargo do ajudante-de-campo de Norton, o

capitão Florentino Martins, e acaba por revelar algum amadorismo, dando lugar a um

incidente que quase neutraliza o sucesso mediático da operação. Originará, inclusive,

um protesto formal da Associação de Classe dos Trabalhadores da Imprensa de Lisboa.

A reclamação é entregue em mão por representantes da classe ao próprio chefe do

Governo que lhes concede uma audiência de protesto e desaforo pelo incidente.

Os jornalistas queixam-se a António José de Almeida de vários vexames. Antes

de mais, são relegados para a carruagem da cauda do comboio. Nessa carruagem

mista, de 1ª e 2ª classe, não têm qualquer espécie de comunicação com as carruagens

onde viajam o Presidente da República, os membros do Governo, o corpo diplomático

e tutti quanti. Deste modo viram-se impedidos de fazer parte importante do seu

trabalho de bastidores de reportagem para já não falar do vexame de terem de viajar

em companhia dos correios de ministros e moços de pastelaria e de lhes ser servida

comida de três dias em caixas de papelão. Chegados à parada, tiveram de ficar de pé,

num dia de sol inclemente, sem que alguém se tivesse lembrado de reservar-lhes lugar

no palanque VIP. Finalmente, regressados à capital, viram os seus colegas serem

impedidos de aceder à gare do Rossio para fazerem a cobertura do regresso do chefe

de Estado e das restantes individualidades437.

Os órgãos da imprensa oposicionista, que não tiveram direito a convite para

viajar no comboio, não perdem a oportunidade de assinar o protesto por baixo.

Consideram tratar-se de um vexame inadmissível para a classe, mesmo quando, como

faz o diário socialista A Vanguarda, não perdem a ocasião de frisar, cruamente, que

quem se comporta como lacaio do poder, sujeita-se a ser tratado como tal438.

Seja como for, a classe tinha plena consciência, e lembra-o ao chefe do

Governo, que a imprensa «é o mais poderoso veiculo de comunicação [do Governo]

437

Cf., entre outros, o relato do jornal Opinião, reproduzido por um diário monárquico: «UMA DISTINCÇÃO...Como é tratada a Imprensa em Portugal», A Nação, 25-07-1916, p.1. 438

«Os representantes da imprensa não passam, para estes senhores, de míseros lacaios. Nós, felizmente, não recebemos essa desconsideração, porque nem sequer fomos convidados.» («O passeio official a Tancos. Como é tratada a imprensa em Portugal», A Vanguarda, 25-07-1916, p.1).

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com o país»439, aproveitando a ocasião para pedir que os passes da imprensa passem a

ser emitidos apenas a jornalistas credenciados e cesse a sua atribuição a pessoas que

nem jornalistas são.

António José de Almeida responde que não tinha tido qualquer intuito de

ofender a imprensa e atribui os incidentes «à precipitação com que a excursão fora

organizada», acrescentando saber que «o snr. ministro da guerra se encontrava

bastante contrariado com o que se déra»440. Significativamente, será o ajudante do

ministro, o tenente Florentino Martins, a vir a público assumir a responsabilidade única

e exclusiva pela organização da excursão a Tancos441, permitindo assim uma

demarcação airosa para Norton de Matos dos percalços organizativos da jornada.

Entre os enviados especiais da imprensa portuguesa à parada, todos de órgãos

republicanos, ligados ou simpatizantes dos democráticos ou dos evolucionistas, no

poder442, encontra-se Hermano Neves. O repórter do diário republicano da noite, A

Capital, opta por não viajar no comboio do Ministério da Guerra. Claramente para se

destacar, pela modernidade, dos seus colegas, desloca-se no side car de uma Harley-

Davidson conduzida por uma glória do ciclismo nacional, Manuel Ferreira. O jornal não

deixa de assinalar como é «maravilhosa de concepção mechanica, rapida, resistente» e

por isso «apreciada pelos campiões da velocidade»443, a motocicleta em que viaja o

seu repórter. E Hermano Neves não perde a ocasião de se vangloriar como rolou

vertiginosamente no seu moderníssimo meio de transporte nos poucos troços de

estrada em que o mac dam lhe proporcionou minutos de desvanecimento, a uma

velocidade estonteante que o fez esquecer os quilómetros de estrada francamente

intransitáveis que deixara para trás, entre nuvens de poeira. Que melhor metáfora

para a parada militar que o esperava, impressionante de organização, rigor, velocidade

439

«O caso dos jornalistas. Uma representação ao snr. presidente do ministério», República, 29-07-1916, p.1. 440

Ibidem. 441

Cf. «Revista do dia (...) Ainda o comboio especial e a imprensa», A Vanguarda, 28-07-1916, p. 1. 442

Da análise de uma dezena de títulos da imprensa diária portuguesa destacamos aqui as peças jornalísticas publicadas a propósito da parada de Montalvo, nomeadamente as reportagens dos enviados especiais Hermano Neves, d’ A Capital: Diário Republicano da Noite; Freitas Júnior, d’ A Montanha: Diario do Partido Republicano Português; José do Valle, do jornal O Mundo; Nobre Martins d’ O Século; e dois repórteres anónimos, respectivamente do Diário de Notícias e do diário evolucionista República. 443

«Redactores d’ A CAPITAL», A Capital, 22-07-1916, p.1.

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combinada com uma precisão matemática e modernidade que parecia capaz de fazer

eclipsar anos de atraso e marasmo do exército pátrio?

O repórter atravessara o país de estradas esburacadas na sua máquina plena

de modernidade tal como Norton e a sua equipa arrancaram, pelo menos

aparentemente, homens atrasados vindos do Portugal profundo, transmutando-os em

soldados e cidadãos da República. Os «alinhamentos geométricos» da «multidão

armada», matematicamente disposta em parada444 na campina imensa, atraem uma

multidão de povo de dez léguas em redor, extasiada, tal como o repórter:

«Ah! não duvida. É bem um exercito aquilo que os meus olhos estão vendo. É bem o preambulo de uma epopeia o historico momento que acabo de viver tambem. Tenho ali, sob a minha vista extasiada, um quadro soberbo que nenhuma photographia pode reproduzir, que nenhum chronista pode sufficientemente descrever. (...) Estão ali vinte mil homens, pregados áquelle chão, formando um bloco formidavel como a base de um monumento eterno.»

Hermano Neves confessa terem-lhe vindo as lágrimas aos olhos de «pura

commoção». A impressão que lhe ficou consegue ainda, no momento em que escreve,

fazê-lo «estremecer de espanto». E remata: «O que em Tancos se tem realisado

n’estes ultimos meses é verdadeiramente coisa prodigiosa.»445. Em editorial do dia

seguinte, o jornal faz-se eco do que afirma ser o júbilo do país perante o espectáculo

de renascimento do Exército português em Tancos, reforçando a tecla do prodígio que

quase se afigura um milagre, prenúncio do que, à imagem de Tancos, se poderá fazer

em Portugal446.

Idêntico fervor patriótico demonstra o enviado especial de O Século, Nobre

Martins:

«As lagrimas borbulham-me dos olhos e eu sinto que não saberei descrever o que vou vêr. Estou diante de uma vasta planície, batida em cheio pelo sol, agora mais brilhante do que nunca. Meu adorado Portugal, como eu te bemdigo n’este

444

A precisão matemática da parada é igualmente sublinhada pelo repórter do Diário de Notícias que realça a «assombrosa precisão» das manobras, «vendo-se as distancias rigorosamente marcadas e os alinhamentos como que traçados à regua». «A parada militar de ontem em Montalvo. Um espectaculo grandioso (...)», Diário de Notícias, 23-07-1916, p.1. 445

Hermano Neves, «A PARADA DE TANCOS.Um dia memoravel para o nosso exercito», A Capital, 23-07-1916, p.1 446

S. a, «A REORGANISAÇÃO MILITAR», A Capital, 24-07-1916, p.1.

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momento! O dia de hoje será, talvez, o prenuncio das mais brilhantes paginas da tua Historia. Como tu és ainda grande e que instante enorme o d’esta hora!»

447.

É com expressões superlativas como esta que o repórter, emocionado,

descreve as suas impressões do desfile militar, aproveitando para invectivar o que

considera serem os maus portugueses que ousam denegrir a honra do país. Com os

seus olhos, também ele, tal como o colega de A Capital, testemunha o «milagre» de

«tão espantosa manifestação militar» que a todos arrebatou, convidados estrangeiros

incluídos.

«O que está feito e eu vi (...) é, na verdade, bom e grande, espantosamente

milagroso (...) Ao cabo de tres mezes, o milagre frutificara»448.

O diário evolucionista A República segue idêntica linha, ou não tivesse tido por

fundador António José de Almeida, precisamente o chefe do Governo que concretizou

Tancos e cuja fotografia aparece, juntamente com a do presidente Bernardino

Machado e o ministro Norton de Matos, no artigo de página inteira dedicado ao dia

histórico vivido em Tancos449. Apresentado como uma «efeméride notavel da obra

patriótica da República» e como «o renascimento militar de Portugal.». Não admira,

por isso, que, como nos diz o enviado especial do matutino democrático de Lisboa, O

Mundo, o Exército da República tenha sido «alvo de uma verdadeira apoteose»450.

No Porto, outro diário dos democráticos, A Montanha, vai mais longe,

recorrendo à Bíblia para reforçar o feito da religião cívica republicana em Tancos. Aqui,

seria até possível ver Lázaro a sair do túmulo, indubitavelmente ressuscitado por um

ministro, qual Cristo, capaz de mover montanhas e dominar as águas dos oceanos:

«Portugal ressurge. (...) O lázaro ergueu-se e caminhou (...) voltou a ser um homem. Rosaram-se-lhe as faces, reaquiriu o vigor e a indomavel energia de outrora e aquela sua antiga fé ardente com que era capaz de remover montanhas e dominar os oceanos revoltosos, tornou a florir-lhe luminosamente no coração!»451.

447

Nobre Martins, «A GRANDE JORNADA PATRIOTICA. A REVISTA MILITAR EM MONTALVO», O Século, 23-07-1916, p.1. 448

Nobre Martins, «REPOUSO NECESSARIO. NOTAS DE UM “REPORTER”», O Século, 28-07-1916, p.1 449

«UM DIA HISTÓRICO EM TANCOS. A PARADA DA DIVISÃO DE INSTRUÇÃO», República, 23-07-1916, p.1. 450

José do Valle, «UM EXERCITO QUE NASCE», O Mundo, 23-07-1916, p.1. 451

«A alma da Patria em Tancos», A Montanha, 25-07-1916, p.1. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste artigo.

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Ao prodígio de um exército renascido das cinzas, por via da fé de alguns, seguir-

se-ão «prodigios de heroismo» dos soldados no campo de batalha. E para que não

restem dúvidas de que se trata de uma questão de fé:

«Tancos é a ressurreição. (...) Já era tempo. (...) a Republica conseguiu, na escasseia meia duzia de anos da sua existencia, operar verdadeiros milagres.».

De todos eles, o maior, seria, na sua opinião, a transformação por que passou

o Exército e a Marinha, «numa mutação prodigiosa de magica».

Não menos relevante do que ter a imprensa afecta ou simpatizante da União

Sagrada a louvar entusiasticamente o sucesso de Tancos será o facto de a imprensa

afecta às várias oposições ter sido momentaneamente neutralizada nos seus

propósitos antiguerristas face àquele sucesso bélico.

Não tendo sido convidados a viajar no comboio especial, os jornais

oposicionistas optaram por não enviar repórteres a Montalvo. Afinal, sobretudo no

caso dos títulos monárquicos, tratava-se de testemunhar um sucesso da República

num campo que lhes era caro. São «silencios eloquentes» comenta Rui Moreno do

portuense A Montanha: «Pois fiquem-se sós, ruminando os seus odios (...) ante o

espectaculo soberbo desta ressurreição nacional, deste bemdito explodir de energias,

seivas, entusiasmos!»452.

Apesar de não podermos descartar o papel da censura na neutralização das

eventuais críticas dos jornais oposicionistas453, não deixa de ser muito significativo que

tomem a iniciativa de publicar elogios à operação de Tancos. Na verdade, a

generalidade dos jornais da oposição acaba por reconhecer o valor da obra de Tancos,

embora manifeste dúvidas ou discordância quanto ao modo como se concretizará a

participação das tropas portuguesas em França. Nas palavras do jornal unionista A

Lucta: «Estamos, afinal, todos de acordo em principio. No que podem surgir

divergencias é no modus faciendi»454. O jornal não pode deixar de se regozijar com o

elogio feito a Tancos por jornais estrangeiros tendo de concordar que

452

Rui Moreno, «MUTISMO...PATRIOTICO», A Montanha, 28-07-1916, p.1 453

São muito mais frequentes os espaços em branco nas colunas destes jornais – prova evidente dos trechos proibidos pela censura - do que no conjunto de títulos que atrás analisámos. 454

J.B., «Topicos do dia», A lucta, 24-07-1916, p.1.

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«Para começar a sua obra de reformador e reorganisador do nosso exército, o sr. Norton de Matos tem, ali em Tancos, à vista de quem lá vae e tem ido lá muita gente, vinte mil homens prontos para a guerra (...) em condições de satisfazer a todas as necessidades da guerra moderna»455.

O socialista A Vanguarda rende-se igualmente a Tancos, fazendo-se eco das

notícias que lhe chegam em segunda mão, de cuja bondade não duvida: «Essa

preparação diz-nos a imprensa que está feita. E feita com um brilho extraordinario».

«Ainda bem», afirma o director Pedro Muralha em editorial de 16 de Julho. Em Agosto,

o jornal irá mesmo ao ponto de declarar pôr de parte as convicções antiguerristas

para, perante a «esperança» que «pairou sobre todos nós» com a mobilização de uma

divisão de instrução, «cujos trabalhos finaes há pouco realisados em Tancos,

evidenciaram que os nossos soldados ainda manteem o sangue dos portuguezes de

outrora», desafiar o país a deixar-se de posições dúbias e ir para a guerra456.

Já João Franco Nogueira ironiza no órgão dos miguelistas A Nação:

«Quem havia de dizer? Em plena republica cantam-se loas ás armas, trabalha-se para organisar um exercito que o seja a valer, e as charlateiras, a continencia e a espada

estão na sua hora feliz!»457.

Reconhecendo o valor de Tancos, aqui visto não propriamente como uma obra

da República mas como o retomar dos valores antigos da velha monarquia:

«Tancos é um exemplo, é um valor importantissimo que não pode nem deve desprezar-se. Os homens de ordem, os verdadeiros patriotas, não o devem nem o podem esquecer. Consideram-no como uma esperança de melhores dias. (...) O que alli influiu foi o Portugal velho, o Portugal anti-politico, anti-sectario, religioso e patriota do intimo da alma. Interrogadas algumas figuras, acerca das suas ideias, responderiam á moderna; no emtanto, portaram-se á antiga. O facto é a melhor escóra do interesse nacional e o melhor symptoma da união sagrada, mesmo que a perturbem aquelles que teem interesse em perturba-la. Não esqueçamos isto e demos graças a Deus.»458

455

Idem. Nele, transcreve-se um artigo de um jornal espanhol elogiando Tancos. 456

«Vamos, pois, para a guerra! Cumpramos todos o nosso dever de portuguezes!». «UMA SOLUÇÃO», A Vanguarda, 09-08-1916, p.1. 457

João Franco Monteiro, «MILITARISMOS», A Nação, 25-07-1916, p. 1. 458

João Franco Monteiro, «O INTERESSE NACIONAL», A Nação, 27-07-1916, p.1.

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Se A Nação se faz eco de fontes insuspeitas459, que no entanto não nomeia, o

também monárquico O Dia, dirigido por Moreira de Almeida, baseia-se em

«informações fidedignas» para se congratular com a disciplina que reinaria em Tancos:

«Tropas disciplinadas e sem politica, bem instruidas, bem preparadas para a guerra, porque para lá se diz há muitos mezes que teem d’ir — as de Tancos bem merecem as sympathias e a confiança do paiz.»460.

A disciplina honra o comandante do campo, Tamagnini, bem como os oficiais,

defende-se neste editorial de 22 de Julho, onde não é mencionado, no entanto, o

nome do ministro da Guerra. Se nos inícios da instrução de Tancos, n’O Dia se

considerava que ter Norton como chefe do Exército português era um castigo

fulminador da própria providência461, não deixa de ser muito significativo que, no dia

da parada que deu por finda a instrução de Tancos, o jornal não diga uma palavra

sobre o ministro responsável por toda a operação militar. Os tempos não estão de

feição para as investidas mais extremados da imprensa oposicionista a propósito da

beligerância portuguesa462. A sua neutralização durante o Verão de 1916 não é o

menor dos méritos de Tancos enquanto operação de propaganda.

III.3.3. Norton, o povo em armas e os repórteres da imagem. A

operação Tancos no cinema

Os repórteres de imagem tiveram um papel não negligenciável na promoção de

Tancos. No Verão de 1916, o ministro da Guerra é presença habitual na revista

portuguesa de grande divulgação, a Ilustração Portugueza, sendo fotografado pela

objectiva de vários repórteres, com destaque para Joshua Benoliel, enviado especial da

revista a Tancos. Norton figura em muitas delas com chefe que tudo controla, em

459

«Assim, ouvindo os applausos à obra de Tancos, e applausos que nos veem de fontes insuspeitas, nós fazemos côro, com todos os patriotas, não querendo saber quem é o agente de tal benemerencia.». «Espirito militar», A Nação, 23-07-1916, p.1 460

S.a., «Tancos», O Dia, 22-07-1916, p.1. 461

S.a., «FALTA UM KITCHENER!», O Dia, 08-06-1916, p.1. 462

O que não significa que tenham parado por completo a campanha de contrapropaganda a propósito da beligerância da União Sagrada. Não só não deixaram escapar, como vimos, a oportunidade de tirar partido do caso do comboio especial, como fazem lobby pela situação dos capelães militares, para além de ridicularizarem a ordem ministerial de mobilização dos médicos, trazendo à colação casos pontuais como a do licenciado em medicina que nunca a exerceu e que é obrigado pelo «império rígido e inquebrantavel da vontade sem contraste e sem correctivo do sr. Norton de Matos» a ir para Tancos ser médico malgré lui «pondo porventura em risco a vida e a saude de muitos homens» (José Barbosa, «Medico á força», A Lucta, 11-07-1916, p.1).

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todos os cantos de Tancos e arredores, tal como no país que se (ele) prepara para a

guerra463. O ministro não se limita, porém, a autorizar e a tirar dividendos políticos do

trabalho de Benoliel e de outros repórteres fotográficos da imprensa portuguesa. Na

verdade, toma ele próprio a iniciativa, encarregando um fotógrafo civil (Arnaldo

Garcês) de fazer uma reportagem oficial de Tancos464.

As imagens em movimento são o outro suporte de propaganda moderno no

qual o Ministério da Guerra vai apostar. O investimento na propaganda pelo cinema,

por ocasião da operação Tancos, tem, essencialmente, dois objectivos. Antes de mais,

visa mostrar o povo em armas ao povo que frequenta esse espectáculo ainda à

procura de um estatuto social465. Na verdade, o cinema nos anos 10 é um

entretenimento barato, em salas geralmente construídas para outros efeitos. Era um

espectáculo popular, ideal para levar a um público alargado os treinos de Tancos e, em

especial, a parada militar de Montalvo.

Com ela, o povo «tem já teatro, o que é indispensável para a multidão. O povo

só aprende olhando.»466 No entanto, mais do que um espectáculo teatral, a operação

Tancos é montada pelo ministério de Norton como uma autêntica produção

cinematográfica. O povo em armas é a personagem colectiva encarnada pelos 20 000

463

Ilustração Portugueza, 1916, passim. Como lembra António Ventura, a publicação vale sobretudo pelo impacto das fotografias que inclui, bem como pelo seu público alargado, como indicam as grandes tiragens que alcançou. Foi a revista que, em Portugal, faz as vezes de revista de guerra, muito mais do que a revista oficial de propaganda criada por iniciativa do governo português, Portugal na Guerra (António Ventura, «A guerra e a imprensa portuguesa» in Aniceto Afonso, Carlos de Matos Gomes (coord.), Portugal e a Grande Guerra : 1914-1918, Matosinhos, QuidNovi, 2010, pp. 497-503). Esta última, de menor periodicidade (mensal, contra a periodicidade semanal da Ilustração Portuguesa) – que, mesmo assim, nem sempre foi cumprida –, apenas sai em 1917, durante escassos meses, visando mais o público estrangeiro do que o português (a revista tinha a sua sede em Paris e era em parte bilíngue). 464

Pedro Soares Branco, Exército Português: Memória Ilustrada: The Portuguese Army: An Illustrated Memory, S.l., Quimera, 2005; António Pedro Vicente (coord.), Arnaldo Garcez: Um Repórter fotográfico na Primeira Grande Guerra, Lisboa, Centro Português de Fotografia, 2000; Joaquim Vieira, «Um século de fotografia marcial» in Manuel Themudo Barata, Nuno Severiano Teixeira (coord.), Nova História Militar de Portugal. Vol. 5, Rio de Mouro, Circulo de leitores, 2004, pp. 415-439. 465

Sobre o conceito de povo em armas (de que a parada de Montalvo foi a manifestação mais espectacular) já atrás nos referimos. Sobre o conceito de «povo» no cinema, na sua dupla acepção (no ecrã, como personagem, e na sala, como público), cf. Tiago Baptista, «Cinema, povo e público» in José Neves (coord.), Como se faz um povo: ensaios em história contemporânea de Portugal, Lisboa, Tinta-da-China, 2010, pp. 455-467. 466

Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra (1916-1919), p. 25.

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portugueses que desfilam para mostrar a Portugal e ao mundo que a República

Portuguesa está em condições de combater na Flandres.

A parada é registada em duas produções cinematográficas, uma da iniciativa do

Ministério da Guerra e outra de uma empresa particular com sede no Porto, a Invicta

Film.

A fita da Invicta Film, em duas partes, intitula-se “A Mobilisação Portugueza em

Tancos”. A sua estreia a 3 de Agosto no Salão Teatro Passos Manuel, do Porto, é

publicitada na imprensa como um «acontecimento cinematografico de mais

sensacional e palpitante actualidade». O evento é um sucesso, a ele assistindo

centenas de espectadores, com sala esgotada467.

A outra fita de Tancos é anunciada para breve, em duas outras salas de cinema

da capital portuense, o Salão da Trindade e o High-Life (Batalha). O filme “Grande

parada militar em Montalvo”, também apresentado como “Exercícios militares em

Tancos”, é fruto de uma

«incumbencia especial do Ministerio da Guerra, sendo dirigido e fiscalisado por um distincto official do Exercito (…)A sua divulgação foi autorizada pelo respectivo Ministro, como meio de propaganda dos progressos militares realisados pelos nossos exércitos.»468

O carimbo do Ministério é apresentado como garantia suplementar de

autenticidade. De facto, o anúncio d’O Primeiro de Janeiro reclama que é a «única [fita]

que não contem inutilidades», num claro remoque ao documentário concorrente da

Invicta Film. O filme fora uma encomenda especial feita pelo ministro ao capitão

reformado Carlos Nogueira Ferrão469 (1871-1938), sendo rodado por um operador do

Laboratório de Fitas Cinematográficas Portuguesas, Ernesto de Albuquerque (1883-

1940)470. Será exibido na maior sala de espectáculos da capital, o Coliseu dos Recreios,

467

«A divisão militar em Tancos Um «film» sensacional», O Primeiro de Janeiro, 04-08-1916, p. 2. 468

«Grande parada (…)»,O Primeiro de Janeiro, 11-08-1916, p. 2. 469

«Um dia histórico em Tancos. A parada da Divisão de Instrução», República, 23-07-1916, p. 1. Sobre Ferrão, veja-se Arquivo Histórico-Militar (AHU), Cx 2396, e M. Félix Ribeiro, Invicta Film, uma organização modular, Lisboa, Sec. Estado da Informação e Turismo, 1973, p. 82. 470

Ferrão, recentemente reformado do Exército, era um entusiasta não apenas da imagem fixa mas também da imagem em movimento, fazendo parte, desde 1912, dos corpos gerentes de uma empresa de distribuição cinematográfica (a Companhia Cinematográfica de Portugal), e chegando a ser proprietário de um animatógrafo de Lisboa. A escolha de Albuquerque, por seu turno, era, à partida, garantia de sucesso, tendo em atenção o eco que obteve a primeira fita que realizou em 1909, sobre o

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a 10 de Agosto de 1916. Aparece sob a designação de «Exercícios de infantaria,

cavalaria e artilharia pela Divisão Militar de Tancos», sendo considerado, por um

vespertino de Lisboa, «um film nacional e sensacional» que levou o «extraordinário

esforço do nosso exercito» ao público do Coliseu que «enchendo literalmente a vasta

plateia, manifestou por vezes o seu agrado e o seu patriotismo com prolongadas e

vibrantes palmas»471.

Apesar de não se conhecer, na globalidade, o circuito de exibição e audiência

de ambos os filmes, constatamos que estiveram em cartaz, com enorme sucesso, em

grandes salas de cinema das duas principais cidades do país, pelo menos.

Das filmagens de Tancos sobreviveram menos de dois minutos de película

animatográfica que foram integrados no Journal Actualité da Pathé e nas Hearst Pathé

News472 no ano seguinte, quando as tropas portugueses efectivamente se juntaram ao

exército britânico em França473. Ao serem exibidas em França, nos EUA e,

verosimilmente, também na Grã-Bretanha474, contribuirão para a propaganda do

esforço de guerra português no exterior. Na versão do jornal de actualidades exibida

cacau de São Tomé, por incumbência da Sociedade de Geografia de Lisboa. Estava então ao rubro a polémica internacional à volta do cacau escravo. A celeuma, mais do que o exotismo colonial do tema, terá garantido ao filme de Albuquerque uma ampla divulgação, tendo sido, reclama a Cine-Revista, «exibido nos principaes "écrans" do mundo!» (F. Gomes de Sousa, «Ernesto d’Albuquerque», Cine-Revista, Ano IV — N.

o 44, 15-11-1920, pp.1-2). Norton, que, como vimos, devia, em parte, a sua entrada

na cena política republicana às posições antiesclavagistas que assumiu na imprensa em 1910, precisamente a propósito do cacau de São Tomé, teria seguramente conhecido e apreciado esse anterior sucesso de Albuquerque. 471

«As manobras em Tancos: O “film” do Colyseu» A Capital, 11-08-1916, p. 2. 472

GAUMONT PATHÉ ARCHIVES (GPA), Journal Actualité Pathé / Hearst Pathé News / 1917 117/ 16384, Contingent portugais, 1917, accessed 12 May 2013, at http://www.gaumontpathearchives.com. 473

Não temos como confirmar se foi à fita da Invicta ou à fita do Ministério que a Pathé foi buscar as imagens de Tancos. As duas vias são verosímeis. Por um lado, a Invicta Film tinha um contrato com a Pathé e a Gaumont para fornecimento de imagens de actualidades portuguesas para França (M. Felix Ribeiro, Filmes, figuras e factos da história do cinema português, 1896-1949, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1983, p. 71). Não seria, portanto, de estranhar que as imagens do filme da Invicta tivessem sido integradas nos jornais de actualidades produzidos em França. Por outro lado, sabemos que, em finais de 1916, o ministro da Legação de Portugal em Paris, João Chagas, diligencia junto de Norton para que o filme de Tancos seja exibido em França, capitalizando, assim, para efeitos de propaganda, o interesse dos meios de comunicação franceses pelo iminente desembarque das tropas portuguesas em França (ANM, Carta de João Chagas a Norton de Matos, Paris, 18-12-1916, mns, ass). 474

Uma vez que os jornais de actualidades franceses dominavam o mercado britânico. Nicholas Reeves, «Official Film Propaganda in Britain durign the First World War» in The power of film propaganda: myth or reality?, London/ New York, Cassell, 1999, p. 32.

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nos EUA, por acordo com a Pathé, sublinha-se: «The young Republic is supplying its

quota of men to the Allied Armies and thousands of recruits prepare for duty» 475.

Em Portugal, além da propaganda ao esforço militar em salas de cinema para o

público em geral, a fita das manobras de Tancos produzida por iniciativa de Norton é

exibida por este em sessões exclusivas a altas personalidades estrangeiras. É o que

acontece com o major-general Barnardiston (1858-1919), chefe da missão militar

franco-britânica que, a partir de 30 de Agosto, estará em Portugal para negociar as

condições em que se irá concretizar a participação de Portugal no esforço de guerra na

frente ocidental. Pouco depois, é convidado a assistir, na companhia do ministro da

Guerra, a uma sessão privada de cinema com filmes do campo de Tancos que

considera «very good»476. Dois dias depois, o major-general britânico fará, num

relatório oficial para o War Office um balanço globalmente positivo das reuniões até

então havidas e das visitas feitas pela missão que chefia:

«Both I and my French colleagues have been impressed by the energy and system with which the Portuguese Military Authorities are working at the strengthening and development of their military resources. Great attention is being paid to training, and to the adequate equipment of the Expeditionary Force, and the accumulation of supplies in ammunition (as far as production admits) and equipment.

It is not possible to give a very decided opinion on the qualities of the Portuguese Army after such a short acquaintance. I can only give my impression, gathered from the opportunities already mentioned. They are, on the whole, distinctly favorable, and I see no reason why the Portuguese Expeditionary Force should not, after further training, be of considerable use. (..) it would be unwise not to take advantage of much assistance as they are ready to give. They will certainly be able to supply one reinforced division and perhaps two, with a third Division in reserve in Portugal (…)»477

São palavras particularmente significativas, atendendo a que são escritas

escassas duas semanas após Barnardiston ter chegado a Lisboa com instruções

precisas do War Office para convencer as autoridades portuguesas a restringir a sua

participação na guerra à frente africana, enviando para a frente europeia apenas

trabalhadores e material de guerra e, nunca, em caso algum, tropas. Que, ao fim de

475

Intertítulos na versão exibida nos EUA. GPA, Journal Actualité Pathé / Hearst Pathé News / 1917 117/ 16384, Contingent portugais, 1917, at http://www.gaumontpathearchives.com, acedido a 12-05-2013. 476

KING’S COLLEGE LONDON - LIDDELL HART CENTER FOR MILITARY ARCHIVES (KCL – LHCMA), Barnardinston Papers, Barnardiston: 3/3, [Diary] 1916 , mns. 477

NA-UK, WO/106/546, General remarques. Cópia de of. de N.W. Barnardiston para o chefe do Estado-Maior Imperial, Lisboa, 15-09-1916.

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tão poucos dias, o oficial britânico tenha modificado significativamente a sua posição,

não terá apenas a ver com o facto de não querer ser ultrapassado pelos franceses, que

não escondem o seu interesse em acolher as tropas portuguesas no seio do próprio

exército. Os contactos entretanto havidos com as forças portuguesas — não apenas

nas reuniões oficiais e visitas a vários estabelecimentos militares mas também por esta

via do documentário cinematográfico das manobras de Tancos — terão seguramente

pesado na acentuada melhoria da imagem da valia do exército português com que

Barnardiston inicialmente chegara a Lisboa.

Vimos, assim, que a encomenda, por parte do Ministério da Guerra, de um

documentário cinematográfico das manobras militares de Tancos foi parte integrante

da operação de propaganda montada pelo ministro da Guerra português Norton de

Matos para demonstrar que o Exército português estava pronto para combater em

França. O filme oficial de Tancos foi usado simultaneamente para fortalecer a sua

posição nas negociações com os aliados para determinar o modo e a escala em que

Portugal iria participar no teatro da Flandres. A exibição privada nesta frente da

diplomacia militar foi paralela à exibição pública no circuito comercial cinematográfico

português. O facto de, concomitantemente, a mais importante empresa

cinematográfica comercial do país, com sede no Porto, ter rodado um outro filme de

Tancos, e nomeadamente da parada de 22 de Julho, e ambos terem sido um sucesso

de bilheteira, revela a apetência do público português por ver guerra no ecrã, mesmo

se, como foi o caso, ainda não se tinha passado da guerra a fingir em campos de treino

militar para a guerra a sério nas trincheiras.

III.3.4. Tancos, entre o mito e a realidade

Regressando ao conceito de onde partimos para esta análise, o de propaganda

pelo facto, podemos retirar desde já algumas conclusões sobre a eficácia

propagandística da operação Tancos.

O primeiro dado a reter é que o sucesso mediático da parada de 22 de Julho,

espelhado nos jornais portugueses de várias tendências políticas e nas salas de cinema

de Lisboa e Porto, constitui uma excelente demonstração desse tipo peculiar de

propaganda que alega não o ser, pretendendo confundir-se com a realidade. Além de

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providenciar o facto, o Ministério da Guerra envereda pela propaganda pelo facto,

apostando, por um lado, em acções de sedução expressamente dirigidas à tradicional

imprensa e, por outro, na encomenda de reportagens nos dois suportes tecnológicos

de maior modernidade e com maior potencial para atingir um público alargado: a

imagem fixa e a imagem em movimento.

Em segundo lugar, verificamos que, na política de sedução tal como na política

de censura, o ministério encontra-se ainda numa fase algo voluntarista e amadorística,

o que é especialmente notório no caso dos jornalistas e o comboio especial. Já o

envolvimento oficial no domínio da produção fílmica virá a revelar-se mais consistente

pois não só os homens que dela são incumbidos têm larga experiência no sector como

um deles, o capitão Ferrão, irá, poucos meses depois, montar um serviço

cinematográfico às ordens do ministro Norton de Matos, assunto a que ainda

regressaremos.

Em quarto lugar, podemos concluir que a operação militar de Tancos é um

happening cujo potencial de entretenimento público e de sucesso comercial é

reconhecido por uma empresa privada como a Invicta Film, que já então se posiciona

para se tornar a mais importante empresa de produção cinematográfica do país.

Concomitantemente, é um dos vários suportes com que o Ministério da Guerra regista

e, simultaneamente, cria o milagre de Tancos. Por outro lado, em 1916 existe ainda

uma expectativa benevolente na imprensa para com esta operação militar que o

incidente do comboio especial belisca mas não consegue ofuscar. Os jornais de todas

as tendências rendem-se a Tancos mesmo se, no caso da imprensa oposicionista, se

trata apenas de uma trégua no combate antiguerrista que seguirá dentro de

momentos.

É um sucesso que tem de ser colocado em perspectiva, tendo em conta um

óbice à eficácia da mensagem, especialmente importante no caso da imprensa: a

altíssima percentagem de analfabetos, à volta de 75% da população portuguesa. Seria,

porém, imprudente descartar o peso dos hábitos culturais e de sociabilidade

republicanos. De facto, a palavra escrita dos jornais transforma-se frequentemente em

palavra falada, chegando, assim, a muitos portugueses não alfabetizados mas

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frequentadores de cafés, associações e centros republicanos, tendo assim um efeito

multiplicador478. Este é, no entanto, um fenómeno sobretudo urbano, dificilmente

chegando ao Portugal profundo, marcado pela ruralidade, pelo atraso económico e por

redes clientelares antigas com poucas ou nenhumas simpatias pela República. O

cinema, embora mais eficaz junto das camadas populares não alfabetizadas, era à

época de igual modo uma realidade eminentemente urbana.

Alfabetizados ou não, a generalidade dos portugueses tinha dificuldade em

compreender os motivos para ir combater numa guerra em país estrangeiro –

incompreensão alimentada por uma intensa contrapropaganda que também circulava

em Tancos, em folhetos clandestinos. Isto para já não falar dos oficiais que consideram

os próprios exercícios de Tancos uma «cégada»479, inútil do ponto de vista da

preparação militar para a guerra.

Acabado o Verão quente de Tancos, o antigo chefe da Repartição de

Informações do Ministério da Guerra, já na sua nova qualidade de director do Serviço

de Censura Postal, na dependência do Ministério dos Estrangeiros, retira, da análise da

numerosa correspondência que, abordando a guerra, tinha sido enviada à comissão de

revisão da censura postal por conter matéria incriminadora, três conclusões principais

nada animadoras:

1ª) «Que a guerra não é popular.»; 2ª) «Que existe um acentuado espirito de revolta contra a idéa da nossa participação da guerra em territorio estrangeiro»; 3ª) «Que há pessoas que pensam na probabilidade de um movimento revolucionario para evitar a ida para a guerra, ou como consequencia dessa ida»480.

Esta chamada à realidade, lembrando tudo o que havia ainda por fazer para

levar a bom porto a difícil e inglória missão de conquistar a opinião pública portuguesa

para a causa da guerra europeia, não invalida nem que a operação Tancos tenha sido

um sucesso mediático nem que os dividendos para o ministro que a liderou tenham

478

Maria Alice Samara, As repúblicas da República: História, cultura política e republicanismo. 479

AHM, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1298, Cópia de of. confidencial do Director do Serviço de Censura Postal ao Director Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 09-10-1916. 480

Ibidem. As conclusões deste relatório foram por nós apresentadas e debatidas na conferência From the Trenches to Versailles: War and Memory (1914-1919), realizada em Lisboa em 2009, estando o texto das actas respectivas desde então no prelo (Helena Pinto Janeiro, «Norton de Matos e o Milagre de Tancos: Entre o Mito e a Realidade»). A importância deste relatório é igualmente destacada por Filipe Ribeiro de Meneses, no livro que entretanto publicou sobre Afonso Costa, Alfragide, Portugal, Texto, 2010, pp. 59-60.

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sido inestimáveis. Ou não fosse o mentor da operação Tancos creditado na imprensa

do Verão de 1916 como o autor do milagre do renascimento do Exército «como quasi

do nada»481. É certo que o crédito é partilhado com a equipa que escolheu para o

ladear nessa tarefa, nomeadamente o comandante da Divisão de Instrução, general

Tamagnini e o chefe do Estado-Maior, major Roberto Batista. Seja como for, em alguns

anos apenas, de improvável republicano, Norton passara a ser reconhecido pela

imprensa democrática como uma «alta individualidade da República»482, com provas

dadas do seu «talento», «saber» e «energia inquebrantavel». À sua «orientação

profundamente republicana e patriotica», dever-se-ia «tão transcendente afirmação

do nosso valor civico e militar».

De certa forma confirmando a avaliação de muitos dos seus colegas

republicanos, um dos órgãos da imprensa monárquica comenta, com um indisfarçável

despeito, que Norton se encontra fortemente escorado em Tancos e «Tancos é, hoje

em dia, o melhor padrinho. Quem fôr seu afilhado, não morre mouro.»483. Para

adversários como para correligionários, Norton é agora membro de pleno direito da

galáxia republicana.

O milagre que protagoniza no Verão quente de 1916 em Tancos tendo por

matéria-prima uma mole de civis vindos do Portugal profundo, maioritariamente rural,

analfabeto e de duvidoso republicanismo, é que ainda tem que passar pela prova de

fogo da guerra. Independentemente do gigantismo do esforço militar, por um lado, e

do apreciável efeito propagandístico no curto prazo, por outro, falta ainda saber se

Tancos vai conseguir esse outro milagre: que aqueles civis combatam nos campos da

Flandres como cidadãos e soldados da República, de preferência apoiados, na frente

interna, pela população portuguesa. Era uma fasquia que, bem ao gosto de Norton,

estava colocada num patamar extraordinariamente alto. Não só a guerra rebentara

com o exército português em plena mudança de paradigma, sem ter havido tempo

para a ambiciosa reforma de 1911 passar do papel à prática484, como o país estava

481

Ângelo Vaz, «DE RELANCE», A Montanha, 25-07-1916, p.1. 482

Ibidem. Até referência em contrário, as citações são deste mesmo artigo. 483

«O governo e o regresso», A Nação, 23-07-1916, p.1. 484

O tempo que decorreu entre a reforma de 1911 e a eclosão da guerra, insuficiente para que a reforma pudesse ser levada à prática na sua totalidade, é um aspecto crucial para se entender o estado

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totalmente dependente da Grã-Bretanha para providenciar o transporte, o

armamento, a alimentação e o treino suplementar do exército português em França,

dependendo igualmente da velha aliada para emprestar os avultadíssimos fundos

necessários para pagar tal esforço. Era um esforço hercúleo não apenas para o exército

e para as finanças do país mas, sobretudo, como reconhecerá Norton, para os

portugueses:

«Hoje mais do que nunca os exércitos são a representação da Nação a que pertencem e se no tempo de paz não soubermos ou não podermos fazer o saneamento físico e moral da população, não temos o direito de nos queixarmos do estado em que se encontra o exercito mobilizado.»485

Como é de seu timbre, não serão pormenores como o estado físico e moral da

população e do exército, nesse primeiro quartel do século XX, que atrapalharão a

missão a que Norton se propõe, para o que considera ser o bem maior de Portugal:

levar o exército português a combater na Flandres.

III.4. Do teatro de Tancos ao teatro da Flandres: o milagre posto à prova

III.4.1. Eu e a República…

A sete de Agosto, o Congresso da República aceita formalmente a participação

de Portugal na Guerra, de acordo com o convite do Governo britânico — que

finalmente se concretizara a 15 de Julho. A sessão conjunta da Câmara dos Deputados

e do Senado dá-se na véspera da conclusão da desmobilização das tropas de Tancos,

em pleno anticlímax da parada e da marcha para o exercício final.

No dia anterior, Norton anunciara publicamente estarem vencidas as

dificuldades que o país tivera para recrutar oficiais, «bem mais difícil que adquirir

material de guerra». Fala em nome próprio e em nome da República: República que

é agora, depois da operação Tancos, um pouco mais sinónimo da Pátria486. Com o

do exército em 1916. Luís Alves de Fraga, Do intervencionismo ao sidonismo: os dois segmentos da política de guerra na 1a República, 1916-1918, pp. 115-116 e passim. 485

AMH, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1325, Cópia de of. nº 122, confidencial, de Norton de Matos a Augusto Soares, 03-04-1917. 486

Na cerimónia de inauguração do novo curso da Escola de Guerra, presidida pelo Presidente da República: «Eu e a República (…) temos absoluta confiança na sua conduta [dos alunos da Escola de Guerra], certos de que saberão sempre defender a bandeira da República, que é bandeira da Patria. (…) Ides receber a bandeira da República no momento em que nos preparamos para a guerra, para onde iremos para nossa honra. (..)» («Escola de guerra: Com a assistência do sr. presidente da

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ego afagado pela recentíssima apoteose de Montalvo, Norton dirige-se aos alunos

da Escola de Guerra recorrendo ao grandiloquente plural «Eu e a República…».

Graças a Tancos, o improvável republicano é agora, de certa forma, um símbolo da

República, é a República. Ganhara um peso político que lhe permite apresentar-se

como uma entidade própria. O ministro não só encarna a República — agora de

modo inequívoco —, como, inclusive, acrescenta-lhe valor.

A confiança que em público exprime na identificação dos portugueses com a

bandeira republicana da beligerância, e com a bandeira republicana tout court, funda-

se no sucesso propagandístico da operação Tancos. Do mesmo modo, é em Tancos

que espalda a sua posição negocial nas reuniões que, a partir do final de Agosto,

manterá com os oficiais da missão militar franco-britânica destinadas ao estudo da

forma da cooperação militar portuguesa e à definição dos elementos a fornecer

pelos aliados para que a cooperação possa ter lugar. O argumento ‘Tancos’, na sua

dupla vertente de propaganda pelo facto e propaganda tout court, tem a sua

importância em dispor favoravelmente os oficiais aliados quanto à valia da preparação

militar portuguesa, como atrás vimos pelos ecos da sessão cinematográfica privada

proporcionada por Norton ao chefe da missão franco-britânica.

As negociações prosseguem, até que os britânicos aceitam que Portugal

mobilize uma divisão reforçada, o CEP, para se incorporar na frente ocidental na

British Expeditionary Force, fornecendo esta aos seus aliados portugueses, contra

pagamento futuro, transporte, alimentação, armamento e munições. Se a

Convenção com a Grã-bretanha, finalmente assinada a 3 de Janeiro de 1917, é uma

vitória do Governo da União Sagrada, escorada na acção do seu ministro da Guerra em

Tancos, não deixa de consagrar uma pecha fatal para a posição portuguesa. Como, em

privado, admitirá Norton ao general Tamagnini, em meados desse ano,

Republica inaugurou-se ontem o novo curso, distribuindo-se premios aos alunos do ano findo mais classificados: A entrega da nova bandeira», Diario de Noticias, 07-08-1916, p.1).

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«Não estamos a bater-nos em França exactamente como n’este paiz se encontram os inglezes, os belgas e amanhã os americanos»487.

A consciência desse óbice — e nesta carta o ministro refere-se, em particular,

ao facto de os portugueses estarem a receber treino militar adicional dos britânicos,

em França — não impedirá Norton de se comportar sempre nas relações institucionais

e pessoais com os britânicos como um igual, dando-se ao respeito e impondo

respeito488.

Dominada a revolta de 13 de Dezembro, liderada pelo turbulento herói do 5 de

Outubro, Machado dos Santos, e tomadas medidas para neutralizar os efeitos da

insatisfação de algumas unidades perante o iminente embarque para a Flandres489,

este finalmente acontece no mês seguinte. Do porto de Lisboa sai o primeiro

contingente do CEP, a bordo de três vapores britânicos, num total de 1551 oficiais e

38 034 praças490. Desembarcadas em Brest no início de Fevereiro, chegam à zona de

Thérouane, na Flandres francesa, concentrando-se em Aire-sur-la-Lys e Saint-Omer.

Estava finalmente ultrapassado «o barranco difícil»491 que Norton, nos últimos

dias do ano, desafiara Tamagnini a saltar, consigo e com a República. Se a República

487

Extracto de carta de Norton a Tamagnini, Paris, 30-06-1917 in Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, p. CXXXVII. 488

Facto já sublinhado por Alves de Fraga que dá grande ênfase a esta atitude, sublinhando tanto as declarações para consumo interno (nomeadamente nas sessões secretas do Parlamento em Julho de 1917) como as respostas oficiais a tentativas de subalternização da posição portuguesa por parte dos britânicos, em especial a tentativa de Lord Derby de anular o acordo a que ambos tinham chegado de que Portugal passaria a dispor de um Corpo de Exército. Cf. L. Alves de Fraga, Do intervencionismo ao sidonismo: os dois segmentos da política de guerra na 1a República, 1916-1918, respectivamente pp. 177 e 487-490. 489

Para debelar o golpe revolucionário de Machado de Santos, apoiado pelas tropas de Tomar, Norton nomeia o general Tamagnini comandante da 7

a Divisão, que passa a acumular com a 5

a, sendo-lhe dados

poderes sobre militares e civis (Peniche, Leiria, Pombal, Coimbra, Figueira da F, Montemor, Tomar e Abrantes). Machado Santos é preso e o golpe fracassa Cf. Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, pp. XLIV-XLIX. 490

Números apontados por Alves de Fraga que lembra que «Era a primeira vez na história militar do século XIX e do século XX que um tão elevado número de militares saía de Portugal para ir combater no estrangeiro. Representava um tremendo esforço de organização e vontade.» (Do intervencionismo ao sidonismo, p. 296). 491

A 27 de Dezembro, Norton incumbe Tamagnini de inspecionar, com a maior urgência, as unidades que estavam para embarcar, auxiliado por Gomes da Costa e por quem mais entendesse: «O fim d’estas visitas é observar o estado do espírito das unidades relativas ao embarque. [§] Veja tudo isto, meu general. Chegou a hora de saltar o barranco difícil, se não fizermos o salto, estamos perdidos irremediavelmente». Extracto de carta de Norton de Matos ao general Tamagnini, 27-12-1916 in Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, p. XLIX.

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Portuguesa, depois de todo o esforço feito, não conseguisse concretizar o envio dos

seus soldados para o combate na Europa, seria o fiasco para o regime e para o país.

Para Norton, em especial, seria o fim do escoramento da sua carreira política em

Tancos: «se não fizermos o salto», admite perante o general, «estamos perdidos

irremediavelmente.».

Dado o salto, é a vez de um segundo contingente de tropas portuguesas se

juntar ao primeiro e de se chegar a um entendimento com os britânicos para a

reorganização do CEP enquanto Corpo de Exército492. A 20 de Abril, a imprensa

portuguesa anuncia um novo Governo sob a presidência de Afonso Costa composto

unicamente por democráticos, embora contando com o apoio parlamentar também

dos evolucionistas. Estava, porém, roto o precário equilíbrio que permitira a formação

do ministério de União Sagrada de António José de Almeida493, por mais que o órgão

dos democráticos na imprensa da capital faça por passar a mensagem de que nada

mudara:

«Ficou ontem resolvida a crise ministerial. A situação política não se modifica. Subsiste a união dos dois partidos que no momento da declaração da guerra se juntaram para responder ao grosseiro repto alemão. (..) [O novo ministério] É o mesmo governo, com homens diferentes, animados das mesmas intenções, guiados pelos mesmos princípios, com uma homogeneidade que lhe permite agir com mais presteza.

O governo do sr. Dr. Antonio José de Almeida tem no seu activo a definição da nossa política internacional. (…) O ministério que lhe sucede continuá-la-á com a mesma firmeza, a mesma vontade enérgica e reflectida. O ministério anterior fez um exercito, melhor, a nação improvisou, dirigida por ele, um exercito, de que só existiam os quadros na sabia organização decretada pelo governo provisório, mas que a República não tivera tempo para executar. (..) Às grandes qualidades pessoais do sr. Norton de Matos se deve a rapidez com que nos aprontámos para cumprir o nosso primordial dever. Mas aos dois últimos governos cabem os elogios merecidos pela obra individual de cada um dos ministros, pela orientação colectiva dos

492

A proposta é feita pelo general Tamagnini Abreu e Silva em Fevereiro (Cf. AMH, 1ª Divisão, 35ª Secção, Cx. 1325, Nº 4, Of. nº 203 do comandante do CEP ao chefe de repartição do gabinete do Ministério da Guerra, 12-02-1917), tendo despacho favorável de Norton de Matos a 1 de Março, após resolução favorável do conselho de ministros e o acordo do governo inglês. No dia seguinte, «Comunico a V. Exa. que de acordo com o Governo Inglez, o C.E.P. vai ser elevado a um Corpo de Exército, com a composição por V. Exa. proposta e continuando sob o seu comando.» (Idem, Tel. nº 85 do ministro da Guerra ao comandante do CEP, 02-03-1917). 493

Há quem interprete esta coincidência temporal como não tendo sido inocente: os democráticos, uma vez que o CEP já estava em França, já não precisariam de fazer cedências e teriam provocado a queda do governo para ficarem a governar livres de quaisquer peias. Filipe Ribeiro de Meneses, União sagrada e sidonismo : Portugal em guerra (1916-18), p. 175.

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gabinetes.»494

A única diferença, para o articulista, seria existir, doravante, uma maior

homogeneidade de acção no seio do Governo, visto todos os ministros serem do

mesmo partido. Alega, no entanto, que a política será a mesma, tal como o inimigo (os

alemães). Ao trabalho «admirável», «de pasmar», desenvolvido por Norton no

Ministério da Guerra será dado o devido seguimento com a sua continuação na pasta

no novo ministério495. A imprensa monárquica tinha razão: Norton está realmente

escorado em Tancos.

Até porque, entretanto, a designação milagre de Tancos começa a estabelecer-

se como sinónimo da participação de Portugal na Grande Guerra no seu conjunto.

Desse modo, extravasa do teatro militar de Tancos para o teatro da Flandres e do

tempo do treino para o tempo do combate. A ampliação geográfica e cronológica

evoca uma semântica mais ambiciosa: o que começara por traduzir um renascimento

episódico e para inglês ver do Exército português ambiciona agora significar um

exército renascido que efectivamente combate — e morre — nas trincheiras496.

Nascido na imprensa periódica no Verão anterior, o milagre começa a adquirir vida

própria para lá do tempo curto dos jornais diários, sendo, nos primeiros meses de

1917, consagrado na capa de um livro, com o beneplácito do outro homem que, com

Norton, é, para retomarmos a expressão de Cortesão, a cara do facto (a ida à guerra):

Leote do Rego. Leote, o homem-forte da marinha de Lisboa, assina o prefácio do livro

que recolhe a maior parte das crónicas enviadas de Tancos pelo repórter-autor da

expressão milagre de Tancos, Adelino Mendes. «O milagre de Tancos» passa, de título

494

«Novo Governo», O Mundo, 20-04-1917, p.1. 495

«NORTON DE MATOS – Ministro da guerra. Ocupa esse lugar desde 15 [sic] de Maio de 1915. O seu trabalho no ministério da guerra tem sido admirável. Quando o país conhecer qual tem sido o seu esforço, ha de pasmar e admirar esse homem que tem preparado activamente a nossa intervenção na guerra. Energia, talento, bondade – todas essas qualidades possui abundantemente o sr. Norton de Matos. Organiza o Corpo Expedicionário Português, mas não se esquece de organizar ao mesmo tempo a Assistência ás famílias dos mobilizados. Isso demonstra o seu coração. Ficando na pasta da guerra continuará a sua obra com a mesma firme vontade de que seja honrado o nome português». «O Ministerio: Quem são os novos ministros: Republicanos e patriotas», O Mundo, 20-04-1917, p.1. 496

Retomamos neste parágrafo considerações por nós já feitas em H. Pinto Janeiro, «Tancos: A Génese de um Milagre».

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de crónica de jornal, a capa de livro497.

O «patriótico intuito» da nova publicação é, assumidamente, fazer a

propaganda da guerra, levando «a todos os cantos de Portugal» «a voz da razão» e

assim combater a «propaganda indigna» antiguerrista, explica Leote498.

Significativamente, às crónicas de Tancos junta-se uma crónica sobre os «exercicios da

divisão naval» que associam Leote e a sua Divisão Naval ao milagre consubstanciado

em Tancos. Leote, com a Divisão Naval, garante o regime republicano contra golpes

antiguerristas, tal como Norton garante, com o Exército treinado em Tancos, que o

regime vá à guerra na Europa. E ambos trabalham para garantir que a memória

histórica lhes faça a justiça que julgam merecer. No caso de Norton, isso incluirá a

fundação, no seio do ministério que tutela, do primeiro organismo oficial dedicado ao

cinema em Portugal, mesmo a tempo de filmar o embarque das primeiras tropas

portuguesas para França.

III.4.2. Da fita de Tancos à Secção Fotográfica e Cinematográfica do

Exército499

A fita de iniciativa ministerial promovida por Norton no Verão anterior, provara

o potencial propagandístico das imagens em movimento. O passo seguinte será a

criação, por despacho de 12 de Janeiro de 1917500, de um organismo no Ministério da

497

Adelino Mendes, Oldemiro César, A Cooperação de Portugal na guerra europeia: o milagre de Tancos. O livro não tem data de edição mas é seguramente já de 1917, como nos indica um comentário do prefaciador: «Estão ainda poucos oficiais e soldados nossos nas trincheiras, nesse chão sagrado da França (...)» (Idem, p. 10). 498

Para «que não se perdessem no “abismo do negro esquecimento” a que são votados todos os artigos de jornal, e ainda porque poderão valêr mais tarde, como modestos subsídios de duas testemunhas oculares do nosso esforço militar, uteis talvez a quem um dia pretenda esmiuçar a história da interferencia de Portugal na guerra (...)» Leote do Rego, «Palavras indispensaveis» in A. Mendes, O. César, A Cooperação de Portugal na guerra europeia: o milagre de Tancos, p. 7. 499

A história da SFCE é ainda pouco conhecida. A importância da sua criação foi no entanto já apontada por M. Felix Ribeiro, Filmes, figuras e factos da história do cinema português, 1896-1949, p. 186; e Jorge Pais de Sousa, O fascismo catedrático de Salazar, 2011, p. 98. Tiago Baptista, num estudo recente, não valoriza a fundação deste organismo, considerando, inclusive, ter existido um «divórcio entre o cinema e a República» (Tiago Baptista, «Cinema e Política na Primeira República» in Congresso Internacional I República e Republicanismo : Atas, Lisboa, Assembleia da República, 2012, p. 455). Retomamos neste subcapítulo alguns dados da nossa investigação sobre a SFFCE e Norton de Matos, levada a cabo no âmbito da preparação desta dissertação de doutoramento, que demonstram algo bastante diferente. Helena Pinto Janeiro, «The People in Arms in the People’s Entertainment: Cinema and Political Propaganda in Portugal (1916-1917)». 500

A referência ao despacho ministerial é feita no decreto que, em 1919, transformará a SFCE num organismo com «iniciativa, autonomia e dotação própria», a Direcção dos Serviços Gráficos do Exército

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Guerra capaz de produzir os próprios filmes: a Secção Fotográfica e Cinematográfica

do Exército (SFCE).

A 17, chama de urgência ao serviço militar activo o oficial que produzira a fita

de Tancos para o Ministério e, dois dias mais tarde, o capitão Ferrão encontra-se já a

prestar serviço na 4ª Repartição da 1ª Direcção-Geral da Secretaria de Guerra,

trabalhando na instalação da nova secção dedicada à fotografia e ao cinema, sob as

ordens do tenente-coronel Desidério Beça501.

Uma vez mais, a cronologia não é inocente, precedendo em duas semanas a

partida da 1ª brigada do CEP do porto de Lisboa para a Flandres, a bordo de três

vapores britânicos. A fita «Embarque das tropas portuguesas»,502 relativa a esse

primeiro embarque de 26 de Janeiro ou ao que se lhe seguirá, a 23 do mês seguinte,

faz parte do primeiro lote de produções do novo organismo que, após três meses de

funcionamento, tem prontas quatro fitas documentais503. Seriam exibidas numa

matinée por ocasião da inauguração oficial da secção, prevista, com pompa e

circunstância, para o teatro São Carlos, em Lisboa504. A cerimónia é pensada para

coincidir com a passagem do segundo aniversário da revolução de 14 de Maio. Não

chega, porém, a ter lugar por se ter interposto entretanto um programa mais

premente: a viagem de Norton de Matos a França e à Inglaterra.

(Decreto nº 5.935, de 28-06-1919 in DG, I Série, Nº 130, 04-07-1919). No preâmbulo deste diploma legal, afirma-se inequivocamente que o Decreto 4.214, de 13-04-1918, assinado por Sidónio Pais, que alega criar a SFCE, apenas «referendou» a existência de um organismo já anteriormente existente, criado em 12 de Janeiro do ano anterior precisamente com essa designação: SFCE. 501

AHM, 3ª Divisão, 7ª Secção, Cx. 2396, Processo Individual de Carlos Ribeiro Nogueira Ferrão. 502

Ao contrário das filmagens do embarque, pela SFCE, a fita do desembarque das tropas em França sobreviveu até aos nossos dias. Filmada por operadores da Pathé, foi exibida no seu Journal Actualité. A versão para o público norte-americano seguiu com a chancela da Hearst Pathé News com intertítulos explicativos: «Somewhere in France. Another contingente of Portuguese troops arrives in France, ready to do its share in the common cause». GPA, Journal Actualité Pathé / Hearst Pathé News, 1917 297/ 16562, Contingent portugais, 1917, 00:52 segs., P&B, mudo, in http://www.gaumontpathearchives.com, acedido a 12-05-2013. 503

“Embarque das tropas portuguesas”; “Provas da Escola de Aeronáutica Militar e lançamento da canhoeira Bengo”; “Queda de um Zepelim”; “Provas da Escola de Guerra”. A este leque de curtas-metragens, juntar-se-ia uma quinta fita, intitulada “Cidades destruídas em França” que dificilmente terá sido produzida pela SFCE pois não há notícia de algum técnico animatográfico português ter seguido com as tropas para França. ANM, Desidério Beça, «Programa para a inauguração das primeiras fitas da Secção Fotografica e Cinematografica do Exercito», 01-04-1917, dact., assin. 504

Ibidem.

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Mesmo sem a apresentação formal, a atenção que o ministro da Guerra dá ao

cinema e ao potencial deste novo meio para a instrução dos soldados é devidamente

destacada pela imprensa cinéfila. Afinal, organismos oficiais dedicados ao cinema são

uma novidade desta guerra nos principais países beligerantes. Portugal, à sua escala,

não é excepção505. Já com uma sede provisória em Lisboa, o serviço cinematográfico

fundado por iniciativa do major Norton de Matos, para além de servir para o

entretenimento do soldado português em períodos de descanso, irá educá-lo como

cidadão, incutindo-lhe amor pelo seu país, de modo a melhor se poder defender do

inimigo506.

Além de educar, o novo organismo oficial dedicado ao cinema destina-se a

fazer propaganda e deixar registos para memória futura507. É esse o triplo fim da SFCE,

determinado pelo ministro da Guerra em despacho do início de Abril: «o de arquivo

histórico o da instrução e o da propaganda das instituições militares»508.

A finalidade de constituição de um arquivo histórico encontrava-se

estreitamente ligado ao objectivo de instrução das tropas, sendo um arquivo para

facilitar «elementos de estudo ás nossas escolas militares e ás unidades do exercito,

505

No mesmo mês em que surge o organismo português, é criada em França a Séction photographique et cinématographique de l'armée. Fruto da fusão de dois organismos separados, dedicados respectivamente à fotografia e ao cinema, a mudança não é só burocrática. Na verdade, simboliza a vontade do Governo francês em passar a ter uma produção cinematográfica própria, ao invés de, como acontecia com a antiga Séction cinématographique de l'armée, limitar-se a enquadrar a actividade das grandes empresas cinematográficas. Na Grã-Bretanha, a criação de um organismo oficial dedicado ao cinema de guerra, o War Office Cinema Committee (WOCC), era recente, do último trimestre de 1916, tal como, aliás, acontecia com a secção militar para o filme e a fotografia (Militärische Film- und Photostelle) alemã. Esta última surgira em Novembro desse ano para supervisionar as filmagens relacionadas com a guerra, sendo transformada, no início de 1917, num novo serviço da imagem e do cinema (Bild und- Filmamt — BUFA), sob dependência conjunta da Direcção Superior do Exército e do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 506

«A cinemathographia na guerra» in Cine-Revista, no 1, 15-03-1917, p. 7.

507A constituição de um arquivo de imagens para memória futura é igualmente um objectivo essencial

da instituição homónima francesa (Laurent Véray, «Le cinéma de propagande durant la Grande Guerre: endoctrinement ou consentement de l’Opinion?» in Jean-Pierre Bertin-Maghit (ed.), Une histoire mondiale des cinémas de propagande, [Paris], Nouveau Monde Éditions, 2008, p. 39), com a diferença que as imagens que a Séction Photographique et Cinématographique de l’Armée filmava para arquivo incluíam imagens da guerra propriamente dita e não apenas de exercícios de preparação ou eventos na retaguarda. Outra diferença era, naturalmente, a escala de produção: a quantidade de fitas produzidas em França (onde já existia uma tradição de produção regular de actualidades filmadas, anterior à guerra) sem qualquer comparação com a reduzida produção da SFCE. 508

Nesse despacho, o ministro determina, ainda, que a Secção esteja isenta de qualquer carácter comercial e desprovida de qualquer «feitio de monopólio». ANM, Despacho aposto ao «Programa...» atrás citado.

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por meio da photographia e da projecção fixa e animada»509.

O ministro da Guerra, esse, visava já a construção de uma memória para a

história. É em Maio que Norton dá as primeiras instruções para a criação de um futuro

Museu Português da Grande Guerra que será formalizada por decreto publicado em

Outubro510. Para «perpetuar a memória da intervenção armada de Portugal e para

documentar, duma forma tanto possível completa, o esforço da Nação e a obra política

e militar da República» determina-se a reunião de uma extensa e variada lista de

objectos. Entre eles, incluem-se «Documentos fotográficos e cinematográficos

referentes a factos, aspectos, incidentes e propaganda da nossa preparação e acção

militar». No mês seguinte, a imprensa generalista de Lisboa, ao fazer o balanço da

produção cinematográfica da SFCE desde a data da sua criação, avalia-a precisamente

como um trabalho metódico em prol do Museu da Grande Guerra e em prol do

arquivo fílmico para fins de pedagogia militar511. Infelizmente para o historiador, o

decreto de Norton viria a ser anulado pouco após a revolução que instituiu a ditadura

sidonista512, e o projecto do museu que os iria conservar não foi avante. O esforço de

constituir filmes para memória futura ficou, assim, gorado, até porque muito pouco

subsistiu, deste ano inicial, nos próprios arquivos da SFCE513.

Podemos, não obstante, ter uma ideia do potencial propagandístico das fitas

produzidas pelo organismo cinematográfico do Ministério da Guerra em 1917 a partir

dos temas que abordavam. Além da preparação militar propriamente dita, foram

509

«A Cinematographia Official», Cine-Revista, Nº 4, 15-06-1917, p. 7. 510

O despacho ministerial encarregando o general na reserva José Castelo Branco de organizar o Museu Português da Grande Guerra data de 15-05-1917, de Paris. Cf. AD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Londres, Mç. 92. A criação do Museu será formalizada pelo Decreto nº 3.468, de 19-10-1917, DG, I Série, Nº 180, 19-10-1917. 511

«Metodicamente, a secção vai trabalhando para o museu da grande guerra e para o arquivo histórico que será devidamente classificado, para facilitar a acção pedagógica dos nossos estabelecimentos de ensino» («Secção Fotografica e Cinematografica do Exercito: Uma visita ás suas instalações provisorias», Diário de Notícias, 09-11-1917, p.1). O Museu teria, aliás, além da secção museológica, um arquivo e uma biblioteca. 512

Decreto nº 3.920, de 28-01-1918, DG, I Série, Nº 49, 13-03-1918. 513

Segundo informação do ANIM, instituição à guarda da qual se encontram os filmes da SFCE-CAVE subsistentes, a única fita produzida pela SFCE no ano da sua fundação (1917) que sobreviveu nos arquivos dessa instituição (actual CAVE) é: ANIM, Participação de Portugal na Guerra - Regresso do Presidente da República da Sua Viagem ao " Front " Portuguez. [Lisboa]: SFCE, 1917, P&B, mudo, 35 mm, 04:33 min., disponível em http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=2121&type=Video, acedido a 22-07-2013.

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filmados documentários de festas patrióticas com alto valor simbólico no imaginário

republicano. É o caso da festa organizada pelas alunas do Instituto de Odivelas no dia

10 de Junho, dia do poeta Camões, a que o Presidente da República preside514.

Em 1917, com a República já há uns anos no poder e a passar pela prova de

fogo da guerra, o poder mobilizador da festa do poeta da epopeia nacional da

expansão marítima, convenientemente republicanizado515, não era já tão grande como

noutros tempos. O seu potencial evocativo permanecia, não obstante, considerável,

sendo aproveitado para reforçar a convicção dos espectadores na vitória aliada e, com

ela, na vitória portuguesa. A efeméride é associada à celebração das tropas aliadas em

guerra, cuja vitória se preanuncia, ou não se chamasse a festa, desde já, «Feira da

Vitória»516. Ao filmar a festa de Camões, reinventada como festa da desejada vitória da

República na guerra, os SFCE estão a fazer propaganda recorrendo a um imaginário

que não é apenas património republicano mas já nacional517.

Os outros filmes da SFCE exibidos no circuito comercial de Lisboa no Outono

seguinte são todos relativos a eventos de natureza militar no país518. A imprensa

514

O evento é filmado pela SFCE: cf. «A Cinematographia Official» in Cine-Revista, Nº 4, 15-06-1917, p.7. 515

As comemorações do III centenário da morte de Camões, em 1880, tinham inaugurando o «ciclo nacionalista-imperialista» das liturgias cívicas comemorativas, trazendo às ruas as massas republicanas. Fernando Catroga, «Ritualizações da história» in L. R. Torgal, J. Mª Amado Mendes, F. Catroga, História da história em Portugal, sécs. XIX-XX, Volume 2, Da historiografia à memória histórica, Lisboa, Temas & Debates, 1998, p. 226. 516

Sob a I República, o 10 de Junho começa por ser feriado municipal em Lisboa (desde 1913), sendo celebrado excepcionalmente como feriado nacional em 1920. Nesse ano, faz-se coincidir o dia da morte de Camões com o «dedicado à inauguração dos monumentos concelhios em homenagem aos portugueses mortos pela Pátria na Grande Guerra em África, na França e no Mar» (Andrade, Luís M. Oliveira, História e memória: a Restauração de 1640 : do liberalismo às comemorações centenárias de 1940. Coimbra, MinervaCoimbra, 2001, p. 76). Em 1925, no rescaldo das comemorações do IV Centenário do nascimento de Camões do ano anterior, o dia 10 é decretado uma festa nacional, nomeada «Festa de Portugal» sendo também conhecida desde essa altura como a «Festa da Raça Portuguesa». Será já durante a Ditadura Militar que a festa nacional do 10 de Junho se estabelecerá definitivamente como feriado nacional (1929). Em 1952, o Estado Novo irá fixar o feriado como Dia de Portugal (Idem, pp. 74-76; 83; 100-101). 517

Cumpre, assim, uma das características da propaganda sociológica tal como foi definida no estudo clássico de Jacques Ellul: «Propaganda must be familiar with collective sociological presuppositions, spontaneous myths, and broad ideologies. (…) Only if it rests on the proper collective beliefs will it be understood and accepted». Jacques Ellul, Propaganda: The Formation of Men’s Attitudes. New York, Vintage Books Edition, 1973, pp.38-39. 518

A 19 de Outubro, estreia no Salão Trindade o filme “Provas finais dos alunos da Escola de Guerra”. No fim do mês, estreiam, em simultâneo em dois cinemas de Lisboa, o Chiado Terrace e o Olympia, mais cinco «films officiaes do Ministerio da Guerra Portuguez: “Entrega da bandeira da cidade de Lisboa ao cruzador Vasco da Gama”; “Transporte de tropas para França”; “Escola de officiaes milicianos (Queluz)”;

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cinéfila considera-os «titulos honrosos para o trabalho nacional, que, na especialidade

e como acima dizemos, está entregue a mãos de aboluta competencia.»519. Anuncia

ainda, para breve, a exibição no Salão Central de uma nova fita, desta vez sobre o

juramento de bandeira da Escola de Guerra.

A 25 de Outubro, a SFCE filma a chegada a Lisboa do Presidente da República

Bernardino Machado, acompanhado do primeiro-ministro Afonso Costa, vindos da

visita à frente portuguesa em França. A acção decorre no exterior e as personalidades

vêem-se ao longe, sendo o protagonismo dado à multidão. A SFCE trata de ligar essa

saída à rua do povo de Lisboa com uma manifestação de apoio não apenas ao governo,

a que Norton presidiu interinamente na ausência de Costa, mas também aos

combatentes portugueses em França520.

Se a preparação militar de Portugal para a guerra fica registada em película

cinematográfica pela SFCE, o mesmo não se pode dizer da guerra propriamente dita. É

certo que, em Outubro, o comandante do CEP será avisado que o Governo debaterá a

breve trecho a proposta de envio para França de um operador cinematográfico, com o

material respectivo. O repórter cinematográfico, juntamente com um fotógrafo e um

jornalista, este graduado com o posto de capitão, iriam, assim, juntar-se ao fotógrafo

Arnaldo Garcês e ao pintor Sousa Lopes que já se encontravam em França ao serviço

do CEP, por determinação de Norton. O objectivo do reforço do pessoal seria fazer

«propaganda e publicidade no nosso paiz como também para tirarmos todos os

devidos efeitos políticos e sociaes da nossa intervenção na guerra»521. Se então é o

ministro da Instrução a assumir este objectivo, a verdade é que a iniciativa continua a

“Escola de Aviação em Vila Nova da Rainha”; e “Lançamento da Canhoeira Bengo”. «Films nacionais», Cine-Revista, Ano I — Nº 9, 15-11-1917. 519

Ibidem. 520

Ao intitular o curto apontamento cinematográfico, com cerca de quatro minutos e meio de película, «Participação de Portugal na Guerra…». ANIM, Participação de Portugal na Guerra - Regresso do Presidente da República da Sua Viagem ao " Front " Portuguez. [Lisboa]: SFCE, 1917, P&B, mudo, 35 mm, 04:33 min, disponível em http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=2121 &type=Video, acedido em 22-07-2013. Não temos registo da data da sua exibição. 521

Cf. excerto de carta do ministro da Instrução, Barbosa de Magalhães, ao general Tamagnini Abreu e Silva in Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, p. CXXXII.

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ser do seu colega da Guerra. É deste que partirá o convite a Ernesto de Albuquerque

para ir filmar o CEP em França522.

Como Albuquerque não chegará a partir, pois entretanto rebenta em Lisboa a

revolução sidonista, a cobertura cinematográfica da participação portuguesa na frente

ocidental do primeiro conflito militar mundial do século XX continuará a cargo de

operadores animatográficos franceses e britânicos523. Na verdade, quando Norton de

Matos se prepara para alargar a cobertura cinematográfica da retaguarda da guerra

em Portugal para o país onde efectivamente os portugueses combatem, o Governo

cairá às mãos de uma revolução chefiada por Sidónio Pais que logo coloca o cinema ao

serviço da sua promoção pessoal junto das massas populares, filmando os banhos de

multidão em que as suas viagens pelo país se transformam524. A imagem deste facto é

tão poderosa que, quando, poucos meses depois, Sidónio publica um decreto

alegadamente criando a SFCE525, rapidamente todos se esquecem que se limitou a

usufruir de uma estrutura que Norton levantara e deixara já a funcionar em velocidade

de cruzeiro, com um corpo de funcionários, sede própria e produção fílmica conhecida

do público português.

Avesso ao «processo do papelório» e mais preocupado em fazer acontecer,

Norton não chegara a consagrar a fundação em decreto, com o respectivo

regulamento, em Diário de Governo — lacuna que Sidónio se apressará a colmatar. A

prevista inauguração oficial no teatro São Carlos no segundo aniversário da revolução

522

A escolha é compreensível, atendendo que Albuquerque trabalhara com o capitão Ferrão no filme das manobras de Tancos encomendado por Norton no Verão do ano anterior. O «grande e justo sucesso» dessa fita é lembrado pela imprensa cinéfila anos mais tarde, doravante destacando o papel de Albuquerque e deixando o de Ferrão na sombra. F. Gomes de Sousa, «Ernesto d’Albuquerque» in Cine-Revista, n. Ano IV - N

o 44, 15-11-1920: 1-2

523O que não significará necessariamente que os soldados portugueses passem a aparecer nos ecrãs em

cenas de combate. São relativamente escassas as fitas francesas ou britânicas em que o CEP aparece, embora ainda esteja por fazer um levantamento exaustivo. Os soldados são filmados nos navios em que chegam a França, em desfiles, em treinos militares. São também filmados políticos portugueses em visita a França, como o ministro da Guerra, o chefe do governo e o Presidente da República. Nas fitas do último ano da guerra, o panorama não é muito diferente deste (Para os filmes recolhidos nos GPA, cf. http://www.gaumontpathearchives.com; para os constantes do acervo do Imperial War Museum, cf. Roger Smither (ed.), Imperial War Museum film catalogue, vol. 1, The First World War Archive, Trowbridge, Flicks Books, 1994). 524

Jorge Pais de Sousa, O fascismo catedrático de Salazar, pp. 132-142. 525

Sidónio Pais, Decreto 4.214, de 13-04-1918, «criando [sic] e regulamentando a Secção Fotográfica e Cinematográfica do Exército», DG, I Série, N

o 99, 08-05-1918.

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que levara Norton ao Governo, cujo simbolismo e glamour não era de seu timbre

desdenhar, acabara por não se concretizar devido a um motivo ponderoso.

Como de seguida veremos, o ministro encetará na capital britânica uma

negociação difícil com o governo de Lloyd George sobre o transporte das tropas

portuguesas para França. Em causa estava não apenas a recusa dos britânicos em

assegurarem o transporte adicional das tropas necessárias para a transformação do

CEP num corpo de exército, como, a certa altura, a própria interrupção do transporte

tout court.

III.4.3. Missão a França e Inglaterra: revista de tropas ou política pura?

Ao longo de 1917, a estrela do ministro da Guerra está em alta e não tardará,

até, a ameaçar ofuscar o carismático Afonso Costa. O ponto de viragem será a missão

oficial de Norton à França e à Grã-Bretanha526 entre Maio e Julho desse ano.

Chegado à capital francesa, a 14 de Maio, é recebido no dia seguinte pelo

general Pétain, que nesse mesmo dia sucede ao general Nivelle como comandante-

em-chefe das French Northern and North-Eastern Groups of Armies. A 17, o ministro da

Guerra assina uma convenção militar com o seu homólogo francês, Paul Painlevé,

sendo depois recebido no Palácio do Eliseu pelo Presidente Poincaré527. A Convenção

Militar para o Emprego de forças Portuguesas de Artilharia Pesada na Linha Francesa

de Operações em França528 regula a criação de um Corpo de Artilharia Pesada

526

Esta missão não mereceu, até à data, a atenção da historiografia, excepção feita ao apontamento de Alves de Fraga, baseado em documentação do AHM, Do intervencionismo ao sidonismo, pp. 366-368. Para enquadrar a viagem de Norton no contexto das relações bilaterais luso-britânicas, recorreremos à vasta bibliografia sobre a guerra, uma vez que a literatura crítica sobre as relações diplomáticas bilaterais concentra-se sobretudo no período que precedeu a formalização da beligerância portuguesa. Cf. John D. Vincent-Smith, As Relações Políticas Luso-Britânicas 1910-1916, Lisboa, Livros Horizonte, 1975; e Rui Ramos, «Aparências e realidades: os republicanos perante a Aliança Inglesa até à Primeira Guerra Mundial» in Filipe Ribeiro de Meneses, Pedro Aires Oliveira (coord.), A primeira república portuguesa: diplomacia, guerra e império, Lisboa, Tinta-da-China, 2011, pp. 81–109; Sobre as relações luso-francesas, veja-se Jean Derou, Les relations franco-portugaises à l’époque de la première république parlementaire libérale : 5 octobre 1910-28 mai 1926, Paris, Publications de la Sorbonne, 1986. 527

Juntamente com o ministro de Portugal em Paris, João Chagas. AHD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Paris, Mç. 69C, Of. do Ministère des Affaires Étrangères - Protocole ao ministro de Portugal em Paris, Paris, 15-05-1917. 528

O texto pode ser consultado em AD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Londres, Mç. 96, Proc. 28/31, «Cooperação militar na Europa 1916-18», Cópia dactilog.

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Independente (CAPI). A convenção deixava uma autonomia bastante larga ao futuro

CAPI, submetido à jurisdição portuguesa.

A atribuição de um contingente de artilheiros à França como um elemento de

compensação529 aos franceses, por o CEP estar integrado no exército britânico, e não

no francês, era também vista pelo Governo português como uma forma de aumentar a

visibilidade do país na frente europeia da guerra e, logo, o seu peso político530. Era,

igualmente, um modo indirecto de pressionar os britânicos, que estavam a levantar

problemas ao fornecimento de artilharia pesada, bem como de aeroplanos, para o CEP

poder transformar-se num Corpo de Exército. Como Norton fizera questão de lembrar

a Barnardinston, «não se pode constituir um corpo de exército sem lhe darmos

artilharia pesada»531.

O comandante do CEP, que luta com falta de meios, vê a convenção, e o CAPI,

por ela regulada, como uma dispersão de recursos difícil de entender, quando Portugal

estava a fazer um tão grande esforço com o CEP, integrado nas British Expeditionary

Forces (BEF). Tamagnini comenta no seu diário de campanha o absurdo desta

dispersão de esforços por parte da República Portuguesa. Pois se não havia maneira de

o país fazer chegar os homens e os meios para completar o CEP, tal como se havia

comprometido com os britânicos, como iria Portugal conseguir agora desdobrar-se e

ceder militares também para as forças francesas? Seja como for, a boa-vontade do

Governo português e, em especial, do ministro da Guerra, não deixará de ser

devidamente apreciada pelo Governo francês.

A 18 de Maio, Norton inicia finalmente a visita às tropas do sector português

em França, integrado no 1.º Exército das BEF, sob o comando do general Horne. O

ministro tem oportunidade de ouvir, de viva voz, do comandante do CEP pedidos

instantes para que os oficiais em falta nos contingentes já chegados a França sejam

529

O ponto de vista é desenvolvido por Jean Derou, Les relations franco-portugaises à l’époque de la première république parlementaire libérale, p. 118 e segs. 530

A verdade, porém, é que, na prática, a colaboração franco-portuguesa por essa via «allait, en définitive, s’avérer éphémère et inconsistente». Idem, p. 119. 531

AD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Londres, Mç. 96, Of. de Norton de Matos ao major-general Barnardinston, transcrito no Tel. nº 125, do ministro dos Negócios Estrangeiros ao ministro de Portugal em Londres, de 02-05-1917.

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enviados quanto antes532. Norton bem conhecia as deficiências com que os embarques

de tropas estavam a ser realizados em Lisboa, tendo de lidar com boicotes a vários

níveis da cadeia de comando do exército. Em consequência, a capacidade dos navios

estava longe de ser aproveitada em pleno, o que causava a exasperação do

comandante do CEP, para já não falar do almirantado britânico.

Em Maio, altura em que as cidades de Lisboa e Porto são assoladas pelos assaltos

descontrolados às mercearias e motins vários que ficaram conhecidas pela revolta da

batata533 — a batata com que o povo com fome tentava substituir a escassez de pão

em tempo de guerra — novas achas são acrescentadas a esta fogueira, como relata o

general Tamagnini:

«Soube que um terço da expedição, creio que já embarcada em Lisboa, teve ordem para não seguir, em consequencia dos tumultos lá havidos, e que o governo inglez mandou recolher os transportes, ficando assim interrompida a vinda de que cá nos faz falta, que ainda é muito. Se o governo não toma a resolução de empregar 9 navios ex-alemães que ainda tem, e não manda para cá mais gentes, então temos conversado. A nossa representação entre os alliados será uma cousa apagadíssima, donde não poderá resultar vantagem, nem para o paiz, nem para o Exercito. O ministro da Guerra, que está em Londres, no regresso a Portugal, vem por aqui. Bom será que se compenetre bem da situação e faça o que deve ser feito, já que temos em França alguma gente, o que é preciso é não abandonar negando-lhe o que esta urgentemente necessita para cumprir o seu dever.»534.

Os motins da fome não se limitam a perturbar a logística do embarque das

tropas, fazem parte de uma agitação geral contra a guerra e as suas consequências,

sendo acompanhadas por novas insubordinações militares: os batalhões de Infantaria

1 e 2 partem de Lisboa amotinados. Já de Londres, onde chegara dia 21, Norton

telegrafará a Tamagnini recomendando a maior severidade para com estas tropas que

irão desembarcar no porto de Brest535.

532

AHM, FP/51, Arqº Particular Tamagnini de Abreu e Silva, Cx. 857, Série 2 — Diário particular do Comandante do CEP, 1

o Fascículo, De 21 de Fevereiro a 20 de Maio de 1917, mns., passim.

533Apelidada por Cortesão de «revolução da fome». Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra (1916-

1919), p. 50. Cf. Ana Paula Pires, Portugal e a I Guerra Mundial, p. 261. 534

AHM, FP/51, Cx. 857, Série 2 — Diário particular do Comandante do CEP, 2o Fascículo. De 20 de Maio

de 1917 a 29 de Julho de 1917, 1917, pp. 28-29. 535

A 29 de Maio escreve: «Acabo de receber um telegrama de Londres do ministro Norton de Matos dizendo que hoje sahem forças de Lisboa para Brest, e que os batalhões de Inf. 1 e 2 veem insubordinados. Recomenda que dê instrucções para Brest e proceda com a maior severidade. Mais uma cousa para a corda do sino!» Idem, pp. 33-34.

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A deslocação a Londres do ministro da Guerra português, onde permanecerá

quase um mês, fora decidida pelo recém-formado Governo de Afonso Costa. A 2 de

Maio, o ministro dos Negócios Estrangeiros informara o ministro de Portugal em

Londres, Teixeira Gomes, que Norton iria aproveitar a ida a França, onde ia visitar as

tropas portuguesas, para deslocar-se também a Londres536. A questão é, no entanto,

colocada precisamente ao contrário por Afonso Costa, pelo menos em sede de

conselho de ministros: «é indispensável que o Sr. Ministro da Guerra vá a Inglaterra,

aproveitando a ocasião para visitar as nossas tropas.»537. O objectivo era sensibilizar o

governo de Lloyd George para que honrasse os compromissos assumidos com Portugal

quanto à transformação do corpo expedicionário português num corpo de exército. O

busílis da questão era a Grã-Bretanha continuar a disponibilizar os seus navios para o

transporte das tropas portuguesas para França — doravante num maior número.

Augusto Soares cita longamente um telegrama de Norton a Barnardiston538, no

qual o ministro da Guerra português lembra ao chefe da missão anglo-francesa que a

ideia de enviar uma segunda divisão portuguesa para França e poder, desse modo,

constituir um corpo de exército, viera dos próprios britânicos, tendo Portugal

concordado ainda no final de Fevereiro. É certo que não se chegara a assinar qualquer

convenção que formalizasse a transformação do corpo expedicionário num corpo de

exército mas «de parte a parte se tinha assente nisso e se tinham criado obrigações

mútuas e reciprocas». Obrigações que teriam que passar necessariamente pelo

transporte adicional para França de mais tropas portuguesas, indispensáveis à

formação desse corpo de exército. Os britânicos, que nos termos da Convenção

assinada em Janeiro, já se tinham responsabilizado pela disponibilização de sete navios

para o transporte, escoltados por quatro destroyers, para o transporte da 1ª divisão

portuguesa, tinham já começado a transportar também a 2ª divisão. Era este processo

que ficaria agora comprometido.

536

AHD-MNE, Arqo da Legação em Londres, Mç 96, Tel. nº 125 de Augusto Soares a Teixeira Gomes, 02-

05-1917. 537

A. H. de Oliveira Marques (ed.), O Terceiro Governo Afonso Costa - 1917 (Actas dos Conselhos de Ministros), Mem Martins, Publicações Europa-América, 1974, p. 73. 538

Em que é relembrado todo o historial desta questão. O extenso telegrama de Norton a Barnardinston é transcrito por Soares na comunicação a Teixeira Gomes: AHD-MNE, Arq

o da Legação em Londres, Mç.

96, Tel. nº 125, de 02-05-1917.

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Para compreendermos a posição britânica, ao mais alto nível, focaremos a

nossa atenção no que se debateu e foi decidido em relação ao aliado luso nos

conselhos de ministros do governo de David Lloyd George, o War Cabinet, nos dois

meses anteriores à visita do ministro português. Em cima da mesa encontra-se a

questão de haver ou não condições, para além de vontade política, para providenciar o

transporte marítimo de mais tropas portuguesas para a frente ocidental.

A 26 de Março, o governo de Sua Majestade decide-se pela negativa539,

aprovando as recomendações de um comité nomeado para estudar o assunto, sob a

presidência do homólogo de Norton, Lord Derby, a partir de um memorando do

Almirantado:

«The Committee (…) recommend that the Portuguese Government should be

informed that serious shortage of shipping and the urgent necessity of making the

fullest possible use of every available destroyer in combating submarine menace,

cause His Majesty's Government to regret that, under existing conditions, they are

unable to make any arrangements for the transport of the additional troops entailed

by the proposed increase, but trust to be able to put forward proposals at a later

date.»540.

O argumento usado pela comissão, de razoabilidade compreensível face aos

desastrosos efeitos que a guerra submarina conduzida pelos alemães estava a ter na

frota britânica, é acompanhado de uma proposta, que o executivo de Lloyd George

decide igualmente adoptar. O alvitre retoma uma ideia recorrente da diplomacia

britânica relativamente ao seu aliado português, que os governantes portugueses

acreditavam já definitivamente ultrapassada: quando houvesse disponibilidade de

navios, melhor seria que a prioridade de transporte fosse dada, não às tropas, mas aos

trabalhadores para construção de caminhos-de-ferro e batalhões de trabalho541. Ora a

prioridade do governo português e, em especial, do seu ministro da Guerra, é

precisamente a oposta: ter em França tropas suficientes para assegurar a formação de

um corpo de exército, com a visibilidade que a emissão de um comunicado diário lhe

539

NA-UK, CAB 23/2 First World War conclusions, WC104 (13), 26-03-1917. 540

NA-UK, CAB 23/2, WC 99, G.T. – 210, Appendix II, Lord Derby et alia, Report of the Comitee on the Proposed Increase in the Portuguese Contingent now being transported to France, Março 1917. 541

«The Commitee further recomend that the War Office be authorised to approach the Portuguese Government with a view to railway construction and labour battalions, as they become avaiable, taking priority over the Portuguese troops already under orders for the Western Front, but still awaiting transport». Ibidem.

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permitiria – objectivo que, por si só, o envio de trabalhadores manifestamente não lhe

asseguraria.

Não admira que o War Cabinet recomende que a notícia seja dada com

particular cuidado, de modo a não ofender a susceptibilidade do aliado luso542. Seria

difícil, porém, encontrar maneira de suavizar tal conteúdo. O governo português,

profundamente desagradado, insta a que a decisão seja revista. Debalde. O governo de

Sua Majestade, reunido a 23 de Abril, reitera a decisão, invocando «shipping

considerations»543.

Acontece que toda a estratégia portuguesa ficaria comprometida se não

houvesse como transportar os meios humanos necessários para Portugal ser

reconhecido como beligerante de pleno direito, e não apenas como uma peça

acessória das BEF. Compreende-se, por isso, que o ministro da Guerra tenha ido

pessoalmente a Londres tratar de desbloquear a questão.

O calendário da viagem dificilmente poderia ser mais oportuno pois,

precisamente em Maio, o governo de Lloyd George debate uma proposta do First Sea

Lord do Almirantado que, a ser aprovada, daria a machadada final no projectado

aumento do contingente português. Inclusive, comprometeria o completamento de

falhas nos contingentes no terreno, nomeadamente de oficiais, ou, sequer, o

roulement das tropas já então em França. De facto, o almirante Sir John Rushworth

Jellicoe propõe, nada mais, nada menos, do que a descontinuação do transporte de

tropas portuguesas para França.

A 15 de Maio, o conselho de ministros remete a decisão final para um trio

composto pelo autor da proposta, o secretário de Estado para os Negócios

Estrangeiros em exercício, Sir Robert Cecil, e o chefe do Estado-Maior Imperial, general

542

«In reference to War Cabinet, 99, Minute 16, the War Cabinet approved the Report of Lord Derby’s Committee (Paper G.T.-210) recommending that, in view of the shipping situation and the reports on the Portuguese Contingent already landed in be transported should not he agreed to, and that the Portuguese Government should be approached with a view to the Railway Construction and Labour Battalions already arranged for having priority of shipping. In view of the sensitiveness of the Portuguese, the War Cabinet invited the Secretary of State for War to word his refusal so as to avoid giving any cause of offence to the Portuguese Government and nation». NA-UK, CAB 23/2, WC104 (13), 23-05-1917. 543

NA-UK, CAB 23/2, WC 124 (19), 23-04-1917.

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William Robertson. Se Jellicoe tem funções equivalentes às de chefe do Estado-Maior

Naval, Roberston é o chefe máximo do exército imperial e o principal conselheiro do

Governo britânico em questões de estratégia militar. Temos, assim, a decisão nas

mãos das chefias do almirantado e do exército, mais do que nas dos Negócios

Estrangeiros544. De fora do trio fica o secretário de Estado da Guerra, talvez por Lord

Derby estar de partida para França, onde se avistará com o seu homólogo português545

deixando agendado um almoço entre ambos para o dia 24, já em Londres, em que o

dossier quente do momento, os transportes, não deixa de ser abordado.

Entretanto, Norton chega à capital britânica. O oficial destacado para

acompanhar o ministro português da Guerra durante a sua estada em Londres é o

chefe da missão militar britânica em Lisboa, vindo pouco antes da capital portuguesa.

O major-general Barnadiston demonstrará ser, na preparação da visita oficial de

Norton, um algo inesperado advogado de defesa da posição portuguesa. O oficial

britânico, que tão desagradavelmente impressionara os portugueses na sua primeira

reunião de trabalho em Portugal no Verão anterior546, sintetiza no seu diário pessoal

do dia 16 de Maio o seu encontro com Lord Derby dessa manhã, mesmo antes do War

Cabinet reunir, sob a presidência de Sir David Lloyd George:

«I spoke about [the] Portuguese and put their case before him as fairly as I could.»547

Lancelot Carnegie, em ofício confidencial enviado nesse mesmo dia da Legação

da Grã-Bretanha em Lisboa a Balfour, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros,

sublinha a influência considerável que Norton goza em Portugal548. Ao crescente peso

544

«With reference to the proposed discontinuance of transport of further Portuguese troops to France, as set forth by the First Sea Lord (Paper G.T. - 713), the War Cabinet agreed that the matter should be referred for decision to Lord Robert Cecil, the First Sea Lord, and the Chief of the Imperial General Staff». NA-UK, CAB 23/2, WC138(7), 15-05-1917. 545

AHM, FP/51, Cx. 857, Série 2 – Diário particular do Comandante do CEP, 1o Fascículo, p. 194.

546Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de

Fernando Tamagnini, p. XXXIV. 547

KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/3, [Diário] 1916, mns. 548

Mais: conta com ela para garantir que a aproximação que Afonso Costa está, nessa altura, a fazer à Espanha não extravasará para algo menos inócuo para os interesses britânicos do que as meras relações de amizade desejáveis entre dois países que partilham uma longa fronteira na Penísula Ibérica: «Should Dr. Costa therefore shows signs of being unduly amenable to Spanish attentions, Senhor Norton de Mattos, whose influence is considerable, is evidently quite prepared to oppose the conclusion of agréments that are calculated to entail more than the establishment of close and friendly relations between the two countries, to which (..) he is in no way opposed». NA-UK/FO/371/3035, Of. confidencial n

o 51, de Lancelot D. Carnegie a Balfour, Lisboa, 16-05-1917, recebido a 26-05.

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político do ministro da Guerra não são alheias as suas invulgares capacidades que

sobressaem no seio do panorama político português ou, na visão mais crua de

Barnardiston, escrevendo num registo privado já em 1919, no seio dos portugueses

tout court549.

É duvidoso, no entanto, que o reconhecimento do peso político de Norton em

Portugal tenha influência no modo como os britânicos reagem às pressões do governo

português para que sejam desbloqueados os entraves colocados ao transporte de

tropas portuguesas para França. Em boa verdade, muito mais do que o seu homólogo

britânico, Norton tem de convencer o Almirantado. Missão particularmente difícil

numa altura em que a guerra submarina alemã está no auge e inflige pesadas baixas.

Razão pela qual Barnardiston trata de providenciar a Norton, logo no dia seguinte à

sua chegada, uma conferência no Foreign Office com Sir Robert Cecil, na qual também

está presente o almirante Sir John Jellicoe550.

Cecil começa por reiterar a posição do seu governo quanto à indisponibilidade de

aumentar os efectivos portugueses na frente ocidental, para além do previamente

combinado. O almirante Jellicoe, por seu turno, cede a Norton apenas no acessório:

promete-lhe dois destroyers para escoltar os navios de transporte de tropas, sendo

que teria de ser Portugal a disponibilizar estes últimos551.

Trata-se de uma oferta inconsequente, como Jellicoe não poderia deixar de

saber, pois Portugal não dispõe dos navios necessários para a tarefa552. Inconsequente

549

«The Portuguese are as a rule without organising abilities. There are a few exceptions, one of the most notable being Col. José Norton de Mattos, the war minister under the Democratic and Coalition Governments, 1916-17. He was very good». KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/5 [Diário e bloco de notas] 1919, mns. 550

KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan 17, mns. 551

«With reference to War Cabinet 138, Minute 7, the Acting Secretary of State for Foreign Affairs [Robert Cecil] stated that he, in the presence of the First Sea Lord, had interviewed the Portuguese Minister for War, and had informed him that no troops, other than those already arranged for, could be taken from Portugall to the Western front. // The First Sea Lord [Sir J.R. Jellicoe] stated that he had promised two destroyers to act as escort to the transports appropriated for the conveyance of the balance of the Portuguese contingent». NA-UK, CAB 23/2 WC144 (13), 23-05-1917. 552

Como, na prática, se verá quando, a partir do Outono desse ano, o Almirantado britânico finalmente levar a sua avante. A partir de então, a ligação com o CEP por via marítima passará a contar unicamente com dois navios portugueses, manifestamente insuficientes para assegurar sequer a rotação das tropas, quer pela sua limitada lotação quer pelos problemas técnicos de que enfermavam. Cf. António José Telo, Primeira República I : Do Sonho à Realidade, Lisboa, Editorial Presença, 2010, pp. 389–390.

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ou não, pelo menos Jellicoe não fecha totalmente a porta a uma eventual reversão da

situação num futuro mais ou menos distante. Tão frustrante reunião não faz

desanimar o experimentado chefe da Legação diplomática portuguesa em Londres,

Manuel Teixeira Gomes, que terá comentado para Norton

«that he had known negotiations terminate sucessfully which had began with less prospects of success»553.

As perspectivas de sucesso pareciam, de facto, bastante reduzidas. A magra

promessa dos dois destroyers que Jellicoe ia tentar554 arranjar estava muito longe de

satisfazer o ministro da Guerra português que passa os dias seguintes em afazeres

protocolares, preparando o terreno para nova ronda de negociações. A 25, Teixeira

Gomes oferece um almoço oficial em honra do visitante português no Carlton Hotel.

Além de vários membros do corpo diplomático acreditados junto do governo de Sua

Majestade, estão também presentes Lord Cecil, Sir Jellicoe e um homem que virá a

revelar-se determinante para o desbloqueamento da questão dos transportes, o

general Sir William Robertson. Da parte dos britânicos, a operação de charme inclui, no

dia seguinte, a recepção de Norton em Buckingham Palace pelo rei Jorge V que, na

ocasião, o agracia com a Grã-Cruz de S. Miguel e S. Jorge, o que lhe confere direito ao

título de Sir555.

Enquanto decorrem estas manifestações protocolares, um outro argumento é

introduzido no debate interno do War Cabinet, com potencial para fortalecer a posição

portuguesa e impedir que a missão de Norton a Londres se salde por um fiasco. Mais

exactamente, os 20 000 carregadores necessários às tropas da East African

Expeditionary Force que combate os alemães na África Oriental em nome de Sua

Majestade o rei Jorge V. O Governo da África do Sul pretende que Lisboa autorize o

alargamento da área geográfica de recrutamento em Moçambique e permita que

sejam os sul-africanos, através da Witwatersand Native Labour Association, a proceder

ao recrutamento, alegando que o fariam com maior eficácia do que os angariadores

portugueses. O pedido do governo do general Botha é debatido em reunião do

Gabinete de Guerra do dia 30 por iniciativa do secretário de Estado para as Colónias,

553

KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan, mns. 554

Na versão de Barnardiston. KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/3, [Diário], 1916, mns. 555

Vd. «Court Circular», The Times, 26-05-1917, p. 9.

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Walter Long, sendo decidido remeter para o Governo português pelos canais

diplomáticos um apelo veemente para que seja atendido556.

A presença de Norton em Londres, bem como a vontade manifestada em reunir

com o primeiro-ministro britânico para pessoalmente debaterem a questão do

transporte das tropas portuguesas para a frente ocidental, são lembradas na reunião

do War Cabinet do dia seguinte por Lord Derby. O secretário de Estado para a Guerra

não sugere a reversão da decisão do governo britânico quanto à questão dos navios,

alvitrando antes que se jogue com a vaidade do seu homólogo português e com a

importância que Portugal dá a públicas manifestações de deferência por parte da sua

mais antiga aliada. Se Lloyd George aceder a reunir-se com Norton, Derby acredita

poder convencê-lo a mover as suas influências junto do executivo português para que

este permita o recrutamento dos carregadores em Moçambique, de que o Governo de

Sua Majestade tão urgentemente necessita para as operações militares na África

Oriental Alemã557.

Poucos dias depois, na reunião de 5 de Junho, será o general Sir Robertson a

ligar a questão dos carregadores para a frente africana oriental ao tema dos

transportes das tropas portuguesas para a frente ocidental na Europa, propondo que

se lhes forneça mais uma viagem de quatro navios. O War Cabinet acaba por adoptar a

posição do seu principal conselheiro em termos de estratégia militar, muito embora

nunca abandone o uso do condicional. Tendo em conta

«the great importance of placating the Portuguese Government in regard to the recruitement of native labour in Portuguese West Africa, the War Cabinet felt that there was a strong case for giving these facilities, if possible.»558

Ao que o deputy chief of the Naval Staff, vice-almirante Sir H.F. Oliver, trata

logo de obstar que dois dos navios tinham sido desviados para o transporte de trigo e

outros dois para o transporte de tropas de Salónica. Factos que não auguram grande

sucesso ao almoço de trabalho que, nesse mesmo dia, Norton finalmente terá com o

chefe do Governo britânico, no qual esteve presente também o major-general

Barnardiston.

556

NA-UK, CAB 23/2, WO150(20), 30-05-1917. 557

NA-UK, CAB 23/2, WC152 (4), 31-05-1917 . 558

NA-UK, CAB 23/3 WC 154 (20), 05-06-1917-06-05.

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No almoço, Norton entrega a Lloyd George um memorandum559 sobre o qual

vale a pena debruçarmo-nos. O major começa por situar o tema dos navios no

contexto da cooperação militar portuguesa, na sequência do convite do aliado

britânico de 15 de Julho de 1916. Recorda os esforços incansáveis do governo

português para que a cooperação portuguesa fosse o mais valiosa possível, primeiro

com o alargamento da divisão concentrada em Tancos para 40 000 homens, formando

o CEP, e, depois, com o aumento para 54 976 efectivos para transformar o CEP num

Corpo de Exército com duas divisões. Lembra, depois, que, até à data, 37 000 desses

homens tinham sido transportados, nos sete navios e quatro destroyers que a Grã-

Bretanha colocara à disposição para o efeito, nos termos da Convenção Militar de

Janeiro, encontrando-se outros 18 000 prontos para partir.

A presente posição da Grã-Bretanha fundamenta-se, admite depois o ministro

da Guerra português, em razões atendíveis: as dificuldades de transportes navais.

Reconhecendo esta situação, o governo português compreende que não é viável a

manutenção, por um período indeterminado, dos sete navios à disposição das tropas

portuguesas: «a fact which they are ready to accept». No entanto, considera que a

retirada abrupta dos navios deve ser evitada por motivos técnicos e políticos.

No que respeita às questões de ordem técnica, não faz sentido que o CEP fique

como está, ou seja, sem qualquer organização definida. Na verdade, não tem nem uma

2ª divisão, embora estejam em França já dois terços dos seus efectivos, nem, tão-

pouco, possui uma 1ª divisão, pois faltam-lhe alguns elementos para a completar. O

tempo e dinheiro já despendidos na organização e mobilização do Corpo de Exército

seriam, assim, quase totalmente desperdiçados.

559

AD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Londres, Mç. 96, «Memorandum regarding the transport of Portuguese troops to France», s.d., dactilog. c/ anotação mns: «Cópia entregue G. Clark –FO, 1/6/17 e Lloyd George 5/6/17.». Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste documento. Esta versão final não está assinada mas, na mesma pasta do Arqº da Legação, consta uma versão de rascunho que indica a sua autoria: «Memorandum regarding the transport of Portuguese troops to France / Memorandum destinado Lloyd George redigido por Mº da Guerra Norton de Mattos. 31 May 1917.», dactilog., com emendas mns. Barnardiston, no seu diário, indica que o documento foi elaborado por Norton de Matos em conjunto com Teixeira Gomes: KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan, mns, s.p.

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A isso acresce, lembra Norton, que os três generais portugueses que já se

encontram em França (o comandante geral e os comandantes das divisões) teriam de

regressar a Portugal, o que traria os maiores inconvenientes tanto nos círculos

militares como políticos. De facto, se a organização do Corpo de Exército abortasse, o

prestígio do Exército Português sofreria um rude golpe e o desencorajamento entre os

oficiais seria total. A decisão não seria apenas incompreensível e ofensiva para os

oficiais, sendo tais sentimentos extensíveis à população portuguesa que não deixaria

de sentir-se muitíssimo agravada, depois de todo o esforço feito pelo país e pelo

governo, em França e em África. Os agentes antialiados não deixariam de aproveitar

essa quebra de confiança dos portugueses na Grã-Bretanha, aniquilando, assim, a obra

da maior parte da Nação.

É certo que o Governo português compreende que a vitória dos Aliados

depende da coordenação dos esforços de cada país mas está convicto que qualquer

contributo válido, quer material quer moralmente, não deve ser sacrificado. A retirada

dos navios, com a consequente inviabilização do Corpo de Exército, não será aceite

sem um protesto violento.

Assim, o Executivo português propõe, antes de mais, que os sete navios e

quatro destroyers regressem a Lisboa em meados de Junho para transportar mais um

contingente. Em segundo lugar, sugere que se planeie a escala da redução dos navios

ao longo dos meses seguintes, de modo a conter os danos dentro de limites aceitáveis

para a parte lusa, garantindo o transporte dos reforços mensais até ao fim da guerra.

Durante o almoço, Lloyd George não se compromete mas coloca Barnardinston

em contacto com um dos seus secretários particulares, Cecil Harmsworth, para ver o

que poderia ser feito560. As negociações de bastidores prosseguem, agora com este

novo impulso. Barnardiston e Harmsworth desenvolvem contactos ao mais alto nível

junto de altos quadros das várias estruturas do Governo britânico envolvidas, no

decurso dos quais o major-general faz a ponte com a posição portuguesa. Na verdade,

recorre a argumentos próximos dos de Norton, defendendo que a Grã-Bretanha devia

560

KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan, mns.

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continuar a assegurar o transporte das tropas portuguesas para a frente ocidental

essencialmente por três motivos.

Antes de mais, reconhece, o Governo britânico não estava a cumprir aquilo que

se tinha originalmente comprometido. Em segundo lugar, a retirada total e abrupta

dos transportes constituiria uma absoluta quebra da boa-fé perante a sua mais antiga

aliada. Todo o processo de colaboração militar anglo-portuguesa ficaria

comprometido, impedindo os portugueses de manter no terreno as forças que já

tinham sido transportadas, inutilizando assim o esforço já feito. Por fim, criaria ao

governo português dificuldades gravíssimas561.

Em sede de conselho de ministros, dois dias mais tarde, Lord Derby retoma a

questão, lembrando que o seu homólogo português, ainda em Londres,

«had represented that the Portuguese Division was not complete in all respects, and that the transport of additional details was essencial for its militar efficiency as a unit»562.

Uma vez mais, o Gabinete faz votos para que a situação se resolva a contento

dos portugueses mas continua a deixar a decisão nas mãos do Almirantado:

«It was very desirable that the requirements of the Portuguese Government should be made good if the necessary shipping could possibly be arranged, and they invited the Admiralty and the Shipping Controller to consider the question in a favourable spirit.»

De Paris, chegam entretanto boas notícias para Norton, que se apressa a pedir

a Teixeira Gomes que delas dê conhecimento ao Foreign Office, como medida de

pressão adicional. O Governo francês concedera a Portugal todo o material para seis

baterias de campanha,

«indispensavel para a boa organização do Corpo de Exercito que nos preparamos para a frente ocidental da Europa. - Foi assim satisfeito o pedido que eu fiz áquele governo á minha passagem por França.

Esta concessão do Governo Francez eleva a 72 o numero de excelentes peças de campanha de que o nosso Corpo de Exercito disporá, e mais deplorável torna o facto do Governo Britanico estar a demorar ou a impossibilitar o transporte das tropas necessarias para se constituir em França essa unidade.»563

561

Cf. Ibidem. 562

NA-UK, CAB 23/3, WC158 (2), 07-06-1917. Até referência em contrário, as citações são desta acta. 563

AD-MNE, Arqº da Legação em Londres, Mç. 96, Of. de Norton de Matos ao ministro de Portugal em Londres, 09-06-1917.

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Na verdade, as questões pendentes entre as chancelarias de Lisboa e Londres

são vistas, pela parte portuguesa, como extraordinariamente gravosas. Um delas é o

protelamento da resolução do dossier do empréstimo, de que Portugal absolutamente

dependia, para adquirir o ouro indispensável ao abastecimento de bens de 1ª

necessidade, bem como ao pagamento de encargos da dívida a vencer. Na avaliação

de Costa,

«Prolongação situação actual chega ser ridícula por que governo Inglez nem empresta ouro nem entrega fretes navios alugados nem valor navios afundados. Poderia parecer que quer forçar-nos aceitar restricções e condições indicadas que V. Exa. com razão declarou que não mereceram discussão e por isso recusou transmitir nos. (..) seria preferível Governo Inglez decidir sem demora em bons termos caso empréstimo sem prejuízo dar devidas instrucções para imediatamente regularizar connosco conta fretes e navios perdidos. (…)»564

É um impasse negocial que se junta ao impasse em que a negociação dos

transportes, liderada por Norton em Londres, se encontra, à data em que Afonso Costa

envia este telegrama. Sem um desfecho favorável para a questão dos transportes, em

particular, é improvável que o próprio Governo sobreviva, argumentara Norton dias

antes565. Agora, é o próprio Afonso Costa que pondera jogar uma última carta,

colocando em cima da mesa o regresso imediato do ministro da Guerra a Portugal

«para que Governo Inglez sinta nosso desgosto pela demora resolução caso pendente relativo nossa participação militar frente ocidental»566

564

AD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Londres, Mç. 96, Tel. nº 38 de Afonso Costa a Teixeira Gomes, 12-06-1917, recebido a 13. 565

O argumento do ministro da Guerra é transmitido ao Foreign Office pelo ministro de Portugal em Londres, no dia 4, em reacção à persistência do governo britânico em não desbloquear o impasse nesta matéria: «(..)He was very disappointed indeed that uncertainty should still prevail regarding the return to Portugal of all the transports this month, as this is a point which he considers vital in order that quietness should prevail in Portugal and the Government be able to retain office. Should the ships not return, disturbances of all sorts are sure to break out and the effort the country has gone through together with the help in France and Africa are sure to be annihilated». AD-MNE, Arq.º da Legação em Londres, Mç. 96, of. de Teixeira Gomes a George R. Clerk, Londres, 04-06-1917. Norton faz-se eco de um argumento de Afonso Costa, que já no dia 1 a Legação de Portugal em Londres tinha feito chegar à chancelaria britânica. Nessa data, fora entregue a G. Clerk, do FO, e ao Encarregado da Guerra, a tradução de um telegrama de Costa a Norton, dramatizando a situação: «Se V. Ex. não vencer absolutamente problema do Corpo de Exercito e transporte de tropas por navios inglezes e Inglaterra continuar dificultando emprestimo com gravame existencia nacional conforme se mostrou ha dias tragicamente, governo portuguez deve ser constrangido explicar situação Paiz e abandonar em seguida poder como reconhecimento erro cometido por alguns seus membros de confiar demasiado cooperação absoluta nossa aliada». AD-MNE, Arqº da Legação de Londres, Mç. 96, Tradução de Tel. de Afonso Costa a Norton de Matos, de 29-05-1917. 566

AHD-MNE, Arqo da Legação em Londres, Mç 96, Tel. nº 38 de Afonso Costa a Teixeira Gomes, 12-06-

1917, recebido dia 13.

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Não foi preciso chegar a tanto, pois a 13 de Junho, no mesmo dia em que o

telegrama é recebido na Legação de Portugal em Londres, a questão dos transportes é

finalmente desbloqueada pelo War Cabinet, contra a vontade da marinha. A reunião é

presidida pelo ministro das Finanças Andrew Bonar Law, número dois do Governo e

líder do Partido Conservador.

É certo que o almirante Sir Jellicoe persiste em afirmar não ser possível

dispensar os navios de que os portugueses precisavam para completar a 2ª divisão.

Para que tal acontecesse, teriam de ser retirados do lote já destinado ao transporte de

tropas britânicas para o Egipto. O First Sea Lord sugere, ainda, que os portugueses

usem os seus próprios navios, o “Gil Eanes” e o “Pedro Nunes”, que, por sua vez, a

marinha britânica protegeria na viagem de ida e volta com dois destroyers que os

acompanhariam até ao porto de Brest. Além do mais, volta a argumentar, os

portugueses não mereceriam mais, pois não teriam aproveitado ao máximo a

capacidade os transportes anteriormente colocados ao seu dispor pelos britânicos.

Com uma visão mais abrangente do problema que não estritamente militar,

sensível como é às suas implicações políticas, que tendem a escapar ao almirante

Jellicoe567, o general Sir W.R. Robertson intervém de seguida com dois argumentos

que, finalmente, convencem o conselho. O chefe do Estado-Maior-Geral Imperial

começa por chamar a atenção do War Cabinet para a grande importância de aplacar os

portugueses, não dando argumentos adicionais para alimentar a convicção destes

últimos de que os britânicos os deixam sistematicamente ficar mal. A falta de

solidariedade dos britânicos neste particular iria, além disso, contrastar de modo

particularmente flagrante com a atitude dos franceses, que acabavam de fornecer

peças de 7,5 cm de artilharia ao CEP.

A par da questão política, Robertson recorre a um argumento de natureza

militar, a que seguramente não será alheia a opinião do general Douglas Haig,

comandante-em-chefe da BEF e seu amigo de longa data, sobre o valor das tropas

portuguesas:

567

Ao contrário de Jellicoe que «was uncomfortable in the role [of First Sea Lord], little understanding its political dimension». «Sir John Jellicoe» in http://www.firstworldwar.com/bio/jellicoe.htm, acedido a 03-10-2013.

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«the Portuguese troops had proved that they possessed more value than had been anticipated, and that further contingents could be utilised with advantage»568

Por muito que, noutras ocasiões, os chefes militares britânicos não tenham sido

tão elogiosos na avaliação do valor militar do CEP, em especial no que respeita aos

seus oficiais, a verdade é que esta avaliação de Roberston tem um peso que não pode

ser descartado, sendo feita, como é, numa reunião à porta fechada, ao mais alto nível

do governo. Por outro lado, seria um luxo desperdiçar o concurso de mais homens, tão

necessários numa guerra de trincheiras em que as baixas de vidas humanas são tão

avassaladoras. À sensibilidade de Roberston face à posição portuguesa não será alheio

o facto de o general ser um acérrimo defensor de que a guerra se decide na frente

ocidental – sendo, portanto, nela que se deve sobretudo apostar.

«In view of the statements of the Chief of the Imperial General Staff and the fact that man-power is a serious question with us, the War Cabinet requested—

The First Sea Lord to arrange with the Shipping Controller for the loan of two British transports to convey the remainder of the second Portuguese Division to Brest; and desired the former to detail two destroyers as escort.

The War Cabinet further requested— The Foreign Office to inform the Portuguese Government that these ships were

loaned on the distinct condition that their passenger and cargo space was fully utilised, and requested Admiral Jellicoe to draft the necessary telegram and send it to the Foreign Office for transmission.»569.

Apesar de não ter sido presidida pelo primeiro-ministro, esta reunião reflecte

negociações que envolveram David Lloyd George e que ele agilizara pessoalmente.

Após descrever a evolução dos bastidores do processo negocial que permitiu a Norton

salvar a face e não regressar a Lisboa de mãos vazias, o major-general Barnardiston

congratula-se pelos resultados:

«to my great satisfaction at a subsequent meeting of the War Cabinet the Admilralty were requested to find 2 ships to transport remainder of Port.[tuguese] Army Corps and one ship subsequently to be permanently at their disposal for reinforcements.»570

568

NA-UK, CAB 23/3, WC 162 (6), 13-06-1917. 569

Ibidem. 570

As condições do acordo são posteriormente detalhadas pelo FO: «(..)I have the honour to state that His Majesty’s Government agree to place at the disposal of the Portuguese Government the British transports “Bellepheron” and “Inventor” for the conveyance to France of the remainder ot the troops required to complete an Army Corps of two Divisions and to provided the necessary escort. His Majesty’s Government would request that the Portuguese vessels “Pedro Nunes” and “Gil Eanes” may be detailed to assist in the operation. When the two Divisions have been completed, and only the reinforcements remain to be carried, His Majesty’s Government propose to withdraw the “Inventor”,

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Teixeira Gomes, por seu turno, avalia o desfecho da missão de Norton como

tendo sido uma «verdadeira victoria dadas circunstancas angustiosas actuaes da

Inglaterra com respeito navios»571. As relações bilaterais parecem desanuviadas,

também a questão do empréstimo «vai a bom caminho», telegrafa para Lisboa,

embora, nem uma semana depois, tudo se venha a complicar extraordinariamente

neste último dossier572.

Afastado, pelo menos até ver, o perigo da inviabilização do Corpo de Exército,

ou, pior, da paragem total de transportes que estrangularia por completo o CEP,

Norton pode finalmente deixar Londres a 16 de Junho. Ironicamente, a vitória

diplomática que leva para a República Portuguesa fora obtida no país que acolhe os

monarcas portugueses depostos pela revolução republicana. Ao embarcar para Paris, o

ministro da Guerra cruzar-se-á em Charing Cross com o ex-rei D. Manuel que se

deslocara à estação para se despedir de sua mãe. Os incidentes com a família real não

ficam por aí e, à chegada a Paris, as malas da ex-rainha D. Amélia vão, por lapso, parar

ao táxi de Norton. Ambos visitarão a frente francesa embora, dessa vez, sejam

organizados horários não coincidentes, para evitar mais situações constrangedoras573.

leaving only the “Bellerophon” on this service. This latter vessel will provide for all the monthly reinforcements of animals and for half the monthly reinforcements of troopes, and His Majesty’s Government are confident that the Portuguese Government will be in a positon to make their own arrangements for the conveyance of the balance of the troops monthly I should be grateful if you would be so good as to impress on your Government the urgent necessity of the troops being embarked as soon as the transports are ready, since ohterwise it will not be possible to make two trips during each month». AHD-MNE, Arq

o da Legação em Londres, Mç 96, Nota n

o W.138125/17, confidencial, do FO a M.

Teixeira Gomes, 17-07-1917. Cf., ainda, KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan, mns. 571

E continua: «Escusado será encarecer a Vexa como foram difíceis diligencias feitas e felicito calorosamente Governo português pelos resultados obtidos tanto n’este ponto como nos mais referentes ao serviço do Corpo do exercito portuguez em França que Ministro da Guerra regulou completamente. Entre as numerosas e altas entidades officiaes que foram despedir-se à gare nosso ministro estava Lord Derby actual ministro da guerra». AD-MNE, Colecção de telegramas recebidos da Legação de Londres, Tel. nº 136 de Teixeira Gomes ao ministro dos Negócios Estrangeiros, 16-06-1917. 572

As boas expectativas que Gomes, um experimentado diplomata, anunciara dias antes são goradas. A 20 de Junho relata para Lisboa: após diligências «complicadas e acompanhadas de incidentes tempestuosos e penosos», conseguiu, após ter esgotado «toda argumentação e toda influencia pessoal» que os ingleses apresentassem uma proposta minimamente aceitável. AD-MNE, Colecção de telegramas recebidos da Legação de Londres, Tel. nº 140, urgentíssimo e confidencial, 20-06-1917. 573

Barnardiston relata o encontro em Charing Cross. KCL - LHCMA, Barnardiston: 3/4 [Diário e bloco de notas] 1917 Jan-1919 Jan, mns.; Tamagnini sublinha a coincidência da visita de ambos, ministro da República e rainha deposta, à frente francesa: «O Dr. Cabedo que tambem aqui veiu parar como medico miliciano escreve-me de Campiègnes, onde está de visita de estudo no hospital do Marrel, dizendo que um dia passou por lá o Ministro Norton de Mattos e no outro visitou o Hospital a ex Rainha D. Amelia.

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211

Norton volta de novo a encontrar-se com Pétain, bem como com outros

generais franceses. Ao jornal Temps concede uma entrevista em que faz o balanço da

sua missão a França e a Inglaterra na regulação das bases e condições técnicas da

cooperação militar com os Aliados. Enfatiza o facto de Portugal estar a fazer a fazer um

esforço proporcionalmente muito elevado, até porque a base de onde partiu para o

empreendimento era extraordinariamente frágil. Ao sublinhar o esforço português,

acaba a assumir a dose de improvisação de que se revestiu:

«II a improvisé une armée, car elle existait à peine. Il a mis sur pied 130,000 hommes, dont 40,000 sont actuellement en France la plus grande partie déjà sur le front. 20,000 hommes se préparent au Portugal à venir compléter les deux divisions, c'est-à-dire le corps d'armée, que nous aurons sur le front anglo-français.

Nos troupes d'Afrique, réparties entre nos colonies d'Angola et de Mozambique, comptent 30,000 hommes qui, en tenant en respect, sur des confins de nos possessions envahies au début de la guerre, les forces de l'Afrique orientale et de l'Afrique occidentale allemandes, ont aidé les alliés, Anglais, Français, Belges, Boers (nous avons même fourni 30,000 fusils à ces derniers), à pousser activement et victorieusement les opérations contre ces deux colonies allemandes.» 574

Lembra, ainda, os 6000 operários portugueses enviados para as fábricas de

munições francesas, bem como o fornecimento de material de campanha à França,

para já não falar do esforço financeiro imenso que está a ser feito pelo país pagar o

esforço de guerra pois,

«Si l'Angleterre et la France, il est vrai, pourvoient au ravitaillement en vivres et en munitions de notre corps expéditionnaire, nous les couvrons et les couvrirons en billets du Trésor, ce qui est une opération de trésorerie plutôt qu'un emprunt à proprement parler.»575

Por fim, sublinha o facto de o CEP ir assumir um sector próprio, comandando

pelo estado-maior português, e passar a emitir o seu próprio comunicado diário.

Se para o exterior transmite uma imagem de que tudo vai bem, já ao

comandante do CEP Norton fará um balanço mais matizado, mais virado para a opinião

pública portuguesa e para o funcionamento do CEP, numa longa carta que lhe envia de

Andam um atraz do outro a encontrarem-se; fizeram a viagem no mesmo vapor na travessia da Mancha; vinha também o D. Manuel que encarou os portuguezes com ar muito contrafeito. No acto de desembarque levaram as malas da ex-rainha para o automovel que aguardava o Ministro; ella devia ter dado um cavacão com o engano! (...)». AHM, FP/51, Cx. 857, Série 2 – Diário particular do Comandante do CEP, 2

o Fascículo, pp. 141–142.

574L. G., «Déclarations du ministre de la guerre du Portugal», Le Temps, 29-06-1917.

575Ibidem.

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212

Paris, a 25 de Junho576. A Tamagnini sublinha a importância de ter um sector próprio

na frente de combate e o direito a emitir o seu próprio comunicado como sendo algo

de vital, sim, mas do ponto de vista da política nacional, pois aumenta a visibilidade e o

prestígio do país no estrangeiro e, logo, a também o prestígio do CEP em Portugal. Já

quanto aos problemas do CEP que incentiva o seu comandante a ultrapassar, lembra a

necessidade de ultrapassar a impressão que lhe fora transmitida pelo general Douglas

Haig, de que os portugueses eram muito vagarosos, e a sua própria impressão, de que

há um pequeno grupo de oficiais no CEP que não estão à altura das suas

responsabilidades. A Tamagnini, manifesta a sua convicção de que uma boa liderança é

capaz de colmatar as deficiências, incluindo as de carácter. Um líder que exige dos seus

homens que se superem conseguirá, com o seu voluntarismo e força de vontade,

verdadeiros milagres. Com a identificação e correcção das falhas mas, igualmente, com

manifestações de apoio:

«Vim d’ahi com uma boa impressão do conjunto. As coisas tem melhorado consideravelmente quanto à instrucção e educação do soldado, a disciplina, a intensidade de trabalho, a organização de serviços, e isso pela maior parte a si se deve e por isso o felicito como camarada e amigo. Mas muito há a fazer no que diz respeito a officiaes e sargentos. (..) É indispensável que esses senhores se convençam de que estão ahi para principalmente levantarem e prestigiarem o seu paiz, para fazerem obra patriotica e para se sacrificarem. Vim com a sensação de que se trabalhava pouco, de que havia um grande desinteresse por parte de muitos officiaes, de que muitos d’elles continuam a considerar a honrosa missão de que os encarregaram como um degredo, como um castigo que acabará logo que desapareçam os homens que quiseram a guerra, como eles dizem. É indispensável que esse estado de coisas se modifique o mais rapidamente possível. Para isso conto com a própria natureza da guerra e consigo, general. (..) temos uma esplendida minoria de officiaes optimos, e, como sempre, será a minoria de admiráveis qualidades que ha-de vencer a maioria das qualidades más. Fazel’os trabalhar, fiscalizar continuamente o seu sucesso; ser inexoravel para todas as faltas de caracter, para qualquer indignidade ou baixeza; não permittir que de forma alguma diminuam o prestigio do Exercito, da Patria e da Republica; leval-os ao exacto cumprimento do seu dever; é o que há a fazer. (...) Creia que tenho em si a maior confiança (...)»577

O general Tamagnini ficará, ao menos por enquanto, mais descansado quanto

aos contactos pessoais que, para sua exasperação, vários dos seus oficiais,

576

Carta de Norton de Matos ao general Tamagnini Abreu e Silva, Paris, 19 pp., transcrição de extractos e resumo feito pelo destinatário in Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, pp. CXXXVI–CXXXVII. 577

Ibidem.

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213

correligionários políticos do ministro da Guerra, insistem em manter com este último.

Como político que é, Norton joga nas duas frentes, assegurando a Tamagnini o seu

apoio institucional mas não deixando de aproveitar os contactos transversais

proporcionados pelo contacto directo com vários deputados Democráticos que

combatem no CEP e, em especial, os mais ligados à facção da Jovem Turquia578.

A rede de cumplicidades que cultiva no seio dos seus colegas de partido, em

especial destes que assumem a dupla função de parlamentares e oficiais do CEP, sendo

simultaneamente seus correligionários de partido e seus subordinados, é cimentada

pelos sucessos na frente diplomática, onde tece uma rede de contactos que lhe irá ser

muito útil no futuro579. As deferências de que é alvo no estrangeiro fortalecerão a sua

posição na frente interna, nomeadamente em sede partidária. Depois de ter sido

agraciado pelo rei Jorge V com a Grã-Cruz de S. Miguel e S. Jorge, é condecorado, no

seu regresso a Paris, com o grau de Grande Oficial da Legião de Honra580.

No dia seguinte, embarca para Lisboa. Na bagagem, para além das

condecorações e da assinatura da convenção militar com a França, avulta sobretudo

uma difícil vitória diplomática em Londres. A bom porto levara a negociação com o

governo de Lloyd George, essencial para que todo o esforço de guerra português se

não transformasse num fiasco. Ultrapassada, ao menos momentaneamente, ficara a

recusa dos britânicos em assegurarem o transporte adicional das tropas necessárias

para a transformação do CEP num corpo de exército, ou, pior ainda, o cenário da

própria interrupção do transporte tout court. In extremis, Norton conseguira reverter a

situação, embora a vitória seja parcial e, a breve trecho, se vá revelar efémera.

578

A 31 de Maio de 1917, Tamagnini tentara, sem êxito, convencer Hélder Ribeiro a dissuadir Sá Cardoso de ir avante com a ideia de organizar um jantar dos deputados e senadores do CEP com o ministro Norton de Matos, aproveitando a presença deste último na frente. AHM, FP/51, Cx. 857, Série 2 — Diário particular do Comandante do CEP, 2

o Fascículo, p. 36.

579Para citar um de vários exemplos possíveis, é o caso de Manuel Teixeira Gomes. Gomes tem, então,

oportunidade de testemunhar os talentos político-diplomáticos de Norton, por cujo desempenho nesta missão a Londres de 1917 não esconde o apreço na correspondência diplomática. À cumplicidade criada entre os dois neste Verão de 1917 não será alheio o apoio que Gomes, já na qualidade de Presidente da República, dará à ida de Norton para a Embaixada de Portugal em Londres em 1924. 580

Depois de almoçar com o presidente da comissão parlamentar do Exército, Norton visita os Invalides, recebendo depois, no ministério da Guerra, a condecoração, das mãos do seu homólogo Painlevé. Recebem o grau de cavaleiro da mesma Ordem o major João Esteves Águas e o capitão Florentino Martins. AHD-MNE, Arqº da Legação de Portugal em Paris, Mç. 96, Tel. de João Chagas ao ministro dos Negócios Estrangeiros.

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214

Por muito que Afonso Costa tente desvalorizar a viagem do seu ministro da

Guerra a França e a Inglaterra, confinando-a ao campo militar, a verdade é que

inspeccionar as tropas portuguesas na Flandres esteve longe de ser o objectivo

principal da sua missão, ao contrário do que Costa faz constar. Após o regresso do

ministro a Lisboa, aureolado de condecorações e trunfos diplomáticos, que ao governo

interessa sobremaneira capitalizar, Costa emendará a mão, desmentindo que alguma

vez tenha dito tal coisa581. Como de seguida veremos, os dividendos políticos internos

da viagem serão extraordinariamente significativos para Norton. Dois meses antes,

partira de Lisboa ministro mas é já na qualidade de candidato a chefe do governo que

regressa para mais um Verão quente na capital portuguesa.

III.4.4. Um novo protagonismo na frente interna: os dividendos e os

ónus

III.4.4.1. Em vias de ‘eclipsar o glorioso astro’?

A 1 de Julho, Afonso Costa inaugura o congresso do PRP no teatro S. Carlos com

o relatório político da acção do directório partidário cessante. Do governo, presente

em peso no evento partidário, apenas falta o ministro da Guerra que, nesse preciso dia,

recebe em Paris a Legião de Honra. Nos meios jornalísticos de Lisboa há quem garanta

que Norton terá feito uma gestão cirúrgica da data da sua chegada para a fazer

coincidir com a conclusão do congresso do partido582, fazendo-se anunciar, a si e aos

seus trunfos diplomáticos. No dia seguinte, embarca no Quai d’Orsay com destino a

Lisboa. Nessa tarde, logo a seguir a um aclamadíssimo discurso do seu amigo Leote do

Rego, o congressista Viriato Chaves propõe à assembleia o envio de um telegrama de

saudação e homenagem ao ministro da Guerra «pelos seus altos serviços prestados à

Patria e á Republica». A proposta é aprovada por aclamação por uma plateia que em

peso se levanta para «freneticamente» ovacionar Norton e o exército583.

No dia seguinte, são mais de quinhentos congressistas a votar no seu nome

para membro efectivo do directório do partido no biénio de 1917-1919. Apesar de a

581

Cf. «Desmentido», O Mundo, 08-07-1917. 582

A hipótese é aventada numa «Nota política» do jornal O Século, transcrita na edição de O Dia do dia seguinte, que lhe acrescenta o título: «A queda do ídolo», O Dia, 06-07-1917, p.1. 583

«Pela República. As duas sessões de ontem no Teatro de S. Carlos: discute-se largamente a nova lei orgânica do Partido e tratam-se outros assuntos», O Mundo, 1917-07-03, p.1

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direcção do PRP ser estatutariamente colegial e não unipessoal, a verdade é que não é,

de todo, indiferente que tenha sido Norton, e não Afonso Costa, a obter o maior

número de votos584. A imprensa monárquica apressa-se a daí vaticinar a rápida

decadência política deste último e a viragem do partido para a esquerda, sublinhando

que Costa

«(..) já encontrou no sr. Norton de Mattos um concorrente sério ao imperialismo... democratico. Não cahe de pé: nem ao menos terá essas honras! Acabará lentamente, já com a antiga força reduzida a um mytho, entregando-se-lhe para symbolo d’uma realeza irrisória...a canna verde que não irá mal com o seu manto azul de cavaleiro de Carlos III.

Mas o que acaba com a omnipotência do sr. Affonso Costa não é uma evolução do seu partido para a direita: pelo contrario! Os democráticos vão cada vez mais p’r’a esquerda e o seu agora nominal chefe passou a não lhes merecer confiança, porque o teem como inclinado pr’a direita585

A fragilização do chefe do governo parece ser inversamente proporcional ao

fortalecimento do ministro da Guerra nesse início de Julho. No dia seguinte à sua

chegada a Lisboa586, circulam os boatos mais desencontrados. Um deles garante que o

ministro recém-chegado teria sido já indigitado para primeiro-ministro587. Outro, que

Norton estaria a conspirar revolucionariamente com Leote do Rego e António Maria da

Silva, também membros do Directório do PRP588.

O problema é que, com os dividendos, vêm também ónus acrescidos. Um ano

após a operação Tancos, o fardo da guerra pesa cada vez mais sobre Norton. No Verão

de 1917, o ministro já não se limita a ser o afonsista que preparou o exército para a ir à

guerra. É, agora, um republicano com um peso político extraordinariamente reforçado,

584

Além de Norton e Afonso Costa, são também eleitos Álvaro de Castro, António Correia Barreto, António Maria da Silva, Alfredo de Sá Cardoso, Vitorino Guimarães, Jaime Leote do Rego e Adriano Pimenta (Cf. O Mundo, 04-07-1917, p. 1). Norton recebe 511 votos, mais 3 votos do que Afonso Costa. 585

«O “Congresso” de S. Carlos», O Dia, 04-07-1917, p.1 586

Norton chega à gare do Rossio na tarde do dia 4, vindo num comboio especial de Paris, acompanhado pelo major Águas e pelo capitão Florentino Martins. É recebido por Barreto da Cruz (representante do Presidente da República), Leote, seis ministros (Colónias, Trabalho, Instrução, Estrangeiros, Interior e Fomento), a missão militar inglesa, Mello Barreto, chefe Sarmento, Alfredo Pinto, Abílio Marçal, Pereira d’Eça, Correia Barreto, ministro da Inglaterra, etc. («Sir Jöe Norton de Mattos», O Dia, 05-07-1917, p.1). 587

«Alto e claro!» O Dia, 05-07-1917, p.1. Não é a primeira vez que o nome de Norton surge na imprensa como possível substituto de Afonso Costa. Já a 19 de Novembro de 1915, o Jornal de Benguela alvitrara que Norton poderia ser o próximo 1

o ministro «se o Sr. Afonso Costa não quiser ou não o puder ser por

enquanto». O artigo é transcrito pelo general que comenta: «A alusão, várias vezes e em vários sectores repetida à possibilidade de eu assumir um dia a presidência do ministério, havia de me dar de futuro alguns dissabores.». Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 3, Ed. de 2005, p. 188. 588

«A queda do ídolo», O Dia, 06-07-1917, p.1.

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competindo com Costa também na responsabilização pelo cortejo de danos que

sempre vem com a guerra.

Mas, como não deixa de lembrar na exposição que faz na Câmara dos

Deputados no dia 6, Portugal não poderá defender os seus direitos presentes e futuros

«sem dores profundas, sem privações fortes, sem sacrifícios de toda a ordem»589. No

caso português, anuncia Norton, os sacrifícios incluirão, além de 55.000 soldados na

Flandres de 30.000 a 35.000 em África, enviar, todos os meses, um reforço de 4.000

homens para o teatro europeu da guerra. Apesar de Norton não falar propriamente

num número de baixas mensais mas antes em «manter em eficiência o corpo do

exército português», a verdade é que para muitos dos seus ouvintes tal significava

admitir que poderia existir essa ordem de grandeza de baixas, mês após mês. Era pôr

gasolina no fogo do descontentamento do país com a guerra590.

De facto, a situação social está explosiva591. Na noite do dia 11 para dia 12, é

declarado o estado de sítio em Lisboa e concelhos limítrofes. Mais de mil operários

grevistas acabam presos. Na 1ª página de O Dia, porém, a tensão no seio do partido

democrático entre Norton e Afonso Costa continua a ser alvo de especial interesse,

sendo ilustrada pela caricatura com que abrimos esta dissertação. Nela, recordemos,

um sol com o rosto de Afonso Costa está em vias de ser eclipsado por um outro sol em

movimento, este último com o rosto de Norton. A imagem vale mais que mil palavras

mas, para que não restem dúvidas, a legenda esclarece: «Principia a eclipsar-se o

glorioso astro...»592.

Norton posiciona-se para voos político-partidários mais altos ao mesmo tempo

que assume publicamente que muito mais portugueses terão de ir para a guerra. Por

más que sejam, são notícias para o futuro. No presente e na frente interna, não é

ainda ele a assumir o ónus da repressão à contestação social. Por enquanto, será o

general Pereira da Eça, governador militar de Lisboa, a liderar essa frente.

589

Ana Mira (org.), Actas das sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da República sobre a participação de Portugal na I Grande Guerra, Porto, Ed. Afrontamento, 2002, p. 16. 590

Filipe Ribeiro de Meneses, União sagrada e sidonismo : Portugal em guerra (1916-18), p. 187. 591

Ana Paula Pires, Portugal e a I Guerra Mundial, p. 254. 592

Caricatura de I. Valaria, O Dia, 1917-07-12, p.1.

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Vimos mais atrás como, no início do ano anterior, ainda a beligerância

portuguesa não tinha sido declarada, tinha sido Norton a liderar a repressão aos

primeiros motins da fome em Lisboa. É certo que, num momento inicial, o ministro da

Guerra resistira a mandar o exército intervir. Perante o agudizar da crise, ainda em

Dezembro de 1915, com a greve dos padeiros do Porto, Norton defendera, ao

contrário de outros colegas de governo, que o exército não se deveria envolver nas

questões entre capital e trabalho. Não anuíra a que a Manutenção Militar mandasse

pão ou pessoal para substituir os padeiros. Não anuíra, tão-pouco, que forças militares

se deslocassem para o Entroncamento para prevenir a eventualidade de os ferroviários

se juntarem à greve, que ameaçava estender-se do Porto a outras zonas do país. O

exército, declarara enfaticamente em conselho de ministros, tinha mais em que pensar

pois «o exército é para a guerra»593...

Quando, porém, os motins populares ameaçavam a paz social de Lisboa e o

embarque das tropas para a Flandres, Norton já não hesitara em tomar as rédeas da

repressão nem em intervir com o exército pois suspeitava que, por detrás dos

tumultos, estava a mão de todos os inimigos da ideia que o exército fosse para a

guerra594. O exército passara, assim, a ser para a guerra e, simultaneamente, a ser o

garante, na frente interna, de que nada o impediria de ser para a guerra.

Em 1916, a acção de Norton naquele episódio não chegara ao conhecimento do

grande público, tendo sido, pelo contrário, o ministro Almeida Ribeiro a concitar o ódio

do povo. Em 1917, quando se deu a ‘revolução da batata’ de Maio e os motins de

Julho, Norton tinha, respectivamente, acabado de partir para o estrangeiro ou acabado

de chegar. Em ambas as ocasiões, o protagonismo da repressão ficara a cargo do

general Pereira da Eça.

Já o mesmo não acontece por ocasião da contestação operária e social de

Setembro. O alvo privilegiado de críticas e ódios é agora o ministro da Guerra. É o

outro lado da moeda da sua ascensão meteórica no seio do partido e no seio do

593

Oliveira Marques (ed.), O Segundo Governo Afonso Costa (1915-1916): Actas dos Conselhos de Ministros, p. 27. Ver também idem, p. 56. 594

Entre os quais estariam agitadores espanhóis, segundo informações recebidas. Cf. ANM, Diário do Ministro da Guerra Norton de Mattos, Janeiro e Fevereiro 1916, miscelânea.

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governo, inversamente proporcional ao empalidecer do brilho de Afonso Costa.

Norton, na qualidade de putativo substituto de Costa no partido e no governo,

concitará o ódio de estimação que dois sectores da sociedade portuguesa tinham

começado a votar a Costa anos antes, ao verem defraudadas as suas esperanças

iniciais neste líder republicano: sindicalistas e jornalistas. É neste Norton que

doravante emerge como um novo racha-sindicalistas da República, numa espécie de

reedição do epíteto que se colara a Costa quando, logo nos primeiros anos da

República, alienara o movimento sindical da sua base de apoio, que nos iremos

concentrar de seguida.

III.4.4.2. Um novo racha-sindicalistas?

Quando, no início de Setembro, os cerca de 7000 funcionários da

Administração Geral dos Correios, Telégrafos e Fiscalização das Indústrias Eléctricas

entram em greve595, reclamando melhores salários, o governo toma uma posição de

força, invocando o estado de guerra em que o país se encontra e a importância

estratégica do sector das comunicações. Em decreto conjunto, assinado pelo

Presidente da República e todos os ministros do executivo, mobiliza-se militarmente os

trabalhadores dos postos de Correios e Telégrafos, disseminados por todo o território

português. Passam, assim, a fazer «parte do exército em campanha, sob a suprema

autoridade do Ministro da Guerra»596. Este último trata de esclarecer, em portaria na

mesma data, que, se se recusarem a trabalhar, os trabalhadores serão considerados

desertores597. Presos os recalcitrantes com o auxílio da Marinha comandada pelo seu

amigo Leote, que acolhe sob prisão, em navios militares fundeados no Tejo, mais de

mil só nos primeiros dias, Norton manda ocupar militarmente as instalações dos

correios por fura-greves sob o seu alto patrocínio, incluindo cadetes e escoteiros.

Contudo, não só não parece viável prender todos os funcionários que, apesar

do número de colegas já presos, não desistem da paralisação, como não parece haver 595

Sobre o tema, cf., além do livro clássico de António José Telo, O Sidonismo e o Movimento Operário: Luta de Classes em Portugal, 1917-1919, Lisboa, Ulmeiro, S.d., pp. 121-123, veja-se Ana Paula Pires, Portugal e a I Guerra Mundial, p. 266. 596

Decreto nº 3327, de 01-09-1917, DG, I Série, nº 148, 01-09-1917. 597

Portaria n.o 1078, de 01-09-1917, Suplemento ao DG n

o 148, I Série, 01-09-1917.

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219

maneira de os substitutos improvisados pelo ministro da Guerra darem conta do

recado. A UON aproveita para declarar greve geral em solidariedade. Apesar de à

declaração não corresponder uma adesão generalizada em todo o país598, a verdade é

que, finalmente, ao terceiro dia de greve, os eléctricos de Lisboa deixam de circular e,

sobretudo, os lojistas da capital fecham portas. É a poderosa Associação Comercial de

Lisboa, aliás, a assumir a mediação entre os empregados dos Correios e Telégrafos e o

governo. A greve alastra a várias cidades do país, intervém a tropa e a GNR e algumas

bombas chegam a rebentar mas talvez o facto mais significativo neste final de Verão

de 1917 é a aproximação entre operários e os patrões do comércio de Lisboa contra o

executivo monopartidário.

No braço-de-ferro com os funcionários essenciais à manutenção do sistema de

comunicações e, logo, ao regular funcionamento da vida económica do país, não há

vencedores inequívocos. É certo que os grevistas podem argumentar que a posição de

força tomada pelo governo, com Norton na linha da frente, enferma de várias

fragilidades. Por um lado, revela um grau acentuado de ineficácia. Na verdade, não só

o problema da paralisia das comunicações nacionais persiste como o caos provocado

por esta ocupação militar irá agravar a sua ultrapassagem muito para além do que

aconteceria apenas por efeito da greve propriamente dita. Das cartas acumuladas nos

postos de correio aos milhões, muitas perder-se-ão para sempre, nelas se incluindo

valores de cujo paradeiro nunca se conhecerá o rasto, lançando uma sombra sobre a

honorabilidade das agremiações civis e militares mobilizadas para substituir os

grevistas. Apesar de declarações sucessivamente publicadas na imprensa tentando

demarcar-se da responsabilidade por desaparecimentos e pilhagens nos postos de

correio, que ocuparam por ordem do ministro, não se livram da má imagem.

A este problema, acresce ainda um outro. Por muito negativa que seja, a

ineficácia das medidas paliativas do governo não se compara ao efeito devastador,

para o prestígio da sua autoridade, de o executivo tomar uma posição de força para

598

Os avanços e recuos nesta tentativa de greve geral estão bem patentes no balanço pormenorizado elaborado pelo próprio Comité da Gréve Geral, «A gréve geral de solidariedade aos telegrafo-postais: Relatorio do Comité dirigente», Lisboa, 05-09-1917, 8 pp. in O Movimento Operario: Boletim da União Operária Nacional, Suplemento ao nº 3, S.d. [Junho-Julho 1917], pp.1-8. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste relatório.

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depois deixar passar incólume a desobediência generalizada às suas ordens. Os civis

transformados por decreto em militares do exército em campanha nunca serão

oficialmente desmobilizados. Ou seja, a lei continua a considerá-los desertores mas o

governo opta, depois de um primeiro momento em que prende uma parte, por ignorar

o facto de a lei não estar a ser cumprida também pelos restantes. Liberta os presos e

nunca chega a decretar a desmobilização, de certa forma capitulando perante a

desobediência generalizada à mobilização599. O gáudio na imprensa operária não podia

ser maior, até porque, pode cantar vitória moral quando, objectivamente, se vê

forçada a recuar – como aliás a própria UON acaba por reconhecer no seu Boletim

Oficial.

Na verdade, mau-grado as fragilidades reveladas, o Governo, num contexto de

hostilidade generalizada, consegue conter os danos maiores, mesmo se a actuação

pessoal do ministro da Guerra nessa operação de contenção suscita um coro de

críticas na imprensa de várias tendências políticas. Quando, no dia 10, os guardas-

freios e os lojistas da capital aderem à greve geral, Norton sai do seu gabinete e, na

estação de eléctricos de Santo Amaro e na Baixa, assevera aos trabalhadores que a

liberdade de trabalho está garantida e, por isso, podem trabalhar. Na versão menos

benigna dada pela imprensa operária, terá ido «pessoalmente impôr a Santo Amaro e

ao Arco do Cego a saída dos carros, guarnecidos de tropa de mão no gatilho das

espingardas».

Andando pela Baixa, teria tratado

«com rudeza os empregados do comercio, para que retomem o trabalho, intimidando, o que chega a ser cómico, os donos dos estabelecimentos, que, a um por outro, abrem as portas – enquanto mais tarde, na importantíssima reunião de comerciantes, quem aparece a defender o governo é quasi linchado e alvo de

599

Ao erro inicial do governo de militarizar «quem não era militarizável» (mulheres e pessoal fora da idade militar), cometendo desse modo uma ilegalidade e, mesmo, inconstitucionalidade, o governo somou um outro erro pois subverteu por completo a lógica do seu próprio decreto, pela qual teria «de considerar desertores todos os indivíduos que não comparecessem ao trabalho e insubordinados os que, aparecendo, se recusassem a trabalhar». Na realidade, não foi isso que fez: «O governo começou por prender um milhar deles mas, por fim, reconhecendo que estava vencido se continuasse adoptando esta tactica, deixou por prender muitos outros.». É uma «diferenciação de procedimento» que «não se admite», prossegue o Comité da Gréve Geral no relatório que temos vindo a seguir, que conclui: «Vê-se, portanto, que o governo reconheceu a asneira que fez prendendo os primeiros, ficando forçado a deixar em liberdade todos os outros».

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aceradas criticas, o que é sintoma evidente da hostilidade geral contra a inepcia governamental.»

O que não impede que, pelo menos por enquanto, a ocupação militar da cidade

e a acção pessoal do ministro tenham levado a UON a reconhecer que, «a greve geral

resulta um recurso platonico do operariado» e está na altura de recuar.

Compreensivelmente, também a imprensa monárquica não deixa passar a

oportunidade para tentar menorizar o ministro da Guerra que em vez de exercer o seu

papel de ministro andaria pelas ruas da capital travestido de cabo de polícia:

«Tem sido comentadíssimo o episodio que ocorreu na manhã de terça-feira á porta dos Armazens Grandella, onde compareceu o sr. ministro da guerra, para obrigar os empregados que se agrupavam junto d’aquelle edifício – fustigando-os com palavras rudes – a reentrarem para o trabalho!

Não consta que em tempo algum e em qualquer paiz fôsse esta a missão d’um ministro da guerra!

Foi-o em Portugal e fez de cabo de polícia «sir» Jöe Norton de Mattos, grã-cruz de S. Miguel e S. Jorge d’Inglaterra, que n’esta capital da republica assim gasta o seu tempo e assim mostra na rua a sua força! (…)

Ao que parece, o sr. ministro da guerra tem-se jactado da obediência que impoz e do efeito do seu gesto auctoritario!

Faz mal! Faz muito mal! Não consta que a corporação dos empregados da casa Grandella

esteja...mobilisada. E não vacticinamos a gloria a sir Jöe Norton de Mattos se, em condições análogas, prosseguir por essas ruas a fazer tirar taipais, no seu emprego de cabo de policia...!

Tem seus percalços... o officio!»600

Não será, no entanto, na imprensa operária nem na monárquica que Norton

receberá o ataque mais demolidor à sua actuação nesta emergência mas, antes, na

imprensa democrática. «Vim para o poder, trazido por uma revolução. Só sahirei d'elle,

expulso por outra revolução», teria declarado o ministro no auge da greve, segundo

constou ao vespertino lisboeta A Capital. Apesar de não garantir a veracidade da

afirmação, o jornal trata de construir todo o seu editorial do dia 18 em torno deste

rumor, garantindo que não será preciso fazer qualquer revolução para tirar Norton de

Matos do poder porque o governo está por um fio601.

III.4.4.3. Na gestão de um governo em crise

600

«O sr. ministro da guerra...cabo de policia!», Dia, 14-09-1917, p.1. 601

«Sem Revoluções: É preciso Distinguir: Não Foi Para Collocar o Sr. Norton de Mattos no Poder Que Se Fez o 14 de Maio», A Capital, 18-09-1917.

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Se chegara a hora de o Governo, e deste ministro em especial, abandonar o

poder, a verdade é que o Presidente da República não o deixa cair. É certo que, ainda

no início do mês, Bernardino Machado tratara de admoestar Afonso Costa, em

privado602, para que não alienasse a opinião pública e explicasse melhor as suas

políticas. Terá, ainda, feito algumas diligências para tentar formar um governo

alternativo com um apoio partidário menos afunilado. Acaba, no entanto, por manter

o apoio ao executivo vigente. No seio deste, Norton tem um protagonismo cada vez

maior. Afonso Costa não só não se mostra particularmente empenhado em dar

explicações ao país, como, sem plena crise, abandonara a capital, indo para a sua casa

na Serra da Estrela. Na linha do fogo político, deixa o seu ministro da Guerra. Dias

depois, apressa-se a voltar para aparecer, de surpresa, na inauguração da exposição de

roupas para os soldados organizada pelo jornal O Século, mesmo a tempo de

testemunhar as boas relações entre Norton e Bernardino. Este aproveita a ocasião

para entregar pessoalmente ao ministro da Guerra, devidamente assinado, o decreto

que o promovia à patente de tenente-coronel603.

Apesar dos boatos continuados de fundas divergências entre Costa e Norton604,

é a este último que Costa confiará a chefia interina do governo durante as suas

ausências do país. O peso político do ministro da Guerra é incontornável. Aliás, entre

Outubro de Dezembro, até à queda do governo às mãos da revolução sidonista,

Norton passará mais tempo à frente do executivo do que o próprio primeiro ministro

602

Numa carta já muito citada: «As oposições apelam para a revolução; o governo entricheira-se na repressão.[§] Porque não chama V. Ex.

a a imprensa republicana e informa-a completam[ment]e da

questão dos correios e telégrafos? Se o Governo atender, acima de tudo, ao problema social, unindo e organizando todas as forças vitais da nação, como hoje, mais do que nunca, é imperioso, estou certo de que a situação melhorará de pronto. Se o não fizer, será um grande mal. O próprio vinculo moral que ainda sentimos como um dever comum d’honra para com os aliados, esse mesmo, que é fiador dos nossos destinos, corre o risco de se romper por culpa das nossas perturbantes disenções civis». Cópia de carta de Bernardino Machado a Afonso Costa, Cascaes, 05-9-1917 in Oliveira Marques, Fernando Marques da Costa (eds.), Bernardino Machado, Lisboa, [Edições Montanha], 1978, pp. 166–167. 603

«Uma scena comovedora», O Dia, 19-09-1917, p.1. 604

«Ares turvos», O Dia, 1917-09-19, p.1 «O precipitado regresso do sr. Affonso Costa, que de súbito desceu das alturas da Serra da Estrella até ao Terreiro do Paço, e a chamada do sr. Alexandre Braga, que (..) tivera de ir ao Porto acudir á gréve, deram lugar a insistentes boatos de crise de que o próprio Diario de Noticias, sempre cauteloso, se faz echo hoje, dizendo-se que é funda a divergencia entre o sr. comendador Affonso Costa e o sr. Jöe Norton de Mattos, do que póde resultar ir a terra este luminoso ministerio, o que seria uma irreparável perda nacional. Ao conselho de ministros de hoje attribue-se grande importância. (...)»

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titular605. Com Costa por dois períodos ausente no estrangeiro, é Norton quem fica a

gerir em Lisboa um governo em crise.

No curto período em que volta a ser apenas ministro, entre o regresso de

Afonso Costa da visita ao CEP e a nova viagem deste ao estrangeiro para participar na

Conferência Interaliada em Paris, Norton tem ocasião de reflectir sobre o seu futuro

político. Curiosamente, fá-lo numa carta dirigida a Afonso Costa. No dia em que a

escreve, são já conhecidos os maus resultados das eleições administrativas locais para

o partido de ambos606 e na imprensa há quem garanta que o governo está

demissionário.

Na missiva, Norton reflecte sobre o futuro, equacionando um cenário

alternativo ao de ministro. A ideia seria transformar-se num comissário do governo

junto do CEP, com poderes de ministro. Ou seja, continuar a ser ministro de facto, em

tudo o que envolva a gestão política do CEP, mesmo deixando de o ser na orgânica do

governo.

Independentemente de continuar à frente do ministério da Guerra ou sair,

passando a ser um comissário político com poderes de ministro junto do CEP,

identifica os dois nós que precisam ser desatados para que a sua acção possa ser

«propícia». Na frente de combate, seria necessário resolver, de uma vez por todas, a

questão dos transportes, de modo a que o Corpo de Exército Português não se reduza,

primeiro, a uma caricatura de si próprio, e, ao fim de um ano, a um zero absoluto. Na

“frente” interna, por seu turno, seria preciso «fazer sem hesitação a política da

605

Norton acumula a presidência do ministério, em regime de substituição, à pasta da Guerra, de 7 a 25 de Outubro (nomeado por Decreto de 7 de Outubro, Ordem do Exército (OE), nº 15, 2ª Série, de 16-10-1917, e exonerado por Decreto de 25 de Outubro, OE, nº 10, 2ª série, de 15-11-1917) e, novamente, de 19 Novembro até à revolução sidonista (nomeado por Decreto de 19 de Novembro, OE nº 14, de 30-11-1917). 606

O Partido Democrático, que tinha 300 câmaras municipais, passa a ter apenas 92. Apesar da oposição republicana só ter ganho 24, se juntarmos as câmaras ganhas pelos monárquicos (25) e pelos independentes (89) (José Adelino Maltez, Tradição e revolução: Uma biografia do Portugal Político do Século XIX ao XXI, Vol. 1 (1820-1910), p. 233), compreende-se a dimensão do desaire eleitoral do partido do governo, ainda por cima tratando-se de um sistema eleitoral organizado de tal forma que, tradicionalmente, quem quer que estivesse no poder e controlasse a máquina eleitoral, ganhava as eleições.

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guerra», o que não se conseguirá sem «que se quebrem por completo dentro do paiz

os manejos germanophilos»607.

O primeiro destes estrangulamentos, após a efémera vitória diplomática obtida

por Norton e Teixeira Gomes no início do Verão, voltara à ordem do dia no final de

Outubro com a retirada unilateral, por parte dos britânicos, do último navio britânico

ainda à disposição do CEP, o Bellephoron608. Nos termos do que ficara acordado com

Norton em Londres e fora reiterado pelo Foreign Office a 17 de Julho, este último

deveria continuar a transportar a maior parte dos reforços mensais para o CEP: a

totalidade dos solípedes e metade dos homens, sendo que a outra metade deveria ser

transportada em transportes providenciados pelo próprio governo português609. A

607

«Se continuar no ministerio e ir ao C.E.P. dentro de breves dias e pôr as cousas em ordem e marcha regular; se sahir do ministerio, nomear-me o Governo da Republica seu comissario, ou cousa que o valha, com poderes de Ministro e com previa combinação com o governo britannico, para exercer a acção, que como ministro, posso hoje exercer junto do general Tamagnini. Em qualquer dos casos eu não exercia acção militar de commando. (tolo se quisesse comandar o C.E.P. e como tenente coronel!) Mas para que a minha acção possa ser própria é necessário resolver, sem demora a questão dos transportes: - e se não se mandarem mensalmente solípedes, tropas para reforços, material de variada espécie, vinho, etc., etc. com a maior regularidade – representará o desaparecimento do nosso Corpo de Exercito dos campos de batalha, a sua redução imediata a uma Divisão com reforços, a uma brigada com reforços, dentro de seis mezes, a um zero dentro de um anno. Para obstar a tal calamidade é necessário que a Divisão Naval me garanta duas viagens por mez com o “Pedro Nunes” e com o “Gil Eannes”, que o governo inglez nos mande de novo o “Bellophorun” ou outro navio que o substitua, e que se isso senão conseguir, haja a coragem de empregar um navio da Empreza Nacional em transporte de tropas, exigindo que a Inglaterra o proteja nas suas viagens com os seus destroyers. E será necessario ainda, para que a minha acção seja propicia, que se quebrem por completo dentro do paiz os manejos germanophilos. É necessario fazer sem hesitação à politica da guerra.» (Extracto de carta de Norton de Matos a Afonso Costa, de 05-11-1917 in Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919]. “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, p. CLV). Nesta missiva, o ministro da Guerra responde, ponto por ponto, a uma carta enviada por Sá Cardoso a Afonso Costa do CEP, a 16-10-1917, e reenviada por Costa a Norton. Tamagnini tomou conhecimento da resposta do ministro, juntamente com um conjunto de cartas enviadas a Afonso Costa por oficiais do CEP, em Fevereiro de 1918, quando veio a Lisboa conferenciar com o novo ministro da Guerra, Sidónio Pais. 608

AHD-MNE, Arqo da Legação em Londres, Mç 96, Nota W.203568/W/41, do Foreign Office a M.

Teixeira Gomes, 29-10-1917, invocando «the urgent demand for ships for anticipated movements of British troops». Teixeira Gomes informa Augusto Soares por tel. nº 235, de 31-10-1917, que responde com indignação, lembrando que «Belerophon recebeu impte beneficiação por ocasião de estada Lisboa de modo poder transportar cento e quatro officiaes cada viagem. Trata-se compromisso formal Governo Britannico alteração prejudica planos estabelecidos com o seu expresso assentimento. Ministro da guerra considera todos pontos inadmissíveis (...) Rogo a V. Exa. empregar as mais activas e enérgicas diligencias para manutenção acordo manifestando surpresa e desgosto Governo (..)».AHD-MNE, Arq

o da

Legação de Portugal em Londres, Mç 96, Tel. 278 do ministro dos Negócios Estrangeiros a M. Teixeira Gomes, 07-11-1917. 609

«This latter vessel will provide for all the monthly reinforcements of animals and for half the monthly reinforcements of troopes and His Majesty’s Government are confident that the Portuguese Government will be in a positon to make their own arrangements for the conveyance of the balance of

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verdade, porém, é que Portugal dificilmente conseguia transportar sequer esta

metade, quanto mais os homens que o Bellephoron podia assegurar.

III.4.4.4. A rebelião dos jornalistas

Já quanto ao outro nó, que não havia maneira de ser desatado, conhece um

novo episódio que vai marcar a fase final do governo Afonso Costa: o caso Teles

Vasconcelos. A expulsão do país deste jornalista a 20 de Novembro, uma semana após

a proibição de que o jornal que dirigia, O Liberal, continuasse a ser publicado, é feita

na sequência de informações que o ligavam ao panfleto de contrapropaganda

conhecido como Rol da Desonra610. O Rol… fazia um assassínio de carácter de cerca de

uma vintena de oficiais do CEP, ligados, quer por motivos partidários quer familiares,

ao governo e ao afonsismo. Enquanto o povo era mandado para a carnificina da frente

de batalha, os privilegiados usavam o seu poder para escapar, acusava o panfleto. Era

uma acusação virulenta à honorabilidade dos democráticos no poder e à sua condução

da política de guerra.

Embora tal fosse razão mais do que atendível para justificar a tomada de

posição do governo contra os responsáveis pela difusão desse tipo de

contrapropaganda, o problema é que a esmagadora maioria dos órgãos da imprensa

periódica do país não acredita nos motivos apresentados pelo executivo. Pelo

contrário, interpreta a supressão do jornal O Liberal e a expulsão do seu director não

tanto como uma reacção legítima de um governo republicano face a mais uma

manifestação de manejos monárquicos mas, pelo contrário, como uma dupla afronta.

Por um lado, um ataque à liberdade de expressão da classe dos jornalistas e, por outro,

um ataque à propriedade privada dos proprietários dos jornais. Isto porque aqueles

acontecimentos, bem como a legislação publicada à medida para a justificar611, não

podem deixar de ser compreendidos no contexto de um movimento de luta contra os

the troops monthly». AHD-MNE, Arq

o da Legação em Londres, Mç 96, Nota n

o W.138125/17,

confidencial, do Foreign Office a M. Teixeira Gomes, 17-07-1917. 610

«Rol de desonra», [1917], folheto, 14 pp. in João Medina (direcção), História Contemporânea de Portugal: Primeira República: da conspiração republicana ao fim do regime parlamentar, Tomo II, Lisboa, Edição Amigos do Livro, 1985, pp. 81-86. 611

Decreto nº 3544, de 13-11-1917, DG, I Série, Nº 197, 13-11-1917.

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abusos da censura que une empresários e directores de jornais e jornalistas de todas

as tendências políticas ao longo do Verão e Outono de 1917.

A diferença, face a protestos anteriores, é que, desde o Verão deste último ano,

em especial desde Setembro, a contestação não é episódica. Os jornalistas já não se

limitam a tomadas de posição avulso perante episódios concretos, como o do comboio

organizado pelo ministério da Guerra por ocasião da parada militar de Montalvo, no

ano anterior. Desta vez, a classe, organizada numa Comissão de Defesa da Imprensa,

toma uma posição conjunta contra o uso político que, com um alto teor de

arbitrariedade, o governo ia dando à censura à imprensa sob o pretexto da guerra.

Instituindo-se como um lobby organizado junto do Parlamento, consegue que alguns

artigos da Lei nº 495, de 28 de Março de 1916, relativa à censura preventiva enquanto

durasse o estado de guerra, sejam alterados. Na nova lei nº 815, chega-se a uma

formulação que, embora restritiva, tinha a vantagem de limitar a dois os casos em que

as comissões de censura passam a estar autorizadas a eliminar notícias ou apreciações:

«1º Quando seja prejudicial à defesa nacional, militar ou económica, ou às operações de guerra; 2º Quando envolva propaganda contra a guerra.»612

No seio do governo, o alvo privilegiado da contestação da classe jornalística não

começa, propriamente, por ser Norton mas sobretudo o seu colega do Interior

Almeida Ribeiro, e o próprio Afonso Costa. Os dois estariam a protelar a publicação da

nova legislação. Dir-se-ia, acusa o vespertino A Capital, que se

«procura, a todo o transe, prolongar a existencia do regimen que essa lei procura substituir, regimen de puro arbitrio em que os censores ás ordens dos ministros, ou por um simples capricho, não só tem retalhado as columnas dos jornaes como tem espatifado o bom senso.» 613

Quando a Lei 815 é finalmente publicada em Diário do Governo, a 6 de

Setembro, o surto grevista e a agitação social estão ainda longe de estar resolvidos.

Nesse mesmo dia, Norton faz publicar uma nota oficiosa

«como que a pedir paz expressando a sua confiança no bom critério e patriotismo da Imprensa e declarando que, modificada a situação que constrangeu [sic] o governo a

612

Lei nº 815, de 6-09-1917, DG, I Série, n.º 152, 06-09-1917. 613

«O governo e a imprensa: porque é que ainda não foi promulgda a nova lei da censura?», A Capital, 03-09-1917, p.1.

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restringir a publicação de noticias referentes aos ultimos acontecimentos a sua intervenção n’esse assunto cessaria.» 614

As boas intenções do ministro não resistiam, porém, ao confronto com a

realidade, visto que os jornais do dia continuam a apresentar

«longos córtes na própria secção noticiosa do movimento telegrapho-postal! Quer dizer que na mão direita usa o governo a pena em que pede a paz, na mão esquerda a navalha com que continúa a ferir a imprensa pelas costas! (...)»615

A desconfiança sobe de tom, tanto que, a 14, uma representação muito

alargada dos directores de jornais e jornalistas de Lisboa e Porto entregam uma carta

de exposição-protesto da imprensa ao Presidente da República. São 25 títulos que

cobrem todo o espectro ideológico da imprensa portuguesa, liderado pelo decano dos

jornais portugueses, o Jornal do Commercio e das Colonias, e incluindo o Primeiro de

Janeiro, Diário de Notícias, Movimento Operário, Liberal, Portugal, Opinião,

Monarchia, Ridículos, República, Ordem, Commercio do Porto, Jornal de Notícias, O

Dia, Pátria, Constructor, Lucta, Montanha, A Capital, Manhã, Vanguarda, Graphico,

Século, Diário Nacional e o Liberdade.

Na carta, explicam os jornalistas,

«(...) quiz a imprensa demonstrar que, ao insurgir-se altamente contra qualquer ameaça de apprehensão fora dos casos do art.º 4º da lei de 28 de março de 1910, a imprensa está com a lei. E estando com a lei, a imprensa encontra-se disposta a usar de todos os meios necessários para impedir efficazmente que as suas liberdades, garantias e legítimos interesses sejam de alguma maneira menosprezados pelo arbítrio de qualquer representante ou agente do poder. A imprensa encontra-se unida para vigiar e exigir - porque é o seu direito - que a lei sobre a censura, ultimamente votada no parlamento, seja (…) observada pelos seus executores. Do mesmo passo, porém, não consentirá a imprensa, sem reacção energica, que os intuitos daquela lei se sophismem, pondo-se ilegitimamente em pratica a apprehensão dos periodicos, fóra das restritas hypoteses de transgressão tambem legalmente previstas. Estão os jornalistas em condições de annunciar e tornar effectiva esta resolução, porque se encontram unidos no mais firme, extenso, íntimo e indestrutivo movimento de solidariedade, que jamais se tem effectuado em Portugal entre os que trabalham na imprensa.»616

614

«O governo e a imprensa», O Dia, 1917-09-06, p. 1 615

Ibidem. 616

A. Bessa et alia, [Carta de exposição-protesto da imprensa ao Presidente da República Bernardino Machado], Lisboa, 1917-09-14, publicada n’ A Capital, 05-09-1917, p.1. A carta é subscrita por 23 jornalistas ou directores de jornais, representando 25 jornais: Alberto Bessa - Jornal do Commercio e das Colonias, Albino Pimentel - Primeiro de Janeiro, Alfredo da Cunha – Diário de Notícias, Alfredo Pinto - Movimento Operário, Antonio Telles de Vasconcellos – Liberal, Arthur Marinha de Campos – Portugal, Carlos Faro – Opinião, conde de Monsaraz – Monarchia, Cruz Moreira – Ridículos, Eduardo de Sousa – República, Fernando de Sousa – Ordem, Ferreira Martins - Commercio do Porto, Francisco Vidal [?] - Jornal de Notícias, J.A. Moreira d'Almeida - pel' O Dia e pela Pátria, Joaquim Cardoso – Constructor, José Barbosa – Lucta, Luiz Derouet – Montanha, Manuel Guimarães - A Capital, Mayer Garção - Manhã, Pedro Muralha – Vanguarda, Raul Neves Dias – Graphico, Tito Martins – Século, Annibal Soares - pelo Diário Nacional e pela Liberdade.

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Quando, um mês depois, a ameaça se concretiza e o jornal O Liberal é proibido,

ao abrigo de legislação publicada no próprio dia, a Comissão de Defesa da Imprensa

decide convocar uma reunião magna dos representantes dos jornais de Lisboa e Porto

para o dia 20. Embora feito à medida para justificar a legalidade da proibição do jornal

de Teles de Meneses, o Decreto 3544, de 13 de Novembro, coloca uma espada de

Dâmocles sobre toda a imprensa, enquanto durar o estado de guerra. Na verdade,

ameaça de apreensão, suspensão ou, como é o caso de O Liberal, de supressão, todos

os jornais «em que se tenha intentado ou intente fazer propaganda sistemática em

favor dos inimigos ou tendente a deprimir a alma da Nação ou a honra do seu

Exército»617. Por muito razoável que, do ponto de vista de um país em guerra, fosse o

primeiro motivo (propaganda inimiga), já a avaliação do que caberia debaixo da

categoria de artigos que deprimissem a alma da Nação ou a honra do exército era bem

mais melindrosa. Na assembleia geral do dia 20, a imprensa reclama «justiça

republicana», decidindo apresentar ao Congresso da República, assim que ele reabra,

uma representação contra o decreto 3544618,

«(…) decreto que, na realidade, sujeita a imprensa a um regimen de excepção, o mais perigoso, o mais injusto, o mais humilhante.

A imprensa que se reuniu para obter dos poderes publicos que a censura não abusasse, como estava abusando, e que alguma coisa conseguiu, com as suas reclamações, tão justas ellas eram, vê-se agora em presença d'uma situação cem vezes peor do que a anterior, porque os abusos da censura só podiam elliminar-lhe artigos, emquanto que o novo decreto permitte a supressão do jornal e a expulsão dos jornalistas, que o redigem.

É a propriedade que se encontra ameaçada; é a liberdade individual que se vê desprovida de toda e quaisquer garantia.

Teem razão os jornalistas em se sentirem não só ameaçados nos seus interesses, mas vexados na sua propria dignidade. Contra elles, com effeito, adopta-se um procedimento, que não se adopta contra outros cidadãos. Elles são mantidos, no seu próprio paiz, n'um regimen de suspeição permanente. Não teem direitos, não lhes são reconhecidos. Dir-se-hia que não teem logar entre os cidadãos portuguezes.»

Norton, que acabara de reassumir a presidência interina do governo, tenta

conter os danos, fazendo uma operação de charme junto de alguns directores de

617

Decreto 3544, de 13-11-1917, DG, I Série, Nº 197, 13-11-1917. 618

«Contra as leis de excepção: A reclamação da imprensa contra o ultimo decreto que a attinge: Reclama-se justiça republicana», A Capital, 21-11-1917. Apesar de generalizado, o protesto não é unânime. Há quem se demarque dele por considerar que seria ser solidário com traidores: «Pela Nossa Parte… Não! Abaixo a Imprensa Germanophila!», O De Aveiro: Semanario Independente, 25-11-1917, p.1).

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jornais, entre os quais José Barbosa e Luiz Dérouet, que convida a irem a sua casa619.

Os jornalistas acedem ao encontro mas não ficam convencidos. Cépticos, pedem ao

ministro que divulgue as provas de que Teles de Meneses e outros jornalistas do

Liberal são culpados de traição.

A fragilidade da posição do governo, que só não caíra ainda porque Bernardino

Machado decidira esperar que fosse o Congresso da República, em vésperas de reabrir,

a reafirmar ou então retirar a confiança ao executivo620, era já por demais evidente. A

conspiração que estava já em marcha para derrubar o governo, sem esperar pela

reunião das Câmaras, era igualmente conhecida de Norton. A queda mais que provável

do governo vem, aliás, à baila no encontro de Norton com os jornalistas, pelo menos a

acreditar na versão de José Pontes que teria servido de intermediário para a sua

realização621. Afinal, José Barbosa dirigia o órgão dos unionistas A Lucta, em cuja sede

se conspirava abertamente. O próprio jornal chefiado por Dérouet, A Montanha,

deixara de se assumir como órgão do partido democrático no Porto622.

III.4.4.5. O rosto da queda do afonsismo

Na verdade, o descontentamento grassa no seio das próprias hostes do partido

democrático, dentro e fora do país. À insatisfação no seio do exército não escapavam

oficiais democráticos que combatiam no CEP. Da Flandres, um grupo particularmente

influente desses militares, com o coronel Sá Cardoso à cabeça, vêm a caminho de

Lisboa para assumir o seu lugar como deputados e ter, assim, uma palavra a dizer na

resolução da crise política em Lisboa e dos problemas do CEP623. São apanhados pela

619

«O sr. ministro da guerra e presidente interino do ministério comunicou hontem, por carta, aos deputados srs. José Barbosa e Luiz Dérouet, membros da Commissão de Defeza da Imprensa, que os receberia, com muito aprazimento, em sua casa, na próxima segunda-feira, pelas 16 horas.» («O caso do “Liberal”: A opinião da “Republica”», A Capital, 24-11-1917, p.2). No encontro teria estado presente, ainda, um terceiro director de jornal, de acordo com o relato de José Pontes, «O Jornalismo e a Propaganda da Guerra», A Capital, 18-04-1919, p.1. 620

Cf., p. ex., «A crise politica», A Capital, 14-11-1917, p.2. 621

Segundo o relato que o jornalista José Pontes, anos mais tarde, dele fará. Pontes reclama ter sido ele o intermediário a quem o director do Serviço de Informações do Ministério da Guerra, major Luís Galhardo, recorrera para conseguir o encontro. José Pontes, «O Jornalismo e a Propaganda da Guerra», A Capital, 18-04-1919, p.1 622

Rui Ramos, História de Portugal. Vol. 6, A segunda fundação (1890-1926), Edição revista e actualizada, S.l., Estampa, 2001, p. 457. 623

Ao descontentamento político, juntava-se o castrense, de que o comandante do CEP se faz eco nas suas memórias. De facto, esses oficiais não veriam com bons olhos que o ministro não conseguisse

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revolução liderada pelo major Sidónio Pais, que rebenta a 5 de Dezembro, e acabam a

defender o governo, de armas na mão. Debalde. Até a ‘rua republicana’,

tradicionalmente tão activa em Lisboa, não se mobilizará decididamente para impedir

a queda de Afonso Costa e do afonsismo. A fronda de conspiradores juntava um leque

demasiado alargado de descontentes que, a partir da noite do dia 5 vão afluir ao

quartel-general de Sidónio em Lisboa, a Rotunda, que tem do seu lado, a marchar

sobre Coimbra, o herói do 5 de Outubro e revoltoso impenitente, Machado dos Santos.

É na capital, no entanto, que tudo se joga e, nela, Sidónio tem do seu lado a maioria da

artilharia disponível624, que se virá a revelar decisiva para a vitória.

Do lado do governo, Norton, que assume o comando de operações no Arsenal

da Marinha, conta com a marinha, sob o comando do seu amigo Leote, mas, desta vez,

os bombardeamentos dos navios fiéis ao governo não se revelarão eficazes. Outro

tanto acontecerá com a infantaria, que vê frustrado o seu intento de cercar os

revoltosos, acabando, pelo contrário, ela própria encurralada no Rato. É a derrota

militar anunciada. O caos é agravado pela acção de bombistas civis e pelas pilhagens

generalizadas. Na noite do dia 7, é já um derrotado Norton que abandona o Arsenal

num rebocador, Tejo abaixo, em direcção ao Palácio de Belém. António Machado, filho

do Presidente da República, recorda a chegada:

«Estou a vê-lo, ligeiramente obeso, com a sua farda de general [sic] e aquele perfil voluntarioso e enérgico de romano. E lembro-me que os graciosos, quando ele punha o monóculo, o comparavam a Nero, assestando a sua esmeralda… (…) N. de Mattos, sóbrio de gestos e parco de palavas, apenas dissera, referindo-se á revolução: “Mais uma victória boche!”»

625

mandar para França os oficiais que tanta falta lá faziam, ao mesmo tempo que sancionava a promoção de oficiais em Lisboa, inclusive do seu próprio núcleo duro (Isabel Pestana Marques (ed.), Memórias do general: [1915-1919], “Os meus três comandos” de Fernando Tamagnini, p. CLXIV). Segundo o Presidente da República: «A defecção dos militares democráticos viu-se na sessão parlamentar sobre direitos parlamentares dos militares e suas obrigações para com o ministro da guerra. E as más vontades, espalhadas por eles, dos militares democráticos contra Norton! (...) Como haviam estes militares defender o governo?!». AFMS, Espólio Bernardino Machado, «Agenda de Bernardino Machado [1917-1918]» in CasaComum.org, http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_109371, acedido a 20-10-2013. 624

Para a descrição das forças em presença e dos acontecimentos militares, veja-se Armando Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, vol. 1, pp. 422 e segs. 625

A. [António] M. [Machado], «Para a história. Norton de Matos (Um episódio inédito da revolta dezembrista)», O Norte, 03-06-1919.

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Já não sairá do Palácio de Belém a não ser para o navio inglês que o conduzirá

ao exílio. Na decisão de propor a cessação das hostilidades e de apresentar o pedido

de exoneração do governo ao Presidente da República, tomada em reunião de

conselho de ministros com os comandantes das forças fiéis, Norton reconhece a

impotência do seu governo em controlar a «populaça cada vez mais desvairada»626. Os

saques e a desordem social desses dias, sendo propiciados pelo facto da polícia e a

GNR estarem concentradas na repressão do movimento militar, eram mais um

episódio de uma situação social explosiva larvar, ao longo de todo o ano de 1917. O

que não invalida que, desta vez, estando Norton à frente do governo, o fracasso seja

assumido por ele. Se, como reconhecerá Machado, os democráticos se suicidaram na

política interna627, o acto final desse processo deu-se com Norton na chefia do

executivo.

Nas razões invocadas para o pedido de demissão, Norton alega, ainda, a

vontade de «evitar as consequências funestas para o país da divisão do exército que,

mais do que nunca, precisava neste momento de estar unido»628. Numa altura em que

o CEP acaba de ocupar oficialmente o seu sector da frente de combate mas sofre

graves conflitos intestinos629, evitar que a fracturação do exército português630 se

torne irremediável é uma motivação que ajuda a perceber por que motivo Norton

626

ANM, Pasta Memórias 5 de Dezembro 1917, J. Norton de Matos, [Diário-agenda], 05-12-1917 a 30-12-1918, mns. 627

«Na política interna pode dizer-se que os democráticos se suicidaram. Confiaram demais no seu prestígio na política externa.» (AFMS, Espólio Bernardino Machado, «Agenda de Bernardino Machado [1917-1918]»). 628

Extracto de nota enviada do Palácio de Belém para a imprensa na madrugada do dia 8, transcrita em «Depois do combate», A Capital, 08-12-1917. A decisão de demitir-se é tomada ao final da tarde do dia 7, altura em que redige, pelo seu punho: «O Governo da Presidência interina do Snr. Norton de Mattos, considerando que a continuação das hostilidades fará aumentar cada vez mais a desordem, o saque e a indisciplina social e desejando ao mesmo tempo evitar lutas sangrentas entre portugueses, resolveu propor a cessação das hostilidades, dando à Sociedade Portug. da Cruz Vermelha poderes para fazer essa proposta. O Governo resolveu também apresentar a sua demissão a Sua Exª o Sr. Presidente da Republica que a aceitou». ANM, P. Correspondência 1917-1919, J.M.R. Norton de Matos, Rascunho de nota «Nº 30», Lisboa, 7 de Dezembro de 1917, às 19 horas, 1 fl. mns e ass. (emendado «ao Ex.mo Snr. Carlos Gomes», riscado e substituído por «Sociedade Portug. da Cruz Vermelha»). A exoneração é assinada por Bernardino Machado e Norton de Matos a 8 de Dezembro. O original do decreto não chegou a ser publicado em Diário de Governo, tendo vindo parar à posse do Dr. Ricón Peres, a quem agradeço a informação. Está publicado em http://republica100anos19102010.blogspot.pt/2008/10/blog-post.html, acedido a 31-10-2013. 629

António José Telo, Primeira República I : Do Sonho à Realidade, pp. 392–393. 630

José Medeiros Ferreira, O comportamento político dos militares : forças armadas e regimes políticos em Portugal no século XX, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, p. 64.

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avançou com o pedido de demissão do governo de forma que alguns observadores

privilegiados consideraram algo precipitada.

Efectivamente, dos relatos conhecidos da revolução liderada por Sidónio Pais,

sobretudo o de testemunhas oculares do que se passou nos bastidores do poder

deposto631, ressalta a aparente facilidade com que o governo, sob a chefia interina de

Norton, acaba por capitular, com Afonso Costa já no Porto, na fase final da sua viagem

de regresso da Conferência Interaliada em Paris. Ao contrário da versão do próprio, de

que teria consultado previamente Costa pelo telefone, aquelas testemunhas relatam

que Norton teria colocado Afonso Costa perante o facto consumado. Não lhe teria

perguntado se queria apresentar a demissão do governo, informando-o antes da

decisão já tomada. Invoca a falta de tropas, a falta de oficiais e, mais grave que tudo, a

«fraqueza moral»632 da posição do governo. E a fraqueza era a de ser um governo com

a morte anunciada para quando as câmaras abrissem. Era, nas palavras textuais do

Presidente de República, que poucos dias depois será também ele destituído, «um

governo que ia cair por si»633.

Acontece, de facto, que Norton, tal como muitos dos seus colegas de governo,

há muito que se considerava parte de um executivo de gestão. A carta que Norton

escrevera a Costa um mês antes, atrás analisada, indica que tinha disso plena

consciência, ou não se estivesse já a posicionar-se para continuar a conduzir, sim, a

política de guerra mas já com um outro estatuto que não o de ministro da Guerra. O

facto de a ter escrito a Costa indicia que contava que este continuasse a ter um papel

político de relevo, quer como primeiro-ministro à frente de um novo governo com uma

base de apoio menos afunilada, quer por continuar a ser uma personalidade

631

É o caso do cunhado de Afonso Costa, José de Abreu, e do chefe de gabinete de Bernardino Machado, José Lopes de Oliveira. O primeiro testemunhou os acontecimentos junto ao chefe titular do governo, no Porto, e o segundo estava no Palácio de Belém, com o Presidente da República, com o chefe interino do executivo. José de Abreu, «Depoimento de José de Abreu: Para a história. A prisão do Dr. Afonso Costa» in Oliveira Marques (ed.), Afonso Costa, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 159-171. Lopes de Oliveira, «A Revolução de 5 de Dezembro - Depoimento de Lopes de Oliveira» in Oliveira Marques, Fernando Marques da Costa (eds.), Bernardino Machado, Lisboa, [Edições Montanha], 1920, pp. 178-195. 632

«A nossa fraqueza moral é profunda. Não temos tropas, não temos oficiais». Lopes de Oliveira, Op. cit., p. 185. 633

«O absurdo de deitar abaixo um governo que ia cair por si!» (AFMS, Espólio Bernardino Machado «Agenda de Bernardino Machado [1917-1918]»).

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incontornável no seio do partido democrático. Na verdade, muitos dos descontentes

nas fileiras deste partido, os «dissidentes democráticos»634, acreditavam que, com

golpe ou sem ele, seriam os democráticos a continuar a dar cartas no governo. Apenas

teriam que ser feitas algumas correcções de rota, nomeadamente envolvendo outros

partidos na governação: os evolucionistas e, eventualmente, os unionistas. Por isso

Bernardino começa por considerar um «absurdo» que alguém se tivesse dado ao

trabalho de «deitar abaixo um governo que ia cair por si». Por isso, tenta negociar com

os golpistas a formação de um novo governo mais inclusivo, acedendo a dar aos

unionistas algo por que estes havia muito pugnavam para que pudesse ser

ultrapassado um impasse recorrente do regime: que o parlamento pudesse ser

dissolvido. Norton, na reconstituição que faz dos acontecimentos assim que

desembarca em Gibraltar, em estilo diarístico, admite que o primeiro passo foi da sua

responsabilidade. Teria sido na dramática reunião do conselho de ministros do final da

tarde do dia 7, ainda antes de partir para o Palácio de Belém, que, para facilitar a

missão de um novo ministério camachista,

«resolvemos declarar ao Presidente da República que votaríamos a dissolução parlamentar e que nos comprometíamos, em nome do partido democrático, a que tal alteração da Constituição fosse votada. O Dr. Afonso Costa que consultei para o Porto, pelo telefone, também se comprometeu a votar o princípio da dissolução.»635

Simplesmente, não era uma mera mudança de governo que Sidónio tinha em

mente636 mas antes a destituição do Presidente da República, a dissolução do

parlamento e uma mudança constitucional que lhe permitirá, poucos meses após

governar em ditadura – acumulando, a certa altura, a chefia do governo com a do

Estado –, ser eleito por sufrágio universal Presidente da República. Tudo isto eram

desideratos que, na noite de 7 para 8 de Dezembro, quando Norton se demite, não

tinha como conhecer. O que, pelo contrário, sabia era ser ele o chefe interino de um

governo com morte há muito anunciada e ser o chefe de um exército cuja unidade

estava por um fio, numa altura em que o país estava profundamente fragilizado pela

634

Ibidem. Até referência em contrário, as citações são desta agenda. 635

ANM, Pasta Memórias 5 de Dezembro 1917, J. Norton de Matos, [Diário-agenda], 05-12-1917 a 30-12-1918, mns. 636

«A tardia e generosa oferta dos democráticos de votarem a dissolução e de cederem o Poder aos unionistas, para na primeira oportunidade regressarem em força (...) ficava liminarmente rejeitada.» A. Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo, vol. 1, p. 427.

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guerra. Vista por este duplo prisma, a sua decisão ganha outros contornos. Fazer o

contrário equivaleria a prolongar uma luta fraticida entre militares do mesmo exército

apenas para evitar a queda de um governo que, de qualquer modo, muitos

consideravam já «um cadáver»637.

É aquela preocupação que ajuda a perceber que Norton, já a bordo do

Woodnut, tenha tido o cuidado de fazer chegar ao comandante Machado dos Santos

as provas contra o jornalista Teles de Meneses638, que antes não tinha querido mostrar

aos directores de jornais. Debalde. Uma das primeiras medidas da Junta

Revolucionária será anular toda e qualquer legislação do governo anterior que de

alguma forma impeça a livre publicação de jornais, anulando, igualmente, «a ordem de

expulsão do território da República contra qualquer jornalista»639. O governo britânico,

que acolhe o primeiro-ministro interino demissionário a bordo de um seu navio e

patrocinará o seu exílio em Gibraltar e depois, em Londres, não tem dúvidas em

considerar, tal como Norton, que Teles de Meneses é um agente dos alemães. Durante

o sidonismo, não deixará de manifestar a sua perplexidade e preocupação perante a

facilidade com que agentes alemães continuarão a manobrar na imprensa portuguesa.

Tal não impedirá, porém, o governo de Lloyd George de reconhecer e apreciar o novo

poder em Portugal. Afinal de contas, a primazia dada pelo terceiro governo de Afonso

Costa à política externa de nada lhe serviu, na hora da derrota interna. No caso do

homem que estava ao leme quando o seu governo foi derrubado, coronel Norton de

Matos, nem as contemporizadoras palavras que Barnardiston lhe dirigiu meses mais

tarde640, protestando a amizade que lhe continua a dedicar, servirão para afastar a

amargura com que sai desta sua experiência na grande política, depois de uma

ascensão fulgurante pelas mãos de Afonso Costa a quem momentaneamente teve a

637

Quer o digam textualmente, como este editorial de A Capital, quer de muitas outras formas na imprensa de várias tendências, ao longo do mês que antecedeu o 5 de Dezembro. «A crise das subsistências: É preciso que a ordem publica se não altere: Na expectativa d’um novo governo», A Capital, 19-11-1917, p.1. 638

ANM, P. Memórias 5 de Dezembro 1917, J. Norton de Matos, [Diário-agenda], 05-12-1917 a 30-12-1918, mns. Parte do processo de averiguações sobre o caso Rol da Desonra / jornal O Liberal pode ser consultado no AHM, tendo sido analisado por L. Alves de Fraga, Do intervencionismo ao sidonismo, pp. 221-236. 639

Decreto de 09-12-1917, da «Junta Revolucionária, em nome da Nação», DG, I Série, Nº 214, 10-12-1917. 640

ANM, Tradução de carta particular de Barnardinston a Norton de Matos, Sintra, 19-06-1918, dact.

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veleidade de pretender ofuscar para, no final, precipitar a queda. Trocarão

cumprimentos à distância quando se cruzarem no Tejo641, cada qual no seu navio,

Costa sob escolta policial a caminho da prisão e Norton sob protecção britânica a

caminho do exílio. Irmanados no infortúnio, as casas de ambos são assaltadas e

saqueadas, alegadamente pela populaça em fúria. Norton, sendo militar, conhecerá

ainda a humilhação suplementar de ser considerado desertor e expulso do exército.

CAPÍTULO IV – NORTON, UM VELHO REPUBLICANO NA NOVA REPÚBLICA (1919-

1926)

IV.1. Norton na Conferência da Paz

Acabada a guerra e encerrado o capítulo sidonista, o campo político

republicano português está pronto para voltar a ser, retomando a metáfora

astronómica, «um firmamento com várias estrelas competindo entre si»642.

Simplesmente, a República que claudicara sob a chefia interina de Norton, em

Dezembro de 1917, não mais voltaria643. O que não impede que os astros que se

movimentavam na cena política da velha República não tenham uma palavra a dizer.

Em especial, a dupla mais na berlinda no Verão e Outono de 1917: Afonso Costa e

Norton de Matos.

IV.1.1. Negociar a paz para salvar a memória e o futuro da República,

com o império no horizonte

Dois anos depois, encontramo-los em Paris, a negociar a paz e a tentar, sob

vários aspectos, condicionar a política dos governos que se sucedem em Lisboa, dos

quais, aliás, nenhum deles faz parte644. A antiga ‘equipa de guerra’ passa a ocupar os

641

Um golpe de estado: a revolução de 8 de Dezembro, Lisboa, João Romano Torres, 1917. 642

Maria Alice Samara, «Sidonismo e restauração da República. Uma “encruzilhada de paixões contraditórias”» In Fernando Rosas, Maria Fernanda Rollo (coord.), História da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2009, p. 378. 643

Ana Catarina Pinto, A Primeira República e os conflitos da modernidade, 1919-1926: a esquerda republicana e o bloco radical, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2011. 644

A delegação pós-sidonista ter-se-ia tornado um «ministério oficioso dos Negócios Estrangeiros e, para além disso, um governo oficioso. (...) [Costa] Telegrafava regularmente instruções para Lisboa convocando especialistas e conselheiros a Paris e orientando o governo relativamente à legislação que tinha de ser introduzida (...). Isto é tanto mais notável quanto Afonso Costa foi uma excepção em Paris:

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lugares-chave da delegação portuguesa à Conferência da Paz a partir de Março de

1919645. Costa, o novo chefe da delegação, já lá vivia. Na verdade, após ser libertado

da prisão para onde Sidónio o remetera, resolvera fixar residência na capital

francesa646.

A 21 de Março de 1919, chega Norton. Vem de Londres, onde se exilara havia

mais de um ano, ganhando a vida como representante de negócios da Empresa de

Construções Navais, Lda., dedicada ao comércio de importação e exportação647. Os

principais agravos que sofrera durante o regime sidonista – nomeadamente a expulsão

do exército com o labéu de desertor – tinham começado a ser reparados. De facto,

entre Fevereiro e Março de 1919, recupera o seu posto no exército, recebe a Grã-Cruz

da Ordem de Torre e Espada do Valor Lealdade e Mérito e, finalmente, é reintegrado

no Instituto Superior Técnico como professor catedrático. As feridas são, no entanto,

demasiado fundas para que considere voltar à vida partidária activa, apesar das

solicitações. Após declinar um convite do PRP para ser deputado pelo círculo de Ponte

de Lima, o seu nome acaba por aparecer, à revelia, nas listas do partido pelo círculo de

Lisboa. É eleito mas recusa assumir o cargo. Porém, a Câmara dos Deputados declarará

não aceitar a renúncia, o que lhe permitirá, mais tarde, vir a tomar posse como

deputado648 e usar, de forma cirúrgica, o palco parlamentar para o combate político.

Porém, mais significativo do que a rejeição, por ora, de um papel político em

sede parlamentar – por onde, de resto, sempre passara de fugida, no intervalo entre

não era chefe de Estado nem chefe de governo; nem sequer era ministro dos Negócios Estrangeiros». Filipe Ribeiro de Meneses, Afonso Costa, Alfragide, Portugal, Texto, 2010, p. 93. 645

Afonso Costa, Norton de Matos e Augusto Soares como ministros plenipotenciários; João Chagas e Teixeira Gomes como técnicos (Cf. Acta n

o 35 da Delegação de Portugal à Conferência da Paz, sessão de

22-03-1919 in Duarte Ivo Cruz (coord.), Estratégia portuguesa na Conferência de Paz, 1918-1919: as actas da delegação portuguesa, Lisboa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 2009, pp. 206 e segs.). 646

Após alguns meses na prisão, Costa é libertado a 30 de Março de 1918 e parte para o exílio, em circunstâncias ainda por esclarecer. Filipe Ribeiro de Meneses, Afonso Costa, p. 79. 647

Durante o período revolucionário, lograra escapar à prisão, refugiando-se num navio britânico que o levou pelo seu périplo de exilado político por Gibraltar, Paris e, finalmente, Londres. Sobre este período, cf. ANM, J. Norton de Mattos, Miscelanea, Vol. 1

o, 16 de Setembro de 1918 a 15 de Setembro de 1919,

1918-1919, 180 pp., mns. 648

ARQUIVO HISTÓRICO-PARLAMENTAR (AHP), Câmara dos Deputados, [Livro Político] Registo dos Deputados do Congresso da República, IV Legislatura, 29 – Maio – 1919 a 23 – Maio – 1921, «Boletim para a constituição do Registo Político dos membros do Congresso da República Nome José Mendes Ribeiro Norton de Mattos», preenchido pelo punho de Norton e assinado a 11-03-1921, fl. 133. Eleito a 11-05-1919, só toma posse quase dois anos depois, a 25-02-1921.

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cargos governativos –, é o seu afastamento da política governativa de Lisboa. É um

distanciamento que tem basicamente a ver com dois motivos.

Em primeiro lugar, pode considerar-se que é nesta altura que Norton se

começa a posicionar como uma reserva moral da República. O improvável republicano

adquirira, ao fim de alguns anos, estatuto de velho republicano. Na verdade, apesar de

não ser um republicano histórico, as suas credenciais republicanas tinham passado

pela prova dos factos. Norton fez o milagre de Tancos, sem o qual Portugal não estaria

agora em Paris a discutir a paz. Apesar disso, a glória, tal como muito do ónus, do feito,

na sua vertente política, acaba por recair sobretudo em Afonso Costa. Dois anos após a

caricatura assassina do jornal O Dia, a tensão surda entre os dois conhece novos

desenvolvimentos em Paris.

É uma disputa sobre o passado mas não só. É igualmente uma disputa sobre o

futuro, sobre quem salva o império português das novas ameaças do pós-guerra. O

que nos leva à segunda razão que torna particularmente significativo o distanciamento

de Norton face a um eventual regresso à política nacional. Norton sabe que, como

membro de um governo em Lisboa, estaria sujeito a uma enorme instabilidade,

sempre na iminência de o executivo cair, por via das lutas partidárias ou de uma

revolução. Para não se sujeitar a isso, nada melhor do que o distanciamento geográfico

e o regresso a um lugar onde fora feliz: Angola. Mais do que propriamente um

regresso, Norton posiciona-se para dar a cara por um novo modelo de governação que

lhe permita ter as mãos livres para fazer obra, sem as peias de Lisboa que tanto o

haviam condicionado no seu primeiro mandato. Poucos dias após chegar a Paris, anota

no seu diário as condições para aceitar o lugar:

«Irei nas seguintes condições para Angola: com funções de Alto Comissário da República fixadas em decreto. Com garantia de me demorar a governar e administrar a colónia pelo menos 5 anos, sendo indemnizado se me tirarem de lá antes d’esse prazo. Garantirem-me os fundos necessários para desenvolver a colonia ou deixarem que eu os arranje. Um descanso de dois meses por ano fora da colónia. 18 contos de ordenado por ano. Uma verba de 30 contos no orçamento para despesas criados, automóveis, mobílias, roupas e casa e habitações em diversos pontos da colónia para o governador geral, isto durante pelo menos 5 anos (…)»649

649

ANM, Norton de Mattos, Miscelanea, Vol. 1º, pp. 150-151.

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Em suma, trata-se de assegurar condições financeiras compatíveis com o seu

estatuto de figura de referência da República, dispor de um horizonte temporal que

lhe permita fazer obra duradoura e, finalmente, garantir margem de manobra

financeira para a poder concretizar. Enquanto não se concretizam estes três requisitos

para regressar a Angola como alto-comissário da República, Norton regressa ao serviço

oficial como ministro plenipotenciário da delegação portuguesa à Conferência da Paz.

Com estas novas funções em Paris pretende assegurar que à República é

reconhecido o prestígio devido pela participação na guerra e garantir a sobrevivência

das colónias portuguesas, com o trunfo dos altos-comissariados na manga.

Tendo em vista aquele primeiro objectivo, proporá que as tropas portuguesas

façam parte das forças de ocupação da Alemanha, integradas no Exército Britânico do

Reno. O apoio do Foreign Office ao alvitre não será acompanhado pelo do War Office,

que, apesar da insistência de Balfour, se mantém irredutível na recusa650. Frustrado

este desiderato, Norton recebe, ao menos, manifestações de consideração e simpatia

da parte de militares franceses, como o marechal Foch, que acolhe com grande

contentamento a representação das tropas portuguesas no desfile da vitória651.

Pequena consolação que não consegue, porém, obliterar o facto de ter sido Espanha a

escolhida para membro não-permanente do Conselho Executivo da Sociedade das

Nações, em detrimento de Portugal.

A escolha revela com toda a crueza que, por si só, a entrada na guerra não fora

suficiente para dar vantagem a Portugal na cena internacional face ao país vizinho652,

que permanecera neutral durante todo o conflito militar. Assim, as diligências

portuguesas em prol de um lugar no Conselho Executivo saldam-se objectivamente por

um desaire. Não propriamente por demérito do trabalho da equipa portuguesa653 na

650

Razão pela qual o Foreign Office aconselha a não-formalização da proposta. José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência da Paz: Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, pp. 73-74. 651

O encontro de Norton e de Afonso Costa com Foch é relatado por este último aos restantes membros da delegação portuguesa. Acta nº 40, sessão de 22-04-1919 in Duarte Ivo Cruz (coord.), Estratégia portuguesa na Conferência de Paz, 1918-1919, p. 248; Efectivamente, o CEP marcará presença no desfile da vitória, liderado pelos marechais Foch e Pétain, a 14 de Julho de 1919, com um contingente de 150 soldados. A sua presença no desfile da vitória em Londres será, no entanto, bem mais apagada. 652

José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência da Paz: Paris, 1919, p. 49. 653

Muito embora Espanha, que nem participa na Conferência da Paz, tenha sido bem mais rápida em perceber a importância dos EUA na nova correlação de forças mundial do pós-guerra, ao contrário da

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Conferência da Paz mas porque, nela, a posição norte-americana visava mais o futuro

do que propriamente o passado. Mais do que punir os vencidos e ressarcir os

vencedores dos custos da guerra finda, a grande aposta do Presidente Wilson era criar

uma nova organização internacional que garantisse a paz mundial654.

É, no entanto, na relação entre o prestígio de Portugal e a sobrevivência do

império português que Norton está sobretudo interessado. Com Afonso Costa, Soares,

Freire de Andrade e Álvaro de Castro resolve (sic) que a solução estaria na criação, pela

República Portuguesa, de dois alto-comissariados em África655. A sua própria

nomeação para um deles (o da África Ocidental) é alvitrada para Lisboa pela delegação

portuguesa na Conferência da Paz. Nem tudo corre, porém, como aquele quinteto de

personalidades arquitectara em Paris. É certo que a delegação é informada que o

projecto de decreto por si enviado fora aprovado por unanimidade em conselho de

ministros do executivo chefiado por Domingos Pereira. A 7 de Maio, Norton chega até

a ser formalmente convidado para o cargo, pelo ministro das Colónias João Lopes

Soares656. Aceita, apenas para descobrir pouco depois que o decreto que

efectivamente é publicado em Diário de Governo não sai nos termos da proposta que

fora para Lisboa. O seu desagrado não podia ser maior por não ter sido consultado

«sobre se sim ou não aceitaria o logar com os novos termos»657. Será o início de um

longo processo de protelamento e negociação com Lisboa. Até que finalmente aceite

assumir o cargo e partir de Angola ainda decorrerá um período relativamente longo,

durante o qual tenta impor as suas condições.

diplomacia portuguesa, que continua a apostar sobretudo nas relações com a Grã-Bretanha. A bem-sucedida ofensiva diplomática espanhola para garantir um lugar no Conselho Executivo da SDN é sublinhada por Idem, pp. 47-55. 654

Enquanto a delegação portuguesa presidida por Afonso Costa tinha uma posição «mais revanchista até que os franceses (...). Em momento algum Costa acreditou que o estabelecimento da ordem wilsoniana bastasse como um fim em si. A Sociedade das Nações poderia permitir que um pequeno país como Portugal tivesse uma maior visibilidade internacional (…) mas não poderia substituir o castigo da Alemanha e a redistribuição da sua riqueza como o objectivo mais imediato dos portugueses». Filipe Ribeiro de Meneses, Afonso Costa, p. 93. 655

«Resolvemos (Dr. Af. Costa, Freire de Andrade, Aug. Soares, Alvaro de Castro e eu) que a única maneira de resolver o problema era a criação de Altos Comissários com latas atribuições e a escolha de homens idoneos para o desempenho d’esses cargos. Eu propus que as colonias da Africa Ocidental se reunissem sob um único Alto Comissariado. N’esse sentido foi para Lisboa um projecto de criação de dois altos comissariados (...)». ANM, J. Norton de Mattos, Miscelanea, Vol. 1º, pp. 159-160. 656

Idem, pp. 160-161. 657

Idem, p. 165.

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Enquanto a sua situação como alto-comissário não está definida a seu

contento, de modo a poder agir em África com a latitude de acção que reputa

essencial, Norton vai fazendo o que pode na diplomacia em Paris, participando nos

trabalhos da Comissão de Aeronáutica e da Comissão de Caminhos-de-Ferro, Vias de

Água e Portos658. Demasiado pouco, para seu gosto. É uma insatisfação que não é

apenas dele. Pelo contrário, a frustração dos delegados portugueses não podia ser

maior quando, no início de Maio, são confrontados com uma versão do tratado de paz

com a Alemanha que consideram lesar gravemente as expectativas portuguesas

quanto a compensações financeiras pelos prejuízos de guerra659. A notícia cai como

uma bomba. A delegação chega a ponderar não comparecer, em sinal de protesto, na

sessão solene de 7 de Maio em Versailles, onde serão entregues aos alemães as

condições da paz. Acabará por engolir o orgulho e aproveitar, ao menos, o simbolismo

de a República Portuguesa estar entre os vencedores na solene ocasião. Não será,

porém, uma consolação a que Norton terá pessoalmente direito. Ele, que levou o

exército português para a guerra, vê os seus créditos obnubilados por Afonso Costa e

Augusto Soares, a dupla que representa Portugal na solene ocasião.

Melindres à parte, a verdade é que Norton está sobretudo interessado em que

o país tire lições para o futuro e que ele próprio tenha uma palavra a dizer nesse

futuro. Na reunião extraordinária que a delegação portuguesa tivera no hotel

Campbell na véspera da assinatura em Versailles, Norton defendera que, embora o

protesto lavrado por Costa contra os termos do tratado, na sessão plenária secreta da

Conferência dessa manhã, tivesse sido digno e altivo, era agora necessário seguir em

frente. Ou seja, procurar obter, através de «um trabalho activo e um esforço

contínuo» «o que a Conferência nos não deu: vantagens económicas, acordos

internacionais, condições de desenvolvimento e progresso da causa nacional»660.

658

Incumbências que recebe na primeira reunião da delegação portuguesa em que participa em Paris. Acta nº 35, sessão de 22-03-1919 in Duarte Ivo Cruz (coord.), Estratégia portuguesa na Conferência de Paz, 1918-1919, p. 208. Na Comissão de Caminhos-de-Ferro vai substituir o conde de Penha Garcia. 659

Neste e noutros aspectos, «Portugal saiu claramente derrotado de Paris, e as muitas afirmações em contrário não conseguiram nem disfarçar a mágoa dos negociadores». Filipe Ribeiro de Meneses, «A paz e o Tratado de Versailles» in Fernando Rosas, Maria Fernanda Rollo (coord.), História da Primeira República Portuguesa, p. 399. 660

Acta nº 43, sessão de 06-05-1919 in Duarte Ivo Cruz (coord.), Estratégia portuguesa na Conferência de Paz, 1918-1919, p. 284.

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No mês seguinte661, pede para ser dispensado da delegação o mais

rapidamente possível, dando conta dos trabalhos das comissões em que participa

como delegado português. Enfatiza, de modo especial, a importância do que está em

jogo para Portugal no projecto de convenção, em discussão na comissão que trata do

tráfico de armas e de álcool, «com os termos da qual não podemos concordar». Puxa

dos galões, lembrando a sua acção em Angola nestas matérias como tendo sido

«modelar e verdadeiramente altruísta» e acaba por aceder ao pedido de Costa para

que não abandone ainda Paris.

«Se não fossem os interesses em jogo das colonias portuguesas já me teria

retirado», desabafa no seu diário no início de Julho662. E os interesses das colónias

portuguesas jogam-se nesse Verão, de uma forma especial, na comissão onde se

discutem as convenções que irão ser assinadas a 10 de Setembro nos arredores de

Paris, em Saint-Germain-en-Laye, a par do tratado de paz com a Áustria.

IV.1.2. Na negociação dos acordos de Saint-Germain-en-Laye

Em Julho, enquanto, em Lisboa, António José de Almeida apresenta um

projecto de lei feito à medida para promover o coronel Norton de Matos a general por

distinção, prestando assim um tributo ao homem que protagonizara essa «notável

improvisação»663 (sic) de levar o exército português para a guerra, Norton continua em

Paris a negociar a paz. Ao longo desse mês, participa, juntamente com Tomás

Fernandes, secretário técnico da delegação portuguesa, nos trabalhos da Comissão

Internacional da Conferência da Paz encarregada da revisão do regímen estabelecido

pelos actos gerais de Berlim e Bruxelas. Além dos portugueses, a comissão é composta

por delegados dos EUA, império britânico, França, Itália, Japão e Bélgica. Nestas

negociações, Norton demonstrará, além do domínio técnico dos dossiers, muito do seu

talento político-diplomático. A comissão tem por missão debater três projectos de

convenção ou acordo, previamente redigidas pelos franceses e ingleses.

661

Acta nº 47, sessão de 24-06-1919 in idem, pp. 298-300. 662

«Nasci para dirigir, para organizar livremente, sem peias, conselhos ou direcções de qualquer espécie e quando isso não se dá, quando me sinto sob as ordens seja de quem for sou como o peixe fora d’agua. D’ahi o meu aborrecimento, o meu enervamento, a consciência do pouco que aqui estou a produzir. (…) Se não fossem os interesses em jogo das colonias portuguesas já me teria retirado». ANM, J. Norton de Mattos, Miscelanea, Vol. 1

o, p. 165.

663O projecto de lei nº 10-B, de 8 de Julho, será aprovado no mês seguinte. DCD, Sessão de 07-08-1919.

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O primeiro é o da convenção sobre o controlo de armas e munições664. O seu

objectivo era duplo. Por um lado, prevenir que o armamento acumulado em inúmeros

países fosse parar a «determinados países de civilização inferior, onde constituiriam

um perigo para a paz e tranquilidade publica». Por outro, restringir o acesso dos

indígenas de África e, parcialmente, da Ásia, ao comércio de armas de fogo, de forma

mais efectiva do que o disposto no Acto de Berlim. Norton pode apresentar-se, no seio

da comissão, como um pioneiro nesta matéria, enquanto promotor do decreto de 3 de

Julho de 1913 que interditou a importação de armas, pólvoras e munições na colónia

de Angola665.

Na sua redacção final, o projecto incorpora várias alterações propostas por

Norton e Fernandes. Antes de mais, conseguem aumentar a área geográfica abrangida

pela proibição, incluindo nesta a Bechuanaland, a Suazilândia, o Basutoland e,

sobretudo, a Rodésia do Sul. Em segundo lugar, contra a vontade da Bélgica, deixam

bem assente que a proibição de comércio das armas de guerra é absoluta nas zonas

designadas, acentuando o carácter limitado e escrupulosamente escrutinado pelas

autoridades coloniais do comércio de armas de caça para uso das populações

indígenas. A oposição tenaz dos portugueses à emenda que os belgas tentam

introduzir na convenção, de modo a autorizar o comércio livre das espingardas de

pederneira e das pólvoras ordinárias, é bem-sucedida, obrigando os delegados belgas a

retirar a proposta de emenda.

Norton evita ainda, com sucesso, que vá avante uma outra proposta de

emenda da Bélgica com implicações potencialmente perigosas para Angola. Onde o

texto base colocado a debate advogava que as partes contratantes se esforçassem por

adoptar «disposições tão uniformes quanto possível para garantir a paz e a

tranquilidade pública» nas zonas de proibição, os belgas pretendiam acrescentar

«tanto em matéria fiscal como administrativa». Para Portugal, isso seria deixar a porta

aberta a potenciais intromissões de potências coloniais estrangeiras na sua própria

administração colonial. Contra essa possibilidade, Norton argumenta,

664

ANM, P. AC 6, Convention relative au contrôle de commerce des armes et des munitions et Protocole signés à Saint-Germain-en-Laye le 10 septembre 1919, 23 pp. 665

ANM, P. AC 6, Déclaration faite le 8 juillet 1919 par le Colonel Norton de Mattos et le Commandant Tomaz Fernandes, délégués portugais, au nome de la Délégation Portugaise à la Conférence de la Paix.

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«Desenvolvendo largamente o principio de administração colonial de que nas colonias tem de surgir civilizações com as característicos das raças que ao seu desenvolvimento e progresso têm presidido, e de que os indígenas para progredirem tem de ter e manter o cunho da nacionalidade sob a direcção da qual vão evoluindo para uma melhor civilização, mostrando como a nacionalidade portugueza, com processos próprios, tenha produzido admiráveis civilizações na América, na Índia e na África, e quanto seria absurdo querer impor uniformidade de administração a raças igualmente colonizadoras, conseguimos não só que não se adoptasse a emenda da Delegação belga, mas também que desaparecesse da convenção o principio de uniformidade de administração colonial, que tantos inconvenientes poderia acarretar, desde que fosse admitido, à nossa acção de povo livre e independente.»666

Por último, os delegados portugueses, com o apoio dos franceses, fazem gorar

uma tentativa norte-americana de introduzir o princípio da liberdade comercial que

permitiria a qualquer país vender armas em igualdade de circunstâncias com o país

colonizador. Os americanos pretendiam aproveitar a janela de oportunidade aberta

pelo caso das licenças especiais, previstas no artº 6º do projecto de convenção, que

autorizava, mesmo que mediante apertada fiscalização, a importação de armas nas

zonas de proibição. Norton e Fernandes argumentam667 que a proposta de emenda

norte-americana seria não só inútil como poderia ter resultados contraproducentes.

Um deles era que tenderia a facilitar a introdução de armamento nas zonas de

proibição, quando se pretendia precisamente o contrário. A declaração portuguesa

recorre, por fim, a um outro argumento. A medida não envolveria, defendem,

quaisquer implicações comerciais, devendo, antes, ser considerada como puramente

administrativa, tendo em vista manter nas mãos das autoridades a distribuição aos

indígenas das armas de que estes absolutamente necessitam para a caça.

Apesar das reservas portuguesas serem apoiadas apenas pelos delegados

franceses, à última hora o presidente da comissão decide que a existência de duas

delegações que não aceitavam a proposta de emenda americana constituía razão

suficiente para ela não ser incluída no projecto a ser remetido ao Conselho Supremo

666

ANM, P. AC 6, Norton de Mattos, 1º Relatorio, Of. nº 79 (P. 54) de Norton de Mattos ao Presidente da Delegação Portuguesa na Conferencia da Paz, Paris, 24-07-1919, cópia dact. e ass., fls. 3-4. Norton e Fernandes propuseram também, com igual sucesso, que em vez da designação genérica de «medidas necessarias para assegurar a paz e a tranquilidade pública», o artigo passasse a referir-se especificamente às medidas necessárias para aplicação da Convenção. 667

A argumentação é desenvolvida numa nota apresentada à comissão. ANM, P. AC 6, Conference de la paix. Delegation portugaise, 24-07-1919, cópia dact.

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da Conferência da Paz. Vindo, nessa altura, à colação a dúvida se o projeto teria de ser

ratificado pelo Conselho Supremo, vinga a posição advogada pelos portugueses:

«opuzemo-nos a este modo de ver e propusemos que fosse introduzido um artigo sobre esse assunto, identico ao que figura nos Actos de Berlim e Bruxellas, aproveitando a oportunidade para frisar que não nos parecia ter o Conselho Supremo muito que ver com a questão que é objecto da Convenção; que apenas os Parlamentos dos varios paizes contractantes poderiam ou não ratificar aquilo em que os delegados desses paizes tinham acordado, e que se o Conselho Supremo entendesse dever modificar o projecto que fora elaborado, teria esse projecto de voltar à Comissão para ser de novo discutido, visto que nem Portugal nem a Bélgica estão representadas no Conselho Supremo.»668.

Relativamente às comissões em que Norton anteriormente participara no seio

da Conferência da Paz, a grande diferença será, precisamente, esta. Desta vez, os

acordos a que os delegados chegam não serão descartados arbitrariamente pelo

núcleo restrito das potências que põem e dispõem na Conferência da Paz, o Conselho

Supremo.

No segundo projecto de convenção, o do regime de bebidas espirituosas em

África, Norton socorrer-se-á igualmente da sua autoridade de ex-governador colonial,

nomeadamente das medidas de carácter regulamentar adoptadas pelo seu governo

em Angola, aplicando o decreto do governo provisório da República Portuguesa de 27

de Maio de 1911. A ideia era velar, paternalmente, pela saúde e bem-estar dos

indígenas, como competia a uma potência colonial que se considerava investida de

uma missão civilizadora. Concomitantemente, acautelavam-se os interesses comerciais

de um país produtor de vinho. Tendo estes dois objectivos em mente, Norton e

Fernandes apoiaram uma emenda norte-americana proibindo a importação,

circulação, venda, detenção e, logo, o fabrico nas colónias do chamado

«vinho de preto que em tão largas quantidades se exportou para a província de Moçambique, com grande descrédito para a nossa administração colonial e com grave prejuízo para a industria vinícola do paiz.».

Por outro lado, a delegação opôs-se aos projectos de emenda belgas que

pretendiam proibir a importação de vinhos pelas colónias. O argumento era que

«não podíamos considerar como bebidas alcoólicas os vinhos, cujo consumo deve ser considerado como vantajoso e hygienico, e que não nos podíamos associar a

668

ANM, P. AC 6, Norton de Mattos, 1º Relatorio, Of. nº 79 (P. 54) de Norton de Mattos ao Presidente da Delegação Portuguesa na Conferencia da Paz, Paris, 24-07-1919, cópia dact. e ass., fl. 6.

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nenhuma medida que impedisse a venda dos vinhos portuguezes nas colonias, isto é, dos vinhos naturaes da mesma qualidade daqueles que são usados pela população europeia portugueza.»669

Aliás, habituar os indígenas a consumir os vinhos ordinários portugueses seria,

defendem Norton e Fernandes, a melhor maneira de erradicar o consumo do álcool

indígena cujo fabrico clandestino tão difícil é de fiscalizar.

«Não podíamos de forma alguma seguir outra doutrina, como não podíamos também deixar de levantar bem alto o principio de que, nas colonias, nem o Estado nem os particulares podem usufruir quaisquer lucros provenientes dos vícios das raças, cuja civilização e progresso têm a seu cargo.»

Salvaguardados os interesses portugueses nestas duas convenções, Norton

intervém, com Fernandes, nos trabalhos de redacção final do último dos três projectos

a que esta comissão deu origem. Trata-se do «Projet d’Acte Général portant révision de

l’Acte Général de Berlin du 26 Fevrier 1885, et de l’Acte Général et de la déclaration de

Bruxelles du 2 Juillet 1890».

Em relatório dirigido a Afonso Costa – que, tal como os dois anteriores, reclama

ter sido inteiramente redigido por si, apesar de também assinado por Tomás –, Norton

descreve os objectivos que moveram a sua acção. A sua intervenção visara, em

primeiro lugar, impedir que fosse avante a proposta norte-americana de se passar a

aplicar o regime de completa liberdade comercial aos territórios de Moçambique

compreendidos na Bacia Convencional do Congo, que dele tinham ficado excluídos

pelos Actos de Berlim e Bruxelas. Pedidas instruções a Lisboa, a resposta não chegara a

tempo mas Norton não se atrapalha. Começa por explorar os telhados de vidro de

outras potências coloniais, aludindo a tendências proteccionistas vindas «de um lado

d’onde menos as poderíamos esperar»670, nomeadamente, do parlamento inglês, onde

recentemente se discutira propostas visando a protecção pautal de produtos tanto dos

seus domínios e colónias como dos territórios que viessem a ser dados em mandato à

Grã-Bretanha. Espetada a farpa à velha aliada, Norton voltara-se para França,

recordando que os delegados deste país na comissão tinham acabado de admitir quão

669

ANM, P. AC 6, Norton de Mattos, 2º Relatorio, Of. nº 81 (P. 54) de Norton de Mattos ao Presidente da Delegação Portuguesa na Conferencia da Paz, Paris, S.d., cópia dact. e ass., fl. 3. 670

ANM, P. AC 6, Of. nº 81 (P. 54) de Norton de Mattos e Tomás Fernandes ao Presidente da Delegação Portuguesa na Conferencia da Paz. 3º Relatorio, Paris, 04-08-1919, cópia dact., com anotações mns. do punho de N. de Matos, ass., 12 fls. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste relatório.

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difícil seria para o seu país estender desde já os princípios de igualdade de comércio a

todas as suas colónias de África. Lembra que o ponto de vista dos EUA não podia

deixar de ser diferente do das nações coloniais.

Do ponto de vista destas últimas, argumenta, as medidas proteccionistas

seriam a única forma de a metrópole conseguir fazer os investimentos que as colónias

ainda precisam, até que cheguem ao ponto de se poderem sustentar com os próprios

recursos. Para que aquela possa prestar o auxílio e conceder o crédito essencial ao

desenvolvimento e progresso civilizacional destas últimas, precisa de usufruir de

vantagens materiais. Norton alega, ainda, que igualdade total de comércio é coisa que,

mesmo com pautas sem sombra de diferenciais, nunca existirá. Haverá sempre uma

nação mais favorecida: a que produzir mais barato. E que nação seria essa se acaso se

estabelecesse desde já a completa igualdade de comércio? Seria, precisamente, a

Alemanha «que tão merecidamente tinha ficado sem territórios na Africa». A potência

derrotada compensaria, com o acesso livre a essas novas ‘colónias’ comerciais, tudo o

que lhe fora retirado, o que, convenhamos, era manifestamente injusto.

Por fim, recorre a um último argumento: a conjuntura. Admite que a liberdade

comercial é um bom princípio e Portugal quer chegar lá no futuro. O país tem vindo a

trabalhar nesse sentido mas não pode, de um momento para o outro, prescindir dos

recursos de que tanto necessita para fazer progredir as suas colónias. Nem de forma

abrupta nem, muito especialmente, na angustiosa conjuntura financeira e económica

em que a República Portuguesa presentemente se encontra por via da guerra.

No fim, acabará por ser aprovada uma redacção que, proposta pela França, é

muito conveniente a Portugal:

«Continuamos, quanto a territórios sob o regímen da igualdade comercial, na situação em que ficamos apoz a publicação no projecto do novo acto qualquer disposição que só a Portugal dissesse respeito, o que com o maior dos cuidados sempre procuramos evitar.»

O general avisa, porém, que a situação de excepção «não se poderá prolongar

por muito tempo». O proteccionismo exagerado das pautas de 1892 cria uma

«atmosfera hostil» a Portugal, palpável entre os delegados da comissão. O seu

anacronismo é, aliás, severamente criticado pelo próprio Norton que sugere uma

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redução gradual, num prazo de 12 anos ou, no máximo de 15, com excepção apenas

para os vinhos. Enquanto isso não acontece, os benefícios que a manutenção das

pautas tem trazido para a metrópole (mesmo se inexistentes para as colónias) não são

postos em xeque. A França vem em ajuda da posição portuguesa, propondo uma

redacção alternativa do artigo em causa a contento da delegação lusa.

Norton intervém, ainda, na questão relativa à protecção a dispensar às missões

religiosas e à sua liberdade de acção, desta feita propondo à comissão uma alteração

indicada por Afonso Costa. O projecto primitivo previa como únicas restrições àquela

protecção as necessárias para a manutenção da ordem pública. Portugal propõe que

se faça igualmente referência a restrições que possam resultar do direito

constitucional de cada uma das potências que exerçam autoridade em África671. A

proposta causa grande discussão, mas o delegado português logra levar a sua avante,

como sublinha em nota manuscrita que apôs na cópia do relatório oficial que guarda

no seu arquivo pessoal: «Foi uma grande luta que tive de travar com espirito da França

da Itália e da Bélgica.»672.

Num balanço global da sua participação como negociador principal por parte de

Portugal dos projectos da convenção e do Acto Geral, Norton destaca, com agrado, o

facto de todas as emendas e propostas feitas terem sido aceites e ficarem «figurando

nos projectos respectivos». E nem mesmo o facto de terem de ser submetidas ao

Conselho Supremo da Conferência da Paz irá alterar esse resultado. Norton está

confiante de que não sofrerão alterações substanciais, como efectivamente não

sofrerão. Em Agosto de 1919, quando Norton escreve este último relatório em Paris, o

tratado ainda não fora assinado nem ratificado pelo parlamento português. Não sendo

ainda o seu trabalho como negociador de Saint-Germain-en-Laye a ser reconhecido em

671

Idem, fl. 11: «Esta emenda foi imediatamente abraçada pelos delegados dos Estados Unidos e da Inglaterra, fazendo-lhe porem grande oposição os delegados belgas e italianos. Não foi tambem apoiada pela França; mas depois de desenvolvermos largamente os nossos argumentos, foi ela admitida. Ficará assim estabelecido no acto geral que nenhumas instituições religiosas ou quaisquer missionarios se poderão estabelecer nos territorios africanos desde que a isso se oponha o direito constitucional da potencia interessada, ressalvando-se desta forma o disposto no nº 12 do artigo 3º da Constituição da República». 672

Afirma em nota manuscrita, aposta na cópia do relatório que guarda no seu arquivo. ANM, P. AC 6, Of. nº 81 (P. 54) de Norton de Mattos e Tomás Fernandes ao Presidente da Delegação Portuguesa na Conferencia da Paz, 3º Relatorio, Paris, 04-08-1919, cópia dact., com anotações mns. do punho de N. de Matos, ass.

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Lisboa, os seus talentos de diplomata são, não obstante, reconhecidos, até por

adversários, na discussão do projecto de lei que o promove a general por distinção673.

A notícia da promoção, Norton recebe-a já em Inglaterra. Simbolicamente

desafrontada a «perseguição canibalesca»674 que sofrera após o golpe de Sidónio, o

agora general pode finalmente regressar a Portugal com a família, após quase dois

anos de exílio. O seu protagonismo no legado da velha República, esse, não fora ainda

devidamente reconhecido, enquanto a aura de Afonso Costa, o político cujo brilho

chegou a ter, em tempos, a veleidade de ofuscar, não parava de crescer. Ao contrário

de Costa, porém, Norton volta a Portugal e esse regresso fará toda a diferença.

IV.2. Missão civilizadora da República revisitada: o alto-comissariado de

Norton em Angola

IV.2.1. Um presente envenenado?

O projecto de acabar a carreira política como o primeiro alto-comissário da

República em Angola não teria passado de um «sonho de poucas horas», garante a um

jornalista pouco após o seu regresso675. A verdade, porém, é que Norton acabará por

conseguir o cargo e consegui-lo nos termos por si definidos ou muito próximo disso.

Foi, não obstante, um processo moroso e atribulado que envolveu, inclusive, uma

reforma constitucional, de modo a permitir que aos altos-comissários fossem

concedidos poderes excepcionais, e legislação submetendo temporariamente Angola a

esse regime. Logo depois, a 16 de Agosto de 1920, o Senado da República aprova o

nome do general para alto-comissário de Angola por larga maioria. Apesar de receber

menos bolas pretas do que em 1912 e a sua nomeação desta vez não suscitar polémica

entre os senadores676, o consenso entre as elites políticas metropolitanas em torno do

673

A 15 de Agosto, o Senado aprova proposta de promoção a general de Norton. O visado recebe os maiores elogios mas a unanimidade é toldada pelas declarações do senador Júlio Ribeiro que explica os motivos pelo qual votou vencido o parecer da comissão de Finanças que se pronunciou sobre o projecto: Norton «demonstrou no 5 de Dezembro, que se é um estadista, um organizador e até um diplomata, não mostrou ser um general (...) [pois foi] vencido por uma rapaziada». Diario de Sessões do Senado (DSS), Sessão de 15-08-1919. 674

São as palavras textuais do projecto de lei de promoção de Norton ao generalato, da autoria de António José de Almeida, aprovado na sessão acima referida DSS. 675

«Norton de Matos não tenciona voltar, por emquanto, á atividade politica// Entrevista do ex-ministro da guerra com o correspondente de “O Seculo” em Ponte de Lima» in O Século, 12-10-1919, p. 1. 676

A proposta fora apresentada no final da sessão anterior pelo ministro das Colónias, Manuel Ferreira da Rocha. Presentes 28 dos 69 senadores, entre os quais Xavier Barreto (presidente do Senado),

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seu nome e em torno dos vastíssimos poderes que lhe são concedidos enquanto alto-

comissário virá a revelar-se assaz frágil.

Na verdade, a lei que definira os novos poderes dos altos-comissários

substituindo-se a dois artigos da Constituição de 1911 que, de caminho, eliminava677,

mesmo se logo seguida por nova lei com maior grau de pormenorização, tinha muitas

zonas cinzentas com potencial para que irão minar o percurso de Norton nos anos que

se seguirão. Como lembra Maria Cândida Proença,

«no cerne do problema estava a ambiguidade da lei e das competências dos altos-comissários com um estatuto confuso, pois eram simultaneamente parte do poder executivo e legislativo, fiscalizadores e fiscalizados, orientadores e orientados.»678

O que não invalida que não se dê uma descentralização de poder por parte da

metrópole. E, bem ao gosto de Norton, é centrada na pessoa titular do cargo de alto-

comissário, ou seja, em si próprio, não se tratando propriamente de uma

descentralização de poder a favor dos colonos679 ou, menos ainda, dos ‘filhos de

Angola’. No entanto, Lisboa retém a última palavra em questões tão vitais para o

sucesso ou o fracasso de Norton como o financiamento da sua missão civilizadora em

Angola pois terá sempre que, por exemplo, «autorizar empréstimos ou outros

contratos que exijam caução ou garantias especiais»680. Será uma espada de Dâmocles

que pairará sobre a sua cabeça ao longo de todo o mandato, e que Lisboa não se

coibirá de usar. Mesmo se não deixará de assacar a Norton toda a responsabilidade

pelo que correr mal, correspondente ao grau de autonomia que, a contragosto, acaba

por lhe conceder.

Rodrigues Gaspar e Bernardino Machado. NM recebe 25 bolas brancas, contra 3 pretas (89% contra 11%). DSS, Sessão nº 124, 16-08-1920, p. 6. Em 1912, tivera o dobro de bolas pretas (6 contra 39 brancas) mas a percentagem de aprovação fora sensivelmente igual (87% contra 13%). O Decreto de nomeação será assinado pelo novo Presidente da República, António José de Almeida, e pelo ministro Ferreira da Rocha. «Decreto de 31 de Agosto» in DG, Nº 196, 08-09-1920. 677

«Lei nº 1005, de 7 de Agosto de 1920, concedendo às colónias autonomia financeira e descentralização administrativa compatíveis com o seu desenvolvimento e permitindo que as faculdades do Poder Executivo no ultramar possam ser exercidas temporáriamente por Altos Comissários» in DG, I Série, Nº 151, 07-08-1920; «Lei nº 1022, regulando o funcionamento dos Conselhos Legislativos das colónias e a escolha e atribuições dos Altos Comissários» in DG, Nº 161, I Série, 20-08-1920. 678

Maria Cândida Proença, «A questão colonial» in Fernando Rosas, Maria Fernanda Rollo (coord.), História da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2009, p. 506. 679

Fernando Tavares Pimenta, Angola : Os Brancos e a Independência, Porto, Edições Afrontamento, 2008, p. 108. 680

Alínea d) do artº 2º da Lei nº 1005, de 7 de Agosto de 1920.

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250

Atendendo, por um lado, à dimensão hercúlea da tarefa que esperava Norton

num território vastíssimo e apenas debilmente colonizado e, por outro, à profundidade

da crise financeira do pós-guerra, o cargo de alto-comissário tem, deste modo, todos

os ingredientes para se transformar num presente envenenado. Desta vez, são dois os

cargos de que tomará posse. O de alto-comissário acontecerá em Lisboa a 11 de

Outubro de 1920, no gabinete do ministro das Colónias, na presença do chefe do

governo, António Granjo, e da velha máquina do Ministério, onde pontifica o antigo

ministro Cerveira de Albuquerque, agora secretário-geral do Ministério e diretor-geral

do Fomento. Até chegar a Luanda e assumir o governo-geral a 16 de Abril do ano

seguinte, ainda decorrerão largos meses, durante os quais aproveitará para levar a

cabo uma ofensiva diplomática, com uma forte carga de diplomacia económica, em

Inglaterra, Bélgica e França681. Era necessário mostrar aos três impérios com colónias

vizinhas de Angola que, doravante, Portugal levava muito a sério a concretização da

sua missão civilizadora em África.

O que não podia deixar de passar por arranjar os avultadíssimos fundos

imprescindíveis à magnitude do empreendimento. Mais exactamente, sete milhões de

libras, destinados maioritariamente a caminhos-de-ferro, portos, telégrafos e fomento

agrícola e industrial. É um empréstimo desse montante que Norton pretende reunir,

antes de partir para Luanda. Em Novembro de 1920, teria já várias companhias,

recentemente instaladas em Angola, dispostas a emprestar o montante em causa ao

governo de Angola682. Como as empresas em questão, apesar de portuguesas, são de

capitais maioritariamente americanos e belgas, a par de algum francês e português683,

681

Norton, de partida para Londres, escreve ao ministro dos Negócios Estrangeiros pedindo-lhe que comunique aos ministros plenipotenciário em Bruxelas e Paris, a sua ida àquelas cidades, depois de Londres, «sendo o objecto da minha ida a Bruxelas não só aceder ao convite do Rei da Bélgica, mas também pôr-me em contacto relativamente a assuntos que interessam a província de Angola com os Altos funcionários belgas a quem estão entregues a administração e o Governo do Congo Belga, e o da minha visita a Paris, o tratar com o Ministro das Colonias Francesas e com os funcionários superiores de Africa Equatorial Francesa de interesses comuns a esta colonia francesa e á colónia cuja administração e governo me foram confiadas». ANM, P. AC1, Cópia de carta de Norton de Matos ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 06-11-1920. 682

As empresas em causa seriam a Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), a Companhia de Pesquisas Mineiras de Angola (Pema), a Companhia do Petróleo de Angola (Angoil) e a Companhia do Fomento Geral de Angola (Forgerang). 683

Embora na formação da Diamang, em 1917, participem também investidores ingleses e sul-africanos, além dos belgas, americanos e portugueses. Tood Cleveland, «Working while Walking: Forced Laborers’

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Norton empenha-se em demonstrar a conveniência de que o empréstimo inclua

igualmente capitais britânicos, por razões políticas e para o desenvolvimento do

comércio luso-britânico. Daí a sua deslocação a Londres, onde chega a 10 de

Novembro. É este, em síntese, o teor da argumentação que, a seu pedido, o ministro

de Portugal em Londres envia ao Foreign Office684. Em resposta, a Legação é informada

que «His Majesty’s Government would view with pleasure any intention on the part of

the British financial houses to become interested in the territory in question»,

indicando o nome de Sir William Clarke para colocar Norton em contacto com

potenciais interessados685, nomeadamente Lord Farringdon, da British Trade

Corporation. A hipótese de se fazer em Londres parte do empréstimo para Angola

acaba, porém, gorada.

O que não impede que a operação de relações públicas empreendida por

Norton, no sentido de dar visibilidade internacional à nova fase de investimento do

país em Angola simbolizada pelo regime do alto comissariado, seja um sucesso. Se em

Londres se avistara com o ministro das Colónias, Lord Milner, na Bélgica, para onde

parte de seguida, é recebido ao mais alto nível. Além dos ministros das Colónias e dos

Negócios Estrangeiros, o próprio rei Alberto I oferece um jantar em sua honra no

Palácio de Bruxelas. Em declarações à imprensa, o general defende a celebração de

acordos coloniais entre Portugal e a Bélgica, visando em especial os transportes e a

emigração686.

Encerrado o périplo diplomático pelas capitais dos impérios seus vizinhos em

Angola, Norton prossegue em Lisboa as negociações para obter os meios para financiar

a sua administração, assegurando, concomitantemente, a problemática articulação

Treks to Angola’s Colonial-Era Diamond Mines, 1921-1948» in AAVV, Trabalho Forçado Africano – O Caminho de Ida, Porto, Ed. Húmus, 2009. 684

AHD-MNE, Arqº da Embaixada de Londres, Mç. 141, Memorandum de Teixeira Gomes nº 121, de 15-11-1920. 685

AHD-MNE, Arqº da Embaixada de Londres, Mç. 141, Nota do FO nº W 2095/1048/36, de 18-11-1920. Sir William Clarke é Controller-General do Overseas Trade Department. Bianchi, da Legação de Portugal, estará presente na reunião entre Norton e Clarke no dia 25. A 27, Clarke, após falar com Lord Farringdon, do British Trade Corporation, informa Norton que o empréstimo «would not be feasable». Para este e outros aspectos da viagem de Norton a Londres em Novembro de 1920, veja-se AHD-MNE, Arqº da Embaixada de Londres, Mç. 141. 686

«Portugal et Belgique» in La Nation Belge, 02-12-1920. Veja-se também «Un général portugais à Bruxelles» in La Dernière Heure, 02-12-1920.

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com o governo e o parlamento em Lisboa. Aproveitando o estado de graça de que

ainda goza, bem como a sua condição de deputado, apresenta à Câmara dos

Deputados dois projectos de lei que lhe permitem avançar naquele caminho. O

primeiro autoriza-o a contrair uma série de empréstimos até um valor total de 60.000

contos em ouro, ao passo que o segundo permite que os empréstimos gratuitos a que

for obrigado o Banco privilegiado das colónias portuguesas pelo exclusivo de emissão

de notas (o BNU) sejam sempre feitos a favor das colónias, ao invés de o serem a favor

da metrópole687. Para os discutir e aprovar antes de Norton partir para Angola, o

parlamento prescinde de algumas formalidades, ficando tudo resolvido na sessão do

dia 15 de Março, que se prolonga pela noite dentro. No desenho do primeiro projecto,

Norton deixa várias possibilidades de financiamento em aberto.

Uma delas passa pelas contrapartidas que está a negociar com a Companhia de

Diamantes de Angola, a Diamang, em troca da concessão da exploração dos jazigos

diamantíferos de Angola. As negociações chegarão a bom porto dois meses mais tarde,

com a assinatura de um contrato688 que concede à colónia, ao abrigo da cláusula 7ª,

5% do capital em acções e uma participação de 40% nos lucros anuais da companhia,

já a partir do exercício de 1921. A Diamang compromete-se, ainda, a conceder

empréstimos anuais à província no valor de 200 mil libras ou em francos belgas em

1921, no mesmo montante em 1922, e, entre 1923 e 1935, numa importância igual a

metade da participação de 40% que Angola tenha recebido no ano anterior, ao abrigo

da cláusula das participações689. A porta fica, no entanto, aberta, para que os

montantes a entrar nos cofres do governo de Angola possam ser de valor superior,

pois somando os dividendos e lucros da exploração, que anualmente caibam à

Província, aos créditos, o contrato prevê, na sua cláusula 9ª, que a colónia possa dispor

de 300.000 libras por ano, até 1935, inclusive, para o seu fomento.

687

Trata-se, respectivamente, dos projectos de lei nº 678-A e 678-C, de 07-03-1921 in DCD, Sessão nº 38, 15-03-1921. Originarão as leis nº 1130 e 1131, ambas de 26-03-1921, DG, Nº 61, I Série, 26-03-1921. 688

«Termo de contrato celebrado na Repartição Superior de Fazenda, da Secretaria de Finanças do Govêrno Geral de Angola, entre o Estado e a Companhia de Diamantes de Angola», Luanda, 16-05-1921 in J.M.R. Norton de Matos, Providencias tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Abril a Dezembro de 1921, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1922, pp. 245-246. 689

O juro será à taxa de desconto do Banco emissor do país onde forem abertos os créditos, acrescido de 1%. Os empréstimos serão reembolsados a partir de 1935, por um período de 25 anos (cláusula 8ª).

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Longe vai o tempo em que Norton, na primeira viagem para Luanda, verberara

contra os perigos de serem feitas grandes concessões a companhias estrangeiras, ao

contrário do que Afonso Costa o tinha aconselhado a fazer. Nove anos depois, apenas

um mês após desembarcar em Luanda para tomar posse do cargo de governador-

geral690 delegará no seu secretário Provincial de Finanças a assinatura da concessão da

exploração diamantífera de cerca de um quinto do território da colónia691, no distante

distrito da Lunda, a uma companhia de capitais estrangeiros da qual Afonso Costa é

eminente consultor, com estatuto equiparado a administrador692.

Mais tarde, reclamará ter entrado nas negociações numa fase já adiantada,

garantindo ter lutado tenazmente para garantir a salvaguarda dos melhores interesses

do Estado, e ter perseverado nessa posição de duro negociador ao longo das muitas e

intensas barganhas que se seguiram à assinatura do contrato e se prolongaram ao

longo de todo o seu mandato693.

IV.2.2. O aparente paradoxo: o campeão do trabalho livre patrocina o

trabalho forçado

Para levar a cabo a obra de fomento «rápida e colossal», que anuncia mal

chega a Luanda, Norton terá de lidar com o espinhoso dossier do trabalho indígena. A

diferença, relativamente ao primeiro mandato, está no aumento da fasquia quanto ao

ritmo e intensidade da obra em causa e, logo, no inevitável aumento da pressão sobre

690

A 16 de Abril de 1921. «A chegada a Angola do Alto Comissario», Jornal de Benguela, 29-04-1921; J.M.R. Norton de Matos, Discurso pronunciado na Residência do Govêrno Geral de Angola, em Loanda, em 16 de Abril de 1921, pelo General José Mendes Ribeiro Norton de Matos, alto Comissário da República em Angola, por ocasião da sua posse do cargo de Governador-geral da Província, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1922. 691

O direito de extracção de diamantes estendia-se a outros claims demarcados ou que venham a ser demarcados noutras zonas da colónia, podendo estender-se, inclusive, aos «restantes terrenos da província». «Termo de contrato…», Luanda, 16-05-1921 in J.M.R. Norton de Matos, Providencias tomadas…, p. 244. 692

ANM, P. AC 1, E.E. Góis Pinto, Conversa com Paiva de Andrade em Paris, S.d. [1923], mns. «O Affº Costa como consultor recebe o mesmo que os administradores [da Diamang]». 693

«Tive com a Companhia de Diamantes de Angola profundas discussões e de pôr em jogo toda a minha força de vontade, a minha soberana isenção, o grande poder que soube adquirir em Angola para sair vitorioso, como sahi sempre das lutas travadas». ANM, P. AC 7, Norton de Matos, Exploração dos Diamantes de Angola, 2º caixote, Nota particular, 28-05-1942, mns., 3 fls. Numa primeira apreciação, a documentação coeva parece confirmar que a Diamang esteve debaixo de um escrutínio apertado por parte do alto-comissariado. Por seu turno, tanto a participação nos lucros como a concessão dos empréstimos previstos no contrato, por parte da Diamang a Angola, esteve longe de ser efectivada de forma linear.

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os africanos para trabalhar para o Estado e para as grandes empresas. Se, em si

mesma, a tarefa de promoção e facilitação de um tal empreendimento já era difícil,

mais difícil será conciliá-la com a defesa dos indígenas e do seu direito ao trabalho livre

de abusos e exploração. Especialmente, quando, após ter varrido práticas esclavagistas

e outros abusos do mapa, todos, ou quase todos, os seus esforços nesse domínio

pareciam ter-se gorado após a sua saída de Angola em 1915.

IV.2.2.1. Os princípios

As grandes linhas de orientação do seu alto-comissariado quanto a este tema

são dadas nos Decretos 40 e 41, ambos de 3 de Agosto de 1921, e numa circular de 2

de Outubro, em que se explica a letra e o espírito do Decreto 40. A elas há que juntar

um conjunto de despachos confidenciais. Antes de passarmos à análise destes últimos

e de cotejarmos uns e outros com o que efectivamente acontecia no terreno, vale a

pena determo-nos nos decretos públicos coevos.

Na verdade, está lá tudo. Está, inteiro, um homem do seu tempo, firmemente

crente nas virtualidades da missão civilizadora e da sua íntima ligação com a promoção

do progresso da colónia de Angola. Está o político que, por lei e por convicção

profunda, quer proteger os ‘indígenas’ tanto de perigos intrínsecos à sua situação, tal

como o colonizador a via (a infantilidade e selvajaria em que alegadamente se

encontrariam), como de perigos extrínsecos (exploração por parte de europeus

gananciosos). Está, ainda, o político que acredita que civilizar pelo trabalho é

intrinsecamente bom, mesmo se com recurso temporário a trabalho coercivo. O bem

maior dos próprios e o bem comum da comunidade, em Angola como na metrópole,

assim o exigiam. A contradição, flagrante, tem sido sublinhada por historiadores que

frisam que Norton teria atraiçoado os grandes princípios que tão enfaticamente

proclamava, não passando de um hipócrita ou, numa visão mais matizada, de um

pragmático694.

694

«Through the prism of colonial labor policy, Norton de Matos’ terms as Angola’s most powerful administrator can also be characterized as hypocritical, but I would argue that they might most accurately be characterized as pragmatic». Todd Cleveland, «Biographical Discrepancies: José Norton de Matos, the Portuguese Colonial State and the Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), 1912-1975», Presentation at African Studies Association (ASA) Annual Meeting. New Orleans, 2009 (texto policopiado, cedido pelo autor).

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Vale a pena lembrar, não obstante, que o que num quadro mental actual seria

considerado uma contradição insanável e profunda hipocrisia, constitui, no quadro

mental dos anos 20, a dupla face da mesma moeda, ou não fosse o trabalho forçado a

única forma viável de, em tempo útil, arranjar suficiente mão-de-obra para assegurar o

fomento da colónia. Sem este progresso, a colónia não teria viabilidade enquanto tal.

A grande missão de levar a civilização ocidental – a civilização – aos «habitantes

incivilizados» de Angola estaria, portanto, condenada ao fracasso.

No Decreto 40695 é definido o quadro geral, o dos grandes princípios: o trabalho

livre, pautado pelo respeito, simpatia, bondade e justiça entre as partes,

escrupulosamente fiscalizado pelo governo. Se, após os avanços do seu primeiro

governo, tudo teria voltado à estaca zero, é altura de voltar a proclamar a boa

doutrina. Antes de mais, o regime de liberdade na celebração de contratos de

trabalho, expresso no direito comum, é o modo «melhor», «mais fácil» e «mais

profícuo» de angariar trabalhadores indígenas. Em segundo lugar, nunca é demais

lembrar que as boas condições materiais e morais de trabalho (tanto ao nível da

remuneração, alimentação e conforto como ao nível do respeito, simpatia, bondade e

justiça) são a única forma de «atrair o indígena ao trabalho». Em terceiro lugar, a

fiscalização «constante, meticulosa e rigorosa» do governo assegurará que não haja

abusos. Finalmente, trabalho compelido para benefício de particulares deve ser

absolutamente banido.

A grandiloquência dos princípios não é, no entanto, suficiente para esconder a

realidade dos factos. Após longos parágrafos dedicados à defesa do ideal do trabalho

livre e à afirmação de quão determinado o alto-comissariado está em promovê-lo e

fiscalizá-lo, punindo todo e qualquer abuso, chega-se, nos últimos pontos do Decreto

40, ao busílis da questão: ainda não se chegou lá, à existência, única e exclusiva, de

relações de trabalho indígena voluntário na colónia. Assim sendo, é necessário prever

as outras duas grandes modalidades de intervenção estatal no trabalho indígena: o

695

«Decreto no 40, revogando todas as providências sobre o trabalho indígena, posteriores a 18 de Abril

de 1918», de 03-08-1921 in Província de Angola: Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador-geral, Abril a Dezembro de 1921: Decretos do Alto Comissariado e Outros Diplomas Provinciais Promulgados de Abril a Dezembro de 1921, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 192, pp. 103-106.

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trabalho compelido para o Estado e o trabalho para patrões particulares ‘civilizados’,

favorecido e animado pelo Estado.

Relativamente ao trabalho compelido para a execução de obras do Estado,

«sempre de interêsse geral», «é uma necessidade nas colónias tropicais», além de ser

do interesse dos próprios indígenas. Assim sendo, nada mais natural do que o governo

angariar mão-de-obra para este fim, empregá-la e pagá-la, em condições que são

extensivamente definidas no Decreto 41, da mesma data, que mais adiante

analisaremos, confrontando-o com a realidade.

Finalmente, o Decreto 40 chega à outra modalidade de intervenção do Estado

nesta matéria: a facilitação aos colonos – agricultores, industriais e comerciantes – de

mão-de-obra indígena. Norton determina que o governo tem a «atribuição tão

imperiosa que se deve considerar como um dever» de «favorecer e animar por todos

os meios legais e dignos ao seu alcance», sem nada que represente «violência ou

coacção», a angariação da mão-de-obra indígena para esses particulares.

Mas como conciliar essa obrigação com a afirmação peremptória, feita na

mesma peça legislativa, de que «nenhuma lei pode permitir o trabalho compelido para

benefício de particulares»? Como conciliar esse dever com os malefícios morais,

políticos e económicos696 da promoção do trabalho compelido dos ‘habitantes

incivilizados’ para patrões ‘civilizados’, malefícios sobre os quais o alto-comissário

discorre longamente também no mesmo decreto? É verdade que, ao contrário do que

acontecera com as portarias e outros escritos seus durante o primeiro mandato em

Angola, em que defendia o trabalho compelido em geral como um mal menor e

transitório, Norton tem agora o cuidado de reservar essa forma de trabalho para o

Estado. Trabalho compelido só para o Estado, sempre em prol de um bem maior: o

bem comum. Inversamente, quando fala de trabalho indígena para particulares, tem o 696

De facto, quando as autoridades se transformam em agentes de recrutamento «passam a ser considerados pelos indígenas como um instrumento de perseguição», deixando de ser vistos como fiscalizadores imparciais das condições de trabalho. Por outro lado, a existência de trabalho compelido desincentiva os patrões a ver os indígenas como trabalhadores com direitos, fazendo «obliterar por inteiro nos patrões o estímulo de melhorar os salários e o tratamento dos indígenas». Por fim, a destruição da economia indígena, que a generalização do trabalho compelido implicaria, «seria um gravíssimo erro económico», comprometendo a produção livre dos indígenas nas suas próprias terras, de que resultaria «fatalmente, num futuro mais ou menos próximo, a ruína da Colónia» (Preâmbulo do Decreto 40, de 03-08-1921 in Idem, pp. 103-105.

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cuidado de evitar a palavra ‘compelido’, embora, em última análise, deixe transparecer

que considera, também no caso do trabalho para os colonos, estar igualmente em

causa o bem comum. Ou não se traduzissem os seus «esforços e empreendimentos»,

«em última análise, num aumento da produção e riqueza das colónias.».

Num caso como noutro, independentemente do uso de eufemismos, Norton

repudia veemente qualquer forma de «coacção ou violência» no angariamento. Com

uma excepção: «casos perfeitamente reconhecidos de vadiagem que fosse mister

reprimir severamente». Ou seja: coacção e violência só excepcionalmente, em caso de

vadiagem. Em todos os outros casos, o governo colonial deve «auxiliar» e «favorecer»

por «meios directos e indirectos, sempre razoáveis, dignos e legais» o angariamento

de trabalhadores indígenas. Directos para obras do Estado, subentende-se, indirectos

para agricultores, industriais e comerciantes ‘civilizados’. O que Norton deixa por

esclarecer é como conciliar a razoabilidade, a dignidade e a legalidade de tais meios

com a desproporção entre, por um lado, a escassa disponibilidade de mão-de-obra

indígena voluntária e, por outro, a desmedida dependência do colonizador (colonos e

governo colonial) da força de trabalho indígena.

Não admira que, dois meses mais tarde, de regresso de uma longa viagem pelo

interior, em que é confrontado com as dificuldades de angariação de mão-de-obra no

terreno, Norton sinta a necessidade de publicar uma circular697, na qual aclara

longamente às autoridades administrativas da colónia e aos colonos portugueses e

estrangeiros «a letra e o espírito do decreto». Explica, nomeadamente, em que

consiste a intervenção das autoridades na angariação de trabalhadores indígenas que,

se antes era «trabalhosa e por vezes absorvente, com certeza o será mais em face da

legislação actualmente em vigor». Para que não se esqueçam de cumprir esse dever

com a maior diligência, Norton trata de lembrar que:

«O exercício desta atribuição de favorecer e animar o angariamento da mão de obra indígena, atribuição tam imperiosa, diz-se no mesmo decreto, que se pode considerar um dever, pertence sobretudo aos administradores de circunscrições e capitães-mores, e por isso me dirijo directamente, nesta circular a estes prestimosos funcionários, determinando-lhes que exerçam aquela atribuição e cumpram esse

697

«Circular do Alto Comissário Aos Srs. Governadores dos distritos, Secretário de Colonização e Negócios Indígenas e Administradores das Circunscrições Civis e Capitães-mores» in Idem, pp. 239-242.

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dever com o maior zêlo.»

A admoestação subjacente é evidente: os funcionários da administração

colonial não estão a exercer aquele dever de forma eficaz. É verdade que o público

puxão de orelhas – e a inerente assunção de uma política governamental de apoio

activo da administração colonial à angariação de mão-de-obra indígena para os

colonos – aparecem diluídos num mar de declarações de princípio. É o caso da

peremptória defesa da necessidade de

«Terminar por completo e de uma vez para sempre com qualquer espécie de trabalho compelido que possa ser utilizado por particulares».

Enquanto isso não é possível, porém, há que:

«Reconhecer a necessidade, num período de transição, que tudo indica será curto, da intervenção da autoridade, por todos os meios legais e dignos ao seu alcance, para animar e favorecer o angariamento dos trabalhadores indígenas».

Essa intervenção terá de ser moralmente inatacável. Antes de mais, em caso

algum será paga. Terá de ser indirecta, através de angariadores, nunca podendo ser o

funcionário público a angariar directamente para o particular. Será acompanhada da

«mais constante, rigorosa e meticulosa fiscalização» das condições de trabalho. Dos

patrões é exigido o banimento de castigos corporais e o «religioso cumprimento dos

contratos de trabalho», sob pena de «proibição absoluta do angariamento de qualquer

número de trabalhadores indígenas» no futuro. Será o Estado «e só ele» (nunca o

patrão) a punir com «todas as medidas necessárias e legais» os indígenas que se

eximirem ao «rigoroso cumprimento dos seus contratos».

IV. 2.2.2. Obras do Estado

Ao abandonar Angola, no fim do seu primeiro mandato à frente do governo,

Norton tivera de admitir, embora num registo confidencial, que o domínio do Estado

português sobre a colónia permanecia, apesar de todos os seus esforços, «fraco e,

muitas vezes, platónico»698. Para mudar este estado de coisas, no alto-comissariado irá

investir maciçamente numa rede de obras públicas e comunicações que possa

assegurar que a presença do Estado chegue eficazmente a todos os cantos do

698

AHU, N. Matos, 9º Relatório Confidencial para Sua Ex.ª o ministro das Colónias, iniciado no Lobito, 23-02-1915 e finalizado em Loanda, 06-03-1915..., transcrito em Norton de Matos, Memórias…, Vol. II, 2005, p. 447.

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território. Para isso, conta com a colaboração da força de trabalho indígena. Tal como

acontece nas colónias de outros impérios, trata-se de uma colaboração coerciva,

embora o alto-comissário evite qualquer termo que evoque o carácter obrigatório

desse trabalho no diploma especificamente a ele dedicado, o Decreto nº 41699.

Nas «Instruções que regulam o emprêgo de trabalhadores indígenas nas obras

do Estado», anexas a este decreto, fala-se de um contrato, com a duração máxima de

seis meses de trabalho por ano. A única palavra que evoca algo com carácter

imperativo é quando refere que o contrato tem de ter um prazo, findo o qual os

indígenas «devem ser intimados para partir para as terras da sua naturalidade». Para

cada obra ou grupo de obras do Estado haverá uma zona para recrutamento, a definir

pelo governador-geral, via SNI. Bem ao seu estilo, Norton determina que esses

trabalhadores tenham cuidados médicos a um nível que, na realidade, quase ninguém

dispõe na colónia. Serão contratados, decreta, um enfermeiro em permanência, bem

como um médico que, estará no local da obra ou lá ou perto, disponível numa base

diária e obrigado a fazer, pelo menos, uma inspecção médica semanal a cada

trabalhador. Prevê, ainda, o estabelecimento de ambulâncias, enfermarias e hospitais

junto dos acampamentos indígenas, a construir o mais perto possível do local da obra.

Concomitantemente, a construção das cubatas, onde esses trabalhadores dormirão,

terá de obedecer a instruções precisas de regularidade e higiene, de modo a assegurar

as melhores condições sanitárias. São definidos um salário mínimo e um horário de

trabalho muito razoável (nove horas diárias para adultos, seis para crianças que não

podem ter menos de 14 anos). A alimentação, essa, terá de ser «de primeira qualidade

e em perfeito estado de conservação» e, para que não haja dúvidas, são fixados os

géneros alimentícios a fornecer e as quantidades precisas. Finalmente, o Estado pagará

viagem e alimentação dos trabalhadores para o local da obra e, no final, deste para as

suas terras.

Que a determinação de Norton em pôr termo à exploração sancionada por

determinações oficiais que expressamente revoga, como a que permitia o trabalho

699

Decreto nº 41, aprovando as «Instruções que regulam o emprego de trabalhadores indígenas nas obras do Estado», 03-08-1921 in Província de Angola: Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador-geral…, pp. 106-111.

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gratuito para o Estado 24 dias por ano700, é genuína, não há motivos para duvidar.

Porém, Norton conhecia demasiado bem a realidade no terreno para saber que o

cenário de primeiro mundo que concebeu no seu decreto tinha fracas possibilidades

de passar do papel à prática no imediato ou mesmo num futuro próximo. Como

noutras ocasiões da sua vida pública, porém, não deixa que a realidade atrapalhe a sua

determinação em transformá-la de acordo com os seus desejos. Na verdade, deixa o

caminho desbravado, aponta tendências, define a boa doutrina, o dever ser da

colonização. E, de caminho, sempre vai conseguindo algumas vitórias, especialmente

nos locais onde pode contar com colaboradores que genuinamente comungam das

suas convicções e sempre que conseguia dispor de verbas para as poder financiar.

A realidade é que será difícil corresponder a este cenário, sobretudo em locais

mais afastados do escrutínio de Norton. É isso, pelo menos, o que transparece do

inquérito sobre o trabalho nativo, realizado em Angola entre Julho e Setembro de

1924, logo após Norton ter abandonado o cargo de alto-comissário, por uma equipa

liderada por Edward Ross. Ross, professor de Sociologia na Universidade de Wisconsin,

inclui Angola no seu inquérito sociológico por sugestão de uma associação missionária

protestante norte-americana, contando com o apoio de missionários no terreno e o

testemunho dos próprios indígenas701. São muitos os relatos de trabalho forçado que

aí inclui, sem direito a qualquer pagamento, verdadeiras corveias dos tempos

modernos, a que não escapam nem mulheres nem crianças.

700

O Decreto 41, no seu artº 2º determina que «Nenhum indígena será obrigado a trabalho gratuito, mesmo para o Estado, ficando assim expressamente revogada a disposição do artigo 87º do Regulamento das Circunscrições Administrativas, que permitia o trabalho gratuito dos indígenas durante 24 dias por ano» in Idem, p. 106. 701

Edward Alsworth Ross, Report on Employement of Native Labor in Portuguese Africa, New York, 1925. O inquérito é realizado por Ross e pelo médico R. Meville Cramer, na sequência de uma sugestão de missionários ligados ao International Missionary Council que se apresentam como «A number of american gentlemen interested in the welfare of the American natives» (Idem, p. 5). O Relatório Ross, como ficou conhecido, foi apresentado à Comissão de Escravatura da Sociedade das Nações, em Genebra, em 1925, pelo grupo de missionários que promoveram a sua realização, tendo, no entanto, o cuidado de sublinhar que nem Ross nem Cramer «is connected with a church or with a foreign mission» (Ibidem). Era do conhecimento geral que a informação apresentada no relatório fora fornecida e/ou facilitada por missionários protestantes em Angola. Sobre o relatório e o modo como os portugueses lidaram com o escândalo que se lhe seguiu, cf. Miguel Bandeira Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras…,pp. 211-249. Jeremy Ball sublinha o facto, raro, de o relatório incluir depoimentos dos próprios indígenas. J. Ball, The Colossal Lie: The Sociedade Agrícola do Cassequel and Portuguese Colonial Labor Policy in Angola, 1899-1977, PhD Dissertation in History, Los Angeles, UCLA, 2003, pp. 41-52.

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Norton, como muitos outros portugueses, refutarão as acusações nele contidas

como sendo erróneas e servindo uma agenda escondida que visaria não o

humanitarismo mas antes o ataque da credibilidade de Portugal como potência

colonizadora. Que esta agenda não seria totalmente alheia à gestão, tudo menos

inocente702, dos escândalos que, no mundo anglo-saxónico, vinham ciclicamente

aparecendo, como sucedâneos do caso do cacau escravo, parece ser um facto. Que o

trabalho forçado e, mesmo, as modernas corveias, estavam longe de ser uma

característica única do colonialismo português, parece igualmente não haver

dúvidas703. Em muitos locais de Angola, a realidade das corveias é um facto

testemunhado pelos missionários estrangeiros protestantes e católicos de várias

nacionalidades, portugueses incluídos.

Nos relatórios que periodicamente envia para a Propaganda Fide, no Vaticano,

Louis Keiling, prefeito apostólico do Cubango, faz-se eco, nesses primeiros anos da

década de 20, dos efeitos colaterais do avanço da ocupação, da febre das concessões

de terrenos, da mudança da natureza do imposto de predial para pessoal, em suma, do

aumento da pressão sobre os indígenas para que sejam «a vaca leiteira do branco»704,

a qualquer preço. Em Setembro de 1922, transcreve um extracto de uma carta do

responsável de uma das missões da sua Prefeitura Apostólica, testemunhando que

todos, homens, mulheres e crianças são obrigados a trabalhar uma grande parte do

ano, de graça, tendo de levar a própria comida e os próprios instrumentos de trabalho

702

Como lembra Frederick Cooper, não é por acaso que são os poderes coloniais mais débeis os principais visados pelas campanhas internacionais dos grupos de pressão missionários e humanitários, primeiro, e da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho, depois. Frederick Cooper, «Conditions Analogous to Slavery: Imperialism and Free Labor Ideology in Africa» in F.Cooper, T. C. Holt, R. J. Scott (coord.), Beyond Slavery: Explorations of Race, Labor, and Citizenship in Postemancipation Societies, Chapel Hill and London, Univ. of North Carolina Press, 2000, p. 108. 703

Veja-se o caso de várias colónias de outros impérios, reunidos no volume colectivo editado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. AAVV, Trabalho forçado africano : experiências coloniais comparadas, Porto, Campo das Letras, 2006. Há quem defenda que se trata de uma questão de escala: «Angola differed from neighboring British and French colonies in central and southern Africa only in the extent to which colonial authorities relied on forced labor». Jeremy Ball, «Colonial Labor in Twentieth-Century Angola» in History Compass, Nº 3, 21-12-2005. Não obstante, faltam ainda estudos comparativos, em épocas específicas, que nos permitam chegar a conclusões mais seguras. 704

ARCHIVIO STORICO DELLA CONGREGAZIONE DE PROPAGANDA FIDE (APF), N.S., Vol. 826, Carta de Louis Keiling, Prefeito Apostólico do Cubango, à Congregação da Propaganda Fide, Cubango, 08-09-1922, mns., p. 8.

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para trabalhar nas obras públicas do Estado705. É certo que, apenas duas semanas mais

tarde, o padre Keiling estará, juntamente com Norton de Matos, na inauguração da

ponte sobre o rio Cubango, construída com mão-de-obra indígena, alimentada e paga

pelo governo-geral de Angola, ao longo dos três anos que durou a obra. A quantia –

que não especifica, apesar de referir que é módica – existiu, como pagamento de um

contrato706. Ou seja, coexistem realidades contraditórias, sob o mesmo governo do

novo alto -comissário, ao qual Keiling reconhece uma invulgar determinação:

«Norton de Mattos (..) a montré une volonté ferme d’en finir avec le gaspillage, la routine, et il travaille de toutes ses forces pour mettre à profit les nombreuses ressources qu’offre la Province. Ainsi pour ne parler que de quelques points de son gouvernement, il parle: de ports à ménager, de chemins de fer à continuer, de routes à ouvrir, de centres de population européenne à fonder, d’écoles á créer, de missionanaires à encourager, de mines à exploiter: or, diamants, pétrole, cuivre – de nouvaux districts à eriger. Et vraiment, sans partialité et sans mauvaise grâce, nous devons confesser tout à sa louange que ces nouveautés ont été toutes entreprises à la fois et sont menées de front avec un fermeté peu ordinaire, ou pour le moins, avec un esprit de suite au quel nous n’étions pas accostumés.»707

A determinação pouco usual de desenvolver a colónia, em todas as frentes,

vem a par com a exigência, cada vez maior, de que os africanos trabalhem nas obras

públicas. Na verdade, está-se em face de «uma reviravolta completa» face à situação

anterior em que essa exigência era episódica. Agora, pelo contrário, as corveias são,

denuncia o padre Keiling, uma realidade generalizada em todo o território da

Prefeitura Apostólica do Cubango. A todo o custo, o negro tem de produzir, se preciso

for obriga-se a que o faça, tratando-o como «um animal». As autoridades dão o

exemplo, usando o seu trabalho gratuitamente, pouco se importando se está na época

da sementeira e se os campos vão ficar por semear, seguindo-se meses de fome certa

na região. As consequências da aplicação desta «lei marcial» são desastrosas e a

miséria é grande, já não havendo sequer panos para os indígenas vestirem, obrigando-

705

«La loi prescript 24 jours de prestations à tout noir valides – femme exemptée -. En réalité tous, femmes, hommes, enfants, travaillent une grande partie de l’année soit aux routes, soit aux fermes ou jardins d’expérience, et tout cela gratis pro Deo, - contrairement aussi à la loi qui oblige à payer et à nourir les travailleurs – n’ayant pour toute nourriture que ce qu’ils ont emporté de chez eux, pour instrument de travail leurs house et leurs hâches». APF, Extracto de um relatório de um dos postos da Prefeitura Apostólica do Cubango citado por Louis Keiling in Ibidem. 706

«Le pont monumental du Coubango» in Bulletin de la Congrégation, Vol. 31, 390, 1923, pp. 46–47. 707

APF, N.S., Vol. 826, Carta de Louis Keiling à Congregação da Propaganda Fide, Cubango, 08-09-1922, mns., p. 5. Até referência em contrário, as citações são desta carta.

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os a recorrer a cascas de árvores, prática que há já 60 anos não se via entre o povo

nganguela.

A exigência de pagamento do imposto indígena extravasa em muito o disposto

na lei. Para o pagar, o indígena tem de vender tudo o que tem: o boi, as galinhas, o

cabrito, o último grão de milho, se preciso for. Há quem se dê a si próprio ou aos seus

como escravo708, para poder pagar o imposto. A cobrança é agressivamente exigida,

sendo enviado para uma prisão infame quem não pague. Instrumentos de tortura são

aplicados aos régulos, para que usem da sua influência junto dos seus para que

paguem, sendo que as mortes devido a maus-tratos não são raras. O seu sangue clama

por vingança no cemitério junto ao forte, reclama o superior da Missão do Catchi709.

Ao cardeal responsável pela Propaganda Fide, Keilling afirma poder encher um livro

com relatos semelhantes, circunscrição por circunscrição, posto por posto. Marido e

mulher, crianças e octogenários, mortos e desaparecidos, de todos é exigido o

pagamento do imposto, numa interpretação elástica da lei que fica à mercê da

discricionariedade de quem exerce a autoridade em cada posto em concreto. Casos há

em que as missões são pressionadas, quando não ameaçadas, para não pregar a

monogamia. De facto, a poligamia é mais rentável para o Estado, pois o marido tem de

pagar imposto por cada mulher.

Os relatos dos missionários são corroborados, em Outubro de 1923, pelo

testemunho de um antigo ministro outubrista, Lacerda de Almeida, então a trabalhar

como agrimensor em Seles, no distrito do Cuanza Sul. Ao alto-comissário escreve

denunciando «a colheita dos indígenas para as estradas»710:

708

As fontes missionárias católicas vêm confirmar o que as protestantes, mais estudadas pela historiografia anglo-saxónica, também testemunham: o aumento da escravatura entre os africanos, a chamada escravatura doméstica, como efeito colateral da generalização do sistema de trabalho forçado. É o caso dos ovimbundu, no planalto central. Linda Heywood, «Slavery and forced labor in the changing political economy of central Angola 1850-1946», pp. 426-428. 709

Cf. Extracto de relatório do superior da Missão do Catchi transcrito por Louis Keiling. APF, N.S., Vol. 826, Carta de Louis Keiling à Congregação da Propaganda Fide, Cubango, 08-09-1922, mns. 710

ANM, P. A.C. 1, Cópia dact. da carta de M. Lacerda de Almeida ao alto-comissário da República em Angola, Casseque, 15-10-1923, 24 fls., enviada a Norton de Matos, então na metrópole, pelo encarregado geral do governo, juntamente com uma carta que Lacerda de Almeida enviara também a este último, pedindo providências imediatas e informando ter enviado uma «notificação» ao Presidente da República e uma «circular aos Reitores das universidades dirigida a todos os intelectuais pedindo a interferencia desta farça para bem da Justiça».

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«Parte destes infelizes trabalham de castigo na estrada do Tar que muito sangue custará e muitos escudos em carne humana, riqueza e economia perdida, para sempre. Quasi sem comer espancados, trabalhando de dia com os pulsos e artelhos inchados das cordas que lhes amarram de noite. Outros foram obrigados a contractos voluntarios não viram para onde. Quantos voltarão ás suas libatas? Mas parece que a colheita dos indigenas para as estradas não chegou, pois às libatas foram pedir os poucos homens que lá tinham, para tal serviço e o da construção de casas do posto da Botera, sem comida e agora porque já não havia homens, por ordem do Chefe de Posto da Botera lá vão as mulheres com as crianças de mama às costas, e crianças, até as dos serventes contractados das fazendas! E serão abusadas por todos os cipaios que aparecem.»

Chegando aos ouvidos do governador do distrito, António Leite de Magalhães,

este, ainda antes de ler a denúncia, apressa-se a zombar do delator que

frequentemente choraria pela saúde e bem-estar dos indígenas: «mas chora de

facto»711, «em ternuras d’alma que deixam na sombra as de S. Francisco Xavier». A

«negrofilia» de Lacerda de Almeida, «acirrada pelo desvario de uma embriaguez

perene» já teria entrado «no domínio da chacota». Mais: tanta negrofilia só poderia

estar ligada ao início de uma «campanha nativista, de misteriosa origem e ainda mais

misteriosos fins». Apesar de admitir, em tese, que a sindicância poderá eventualmente

provar o fundamento das denúncias, a sua primeira reacção é atacar o carácter do

denunciante, agitando, de caminho, o espantalho do separatismo. Curiosamente,

trata-se do mesmo governador que, ainda em Agosto, em carta escrita do Novo

Redondo ao alto-comissário, reconhecera a persistência da exploração dos africanos:

«Por qualquer malha que se deixa aberta, há ainda muita gente que enfiará o preto para o saco da sua fortuna. São hábitos velhos que só podem curar-se com remédios violentos.»712

Naturalmente, outra coisa seria admitir que na própria administração pública

existiam malhas abertas do mesmo jaez, a precisar de remédios igualmente violentos

para serem curadas. No segredo do lar, Norton acabará por admitir a justeza da

denúncia, demarcando-se da responsabilidade política: «Já não estava em Angola. O

Lacerda de Almeida, como depois vim a saber, tinha carradas de razão.»713.

711

ANM, P. AC 1, Cópia de carta do governador do Cuanza-Sul, António Leite de Magalhães, ao encarregado geral do Governo de Angola, Novo Redondo, 04-11-1923. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta carta. 712

ANM, P. AC 1, Carta de António Leite de Magalhães, em papel timbrado do gabinete do governador do Cuanza-Sul, ao alto-comissário, Novo Redondo, 15-08-1923. 713

Nota mns., do punho de Norton, aposta a lápis na carta citada in Idem.

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Abusos e casos de polícia como os relatados pelos missionários católicos

espiritanos e por altos quadros coloniais como Lacerda de Almeida parecem confirmar

as informações mais conhecidas como as que Ross recolheu em 1924, com a ajuda de

missionários protestantes. Os abusos ter-se-ão agravado nas décadas seguintes, como

o relatório apresentado por Henrique Galvão à Comissão das Colónias da Assembleia

Nacional em 1947, parece confirmar714. É certo que, tal como no caso Lacerda de

Almeida, Norton já não estava em Angola. No caso Ross, já nem sequer era

formalmente o titular do cargo de alto-comissário, pois tinha acabado de tomar posse

como embaixador de Portugal em Londres. Não obstante, os dados recolhidos não

deixam de retratar uma realidade que existiu ao longo dos anos em que governou

Angola, com tendência a agravar-se posteriormente com a institucionalização do

estatuto do indigenato em 1926, já em plena Ditadura Militar.

O que não impede que seja difícil perceber o peso relativo do abuso, por um

lado, e do respeito pelas normas, por outro. Num universo de 30 000 trabalhadores ao

serviço do Estado, em Agosto de 1923715, muito estaria dependente da forma como,

localmente, os funcionários estatais aplicavam a lei. Nesta data, o chefe de gabinete de

Norton não tem pejo em reclamar que os trabalhadores contratados para as obras do

Estado têm melhores condições de trabalho do que os recrutados pela Diamang e que

se esta pagasse e alimentasse tão bem os seus trabalhadores quanto o Estado faz, não

lhe faltariam braços para trabalhar.

Não deixava de ser uma afirmação temerária, atendendo à débil capacidade do

serviço responsável pela inspecção das condições laborais dos indígenas, a Secretaria

Superior dos Negócios Indígenas (SSNI), em exercer uma fiscalização efectiva, com o

parco pessoal que dispunha para tão vasto território. Algumas inspecções são feitas,

porém, e através dos relatórios da SSNI, o alto-comissário tem oficialmente

714

Cf. Jeremy Ball, The Colossal Lie: The Sociedade Agrícola do Cassequel and Portuguese Colonial Labor Policy in Angola, 1899-1977, pp. 52-58; e Douglas L. Wheeler, «The forced labour 'system' in Angola, 1903-1947: reassessing origins and persistence in the context of colonial consolidation, economic growth and reform failures» in AAVV, Trabalho forçado africano: experiências coloniais comparadas, Porto, Campo das Letras, 2006, pp. 387 e segs. 715

Número admitido pelo chefe de gabinete de Norton ao representante da Companhia de Diamantes em Luanda. ANM, P. AC 9, Cópia de of. 854/11/3ª, de 04-08-1923, do chefe de gabinete, interino, do alto-comissário, ao representante da Cª de Diamantes em Luanda (cópia enviada ao governador da Lunda, Veríssimo Sarmento em 07-08-1923, para conhecimento), f. 5.

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conhecimento das falhas que, na realidade no terreno, persistem, apesar de todas as

suas orientações em contrário. Uma delas é relatada na conclusão de missão de

inspecção no último trimestre de 1923 pelo tenente Serpa Pinto. Entre vários outros

atropelos, o inspector do trabalho dos indígenas conclui que:

«nos distritos do Cuanza-Norte e Malange, se exige largamente dos indígenas a prestação de trabalho gratuito para o serviço de construção de estradas, a despeito de tal sistema ter sido totalmente abolido pelo D. 41 de 1921 - artº 2º»716

Poucos meses mais tarde, o mesmo inspector, exercendo agora interinamente

também o cargo de chefe de Repartição, inspecionou as condições de trabalho dos

indígenas ao serviço do Caminho-de-Ferro de Loanda a Ambaca. 35 garotos do Libolo,

alguns menores de oito anos, são imediatamente mandados repatriar. Excluídas estas

crianças, bem como os doentes e hospitalizados, ficaram 999 homens ao serviço. Deste

total de trabalhadores, 237, ou seja 23,7%, são julgados incapazes, por opinião médica.

Alguns deles tinham feito viagens tão grandes até chegar ao local de trabalho e

estavam em tão mau estado que chegaram «quasi cadáveres»717:

«Urge pôr termo a este estado de coisas, tanto por humanidade como por defeza do principal factor de riqueza da Província: a sua população.

A passagem em qualquer ponto onde haja estrangeiros, dum grupo de homens nestas miseráveis condições, possivelmente amarrados com cordas e uns cipaizinhos a emoldurar o quadro, fornece um precioso episodio da nossa colonização aos que tenham interesse em depreciá-la»718

Passando da administração central para um nível mais local, podemos verificar

que os trabalhadores indígenas desenvolveram várias estratégias de resistência ao

trabalho em obras do Estado, não se limitando ao papel de vítimas. É o caso da

pequena amostra a que acedemos, relativa a uma circunscrição civil no planalto

central.

A resistência dos visados foi em alguns casos bem-sucedida, como relatam os

chefes de posto ao administrador da Circunscrição Civil do Huambo, em 1922. Tendo

enviado cipaios para angariar pessoal para a construção de estradas, vêem as suas

716

ANM, P. AC 6, Serpa Nunes, Relatorio do serviço de inspecção ao trabalho dos indígenas nos distritos de Cuanza-Norte e Malange, Outubro a Dezembro de 1923, 31-12-1923. 717

ANM, P. AC 6, Serpa Nunes, Relatório da inspecção ás condições de trabalho dos indígenas ao serviço do Caminho de Ferro de Loanda a Ambaca acampamento ao quilometro 5, 17-04-1924, dact., ass., p. 2. 718

Ibidem.

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diligências frustradas em várias ocasiões, por vezes com violência. Quando foi

necessário angariar homens para concluir a estrada entre Huambo e Caála, se os sobas

de duas regiões colaboraram, indo, cada um com seu cipaio, recrutar homens a

diversas povoações, já no sobado de Môma o recrutamento encontrou resistência. Os

seculos recusaram-se a fornecer pessoal, tendo contado com a ajuda do mestre-escola

da Missão Católica do Cuando719. No sobado Sacauombo, os seculos de três povoações

não só se opuseram a fornecer pessoal para a construção da estrada como

espancaram o soba, o cipaio e vários rapazes que os acompanhavam, com um

machado, paus e zagaias. Afastado momentaneamente o perigo, os habitantes

puseram-se em fuga para além-Cunhungâmua, escapando assim ao recrutamento720.

O encarregado das estradas e pontes da Circunscrição Civil do Huambo pede

providências para pôr termo a outro tipo de resistência, mais complicada de gerir,

quando é protagonizada pelos próprios colonos, provavelmente por não desejarem

ver-se privados, eles próprios, de mão-de-obra:

«Tendo mandado o cipaio Meti acompanhado do cantoneiro Pamba, angariar trabalhadores em vários povoados e entre eles o de Chicomo, ali o europeu Souza frustrou o angariamento, espancando o cantoneiro e despindo a farda ao cipaio, ameaçando-o perante os indígenas que se refugiaram em casa e quintal do referido europeu, não se conseguindo dali trazer o pessoal que mandei buscar.

A população daquela localidade é de 87 contribuintes e mandando eu levantar 15, nem um trouxeram devido aos factos que aponto.

São testemunhas do ocorrido os indígenas Cimento do lugar de Chimuanga, Chamonengue do Sachitemo e Menha do Chopanga.

Espero que V. Exa. dará as devidas providências, de contrário será inútil mandar cipaios a qualquer libata angariar trabalhadores.»721

Abusos e estratégias de resistência à parte, o busílis da questão residia na

liberdade de trabalho ou melhor, na falta dela. O indígena, uma vez assim definido

719

«o qual, não só se opôs a que dali saísse gente para a estrada, como, juntamente com restantes habitantes da povoação se lançaram sobre o cipaio, o maltrataram com pancadas, rasgando-lhe o fardamento. // Conseguindo o cipaio soltar-se das mãos dos seus captores, estes se puseram em fuga, tendo o cipaio prendido os indígenas José Ernesto e Chiteculo, ambos da escola referida, os quais já entreguei a V. Exa». ARQUIVO NACIONAL DE ANGOLA (ANA), Avulsos, Cx. 466, Do Chefe de Posto do Lépi para o Administrador da Circunscrição Civil do Huambo, 24-03-1922 (documento cedido por Maria da Conceição Neto). 720

Cf. Idem. 721

ANA, Avulsos, Cx 466, Do chefe de Posto Civil do Sambo para o administrador da Circunscrição Civil do Huambo, 23-03-1922 (documento cedido por Maria da Conceição Neto).

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pelo colonizador, tinha de trabalhar para o Estado por um período que podia ir até

meio ano e que, em meados de 1923, foi aumentado para nove meses.

Independentemente da sua vontade, era obrigado a sujeitar-se a esse processo, sem o

qual nunca poderia chegar a ser considerado, mesmo num futuro muito longínquo,

candidato a um lugar no mundo dos civilizados. Norton de Matos, no seu alto

comissariado, levou muito a sério a realização desta missão civilizadora que visava

proteger os indígenas pelo mesmo mecanismo que os forçava a trabalhar para o

Estado. O facto de ter reprimido os abusos com uma determinação pouco vulgar não

significa, longe disso, que não tivesse encarnado a missão de que, tal como as

autoridades das colónias de outros impérios em África, se acreditava investido: civilizar

coercivamente os indígenas pelo trabalho.

IV.2.2.3. O pacto com o colosso

A intervenção do Estado na animação e favorecimento da angariação de

trabalhadores indígenas para particulares, reconhecida pelo Decreto 40, por muito

transitória e indirecta que pretendesse ser, estava longe de ser pontual. É o caso,

especialmente notório, da Companhia dos Diamantes, a quem acabava de ser dado um

poder considerável sobre cerca de um quinto do território da colónia, a Lunda, no

Nordeste de Angola. Na verdade, meses antes, fora uma das principais contrapartidas

cedidas pelo governo de Angola à Diamang, em troca das gordas compensações

financeiras dadas à colónia. Ao abrigo da cláusula 13ª, o governo de Norton

comprometera-se a «dar todas as possíveis facilidades e apoio para o recrutamento e

angariamento do pessoal indígena necessário à intensa exploração dos jazigos

diamantíferos»722, numa decisão com fundas implicações ao longo das décadas que se

vão seguir, como a investigação de Todd Cleveland sobre a Diamang vem confirmar:

722

Cláusula 13ª do «Termo de contrato celebrado na Repartição Superior de Fazenda, da Secretaria de Finanças do Govêrno Geral de Angola, entre o Estado e a Companhia de Diamantes de Angola», Luanda, 16-05-1921, J.M.R. Norton de Matos, Providencias tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como alto-comissário da República e governador-geral, Abril a Dezembro de 1921, p. 247. As outras contrapartidas dadas à Diamang pelo governo incluem, além das concessões por tempo ilimitado do direito de extracção de diamantes em todos os claims que a Companhia tenha já demarcado, ou venha a demarcar, dentro do prazo de 30 anos, em vários territórios especificados e, dentro do prazo de 5 anos, nos restantes terrenos da província (cláusulas 1 e 2); o estabelecimento de zonas de protecção em torno de cada claim para evitar roubos e receptação de diamantes (cláusula 12ª); isenção de todos os direitos, taxas, contribuições, impostos prediais, industriais e mineiros, actuais ou futuros e isenção dos direitos de exportação dos diamantes (cláusula 14ª).

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«For almost six decades, residents of Lunda and from a series of adjacent areas from which the company regularly drew workers experienced forced labor in a way that was unparalleled in Portugal’s African colonies. (…) nowhere else did it [the metropolitan government] grant a concessionary company such exclusive access to African labor. Furthermore, no other commercial operator was able to impose the forced labor regime as effectively as Diamang.»723

Mesmo se as facilidades e apoio do governo de Norton para o recrutamento e

angariamento de trabalhadores indígenas não foram dados apenas à Diamang, é

inegável que a dimensão desta companhia sobreleva em importância todas as

restantes, com um impacto muito maior e mais duradouro sobre o recurso à mão-de-

obra. A colaboração entre o governo e a Diamang neste particular ir-se-á apurando,

não tendo sido de fácil concretização. Trata-se de uma colaboração entre partes

ligadas pela reciprocidade de interesses mas nem por isso isenta de altos e baixos.

Norton diligencia para que o cumprimento das condições de trabalho no território

controlado pela Diamang seja escrupuloso. Com Ernesto de Vilhena, antigo colega de

governo724, a exercer funções na administração da Diamang, tem uma longa

conferência, antes da sua partida para a Lunda. Encarrega-o de estudar a questão, de

modo a evitar as queixas das autoridades quanto à falta de assistência sanitária,

deficiências na ração (ou ausência dela) e condições laborais dos trabalhadores

indígenas. No Verão de 1922 vai mais além: a bitola para a Diamang passa a ser igual à

que pormenorizadamente determinara no Decreto 41 para os trabalhadores do

Estado. A 14 de Julho, o alto-comissário comunica oficialmente à Companhia dos

Diamantes que ela se deve colocar

«imediatamente, quanto a regímen de trabalho, dentro do que se determina no decreto 41, podendo, contudo, algumas disposições desse decreto ser modificadas de acordo com o Exmo. Snr. Governador do Distrito da Lunda, se se entender necessário em vista das circunstânicas e condições locais, alterando-se o prazo de recrutamento de seis mezes para um ano; tendo, porém, em atenção os pontos principaes, salario em dinheiro, boa e abundante alimentação, distribuição periódica de camisolas e panos, alojamento e assistência medica, [que] têm de ser mantidos.»725

723

Todd Cleveland, Rock solid: African laborers on the diamond mines of the Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), 1917-1975, Ann Arbor MI, Proquest, 2011, p. 4. 724

Ernesto Jardim Vilhena (1876-1967), oficial da Marinha e membro do Partido Democrático, estivera à frente da pasta das Colónias no 3º governo de Afonso Costa, em 1917. Anteriormente, fora chefe de gabinete do ministro Almeida Ribeiro, em 1913-1914. 725

ANM, P. AC 7, Extracto de comunicação do Alto Comissário à Diamang, recebida a 14-07-1922, transcrita por Ernesto de Vilhena, representante da Companhia de Diamantes, no «Memorandum

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No final do Verão, Vilhena discutirá com o governador do distrito da Lunda,

ponto por ponto, horários de trabalho, alojamento, alimentação, cuidados de saúde

dos trabalhadores ao serviço da Diamang, numa conferência de três dias no Chitato, na

qual o representante da Companhia se apresenta já com várias mudanças de política

laboral na bagagem, anunciando ter já despedido todas as crianças que aparentavam

menos de 14 anos726. Tão ou mais importante do que velar pelas condições de

trabalho dos indígenas, ao impor no extenso território controlado pela Lunda, os

elevados princípios que, na legislação, determinara como horizonte para os trabalhos

do governo em Angola, Norton estava igualmente a afirmar que não ia permitir que a

Diamang fosse um estado dentro do Estado. A par das normas de trabalho, Vilhena

apressa-se a garantir que a bandeira portuguesa já está içada em várias explorações da

Companhia, respondendo a um outro reparo do alto-comissário, aquando da sua

deslocação com a família ao Leste de Angola, na passagem de ano, fizera umas

inaugurações e visitara as minas. No diário de viagem, a filha Rita deixara bem patente

a sensação de ter estado em terra estrangeira, onde escasseavam tanto os

portugueses como a sua bandeira verde-rubra727.

As normas pormenorizadamente impostas pelo Estado à Diamang, que enchem

volumosos processos burocráticos, não podiam contrastar mais com a realidade numa

das zonas em que o alto-comissário autorizara os angariadores da Companhia a

recrutar trabalhadores, a Circunscrição Civil do Songo. Em finais de 1922, o Songo

estava transformado numa autêntica «feira franca de pretos»728, de acordo com o

relato do governador do Moxico, D. António de Almeida. O capitão Almeida, enviado

apresentado a Sua Exa. o governador do distrito da Lunda, em que se resume a exposição feita nas conferências realisadas no Chitato, em 14, 16 e 16 [sic] de Setembro de 1922, e as resoluções seguidamente adoptadas», Cópia dact., a papel químico, Vila Henrique Carvalho (Saurimo), 12-10-1922, p. 12. 726

ANM, P. AC 7, Ernesto de Vilhena, Memorandum citado. 727

Rita Norton de Matos, Por terras de Angola: impressões de viagem: Quanza-Norte, Malange, Lunda, Moxico e Benguela, Lisboa, Tip. Ideal, 1934, p. 13. Apesar de Rita mencionar a persistência, na região, de um soba ainda rebelde, a referência à falta da bandeira portuguesa terá certamente a ver com o episódio relatado por Vilhena, que repetidamente se desculpa, no memorando atrás citado, por a bandeira portuguesa não ter estado hasteada durante a visita do alto-comissário. A presença de estrangeiros, ligados quer à mina quer a missões protestantes, é uma constante no relato da viagem feito por Rita. 728

ANM, P. AC 3, Carta particular de António de Almeida a Norton de Matos, Mussulo, 17-12-1922, dact., ass. Até referência em contrário, as citações que seguem são desta carta.

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por Norton em viagem de inspecção ao distrito de Malange para investigar como é

feito o recrutamento para fora do distrito, faz um retrato cru da coação, maus-tratos

físicos e incompetência com que todo o processo é conduzido, para a Diamang mas

não só. É o caso dos indígenas destinados às longínquas explorações agrícolas e

industriais de Moçâmedes, angariados por Venâncio Guimarães, agente geral da

Sociedade de Recrutamento de Moçâmedes que recrutava em vários distritos. Em

Malange, Guimarães tem também a sua esfera de influência, que divide com o

angariador da Diamang, num processo assim descrito por Almeida ao alto-comissário:

«Vinha-se fazendo autentica escravatura no Distrito de Malange, Excelentíssimo Senhor. Soldados e cipaios armados invadiam as povoações indígenas; cercavam as suas moradas; chicoteavam aos sobas e suas mulheres, nos quais vi, durante os interrogatórios a que assisti os fundos vestigios do latego; amarravam tudo o que era valido para sêr posto em almoeda e seguir pseudo angariadores, que infestavam o distrito, e num aporfia desesperada iam fazendo subir em lances sucessivos... o preço da mercadoria! (…) E - para cumulo - os miseraveis negreiros procuravam acobertar-se com o nome honrado de Vossa Excelência, que iam sujando»729

No que respeita aos trabalhadores angariados para a Diamang, Almeida relata o

que se passou com centenas deles nos últimos meses de 1922, após terem sido

violentamente arrancados às suas libatas pelas autoridades do Songo. Entregues ao

angariador, foram armazenados como gado em quintais do Mussulo, meses a fio,

enquanto a segunda remessa não chega para completar o total de trabalhadores

prometidos pelas autoridades: meio milhar. Atacados pela varíola, começaram a

morrer como tordos, sem qualquer assistência médica.

«Ah! meu general, não houve aqui angariamento, mas tão sómente pesca de arrasto -, o que diz bem, tratando-se de Mossamedes; fez-se aqui à gente preta, nas barbas pouco respeitáveis de Malange, o que V. Ex.ª não tem permitido que se faça aos peixes, no mar largo...»

A lista de abusos a que o capitão tem de pôr fim é longa e de tudo vai dando

conta a Norton, numa intensa correspondência privada e oficial, na qual chama a

atenção para os efeitos colaterais do exemplo da Diamang junto dos pequenos

agricultores e empresários. Com as pressões constantes para que o Estado lhes «dê

pretos» pois, se não os der, a empresa tem de fechar, a Diamang está a dizer a todos

729

ANM, P. AC 4, Relatório do capitão António de Almeida a Norton de Matos, Residência do Distrito de Malange, 19-01-1923, dact., fl. 4.

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que o Decreto 40 é inexequível. Pois se «o colosso» reclama não poder sobreviver se o

Estado não lhe fornecer a mão-de-obra, como poderá o Estado negar ajuda nesse

particular às pequenas unidades coloniais?

[A Companhia dos Diamantes,] Detentora dum verdadeiro negócio chinez (...), ocupa terrenos diamantíferos, que são pertença do Estado, e que, para serem explorados, apenas necessitam de quem os cave e peneire. Esse mester pertence aos pretos. Logo venham daí, mas fornecidos também pelo Estado, se este quizer mata-bicho. (...) E como nós, o Estado, vamos indo com a corda ao pescoço em questão de dinheiro, forneçamos-lhe tambem os pretos. Esta história é mais pitoresca que a do galego que chamava estupida á lusa gente que lhe comprava a água, que dela era. Meu General: a Companhia está prestando um máu serviço a V. Exc.ª. Os que, em seu nome, lhe pedem pretos, não se conduzem como seus amigos, - olham demasiado para os próprios interesses. Para não se incomodarem; por economia; POR NÃO SABEREM FAZER, TALVEZ, parecem apostados em demonstrar á turba multa dos pequenos agricultores e industriaes que... NÃO É EXEQUÍVEL O DECRETO 40 de V. Ex.ª, o que não é verdade. (…) V. Exc.ª está muito alto; o ambiente, em que se move, está muito filtrado e pouco perturbado dos miasmas que nos envenenam, cá por baixo, olhos e ouvidos. E o que até mim tem chegado, nas azas maléficas do DIZ-SE anónimo, é que a prova provada da impossibilidade de cumprimento desse decreto, “que é a asfixia, a morte da industria, do comercio, da vida, em suma, de Angola” está no facto da Companhia de Diamantes -, o colôsso -, se arrimar ao Estado, para conseguir trabalhadores, e declarar, URBI ET ORBI, que, a não ser assim, os não poderá obter e teria de paralizar os seus serviços!»730

Apesar de ter reprimido os abusos mais chocantes, como os detectados pelo

capitão Almeida, o alto-comissário não recuará na sua política. Muito pelo contrário, a

premência do governo de Norton em obter receitas e a estreita dependência em que

estas se encontram do aumento de rendimento daquela Companhia justificarão uma

medida mais drástica. Em Agosto de 1923, a identificação entre trabalho para o Estado

e trabalho para a Companhia dos Diamantes passa a ser completa. Já não se trata de

um ou outro telegrama pontual a um governador específico, solicitando que

excepcionalmente seja facilitada a angariação de uma determinada quantidade de

trabalhadores para a Diamang, como se fossem trabalhar para o Estado. Agora, os

governadores da Lunda, Malange, Moxico e Luchazes são informados que o alto-

comissário, em despacho confidencial de 4 de Agosto, determina que os trabalhos na

Companhia de Diamantes sejam considerados trabalho do Estado para efeitos de

730

ANM, P. AC 3, Mç Correspondência, Carta particular de António de Almeida a Norton de Matos, Mussulo, 17-12-1922, dact., ass., 6 fls.

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angariamento de trabalhadores731. A excepção continua a ser a martirizada

Circunscrição Civil do Songo, expressamente retirada das áreas de recrutamento.

Reprimido o abuso do passado, de acordo com as indicações do capitão António de

Almeida, e fiscalizada a Diamang para que dê boas condições aos trabalhadores, pode

a Companhia passar a recrutar indígenas como se fosse o próprio Estado, na Lunda e

nos três distritos vizinhos. Com isso, pode poupar significativamente nas verbas para a

angariação e, logo, ter mais lucros para dividir com o governo de Angola. E, de

caminho, parar de se queixar das dificuldades em obter trabalhadores contratados.

No mesmo dia em que emite o despacho confidencial, Norton instrui o seu

chefe de gabinete para que recorde à Diamang que, para atrair mão-de-obra, a

Companhia só tem de tratar os indígenas da mesma forma que o governo trata os

trabalhadores que tem actualmente ao seu serviço. Fazendo uma despesa bem menor

do que a que Diamang faz, os trabalhadores do Estado são, defende, mais bem

vestidos e alimentados do que os da Companhia de Diamantes.

«Mais uma vez Sua Ex.ª o Alto Comissário chama a atenção da Companhia dos Diamantes de Angola para a necessidade de proceder para com os seus trabalhadores indígenas da mesma forma que o Estado procede para com os 30000 trabalhadores indígenas actualmente ao seu serviço.

Pague-se-lhes em dinheiro um salario que não deve exceder $40 por dia útil de trabalho; alimente-os nos termos do decreto 41 com a possibilidade das alterações acima referidas; forneça-lhes uma manta que os agasalhe, duas camisolas e dois panos, um de cada um dos artigos ao iniciar o trabalho outro findo o período de contracto que, para o caso da Companhia, pode ir até um ano; aloje-os convenientemente; dê-lhes a maior assistência medica; não lhes venda absolutamente nada; e verá como tem mão d’obra abundante e relativamente barata. (..)»732

Após o puxão de orelhas, o gabinete do alto-comissário trata das questões

práticas que é preciso afinar na sequência da decisão de permitir que o angariamento

731

«Despacho esta data determinei que trabalhos Companhia Diamantes fossem considerados como trabalhos Estado para efeito angariamento trabalhadores indígenas Ponto Atendendo a urgente necessidade aumentar rendimento Companhia que representa aumento ouro receitas Estado deve Vexa prestar todo auxilio esse angariamento todo seu distrito com excepção circunscrição Songo». ANM, P. AC 7, Cópia de tel. nº 1368 do Alto Comissário ao Governador de Malange, Loanda, 04-08-1923. Idêntico telegrama é enviado aos governadores da Lunda, Moxico e Luchazes. 732

ANM, P. AC 9, Cópia de of. 854/11/3ª, de 04-08-1923, do chefe de gabinete, interino, do Alto Comissário, ao representante da Cª de Diamantes em Luanda (cópia enviada ao governador da Lunda (Veríssimo Sarmento) em 07-08-1923, para conhecimento), f. 5. Em 1922, a Diamang teve 6030 trabalhadores indígenas ao seu serviço, dos quais apenas 2150 estiveram nas explorações mineiras propriamente ditas.

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dos trabalhadores indígenas para a Companhia se faça como se fosse para o Estado. Se

nos telegramas de Norton para os governadores se falava abertamente do verdadeiro

motivo – a necessidade de aumentar a produção de diamantes para aumentar as

receitas do Estado –, o chefe de gabinete coloca a tónica no bem-estar dos indígenas

que, defende, melhorará substancialmente com a nova medida733. A Companhia só

tem de indicar o número de indígenas de que precisa, de cada um dos distritos em

causa, e de dispor, em cada um deles, do

«pessoal necessário para se entender com as autoridades e para receber e acompanhar os indígenas até ao local de trabalho e fornecer-lhes vestuário e alimentação para a marcha»734.

Às autoridades apenas terá de ser entregue o pagamento de um ano do

imposto indígena por cada trabalhador. Se qualquer outro pagamento foi exigido, a

Diamang, como associada do Estado que é, deve denunciar o caso ao governo-geral

como tentativa de corrupção. Depois do aviso – bem revelador de que tal seria prática

corrente – o chefe de gabinete lembra as várias medidas do alto-comissariado que em

muito facilitam o trabalho da Companhia, entre as quais a permissão de uma intensiva

compra de 4500 vacas «com prejuízo de outras regiões da Provincia» e a concessão de

140.000 hectares de terreno para que o gado possa ser criado e, assim, resolver parte

das necessidades de alimentação dos trabalhadores contratados735.

São medidas que não farão parar nem os lamentos nem as exigências da parte

da Diamang relativamente à mão-de-obra. Por um lado, queixam-se dos «resultados

desastrosos»736 que tiveram as primeiras experiências com o trabalho contratado, com

as fugas em massa de trabalhadores, depois de a Diamang ter já despendido somas

consideráveis com angariadores e rações, «sem que as autoridades mostrassem o zelo 733

«Todos teremos a lucrar com esta prática e sobretudo os indígenas». Idem, fl. 5. 734

Idem, fl. 6. Este «só» tem muito que se lhe diga pois por vezes os contratados tinham de fazer marchas a pé de mais de mil quilómetros, que chegavam a durar meses, até chegar às minas. A história dessas viagens é contada por Todd Cleveland, «Working while Walking: Forced Laborers’ Treks to Angola’s Colonial-Era Diamond Mines, 1921-1948». 735

ANM, P. AC 9, Cópia de of. 854/11/3ª, de 04-08-1923, do chefe de gabinete, interino, do Alto Comissário, ao representante da Cª de Diamantes em Luanda, cópia enviada ao governador da Lunda (Veríssimo Sarmento) em 07-08-1923, fls. 7-8. 736

ANM, P. AC 9, António Brandão de Melo, representante da Companhia de Diamantes de Angola, Cópia do «Memorandum apresentado a Sua Exa. O Snr. Governador da Lunda e resumindo as conferencias havidas em Dezembro de 1923 entre o mesmo Exmo. Snr. e o representante da Companhia de Diamantes de Angola e contendo as resoluções tomadas em alguns assuntos», Loanda, 28-12-1923, fl. 8. Até referência em contrário, as citações são deste «Memorandum…».

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necessário que era de esperar nelas encontrar para legalmente os fazer voltar ao

trabalho ou substituir por outros». Por outro, lembram ao governo que esperam uma

«acção enérgica da autoridade em os obrigar a cumprir as suas obrigações de

trabalho», sem a qual o desastre é garantido em termos de resultados financeiros –

para a companhia como para o governo-geral de Angola.

Se, para retomar o vernáculo de António de Almeida, o governo andava com a

corda ao pescoço em questão de dinheiro e muitos poderiam pensar que, por isso,

Norton estaria nas mãos do colosso para o mata-bicho, a verdade é que a barganha foi

dura e persistente e a mão-de-obra indígena nunca deixou de estar no seu cerne.

Significativamente, na entrevista solicitada ao secretário Provincial das Finanças do

governo de Norton, Ernesto Góis Pinto737, nesse Verão de férias em Londres, os irmãos

Barnaths Brothers, da Diamang, interrogam(-se) «Porque é que o High Commissioner

está zangado connosco? (…) Porque não nos dá pretos? Porque é que não aceitou o

meio milhão emprestado?»738.

IV.2.2.4. Trabalhadores em troca de capital e... trabalhadores

contra a alta finança

A verdade é que são cada vez mais os brancos em Angola, com diamantes ou

sem eles, a quem é preciso calar a boca fornecendo pretos, na versão crua de Lacerda

de Almeida739. «Sempre a mesma cantiga», dirá Norton, agastado de tanto ouvir

pequenos e grandes empresários agrícolas e industriais culparem a falta de mão-de-

obra pelos problemas dos negócios quando, na realidade, eles residem essencialmente

na falta de visão empresarial. Não a têm por não quererem pagar o salário justo nem

737

Ernesto Espregueira Góis Pinto, primo de Norton, está de saída do cargo, alvitrando, no decurso desta correspondência com Norton, vários nomes como possíveis substitutos. Nesse mesmo Verão, o cargo de Secretário Provincial das Finanças era exercido interinamente pelo chefe dos Serviços de Fazenda, João Ferreira Martins. 738

ANM, P. AC 1, [Góis Pinto], «[Relatório de] Entrevistas de Londres», S.l., S.d., mns., anexo a carta de Ernesto [Góis Pinto] a José [Norton de Matos], Lisboa, 24-07-1923, mns. 739

«As libatas estão sem ninguem. É preciso calar a boca a um branco que precisa de gente, manda-se de uma libata que tinha vinte homens dez, mas outro vem e pede, tira-se á mesma cinco e cordas se não querem vir, pancadas de sempre. Assim as libatas não teem homens validos, nem até mulheres. Com estas continuas sangrias e para mais as das mulheres, a porta da epoca das culturas, que terra amanharão os desgraçados? E depois de os esbulharem de tudo, já lhes pedem para breve o imposto. Já em Outubro isto, um imposto que devia ser pago até Março, creio eu». ANM, P. AC 1, Cópia dact. da carta de M. Lacerda de Almeida ao Alto Comissário da República em Angola, Casseque, 15-10-1923.

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dar as condições mínimas aos indígenas, como tantas vezes insistiu, pregando a mais

das vezes no deserto. O facto de algumas autoridades locais, mais longe do seu

escrutínio, persistirem nas más práticas, não invalida que Norton não tenha decretado

a boa doutrina nem instruído, enfática e repetidamente, a sua rede de funcionários

para que fiscalizem o seu cumprimento por parte dos privados. Às palavras e à

fiscalização e repressão de abusos, juntará uma outra forma de intervenção: o

patrocínio da aplicação das boas práticas para os trabalhadores cuja contratação

facilitará para várias empresas agrícolas e industriais de Angola e não apenas para a

Diamang. Já não se trata apenas de uma facilitação indirecta, através da aprovação dos

nomes dos angariadores apresentados pelas empresas, do número de trabalhadores

que podem ser angariados e das áreas geográficas em que podem sê-lo. Nem, tão-só,

de fiscalizar a acção dos angariadores.

Trata-se, pelo contrário, de recorrer à rede administrativa do Estado para

angariar trabalhadores para as empresas, quando o Estado tem participação no capital

e nos lucros das mesmas, como se se tratasse de angariação de trabalhadores para o

próprio Estado. A questão é que o Estado, não tendo essa participação no capital e

lucros, procura activamente obtê-la, usando o fornecimento de trabalhadores como

moeda de troca. É uma das várias estratégias usadas pelo alto-comissário para obter

receitas para a sua obra de fomento. Oferece-se para facilitar trabalhadores em troca

de uma participação nos lucros das empresas, usando depois o dinheiro para o

desenvolvimento de Angola. No final de 1922, são já várias as sociedades anónimas

que associaram os lucros ao governo em troca de facilidades oficiais no tocante à mão-

de-obra. Embora, à excepção da Diamang, faltem ainda estudos monográficos que nos

permitam conhecer que sociedades são essas e quais os termos dos contratos que

regulam essa associação, a sua existência é apontada como exemplo a seguir pelos

directores da Companhia do Açúcar de Angola num documento de Novembro de 1922.

Nesta data, os directores da Companhia do Açúcar, também conhecida por

Companhia do Cassequel, convocam uma assembleia-geral extraordinária para propor

aos accionistas a cedência de 3% do capital realizado ou 3000 acções da Companhia à

Província de Angola e ainda 3% de toda e qualquer emissão de capital que se venha a

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realizar, em troca do apoio do governo no angariamento de trabalhadores. Além da

facilitação de toda a mão-de-obra de que precisar para as explorações agrícolas, o

Estado comprometer-se-á com a angariação de pessoal para outros trabalhos de

interesse comum, como o da desobstrução dos rios que a Companhia utilizar para o

serviço de navegação ou a reparação e conservação das estradas públicas que

interessem igualmente à empresa740. Para o seu serviço permanente, a Companhia,

recordam aos accionistas, necessita de uma força de trabalho de milhares de

trabalhadores, aos quais alega não poder ainda oferecer o «pleno regimem do

trabalho voluntario, que seria o ideal, mas ainda está na sua fase embrionária». Assim

sendo, os corpos gerentes vêem com muita simpatia a adopção da solução já em vigor

em Angola «para algumas sociedades anónimas», por iniciativa do alto-comissário:

«Uma das formas que ao esclarecido espirito de Sua Excellencia o Alto Commissario de Angola, se afiguram conducentes à harmonia dos interesses privados com os da Provincia, é a associação desta aos lucros das Emprezas que desejam obter facilidades officiaes no tocante à mao d-obra.»

Para negociar e assinar com o governo de Angola um contrato que exprima tal

princípio, «extremamente sympathico» à direcção da Companhia, os accionistas

delegam todos os poderes em António de Souza Carneiro Lara, sócio da firma Souza

Lara & Companhia Limitada, que exerce o cargo de director-gerente da Companhia do

Açúcar de Angola. Muito embora não disponhamos de dados sobre se um contrato

deste teor terá chegado a ser assinado, sabemos que três meses depois, em Fevereiro

de 1923, Norton ordena ao governador do Cuanza Norte que forneça 1500

trabalhadores para a Companhia do Açúcar, correspondendo assim a um pedido de

Souza Lara741.

Independentemente de este fornecimento ter sido efectuado ao abrigo

daquele contrato ou não, este documento revela-nos que Norton usa o trunfo do

acesso privilegiado à mão-de-obra indígena para obter financiamento e comparticipar

740

ANM, P. AC, Assembleia-geral extraordinária da Companhia do Açúcar de Angola, 18-11-1922. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste documento. 741

Embora este se queixe de que desses 1500 nem 400 chegaram à fazenda até Dezembro de 1913 (ANM, P. AC 4, Carta de A. Sousa Lara a Norton de Matos, Lisboa, 11-08-1924, dact., ass.). Não se confirma a hipótese, aventada por Jeremy Ball, de que, «As far as labor was concerned, perhaps Cassequel was one of Norton de Matos’ “rare exceptions” where forced labor did not exist». (Jeremy Ball, The Colossal Lie: The Sociedade Agrícola do Cassequel and Portuguese Colonial Labor Policy in Angola, 1899-1977, p. 108).

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dos lucros de grandes empresas de Angola e não apenas na Diamang, ‘o colosso’.

Mata, assim, dois coelhos de uma única cajadada, financiando, por um lado, os seus

planos de fomento e co-responsabilizando, por outro, as companhias na realização de

obras públicas que de alguma forma interessam a estas últimas.

No Verão de 1923, Norton cruzará um outro patamar nesta política de usar o

fornecimento de trabalhadores como moeda de troca para o Estado participar no

capital e lucros de empresas privadas, financiando-se. Desta feita, determinará o

fornecimento de trabalhadores para… combater a alta finança. A agudização da crise

financeira com a suspensão das transferências bancárias entre Angola e a metrópole

por decisão unilateral do BNU, a que adiante voltaremos, justifica a tomada de

medidas radicais no que toca à interferência do Estado na facilitação de mão-de-obra a

particulares. O objectivo é aumentar rapidamente a produção e, consequentemente,

as exportações. Doravante, o Estado deve fornecer mão-de-obra aos produtores como

se fossem trabalho para o Estado, só que de uma forma indiscriminada, podendo, além

do mais, o prazo do contrato ser estendido até nove meses, ao contrário do estipulado

no Decreto 41. Em meados de Julho, o governador da Huila recebe instruções precisas

neste sentido, abrangendo três importantes distritos do sul:

«Situação financeira Provincia consequencia manejos alta finança aflitiva e conduzirá tremendos males se não aumentarmos mais possível produção Ponto Indispensavel produção e exportação Mossamedes e Huila aumentar consideravelmente Ponto Para tanto devemos tratar fornecer mão de obra em abundancia a productores Ponto Tomar todas as medidas para que Mossamedes e Huila forneçam a mais possível e ir Benguela falar com governador a quem Vexa mostrará este telegrama afim se recrutarem ali trabalhadores termos decreto 41 mas podendo prazo ir até nove meses.» 742

Após ir a Benguela conferenciar com o seu homólogo, os dois assentam em que

o quartel-general das operações se estabeleça na Repartição Civil de Moçâmedes,

onde os trabalhadores terão de se apresentar para posteriormente serem distribuídos

pelas pescas e pela agricultura743.

742

ANM, P. AC 7, Alto Comissariado da República em Angola (ACRA) - Gabinete, 3ª Secção, Processo nº 118, Medidas tomadas para o aumento de produção e exportação em Angola, Cópia de tel. nº 1219, confidencial, de Norton ao governador da Huila, Luanda, 16-07-1923. 743

As despesas feitas com os trabalhadores serão reembolsadas pelos industriais e proprietários aquando da distribuição, sendo os trabalhadores acompanhados por um funcionário administrativo que irá vigiar o tratamento dos indígenas até ao seu local de trabalho. ANM, P. AC 7, ACRA - Gabinete, 3ª

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No Norte, idênticas medidas são tomadas. Em Agosto, após o despacho

confidencial de Norton que formaliza a facilitação de mão-de-obra à Diamang como

sendo para o Estado – tornando sistemática uma prática que, como vimos, já vinha

pontualmente acontecendo – o agravamento da questão dos cambiais motiva o envio

de um telegrama urgentíssimo ao governador de Malange, renovando instruções

anteriores:

«tive conhecimento agravamento situação quanto cambiaes e por isso renovo minhas instruções para fornecimento trabalhadores forma aumentar ao máximo produção podendo ser mulheres e crianças quando se trate colheitas café e algodão e devendo corresponder a facilidades mão de obra parte Estado máximo rigor tudo diga respeito fiscalização pagamento alimentação vestuário alojamento e tratamento indígenas angariados Ponto combinar com seu colega Dalatando»744

A referência ao recurso a crianças para a apanha do café e do algodão é

acompanhada por recomendação de rigor quando ao cumprimento escrupuloso dos

direitos dos trabalhadores, tendo o cuidado de especificar, alínea a alínea, o que deve

ser cumprido, remetendo sempre para o Decreto 41, ou seja, refere-se a crianças

maiores de 14 anos. São recomendações repetidas veementemente, mesmo quando

ordena estas que são verdadeiras medidas de emergência de aumento indiscriminado

de fornecimento de trabalhadores para particulares, a bem da salvação da colónia.

São duas pressões contraditórias que, como vimos, frequentemente chocaram

com a realidade no que ao tratamento dos indígenas diz respeito. É certo que a

preocupação com os direitos destes últimos é uma constante ao longo do alto-

comissariado de Norton. Na linha das campanhas que na década anterior promovera

para se assegurar que a boa nova da liberdade de trabalho nas fazendas chegara a

todos, continua a punir os abusos. Conta, para isso, com o apoio de um punhado de

colaboradores que comungam das suas concepções e da sua determinação, a quem

incumbe as missões mais delicadas. Conta, igualmente, com um grupo de inimigos

cujos interesses são afectados pela sua determinação. Um deles é o agente geral da

Sociedade de Recrutamento de Moçâmedes, Venâncio Guimarães, a quem retirará a

Secção, Processo Nº 118, Medidas tomadas…, Tel. 140/G - urgente do Governo de Benguela, 20-08-1923. 744

ANM, P. AC 7, ACRA – Gabinete, 3ª Secção, Processo nº 118, Medidas tomadas para o aumento de produção e exportação em Angola, Cópia de tel. nº 1482, urgentíssimo, de Norton de Matos ao governador de Malange, 23-08-1923.

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licença de angariador745. O aviso à navegação é claro: só aqueles que angariam e

tratam com humanidade e respeito os indígenas que contratam podem contar com o

apoio das autoridades. Sendo um aviso claro, tanto no plano dos princípios como nos

casos efectivamente fiscalizados, não deixa de ser um aviso essencialmente retórico.

Na verdade, a repressão dos abusos mais notórios que chegavam ao seu

conhecimento directo não invalida que a pressão sobre os indígenas para trabalharem

nos moldes definidos pelo colonizador tenha aumentado de forma exponencial

durante o alto-comissariado de Norton. Se, oficialmente, a pressão podia chegar até à

coacção moral sobre os sobas, muito mais acontecia extra-oficialmente, como a

documentação que aqui vimos trazendo à colação bem evidencia.

Norton de Matos, o campeão do trabalho livre, acaba a patrocinar, de forma

cada vez mais inequívoca, o trabalho forçado. A lógica colonial assim o exigia. O

paradoxo é apenas aparente se, resistindo à tentação do anacronismo, mergulharmos

no conceito de missão civilizadora tal qual era concebida pelos impérios europeus em

África nas primeiras décadas do século XX, mesmo se coexistiam no seu seio uma

grande latitude de cambiantes no modo de a pensar e de a praticar.

IV.2.3. A educação e o triângulo missionário em Angola: tensões e

compromissos. A elite dos filhos de Angola

Em Janeiro de 1921, Norton, já na qualidade de alto-comissário da República

em Angola mas ainda no périplo pelo estrangeiro que antecedeu a sua chegada a

Luanda, respondera de Paris a um pedido de colaboração da African Education

Commission, patrocinada pela Fundação Phelps-Stokes, na missão de estudo que se

propunha realizar em Angola, com esta declaração enfática:

«A intima cooperação do Governo de Angola com as sociedades civilizadoras portuguesas e estrangeiras, religiosas ou laicas, é o unico meio de desenvolver tão rapidamente quanto possível a educação das raças nativas da colónia. Por isso tenho pedido, e continuarei a pedir, a todos os missionarios e sociedades civilizadoras que se encontram em Angola, que me deem completo conhecimento

745

Numa verrinosa publicação, Venâncio vingar-se-á da afronta. Será, além do mais, um dos principais informadores de Cunha Leal, juntamente com o cunhado deste, António Videira, na campanha que Leal conduzirá contra Norton. Venâncio Guimarães, A situação de Angola: para a história do reinado de Norton: factos e depoimentos, Lisboa, Imprensa Lucas, 1923.

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dos seus estudos, observações e experiência e me solicitem todo o auxílio que julguem necessário para o prosseguimento e bom fim da sua obra de civilização. Por esta forma e em íntima colaboração, repito, com esses missionários e com essas sociedades civilizadoras, eu espero conseguir um dos resultados que mais ambiciono: – a educação e a melhoria das condições morais e materiais dos povos que foram entregues ao meu Governo e à minha protecção e solicitada pela República Portuguesa.» 746

De facto, será neste mandato, regressando à província com poderes reforçados

e maior margem de manobra, que Norton mais contará com os missionários das várias

confissões religiosas como aliados da sua política. A montante, o ambiente anti-

religioso está mais distendido, o enquadramento legal mais estabilizado e, ao assinar a

convenção de Saint-Germain-en-Laye, a República Portuguesa comprometeu-se

formalmente, em nome próprio, a cumprir a liberdade de circulação e de culto de

missionários de todas as nações e a combater quaisquer formas remanescentes de

escravatura. A sua experiência pessoal nos bastidores da Conferência de Paz tornara

mais aguda a consciência de que a colaboração do clero católico não pode ser

escamoteada como arma política indispensável para o desenvolvimento de Angola.

Especialmente em zonas da colónia onde os missionários protestantes não são tão

cooperantes quanto a maioria das igrejas que participam na Aliança Evangélica de

Angola, de que o reverendo Tucker será o secretário e principal impulsionador entre

1920 e 1949, promovendo afincadamente uma unidade de acção junto do governo

português e propondo-se colaborar com este em prol do bem-estar das populações.

Norton não está convicto que seja esse o caso dos missionários baptistas

ingleses que, desde as primeiras viagens ao Congo, acreditava terem incentivado a

revolta dos bakongos contra os portugueses em 1913747. Já em 1922, alguns baptistas

são condenados por envolvimento num movimento subversivo e o responsável pela

missão baptista de São Salvador, que os defendeu, publicamente repreendido e

ameaçado de expulsão pelo alto-comissário748. Compreende-se assim que Norton não

só veja com bons olhos a fundação da missão católica do Mayombe em 1923, no

746

SCHOOL OF ORIENTAL AND AFRICAN STUDIES – MISSIONARY ARCHIVES (SOAS-MA), Internacional Missionary Council / Conference of British Missionary Society (IMC/CBMS), Africa II, Box 1202, File C, Norton de Mattos, Carta a J. H. Oldham, em resposta a carta de Thomas Josse Jones, chairman da African Educational Commission (Phelp-Stokes Fund), 09-01-1921. 747

ANM, J. M. R. Norton de Matos, 2ª viagem ao distrito do Congo. Diário, Congo, 1913. 748

Cf. F. James Grenfell, História da Igreja Baptista em Angola 1879-1975, Queluz, Baptist Missionary Society, 1998, p. 72.

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enclave de Cabinda, como espera, a acreditar nas palavras do pró-prefeito da

Prefeitura Apostólica do Baixo Congo em relatório para a Propaganda Fide, que com a

sua fundação melhor se possa neutralizar a influência protestante

«qui n’est pas seulement anticatholique, mais aussi antinationale et pour cela mal vue par le gouvernment, tandis que les missions catholiques sont hautement estimées. Encore derrièrement, le Haut Commissaire de l’ Angola, en document public, a affirmé que les missions catholiques de la Provence ont su comprendre le plan du gouvernment auquel elles ont efficacement coopéré.»749.

As relações de Norton com a outra Prefeitura Apostólica da colónia, também

entregue aos missionários espiritanos, a Prefeitura da Cimbebásia, recém-baptizada

Prefeitura do Cubango, são igualmente cordiais. A colaboração passou, inclusive, como

atrás aludimos, pela construção de uma monumental ponte sobre o rio Cubango,

tendo um missionário feito o projecto e outro dirigido a obra e coordenado o trabalho

de um grupo de trabalhadores indígenas, a quem o alto-comissário pagou, mesmo se a

preço simbólico. A cooperação dos missionários no plano de obras públicas do governo

foi altamente apreciada e mereceu, inclusive, um decreto de Norton louvando a sua

cooperação no progresso e desenvolvimento de Angola750.

O outro lado da moeda não se fez esperar. Na verdade, como vimos na questão

do trabalho indígena, em mais de um aspecto a crescente intervenção do Estado e a

febre desenvolvimentista de Norton acarreta alguma tensão entre este e os

missionários católicos e protestantes. Concentrar-nos-emos aqui, porém, num outro

aspecto que marcou o alto-comissariado de Norton e obrigou as missões ligadas às

várias confissões religiosas, sobretudo as protestantes, a adequarem-se, ao menos

formalmente, às exigências governamentais portuguesas: a questão do ensino em

língua portuguesa. Referimo-nos ao decreto 77, de 9 de Dezembro de 1921, da autoria

de Norton751. Como mais tarde explicará, o decreto pretendia colocar um ponto final

na acção discricionária das missões. Se até à sua publicação, os missionários faziam o

que queriam, doravante teriam de passar a subordinar-se às normas do governo e a

funcionar nos termos definidos por este. Uma vez dado esse passo, os missionários

749

APF, N.S., Vol. 826, José Pacheco Monte, Etat de la Préfecture, 1923. 750

Cf. «Le pont monumental du Coubango» in Bulletin de la Congrégation, Vol. 31, 390, 1923, pp. 46–47. 751

Decreto nº 77, regulamentando a existência e funcionamento das missões religiosas in J.M.R. Norton de Matos, Providencias tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Abril a Dezembro de 1921, pp. 202–204.

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religiosos, de qualquer confissão ou nacionalidade, seriam considerados pelo alto-

comissário como colaboradores privilegiados, na primeira linha da obra civilizadora a

que o seu governo se propunha. Vale a pena transcrever um extracto do relato das

suas palavras, escrito por quem, em primeira mão, as escutou, o reverendo Tucker:

«Whatever goes on must be with full knowledge of the government. Prior to his coming everybody, including missionaries, had done as they pleased. The time had come however when a new regime should be introduced. All had to obey, traders, officials and missionaries. He said Decree 77 was the Magna Carta of the missions giving them the first time official recognition and conferring acknowledged benefits. He regarded the missionaries as co-workers in the task of uplifting the native populations and said he put us on a level with the Governors of the Districts, our co-operation, information and advice being received in the same way as he received theirs.»752.

E as normas a que as escolas das missões têm de se subordinar são simples e de

irrepreensível lógica, pelo menos do ponto de vista dos interesses da potência

colonizadora: em colónia portuguesa, é em português que se deve ensinar. Assim, com

o Decreto 77, Norton proíbe expressamente o ensino em línguas autóctones,

obrigando ao uso da língua portuguesa e ao controlo e reconhecimento burocrático

pelo Estado das competências linguísticas de todos os agentes de ensino. As missões

católicas também são afectadas mas serão sobretudo os protestantes a reclamar. O

impacto é tão grande que será a única peça legislativa a merecer transcrição integral

no relatório sobre a educação no continente africano, publicado na sequência da

viagem de estudo de especialistas de sociedades missionárias estrangeiras ao

continente negro, patrocinada pela fundação Phelps-Stokes, de que falámos no início

deste capítulo. O relatório manifesta grandes preocupações pelos efeitos pedagógicos

adversos, na literacia e mesmo na alfabetização dos angolanos, da travagem do ensino

nas línguas locais imposta pelo Decreto 77, proibição que considera

«clearly a denial of a fundamental human right and contrary to the best educational methods of pratically all civilized nations»753.

752

SOAS/IMC/CBMS Archives, Box 1202, File F, John T. Tucker, To the members of the Angola Missions Conference [Cópia do Relatório da entrevista com o Alto Comissário Norton de Matos a 23 de Setembro 1922]. 753

Thomas Jesse Jones, Education in Africa: A Study of West, South, and Equatorial Africa, under the Auspices of the Phelps-Stokes Fund and Foreign. Report prepared by Thomas Jesse Jones, New York, Phelps-Stokes Fund, 1925, p. 232.

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Não obstante o embate ter sido forte e os missionários protestantes se

queixarem de que as autoridades locais frequentemente boicotam o reconhecimento

dos conhecimentos de língua portuguesa de vários dos seus professores e catequistas

indígenas, ao passo que tendem a facilitar o dos católicos, a maior parte acaba por

contornar o problema. Nomeadamente contratando professores vindos de Portugal

com os muitos dólares que parecem chover nas suas missões – pelo menos aos olhos

dos missionários espiritanos que, em contraste, se vêem em apuros financeiros

constantes, redobrados por ocasião de cada pequena quebra dos subsídios que

recebem via Propaganda Fide, por conta da Obra Antiesclavagista e da Obra da Santa

Infância, a par dos percebidos pelo governo português.

Os baptistas, estabelecidos no Norte de Angola onde ensinavam na língua local,

o kikongo, foram os que mais dificuldade tiveram em adaptar-se, ao contrário da maior

parte dos colegas de outras denominações protestantes. Seja como for, não é de

negligenciar, longe disso, as consequências negativas que o Decreto 77 acabou por

acarretar, funcionando, na prática, como um travão ao avanço da alfabetização dos

africanos, como à época não deixou de ser enfatizado por Carson Graham, responsável

da Missão baptista de São Salvador:

«O Decreto originou o encerramento de mais de duzentas escolas de aldeia, onde as crianças estavam a ser ensinadas a ler as Escrituras na sua própria língua, assim (...) condenando milhares de crianças ao analfabetismo e ignorância, pois nós não podemos providenciar, e o Governo não providenciaria, professores portugueses.» 754.

Dois anos mais tarde, já ultrapassados os percalços do Decreto 77, dar-se-ia o

reconhecimento das suas virtualidades, pois, o diploma significara o reconhecimento,

em letra de forma, das missões protestantes em pé de igualdade com as católicas, o

que não era coisa pouca. «At present our skies are clear»755, resume o reverendo John

Tucker que continua a considerar, apesar de todos os revezes, o alto-comissário um

político e um parceiro excepcional. Nas suas palavras, Norton é «one in a thousand»756.

754

F. James Grenfell, História da Igreja Baptista em Angola 1879-1975, p. 74. 755

SOAS/IMC/CBMS Archives, Africa II, Box 1202, File E, John T. Tucker, Carta ao rev. Warnshuis, Bela Vista, Lobito, 12-01-1923, dact. 756

Idem.

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285

Onze dias após a publicação do Decreto 77, ainda em Dezembro de 1921,

Norton publica legislação regulando a existência e o funcionamento das missões laicas

em Angola757, quase uma década após a sua criação pelo Decreto 233 de 1913, do

ministro Almeida Ribeiro, e um ano após a chegada dos primeiros missionários da

República à colónia. Os responsáveis eclesiásticos católicos não se atemorizam

demasiado com a concorrência nem demonstram muitas preocupações quanto à

posição do alto-comissário, cuja retórica legislativa conhecem. Monsenhor Alves da

Cunha, em carta enviada a D. João Lima Vidal nesse final de ano, comenta:

«Em outro decreto regulou também o sr. Alto Comissário as missões laicas; suponho tratar-se mais duma questão política, pois as impressões sobre estas obras não são boas, e tanto que ele acaba de demitir o superior de uma missão, que mandou recolher à Metrópole.» 758.

Dois anos mais tarde, Norton voltará a legislar sobre o tema, desta vez com o

Decreto 300, de 20 de Maio de 1923, em que desenvolve um ambicioso programa para

as missões laicas, às quais atribui a gestão das escolas-oficinas – a sua menina dos

olhos – no que à educação dos indígenas diz respeito. Em cada circunscrição

administrativa é criada uma missão laica com uma escola-oficina para prover ao ensino

da língua portuguesa e de ofícios aos indígenas. Como objectivos primordiais, as

missões têm de «espalhar a civilização portuguesa, prestigiar a Pátria e nacionalizar as

populações indígenas», devendo «promover a vulgarização da língua portuguesa» e

«criar agricultores e operários»759. Ana Isabel Madeira, que estudou as implicações das

missões laicas para o sistema educativo colonial focando-se em especial no caso de

Moçambique, considera este diploma de Norton «a tentativa mais bem conseguida em

dar algum sentido a um conjunto de disposições sobre a tarefa das missões laicas.»760.

757

Decreto nº 85, de 20 de Dezembro de 1921 in Providências tomadas pelo General J. M. R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Janeiro a Dezembro de 1922, Lisboa, Papelaria Livraria e Tipografia, 1927, pp. 222–225. 758

Cópia de carta do vigário capitular do bispado, Manuel Alves Cunha, ao arcebispo de Mytilene [D. João Lima Vidal], Luanda, 31-12-1921 in António Brásio (ed.), Spiritana Monumenta Historica(…) Angola, Vol. V (1904-1967), p. 477. 759

Decreto nº 300, de 20 de Maio de 1923 in [J.M.R. Norton de Matos], Providências tomadas pelo general J.M.R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Janeiro a Dezembro de 1923, Lisboa, Pap. Fernandes, 1923, pp. 135–144. 760

Ana Isabel Madeira, Ler, Escrever e Orar: Uma análise histórica e comparada dos discursos sobre a educação, o ensino e a escola em Moçambique, 1850-1950, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 2007, p. 270.

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O que não obsta que, das 16 missões criadas no papel em Angola, só oito foram

fundadas, entre 1920 e 1925, não sendo certo que todas tenham passado do processo

de instalação, tendo geralmente um funcionamento muito precário761. Os jovens

missionários da República só começam a chegar a Angola (e a Moçambique) já dez

anos passados após a implantação do regime e sete após a autorização legislativa para

a sua criação. Chegam tarde e com meios clamorosamente desproporcionados face ao

ciclópico trabalho que deles se esperava762. Encarados pelo alto-comissário não como

concorrentes mas como complementares dos católicos, os missionários laicos são

preferencialmente enviados para zonas a civilizar, onde não existam missões católicas.

Pragmático como é, Norton sabe que é sobretudo com as missões religiosas, já

com provas dadas, que pode de facto contar para a missão civilizadora a que se

propõe. A análise das verbas orçamentadas para as missões religiosas e laicas nos

orçamentos do governo-geral de Angola, que tivemos oportunidade de fazer noutra

sede763, mostra que a realidade fala mais alto do que a retórica. A evolução da dotação

orçamental, para umas e outras, do penúltimo para o último ano do seu segundo

mandato, indica que não terá ficado impressionado com a prestação das missões

laicas. Toma assim a decisão de reforçar o apoio às missões católicas, já com provas

dadas no terreno. Deste seu propósito dá conhecimento ao chefe em exercício da

Repartição Superior de Negócios Indígenas, num relatório de Março de 1924764.

761

Veja-se o quadro «Movimento das Missões Civilizadoras para Angola, 1920-1925» In Idem, pp. 601-602. Mesmo assim, sem um estudo aprofundado, que ainda não existe, do funcionamento dessas missões em Angola, é difícil fazer um balanço da sua actuação. Nomeadamente, avaliando o impacto que terá tido na colónia a aplicação de métodos pedagógicos inovadores, com o auxílio de materiais como a Cartilha Experimental, acompanhado de um quadro de leitura auxiliar, a vialitra, composta por uma caixa-quadro com letras móveis, moldadas e coloridas» (Idem, p. 441), que deu alguns frutos interessantes em Moçambique. 762

Cf. Idem, pp. 432-445. 763

Helena Pinto Janeiro, «La Primera República Portuguesa y Las Missiones Católicas y Laicas en Angola: Financiación y Poder», pp. 161-191. 764

A Repartição Superior dos Negócios Indígenas (RSNI) supervisiona todos os assuntos relativos aos indígenas, instrução incluída. A acção do pessoal das missões laicas é assim avaliada: «diga-se de passagem para não falsearmos a verdade, ou por deficiência da sua preparação ou por lhe faltar aquele espírito de abnegação e sacrifício que em todos os tempos foi apanagio dos missionários religiosos, não se têm por enquanto obtido da sua acção civilizadora resultados apreciáveis. [§] Creio bem que só pelas missões religiosas nacionais será possível contrabalançar-se eficientemente a nefasta acção desnacionalizadora das suas congéneres estrangeiras». ANM, P. AC 6, Serpa Nunes, Elementos prestados ao Exmo. Snr. Dr. Quirino de Jesus sobre os serviços que correm por esta Repartição, como subsídio para a importante missão de que Sua Ex.ª vem incumbido, Loanda, RSNI, 12-03-1924, dact., ass., p. 17.

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A contrapartida exigida é a mesma que já no primeiro governo tentara impor,

sem êxito. Os subsídios devem ser canalizados, em exclusivo, para funções supletivas

do próprio Estado. Nestas incluem-se a instrução dos indígenas, ao nível do ensino da

língua portuguesa (proibindo em quase todas as situações de ensino o uso das línguas

maternas) e de ofícios aos ‘indígenas’. A Igreja Católica, por seu turno, teve de

adaptar-se às novas regras, o que não foi imediato e obrigou por vezes a um longo

processo burocrático para, por exemplo, ver reconhecidas oficialmente escolas que há

décadas funcionavam como tal. Obrigou-a sobretudo a apostar mais na vertente

instrutiva em detrimento da vertente catequética, se queria ser subsidiada e afastar o

risco de o governo criar escolas-oficina concorrentes, geridas por missionários laicos,

ou, mesmo, evitar que o governo avançasse com a fundação de escolas estatais

concorrentes já planeadas. Foi o que aconteceu na missão de Landana, em 1924, que

investiu na compra de novas máquinas para a escola profissional para evitar que o

governo-geral concretizasse a criação de uma escola estatal concorrente765.

A verdade é que a aposta da I República, e dos governos de Norton em

particular, na instrução e, nomeadamente na instrução dos ‘indígenas’ continua a ser

muito incipiente. Apesar de toda uma retórica posterior em contrário, no último

discurso que profere no Conselho Legislativo em Angola como alto-comissário, em

Setembro de 1923, Norton admite a debilidade da sua actuação nesse domínio766.

Se a instrução da grande massa dos indígenas não é, claramente, a prioridade

do seu alto-comissariado, outro tanto acontece relativamente à educação e formação

da elite europeizada dos naturais de Angola, frustrando, assim, as expectativas

anteriormente alimentadas.

765

Cf. APF, N.S., Vol. 826, Faustino Moreira dos Santos, “L’Etat de la Mission” [Ofício da Prefeitura Apostólica do Congo Português à Propaganda da Fé], 15-10-1924. 766

«Tudo isto é, porém, muito pouco em face do imenso que há a fazer e sobretudo por constituir missão desconexa - sou o primeiro a reconhecê-lo - por não ter a presidi-la um plano geral, que constitua um vigoroso ataque às trevas de ignorância que de tam funesta maneira estão pezando sôbre Angola». J.M.R. Norton de Matos, «Discurso proferido pelo Alto Comissário da República e Governador-geral, General José Mendes Ribeiro Norton de Matos, na sessão inaugural do Conselho [Legislativo], em 15 de Março de 1922» in Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador-geral, Abril a Dezembro de 1921…, p. 261. Veja-se, ainda, a avaliação impiedosa da obra de Norton, nos dois períodos em que governou a província, no que à educação dos indígenas diz respeito, por parte de uma fonte insuspeita: o seu antigo braço direito no governo, José Ferreira Diniz, «Do ensino profissional dos indígenas» in A missão civilizadora do Estado em Angola, Lisboa, Centro Tip. Colonial, 1926, pp. 71-81.

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Apesar de, quando quer enfatizar a inevitabilidade de serem feitos

investimentos avultados em colónias como Angola, o general as equipare a «países

novos e em formação»767 onde tudo está por fazer, ao contrário dos «países já feitos»,

tal horizonte estava fora das suas perspectivas para Angola por muitas e muitas

gerações ainda. Afinal, recorda, tinham sido precisos milhares de anos até que os

europeus adquirissem o nível civilizacional que os distingue. Os naturais de Angola não

passariam, explica, de «raças avassaladas» levantadas de «civilizações primitivas ao

nível das nossas crenças» mas ainda com um longo caminho a percorrer. Na verdade,

as crenças primitivas, que «tão fortemente os prendem e atraem ainda» não lhes

permitem alimentar quaisquer «veleidades de predomínio e de mando que uma

República não pode admitir em qualquer parte do seu território». Mais: a instrução

literária e científica que eventualmente adquiriram terá de ser reforçada durante

gerações e gerações até que, algures no fim do processo, a civilização «penetre

intimamente» os seus descendentes a ponto de estes poderem finalmente

transformar-se «nas individualidades de moralidade superior que as civilizações

modernas requerem». Entretanto, as elites europeizadas de Angola que tenham

paciência e se contentem em ser tratadas com o «carinho e amor» – são as suas

palavras textuais – que Norton e os portugueses têm para lhes oferecer, do mesmo

passo que assim os vilipendiam768.

Longe vai o tempo em que Norton patrocinara as associações das elites nativas

e perorara sobre o futuro brilhante e não demasiado distante em que todos os filhos

de Angola atingiriam as luzes da civilização. Longe vai o tempo em que pensara

entregar àqueles que, de entre estes, já tinham alcançado os padrões europeus, a

instrução dos indígenas, seus irmãos. Não por acaso, o plano altamente democrático,

que tão enfaticamente defendera, de formar um corpo de professores nativos para os

tornar protagonistas do processo civilizador, ficara na gaveta. Não constitui,

igualmente, um acaso o facto de, já no seu alto-comissariado, criar na administração

767

Norton de Matos, «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Presidente» in Actas do Conselho Legislativo: Sessão de Encerramento em 14 de Setembro de 1923: Presidência de Sua Exª o Alto Comissário da República e Governador Geral de Angola, General José Mendes Ribeiro Norton de Matos, S.l., S.d., 12 pp. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste discurso. 768

Como frisa Maria da Conceição Neto, «A República no seu estado colonial: combater a escravatura, estabelecer o «indigenato» in Ler História, 59, 2010, p. 223.

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pública da colónia um quadro de pessoal exclusivo para os naturais de Angola,

separado do quadro de pessoal dos restantes funcionários . Na verdade, pelo Decreto

nº 15, de 19 de Maio de 1921, estes últimos deixam de poder concorrer em pé de

igualdade com os colonos no que respeita a admissão, progressão na carreira e acesso

a lugares de topo, para já não falar da diferença remuneratória que igualmente os

penaliza769. Por fim, não é fortuitamente que Norton toma a decisão de dissolver a Liga

Angolana, em Fevereiro de 1922, e fechar o seu jornal, O Angolense, deportando e

prendendo vários dos membros, ligados a uma alegada conspiração nativista em

preparação, em Catete770. Se algumas ilusões as elites europeizadas de Angola

pudessem ter sobre os intuitos de Norton no primeiro mandato, ficam desfeitas

durante o seu alto-comissariado771. Antes de partir de Luanda para não mais voltar,

769

Decreto nº 15, de 19 de Maio de 1921 in Província de Angola: Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador Geral, Abril a Dezembro de 1921…, pp. 54-70. Veja-se o contraste entre as palavras introdutórias, afirmando a necessidade de aproveitar os naturais de Angola para a administração pública, com a realidade crua expressa pelas categorias e tabelas remuneratórias diferenciadas, em anexo. A dualidade de quadros na administração pública angolana, inaugurada por Norton, será durante décadas obnubilada pelo mito – a que não faltou a chancela académica – de que a colonização portuguesa teria sido uma realidade benigna. De tal maneira esse mito era poderoso, mesmo no seio da academia, que João Pereira Neto que, em 1964, completou um doutoramento no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina sobre Angola no século XX, quando confrontado com a evidência, decidiu, à última hora, retirar da sua tese os dados que mais flagrantemente desmentiam aquele mito. Trata-se de uma série de cadernos de páginas já impressas da sua dissertação original que se referiam, entre outros aspectos, a esta «instituição de um regime discriminatório em relação aos funcionários públicos não europeus». João Pereira Neto, Angola : Meio Século de Integração II - Páginas auto-censuradas, Lisboa, ex. policopiado, 2010 [1964]. O facto foi divulgado pelo autor numa conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) em Junho de 2010, altura em que depositou as partes autocensuradas da tese na biblioteca da SGL. O autor confessa, quase 50 anos depois, que o fez «julgando que prestava um bom serviço» ao seu país. Agradecemos a João Pereira Neto, actualmente secretário-geral da SGL, o facto de nos ter chamado a atenção para este texto, com a devida vénia ao autor pela honestidade intelectual de vir publicamente assumir o caso, colocando agora à disposição da comunidade académica o texto na sua forma integral. Veja-se, ainda, Eugénia Rodrigues, A geração silenciada…, pp. 36-38. 770

António Assis Júnior, procurador judicial no Golungo Alto, patrocina, junto do governo, uma série de reclamações de agricultores africanos contra o trabalho forçado e o confisco das terras de cultivo, ilegalmente concessionadas a colonos. A agitação provocada pelos protestos estaria ligada à preparação de uma revolta contra a soberania portuguesa, facto nunca provado, tendo sido um pretexto, segundo Douglas Wheeler, para colocar as elites nativas no lugar. Douglas L. Wheeler, História de Angola, pp. 185-187. 771

O choque entre as expectativas criadas durante o primeiro mandato e a realidade do segundo foi tão grande que, até hoje, entre os descendentes dessas elites perdura a imagem de Norton como o homem que liquidou as esperanças dos filhos da terra, tendo-se obnubilado da memória colectiva a aliança inicial entre aquele e estas (Maria da Conceição Neto, «A República no seu estado colonial: combater a escravatura, estabelecer o “indigenato”», p. 223). Como lembra Valentim Alexandre, o ataque às elites crioulas e a instalação de um funcionalismo de origem metropolitana levado a cabo no 2º mandato de Norton é parte integrante da imposição de «um projecto imperial, construindo um aparelho hierarquizado capaz de lhe servir de suporte» que já não passa por «contemporizar com o sistema de

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afirmá-lo-á de forma enfática: Portugal e o seu império constituem «Pátria única e

indivisível» e Angola, «a terra que pisamos é nossa – nossa continuará a ser»772.

Outras questões, que não a educação dos naturais dessa terra que os

portugueses pisam e chamam sua, assumirão neste segundo mandato de Norton de

Matos um papel absolutamente central, nomeadamente as que dizem respeito ao

financiamento da ocupação e fomento de Angola. O busílis da questão é saber se há

alguém em Portugal disposto a pagar a factura.

IV.2.4. Quem paga a factura da civilização

Civilizar Angola, sendo, já de si, um conceito centrado nos interesses de quem

se arroga a missão de civilizar, tendia a ser, neste contexto do pós-guerra, uma tarefa

ainda mais instrumental de agendas que apenas acessoriamente passavam por África.

Para complicar ainda mais a situação, em Portugal, o campo político tradicional estava

em plena pulverização, com uma série de novos partidos a nascer, a morrer, a

recomporem-se e a terem de se definir politicamente em torno do modo de lidar com

um marcado desequilíbrio socioeconómico e financeiro773. O facto de o país estar a

atravessar «um dos períodos de maior descontrolo financeiro da sua história»774, com

uma inflação e especulação cambial desenfreadas, tornava ainda mais difícil a missão

de Norton. Numa tal conjuntura, uma política de investimento maciço em Angola,

financiada por empréstimos internos e externos, dificilmente poderia contar, na hora

da verdade, com a solidariedade da metrópole. Ainda por cima, porque os poderes do

alto-comissário, aparentemente de uma grande latitude, estavam minados por zonas

poderes das sociedades luso-africanas». Valentim Alexandre, «Administração colonial» in Dicionário de História de Portugal, Suplemento, António Barreto, Maria Filomena Mónica (coord.), Vol. VII, Porto, Figueirinhas, 1999, p. 46. 772

Norton de Matos, «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Presidente» in Actas do Conselho Legislativo: Sessão de Encerramento em 14 de Setembro de 1923. 773

Cf. Ana Catarina Pinto, A Primeira República e os conflitos da modernidade, 1919-1926: a esquerda republicana e o bloco radical, p. 45 e passim; e António Telo, Decadência e queda da I República Portuguesa, Vol. 1, Lisboa, Regra do Jogo, 1980. 774

José da Silva Lopes, «Finanças Públicas» in Pedro Lains, Álvaro Ferreira da Silva, José Silva Lopes, História económica de Portugal, 1700-2000, Vol. III, O Século XX, Lisboa, ICS, 2005. p. 267.

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de grande ambiguidade775 que lhe tornavam difícil governar colocando em primeiro

lugar os interesses de Luanda, ao invés dos de Lisboa.

Nada que impeça Norton de aplicar de forma excepcionalmente profunda a

autonomia financeira de Angola, patrocinando um orçamento equilibrado que, pela

primeira vez, não conta com suprimentos por parte de Lisboa776. A ideia é encerrar de

vez o ciclo de navegação à bolina que até então vinha a ser feita em Angola em termos

financeiros, sempre contando que a metrópole viria depois suprir as faltas de um

orçamento elaborado atabalhoadamente, ou nem sequer elaborado de todo777.

Doravante, as receitas para o fomento são procuradas activamente através de uma

política de empréstimos, com encargos alicerçados numa previsão de aumento de

receitas por via dos impostos, que se virá a revelar certeira. Já a margem de autonomia

para gerir a política de empréstimos e, no geral, a política financeira, revelar-se-á assaz

estreita, por motivos eminentemente políticos.

Tanto assim é que, em Setembro de 1921, poucos meses após chegar a Luanda,

Norton já se queixa da «guerra feroz» que os seus planos financeiros estão a ser alvo

em Lisboa. É certo que na chefia do governo e na pasta das colónias encontra-se a

mesma dupla que o empossara alto-comissário em Lisboa: António Granjo e Manuel

Ferreira da Rocha. Simplesmente, o governo central interfere a toda a hora na

governação de Luanda. No caso, provoca o adiamento da assembleia do BNU que iria

discutir o contrato de alargamento da circulação fiduciária e um empréstimo de

fomento, de 10.000 contos-ouro, que negociara com o banco durante meses. O

argumento para a intervenção é, explica Ferreira da Rocha a Norton, o receio que tal

contrato venha a causar graves dissensões no parlamento, sendo necessário recolher

primeiro alguns pareceres. O argumento não dito, apesar dos protestos em contrário

do ministro das Colónias, é que o governo de Angola não teria atribuições nem

775

«Apesar de algumas pequenas alterações introduzidas em 1923, quando o regime soçobrou, em 1926, ainda não se tinha conseguido ultrapassar as contradições legislativas que dificultaram e tornaram praticamente inoperante a administração colonial republicana». Maria Cândida Proença, «A questão colonial» in Fernando Rosas, Maria Fernanda Rollo (coord.), História da Primeira República Portuguesa, p. 506. 776

J.M.R. Norton de Matos, E.E. Goes Pinto, Orçamento Geral da Província de Angola para o ano económico de 1921-1922, Loanda, Imprensa Nacional, 1921. 777

Em vigor estava o orçamento de 1917-1918.

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competência para realizar operações desta natureza. Norton, ao mesmo tempo que

recorda ao ministro que essa interferência está em completo desacordo com o regime

dos altos-comissários778, lança mão dos vários meios de pressão de que dispõe junto

dos meios políticos e financeiros da capital.

Conta já, para esse efeito, com o major Tomás Fernandes, antigo colaborador

que reencontrara na Conferência da Paz e que convidara para dirigir um escritório

multifunção que, em Lisboa, trata de vários assuntos relacionados com o seu governo,

a Agência Geral de Angola779. A Fernandes, incumbe-o de diligenciar junto de Lúcio de

Azevedo, administrador na Casa da Moeda780, para que não atrase a remessa de

moedas e cédulas781 prevista no orçamento para o ano económico de 1921-1922. Por

seu turno, faz questão de mostrar a sua boa vontade a Azevedo garantindo que a

recomendação de um seu protegido para um cargo na administração pública em

Angola não está esquecida. A pressão sobre a CDG, para que se concretize o

empréstimo de 4000 contos, também não pode abrandar, recomenda, pois o

Ministério das Colónias não desarma no boicote à sua acção, alegando que

empréstimos e amoedação estariam fora das suas atribuições como alto-comissário:

«As tentativas que se teem feito para entravar a cunhagem da moeda, a emissão de cédulas e o empréstimo com a Caixa Geral excedem tudo o que se poderia imaginar (...)

Esta guerra feroz que se está fazendo aos meus planos financeiros é um dos peores sintomas do desgraçado abatimento em que se encontra o nosso Paiz. Teremos de remar contra uma maré de lama... Eu remarei até ao fim e ái de quem me passe nesse charco infecto ao alcance do remo.

778

ANM, P. AC 4, Mç. nº 7, Tel. de Norton de Matos ao ministro, transcrito em tel. expedido do Lobito por Norton à Agência de Angola em Lisboa, 20[?]-09-1921. 779

Criada por Norton à imagem de agências do género existentes em Inglaterra, tem a seu cargo serviços «relacionados com empréstimos, abertura de créditos, amoedação, impressão de cédulas e similares» (Artº 3º alínea d), entre outras funções, tais como: auxiliar a emigração portuguesa para Angola; compra e venda de materiais de e para o governo de Angola; centralizar o serviço de pagamento de pensões e vencimentos de funcionários em licença na metrópole; serviços de propaganda e de informações. «Decreto nº 16, criando uma Agência de Angola em Lisboa e definindo a sua função» in Província de Angola: Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador-geral, Abril a Dezembro de 1921…, pp. 70-72. 780

Aníbal Lúcio de Azevedo (1876-1952) desempenha funções de presidente do Conselho Administrativo e depois Administrador da Casa da Moeda entre 1919 e 1924, sendo membro do mesmo partido e da mesma loja maçónica de Norton, a Acácia. «Azevedo (Aníbal Lúcio de)» in A.H. de Oliveira Marques, Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Vol. I, colunas 135-136. 781

1200 contos em moedas e 4000 contos em cédulas.

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Hoje estou muito mal impressionado com o que ahi se está urdindo e se não fosse a minha tempera teria desanimado.»782

O governo liberal de Granjo acabará por ser o menor dos seus problemas.

Estava-se nas vésperas dos acontecimentos trágicos da Noite Sangrenta, em que o

primeiro-ministro acabará assassinado em Lisboa às mãos de uma revolução que

escapa ao controlo dos seus promotores. Serão ainda precisos mais oito meses, quatro

governos e outros tantos ministros das Colónias783 até que, a 26 de Junho do ano

seguinte, Norton assine o contrato com o BNU. Como banco emissor e comercial em

Angola, o BNU compromete-se a expandir a emissão fiduciária de Angola até um

máximo de 50 000 contos e a fazer dois empréstimos. Desde logo, um de 3 mil contos-

ouro, seguindo-se, posteriormente, outro de 10 mil contos-ouro, a realizar conforme a

colónia fosse necessitando para as suas obras de fomento.

A Rodrigues Gaspar, o ministro então à frente da pasta das Colónia – que

conservará durante as várias recomposições do governo de António Maria da Silva –

Norton confessara, pouco tempo antes, considerar-se «dentro de praça cercada»784. O

sentimento não mudará apesar da folga momentânea proporcionada pela assinatura

do contrato com o BNU. Na verdade, não tardará até que o banco comece a colocar

obstáculos não apenas à efectivação do segundo empréstimo como, sobretudo, ao

alargamento da circulação fiduciária. Pelo contrário, logo em Outubro estaria até a

açambarcar moeda metálica, o que Norton tenta evitar dando instruções para que

sejam fornecidas moedas directamente às repartições de Fazenda distritais785.

«Prepara-se o terreno para se conseguir o vacuo financeiro. Sabendo que eu disponho de alguma moeda metalica e que estava negociando em Londres uma operação de cunhagem de nova moeda, garantida com produtos de Angola que compraria aos indigenas e ao comercio e que exportaria para Inglaterra, o Banco preparou logo o golpe de recolha toda a moeda em circulação em Angola, presente e futura.»

Será apenas o início. Em Dezembro, seguir-se-á a tentativa, por parte do banco,

de aumentar o prémio a cobrar de particulares pela transferência de fundos da colónia 782

ANM, P. AC 4, Mç. nº 7, Cópia de carta de Norton de Matos ao major Tomaz Fernandes, 29-09-1921. 783

Um deles será, aliás, o próprio Tomás Fernandes, que por fugazes 41 dias terá a pasta das Colónias no governo Maia Pinto, desde 5 de Novembro desse ano. 784

«sofrendo embates desmedidas ambições e inconfessaveis interesses tanto internos como externos». ANM, P. AC, Tel. 932 cifrado de Norton de Matos ao Ministro das Colónias, 05-06-1922. 785

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Tel. cifrado nº 164C do Alto comissário, do Lobito para Luanda, 11-10-1922. A citação é de nota aposta, pelo punho de Norton, na cópia deste tel. que guarda no seu arquivo pessoal.

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para a metrópole, dos 3% acordados para 5%786. Em Maio de 1923, o governador do

BNU sobe a parada, pedindo um prémio de 8%, senão ameaça suspender por

completo as transferências787. Não tardará a cumprir a ameaça, informando os seus

clientes exportadores, a 5 de Junho, não poder tomar o compromisso de fazer a

transferência do produto dos saques sobre Angola e Moçambique. Uma vez cobrado

ao cliente, o dinheiro passou a ficar creditado na conta da firma e na respectiva filial

bancária onde foi colocado, até que haja possibilidade de fazer a transferência. Os

prejuízos serão enormes tanto na colónia como na metrópole788.

Norton não cede à chantagem e contra-ataca, atirando-se «de cabeça ao

adversário»789. O plano é arranjar cambiais de forma alternativa. Para os comprar, o

governo de Angola é autorizado, pelo Decreto nº 306 do alto-comissário, de 7 de Julho,

a abrir créditos até 12.000 contos, a favor de casas bancárias ou comerciais que

estejam dispostas a ajudar o governo nesse patriótico objectivo, evitando, assim, a

paralisia da actividade económica da colónia. Como explica em carta a Nuno Simões,

da Companhia do Amboim:

«Trata-se de desatar o laço com que imaginaram estrangular-me. O meu estrangulamento no presente momento seria talvez a perda de Angola, tenho o pavor, mas também o orgulho de o dizer.»790

Com a Companhia de Nuno Simões o governo de Angola não chegará a acordo

mas assinará contrato para esse fim com a firma bancária e comercial Sousa Machado

& Companhia, com o Banco Colonial Português, com a firma Galileu Correia & Cª e com

786

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Of. do governador do BNU ao Alto comissário, Lisboa, 19-12-1922, dact. 787

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Tel. de João Ulrich ao Alto Comissário, 31-05-1923. 788

Através de circular de 5 Junho 1923 aos seus clientes exportadores (a que se seguirá nova circular de 28-12-1923, acrescentando que não se encarrega da cobrança de letras sobre a Guiné), cujos efeitos devastadores são expostos ao ministro das Colónias por várias firmas afectadas É o caso de uma firma portuense que se dedica à importação e exportação para África e Brasil: «Este caso é grave e antipatriótico. É grave por que em África se está sentindo imenso a falta de mercadorias, que o comércio não pode actualmente exportar (…). É antipatriotico, porque uma tal resolução (…) visa fechar as portas ao mercado Africano ao comercio português, facilitando assim as vendas aos estrangeiros, para os quais o mesmo Banco tem sempre coberturas em Libras, Francos ou Dolares, moedas em que eles vendem, fazendo assim com que o ouro que deveria entrar na Metropole vá directo para o estrangeiro, sem que com isso lucre o país importância alguma, mas em compensação recebe o Banco uma regular comissão». ANM, P. AC 7, Cópia de carta da firma Santos Machado & Cª Lda. ao ministro das Colónias, 29-12-1923, enviada a Norton de Matos na mesma data. 789

«Tendo reconhecido o traiçoeiro ataque que me estavam preparando atirei-me de cabeça ao adversário. N.M.». ANM, P. AC 7, Mç. 6, Anotação mns., do punho de Norton, ao Decreto de 07-07-1923. 790

ANM, P. AC 1, Cópia de carta de Norton de Matos a Nuno Simões, Luanda, 08-07-1923, dact.

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a Sociedade Angola e Congo, Lda.791. Norton prova, por este meio, que o governo de

Angola, aliado com as forças vivas da colónia, era capaz de ultrapassar o bloqueio

imposto pelo BNU, adquirindo directamente no mercado os cambiais indispensáveis

para garantir o pagamento de encomendas já feitas para obras de fomento792.

Não conseguirá, porém, desatar o outro nó que estrangula os seus planos: a

política de empréstimos. Esticada a corda com o BNU por via da crise das

transferências, tão pouco conseguirá que o banco honre os seus compromissos quanto

ao segundo empréstimo a que se tinha comprometido. A «resistência passiva»793 do

banco, não era, porém, o único factor responsável pelas consequências das medidas

monetárias do governo de Norton entre 1921 e 1923:

«Por um lado, a unidade monetária de Angola (o escudo angolano) depreciou-se em relação à unidade monetária portuguesa (o escudo português), apesar da depreciação deste nos mercados cambiais. Por isso o escudo angolano era trocado com um ágio de 16% a 25% em relação ao escudo português. Por outro lado, nem o Banco Nacional Ultramarino era capaz de mobilizar os fundos necessários para realizar o empréstimo de 10 mil contos-ouro à colónia então previsto, nem a economia de Angola parecia capaz de suportar sem tensões inflaccionistas o volume de despesas públicas, ainda que de investimento, que ele se destinava a financiar.»794

E da metrópole não havia nem condições financeiras nem, sobretudo, políticas

para espaldar esse enorme investimento em Angola. É quando Norton decide jogar

tudo por tudo, lançando mão de dois recursos. O primeiro, já atrás analisado, passa

pela tomada de medidas excepcionais de facilitação pelo Estado de trabalhadores às

empresas agrícolas e industriais para que estas possam aumentar mais rapidamente a

sua produção e as suas exportações e, de caminho, combater os manejos da alta

791

Respectivamente a 9, 19 e 31 de Julho, e a 2 de Agosto de 1923. Os contratos foram transcritos em AHU, 378/DGCOCD, Ministério das Colónias/DGCO/Rep. Angola e S. Tomé, Proc. 442-C, Relatórios..., Cópia de ofício G.E. nº 5. 2ª/1ª, de JMRNM ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Londres, 22-01-1925, dact., 35 pp. 792

As vantagens para o Estado desta política são expostas in Norton de Matos, A Província de Angola, Porto, Maranus, 1926, pp. 206-208. 793

Nuno Valério (coord.), História do sistema bancário Português, Volume I, Da formação do primeiro banco português à assunção pelo Banco de Portugal das funções de banco central, 1822-1931, S.l., Banco de Portugal: Eurosistema, 2006, p. 207. 794

Idem, p. 237. Como já frisara Adelino Torres, Norton sacrificara, «pelo menos a curto prazo, os equilíbrios macroeconómicos essenciais. Os resultados inflaccionistas explicam-se, sem dúvida, pela incapacidade do aparelho produtivo e da classe dominante em se adaptarem, durante o escasso tempo disponível, à tremenda pressão de uma tal estratégia». Adelino Torres, O Império Colonial Português entre o Real e o Imaginário, p. 283.

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finança795. A segunda é particularmente ousada e revela a fibra de Norton enquanto

político: começa a preparar o terreno para criar um novo banco emissor para Angola.

Manda indagar sigilosamente em Londres sobre a possibilidade de serem

emitidos 50 000 contos em cédulas por conta de Angola destinado a esse futuro banco

mas «Este segredo transpirou e tudo se inutilizou.»796. Acredita que, com este valor em

cédulas, a juntar ao que já existia em Angola, juntamente com o crédito da Província

em Londres e o valor dos contratos dos Diamantes e do Petróleo, a situação teria sido

salva mas «o Conselho Executivo não tinha coragem para tanto, e havia o medo do

Parlamento...»797. De facto, a 14 de Setembro, o alto-comissário chega a decretar, em

Boletim Oficial798, a substituição do BNU nas suas funções emissora e comercial na

colónia, por um banco novo, o Banco de Angola. Sem cobertura do governo da

metrópole, porém, o decreto ficará sem execução, embora deixe o caminho aberto

para o futuro799.

É esse o dia em que profere o seu último discurso perante o Conselho

Legislativo. Mau grado a sua lógica intrínseca, tanto o decreto de criação do Banco de

Angola como as orientações radicais relativas à mão-de-obra desse Verão de 1923 são

medidas que dificilmente dariam resultados em tempo útil, razão pela qual Norton

está de partida para a Europa. Em causa, está evitar a bancarrota em que o

incumprimento do contrato por parte do BNU ameaça colocar a colónia,

impossibilitando o cumprimento de empreitadas já feitas para construção de portos e

caminhos-de-ferro e obrigando ao pagamento de avultadas indemnizações, para além

de pôr em causa o pagamento de ordenados e pensões aos funcionários da colónia

que se encontram a residir ou de licença na metrópole.

795

Ver, mais atrás nesta tese, o ponto IV.2.2.4. 796

ANM, P. AC, Nota, do punho de Norton, aposta ao Tel. 208 do AC à Agência Geral de Angola em Londres (Santos Lucas), 08-08-1923. 797

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Anotação mns., do punho de Norton, a tel. seu, nº 1381, à Agência Geral de Angola em Londres («Masted London»), «absolutamente confidencial», 08-1923. 798

Decreto nº 364 do alto-comissário de Angola, de 14-09-1923. 799

«Este decreto não pôde, porém, ser executado, porque não foi ratificado pelo Estado português, cuja intervenção era indispensável, não só sob o ponto de vista legal, mas sobretudo sob o ponto de vista prático, para pôr em funcionamento a nova organização bancária. Gerou-se, deste modo, uma situação de impasse, que duraria até 1926», ano em que finalmente foi criado o novo banco. Nuno Valério (coord.), História do sistema bancário Português, Vol. I, p. 218.

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Na capital portuguesa, onde desembarca a 4 de Outubro, Norton irá ver se

convence o governo de António Maria da Silva a pressionar a banca a conceder o

empréstimo a que o BNU se comprometeu e agora não quer honrar. Em Londres, para

onde se deslocará do mês seguinte, irá tentar persuadir a Diamang a conceder o

grande empréstimo consolidado, já previsto no contrato inicial de 1921, em condições

mais vantajosas do que aquelas que na Primavera/Verão de 1923 colocara em cima da

mesa e que Norton, sempre um duro negociador, recusara.

Além de contar com o apoio de parte importante das forças vivas de Angola,

Norton recolhe também francos apoios do comércio exportador da metrópole. Em

Janeiro de 1924, a Associação de Comerciantes do Porto escreve-lhe apelando a

medidas para ultrapassar o «mal que actualmente aflige a Classe Comercial do

Continente e Ultramar» devido à «franca hostilidade»800 do BNU. Na mesma altura, a

Associação de Lojistas de Lisboa reafirma a sua solidariedade com Norton, lamentando

a falta de coragem dos governos do país ao permitir que o BNU se comporte como

«um Estado dentro de outro, permitindo as maiores irregularidades e os mais criminosos abusos, em detrimento do Comercio exportador e da sua desnacionalização nas suas Colonias.» 801

Mas o prolongamento da crise das transferências estava a degradar de tal

forma a situação económica de Angola, que o comércio começa a dividir-se no apoio

ao alto-comissário e entra em greve em Março de 1924, o que agrava ainda mais a

situação. A Associação Comercial de Luanda mostra-se sensível aos argumentos do

BNU que contra-ataca, lançando a responsabilidade da situação sobre Norton e

afirmando a sua solidariedade com a atitude do comércio e a sua disponibilidade de

800

ANM, P. AC, Carta da Associação de Comerciantes do Porto a Norton de Matos, Porto, 08-01-1924. 801

ANM, P. AC 7, Cópia de carta do presidente da Associação de Logistas de Lisboa, Costa Lima, a Norton de Matos, Lisboa, 26-01-1924. Já em Julho a Associação escrevera a Norton a protestar contra a atitude do BNU. Of. da Associação de Lojistas de Lisboa a Norton de Matos, Lisboa, 17-07-1923, enviando cópia de circular do BNU destinada ao comércio exportador português. A Associação protesta que «não faz sentido que um Banco que tem contractos com o Estado dificulte as transacções comerciaes com as nossas colonias, duma forma absolutamente impossivel de ser aceite por vexatoria e prejudicial. (..) O referido Banco que goza de excepcionaes previlegios descontava, até ha bem pouco tempo, os saques sobre as Colonias, depois passou a entregar apenas 50%, em seguida só aceitava as letras á cobrança e fazendo muito morosamente as suas liquidações; agora recorre ao extremo inaceitavel de reter o valor das exportações até quando muito bem lhe aprouver e dele não precisar, naturalmente. [§] (…) o comércio exportador suspenderá as suas remessas até que sejam tomadas as providencias que o caso requere (...)».

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recomeçar as transferências, assim que o alto-comissário saia da sua intransigência802.

Terá sido nessa altura que o general terá soçobrado:

«Combati enquanto senti a Provincia a meu lado. Quando ela me principiou a tirar o apoio cedi. Os culpados da minha queda foram única e exclusivamente as forças vivas de Angola. N.M.» 803

Na metrópole, nomeadamente, no Parlamento, a polémica sobre Angola estava

ao rubro, servindo de arma de arremesso contra o governo de Álvaro de Castro que,

após a queda do executivo de António Maria da Silva nos finais de 1923, e o brevíssimo

governo nacionalista de Ginestal Machado de um mês, assumira o poder, com um

programa que colocava à frente de qualquer outra agenda a resolução do problema

financeiro do país que atingira níveis verdadeiramente dramáticos804. Álvaro de Castro,

ex-democrático e ex-nacionalista, criara um grupo parlamentar dissidente do Partido

Republicano Nacionalista no final do mês anterior, precisamente por não ter

conseguido fazer vingar, no seio dos nacionalistas, a sua proposta de colaboração

governamental com os Democráticos, num governo de salvação nacional presidido por

Afonso Costa, patrocinado pelo Presidente da República Teixeira Gomes.

Falhadas as negociações com Costa, expressamente vindo de Paris para esse

efeito, é Álvaro Castro a assumir a chefia de um governo de que fazem parte alguns

ministros democráticos, entre os quais o detentor da pasta das Colónias, Mariano

Martins. É a este último que o deputado nacionalista Cunha Leal dirige, em Fevereiro

de 1924805, uma interpelação sobre a administração de Norton de Matos em Angola.

Ao atacar Norton ataca os aliados Democráticos do seu antigo correligionário político,

802

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Tel. cifrado de encarregado do governo a Alto Comissário - Agência Angola «exigindo alteração premio Alto Comissariado entregue dinheiro Metropole quantias pagas 1924 por sua conta que diz eram destinadas comércio». 803

ANM, P. AC 7, Mç. 6, Nota mns. aposta cópia tel. de N. de Matos à Associação Comercial de Luanda, 17-03-1924. As forças vivas da metrópole, nomeadamente a indústria têxtil do norte, fortemente dependente do mercado colonial, também culpam Norton. Sobre o impacto dessa crise na indústria têxtil portuense cf. António Telo, Decadência e queda da I República Portuguesa, Vol. 1, p. 289. 804

Em finais de 1923 «o Estado ameaça parar os pagamentos, os bancos abrem falência em cadeia, as taxas de juro atingem valores nunca vistos, o crédito está praticamente paralizado, a fuga de capitais é florescente e a taxa de inflação atingiu o seu máximo no ano transacto». António Telo, Op. cit., p. 226. 805

Após algumas picardias entre Cunha Leal e Norton de Matos em sessões anteriores, Cunha Leal faz uma interpelação ao ministro das Colónias sobre a administração de Angola a 20 e 21 de Fevereiro de 1924. Intervém novamente a 26 do mesmo mês, comentando as explicações dadas por Norton de Matos, numa intervenção começada a 22 e concluída a 25. Além da moção de Cunha Leal, outros deputados apresentam moções (Paulo Cancela de Abreu e Abílio Marçal) que são votadas a 10 de Março. DCD, Sessões de 20, 21, 22, 25 e 26 de Fevereiro e de 10 de Março de 1924.

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agora à frente do governo806. E ao pôr em relevo o que considera serem os gastos

perdulários do governo de Angola, obriga o governo de Álvaro de Castro –

caracterizado, precisamente, por uma ambiciosa política de redução do desequilíbrio

das finanças públicas – a definir-se quanto à solidariedade financeira com a sua maior

colónia, que Norton viera a Lisboa expressamente solicitar.

Em alguns aspectos, a interpelação de Cunha Leal revela-se especialmente

certeira, levando Norton a admitir na Câmara dos Deputados que ultrapassou

formalidades legais sempre que o superior interesse público assim o exigiu. Como não

tinha dúvidas quanto ao fim iminentemente patriótico que o movia, tendo aguda

consciência de quão ambicioso ele era e, simultaneamente, muita pressa em actuá-lo,

por vezes tomou decisões na fronteira da legalidade, reconhece.

Assim, quando colocado perante a resistência passiva dos burocratas do

Ministério das Colónias, empenhados em boicotar o pagamento ao pessoal técnico,

operário e outro para vários serviços que os seus secretários provinciais contrataram

ainda em Lisboa, com a sua autorização, não está com meias-medidas, decretando que

os contratos «são considerados em vigor, sem mais formalidades»807. Na Câmara dos

Deputados, admite:

«É claro que êste decreto é violento. Saltei, evidentemente, por cima da lei. Mereço reparos, sou o primeiro a reconhecê-lo. Mas eu só sei governar assim (Apoiados) e só assim aceito as responsabilidades de Govêrno. Quando em face de uma greve, de uma resistência passiva, ou de uma rebeldia, eu não hesito em saltar por cima da lei.»808

Seria, até, excessiva uma tal admissão de culpa, pois estaria dentro das suas

atribuições legais como alto-comissário prosseguir com os contratos mesmo sem o

visto do Conselho Superior de Finanças – pelo menos no entendimento do ministro

806

O «clima tenso» e «toada ressabiada, próprios de quem se sentira atraiçoado» marcam o debate político nestes primeiros tempos do governo de Álvaro de Castro, sob a batuta do tonitruante orador que é Cunha Leal. Luís Farinha, Francisco Pinto Cunha Leal, intelectual e político: um estudo biográfico (1888-1970), Tese de doutoramento na FCSH da UNL, Lisboa, 2003, policopiada, p. 295. 807

«Decreto nº 55, mandando considerar em vigor todos os contratos de pessoal assinados em Lisboa pelos Secretários Provinciais» in Província de Angola: Providências Tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como Alto Comissário da República e Governador-geral, Abril a Dezembro de 1921…, pp. 130-131. 808

DCD, Sessão de 22-02-1924.

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Mariano Martins809. É um facto, porém, que em alguns contratos para fornecimento de

materiais de construção, reconhece ter prescindido, no caso das obras nos portos do

Lobito e de Luanda, de concursos públicos. Quer porque era necessário andar

depressa, quer porque o interesse nacional assim o exigia. Deste modo pretendia

evitar a penetração pacífica de potências estrangeiras em colónia portuguesa, a

pretexto dos capitais injectados em Angola810.

A acusação mais incisiva de Cunha Leal, porém, acaba por ser relativa aos

dinheiros públicos gastos em publicidade a Angola que, frequentemente, não se

distinguia de publicidade ao alto-comissário. Este último não tinha dúvidas de que a

tarefa que tinha em mãos exigia, por um lado, conquistar a opinião pública portuguesa

para a causa de Angola e, por outro, fazer saber no estrangeiro que o país estava a

investir na sua mais rica colónia. O trabalho de lobbying junto da imprensa lisboeta

que três dos seus colaboradores do seu primeiro governo de Angola tinham levado a

cabo no Verão de 1914811 fora apenas um ensaio para o que acontecerá no seu

segundo governo, agora de uma forma institucionalizada. Um daqueles colaboradores,

Tomás Fernandes, na altura seu chefe de gabinete, preside agora à Agência Geral de

Angola, organismo que, entre as suas funções tem o dossier da propaganda e

informações. A Cunha Leal, que o acusa de usar os serviços desta agência pública para

fazer não a propaganda de Angola mas a da sua própria pessoa e, de o fazer através de

uma contabilidade paralela, Norton responde com um argumento e uma admissão. O 809

Na versão do ministro Mariano Martins, a decisão de Norton, de validar os contratos mesmo sem o visto do Conselho Superior de Finanças, encontrava-se dentro das suas atribuições legais como alto-comissário. Não teria sido necessário usar de um acto de poder pessoal, publicando um decreto, teria bastado um despacho (o que não quer dizer que todos os seus actos, como os de qualquer político, não possam ser escrutinados, inclusive em foro judicial, caso alguém se sinta lesado e intente uma acção). Seja como for, Mariano Martins não tem dúvidas que Norton de Matos teve em vista acautelar, como de facto acautelou, o interesse público: «Pois então tinha sido contratada uma certa quantidade de pessoas, pessoas que tinham já recebido adiantamentos para viagem, que tinham recebido vencimentos adiantados, quantias essas que o Estado tinha despendido, e depois de tudo feito o Conselho Superior de Finanças dava esses contratos como nulos? Fez muito bem o Sr. Alto Comissário e eu suponho que qualquer pessoa que estivesse nas suas circunstâncias não podia nem devia proceder de modo diferente, porque em primeiro lugar estão os interêsses do Estado». DCD, Sessão de 27-02-1924. 810

«Quando, por exemplo, se trata da construção de um porto e reconhecemos que êsse porto não pode ser construído por empreiteiros nacionais, nós não devemos - é, pelo menos, esta a minha opinião - abrir o respectivo concurso no estrangeiro, pois pode convir-nos não entregar os trabalhos a empreiteiros de determinada nacionalidade ou dividi-los por empreiteiros de nacionalidades diferentes, tomar, emfim, cautelas de carácter político, no sentido, é claro, de política internacional, que nos devem afastar dos concursos». DCD, Sessão de 22-02-2014. 811

Vide as nossas considerações mais atrás nesta tese, no final do Capítulo II.

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primeiro é que o serviço nunca foi considerado secreto, estando tudo documentado na

contabilidade oficial. A segunda é que, no início, houve «irregularidades, sobretudo

excessos, abusos mesmo» que reprimiu «imediatamente»812. Quanto aos elogios à sua

pessoa que constam dos ditos artigos – que em alguns casos reconhece foram pagos,

noutros desmente ou alega desconhecer – considera-os «até certo ponto naturais» 813,

sendo, por extensão, elogios à província de Angola. Ao egocentrismo destas últimas

afirmações ainda voltaremos, por ora vale a pena salientar que Cunha Leal aclarará a

memória de Norton ao publicar documentos da Agência Geral de Angola que provam

pagamentos generosos à imprensa em troca de artigos elogiosos814.

Outros argumentos parecem acertar claramente ao lado815 e são rebatidas pelo

visado com argumentos convincentes. É o caso do alegado excesso de contratação de

funcionários por Norton que, atendendo ao número absolutamente irrisório de

funcionários existentes numa colónia do tamanho de Angola, está, afinal, muito longe

de chegar para as necessidades. Outros, relativos aos alegados gastos luxuosos com

carros, garagens e casas para o alto-comissário, ou com viagens pela colónia ou à

vizinha Katanga, são desmontados ponto por ponto. Trata-se, sobretudo, de um modo

de fazer política, de alguém que se recusa a ficar confortavelmente sentado em

Luanda a governar platonicamente sobre uma imensidão de território que desconhece

e que, na realidade, não domina. Trata-se de um político que, para conhecer e poder

dominar o terreno, faz gala de chegar onde nenhum outro governador tinha antes

chegado, abrindo estradas à sua passagem em sítios onde nada havia que

remotamente se parecesse a um caminho, montando acampamento para dormir e

para cozinhar para si e para a sua comitiva onde casa alguma havia. Trata-se de tomar

o pulso a pessoas e situações e de mostrar que Portugal tem autoridade sobre todo o

812

DCD, Sessão de 22-02-2014. 813

Idem. 814

Cunha Leal, Caligula em Angola, Lisboa, 1924. 815

Ressalvamos, naturalmente, que não pretendemos aqui fazer uma avaliação do fundamento de cada uma das acusações de Cunha Leal nem, tão-pouco, do juízo global que faz da acção de Norton, assuntos que implicariam uma investigação nos arquivos administrativos do governo de Angola da época, para os casos concretos apontados, e, sobretudo, implicariam uma investigação aprofundada sobre a situação financeira e económica de Angola e de Portugal nos primeiros anos da década de 20, que sai fora do âmbito da nossa tese.

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território, demonstrar que o conhece e o governa efectivamente816.

As acusações de Leal são, sobretudo, um ataque ao político e ao seu modo

invulgarmente independente de fazer política, embora, bem ao estilo tonitruante de

Leal, aproveite para atacar o homem e a sua personalidade – que, aliás, se prestava

sobremaneira a tal. Calígula de Angola é o epíteto assassino que atribui a Norton e que

pairará como uma sombra durante o resto da sua vida. É certo que, como sublinhará a

representação diplomática da Grã-Bretanha em Lisboa, Leal ressalva, em sede

parlamentar, que não acusa Norton de qualquer envolvimento em corrupção ou

malfeitoria de que tivesse lucrado pessoalmente. Debalde. Como sempre acontece

neste tipo de polémicas, a ressalva permaneceu no esquecimento como nota de

rodapé, ao passo que na memória que perdurou, mil vezes citada por todos os seus

adversários políticos, o que vinga será a sua associação à imagem do cruel imperador

romano que se fez adorar como deus. Vinga, sobretudo, porque as palavras foram

traduzidas numa imagem poderosa, do traço de Almada Negreiros: um Norton com

farda de general, coroa de louros, manto e pose imperial, a ser adorado por um par de

mulheres africanas seminuas. O desenho de Almada é capa do livro que Leal publica

logo após a polémica, onde transcreve as suas intervenções parlamentares, junta

documentos e um prefácio demolidor. Com este livro, retratando um Norton-

imperador, faz parceria uma outra publicação que o retrata como rei, da autoria de

uma das fontes de informação de Leal: Venâncio Guimarães que assim se vinga do

alto-comissário lhe ter estragado o negócio de angariador.

A Câmara dos Deputados não aprovará a moção de Cunha Leal contra Norton,

aprovando uma outra moção, de compromisso, da autoria do democrático Abílio

Marçal, que junta a um elogio genérico à administração de Norton em Angola um

considerando instando o ministro das Colónias a exercer os poderes fiscalizadores que

816

«Eu não vejo melhor forma de fazer administração do que cruzar a província e isso só se pode fazer de automóvel porque as distâncias são grandes. (…) É o estritamente essencial, desde que se julgue como facto de boa administração a constante movimentação do Governador. Realmente, eu sem ver com os próprios olhos, sem falar com os próprios administradores, sem ouvir as associações de comércio locais, e os próprios indígenas, sem ver os trabalhos de construção e instalação, não posso fazer marchar Angola ao nível de progresso que a quero elevar. São bem abençoados os automóveis para êste efeito, e compensam bem, em benefícios para a Nação, o preço que êles custam». DCD, Sessão de 22-02-2014.

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legalmente possui817. A borrasca fora adiada e Norton voltará no final do mês para

Londres, tentando concluir favoravelmente as negociações de um grande empréstimo

com a Diamang. No horizonte, está já a perspectiva de abandonar o alto-comissariado.

A guerra com o BNU está claramente perdida, embora o «seu» Banco de Angola

venha a vingar dois anos após o fim do seu alto-comissariado. Já o pacto com o

colosso, provará ter pernas para andar. A Diamang, que um ano antes alegava não

entender porque é que Norton não aceitava o meio milhão de libras esterlinas de

empréstimo que a Companhia estava disposta a conceder-lhe a um juro de 8% ao

ano818, acabará por concordar emprestar-lho a 7% sem quaisquer taxas de emissão,

comissões ou encargos adicionais. Será um empréstimo consolidado de um milhão de

libras esterlinas, englobando as 509.537 já anteriormente emprestadas819. O «Termo

de contrato provisório»820 é assinado no escritório da Agência de Angola em Londres a

817

A 10 de Março, a Câmara vota três moções. As duas primeiras são muito críticas relativamente ao alto comissariado de Norton e ao regime dos alto-comissariados em geral, visando a de Paulo Cancela de Abreu também especificamente o alto-comissário de Moçambique. A moção de Cunha Leal recebe 26 votos a favor e 45 contra. A moção do deputado monárquico Cancela de Abreu (vide texto no DCD, Sessão de 29-02-1924) tem 22 votos a favor e 42 contra. A terceira, da autoria do democrático Abílio Marçal, visa colocar água na fervura, sendo votada em duas partes. O considerando em que a «A Câmara, reconhecendo que a administração do alto-comissário do Angola exercida com inteligência, honestidade o patriotismo, tem promovido a prosperidade daquela florescente colónia» é aprovado por 53 deputados, recebendo 24 votos contra (o nº registado em acta é diverso deste que, porém, deve ser o correcto visto corresponder à contagem dos nomes dos deputados, cuja lista consta também da acta, por ter sido requerida a votação nominal). Já a segunda parte é aprovada também pelos críticos, visto, como declara Carvalho da Silva, reconhece-se nela que «na lei existem disposições que não só dão direito mas impõem ao Poder Central o dever do fiscalizar os actos dos Altos Comissários e dos funcionários administrativos. Esta parte representa uma censura ao actual Ministro das Colónias e bom assim aos seus antecessores, o por êste motivo damos-lhe o nosso voto». (Idem). O excerto da moção em causa é: «considerando que, para execução do regime determinado na lei constitucional 11º 1:005, pode e deve o Govêrno Central exercer permanente fiscalização sôbre os actos das corporações e entidades que, nas colónias, tem atribuições administrativas o legislativas, o que portanto não só o Alto Comissário como o Poder Central têm na lei os meios necessários para fiscalizarem e fazerem fiscalizar os serviços públicos, em ordem a mantê-los dentro daí, normas legais e regulamentares». (DCD, Sessão de 10-03-1924). 818

ANM, P. AC 1, [Góis Pinto], [Relatório de] Entrevistas de Londres, S.l., S.d., mns., anexo a carta de Ernesto [Góis Pinto] a José [Norton de Matos], Lisboa, 24-07-1923, mns. 819

A decisão tomada em Agosto de 1923, de o Estado passar a facilitar à Diamang mão-de-obra como se fosse para si próprio, directamente e de forma sistemática, terá certamente pesado a mudança de posição da Companhia. Um outro factor que terá incentivado a Diamang a aceitar o novo acordo é o facto de o montante anteriormente emprestado ter sido em francos belgas e esta moeda se ter desvalorizado fortemente, sendo vantajoso para a Companhia que voltassem a valer o que valiam inicialmente, como faz notar Cunha Leal no DCD, Sessão de 10-12-1925. 820

ANM, P. AC 4, J.M.R. Norton de Matos, alto-comissário, Ernesto Jardim Vilhena, Administrador-delegado, Tomás Wyilie Fernandes, Luís Daniel Trancoso Leote do Rego, J. A. dos Santos Lucas, Cópia de

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7 de Junho por um alto-comissário já demissionário que faz questão de deixar esse

dossier encerrado antes de tomar posse do seu novo cargo de embaixador de Portugal

em Londres. Simplesmente, Miguel de Almeida Santos, que deixara como encarregado

do governo de Angola, não há maneira de lhe telegrafar para Londres confirmando que

o Conselho Legislativo aprova as bases do empréstimo, formalidade sem a qual o

contrato não pode ir avante.

Norton, que está a par da tempestade política que a notícia da sua nomeação

para a embaixada está a provocar em Lisboa, não tem ilusões sobre os motivos de esse

telegrama não lhe ter chegado. Envia, mesmo assim, um ofício ao ministro das

Colónias sintetizando as vantagens e desvantagens do contrato821. Estas últimas são

basicamente duas: passar a pagar um juro ligeiramente superior pelo pouco mais de

meio milhão de libras já emprestadas822 e a amortização passar a iniciar-se cinco anos

mais cedo do que no empréstimo anterior. São alterações que considera serem

largamente compensadas por duas vantagens principais:

«1ª) Realização de um empréstimo de £490.000 que coloca, por dois anos económicos, a Provincia de Angola em condições de continuar as obras de fomento iniciadas, com absoluta independencia das entidades financeiras que tudo fazem para serem as únicas fornecedoras de moeda forte ao Estado, e resolvendo-se assim, em um dos seus mais importantes aspectos, a actual situação financeira da Provincia; 2ª) Colocação em Londres, tomado firme por importantes grupos financeiros, de um empréstimo emitido pela Provincia de Angola ao par e a sete por cento, creando assim um precedente para futuras operações a realizar pelo Governo da Metropole e pelos Governos Coloniaes.»

O ministro Mariano Martins, em fúria por ter sido, também ele, colocado na

ignorância de que Norton iria assumir o lugar de embaixador, decide não lhe dar

cobertura e deixa cair o empréstimo. Almeida Santos e o Conselho Legislativo, com

Norton ausente de Luanda há nove meses e sabendo que já não regressará, não têm

força para avançar contra a vontade do ministro. Norton ainda terá ponderado – pelo

menos assim o alega num escrito posterior – tomar uma medida drástica: embarcar

Termo de Contrato Provisório feito entre o Estado e a Companhia de Diamantes de Angola, Londres, 07-06-1924. 821

ANM, P. AC 4, Cópia de ofício de Norton de Matos ao Ministro das Colónias, Londres, 16-06-1924. 822

As £509.537 já emprestadas estavam a pagar uma taxa de juro igual à taxa de desconto do Banco da Bélgica, que em Junho de 1924 correspondia a 6,5% mas que poderia sofrer variações. Com o novo contrato, esse valor já emprestado junta-se às £ 490.000 agora colocadas à disposição, ficando o total, no valor de £1.000.000 a pagar uma taxa fixa de 7%.

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para Angola «para aprovar o empréstimo pelos Conselhos Executivo e Legislativo, e

caminhar para a frente» mas deteve-se pois «seria a revolta e isso não estava no meu

feitio e não seria útil para o meu país.»823.

É, no entanto, pouco verosímil que tivesse chegado a encarar seriamente tal

hipótese. Antes de mais, era sua convicção profunda que Portugal e o império

constituem «Pátria única e indivisível», como enfaticamente lembrara no último

discurso em Luanda ao Conselho Legislativo824. É certo que o afirmara num contexto

de rejeição liminar do nativismo, ou seja, referindo-se a eventuais intuitos separatistas

dos filhos da terra, a quem tratara com particular acinte. Assim, na eventualidade de

decidir enveredar por alguma acção separatista, teria de poder contar com os colonos

brancos – o que sabia melhor do que ninguém não poder fazer, por serem em número

absolutamente insuficiente para conseguir sustentar tal aventura.

Já no ano anterior, Afonso Costa aludira825 ao facto de a acção política de

Norton poder ter em vista o separatismo. E é possivelmente aqui que bate o ponto que

a tantos políticos em Lisboa e a Costa em Paris incomoda: a extraordinária

independência de Norton na sua acção política em Angola. A sua política financeira é

apenas um aspecto dessa característica geral. Na verdade, independentemente da

análise financeira826 que se possa fazer dos méritos e deméritos tanto deste

empréstimo em particular como da sua política financeira em geral, vale a pena

reflectir sobre o que revela de Norton como político.

Se no seu primeiro mandato em Angola crescera e se impusera como político,

nos anos 20 apura extraordinariamente o talento de estadista que já desenvolvera nos

governos do país durante a guerra. Identificados os bloqueios institucionais que lhe

tolheram os movimentos nos anos 10, não aceitou voltar, mesmo que com um cargo

em teoria mais poderoso, sem garantir, primeiro, que esses poderes ficassem

devidamente esclarecidos, em letra de lei. Garantida a margem de manobra política e

823

ANM, P. AC 6, Mç. nº 8, mns., do punho de Norton, s.d. 824

Norton de Matos, «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Presidente» in Actas do Conselho Legislativo: Sessão de Encerramento em 14 de Setembro de 1923. 825

Em conversa em Paris com Góis Pinto. ANM, P. AC 1, Góis Pinto, [Relatório da] 2ª Conferencia com o Dr. Affonso Costa, S.l., S.d., mns., anexo a carta de Góis Pinto a José [NM], Loanda, 09-08-1923, mns. 826

Que sai fora do âmbito da nossa tese.

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financeira indispensável, aplicou-a, na realidade do terreno, de uma forma

excepcionalmente independente, para escândalo de muitos dos seus pares.

Definitivamente, demonstrava ser um político e não apenas um colonial. Mais: um

político com ideias próprias sobre a missão civilizadora que a República deve encarnar

e como financiá-la, juntando uma invulgar determinação em levá-la à prática.

O Foreign Office concorda com esta visão, tanto que considera especialmente

honroso que um político da craveira de Norton vá ser a cara da representação

diplomática de Portugal em Londres precisamente quando esta é elevada à categoria

de embaixada, em simultâneo com a representação da Grã-Bretanha em Lisboa. Ironia

do destino, a embaixada fora uma promessa dos britânicos a Sidónio Pais, meses após

este ter derrubado por uma revolução o governo que Norton interinamente chefiava.

Tal como acontecera no final de 1917, agora quase todos o abandonam,

começando pelos correligionários do partido democrático, ainda formalmente

chamado PRP. Profundamente fragilizado por várias cisões à esquerda e à direita, o

PRP é uma sombra do passado, mas discute acesamente nesse Verão de 1924 a

irradiação de Norton das suas fileiras827. A expulsão não irá avante mas os

Democráticos estarão na linha da frente de um coro de críticos que o acusam de

desertar do seu posto. Culpá-lo-ão, ainda, de todos os males de Angola durante os

anos que se seguirem828. Contudo, será o ministro Mariano Martins a suspender

arbitrariamente o empréstimo que Norton deixara já assinado com a Diamang829.

827

Vasco Borges informa o comandante Carvalho Crato do que se passou nas reuniões do partido, que por sua vez coloca Norton ao corrente. Os seus camaradas de partido que ainda em Março tinham votado favoravelmente a moção parlamentar de apoio à administração de Norton em Angola proclamam agora que, afinal, ela foi desastrosa. ANM, P. AC 5, Mç. 24, Carta de José E. Carvalho Crato a Norton de Matos, Lisboa, Agência Geral de Angola, 11-06-1924. 828

«Mesmo em regime de ditadura militar, o fantasma da actuação do general Norton de Matos parecia ainda pairar sobre a vida financeira de Angola». Nuno Valério, História do sistema bancário Português, Vol. I, p. 242, nota 68. 829

O administrador interino dos Caminhos-de-Ferro Portugueses é dos poucos a solidarizar-se com Norton e a apontar os graves problemas que virão com o procedimento de Mariano Martins: «Falhou tanto em dignidade, que o próprio empréstimo, que sendo pouco é indispensável, foi sustado arbitrariamente, suspendendo-se as autorizações parlamentares anteriores. Contra isto ainda nenhum político, nem colonial, se levantou, fechando os olhos à situação, deixando-a agravar-se com a entrada do próximo ano económico, levando talvez à suspensão dos trabalhos dos portos e às inevitáveis indemnizações. A cegueira não lhe deixou vêr isso. O que é facto é que até agora a não ser o ministro dos Estrangeiros, ninguém se levantou em defesa de V. Exª, os políticos empenhados em o apresentar à província e ao paiz como um trânsfuga, que deserta do seu posto, procurando-lhe o odio e as malquerenças dos coloniaes, que já individualmente o censuram, como muitos dos funcionários. Todos

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Inviabiliza, assim, qualquer possibilidade de se ganhar tempo e de o novo ano

económico 1924-1925 se iniciar sem o espectro do caos a que o incumprimento de

encomendas feitas e o correspondente pagamento de indemnizações levaria à

província. A prioridade é Lisboa, onde Álvaro de Castro, que acumula a chefia do

governo com o Ministério das Finanças, está empenhado num programa de

estabilização monetária que conseguirá finalmente inverter o ciclo de inflação

descontrolada na metrópole830, embora o governo caia logo em Julho, antes de os

resultados da sua política serem visíveis. A sucessiva dança dos governos durante os

doze meses seguintes, impedirá uma solução para a crise financeira de Angola. À saída

de Norton seguem-se as comissões de estudo, a incapacidade de tomar decisões e o

desnorte. Até que a República Portuguesa passa pelo vexame de letras que avalizou

serem protestadas831, provocando um agravamento exponencial da crise financeira e

política de Angola, com os estilhaços a atingir o país nas vésperas do 28 de Maio e da

ditadura militar.

Na raiz de tudo, mais do que a pendência financeira, encontra-se uma questão

eminentemente política: a incapacidade de as elites se entenderem sobre que missão

civilizadora deve a República Portuguesa protagonizar em Angola. Apesar do

estabelecimento do regime dos alto-comissariados parecer indicar que Portugal estaria

desde o governo, os partidos, até aqueles se esquecem, que o deixaram isolado nesta tremenda luta com o Ultramarino, todos dizendo está mal feito, mas nenhum, contra todo o interesse patriótico, procurando ajudá-lo e dar-lhe força para essa luta, apenas fazendo de V. Exª uma cabeça de turco. Desconheço a história da nomeação de V. Exª para a embaixada, mas o que não posso deixar de reconhecer, é que V. Exª tinha o direito desde que o abandonavam e lhe não queriam reconhecer o seu esforço patriótico, que muito ainda assim deixou ficar marcando a sua passagem (…)». ANM, P. AC 4, Carta de Francisco Pinto Teixeira a Norton de Matos, Estoril, 15-06-1924, mns. 830

«A redução do desequilíbrio das finanças públicas foi uma das componentes-chave do programa de estabilização monetária de Álvaro de Castro, que, com um sucesso fulgurante, conduziu ao fim brusco da inflação em 1924. É difícil encontrar no século XX outros programas de política económica que tenham produzido resultados tão impressionantes e tão rápidos. A partir de 1924, o Estado ficou impedido de continuar a recorrer ao Banco de Portugal para obter financiamentos e passou a poder contar apenas com o que pudesse conseguir na Caixa Geral de Depósitos e nos mercados de capitais, interno e externo. A estabilidade financeira estava praticamente recuperada quando a I República caiu com o golpe militar de 28 de Maio de 1926». José Silva Lopes, «Finanças públicas», p. 270. 831

Curiosamente, o próprio Cunha Leal é muito crítico ao facto de se ter deixado a situação chegar a este ponto, esquecendo-se da responsabilidade que ele próprio, tal como a Câmara dos Deputados e os governos que se sucederam desde o Verão, teve nesse desenlace, ao provocarem a suspensão do empréstimo com a Diamang: «O governo português tinha obrigação de não deixar protestar as letras, pagando-as, embora depois procurasse regular a situação com as respectivas entidades responsáveis por tais compromissos, e assim teria, na minha opinião, evitado o cataclismo». Intervenção de Cunha Leal, DCD, Sessão de 10-12-1924.

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decidido a levar a sério essa missão, ocupando e desenvolvendo Angola, a verdade é

que para muitos portugueses ela, tal como as restantes colónias, continuava a ser vista

com uma quinta de rendimento, tal como na década anterior ainda era, nas palavras

de Freire de Andrade ao então governador Norton de Matos832. Dela brotariam todas

as riquezas, reais ou imaginárias, actuais e potenciais, para único e exclusivo benefício

da metrópole e solução mágica para todos os problemas do país.

A falta de consenso no seio da classe política metropolitana em abdicar do

máximo de rendimentos imediato, em prol do investimento na quinta e um

rendimento maior no futuro, tornava a missão de Norton de Matos uma missão

impossível. Na hora da verdade, ninguém estava disposto a pagar a factura de ter um

império. A polémica parlamentar sobre o Calígula de Angola foi apenas uma das

muitas expressões dessa divergência mais profunda sobre o que fazer com o «ovo

atravessado» na «galinha denominada Angola»833 que dividia não apenas o meio

político mas a própria sociedade portuguesa, de uma forma transversal. Era uma

pergunta que exigia uma resposta política sobre qual o país que a República

Portuguesa pretendia ser no concerto das nações. Não tendo conseguido o apoio da

nação para a resposta a essa pergunta, Norton levará o seu talento político para outra

sede: a embaixada de Portugal na capital da sua mais antiga aliada. É certo que parece

inegável que, como sentencia Cunha Leal, «o astro-Norton entrou em franco

declinio»834. Porém, não é líquido que em Londres se tenha limitado a usufruir de uma

prateleira dourada835, apesar do prestígio simbólico do lugar se adequar que nem uma

luva ao seu estatuto, agora plenamente consolidado, de figura de referência da

República, mesmo se fundamente controversa.

832

Vide Capítulo II. 833

Retomamos aqui a expressão com que Rodrigues Gaspar resume a contenda Cunha Leal – Norton de Matos em sede parlamentar: «Tive até a impressão de que assistia a um combate de um galo novo, cantando alto e até fora de horas, contra outro galo mais velho, com esporões, e tudo isto a propósito de uma galinha denominada Angola, que tem como que um ovo atravessado». DCD, Sessão de 29-02-1924. 834

Cunha Leal, O Calígula em Angola, p. 179. 835

Após alguma convivência com as fontes diplomáticas deste seu mandato em Londres, a nossa ideia inicial de que a embaixada teria sido uma espécie de prateleira dourada para Norton, alterou-se. Norton terá conseguido aliar o talento de estadista que foi apurando ao longo da sua carreira pública com uma grande capacidade de trabalho e domínio técnico dos dossiers. Apesar de, na gestão da economia desta dissertação de doutoramento, não ser possível aprofundar, por ora, este período, é esta a hipótese que avançamos para ser confirmada ou infirmada por uma investigação futura.

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CAPÍTULO V – UM SÍMBOLO DA REPÚBLICA E UM CHEFE PARA A OPOSIÇÃO? (1926-1935)

Não decorrera ainda um mês desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926

quando o general Norton de Matos, então com 57 anos, é demitido de embaixador de

Portugal em Londres. Num prenúncio de embates futuros em que ambos se

digladiarão, é o general Óscar Carmona, então ministro dos Negócios Estrangeiros, a

assinar o decreto de demissão. Nas palavras de Norton, será o início de novos tempos,

o dos pigmeus, que irão calcar a nação836, embora nos anos iniciais da Ditadura Militar

tudo, ou quase tudo, esteja ainda em aberto quer quanto ao figurino político para o

país quer quanto ao papel que ele próprio irá desempenhar nesse futuro.

No seio da ditadura sucedem-se as manobras palacianas que, depois de

apearem os próprios autores militares do 28 de Maio, vão colocando sucessivamente

no governo personalidades de diferentes facções e com diferentes respostas para a

crise da República, que vão medindo forças sob a égide de Carmona. Este rapidamente

ascende a árbitro do regime, primeiramente como chefe do governo de uma ditadura

desprovida de figura presidencial e, depois, como Presidente da República interino, em

acumulação com a presidência do Ministério. O decreto de nomeação é assinado pelo

próprio, em conjunto com todos os ministros do governo837. Quando, a 25 de Março

de 1928, um plebiscito nacional o sanciona como Presidente passará a ser, na leitura

de Norton, «um ditador de facto e de direito»838. Muito embora não tarde até que

836

«Hontem ao anoitecer vieram trazer-me a notícia da proclamação da Republica em Espanha. Grande notícia! Que grande satisfação e enorme alegria me invade! A Humanidade caminha a passos seguros para a sua inteira libertação. E imaginam os pigmeus, que nos estão calcando há cinco anos, que podem manter em Portugal por muito mais tempo um regime despotico, de repressão de toda a liberdade individual e colectiva, de continuados atentados á dignidade humana.». ANM, Norton de Matos, [Diário Hospital Militar da Estrela], [Lisboa], Abril-Maio 1931, entrada de 15-04-1931, fls. mns. 837

Decreto nº 12.740, de 26-11-1926 in DG, I Série, Nº 267, de 29-11-1929. Carmona é presidente do Ministério desde 09-07-1926, passando, a 26-11-1926, a acumular a chefia do governo com a Presidência da República, a título interino, enquanto não se realizassem eleições. 838

«o general Carmona passou a ser um ditador de facto e de direito, consagrado por um plebiscito e tão absoluto como um monarca de direito divino, e, ao mesmo tempo, os ministros deixaram de ser ditadores porque dependem unica e exclusivamente do Chefe de Estado absoluto (..). Estamos, portanto, agora, não em face de uma ditadura revolucionária, como era a que imediatamente resultara do “28 de Maio”, e sim de um regime de absolutismo (…)». Norton de Matos, Carta aos combatentes de

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Norton passe a identificar António de Oliveira Salazar como o verdadeiro ditador de

facto – e, logo, o seu principal adversário político – nunca deixará de considerar

Carmona uma figura politicamente incontornável. Numa primeira fase, é o homem a

abater para que se consiga «derrubar por inteiro» a ditadura, sem que dela «fique o

menor vestígio»839. Passando depois a ser, ainda durante o período de Ditadura

Militar, o homem a convencer a patrocinar a transição para a democracia. De facto, o

papel arbitral de Carmona será fulcral para permitir a ascensão do jovem ministro

Salazar a chefe de governo e a protagonista de um novo modelo político que

finalmente liquidará a I República em Portugal, embora preservando o regime

republicano: o Estado Novo, cujas instituições fundamentais estarão definidas em

1933.

V.1. A insanável divisão da oposição. Norton e a via golpista: chefe militar ou

chefe político?

No período de indefinição que precedeu este desfecho, porém, não são raros

os partidários da ditadura que continuam a encará-la como uma pausa indispensável à

regeneração da República, ultrapassada a qual poderiam regressar a uma democracia

mais plena e funcional. Não são, igualmente, raras as ligações transversais à oposição,

especialmente nos meios castrenses.

Não admira, portanto, que, entre os partidários da ditadura então em plena

ebulição, haja quem veja Norton como o chefe que o governo da ditadura precisaria e

o tenha chegado a aliciar para assumir esse papel. A tentativa ter-se-ia dado em 1927.

Norton, porém, não tergiversa, recusando embarcar nessa aventura840.

Compreensivelmente, é no campo oposicionista que o seu nome mais circula

como chefe de um futuro governo de salvação nacional, a formar após o derrube da

Fevereiro de 1927, 22-04-1928, transcrita por A.H. de Oliveira Marques (coord..), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, Lisboa, Dom Quixote, 1985, p. 94. 839

Ibidem. 840

Cujos contornos são pouco conhecidos, à parte dois escritos privados de Norton, motivados pelo reencontro com esse amigo, que não nomeia, já na década de 40. ANM, P. Correspondência 1937-1945, [Norton de Matos], Uma diligência política, S.l., S.d., mns, não assinado mas do punho de Norton, anexo a rascunho de carta ao «bom amigo» que o visitara, Vila Norton, Algés, 13-07-1944, 14 fls. mns., com emendas, não assinadas, do seu punho.

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ditadura, como aconteceu aquando da revolta de Fevereiro de 1927841. Parece, no

entanto, pouco provável que Norton estivesse de alguma forma envolvido nesta

revolta fracassada ou não a teria considerado «um sacrifício inútil» para o qual foram

«arrastados» camaradas seus que acabaram por indirectamente contribuir para que

«criminosa e imbecilmente» fosse dado o que classifica como «o golpe de morte na

República»842.

Em Paris, também os exilados políticos da recém-formada Liga de Defesa da

República arquitectam elencos governativos para um cenário pós-revolucionário, entre

os quais o nome de Norton aparece como um potencial chefe de governo. A sugestão

é de Jaime Cortesão, numa reunião da Liga realizada no escritório de Afonso Costa no

final de Setembro de 1927. Significativamente, apressa-se a relegá-lo para a pasta dos

Negócios Estrangeiros e Colónias, apresentando duas razões para descartar o seu

nome da chefia do governo: «por ser General e também por ser um nome mais

discutível»843. Propõe, antes, Álvaro de Castro para o lugar. Um elenco governativo sob

a chefia deste último, com Afonso Costa nas Finanças, Norton nos Estrangeiros e

Colónias, Jaime de Morais no Comércio, e Sá Cardoso no Interior acaba por ser votado

por unanimidade. Norton, quando sabe, terá ficado assaz desagradado844.

Por essa altura, estaria já envolvido na preparação de uma revolta militar, pese

embora os contornos exactos do seu envolvimento não serem especialmente claros.

Em reunião da Liga de Paris em Novembro, José Domingues dos Santos faz-se eco de

uma conversa entre Norton e Norberto Guimarães, de que tivera conhecimento, em

841

Na composição desse governo de salvação nacional chefiado por Norton, surgem outras personalidades representativas das várias famílias políticas republicanas (Álvaro de Castro, Pina de Morais, Jaime de Morais, Afonso Costa, Matos Cid, Jaime Cortesão, Tamagnini Barbosa, Carvalho Crato e Sousa Dias). O elenco governativo é publicado a 07-12-1927 nos jornais Novidades e Portugal. Luís Farinha, O Reviralho: Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940, Lisboa, Estampa, 1998, p. 54. 842

Citado por José Norton, Norton de Matos: biografia, p. 315. 843

Junta Directiva da Liga, «ACTA Nº 10», Paris, 30-09-1927 in A. H. de Oliveira Marques (coord.), A liga de Paris e a ditadura militar (1927-1928) : a questão do empréstimo externo, Mem Martins, Europa-América, 1976, p. 29. Além de Costa, a Junta Directiva da Liga de Paris incluía nomes como Álvaro de Castro, José Domingues dos Santos, António Sérgio e Jaime Cortesão. A proposta de Norton para chefe de governo fora aventada por Jaime Cortesão, a par de outros dois nomes possíveis: Afonso Costa e Álvaro de Castro. Álvaro de Castro propõe Sá Cardoso e Afonso Costa propõe Álvaro Castro. 844

Segundo informação recebida por Jaime Cortesão. Junta Directiva da Liga, «ACTA Nº 15», Paris, 11-1927 in A. H. Oliveira Marques (coord.), A liga de Paris e a ditadura militar (1927-1928) : a questão do empréstimo externo, p. 41.

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que se conclui que «a marcha revolucionária vai bem, mas com característica diferente

da que lhe deseja dar a gente de Paris»845. A mulher de Norberto Guimarães teria

confirmado a Afonso Costa o bom andamento dos preparativos militares. Entre os

exilados de Paris, a convicção que há é que o movimento republicano militar em curso

iria desembocar numa nova ditadura militar, desta feita chefiada por Norton846.

O general, em resposta a uma carta da Liga tentando convencê-lo da

inoportunidade de um movimento militar, recebida a 18 de Novembro, assevera ao

genro de Afonso Costa que «os trabalhos revolucionários marchavam muito bem»847.

A revolução estaria para rebentar dentro de duas semanas, se não tivessem surgido

desentendimentos entre Norton e Jaime de Morais. Ante a perspectiva de um

movimento militar concorrente chefiado por Jaime de Morais, a Liga resolve adoptar o

conselho de Cortesão de que «seria preciso esclarecer o caso» e «pôr as coisas na

ordem», ficando por isso resolvido «oficiar a Norton de Matos comunicando que os

oficiais em Paris ficavam às ordens do comité»848. Ou seja, sendo preciso evitar o

desaire anunciado de duas acções militares descoordenadas, a Liga de Paris resolve dar

o seu apoio ao comité militar chefiado em Portugal por Norton.

Quando a conspiração transpira e Norton é preso para interrogatório, a recusa

deste em responder aos quesitos do ministro da Guerra, e a forma como o faz,

alegando não querer correr o risco de, inadvertidamente, prejudicar camaradas

seus849, não deixam grandes dúvidas quanto ao seu envolvimento. A pena imposta

pelo governo será a residência fixada nos Açores, onde será forçado a permanecer ano

e meio.

845

Idem, p. 40. 846

Em meados do mês, Costa faz-se eco de novas «notícias de Lisboa que lhe dão como certas inúmeras aliciações feitas por Norton de Matos»; do Porto, «os seus informes dizem que o baluarte da situação é a serra do Pilar». Junta Directiva da Liga, «ACTA Nº 16», Paris, 15-11-1927 in A. H. Oliveira Marques (coord.), A liga de Paris e a ditadura militar (1927-1928): a questão do empréstimo externo, p. 42. 847

A conversa é transmitida por Afonso Costa em nova reunião da Liga. Junta Directiva da Liga, «ACTA Nº 17», Paris, 25-11-1927 in Idem, p. 45. 848

Ibidem. 849

Resposta de Norton de Matos ao questionário do ministro da Guerra, Lisboa, 19-12-1927, que transcreve no seu diário de exílio. ANM, Norton de Matos, Diario. Iniciado em Ponta Delgada em 28-XII-27, Ponta Delgada e Moreira, 1927-1929, caderno mns., s.p.

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No final de Dezembro de 1927, quando o seu navio aporta na ilha de São

Miguel, Norton anota no diário: «Aqui estou pois no meu novo exilio, desta feita em

terra portuguesa.» A experiência do exílio, conhece-a bem. Se acabara de passar o

Natal longe da família, numa escala que o navio fizera no Funchal, o mesmo

acontecera já dez anos antes, em Gibraltar, onde então aportara num navio de guerra

britânico. Entre Gibraltar, Paris e, depois, Londres, onde finalmente se fixara durante a

expatriação sidonista, acumulara já um total de quase 16 meses de exílio. Nos Açores,

permanecerá outros longos 18 meses que põem à prova a sua proverbial capacidade

de adaptação a todos os climas e ambientes. Afinal, vivera anos a fio na Ásia e em

África e, ao contrário de outros europeus, nunca se isolara em redomas douradas para

coloniais. Simplesmente, lá, estivera como fazedor, tal como, de certo modo,

acontecera em Londres durante o período sidonista, em que pudera trabalhar.

Neste seu primeiro exílio sob a Ditadura Militar, pelo contrário, não exerce

qualquer profissão, e a ausência da possibilidade de fazer, que era precisamente a sua

imagem de marca, abala-o psicologicamente. Em São Miguel, vive num hotel, até que,

finalmente em companhia da família, arranjará uma pequena casa que, não obstante o

grande jardim, terras de cultura e estufas, considera a sua «prisão» e onde medita

sobre «a violência que» lhe «está sendo feita»850. O «cansaço de viver» cresce. As

privações financeiras afligem-no, tanto que, comenta, as autoridades escusam de se

apoquentar com a eventualidade de uma fuga pois, sem meios financeiros para

subsistir no estrangeiro e nenhuma vontade de se «desnacionalizar», não o fará.

Timbrou,

«em não receber de qualquer fundo revolucionario fosse o que fosse, em não aceitar ofertas, mais ou menos interessadas, de dinheiro que se me faziam. Ao menos continuo livre e independente. Espero que a Republica ou os amigos, se eu morrer antes de poder pôr tudo em ordem, se lembrarão de olhar pela situação da minha mulher.»

Na ilha, contacta com a alta burguesia local, tão «reaccionária» que é de

«estarrecer»851 e convive com outros deportados políticos852, reflectindo, com Foch,

850

ANM, «Apontamentos (...) ‘O meu testamento politico’», Ponta Delgada, 07-04-1929 – Algés, 14-10-1932, caderno mns., fl.9. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste caderno. 851

Norton de Matos, Diario. Iniciado em Ponta Delgada em 28-XII-27, entrada de 17 de Janeiro, s.p.

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sobre as qualidades de um chefe. Não tergiversar, firmando-se «nas decisões que

tomar, sem dar ouvidos a objecções ou comentários mantendo-se teimosamente na

linha de conduta que traçou» é uma delas, cuidadosamente registada no seu diário.

É como chefe, e um chefe deste calibre, que escreve aos combatentes da

revolta de Fevereiro do ano anterior, fazendo um retrato catastrófico da situação em

que Portugal mergulhou, quase dois anos após o 28 de Maio853: da «ditadura

revolucionária»854 inicial passara-se a um «regime de absolutismo». Em causa, está,

acredita, a própria independência do país que se perderá «se não houver na Nação a

energia e a vitalidade bastantes para o derrubar por inteiro, sem que dele fique o

menor vestígio» e voltar a viver «num regime de liberdade, de constituição

republicana, democrática e parlamentar, em que a Força Armada não seja um poder

da Nação». Andar a constituir governos imaginários sem ter alcançado antes a

liberdade é, assim, pura perda de tempo. A aposta deverá ser, pelo contrário, na união

de esforços para o derrube da ditadura. Essa união, essa frente, para ter sucesso, terá

de responder perante um comando único:

«Que se escolha um Chefe único, com plenos poderes, que tudo dirija, a quem todos obedeçam, que se cerque de um estado maior composto não de individualidades ou entidades políticas, mas de auxiliares dedicados e enérgicos, chefe a quem se forneçam todos os meios para poder levar por deante a difícil missão que o encarregaram. Estou certo de que no continente da Republica, ou perto

852

Em meados de Janeiro, 19 sargentos, deportados políticos recém-chegados a S. Miguel, vão apresentar cumprimentos a Norton que lhes declara recebê-los «como camaradas, porque a camaradagem se estendia do general ao soldado, principalmente sempre que se tratava da defesa da Pátria e da República». Recomenda-lhes «a maior fé nos destinos de Portugal e da República Portuguesa», pedindo-lhes que pela «correcção», «disciplina» «e pelo seu constante aumentar da sua instrução militar» dessem nos Açores «o exemplo vivo do que são os sargentos da República». No dia seguinte o general faz um brinde e um pequeno discurso no jantar de anos de Edmundo de Sousa que reúne 22 deportados: «Os tempos não correm propícios para festas e sobretudo para festas alegres. – Lanceia-nos o coração a saudades das pessoas queridas que deixamos em terras distantes; sufoca-nos a falta de liberdade; surge, por vezes, dentro de nós a indignação pelo que se está passando no nosso país. Mas, por outro lado, possuímos a alegria do dever cumprido, do sacrificio feito, da victória próxima e a que resulta da nossa fé republicana, da nossa inteira confiança nos destinos da Patria. Une-nos um mesmo pensar, numa alta comunhão de ideias, uma absoluta solidariedade. Foi esta altiva e mascula alegria, esta união, estes ideaes comuns, que nos inspiraram esta pequena festa (..) ao nosso amigo Edmundo (..) bebemos à sua saúde lembrando as suas altas qualidades de português, republicano e de amigo». Idem, entrada de 14-01-1928, s.p. 853

Norton de Matos, Carta aos combatentes de Fevereiro de 1927, 22-04-1928 in A. H. de Oliveira Marques (coord.), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, Lisboa, Dom Quixote, 1976, pp. 90-98. 854

Idem, p. 94. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta mesma página.

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dele, a algumas horas de distância, se encontram cidadãos portugueses civis e militares que podem ser investidos desta alta missão.

Que não se hesite em escolher entre eles; que não se demore em proclamar Chefe o que for escolhido.»855

Na Madeira, o coronel Fernando Freiria apressa-se a reunir todos os

deportados políticos, civis e militares, para debater esta proposta, resolvendo, por

unanimidade, votar no nome de Norton para que seja ele a assumir esse papel de

chefe, colocando-se à disposição para agir sob as suas ordens856. Já o general Sousa

Dias, então deportado na ilha do Faial, não mostra particular entusiasmo pela ideia,

embora demonstre abertura a compromissos. Na verdade, Norton encontra-se longe

do continente, não sendo praticável chefiar uma revolta à distância, não tendo sido,

por outro lado, previamente assegurado o consenso unânime dos partidos políticos857.

A Liga de Paris, essa, não está pelos ajustes, antes de mais por considerar que a

chefia política devia ser separada da militar e recair, sempre, num civil, não sendo de

todo conveniente ter um militar como chefe único da revolução. Acontece, porém, que

Norton não exclui a possibilidade de a escolha desse chefe único que aventa poder

recair num nome civil. É certo que não restam grandes dúvidas sobre a vontade que

tem de ser ele próprio a assumir essa chefia, apesar de ter tido o cuidado de colocar o

acento tónico no método e no programa e não propriamente em pessoas concretas.

Vê-se, aliás, muito mais como um chefe político do que propriamente um chefe militar.

Só isso seria mais do que suficiente para justificar a reacção dos notáveis de

várias facções republicanos da Liga de Paris, com anticorpos antigos de vária natureza

contra Norton. Como explica José Domingues do Santos em carta particular que vem

parar às mãos de um auto-intitulado «grupo de portugueses», que trata de a imprimir

e fazer circular:

«Qual é no fim de contas a nossa questão com o Norton? É esta: O Norton quere um Chefe Unico a quem todos obedeçam e que tudo mande. Não quere discussões políticas nem antes nem depois da revolução. Tudo obedece. Não sei se também proibe que chova. É possível. A chuva também é impertinente. Claro está que ele

855

Idem, p. 97. 856

Fernando Freiria, Carta confidencial do coronel Freiria ao general Norton de Matos, [1927] in A. H. de Oliveira Marques (coord.), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, pp. 101-102. 857

Adalberto G. Sousa Dias, «Extracto de uma carta do general Sousa Dias ao coronel Freiria», [1927] in A. H. de Oliveira Marques (coord.), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, pp. 102-103.

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falhou essa chefia para ele e declarou desde logo que esse chefe precisa de muito dinheiro para automóveis, aliciações, etc., etc.» 858

Manifestamente, a Liga não acredita nas declarações enfáticas do general na

carta-circular, quando defende a liberdade, a democracia e o parlamentarismo,

suspeitando, pelo contrário, que o que Norton pretende é alcandorar-se a ditador.

Entre as declarações do próprio e as percepções de outrem, e sem que tenha sido

possível confrontar umas e outras com a realidade pós-ditadura, pelo simples facto de

que esta não chegará a acontecer no tempo de vida do general, vale a pena reter duas

ideias destes primeiros tempos do ciclo oposicionista de Norton. A primeira é que,

desde o início, Norton é visto como um símbolo da República, na sua versão

parlamentar e democrática, surgindo ora como um chefe militar, para uns, ora como

um chefe político para outros – e para o próprio. A segunda ideia a reter é que, mesmo

na fase em que está activamente empenhado na preparação de um golpe militar para

derrubar a ditadura, encara a via golpista de um ponto de vista eminentemente

político: sem um entendimento entre os políticos quanto ao que está verdadeiramente

em causa, é impossível deitar abaixo a ditadura ou, menos ainda, viver e sobreviver

como democracia. A união e a disciplina são condições indispensáveis à vitória859.

O diagnóstico não é apenas de Norton: a oposição encontra-se minada pela

divisão860, para regozijo dos partidários da ditadura que ganham argumentos a favor

da sua tese de que os políticos são incapazes de sair da espiral de disputas em que já

se encontravam enredados antes do 28 de Maio e na qual persistem, agora que estão

858

Carta de José Domingues dos Santos a João Pedro dos Santos, transcrita na folha volante RALHAM AS COMADRES....// SENSACIONAIS REVELAÇÕES DO QUE // SE TRAMA NA "LIGA DE PARIS", [Agosto de 1927], fac-similado por A.H. de Oliveira Marques, A Literatura Clandestina em Portugal 1926-1932, Vol. I, Lisboa, Editorial Fragmentos, 1990, p. 282. Apesar de este tipo de literatura clandestina não ser o mais fiável e não ter sido possível confirmar a autenticidade da carta, o seu conteúdo é assaz verosímil. 859

«É desunidos e com bizantinas discussões sobre fórmulas constitucionaes e administrativas, com a manutenção do predomínio de individualidades, de partidos ou de credos, que tencionam vencer? [§] É com o receio dos compromissos, formaes e solenes, indispensáveis para a realização de uma frente única de combate, sem a qual nunca se vencerá, que conseguirão afastar o tremendo perigo que está ameaçando a Nação? [§] É por medo dos Chefes (sejam eles quais forem, desde que tenham as qualidades essenciaes) que tencionam lançar-se divididos e indisciplinados na batalha?». Norton de Matos, Carta aos combatentes de Fevereiro de 1927, 22-04-1928 in A. H. de Oliveira Marques (coord.), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, p. 96. 860

Para uma visão extensiva dos vários grupos oposicionistas, com especial destaque para os exilados, veja-se Ana Cristina Clímaco Pereira, L’exil politique portugais en France et en Espagne 1927-1940, Thèse presentée pour le Doctorat de l’ Université de Paris 7 (Denis Diderot), Mention Sociétés Occidentales, S.l., 1998, texto policopiado, 5 vols; e, ainda, Luís Farinha, O Reviralho: Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940.

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na oposição. O que não impede que parte não despicienda deles – os que não

aderiram à nova situação e os que, aderindo num primeiro momento, dela se

afastaram quando a ditadura, de provisória, afinal ameaça tornar-se definitiva –, não

tenham arriscado o emprego, a liberdade e, até, a vida, nas muitas conspirações e

revoltas que se sucederam entre os finais dos anos 20 e os inícios dos anos 30.

Após o envolvimento numa delas lhe ter custado a deportação e residência

fixada nos Açores, de onde finalmente é autorizado a sair em Junho de 1929, o nome

de Norton não deixará de aparecer ligado àqueles que tentam derrubar a ditadura por

via golpista no ano seguinte861, até porque o novo cargo que assume a partir de 1930 à

frente da maçonaria se prestará a todas as especulações políticas.

V.2. À frente do Grande Oriente Lusitano Unido: o combate pela democracia e

pela sobrevivência862

Entre 1930 e 1935, num período de charneira da vida política nacional e da sua

vida política, Norton tornar-se-á o mais alto representante de uma das mais antigas

obediências maçónicas da Europa, o Grande Oriente Lusitano Unido – Supremo

Conselho da Maçonaria Portuguesa (GOLU-SCMP). À partida, a relevância política do

cargo de grão-mestre parece ser expressiva, especialmente na conjuntura em que

Norton o assume. Afinal, trata-se do período final da existência legal do GOLU mesmo

antes da sua extinção pelo Estado Novo, precisamente por motivos políticos, e a

consequente passagem da instituição à clandestinidade, onde se manterá durante

quase 40 anos.

861

Em 1930, ter-se-ia chegado a um entendimento entre os exilados e a oposição no interior em que esta última «está em condições de impor ao exílio as suas escolhas políticas». Norton estaria então à frente de um comité de Lisboa que prepararia a revolta militar, enquanto o comité de Paris se encarregava de obter fundos e armamento. Ana Cristina Clímaco Pereira, L’exil politique portugais en France et en Espagne 1927-1940, Vol. 1, p. 364. 862

As ideias-chave sobre o grão-mestrado de Norton, bem como a proposta de periodização deste seu mandato, foram pela primeira vez apresentadas na conferência sobre «Norton de Matos e a Maçonaria» por nós proferida, a 6 de Julho de 2011, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no âmbito do II Curso de História da Maçonaria, dedicado ao tema «Maçonaria e Política», organizado pelo Professor Doutor António Ventura. A conferência deu origem, em Janeiro de 2012, a uma versão preliminar dos subcapítulos V.2., V.4. e V.5. da presente tese, que viria a ser publicada já no ano seguinte: Helena Pinto Janeiro, «O Grande Oriente Lusitano Unido, entre a Ditadura Militar e o Estado Novo (1930-1935): ‘o barco que a reacção quer torpedear’» in Maria Inácia Rezola, Luís Trindade, Pedro Aires Oliveira (coord.), O eterno retorno: estudos em homenagem a António Reis, Lisboa, Campo da Comunicação, 2013, pp. 427-446.

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V.2.1. Um novo ciclo

Após o longo e marcante mandato de Sebastião Magalhães Lima à frente do

GOLU (1907-1928), a maçonaria tardara em encontrar um líder capaz de responder aos

novos desafios colocados pela ditadura. A eleição de António José de Almeida,

histórico republicano, antigo chefe do governo da União Sagrada e Presidente da

República, dera-se numa altura em que já estava demasiado doente para conseguir

sequer tomar posse, mais não sendo do que um tributo ao seu passado eminente.

Entre a morte de Lima e a tomada de posse de um novo grão-mestre tinham-se

perdido dois anos, com a nomeação inconsequente de Almeida entre dois grão-

mestres-interinos, respectivamente Luís Augusto Curson e Joaquim Maria de Oliveira

Simões. O tempo não estava, porém, para tributos honoríficos, interinidades ou

tergiversações. Muitos maçons tinham sido presos e deportados pela sua participação

em revoltas contra a ditadura e não eram poucos os que acreditavam que a

maçonaria, enquanto instituição, não estivesse de algum modo envolvida. Na verdade,

a maçonaria não só tinha deixado de estar na moda como estava na mira de muito e

bom nacionalista que a identificava com todos os males do demo-liberalismo que, na

sua visão, a I República encarnara. Em Abril de 1929, a sede do rosto profano do GOLU,

o Grémio Lusitano, em Lisboa, é alvo de romaria e assalto por uma conjunção assaz

significativa de atacantes: GNR, polícia e civis, entre os quais se inclui o jovem Marcello

Caetano. Em Luanda, um grupo de indefectíveis do governador da colónia e putativo

candidato a ditador nacional, Filomeno da Câmara, que se move na órbitra da direita

radical de matriz integralista, toma de assalto a sede local da maçonaria. A liberdade

de reunião dos maçons é colocada em causa por todo lado e, em Lisboa, o palácio

maçónico – Grémio Lusitano – encerra portas durante quase um ano. Pouco após o

fecho, uma circular do Conselho da Ordem determina a «triangulação» das lojas, ou

seja a subdivisão de cada loja em pequenos grupos que possam reunir mantendo um

estrito low-profile863, pois «a reacção», para a qual a República não passa de «uma

863

Sobre o significado da triangulação ouçamos a explicação de Oliveira Marques: «Queria isto dizer que o número de obreiros de cada loja seria dividido por cinco, desmembrando-se essa loja em tantos triângulos quantos os resultantes do quociente da divisão. Em vez de reuniões magnas, de dezenas de pessoas, facilmente detectáveis pelas autoridades ou pelos seus espiões, passaria apenas a haver pequenos conciliábulos de cinco indivíduos no máximo, possíveis de realizar em residências particulares

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ficção que suporta por conveniência própria», se ainda não manda, indubitavelmente

pretende mandar no país864. Manda pelo menos o suficiente para manter a maçonaria

à defesa. Só passado quase um ano, em 12 Março de 1930, o Grémio Lusitano reabrirá

portas, embora, por prudência, se continue a aconselhar a triangulação865.

Poucas semanas depois, a 31 de Março, acolhe a assembleia do povo maçónico

– a Grande Dieta –, na qual José Mendes Ribeiro Norton de Matos, de seu nome

simbólico Danton, é proclamado, aos 63 anos, grão-mestre do GOLU. A 27, Norton já

tem conhecimento informal da sua eleição866 que, de acordo com o estabelecido na

Constituição Maçónica em vigor, terá sido efectuada pelos obreiros, decorados com,

pelo menos, o grau de mestre, das oficinas de todo o país. A eleição «por grande

maioria, quasi por unanimidade»867 e a consequente proclamação, de que é

oficialmente informado a 3 de Abril, vem encaixar que nem uma luva no momento de

recuo político estratégico em que o general se encontrava desde que regressara, no

Verão de 1929, do longo exílio açoriano.

Não havendo entre os políticos que querem pôr fim à ditadura consenso

quanto à sua chefia política, Norton decide aguardar melhores dias. Da sua casa de

Algés, responde negativamente a mais um desafio de um amigo para que assuma a

chefia do combate à ditadura. Por enquanto, tenciona manter-se na retaguarda, onde

a sua chefia não dê azo a divisões nas hostes republicanas: como «parece» que o

«julgam grande de mais para chefe de Portugal», limitar-se-á a ser chefe da maçonaria,

e até em locais públicos como cafés e restaurantes.» A. H. de Oliveira Marques, A Maçonaria portuguesa e o Estado Novo, 2. ed., rev. e aumentada, Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1983, p. 59. 864

«Quem pretende mandar hoje em Portugal? A Reacção. [§] A República é para ela uma ficção, que suporta por conveniência própria. No dia em que essa conveniência desapareça, dará o salto de tigre e voltaremos aos tempos da Inquisição, perdendo todas as liberdades e regalias conquistadas». Circular n

o

1/29 do Conselho da Ordem a todas as oficinas da Obediência, 11-05-1929 in A. H. de Oliveira Marques, A Maçonaria portuguesa e o Estado Novo, p. 176. 865

Cf. Circular nº 13/30 do Conselho da Ordem a todas as Oficinas ao Oriente de Lisboa, 12-03-1930 in A.

H. de Oliveira Marques, A Maçonaria portuguesa e o Estado Novo, p. 181. 866

Cf. ANM, Rascunho de carta de Norton de Matos a destinatário não identificado, Algés, 27-03-1930, mns. 867

«Algés, 4 d’Abril de 1930 No dia 2 do corrente vieram a esta casa o General Sá Cardoso, o Lucio de Azevedo e o Dr. Walter Cid apresentar-me saudações em nome da Loj Acacia (a minha Loj ) por eu ter sido proclamado Gr Mestre da Maç Portuguesa na Gr Dieta em 31 de Março findo. Disseram-me que a minha eleição tinha sido por grande maioria, quasi por unanimidade. Hontem veio uma comissão da Gr Dieta, com o Ferreira Dinis e outros, comunicar-me oficialmente a minha eleição e a minha proclamação na Gr Dieta. Pediram-me que fixasse o dia para ser investido (...)». ANM, Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, caderno com fls. soltas, mns.

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desempenhando «funções no exercício das quaes muito posso fazer para contrariar a

reacção e para fazer vingar os ideaes da República»868.

Os preparativos para a sua investidura no novo cargo são alterados pela prisão

do presidente da Grande Dieta, Daniel Rodrigues, que, após vários dias incomunicável,

é mandado seguir para Vila Nova de Famalicão, onde lhe é fixada residência869. Terá de

ser o primeiro vice-presidente, o coronel João Esteves Águas, a substituí-lo na

presidência da cerimónia formal de investidura do novo grão-mestre, a 30 de Abril.

Norton lê, na ocasião, a sua primeira mensagem ao povo maçónico870, na qual

aconselha serenidade, prudência e pragmatismo. Não deixa, no entanto, de pôr o dedo

na ferida: as forças reacionárias estão a tomar conta do país e a transformar a

República numa palavra vazia de sentido, enquanto os liberais, que deveriam estar na

vanguarda dos portugueses de boa-vontade, tardam em repor a normalidade

democrática e constitucional. Resta à vanguarda das vanguardas, os maçons, lançar

mãos à obra de reorganização nacional que permita regressar, em novas bases, à

normalidade constitucional e democrática.

À frente daquela que considera a nata dos liberais do país, Norton apresenta o

programa em quatro pontos para o seu grão-mestrado que mais parece um programa

de governo do país. A excepção é o segundo ponto, expressamente destinado a

chamar à razão os liberais que estão a ser seduzidos pela Ditadura, interpelando-os a

«travar o último combate»871 contra a calamidade que ameaça a Pátria: «a definitiva e

completa vitória reaccionária que está preparando». Para tal é preciso intensificar em

alto grau a propaganda cívica, através da imprensa e conferências em grémios,

associações, centros e universidades livres por todo o país. Este combate pela palavra,

usando a rede em malha fina, por todo o país, de centros liberais e/ou republicanos,

com a maçonaria na vanguarda, não será um programa tão utópico quanto o

868

ANM, P. Maçonaria, Norton de Matos, Rascunho de carta de Norton de Matos a destinatário não identificado, Algés, 27-03-1930, mns. 869

Ibidem. 870

José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Ao Povo Maçonico: Mensagem do Grão-Mestre da Maçonaria portuguêsa José Mendes Ribeiro Norton de Matos Eleito em 31 de Dezembro de 1929, para o biénio de 1930-1931, Lisboa, 1930. Até referência em contrário, as citações que se seguem são desta mensagem. 871

Mensagem à Gra Dieta do Grão Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos. Lisboa, 21-03-1931, p. 3.

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historiador Oliveira Marques o classifica872, pelo menos se tivermos em conta o

inusitado fulgor que, apenas um ano mais tarde, a ARS demonstrará a nível local.

Já em relação aos restantes pontos programáticos que Norton formula para o

seu grão-mestrado, não há, de facto, dúvida quanto à utopia que os norteia, pelo

menos se pensarmos na conjuntura política em que são formulados e a óbvia

desadequação ao objectivo imediato: travar o avanço da reacção. Como primeiro

ponto, pretende-se transformar a mentalidade do povo liquidando de vez esse «crime

social» que é o analfabetismo de todas as crianças com mais de seis anos e dos

adultos. Em segundo lugar, combater a miséria através de uma panóplia de meios:

fornecer assistência médica gratuita, habitação, seguros sociais de invalidez, velhice,

viuvez e orfandade; providenciar a educação cívica e aumentar a instrução técnica

para desenvolver indústrias, promovendo simultaneamente a fixação da riqueza no

território português. Finalmente, realizar nas colónias uma obra poderosa de

civilização e progresso.

Definidas as linhas-mestras para o mandato, toma posse, em Maio, a equipa

com quem partilha o poder executivo, o Conselho da Ordem, que, no entanto, de

acordo com o estipulado pela Constituição Maçónica de 1926, não escolheu. O seu

presidente, eleito pela Grande Dieta, é Ramon Nonato de La Féria, médico e amigo,

uma geração mais novo do que Norton. Os restantes membros do Conselho da Ordem

são nomeados pelo grão-mestre mas sob proposta de La Féria, que já desempenhara

funções idênticas no GOLU entre 1927 e 1929. O novo Conselho quer prosseguir com a

tarefa de

«reorganisação da falange liberal», «congregar os obreiros dispersos, animar os que se deixam abalar pelas disilusões e contrariedades dum ambiente reaccionário e chamar para o campo da actividade todos os que possam cooperar nêste ressurgimento liberal». Para isso, pretende o «revigoramento» das oficinas «que porventura tenham afrouxado um pouco o seu ardor combativo e de propaganda»873.

872

Para este autor, o plano de actividade apresentado por Norton na sua mensagem era «talvez demasiado utópico para a hora que se atravessava», embora de «incontestável importância» (A Maçonaria portuguesa e o Estado Novo, p. 60). 873

Ramon Nonato de la Feria, Álvaro Costa, José Luiz da Luz, Adolfo J. Sampaio Luz, Ramiro dos Reis e Sousa, «Circular n

o 23 Or de Lisboa 15 de Maio de 1930 (e v ) a todas as rresp lloj e triang da

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Programas e intenções à parte, a verdade é que os primeiros dois meses do seu

grão-mestrado resumem-se, avalia Norton, a «nada, quasi nada» além de «oratória»,

«lutas», «rivalidades», «vaidades», «fitas» e «vénias». Nada que se compare ao muito

que tinha conseguido realizar em igual período como ministro da Guerra ou alto-

comissário de Angola874. As lutas e rivalidades acabam por ter consequências ao mais

alto nível e, logo em Agosto, La Féria demite-se, seguido pelos restantes membros do

Conselho da Ordem. Nem quatro meses ficaram desta vez no lugar. Como dirá Norton,

as suas intenções «foram mal compreendidas»875.

Eleito um novo presidente, o coronel Mimoso Guerra, e formada nova equipa

executiva, Norton entrega o malhete de grão-mestre a Oliveira Simões e parte a 17 de

Setembro para a Bélgica, a fim de participar na Semana Portuguesa e, de 25 a 30, na

Convenção Maçónica Internacional (AMI), reunida em Bruxelas. Afonso Costa fora

também convidado para, em conjunto com o grão-mestre, representar o GOLU, mas

declinou o convite, tendo sido improfícuos os esforços do Conselho da Ordem para o

demover, o que o Conselho «regista» «com mágoa»876. O palco ficou todo para o velho

rival, a quem Afonso Costa nunca, porém, reconheceu tal estatuto. Ficou o palco

Obed » in Boletim Oficial do Grande Oriente Lusitano Unido. Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, 5-6, 1930, p. 19. As citações que se seguem são desta mesma circular. 874

Como escreve no seu diário a 24-06-1930: «Que tenho conseguido fazer, que tenho conseguido aproveitar a bem da Patria e da Humanidade dessa força que é a Maçonaria? Nada, quasi nada... Como Ministro da Guerra, como Alto Comissario de Angola, quanto me foi possivel fazer nos dois primeiros meses da minha acção! Gasta-se na Maç o tempo em pequenas cousas, em elogios mutuos, em oratoria sem finalidade, em lutas, em rivalidades, em exibições, em vaidades. Graus, fitas, veneas...[§]Depois, o grão-mestre não é um chefe. Tiveram o cuidado, com a constituição mac em vigor, de lhe cercear todas as atribuições de chefe.[§]Que posso eu fazer nestas condições? Não me sinto, nunca me senti, com tendencias para elemento decorativo. Esperar, pois, e ver o que se pode fazer; mas não esperar muito tempo. É meu dever dizer lealmente, claramente, corajosamente o que estou vendo e sentindo. Tentarei antes disso modificar o que existe e bater-me com os meios que se poserem [sic] ao meu espirito, de acção e de reforma.[§]Tenho ainda muito que ver e conhecer.» (ANM, Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, caderno com fls. soltas, mns.). Na verdade, durante esse período, Norton, para além de nomear os membros do Conselho da Ordem propostos pelo presidente deste último, escolhe nomes para preencher lugares vagos no Grande Conselho Maçónico, cria uma comissão especial para tratar da biblioteca, nomeia uma equipa para a redacção do Boletim Oficial do GOLU e preside, com pompa e circunstância, à festa maçónica da paz, a 28 de Maio. Demasiado pouco, para um homem de acção como Norton, habituado a mandar e a fazer obra. 875

José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Mensagem à Gra Dieta do Grão Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Lisboa, 1931, p. 11. 876

«Associação Maçonica Internacional» in Boletim Oficial do Grande Oriente Lusitano Unido. Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Grémio Lusitano, Ano 50º, Nºs 10 e 11, Outubro e Novembro de 1930, p. 23.

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profano – a conferência para que foi convidado pelo Rei da Bélgica877 – e o palco

maçónico. O “Convent” reúne nos dias 25 e 26 em Bruxelas e, a 27, os delegados vão

visitar a Exposição Internacional de Liège, ouvindo nessa noite uma alocução de

Charles Magnette sobre a «Franco-Maçonaria Internacional». Depois de mais dois dias

em Bruxelas, deslocam-se a Antuérpia para visitar a Exposição Internacional. Dia 6 de

Outubro Norton retoma, já em Lisboa, o malhete de grão-mestre.

V.2.2. Entre a transição e a revolução

A fluidez entre os campos oposicionista e ditatorial era ainda apreciável em

1930, sucedendo-se os contactos e as diligências entre personalidades dentro e fora da

Ditadura para transformá-la por dentro.

No final de 1930, no auge das manobras em que está envolvido o capitão

Augusto Casimiro, antigo colaborador e indefectível amigo e admirador de Norton, o

grão-mestre faz questão de informar formalmente o Conselho da Ordem, pois,

agudamente convicto, como é seu timbre, do seu valor,

«Quis dar conhecimento inteiro do meu procedimento e do meu pensamento neste caso, porque é necessario que os actos de um Gr Mest da Maçonaria Portuguesa fiquem sempre bem documentados e bem claros.»878.

Assevera a Mimoso Guerra que foi contactado por Casimiro já com as

diligências a correr e que, a ser viável uma solução pacífica que acabasse de vez com a

Ditadura em Portugal, ele não poderia deixar de estar de acordo. Infelizmente,

acrescenta, não acredita que ela seja viável. Mais uma vez enfaticamente declara não

pretender ser chefe de um governo de transição mas vai dando orientações sobre as

condições em que poderia ser negociada a transição, sem entrega prévia de armas por

parte da oposição, pois é a Ditadura que tem de mostrar a sua boa-fé. A hipótese da

revolução não é por si descartada, como último recurso que deve ser mantido em

carteira. Simplesmente, não é ele o homem da transição e, muito menos, o

operacional. É o senador, o conselheiro, posicionando-se para chefe político quando a

877

Norton de Matos, La formation de la nation portugaise envisagée au point de vue colonial : édition speciale de la Conference réalisée à Anvers, durant la «Semaine Portugaise», dans la soirée du 23, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1930. 878

ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta de Norton de Matos ao Conselho da Ordem, Lisboa, 31-12-1930, mns., ass.

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ocasião chegar, no futuro. É verdade que no seu discurso de Abril ao povo maçónico

desaconselhara o uso da violência879 mas declara enfaticamente, agora, perante o

Conselho da Ordem do GOLU,

«(para bem fixar o meu modo de ver em materia de revoluções) que tenho opinião firme de que o recurso á Revolução é legítimo e necessario, desde que não haja outro meio digno para conseguir a Liberdade, para destruir o despotismo.»880.

Em Janeiro do ano seguinte, falha, como previra, a tentativa de transição

constitucional e a tal legítima e necessária revolução acaba por rebentar a 4 de Abril

na Madeira. Dias antes, Norton desafiara os maçons, em mensagem apresentada à

Grande Dieta: «sinto próxima a definitiva e completa vitória reaccionária. Temos de

travar o último combate»881. Identifica como principal adversário Salazar. Se, no ano

anterior, era a política de austeridade financeira para Angola que criticara ao

ministro882, agora era o próprio programa político de Salazar para o país que estava em

causa. É um programa que classifica de «reaccionário», sem «paralelo em toda a

história de Portugal»883:

«Esta concepção do Estado Corporativo Integralista (...) é mais tenebrosa do que a que presidiu à formação de outros Estados ditatoriais. (...) a acção do Estado absoluto que se pretende impor ao país será exercida pelo partido único mediante elementos políticos derivados na sua grande maioria de um agrupamento como a freguesia, onde ainda impera, salvo raras excepções, a reacção e a ignorância.»884.

Identifica o clericalismo, o Vaticano, como

«a força oculta que fez fracassar as tentativas de uma transição, pacífica mas digna, da Ditadura para a República laica, democrática e parlamentar, que se fizeram nos

879

«Não somos homens de violência; não aconselhamos a violência (...). Mas, em face dos perigos que estão correndo os nossos princípios e os nossos ideais, perante o enorme perigo que representará para a Nação, é dever nosso, a cujo cumprimento não fugiremos, empregar todos os meios pacíficos e dignos de que dispomos para desviar da Pátria as calamidades que a ameaçam». José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Ao Povo Maçonico: Mensagem do Grão-Mestre da Maçonaria portuguêsa José Mendes Ribeiro Norton de Matos Eleito em 31 de Dezembro de 1929, para o bienio de 1930-1931, p. 7. 880

ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta de Norton de Matos ao Conselho da Ordem, Lisboa, 31-12-1930, mns., ass. 881

José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Mensagem à Gra Dieta do Grão Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos, p. 3. 882

AOS/CO/UL-8G, Carta de Norton de Matos a Oliveira Salazar, 16-02-1930. Salazar acumulava então, interinamente, a pasta das Colónias com a das Finanças, e respondera publicamente a Norton, em nota oficiosa publicada na imprensa a 22-02-1930. 883

José Norton de Matos, Mensagem à Gra Dieta do Grão Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos, p. 6. 884

Idem, p. 8.

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últimos dias do ano findo e nos primeiros do ano corrente. Sabemos ao menos agora, sem dúvida alguma, o que temos a defrontar.»885

Face a esta ameaça, desafia os maçons a vigiar e denunciar os reaccionários, a

desenvolverem

«uma forte acção», «a propaganda constante no mundo prof , quer verbal, quer escrita, quer de individuo para individuo, quer do individuo para as massas, propaganda que mostre claramente a todos os cidadãos e a todas as classes sociais o que se está tramando contra a liberdade e contra a dignidade humana.»886.

Dentro das «limitadas atribuições e faculdades que a Constituição Maç lhe

estabeleceu»887, o poder executivo da Maçonaria já deu alguns passos nesse sentido

nesse primeiro ano que o grão-mestrado de Norton leva de trabalho. Além de uma

ação de depuração interna, investiu-se na propaganda maçónica, com «resultados

consoladores» traduzidos no aumento do número de adeptos, apesar das

perseguições e campanhas antimaçónicas. Muitos deles eram jovens, que viam a

maçonaria como um meio legal de luta contra a ditadura888. Investiu-se,

concomitantemente,

«nos estudos dos problemas profanos de carácter constitucional, administrativo e social que não devemos deixar resolver sem a nossa intervenção. De facto a intervenção da Maçonaria nas transformações de carácter constitucional e social que se deram em muitas nações, tem sempre, sem uma única excepção, conduzido a organizações políticas em que a Liberdade, a Justiça e a Razão são os guias principais da nova ordem de coisas, ao passo que quando os movimentos de transformação principiam por perseguir a Maç pondo-a inteiramente de lado, as constituições resultantes são sempre absolutistas e ditatoriais, como é na época presente, o caso da Itália fascista e da Rússia bolchevista.»889.

O investimento da Maçonaria na frente constitucional, de modo a impedir a

instauração em Portugal de uma Constituição de tipo fascista890 é fundamental para

Norton. O grão-mestre deixa bem claro que, em 1931, o problema da Maçonaria

Portuguesa é sobretudo político pois da resolução do problema político depende a

885

Idem, pp. 8-9. 886

Idem, p. 9. 887

Idem, p. 10. 888

Alguns deles virão mais tarde a militar no PCP, após a proibição da maçonaria. António Ventura, Uma história da Maçonaria em Portugal 1727-1986, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013, p. 742. Logo nos primeiros tempos do grão-mestrado de Norton, entre Maio e Dezembro de 1930, o GOLU expandiu-se, com o número de novas lojas e triângulos nascidos em vários pontos do continente e ilhas a suplantar o número de lojas abatidas. Idem, pp. 700-701. 889

Idem, p. 12. 890

O fascismo italiano é analisado por Norton de Matos em «O Estado Corporativo» in Humanidade: Jornal Republicano Anti-Clerical, 1931, pp. 69-86.

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própria vida da maçonaria891. Para travar esse «último combate», a um tempo político

e de sobrevivência da instituição maçónica,

«é necessário que [a Maçonaria] forme um sólido bloco, sem quaisquer causas ou elementos internos de desagregação, e que, sob o impulso de uma autoridade legal e forte, exerça actividades de conjunto.»892.

A soberania do povo maçónico893 e a independência das oficinas não devem ser

obstáculos à disciplina maçónica894. Pelo contrário, as oficinas maçónicas devem ser

transformadas

«em elementos de vitalidade e de acção que uma autoridade legal e constitucional (que tem que ser criada mais cedo ou mais tarde) possa unir e propulsionar para a acção de conjunto de que carecem para o bem da Pátria e da Humanidade.»895.

De facto, nesta segunda mensagem, Norton presta homenagem a todos os

maçons e reconhece a sua absoluta igualdade, pelo menos no plano dos princípios.

Diagnostica, não obstante, no funcionamento interno do GOLU um óbice fundamental:

na ânsia de querer respeitar a vontade das bases, a Constituição Maçónica de 1926 em

vez de facilitar a unidade de ação da Maçonaria Portuguesa, armadilha-a, sob a capa

do que considera ser uma pretensa democracia. Enquanto os inimigos da democracia

ganham pontos a toda a hora no mundo profano, a maçonaria tem um chefe que não

pode sê-lo em pleno. A solução? Uma reforma constitucional interna que o possa

deixar levar a sua acção até ao fim. Enquanto tal não acontece, apesar de manifestar

no seu diário satisfação pelo que conseguiu fazer e alguma esperança de que a sua 891

«No período calamitoso que a Nação está atravessando e que tão profundamente tem atacado moral e materialmente todas as camadas da nacionalidade, nenhum problema pode preocupar mais a Maç Portuguesa do que o problema político. A solução desse problema num ou noutro sentido representa para nós ou a possibilidade de vida de força e de exuberância que nos permita o exercício pleno das nossas faculdades em prol da Humanidade, da Nação e do cidadão, ou (não digo a morte porque a Maçonaria não morre) uma longa época de marasmo, de inércia forçada, de desânimo e de tristeza». José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Mensagem à Gra Dieta do Grão-Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos, p. 10. 892

Ibidem. 893

«O grande defeito da nossa Constituição resultou de se ter tomado demasiado à letra o simbolismo que se contém nas palavras “Povo Maçónico”». Ibidem. 894

«Não é a disciplina maç a disciplina militar, muito menos a disciplina religiosa, monástica ou outra, e nem mesmo a disciplina burocrática ou aquela que fascistas e bolchevistas apregoam como sustentáculos indispensáveis dos seus respectivos Estados ditatoriais». [Dentro da Maçonaria, como agregado de homens livres que é] «a disciplina não fere quaisquer direitos nem toca de leve que seja na liberdade de pensamento. A disciplina maç consiste na íntima ligação de todos os Iir , no respeito frat de Ir para Ir , numa orientação comum (...), na veneração consciente dos corpos superiores, na satisfação resultante do cumprimento dos deveres mmaç , e na rigorosa observância do sigilo maç (...) sem ela a Maçonaria não pode existir». Idem, p. 11. 895

Idem, p. 13.

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orientação seja seguida e que a inveja, «que tudo mina»896, não comprometa as suas

orientações, a verdade é que Norton nunca deixou de considerar a posição de grão-

mestre como uma retaguarda que não o impede de intervir noutras áreas.

Nem uma semana depois, a família Norton acorda com um telefonema da

mulher de La Féria, que previne que o marido fora preso. Pouco depois é Norton que,

por estar doente, escapa à prisão convencional mas acaba por ir, sob custódia militar,

para o Hospital Militar da Estrela. É no hospital que, a 3 de Maio, receberá a notícia da

rendição dos insurgentes da Madeira, que, com o general Sousa Dias à cabeça tinham

intentado, mais uma vez, fazer cair a ditadura. A sua desolação com a vitória das forças

ditatoriais é acompanhada pela fúria perante um cenário de elenco governativo pós-

revolução, posto a circular no campo oposicionista. Nele, o seu nome aparecia como

governador militar de Lisboa de um governo com nomes como Afonso Costa, Cunha

Leal ou Brito Camacho. Por mais fantasiosas que tais notícias fossem, a ideia de que o

pudessem conceber como um «simples guarda-costas» daqueles «vultos políticos»897

constituía uma afronta que se apressa a desmentir. Significativamente, os seus

adversários começam a encará-lo como um líder da oposição: um chefe que se teme

possa fazer a revolução mas, igualmente, um chefe com quem se poderá pensar em

negociar uma saída para a ditadura. Não por acaso, recebe, através de um canal

informal, indicações do presidente do mesmo Ministério que, semanas antes, o

colocara sob prisão, de que a ditadura prepara mudanças que iam ao encontro dos

seus desejos898.

Apesar de não deixar de ser uma prisão sui generis, com a concessão de

pequenos privilégios que não deixam de espantar o próprio preso (como autorização

896

«31 [sic] de Março de 1 Li hontem a minha 2a homenagem ao Povo Maç perante a grande dieta.

Substitue ela o que poderia dizer neste diario. Estou a fazer um ano de Gr Mestre e reconheço que muito de proveitoso e util para os interesses da Patria e da Republica se pode conseguir da Maç Portuguesa. Oxalá a minha orientação seja seguida e a intriga que tudo queima em Portugal, juntamente com a inveja endemica entre nós, me deixe ir até ao fim». ANM, Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, caderno com fls. soltas, mns. 897

Rascunho de carta de Norton a «Meu prezado Amigo e Camarada», Hospital Militar da Estrela, 03-05-1931, folha solta apensa a ANM, Norton de Matos, [Diário Hospital Militar da Estrela], [Lisboa], Abril-Maio 1931. 898

«Em breves dias, o Senhor General Norton de Matos verá parte dos seus desejos satisfeitos», terá dito o general Domingos de Oliveira ao director do Diário de Notícias. Carta de Eduardo Schwalbach a Norton de Matos, em papel timbrado do Diário de Notícias, Lisboa, 12-05-1931, 1 fl. mns., aposta in ANM, Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, caderno com fls. soltas, mns.

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para saídas temporárias para ir ao Instituto Superior Técnico dar aulas), a verdade é

que lá permanece um mês, sem qualquer julgamento ou sequer interrogatório. Será o

prenúncio de novas investidas do governo da ditadura contra o grão-mestre, apenas

interrompida pelos fugazes meses em que Norton patrocina a criação de uma frente

única da oposição para tentar concorrer às eleições locais entretanto anunciadas pelo

governo.

V.3. O feito da unidade, sob o patrocínio de Norton. A via legal: o inusitado

fulgor da Aliança Republicano-Socialista899

O longo e doloroso rescaldo da I República dura há já cinco anos quando os

partidos republicanos finalmente se unem para combater, pela via legal, o anunciado

golpe de misericórdia ao regime democrático-parlamentar consagrado na Constituição

de 1911. Na Primavera de 1931, a Ditadura Militar já só com muito optimismo poderia

ser encarada como um mero intervalo na I República, uma espécie de pausa para

permitir a sua regeneração, estando, pelo contrário, a um passo de se transformar

num regime de partido único. A longa marcha do ministro das Finanças Oliveira Salazar

para o poder parecia já inexorável, embora só um ano mais tarde venha formalmente

a assumir a chefia do governo, por enquanto ainda nas mãos do general Domingos de

Oliveira, mesmo se para muitos observadores coevos é já Salazar o “ditador virtual”.

Mas os jogos não estavam ainda feitos.

Falhadas tentativas atrás de tentativas de repor a República demo-parlamentar

pela via revolucionária, um grupo de políticos republicanos, em que Norton se destaca,

resolve aproveitar a janela de oportunidade oferecida pelo anúncio de uma próxima

convocação de eleições municipais, promessa a que a publicação em Diário de

Governo, nos primeiros dias de Maio de 1931, de uma nova lei do recenseamento

eleitoral para os vogais das juntas de freguesia, das câmaras municipais, das juntas 899

Durante o período de elaboração da tese, tivemos oportunidade de ir apresentando ao escrutínio da comunidade académica os resultados provisórios da nossa investigação sobre a ARS, entretanto publicados nas actas de dois colóquios, em textos que aqui em parte retomamos e desenvolvemos. Helena Pinto Janeiro, «A Aliança Republicano-Socialista no rescaldo da I República» in Maria Fernanda Rolo (coord.), Congresso Internacional I República e Republicanismo: Atas, Lisboa, Assembleia da República, 2012, pp. 75-82; Helena Pinto Janeiro, «Os militares na Aliança Republicano-Socialista: um triunvirato militar para uma transição civil» in AAVV, 100 Anos do Regime Republicano: Políticas, Rupturas e Continuidades: Actas do XIX Colóquio de História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, pp. 373-383.

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gerais dos distritos autónomos e para os membros do poder legislativo900 vem dar

alguma verosimilhança. Animada por esta perspectiva, a oposição à Ditadura que

permanece no país ensaia a unidade, constituindo, em tempo recorde, a Aliança

Republicano-Socialista (ARS).

Do exílio, Afonso Costa, que continua a apostar na via revolucionária e a

considerar-se, com Bernardino Machado, o chefe da oposição, acusa o toque: Norton

que se entretenha a brincar à unidade em Portugal, que ele se encarregará de o

colocar numa vitrina, de onde não possa sair nem mexer-se901. Entretanto, os notáveis

exilados continuam a considerar-se a alma e os guardiões da República e a patrocinar

os preparativos para mais uma reedição da eterna e sempre falhada revolução. A

verdade, porém, é que, depois de anos de guerrilhas partidárias sem quartel, o

diretório da ARS faz o pleno da oposição republicana e socialista, com a excepção única

do PCP, e conhecerá um inesperado fulgor.

Concentrar-nos-emos no período em que a unidade da oposição chegou a

perspectivar-se como uma realidade, precisamente aquele em que Norton assume um

papel central na ARS. Trata-se dos pouco mais de três meses que decorrem entre a

publicação da primeira versão da lei do recenseamento eleitoral e a revolta

oposicionista de 26 de Agosto que a Ditadura usará como pretexto para

definitivamente deixar cair a possibilidade de enveredar por uma qualquer transição

democrática pela via eleitoral902.

Veremos os partidos e grupos políticos que se unem na Aliança para depois nos

concentrarmos na elite política que a protagonizou, focando a nossa atenção de modo

especial nos maçons, nos seareiros e, finalmente, no trio militar que marca presença

900

Decreto nº 19.694, de 05-05-1931 in DG, Nº 104, 05-05-1931, que posteriormente a esta data foi sofrendo sucessivas rectificações. Seja como for, o Decreto deixa em aberto vários aspectos, a definir por um Código Eleitoral, a publicar no futuro. 901

«Mas o Directorio Unico existe e foi o pretexto ou o agente d’uma união geral de todos os republicanos contra a Ditadura. Aproveitemos este resultado e ponhâmos os homens do Directorio numa vitrine, d’onde não possam sair nem mecher-se [sic] ... Nós falaremos e agiremos em vez d’ele, e tudo acabará bem. Comtanto que se ande depressa, querido Presidente, porque tambem eu começo a perder a paciencia...». ABM, Carta de Afonso Costa a Bernardino Machado, Vittel, 09-08-1931. 902

Muito embora a ARS tenha formalmente subsistido durante mais alguns anos, tornar-se-á uma sombra de si própria, tendo perdido a representatividade e o fulgor que manifestou nestes meses de 1931 que aqui analisamos.

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no directório nacional, com Norton à cabeça. Veremos de seguida qual o programa

político deste grupo heteróclito, bem como a dinâmica que, surpreendentemente,

conseguiu gerar por todo o país, junto das elites locais, à volta das operações de

recenseamento e de propaganda. Dinâmica que obriga o governo da ditadura a

mobilizar-se, por um lado, para impedir que essas operações decorressem em

liberdade e, por outro, para mobilizar as suas próprias hostes em torno da recém-

criada União Nacional, forçada a sair do papel para o terreno, onde a sua implantação

era até então assaz incipiente.

V.3.1. A ARS e o seu directório

A 10 de Maio, um dia após ser autorizado a sair do Hospital Militar da Estrela,

Norton escreve a Marques Guedes e a Vitorino Guimarães, seus correligionários do

PRP, advogando a ideia de não se absterem perante as eleições anunciadas903. Porém,

o primeiro dirigente partidário a pronunciar-se publicamente sobre a ida a votos será o

presidente do Partido Socialista. Ainda uma semana não era decorrida sobre a

publicação da lei do recenseamento, Ramada Curto declara, em entrevista ao Diário de

Lisboa, que o PS irá a eleições, de preferência numa frente unida com os partidos

republicanos e que, mesmo que esta não se realize, ele próprio tenciona candidatar-se

à sua junta de freguesia904. Não é caso único. Na verdade, os contactos e negociações

entre os vários partidos republicanos, que há muito tentam entender-se sobre a

melhor forma de acabar com a ditadura, estreitam-se durante o mês de Maio tendo

em conta esse dado novo: o recenseamento que terá início a partir do dia 20. Os ecos

de um entendimento interpartidário bem-sucedido extravasam para a imprensa. Se a

28 o jornal República ainda desmente a notícia de um órgão da concorrência de que o

PS resolvera ir às eleições entendido com todos os partidos, já dois dias depois anuncia

categoricamente que está formada a frente única dos partidos905. Na verdade, fora já

assinada uma declaração conjunta dos directórios dos partidos e grupos republicanos e

do conselho geral do Partido Socialista,

903

ANM, Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, caderno com fls. soltas, mns. 904

«O MOMENTO POLÍTICO. O Partido Socialista vai ás eleições e o dr. Ramada Curto preconiza uma aliança republicana» in Diário de Lisboa, 11-05-1931, p. 4. 905

«A situação política e a atitude dos partidos. Está formada a frente única de Partidos Constitucionais» in República, 30-05-1931, p. 1.

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«no intuito de prepararem, com a cooperação da opinião republicana independente a luta legal para a garantia do exercício das liberdades publicas, o restabelecimento da vida constitucional do Estado e da tutela jurídica dos direitos civis e, afirmando aceitar o princípio da revisão da Constituição de 1911 no sentido de nela vêrem atendidas, num justo equilíbrio as modernas correntes doutrinárias sobre a organização da Democracia, resolvem: 1º) Abater as suas bandeiras para que a acção política se possa exercer livre de quaisquer exclusivismos e divisões partidárias. 2º) Exortar todos os republicanos á disciplina e acatamento das instruções do organismo directivo único que, dentro da mais estreita união e para um trabalho ordeiro de coordenação de esforços na defêsa da República, fica por consenso unanime constituído pelos cidadãos que para tanto vão ser indicados pelos directorios dos partidos e grupos que esta declaração subscrevem e a ela aderem e pelas individualidades republicanas escolhidas pelos cidadãos indicados para o referido organismo.»906

A reunião preparatória para constituição do organismo único da aliança

republicano-socialista tem lugar a 4 de Junho no escritório do advogado Maurício

Costa, já sob a presidência de Norton. Dois dias depois, será a primeira reunião oficial

da frente única. Os delegados de cada um dos sete partidos e de um grupo político no

directório da aliança encontram-se já definidos, faltando apenas obter o assentimento

das personalidades independentes convidadas para o completar. Duas delas aceitarão

o convite: o histórico republicano José Francisco de Azevedo e Silva e o professor de

medicina Carlos Belo de Morais. Será com esta dupla que Norton se propõe dividir a

presidência do directório, em sistema de rotação907. É uma curiosa proposta que,

calando os que vinham a acusá-lo de querer ser o chefe todo-poderoso na oposição,

mantinha basicamente o poder na sua mão, pois não iriam ser estas personalidades

independentes, pese embora o seu prestígio pessoal, a causar-lhe sombra. Deles não

se esperava que fossem muito mais do que «pavões decorativos»908. Não deixa de ser

906

A declaração, assinada em Lisboa a 28-05-1931, é lida por Lelo Portela na «Acta da reunião preparatória para constituição do organismo unico da aliança republicano-socialista». ARQUIVO DA BIBLIOTECA-MUSEU REPÚBLICA E RESISTÊNCIA (ABMRR). ABMRR/CF/S/02, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., fl. 1. 907

O sistema de rotação também incluiria os nomes de Duarte Leite e António Luís Gomes, assim que estes tomassem parte do directório, o que não chegaria a concretizar-se. ABMRR/CF/S/02, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., Acta nº 5, de 25-06-1931, fl. 9 e segs. 908

BNP-ACPC, Espólio Raul Proença, E7/1035, Extracto de carta de Mário de Azevedo Gomes a Jaime Cortesão, S.l., 06-06-1931, mns. Na altura em que Azevedo Gomes escreve esta carta, ainda não sabe quem serão os independentes que virão a aceitar, não se referindo especificamente a Belo de Morais. Belo de Morais será o substituto de Norton na presidência do Directório da ARS quando este for para o Norte no Verão, aproveitando uma cura de águas nas Caldas de Melgaço para desenvolver acções de propaganda da ARS no Norte do país, onde o seu prestígio é grande e pode ser capitalizado a favor da nova organização.

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significativo, porém, que Belo de Morais – que, em 1923, chegara a ser falado para

candidato à Presidente da República, mas descartara a possibilidade de entrar na

política pela porta grande – tenha, aos 62 anos, sentido a necessidade de rever essa

posição de se manter afastado da intervenção política. Na verdade, todos são agora

poucos para salvar a República de uma ditadura que ameaça eternizar-se ou dar lugar

a um regime fascista. Ao grupo juntar-se-á, ainda, José António Simões Raposo Júnior,

«ha muito afastado dos partidos políticos»909 na qualidade de secretário-geral do

directório.

Tal não obsta que o núcleo duro da ARS seja formado por personalidades

indicadas pelos partidos. Norton de Matos é indicado pelo PRP, Mendes Cabeçadas

pela União Liberal Republicana, Almeida Arez pelo Partido Radical, Tito de Morais pelo

Partido Nacionalista, Maurício Costa pela Acção Republicana, Crispiniano da Fonseca

pela Esquerda Democrática e Amílcar Ramada Curto pelo Partido Socialista. À

excepção deste último, nenhum dos restantes delegados é, em 1931, o responsável

máximo do seu partido910, o que, provavelmente, terá ajudado à ultrapassagem de

notórias divergências do passado. Por outro lado, vale a pena sublinhar que, embora

indicados pelos partidos, não estão lá como delegados dos partidos. Norton, aliás,

ainda na reunião preparatória, faz questão de declarar que, embora indicado pelo seu

partido, «com plenos poderes», o seu encargo

«não constitue mandato pois não está aqui como mero representante ou delegado do seu partido, mas como cidadão republicano, com inteira liberdade de acção, conscio da

909

ABMRR/CF/S/02, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., Acta nº 1, reunião de 06-06-1931, fl. 5. 910

Não se sabe muito sobre a situação de cada um destes partidos, nesta fase da Ditadura Militar, embora os dados trazidos à colação por Ernesto Castro Leal no seu estudo sobre «o mapa político dos partidos e grupos republicanos» ajudem a conhecer melhor a fase imediatamente anterior, até 1926, na qual constata a “acrescida pulverização” da já de si acentuada instabilidade dos partidos republicanos. Ernesto Castro Leal, Partidos e Programas. O campo partidário republicano português 1910-1926, Coimbra, IUC, 2008, p. 116. Ainda sobre o período anterior ao 28 de Maio, veja-se o estudo clássico de António Telo, integrando as profundas modificações que então se dão campo político-partidário no seu contexto económico-financeiro e social. António Telo, Decadência e queda da I República Portuguesa, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, Vol. 2. Sobre o Partido Socialista no início dos anos 30, vejam-se as pistas avançadas por Susana Martins, Socialistas na Oposição ao Estado Novo. Cruz Quebrada, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005, pp. 17-37.

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necessidade de se conjugarem os esforços de todos os democratas para uma luta política legal na mais perfeita e completa união, até ao restabelecimento do Estado Republicano.»

911

O grupo político da Seara Nova conseguiu, por um expediente de Mário de

Azevedo Gomes912, obter dois representantes: além do próprio Azevedo Gomes,

também Mário de Castro, que entrou no Directório Único para representar os ‘novos’.

A oposição republicana à Ditadura consegue, assim, congregar todo o leque partidário,

à excepção do PCP que então considera que de «nada adiantaria derrubar a ditadura

militar, para pôr no seu lugar, a ditadura ‘constitucional’ burguesa»913.

Neste directório, vale a pena reter a nossa atenção, de modo especial, sobre os

maçons, os seareiros e os militares. Relativamente aos primeiros, apesar do

envolvimento do grão-mestre e de vários maçons neste projecto, não é crível que a

escolha das personalidades para o directório tenha estado primacialmente ligada à sua

filiação maçónica. Como noutras ocasiões, tratando-se de política, as fidelidades

partidárias sobrepõem-se às fidelidades maçónicas. É certo que dos doze membros do

directório da ARS, cerca de metade é ou tinha sido maçon: Norton, Cabeçadas,

Maurício Costa, Crispiniano da Fonseca, Ramada Curto, Mário de Castro e Simões

Raposo Júnior914. Porém, cada um tem a sua filiação partidária, a sua agenda política e

911

ABMRR/CF/S/02, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., «Acta da reunião preparatória para constituição do organismo unico da aliança republicano-socialista», 04-06-1931, fl. 2. 912

«as indicações partidarias [para o directório da ARS] recahiam ao que parece sobre gente limpa embora no geral intelectualmente valendo pouco. Como figura primacial o Norton com quem me entendo bem. Além dos 8 representantes há 5 mais a escolher por estes como independentes; não sei ainda no momento em que lhe escrevo senão de dois: o Sr. Azevedo e Silva e o nosso Mário de Castro. Este entrou por sugestão minha – primeira pequena vitória da “Seara” – dizendo eu que era preciso dar representação à gente môça e ao novo espirito republicano que agita felizmente parte da mocidade escolar e extra-escolar. Concordaram. Os três restantes virão a ser naturalmente pavões decorativos. Entretanto, como conto com o Norton, e tenho o apoio do Mario, talvez consiga imprimir algum rumo a esta iniciativa». (BNP-ACPC, Reservados, Espólio Raul Proença, E7/1035, Extracto de carta manuscrita de Mário de Azevedo Gomes ao Dr. Jaime Cortesão, S.l., 06-06-1931). Na sua composição final, o directório virá a contar não com treze mas com doze membros. A adesão do grupo Seara Nova à ARS, decidida por Azevedo Gomes e Câmara Reis, desagradará profundamente aos seareiros então no exílio (Cf. Ana Cristina Clímaco Pereira, L’exil politique portugais en France et en Espagne 1927-1940, Vol. 1, pp. 136-137). 913

«Notas políticas» in Avante!, I Série, Nº 5, 06-06-1931, p. 3. 914

António Ventura, Uma história da Maçonaria em Portugal 1727-1986, p. 716. Quase todos foram indicados não pela maçonaria mas por cada um dos seus partidos. Norton, o PRP; Mendes Cabeçadas, a União Liberal Republicana; Maurício Costa, a Acção República; Crispiniano da Fonseca, a Esquerda Democrática; e Ramada Curto, o Partido Socialista. Mário de Castro, embora ligado ao grupo da Seara Nova, foi indicado por um outro membro do grupo, aliás um não-maçon, Azevedo Gomes. Dos maçons na estrutura dirigente máxima da ARS, apenas Simões Raposo Júnior se apresenta, à data, na qualidade de independente, para secretariar o directório.

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várias vezes no passado, durante a vigência da I República, estiveram envolvidos em

polémicas partidárias que chegaram a atingir grande violência verbal, dentro e fora do

Parlamento. Mesmo se nos ativermos apenas ao período da Ditadura ou mesmo à

actuação de cada um deles no seio do próprio directório da ARS, verificamos que a

sintonia entre estes maçons é tudo menos evidente.

Na estrutura directiva da ARS, Norton trabalhará, igualmente, com seareiros

que virão a ter um papel importante neste como noutros movimentos unitários da

oposição no futuro. É o caso, muito em especial, de Mário de Azevedo Gomes.

Azevedo Gomes, então com 45 anos, é professor catedrático de Agronomia, tendo sido

ministro no governo Álvaro de Castro em 1923-1924. Sendo uma personalidade de

vasta cultura e qualidades humanas, manifestará ser um congregador de pessoas e

tendências no seio da ARS, papel que retomará, com mais relevo ainda, nos anos 40,

primeiro como presidente da comissão central do MUD e depois como presidente da

comissão de candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. Já o

advogado Mário de Castro, que virá a estar mais tarde ligado à criação do MUD, faz

parte de uma nova geração de oposicionistas formada nas lutas estudantis sob a

Ditadura915, cujos escritos políticos sobre as doutrinas reaccionárias e o futuro da

República916 Norton seguia com muita atenção, lendo-os e anotando-os profusamente.

O terceiro grupo sobre o qual vale a pena determo-nos um pouco mais é o dos

militares que, com Norton, foram o trio militar do directório917. São eles os contra-

almirantes Tito Augusto de Morais (1880-1963) e José Mendes Cabeçadas Júnior

(1883-1965). Num grupo composto maioritariamente por civis e num contexto que é

de combate, mesmo que agora sob uma veste legal, a uma ditadura de natureza

militar, a presença destes militares de alta patente naquele órgão directivo ganha

especial relevância. Não admira, por isso, que na primeira reunião do directório sejam

precisamente eles a ficar mandatados para todos os contactos que se vierem a revelar

necessário fazer com as autoridades. Na verdade, o efeito moral da ARS, ao ter 915

Cristina Faria, As lutas estudantis contra a ditadura militar (1926-1932), Lisboa, Colibri, 2000, p. 295. 916

Nomeadamente a série de artigos publicados na Seara Nova sobre estes tópicos ao longo de 1930. 917

Uma análise mais aprofundada do percurso pessoal e comparado deste trio pode ser encontrada em Helena Pinto Janeiro, «Os militares na Aliança Republicano-Socialista: um triunvirato militar para uma transição civil» in AAVV, 100 Anos do Regime Republicano: Políticas, Rupturas e Continuidades: Actas do XIX Colóquio de História Militar, especialmente pp. 374-379.

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demonstrado que a unidade da oposição era possível, é acentuado pelo triunvirato

escolhido para a representar institucionalmente. Os três encarnam, com todo o seu

simbolismo, a I República. Norton por ter estado, enquanto governante, no cerne de

duas das grandes polémicas que a marcaram, para melhor e para o pior: o milagre de

Tancos e a missão civilizadora de Portugal em Angola, em versão republicana. À maior

experiência política de Norton nos governos da República e da sua maior colónia, Tito

de Morais e Mendes Cabeçadas trazem a patine da história. Afinal, tinham sido

protagonistas da própria revolução do 5 de Outubro, membros da assembleia

constituinte e oficiais da arma decisiva em todas as revoluções republicanas, a

Marinha. Com essa ligação ao passado, o triunvirato assegura como que o selo de

garantia da legitimidade histórica republicana918. Paradoxalmente, Cabeçadas também

simboliza o golpe do 28 de Maio que derrubou a I República e foi durante semanas o

homem-forte que dirigiu a ditadura militar. A sua presença neste novo triunvirato da

ARS traz uma autoridade moral acrescida para lembrar à ditadura, cinco anos após a

sua instituição, que está na hora de acabar com o regime de excepção e voltar a um

paradigma constitucional, republicano e democrático, mas expurgado dos vícios do

passado. E lembrá-lo-á pessoalmente a Carmona, no final da entrevista que o trio

militar do directório com ele terá919.

V.3.2. O programa: o mínimo denominador comum

Apesar de o PCP não fazer parte desta primeira tentativa bem-sucedida de

unidade da oposição contra a Ditadura Militar, nem por isso se tornou mais fácil

918

Mesmo se não faltam as alfinetadas da imprensa da ditadura ao facto de Norton não ser um republicano histórico. Cf. «NOTA POLÍTICA» in Diário da Manhã, 21-04-1931, p. 1. 919

O relato das palavras de Cabeçadas é feito por Norton aos restantes membros do directório: [Cabeçadas] «relembrou a sua acção antes do 28 de Maio e quais as condições em que aliciara para a revolução o próprio General Carmona – “que a ditadura não iria, em caso algum, alem de seis meses, e que a ditadura se fazia para firmar o prestigiar os princípios e instituições republicanas” e que vai para seis anos que a ditadura dura, e os ministros, principalmente o das Finanças e o do Interior fazem a propaganda de um Estado Nôvo que é a negação formal e completa dos princípios da Liberdade e da Democracia, únicos alicerces seguros das Instituições Republicanas, ali estava e coerentemente muito bem como delegado da Aliança Republicano-Socialista. O snr. General Norton afirma ao Directorio que ao escutar o Contra Almirante Cabeçadas em Belem, se encheu de orgulho de ser seu companheiro, tal foi o desassombro das suas palavras e nobreza e virilidade com que foram pronunciadas. O general Norton de Matos termina: “Com os nossos ideiais, com os nossos propósitos – unidos urge que a nossa obra se continue pelo Pais e para o Paiz. Salvêmos os princípios porque justiça nos será feita, cedo ou tarde, por parte dos homens bons». ABMRR, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., Acta nº 9, 11-07-1931, fl. 15vº.

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encontrar um mínimo denominador comum a todos os membros da ARS920. O debate

em torno do manifesto é disso bem revelador. O projeto-base, redigido por Maurício

Costa, levanta objecções de fundo por parte dos seareiros, tanto que Mário de Castro

se propõe escrever um projecto de substituição, dentro da orientação indicada por

Azevedo Gomes, isto é, de «apor à ideologia Salazar a ideologia republicana», que

identifica com democracia, liberdade e o princípio da independência de poderes921.

Para os seareiros, era indispensável separar bem as águas. Dois dias depois, já com os

dois projectos em cima da mesa, o directório acaba por decidir contra a ideia de

amalgamar a doutrina dos dois, tendo ficado resolvido que o de Mário de Castro fosse

posteriormente publicado sob a forma de folha de propaganda, a que se seguiriam

outras sobre temas como acção colonial ou política internacional. A discussão das

emendas e aditamentos a apor ao texto de Costa é interrompida quando Azevedo

Gomes apresenta um terceiro projecto alternativo. Para ultrapassar as divergências,

fica então decidido que uma comissão presidida por Norton e incluindo os três

proponentes iria tentar chegar a uma versão definitiva922, que finalmente é aprovada a

22 de Junho e logo assinada por todos os presentes. Significativamente, Mário de

Castro não deixa cair a ideia de fazer sair, juntamente com o manifesto, um outro

documento que cumpra a «necessidade urgente de se publicar desde já uma refutação

integral da doutrina política da Ditadura»923, o que virá a acontecer ainda esse ano,

numa brochura cujo produto líquido da venda é destinado às famílias dos republicanos

presos ou exilados924.

Mesmo se Castro considerava que o manifesto, em versão de compromisso,

não cumpria, por si só, essa função essencial de refutar integralmente a doutrina da

920

À parte a vontade comum de pôr fim à ditadura, cinco anos após um outro mínimo – muito mínimo mesmo – denominador comum (quebrar o círculo vicioso que estrangulava politicamente a I República, incapaz de uma genuína alternância democrática) ter unido uma improvável fronda de interesses e fações as mais diversas e mesmo contraditórias entre si que tornaram possível o 28 de Maio, como recorda Fernando Rosas, no ensaio «Três mitos sobre o “28 de Maio”» in O 28 de Maio. Oitenta Anos Depois: Contributos para uma reflexão, Apresentação de Luís Reis Torgal, S.l., CEIS20, S.d., pp. 67-82. 921

ABMRR/CF/S/02, Aliança Republicano-Socialista. Directório. Actas das Sessões, 04-06-1931 a 12-05-1932, mns., Acta nº 2, 17-06-1931, fl. 6vº. 922

Idem, Acta nº 3, 19-06-1931, fl. 7. 923

Idem, Acta nº 4, 22-06-1931, fl. 8. 924

Mário de Castro, Ideário republicano, S.l., Ed. Seara Nova, 1931, pp. 9-40. A versão dactilografada, com comentários mns. do punho de Norton, está no ANM, mç. nº 19, «Aliança Republicano-Socialista».

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ditadura, ainda assim havia quem, à direita, não tivesse ficado satisfeito. É o caso do

Partido Nacionalista que, advogando a necessidade de serem dadas no senado

representação a classes e corporações, protesta categoricamente por esse princípio

não constar do manifesto. Tito de Morais, alegando dever de lealdade, mostrara o

texto ao seu partido e, perante a reacção dos correligionários, tenta que a ARS faça

mais esta emenda ao texto, que já se encontrava aprovado e assinado, inclusive por si

próprio925. Mais uma vez, é Azevedo Gomes que, com a sua diplomacia, salva a

situação, reiterando o apreço por Tito de Morais e sugerindo que a proposta fique

junta ao processo do Manifesto mas apenas

«depois de se ter assentado bem que não se modificava a pressão ou reclamação do Directório do Partido Nacionalista, porque o contrário seria pôr em perigo a existência da Aliança Republicano-Socialista, o que nenhum dos seus membros desejava nem queria.»926

Efectivamente, o Manifesto ao País, concretiza o que classifica de «pensamento

democrático da actualidade»927 numa extensa série de princípios orientadores,

esclarecendo, à cabeça, qual a relação entre os indivíduos e o Estado: cidadão é a

realidade política fundamental e o Estado representa a comunidade dos indivíduos e

não as corporações. Prossegue, depois, defendendo que, para poder ser exercida, a

cidadania exige liberdade, num tríplice sentido: liberdade política, desafogo económico

como garante de independência e cultura quanto baste para assegurar uma escolha

consciente. Exige, ainda, igualdade no acesso à cultura e ao bem-estar. Deve, por outro

lado, exprimir-se através do sufrágio universal em eleições para o Parlamento e, em

determinadas circunstâncias, em referendos. Requer, ainda, descentralização, com

enfoque no município e sindicato, encarados como escolas de civismo. Numa tentativa

de conciliar os contrários, tanto à direita como à esquerda, no manifesto admite-se

que o Estado possa recorrer à concentração sindical e à organização corporativa desde

que não atente contra a liberdade individual, defendendo que o capital deve estar ao

serviço do trabalho e da produção.

925

Acta nº 5, 25-06-1931, fl. 9 verso e segs. 926

Idem, fl. 10. 927

Seguimos aqui a versão final do panfleto. BNP-ACPC, Espólio de Ginestal Machado, E55/1362, ALIANÇA REPUBLICANO-SOCIALISTA, MANIFESTO AO PAÍS, Lisboa, Tip. da Papelaria Progresso, 22-06-1931, 4 fl., imp. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste documento.

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De seguida, reitera-se que o Parlamento é o organismo político por excelência,

nele devendo estar políticos, não técnicos, e que os partidos são incontornáveis, só

fazendo sentido se forem vários. O que não significa, porém, que o parlamento possa

obstaculizar sistematicamente o executivo, que deve ter condições de estabilidade e

funcionar em harmonia com o primeiro («Um não pode tutelar o outro»), assistido por

organismos de natureza corporativa e técnica.

Finalmente, o manifesto advoga a independência do poder judicial e a laicidade

do Estado, concluindo com considerações a favor do papel das forças militares e a paz

mundial: o território nacional é intangível e inalienável, podendo e devendo ser

defendido pela força armada, mesmo se a paz mundial é o que a ARS deseja para as

novas gerações.

A este conjunto heteróclito de considerações, que tentam satisfazer as «varias

correntes de opinião republicana», dando uma no cravo e outra na ferradura,

acrescenta-se, no final do manifesto, uma última expressamente destinada ao

eleitorado socialista: «a República é a expressão política do socialismo, como o

socialismo é para muitos, a expressão económica da República».

Por mais diverso e mesmo contraditório que se revele esse «pensamento

democrático da actualidade», quando se começa a entrar no detalhe, há algo em que

todos estão de acordo. É no apelo ao «regresso urgente á normalidade constitucional»

mesmo se esta, como se pode inferir dos princípios atrás enunciados, não signifique o

regresso, sem mais, à Constituição de 1911, cuja revisão está, «evidentemente», nos

«formais intuitos» da ARS. Desde que efectuada em sede parlamentar, o órgão com

legitimidade para o fazer. Do mesmo modo, a ARS participa no recenseamento na

«persuasão de que essas liberdades e garantias serão asseguradas». Em síntese, para

«encerrar entre nós o ciclo das lutas violentas», urge «regressar a um regime de

direito» pois só «deixará de haver revoltados no dia em que deixar de haver quem

oprima». É o mais longe que a ARS vai na crítica à ditadura num manifesto cujo tom

geral é ordeiro, quando não raia mesmo a reverência.

O tom moderado do manifesto é, no entanto, compreensível. Além da

necessidade de encontrar um denominador comum aos vários partidos e grupos

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republicanos, quase tão impossível como fazer a quadratura do círculo, a divulgação

do texto, em larga escala, junto da opinião pública, dependia da benevolência da

ditadura. A ser escrito numa linguagem mais combativa seria seguramente impedido

de circular, como, aliás, apesar de todas as cautelas, acabaria por ser, como de seguida

veremos.

V.3.3. A questão das condições mínimas: do recenseamento à ida a

votos

Os oposicionistas republicanos e socialistas logram pôr de pé uma máquina

organizativa em torno do recenseamento eleitoral a vários títulos surpreendente. É um

movimento que parte de cima para baixo mas igualmente de baixo para cima.

É verdade que antigos e novos notáveis dos partidos se entendem a alto nível

das várias estruturas partidárias e que esse entendimento é vital para dar o pontapé

de saída, tendo os vários membros do directório distribuído entre si, para os «serviços

eleitorais», os distritos do continente, ilhas e colónias928.

Não obstante, ressalta de várias fontes, desde a imprensa até às informações

chegadas ao Ministério do Interior, que a formação das comissões políticas a nível

mais local emerge geralmente de baixo para cima, sendo da iniciativa não apenas das

comissões políticas locais dos vários partidos mas igualmente, e estas em grande

número, dos centros e associações cívicas republicanos locais, afectos às várias

sensibilidades partidárias que não unicamente o PRP. É a nível do concelho e, mais

ainda, da paróquia, da freguesia, do lugar e, até, da rua que se vão formando as

comissões da ARS, aproveitando a rede logística multipolar republicana que a ditadura

estava ainda longe de ter conseguido desactivar. A este nível mais micro, quem toma a

iniciativa de promover a unidade a nível local é ora um partido, ora outro; ora um

928

Viana do Castelo, Braga e colónias africanas ficam a cargo de Norton de Matos; Vila Real e Bragança, de Maurício Costa; o Porto, de Azevedo e Silva; Viseu, com Almeida Arez; Aveiro e Coimbra, com Mário de Castro; Castelo Branco e Guarda, com Crispiniano da Fonseca; Leiria e Santarém, com Ramada Curto; Lisboa, com Simões Raposo; Setúbal e colónias do Oriente, a cargo de Tito de Morais; Portalegre e Évora, com Belo de Morais; Beja e Faro com Cabeçadas; e, por fim, as ilhas adjacentes são confiadas a Azevedo Gomes. BNP-ACPC, Espólio de Ginestal Machado, E55/1362, ALIANÇA REPUBLICANO-SOCIALISTA, Circular do Directório e Grupos aliados, às Comissões Políticas da Aliança e aos seus correligionários, Lisboa, 28-06-1931, 2 fl., imp. em papel com timbre, ass. pela comissão executiva da ARS, por mandado do directório.

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centro republicano, ora outro. Do exílio, Bernardino Machado não deixa de apreciar a

dinâmica da ARS que lhe faz lembrar «a organização das nossas valorosas comissões

políticas, quando combatíamos a monarquia»929. É o país republicano que emerge da

letargia em que se encontrava, rentabilizando para a ARS a sua rede de centros por

todo o país. Mobilizada é uma parte importante da elite de notáveis locais que, na

Primavera/Verão de 1931, a União Nacional está ainda longe de ter conseguido

neutralizar ou atrair para as suas hostes, por muito que algumas franjas dos partidos

republicanos mais conservadores tenham começado já a render-se às virtudes da nova

ordem. Ao jornal República930 chegam diariamente comunicados de reuniões havidas

no centro republicano ou no teatro da vila, ou na casa de um notável da terra, em que

os republicanos de todos os pontos do país formam comissões políticas unitárias, com

representação plural, eleitas umas por voto secreto, outras por aclamação,

frequentemente por unanimidade.

Inicialmente, as comissões formadas a partir de finais de Maio aparecem como

comissões promotoras do recenseamento eleitoral. Passadas algumas semanas,

porém, também essas estruturas locais começam a designar-se comissões de freguesia

ou comissões paroquiais da ARS, assumindo a sua filiação nessa aliança já como

entidade própria e não apenas como a mera soma das partes, os partidos. O primeiro

passo era trabalhar para forçar o governo a fazer um recenseamento sem atropelos à

legalidade, mesmo se o que a lei definia era extraordinariamente restritivo e,

sobretudo, vago em vários aspectos que se podiam prestar, como se prestaram, a

manipulação por parte das autoridades. Tratar-se-ia de orientações vindas do próprio

ministro do Interior, ordenando «a falsificação do recenseamento eleitoral com

929

ABM, Rascunho de carta de Bernardino Machado a vários destinatários, entre os quais Álvaro Poppe e Francisco Aragão, Bayonne, 24-11-1931. 930

O diário que mais advogou a unidade entre republicanos e que funciona como uma espécie de caixa de correio entre os vários níveis das estruturas da ARS. Joaquim Ribeiro de Carvalho, o director do República, esteve intensamente envolvido na criação da ARS, tendo, inclusive, participado na reunião preparatória à sua constituição formal. Na ocasião, colocara os seus préstimos à disposição para que a ARS pudesse ter o seu próprio jornal. Não se tendo chegado a concretizar um periódico próprio a nível nacional, o República funcionaria, na prática, com essa função. Já no Outono, um grupo de jornalistas propõe-se levar aquele novo jornal (a que chamam de Diário Liberal) por diante, sob a direção de João de Barros, estando a decorrer o processo de recolha de fundos necessários. ABMRR, Actas…., Acta nº 14, 29-10-1931, fl. 26 e segs.

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instrucções minuciosas»931. No terreno, autoridades há que não se coíbem de alegar

instruções vindas de cima para recusar a inscrição de oposicionistas nos cadernos

eleitorais932.

A isto acrescem limitações gravosas impostas pelo governo à propaganda

eleitoral da ARS. A 28 de Junho, a apreensão pela Polícia de Segurança Pública de 8000

exemplares do Manifesto ao País (4000 já impressos, outros 4000 a meia impressão)

numa tipografia de Lisboa constitui um revés considerável. Norton, na qualidade de

presidente do directório da ARS, sentindo-se pessoalmente atingido na sua honra de

oficial-general, reclama veementemente junto do ministro da Guerra933. Debalde! Os

exemplares apreendidos não são devolvidos, vindo a ser queimados pela polícia934. As

palavras do presidente do Ministério e do ministro do Interior a 2 de Julho, ao

admitirem perante o trio de altas patentes militares que, em representação da ARS,

lhes solicitaram audiência, que nada de desprimoroso constava no documento935, são,

assim, clamorosamente desmentidas pelos factos. A luz verde dada pelo governo à

publicação do Manifesto na imprensa de referência nos dias seguintes constituiu um

fraco paliativo para o rude golpe antes desferido com a apreensão e posterior queima

de uma quantidade tão grande de panfletos.

De nada parecia ter valido, igualmente, a audiência do triunvirato militar da

ARS com o general Carmona que tivera lugar na tarde de 8 de Julho no Palácio de

Belém,

«especialmente destinada a reclamar, perante sua Exª, contra o regime de instruções secretas, consentidas por diploma, para os interrogatórios e detenções pela mesma Polícia, contra as anormalidades dos diplomas de recenseamento eleitoral, exaltando

931

ABM, Carta de Jaime Cortesão a Bernardino Machado, Madrid, 14-08-1931. 932

É o caso, para dar apenas um exemplo, do presidente da Junta de Freguesia de Macinhata do Vouga, em Aveiro, que se recusa a passar atestados de residência e de chefe de família «alegando que foram instruções recebidas». «VIDA POLITICA. Os republicanos partidarios de todo o país preparam-se para a luta eleitoral» in República, 24-06-1931, p. 3. 933

Cf. AHM, FO/33/1/Cx. 438/Repartição do Gabinete do Ministro da Guerra, [Processo] Nº 956, General reformado José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Carta de Norton de Matos ao coronel Schiappa de Azevedo, ministro da Guerra, Lisboa, 29-06-1931, 4 fls. dact. ass., em papel timbrado da ARS. 934

Cf. BNP-ACPC, Espólio de Ginestal Machado, E55/1362, ALIANÇA REPUBLICANO-SOCIALISTA, Circular... de 28-07-1931, atrás citada. 935

A audiência tem lugar a 2 de Julho no Palácio de São Bento, sendo o seu conteúdo relatado na reunião do directório da ARS realizada nessa mesma noite. ABMRR, Actas…, Acta nº 7, 02-07-1931, fls. 1 verso e 12.

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a necessidade de providências para acalmar o espirito público, substituindo embates violentos pela luta política ordeira, com garantias de liberdade insofismáveis.»936.

As reclamações, explicitadas pela comissão executiva da ARS em Circular do

Directório e Grupos aliados, às Comissões Políticas da Aliança e aos seus

correligionários, não chegam, porém, ao conhecimento público, prestando-se a todas

as especulações. Visto de fora, do exílio, parece que o directório «foi a Belem como

que apresentar credenciais ao Chefe da Ditadura»937, acusa Afonso Costa, num juízo

que Bernardino Machado também partilha. O desconforto por parte dos notáveis

oposicionistas no exílio está longe, no entanto, de se circunscrever à ida do trio militar

a Belém. Estende-se à própria existência da ARS, que foi criada sem o seu concurso e

cuja acção não controlam.

A verdade, porém, é que as reclamações da ARS caem em saco roto. Os

obstáculos à propaganda vão-se multiplicando, apesar das promessas das autoridades

da ditadura de que seria autorizada a fazer propaganda eleitoral nas capitais de

distritos, nos concelhos e nas freguesias «quando o Governo a entenda oportuna, em

termos especiais que serão publicados»938. Entretanto, a ARS é forçada a limitar-se à

propaganda do recenseamento, vendo-se impedida, a partir de certa altura, de

continuar a dar sequer publicidade às listas de adesão à Aliança, cuja publicação deixa

de ser autorizada. Mesmo reuniões internas, como a projectada apresentação do

directório às Comissões Políticas de Lisboa a 9 de Julho, no Centro Republicano Dr.

Magalhães Lima, acabam por ser proibidas pelas autoridades. Na sessão estavam

previstas intervenções de Norton de Matos sobre política geral e colonial, de Belo de

Morais sobre cultura, instrução e assistência, de Tito de Morais sobre defesa nacional,

de Maurício Costa sobre justiça, e de Ramada Curto sobre o problema social. A

justificação dada pelo gabinete do ministro do Interior para a proibição é de que «o

govêrno não podia dar facilidades a propagandas nocivas aos seus objectivos

políticos»939. Os tais termos especiais segundo os quais a ARS poderia vir a fazer

936

BNP-ACPC, Espólio de Ginestal Machado, E55/1362, ALIANÇA REPUBLICANO-SOCIALISTA, Circular... de 28-07-1931, atrás citada. 937

ABM, Carta de Afonso Costa a Bernardino Machado, Vittel, 09-08-1931. 938

BNP-ACPC, Espólio de Ginestal Machado, E55/1362, Circular... de 28-07-1931, atrás citada. Até referência em contrário, as citações são tiradas deste documento. 939

Idem.

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propaganda eleitoral não chegam a ser definidos. A oportunidade parece nunca mais

chegar.

O coronel Lopes Mateus, na pasta do Interior – e, em breve, também na pasta

da Guerra –, dá o mote, asseverando às comissões da União Nacional não haver razão

para temer a concorrência dos partidos pois estes não voltariam ao poder, «nem pelas

eleições nem pela revolução»940. Apesar da ameaça, o surgimento de uma frente

oposicionista unida e a dinâmica que estava a revelar por todo o país, viera dificultar

seriamente a intenção da ditadura de se legitimar por via eleitoral941. Ironicamente, a

ARS acabará por obrigar esta última a um processo de mobilização acrescida das suas

bases de apoio, acelerando o processo de implantação das redes locais da União

Nacional, com captação das elites de notáveis a um nível mais micro. Em não poucos

locais, a União Nacional, esse partido único que pretendia não ser sequer um partido,

«era um mito, somente existia no papel»942.

A mobilização e contra-ataque passam igualmente pelo órgão da União

Nacional na imprensa diária, acabado de nascer sob o alto-patrocínio do Ministério do

Interior. O Diário da Manhã usa e abusa de um extenso rol de citações do passado de

desinteligências entre vários dos políticos e partidos que compõem a ARS, para os

tentar desacreditar e demonstrar que a unidade atual não é viável ou sequer crível.

O golpe de misericórdia na ARS virá a pretexto da revolução falhada de 26 de

Agosto contra o governo da ditadura e a vaga de repressão que se lhe seguiu. O

general, a quem chegam ecos dos preparativos943, ainda tenta travar a revolução de

940

Declarações feitas em Braga, a 13 de Julho, numa reunião convocada para dar orientações às comissões da União Nacional. «NEM PELA REVOLUÇÃO, nem pelas eleições, os políticos voltarão a governar...» in Diário da Manhã, 14-07-1931, p. 15 e «O MINISTRO DO INTERIOR EM BRAGA. Uma importante reunião das comissões da União Nacional do distrito» in Diário de Notícias, 14-07-1931, p. 2. 941

Como lembra Arlindo Caldeira, «O partido de Salazar: antecedentes, organização e funções da União Nacional (1926-34)» in Análise Social, XXII (94), 1986-5º, p. 964. 942

Em Setembro de 1931, é assim que o governador civil da Horta caracteriza a situação «até ao presente», reclamando embora ter conseguido alterar parcialmente esse panorama após ter percorrido todas as ilhas, concelhos e freguesias do distrito, em conjunto com os presidentes das comissões distritais e concelhias da UN. ANTT, MI/GM, 452, Mç 28/2, Cópia de of. nº 2 do Governador civil da Horta, Augusto Paes de Almeida e Silva (delegado do Procurador da República) ao coronel António Lopes Mateus, Ministro do Interior, Horta, 30-09-1931. 943

Mesmo se vários dos implicados, entre os quais vários maçons como o próprio secretário-geral do GOLU, Cândido de Oliveira, tentam manter segredo perante o seu grão-mestre e presidente da ARS: «Eu estava dentro do movimento projectado e não podia indicar a ninguém nem mesmo àquele irmão, que

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Agosto944, o que numa primeira fase teria conseguido, apenas para, uns dias depois, os

acontecimentos se terem precipitado, à sua revelia.

Quaisquer veleidades que a ARS tivesse de forçar a balança a pender para uma

transição democrática são então liquidadas. No final de um Verão que viu florescer

com surpreendente vitalidade comissões políticas da ARS que, numa rede de malha

fina, surgiram por todo o país assustando fortemente a União Nacional, o general

Norton de Matos será convidado a exilar-se. Novamente. A ARS, essa, sobreviverá por

mais uns anos, numa tentativa vã de manter a chama da unidade da oposição acesa,

doravante reduzida a um pequeno grupo de personalidades de Lisboa que nada

representam a não ser a si próprias.

Se, no país, a oposição lograra unir-se apostando na via eleitoral, a verdade é

que a oposição exilada nunca desistiu de tentar o derrube da ditadura pela via golpista.

Por outro lado, algumas franjas da ARS não deixaram de paralelamente jogar o jogo

revolucionário, como aconteceu com o próprio secretário-geral do directório, Simões

Raposo Júnior945. Na verdade, não era o único membro do directório que apostara no

combate pela via eleitoral com a reserva mental de que ela não iria resultar sem o

apoio de um golpe revolucionário. Crispiniano da Fonseca manifesta essa convicção de

uma forma muito clara logo em Maio946.

não merecia dos revolucionários nenhuma espécie de confiança, dado o seu pensamento e as relações que mantinha com muitos dos mais categorizados membros da ditadura». Cândido de Carvalho, Relatório dact., s.d., constante no Arqº do Grémio Lusitano, citado por António Ventura, Uma história da Maçonaria em Portugal 1727-1986, p. 720. 944

«De resto já era tarde. Já se tinha pegado fogo ao rastilho da grande e corajosa insensatez. Uma semana antes do 26 de Agosto, alguém de alta nobreza de caracter, de grande coragem militar e civica, Helder Ribeiro, viu o perigo que a Republica ia correr e pos um pé no rastilho ardente. Fiquei então tranquilo; mas infelizmente um feito patriotico apenas demorou por uns dias o louco rebentar da bomba...». ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], Huelva, 24-07-1932 a 07-08-1932, mns., fls. 10-13. 945

Que se destaca entre os líderes civis da revolução, juntamente com um líder local da ARS, o farmacêutico Aires Leal de Matos: «É aliás pela banda desta liderança civil, integrada ou mesmo líder da Aliança Republicana Socialista, que o movimento adquire a sua feição popular. Aires Leal de Matos e Joaquim Pratas lideram uma importante rede de civis, operários e funcionários públicos, organizados na zona de Benfica/Carnide/Amadora ao mesmo tempo que o professor Simões Raposo Jr. exerce um forte ascendente moral e político sobre núcleos operários, simpatizantes socialistas, de algumas das zonas mais fortemente representadas, como o Bairro da Liberdade, o Casal Ventoso e a Rua Maria Pia, a Alcântara. Destes grupos operários sairão os combatentes do Jardim Zoológico e das Avenidas Novas, residentes nas Laranjeiras e Telheiras, já depois da rendição dos militares». Luís Farinha, O Reviralho: Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940, p. 178. 946

A «colaboração sem condições» da Esquerda Democrática no directório da ARS não significava que, «após a revolução», o partido ficasse condicionado a essa Aliança. Ou seja, a fé do delegado deste

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Norton, que em meados de Junho deixara bem claro perante os amigos, a

quem então escrevera a pedir apoio financeiro para a ARS, que, sem «as garantias e

liberdades que pressupõe o acto eleitoral» nunca iria a votos947, e mesmo depois de

ter verificado nos meses seguintes que aquelas lhe eram sistematicamente negadas

pelo governo, não é a este que responsabiliza pela inviabilização da ARS, mas sim ao

próprio campo oposicionista. No balanço que no seu diário de exílio fará desses

fugazes três meses de unidade da oposição face à ditadura, o general não tem dúvidas

em afirmar: «o único meio infalível de destruir a ARS era pôr na rua um movimento

revolucionário»948.

V.4. Um grão-mestre no exílio949

Encontrada entre os revoltosos uma lista governamental em que o nome do

grão-mestre aparecia como chefe de um futuro governo pós-ditadura, Norton é

convidado a sair de Portugal pelo governo do general Domingos de Oliveira.

Magnânimo, o governo vitorioso concede-lhe o passaporte diplomático. Nesse mesmo

dia, a maçonaria passa-lhe uma credencial para levar para o exílio. Nela, apresenta-se

a «todas as potências maçónicas e franco-maçons regulares» o irmão José Mendes

Ribeiro Norton de Matos, cavaleiro Rosa-Cruz, grão-mestre da Maçonaria Portuguesa,

solicitando que lhe sejam testemunhados «os vossos sentimentos de fraternal

solidariedade»950.

partido nas negociações para a formação da ARS (e, depois desta formalizada, no seu directório) na capacidade da Aliança derrubar a ditadura pela via eleitoral, era escassa. Carta de Crispiniano da Fonseca a João Pina de Morais, citada por António José Queiroz, A Esquerda Democrática e o final da Primeira República, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 188. 947

«O nosso dever de republicanos é recensearmo-nos e seguidamente concorrermos ás eleições, se eleições houver, se elas forem livres e se nos derem as garantias e as liberdades que pressupõe o acto eleitoral». ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta circular, do punho de Norton de Matos, assinado, dirigida a um grupo de amigos pessoais solicitando apoio financeiro para a causa da ARS, Vila Norton, Algés, 15-06- 1931, mns. 948

ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], fl. 10. 949

Retomamos e desenvolvemos aqui considerações já apresentadas em Helena Pinto Janeiro, «O Grande Oriente Lusitano Unido, entre a Ditadura Militar e o Estado Novo (1930-1935): ‘o barco que a reacção quer torpedear’», bem como algumas das reflexões sobre a experiência do exílio partilhadas e debatidas num colóquio em Lisboa, sobre «Norton de Matos em Espanha nos primeiros anos da República», comunicação oral apresentada no colóquio Exílios contra a ditadura, Lisboa, Edifício ID-FCSH/UNL, 07-05-2010. 950

ANM, P. Maçonaria, [Credencial] nº 180, GOLU-SCMP, ass. pelo Gde Secretário Geral da Ordem, Cândido de Carvalho, 20 , Lisbonne, 21-09-1931, em francês e inglês.

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Colocado perante o seu terceiro exílio (o segundo, sob a Ditadura Militar),

Norton sente-se agora no direito de solicitar a manutenção dos vencimentos como

general no ativo (presidente da Comissão de História da Grande Guerra) e professor do

Técnico, o que obtém. A contrapartida do governo é que vá para longe da fronteira,

para além-Pirenéus951. Norton, que se comporta sempre como um oficial-general em

face do seu superior (o ministro da Guerra), virá mais tarde a obter autorização do

Ministério para se mudar para Espanha, depois de uma curta visita à mãe doente, em

Ponte de Lima.

Estes factos, juntamente com a circunstância de ter pedido um empréstimo ao

GOLU para despesas de viagem e para assistência à família, torná-lo-ão no bode

expiatório favorito de todas as frustrações da oposição, maçonaria incluída,

acumuladas durante cinco anos de revoltas falhadas contra a ditadura. Afonso Costa

comenta, de Paris, sarcástico, que o regresso de Norton a Portugal parece depender

mais da autorização da ditadura do que propriamente da reposição da normalidade

democrática em Portugal 952.

Em Portugal, o GOLU está minado pela divisão. É verdade que, nos termos do

artº 61º, da Constituição Maçónica de 1926, na ausência ou impossibilidade do grão-

mestre, é ao grão-mestre-adjunto que cabe assumir interinamente o malhete de grão-

mestre, assumindo todos os seus poderes no caso de demissão, falecimento ou

impedimento953. Vai-se, porém, mais além, e prepara-se um golpe palaciano para o

afastar definitivamente. As críticas e as intrigas campeiam, e o presidente do Conselho

da Ordem, que apresentara a demissão, vê-se obrigado a não o fazer para não

participar naquilo que Norton, agastado, vê como uma cabala. O secretário-geral do

GOLU, Cândido de Carvalho, demite-se exasperado com

«os pruridos de legalidade levantados, à ultima hora, por muitos daqueles que se têm mantido na maior indiferença perante a causa da liberdade» e com a «tão grande actividade» em que o Grão-mestre adjunto, «a quem não foram porem

951

ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], fls. 19-26. 952

ABM, Carta de Afonso Costa a Bernardino Machado, Paris, 10-11-1931, 2 fls., mns. 953

Segundo a qual o grão-mestre-adjunto «substituirá» o grão-mestre «em todas as faltas ou impedimentos» (art

o 61

o), e, no caso de «impedimento do Grão Mestre efectivo, o grão Mestre adjunto

assumirá, nos termos das leis, todos os seus poderes» (§ único do mesmo arto). Cf. Constituição do

Grande Oriente Lusitano Unido Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Tipografia do Grémio Lusitano, 1926, p. 21.

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transmitidos por decreto os poderes», se encontra a «atender reclamações ou protestos feitos verbalmente e fora de todas as praxes regulamentares»954.

A ordem de trabalhos para a sessão da Grande Dieta convocada por Oliveira

Simões para 11 de Novembro de 1931 subentende, de facto, que se proceda à eleição

de um novo grão-mestrado nessa ocasião955, sem que antes tenham votado, ao

contrário do que determinava a Constituição Maçónica, no seu artº 57º, «todos os

Obreiros da Obediência decorados com o grau de mestre ou outro grau superior e

quotizados de tres meses.»956.

O experiente La Féria, profundo conhecedor da máquina interna do GOLU,

antecipa-se, e curto-circuita as diligências, apresentando uma contraproposta e uma

moção que lograram inverter a marcha dos acontecimentos e obter da Grande Dieta a

prorrogação do mandato de Norton como grão-mestre «até que as OOfic da Obed

possam livremente proceder á eleição respectiva, enviando-vos a respectiva

moção»957. São essencialmente dois os argumentos-chave com que La Féria convence

a Grande Dieta. O primeiro é que o projecto coarcta às oficinas o direito que lhes

assiste de elegerem o grão-mestrado. O segundo é que, depois de o grão-mestre ter

sido arbitrariamente expulso do país, a eleição de um novo apenas

«serviria para avolumar a campanha dos reaccionarios teem sustentado contra a sua altissima personalidade de português, de republicano e de maçon, constituindo um verdadeiro triunfo, para os adversarios da maçonaria»958.

Na moção antes da ordem do dia, La Feria vai mais longe, colocando em xeque

os maçons envolvidos na campanha contra Norton, insinuando que estão a fazer o

jogo da ditadura, ao enfatizar que seria impensável e mesmo impossível tal acontecer,

954

ANM, P. Maçonaria, Carta de Cândido de Carvalho a Norton de Matos, Lisboa, 04-11-1931, mns. 955

O Sap Gr M Adj na convocatoria que faz da Gr Dieta – apresentou-se para ordem dos trabalhos: 1

o Apreciação do projecto de lei para eleição do Gr Mestrado; 2

o Eleição do Gr Mestrado;

3o eleições de presidente do Conselho. Este pediu, realmente, a sua demissão, mas, em face da conjura,

resolveu manter-se no poder. O Gr M Adj. afirma que ele manteve o pedido, ele diz exactamente o contrario. Ora as convocatórias já foram feitas. Como resolver o problema? É mais um caso que só contribuirá para o desprestígio da instituição.» Ididem. 956

Constituição do Grande Oriente Lusitano Unido Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, p. 20. 957

ANM, P. Maçonaria, Prancha (ofício) da Grande Dieta do GOLU-SCMP, ao Sap Gr Mestre, Or de Lisboa, 11-11-1931. 958

ANM, P. Maçonaria, Cópia de «Contra-proposta», de Ramon Nonato de La Feria (Claude Bernard, 30 ), Or de Lisboa, 11-11-1931, dact.

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pois entre os maçons, «obreiros dedicados á causa da Liberdade e de Justiça»959 e os

obreiros da «Reacção que nos oprime e persegue» não pode haver qualquer tipo de

confusão

(«a vilissima campanha que no mundo prof e reaccionario se pretende manter com o pretexto de mentirosas informações (...) de modo algum poderiam ter origem no meio maçonico»).

Não só não pode, alega, ter origem no meio maçónico como

«nenhum obreiro da Obed dará guarida um só instante sequer, a qualquer tendenciosa informação ou critica que do mundo profano, chegue até nós por qualquer via sobrerepticia e peçonhenta e que vise a tentar diminuir o prestigio, o respeito, a admiração e a fraternal estima que todos os maçons portuguêses dedicam ao seu Sap Gr Mest ».

O texto termina propondo que a Grande Dieta envie ao grão-mestre

«a mais sentida expressão da sua inquebrantavel solidariedade maçonica e de admiração pelas suas notabilissimas atitudes, e os votos mais vehementes para que breve termine a situação que lhe foi creada com a brutalidade propria do odio que a sua qualidade de Grão Mestre da Maçonaria Portugueza, fez crescer no seio da Reacção que nos oprime e persegue.».

A moção é aprovada e enviada a Norton que, no entanto, não se deixa

comover, limitando-se a acusar a sua recepção960. O voto de «estima» e de «completa

obediência» que o novo presidente do Conselho da Ordem, eleito na mesma sessão da

Grande Dieta, Ramada Curto, lhe envia logo no dia da sua eleição, pedindo, ainda, a

Norton para reconsiderar a decisão de desistir de receber quaisquer novas prestações

do empréstimo, também não o demove. A 5 de Dezembro, declara a Cândido de

Carvalho não poder nem querer conservar o lugar de grão-mestre para lá do ano

corrente e lastimar as campanhas que contra ele se levantaram, no seio da maçonaria,

limitando-se «porem a lastimal’as no» seu «íntimo» e a sentir-se «profundamente

ferido com elas», sem que tal afecte a sua «gratidão» e «dedicação» pela Maçonaria

Portuguesa ao «bem e prestígio» da qual continuará «a dedicar todos os esforços»961.

A Oliveira Simões pede, na mesma data, que faça chegar ao presidente da Grande

959

ANM, P. Maçonaria, Cópia de «MOÇÃO (Antes da ordem do dia)», de Ramon Nonato de La Feria, 30 , Or de Lisboa, 11-11-1931, dact. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste mesmo documento. 960

ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta do grão-mestre ao presidente da Grande Dieta, Ponte de Lima, 14-12-1931, mns., pelo punho de Norton, e ass. 961

ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta de Norton de Matos a «Meu D.mo Amigo» [Cândido de Carvalho], Ponte de Lima, 05-12-1931, mns., do punho de Norton e por ele ass.

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Dieta uma declaração formal, que junta, comunicando a sua «resolução de não aceitar

a reeleição ou a readmissão para esse honroso cargo» alegando «o estado de saude»

que o «obriga a forçado repouso e absoluta tranquilidade e socego»962.

A um amigo maçon confessa o quanto lhe

«causou funda comoção o facto de muitos maçons terem aproveitado a situação que se me creou, para patentearem bem claramente que um Grão Mestre fora do pais tem de deixar inteiramente de exercer as funções da sua alta envestidura. Por essa razão me não considero Grão-mestre da Maçonaria Portuguesa há muitos meses e já declarei a quem de direito que não desejava que fosse apresentada a minha candidatura para reeleição no Grão Mestrado.»963.

De modo idêntico, demarca-se da ARS: «não quero pregar para aí nem prego

nem estopa»964. Falhada a via partidária, tão pouco reeditará o seu envolvimento na

via revolucionária, apesar dos sempre eternos planos dos oposicionistas no exílio em

França e em Espanha nunca deixarem de querer envolver o seu nome. Acaba por não

participar na reunião-magna que Bernardino Machado convoca para 22 e 23 de

Novembro em Beyris (Bayonne) para tentar dirimir as divergências no seio das

múltiplas tendências no seio da oposição e finalmente operacionalizar um comité

supremo que tudo conduza na marcha que conduzirá à revolução para fazer cair a

ditadura em Portugal965. A unidade revelar-se-á, porém, mais uma vez, uma miragem.

Norton, que nunca estivera disponível para ser o militar às ordens da dupla

Bernardino / Afonso Costa, muito menos agora o estará, depois de tudo o que

acontecera nesse Verão e Outono. Do exílio, o máximo que dele receberão são dois

pareceres confidenciais966 destinados a ser discutidos num encontro a realizar apenas

962

ANM, P. Maçonaria, Rascunho de carta de Norton de Matos «Ao Ven Pres da Gr Dieta, Ponte de Lima, 05-12-1931 (e v ), mns., do punho de Norton e por ele ass. 963

Cópia da resposta de Norton de Matos, transcrita pelo próprio no seu diário, em 28-03-1932, a uma carta recebida em Valência dois dias antes de um remetente não identificado, seu irmão maçon, in ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], fls. 59-60. 964

«Não sei bem o que é feito dessa “aliança” e não desejo meter para ahi nem prego nem estopa». ABM, Norton de Matos, Carta a Bernardino Machado, Pau, 07-11-1931. 965

Sobre a conferência de Beyris, cf. Ana Cristina Clímaco Pereira, L’exil politique portugais en France et en Espagne 1927-1940, Vol. 2, pp. 413 e segs.; e Luís Farinha, O Reviralho: Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940, pp. 200-206. 966

Na verdade, escreve dois pareceres e um aditamento, de que dá apenas conhecimento a Afonso Costa e Bernardino Machado: 1º) ABM, Norton de Matos, «Parecer confidencial», s.d., 3 fls., mns. não ass., anexas da cartão de visita de Norton de Matos, Pau, 23-10-1931, fls., mns. (Este parecer foi já transcrito e publicado por Luís Farinha, op. cit., pp. 309-310); 2º) ABM, Norton de Matos, «A minha opinião acerca da actuação dos republicanos em Portugal», parecer «confidencial», 4 págs., mns., [Pau],

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entre os três. Tal evento nunca chegará a acontecer mas a posição de Norton deixa

Afonso Costa agastado967, por muito que na correspondência que com ele mantém se

conserve no registo de urbanidade e cordialidade habituais, adiantando apenas o

reparo de que a renúncia solene à revolução lhe parece contrária aos princípios do

direito público moderno968. Na verdade, Norton parece ter entrado no domínio da

utopia. Propõe, basicamente, uma revolução política, eminentemente política, que

exige que se ponha de parte, sem qualquer reserva mental, «tudo o que fosse

revolução armada e violencia de qualquer especie»969. Teria de se promover a

assinatura de um manifesto afirmando solenemente essa disposição pacifista, assinado

pelos exilados políticos, pelos republicanos mais representativos em Portugal e por

representantes da maçonaria, numa base mais alargada do que a ARS. Com uma tal

declaração unânime e uma propaganda sem tréguas, a ditadura perderia a sua base de

sustentação970.

Contraditoriamente, porém, o general acaba por não afastar liminarmente a

possibilidade de um movimento revolucionário, que, ressalva, teria de ser sempre

conduzido pelos militares e nunca por populares armados. Assim, «a actuação politica

25-10-1931; 3º) ABM, [Esclarecimento] «Confidencial. Para ser junto ao meu parecer de 25-10-1931», Pau, 07-11-1931, 1 fl. mns, anexa a carta de Norton a Bernardino Machado, Pau, 07-11-1931, 1 fl. mns. 967

ABM, Correspondência vária de Afonso Costa com Bernardino Machado, 1931. 968

ABM, Cópia de carta de Afonso Costa a Norton de Matos, Paris, 09-11-1931, mns., anexa a Carta de Afonso Costa a Bernardino Machado, Paris, 10-11-1931, 2 fls. mns. 969

ABM, Norton de Matos, «A minha opinião acerca da actuação dos republicanos em Portugal», parecer «confidencial», 4 págs., mns., [Pau], 25-10-1931. Até indicação em contrário, as referências que se seguem são deste documento. 970

Pois, acredita, «A única força da Ditadura tem sido, é e será constituida pelas conspirações militares. Estão elas a servir, sem se dar por isso, os inimigos da Republica e da Patria. Desde que desapareçam essas conspirações, a maioria do Exercito desinteressar-se-há do regime ditatorial e seguirá em materia politica o exemplo dos Exercitos das grandes democracias europeias» (ABM, Norton de Matos, «A minha opinião acerca da actuação dos republicanos em Portugal», p. 4). Tal declaração, na utopia nortoniana 1º) daria «um golpe formidavel na mentalidade militarista, da qual estão possuidos e imbuidos altos espiritos da terra portuguesa, tanto civis como militares»; 2º) «acabaria com o nosso feitio revolucionario à maneira das republicas sul-africanas, que tanto nos tem prejudicado e desprestigiado»; 3º) dissuadiria as colónias (Angola, em especial) de enveredarem por movimentos violentos cujo único efeito seria a perda do império; 4º) acabaria no país «com restos de selvajaria que tanto tem perturbado a civilização lusitana»; 5º) «daria um golpe decisivo nas tentativas ridiculas da implantação de sistemas corporativos ou fascistas»; 6º) «colocar-nos-hia bem alto perante o mundo». Ibidem.

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teria apenas por fim preparar a atmosfera para o triunfo da força armada

revolucionaria.»971. Como mais tarde explicitará,

«Se a Ditadura, depois de manifestada a nossa atitude pacifica, nos calar com violencias e nos tentar reduzir á condição de escravos, teremos então direito de nos livrarmos dessa morte civica com armas, com unhas e dentes.»972

Afinal de contas, acrescenta, o exército não consentiria em violências do

género, não depois de a oposição ter, unanimemente, abatido bandeiras. Deixemos

registada, por ora, esta manifestação de fé de que o Exército, mais tarde ou mais cedo,

haveria de cair em si, convicção que ajudará a explicar algumas atitudes de Norton na

década seguinte. Seja como for, após seis anos de ditadura militar, é pouco crível que

Norton não tivesse a consciência de que o que a ditadura estava a levar a cabo era,

precisamente, a morte cívica dos adversários. Decide, não obstante, manter-se

doravante na retaguarda. Não o faz, exclusivamente, por se sentir politicamente

incompreendido «por gregos e troianos» mas, igualmente, por estar a viver uma

tragédia pessoal familiar, com a doença que quase ia levando a única neta. A partir dos

seus pareceres de Outubro, ainda declinará três convites para participar em acções

militares em Portugal. Manter-se-á basicamente indisponível e, frequentemente,

incontactável, no seu périplo como exilado em Espanha. Na maior parte do tempo, e

para retomarmos um dito de Afonso Costa, por este recorrentemente glosado:

«Ninguem sabe onde pára o Norton»973.

Em suma: política, nunca mais974, decide neste exílio franco-espanhol que,

ironicamente, termina por decisão tomada num dos primeiros conselhos de ministros

chefiados pelo seu arquiadversário, Salazar, em Julho de 1932, embora só no final do

mês seguinte Norton receba luz verde para regressar ao país. Desta vez o general

mobiliza-se para pôr fim a este exílio, pessoalmente ou por interposta pessoa.

971

A única situação em que um movimento revolucionário de carácter militar teria condições para vingar em Portugal seria no caso de «qualquer acontecimento de iminente perigo nacional ou que repentinamente e por completo desacredite o regime ditatorial»; caso contrário esse movimento irá «contra a maioria do Exercito Portugues, que continua resolvido a manter a Ditadura». Cenários de movimentos revolucionários levados apenas a cabo por populares armados são de afastar liminarmente. Estariam votados ao fracasso mas no caso, para si absurdo, de terem sucesso, seria uma calamidade para Portugal. Ibidem. 972

ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], fls. 53-54. 973

ABM, Carta de Afonso Costa a Bernardino Machado, Paris, 01-01-1932, 1 fl., mns. 974

Cf. ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], p. 66.

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Ultrapassa, assim, a posição intransigente antes mantida na deportação açoriana, só

então curto-circuitada pela intervenção de familiares e amigos, à sua revelia. As

circunstâncias pessoais e familiares do expatriamento são, desta feita, mais pesadas.

Do ponto de vista político, as circunstâncias eram menos animadoras e escassa era a

esperança. O projecto da unidade republicana que protagonizara com a ARS estava

ferido de morte tendo até, paradoxalmente, ajudado à mobilização do partido único

patrocinado por Salazar e este último, o estadista do outro lado da barricada com

quem se compara, está em alta, tendo finalmente alcançado a presidência do governo.

Neste novo contexto, Norton não se coibirá de repetidamente solicitar o seu

regresso a Portugal. Esforça-se por fazê-lo sem perder a honra, acedendo até, depois

de uma longa reflexão, a escrever uma nova carta ao ministro da Guerra975. A carta

fora sugerida pelo ministro do Interior, esse «insignificante» ministro cujo nome

enfaticamente declara já nem se lembrar976. Como parece ir longe o tempo em que

Norton, deportado nos Açores, perguntava aos combatentes de Fevereiro de 1927

deportados na Madeira, se era «com medo de perseguições, demissões, cortes nos

vencimentos, deportações e prisões, que se julga alcançar a vitória?»977

Quando Duarte Pacheco é convidado a integrar o primeiro governo chefiado

por Salazar, no Verão de 1932, Norton não hesita em escrever ao seu colega, como ele

professor do Instituto Superior Técnico, que terá levado o seu caso a peito978.

Mesquita Guimarães, ministro da Marinha, terá igualmente patrocinado o seu

975

A Eduardo Marques, a quem enviou cópia da carta ao ministro, explica-se: «É o maximo que posso dizer; e julgo que nem sequer essas minhas palavras deviam ser necessarias para que o Governo da Ditadura me fizesse a justiça que me é devida e acabasse com a absurda situação que me crearam. Bem devem compreender todos que uma cousa é estar resolvido a abster-me de actividades politicas, que gregos e troianos não veem com bons olhos, malsinam ou desvirtuam, e outra cousa é fazer declarações sem sentido sob a coação de um exilio que tanto nos atormenta a mim e aos meus, e com o fim de acabar.// Uma cousa, de facto, são declarações e afirmações entre amigos e parentes, outra cousa são declarações e afirmações feitas aos que nos privam de regalias e liberdade, a que temos pleno direito.// Apenas umas e outras dessas declarações e afirmações deveriam ter uma característica comum: - a da firme intenção de serem cumpridas.//Crê que muito grato te estou pela tua intervenção neste triste e aborrecido incidente. Oxalá a possas levar agora a bom termo e sem desonra para mim». A carta é transcrita pelo próprio no seu diário: ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], pp. 39-41. 976

António Lopes Mateus, o ‘espadachim Mateus’ que ameaçara que a ditadura não cairia nem a votos nem a balas. 977

Carta aos combatentes de Fevereiro de 1927, 22-04-1928 in A.H. de Oliveira Marques (coord.), O general Sousa Dias e as revoltas contra a ditadura, 1926-1931, p. 96. 978

Cópia de carta de N. de Matos a Duarte Pacheco, 08-07-1932 transcrita em ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], pp. 43 e segs.

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regresso. Mas é sobretudo com o general Eduardo Marques, que virá a ser o primeiro

presidente da Câmara Corporativa do Estado Novo ora em gestação, que conta para

sensibilizar as autoridades da ditadura para a sua situação979.

Numa longa carta que lhe escreverá em finais de Agosto de 1932, agradece as

repetidas visitas e diligências levadas a cabo para tentar acabar com o que considera

ser a injustiça e crueldade da situação em que se encontra, doente e longe da família.

Ao amigo declara peremptoriamente que não pretende «organizar nem chefiar

conspirações ou revoluções ou qualquer cousa que com isso se pareça»980 convencido

como está que a via para repor a democracia em Portugal é «a propaganda pacifica,

ordeira e legal», além de agastado com as campanhas de que é alvo por parte dos seus

correligionários políticos.

«Mas tudo isto me é indiferente: - cansado, doente, minado de desgostos, aborrecido com toda esta série de campanhas, engendradas nos proprios meios politicos em que tenho militado, estou resolvido a retirar-me de vez de qualquer actividade politica e a procurar ter nos ultimos dias de vida o descanso a que, creio, conquistei direito com os meus trabalhos e com o meu patriotismo.».

Ao manifestar deste modo a sua firme resolução de se retirar de vez de

qualquer actividade política, mesmo quando acrescenta que não quer «tornar publica

por ora esta resolução que (...) seria levada por muitos á conta de um esforço para

conseguir a (...) repatriação», não poderia ignorar que seria precisamente essa a

leitura que o governo de Salazar iria fazer, por mais genuína que fosse a sua desilusão

com a política, como parecem comprovar quer os seus escritos quer o seu

comportamento durante este seu terceiro exílio, o segundo sob a Ditadura Militar.

De igual modo, não ignoraria que as suas declarações de repúdio por qualquer

entendimento da República espanhola quer com Democráticos quer com integralistas

portugueses era música para os ouvidos da ditadura portuguesa embora, quanto a

este ponto, a sua sinceridade seja à prova de bala. Na verdade, é o Norton do “grande

dever” que reconhecemos quando se demarca, de forma inequívoca, das

979

Já durante o seu anterior exílio nos Açores pudera contar com o apoio interessado deste seu camarada, na altura ministro primeiro do governo de Ivens Ferraz e, depois, do de Domingos Oliveira. 980

Cópia de carta «particular» de N. de Matos a Eduardo Marques, Hotel Internacional, Huelva, 23-03-1932, transcrita pelo autor no seu diário: ANM, Norton de Matos, Diário. Iniciado em 8-VIII-32, Huelva e Algés, 1932-1933, caderno mns., pp. 55 e segs. Até referência em contrário, as citações são desta missiva.

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cumplicidades entre os exilados portugueses e os espanhóis com vista à introdução de

armas em Portugal, através da embaixada espanhola em Lisboa, para fazer a

revolução:

«Escusado será dizer-te que em questões desta natureza o governo portugues, seja ele qual for, tem-me incondicionalmente ao seu lado. Julgo que não podemos consentir a menor intervenção da Espanha, directa ou indirecta, na nossa vida, na nossa política interna. É necessario repelir energicamente qualquer tentativa nesse sentido.» E aconselha: «Temos, porem, de o fazer com aquela indispensavel diplomacia que não exclue a energia, mas que sabe exercel’a com luva calçada.»981

As variegadas correntes que se digladiam no seio da ditadura fazem-se

presentes na análise do seu caso pelas autoridades portuguesas, acabando por vencer

a opinião do Exército sobre as manobras integralistas. Depois de mais uma discussão

inconclusiva do seu caso em conselho de ministros, já sob a chefia de Salazar, um

ministro propõe a solução: consultar o Exército. Pois, não é, afinal, ele o sustentáculo

da ditadura? O ministro da Guerra vai ao Norte consultar as chefias militares que não

colocam problemas ao regresso de Norton e o assunto fica resolvido, embora se

aguarde algum tempo para comunicar a decisão e acalmar os «meninos» integralistas,

como lhes chama o genro do general exilado, o tenente Raul Alves Cruz982. As

cumplicidades e solidariedades castrenses levam a melhor, ainda por cima cimentadas

pelo processo em curso de (re)construção da memória da participação portuguesa na

Grande Guerra, para cuja comissão de estudo Norton tinha significativamente sido

nomeado ainda em pleno processo de constituição da ARS. O Exército dá cartas na

ditadura. O que não impede que Norton saiba bem, há muito tempo, que o seu

verdadeiro adversário político não é nenhum militar mas sim um civil. Salazar é o

981

Idem, p. 60. Anteriormente, neste seu diário, manifestara a sua apreensão com a notícia da apreensão das armas, destinadas à embaixada espanhola e manifestando depois satisfação por o incidente entre os dois países aparentar estar sanado, demarcando-se claramente de qualquer envolvimento dos espanhóis na preparação da revolução em Portugal. 982

«O Ministro da Guerra apresentou há tempos ao Conselho de Ministros a proposta para o seu regresso. Foi bem recebida por alguns dos ministros e com reservas, mas sem hostilidades por outros. Ficou resolvido que o ministro do Interior estudasse o caso. Soube-se no arraial integralista o que se preparava, e logo surgiram as dificuldades, as ameaças e as interrogações. No Conselho imediato nada se pôde resolver em face da atitude dos meninos [sic], e então um ministro, que não sei quem foi, apresentou a seguinte sugestão: - ouça-se a organização que apoia a situação porque só a essa devemos atenção. O Ministro da Guerra foi ao Norte e ouviu os comandos sobre o caso e la disseram-lhe que não viam inconveniente no meu [sic] regresso e ninguem apresentou dificuldades a esse respeito. Em vista disto o Ministro da Guerra afirmou a alguem que os meus [sic] desejos seriam atendidos dentro de pouco tempo». A carta do genro, recebida a 20 de Agosto, é transcrita no seu diário: ANM, Norton de Matos, Diário. Iniciado em 8-VIII-32, p. 50.

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adversário político de quem se coloca a par, como grande estadista que considera

ser983. Como adversário político, não como inimigo. É uma nuance que a sua família

política nunca lhe perdoou.

Dois anos após o discurso, tão violentamente atacado pelo grão-mestre, em

que o então ministro das Finanças apresentara os princípios da revolução nacional, o

combate político do grão-mestrado de Norton parece caminhar a passos largos para a

derrota final. Até porque a divisão e a intriga grassa de tal forma entre os maçons que

parece comprometer irremediavelmente a própria continuação do seu mandato à

frente do GOLU. No final do exílio, o general recebe a confirmação de que a campanha

contra si, entre os maçons portugueses, tanto no país como entre os exilados, chegou

às lojas espanholas, «não fosse eu servir-me da maçonaria espanhola para me auxiliar

a empoleirar-me na situação de ditador lusitano»984. Não passam de «biltres»,

desabafa nas páginas do seu diário.

V.5. A fase simbólica: de elemento decorativo a capitão do navio a afundar-se

De regresso do exílio, Norton volta a colocar o lugar de grão-mestre à

disposição. Em carta escrita ao presidente da Grande Dieta em 13 de Outubro de

1932985, reitera o pedido do ano anterior para que seja eleito um novo grão-mestre,

alegando o seu estado de saúde e a conjuntura que exige ao GOLU ter um grão-mestre

com «altas qualidades de actividade e de energia». Enquanto não acontece a nova

eleição, pede para ser considerado impedido por doença. O que não invalida que

reafirme as suas inabaláveis convicções maçónicas e que faça uma recomendação final

à maçonaria portuguesa: combater qualquer violência e usar exclusivamente

«meios pacíficos e ordeiros para conseguir que volte ao nosso pais uma epoca de justiça, de verdade, de liberdade e de exacta compreensão do que é a dignidade humana.».

983

«O meu caso é bem simples: - é o de um homem contra o qual se não pode formular qualquer acusação, mas que representa na luta de duas mentalidades, na mentalidade liberal e democratica o que Oliveira Salazar representa na mentalidade absolutista e fascista. Não podemos, segundo eles, viver os dois no mesmo torrão». ANM, Norton de Matos, [Diário Huelva 1], p. 71. 984

ANM, Norton de Matos, Diário. Iniciado em 8-VIII-32, pp. 51-52. 985

ANM, Norton de Matos, Rascunho de carta ao presidente da Grande Dieta, 13-10-1932 in Diário. Iniciado em 8-VIII-32, pp. 102-104. As citações que se seguem são desta mesma carta.

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A urbanidade que sempre mantém nas comunicações institucionais com o

GOLU esconde a fúria que em privado o assola quando, nesse mesmo mês, é

confrontado com a minuta de uma declaração pública que, informalmente, um maçon

lhe pede para assinar. A diligência visa tentar conter os danos de campanhas que se

têm levantado sobre a decisão do general de abandonar toda a actividade política:

«Muito me magoou que se tivesse tido a audacia de me querer impor esta linha de conducta. É necessario, indispensavel, que todos se convençam que de novo todos se convençam que em mim só mando eu.»986.

Ironia do destino, reflecte, de regresso de uma visita ao ministro da Guerra, no

decorrer da qual, assevera, nenhum tópico político é abordado: os seus

correligionários políticos e maçons exigem-lhe garantias; os ditadores nada lhe

pedem987. Acabará por permanecer formalmente no seu posto nos três anos seguintes.

A dança das cadeiras no Conselho da Ordem prossegue988, sem que desta vez o

grão-mestre esteja disponível para assumir o comando efectivo do poder executivo.

Em 1933, continua, porém, a assinar decretos que denotam as dificuldades em manter

o GOLU a funcionar com normalidade pois

«cada vez se tornam mais difíceis as reuniões das OOfic , em local oculto aos profanos, com a assistência de numero regular de OObre »989.

Nomeia, ainda, sucessivas «comissões de estudos profanos» cujos trabalhos

acabam sempre interrompidos990. A 19 de Abril do ano seguinte, escreve uma

mensagem especialmente para ser levada aos obreiros do Vale de Coimbra mas

extensível a todos as oficinas e obreiros do GOLU, interpelando-os, perante a 986

Anota no seu diário a 18-10-1932, no dia seguinte a essa visita. Idem, pp. 101–102. 987

Idem, pp. 105-106. 988

São seis os presidentes do Conselho da Ordem durante os cinco anos do Grão-Mestrado de Norton: o médico Ramón Nonato de La Féria que, eleito em Abril de 1930, é exonerado a sua pedido quatro meses mais tarde. Segue-se-lhe o coronel António Mimoso Guerra, que se aguenta no lugar mais dois meses que o seu antecessor, apresentado a sua exoneração a 01-02-1931. É substituído pelo tenente-coronel Manuel Maria Coelho. Seguir-se-lhe-ão o advogado e dramaturgo Ramada Curto (eleito em Novembro de 1931, já durante o exílio de Norton), Álvaro Costa, advogado, que permanecerá no cargo de 1932 até à sua morte prematura a 22-03-1935, sendo então substituído pelo advogado Maurício Costa. 989

ARQUIVO DO GRÉMIO LUSITANO (AGL), Lisboa, Danton Gr Mest , Salmeron Pres do Cons da Or , et alia, Decreto n

o 17, 20-04-1933. No entanto, ainda no ano anterior tinham sido fundadas várias lojas e

«o balanço em termos de organização foi positivo», apesar de todas as dificuldades. António Ventura, Uma história da Maçonaria em Portugal 1727-1986, p. 730. 990

A comissão de estudos profanos, criada a 13-09-1930, sofreu constantes interrupções «por razões estranhas à sua vontade», sendo dissolvida 3 anos depois, para ser criada nova comissão, a Comissão Central de Estudos Profanos (AGL, Danton Gr Mest , Salmeron, Pres do Cons da Or , Decreto n

o 32,

de 30-09-1933).

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«formidável hécatombe» que se prepara para a humanidade, com a destruição dos princípios da liberdade, igualdade, fraternidade e democracia, que «se está levantando provocatoriamente deante de nós», a fortalecerem-se, a «não desanimar», «a continuar, sem uma hesitação, sem um único desfalecimento, a nossa obra secular em prol da dignidade humana», pois, «Se o fizermos intensamente, a victoria será nossa, como, aliaz, sempre o tem sido.»991.

Palavras inconsequentes de incentivo e de vaga esperança num futuro que a

realidade presente parece adiar para as calendas, para logo em Maio colocar pela

terceira vez o lugar de grão-mestre à disposição992. O então presidente do Conselho da

Ordem, Álvaro Costa, demove-o, alegando que seria extremamente melindrosa uma

crise no poder executivo da maçonaria naquele momento. «Fique, por enquanto, sem

resposta», anota à mão Norton na missiva recebida993. Dois dias depois, não deixará de

marcar presença na inauguração do monumento ao marquês de Pombal, em Lisboa,

que seria «a última grande manifestação pública, antes da proibição, onde a presença

da Maçonaria se fez sentir em força»994.

No início de 1935, será ainda na qualidade de representante máximo da

Maçonaria Portuguesa que Norton escreve ao presidente da Câmara dos Deputados,

onde se discute o projecto de lei da extinção das associações secretas e se prevêem

pesadas sanções para os seus membros, comparando a situação dos maçons

portugueses à dos cristãos no tempo das perseguições. Defende publicamente a sua

honra e a dos seus companheiros maçons, acusados de corromper o Estado:

«Equivalem estas palavras a chamar-se à Maçonaria uma associação de malfeitores e a considerarem-me a mim como o Chéfe de um bando de malfeitores.».

É um acto que pratica em seu «nôme pessoal», assumindo

«a responsabilidade inteira de o praticar tambem como presidente de uma associação de portuguêses que, por eleição, me confiaram o grão-mestrado da Maçonaria no nosso país.»995.

991

AGL, Danton Gr Mest , Mensagem do Sap Gran Mest escrita especialmente para ser levada pelo Pod Ir Pres do Cons da Ord aos Oob do Val de Coimbra, mas tornada extensiva a todas as OOf e OOb da Ob , 19-04-1934, cópia dact., não ass. 992

ANM, P. Maçonaria,Rascunho de carta de Norton de Matos ao Conselho da Ordem, Algés, 11-05-1934, mns., ass. 993

ANM, P. Maçonaria, Álvaro Costa (Presidente do Conselho da Ordem), AO SAP GR MEST Resposta á sua mensagem para o Cons da Ord de 11 de Maio de 1934 (e v ), 23-05-1934, dact., ass. 994

António Ventura, Uma história da maçonaria em Portugal 1727-1986, p. 737. 995

ANM, P. Maçonaria, Norton de Matos, carta ao Dr. Alberto dos Reis, Presidente da Assembleia Nacional, 31-01-1935, cópia dactilografada com anotações manuscritas do punho e assinadas pelo

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Preparando o GOLU para a clandestinidade iminente, Norton transmite a 4 de

Abril todos os seus poderes ao grão-mestre-adjunto, o qual, a 5, por sua vez os passa

para o Conselho da Ordem e este ao seu presidente, Maurício Costa996.

No dia seguinte à publicação da Lei nº 1901, de 21 de Maio, que consuma a

ilegalização das sociedades secretas, Norton será o primeiro oficial a apresentar a

declaração a que todos os funcionários públicos passam a estar obrigados, afirmando

que, tendo-se exonerado de grão-mestre da Maçonaria Portuguesa, se comprometia a

não pertencer à mesma997. Cumpre, assim, o que prometera ainda em 1931,

assumindo publicamente o ónus do cargo que ocupava, mesmo se nos últimos anos

apenas simbolicamente: «o sacrifício de monta só eu terei de ser obrigado; sou o

capitão do navio e se ele for ao fundo terei de me afundar com ele.»998. E continua a

dar-se ao respeito a Salazar, a quem recorre da decisão do governo, tomada a 16 de

Maio, de o demitir do seu posto de professor do Instituto Superior Técnico por motivos

políticos, reservando-se o direito de o criticar: «as palavras por V. Exa. pronunciadas

não constituíam, evidentemente, lei do Estado»999.

CAPÍTULO VI – POLÍTICA NUNCA MAIS? UM SENADOR PARA AS FRENTES UNITÁRIAS

DA OPOSIÇÃO (1943-1955)

VI.1. Depois da ARS, o MUNAF e o MUD: de promotor a ‘senador’

VI.1.1. Esperando ‘que a noite acabe’

Após a sua intervenção pública à frente do último cargo com relevância política

que assumiu, o de grão-mestre do GOLU, o general cumpre a promessa de morrer para

a política, embora continue, e reforce, a sua actividade de colunista, centrando-se

autor. A carta, bem como o projecto de lei e outros documentos desta fase final da existência legal do GOLU estão publicados por A. H. de Oliveira Marques, A Maçonaria portuguesa e o Estado Novo. 996

Cf. Idem, pp. 62-63. 997

Cf. AHM, FO/33/1/Cx 438, [Processo] No 956, General reformado José Mendes Ribeiro Norton de

Matos, Ministério da Guerra, Repartição do Gabinete, Informação s/no, Lisboa, 28-05-1935.

998ANM, Rascunho de carta de Norton a destinatário não identificado, presumivelmente Manuel Maria

Coelho, Algés, 29-05-1931. Nela, também promete o que efectivamente cumprirá: «Tenho de me conservar no meu posto até ao último alento». 999

ANM, Cópia de carta de Norton de Matos ao Presidente do Conselho de Ministros, Lisboa, 20-05-1935.

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maioritariamente em temas coloniais. Impedido de continuar a ensinar no Técnico,

onde, nos últimos anos se dedicara à área de ponta da fotogrametria aérea1000,

concentra o melhor das suas energias a fazer, à frente da sua empresa – a Sociedade

Portuguesa de Levantamentos Aéreos, Lda. (SPLAL) –, aquele que será o primeiro

levantamento aerofotogramétrico de Portugal1001. O seu maior cliente é o Estado, o

que não admira, pois a empresa é pioneira e única no mercado, até que a relevância

geoestratégica do Portugal neutral, no novo contexto da II Guerra Mundial, leve os

aviões da Royal Air Force e da United States Air Force a fazer os seus próprios

levantamentos do território português. Iniciado o novo conflito militar mundial, e

recomeçando a assomar boatos envolvendo o nome do general num pretenso

entendimento com os ingleses para derrubar a ditadura1002, a SPLAL começará a ter

problemas com os pagamentos pelo Estado, até que, em 1943, lhe é feito sentir que a

continuação do seu nome à frente da empresa acarretaria a inviabilização de futuros

contratos com o Estado e, logo, a sobrevivência económica da empresa1003.

1000

Enquanto professor catedrático de Topografia e a Geodesia, Norton manteve-se sempre atento às últimas tendências científicas e suas aplicações tecnológicas, pagando do seu bolso a ida a congressos onde se discutia o que de mais inovador se passava na sua área (Vide diário da sua ida a Paris: ANM, [Norton de Matos], Congresso Internacional de Fotogrametria Realizado em Paris em 26 de Novembro a 1 de Dezembro de 1934, caderno mns.). Nestes seus últimos anos de docência, até ser afastado da faculdade por motivos políticos, investiu no estudo dessa área pioneira da aerofotogrametria, publicando as conferências que proferiu durante o ano lectivo de 1933-1934 na revista de estudantes do Técnico. No primeiro de uma extensa série de artigos, cuja publicação se prolongou para além da sua demissão como professor, explica o seu ambicioso objectivo: «O fim principal que tenho em vista com estas conferências é ministrar aos alunos do Instituto as noções essenciais sôbre novos processos de levantamentos topográficos que, a meu ver, dentro de poucos anos terão substituído quási por completo os métodos clássicos da Topografia. Mas também é meu intento (..) abalançar-me à tentativa, que creio ser a primeira em Portugal, de constituir um corpo de doutrina em matéria de aerofotogrametria». Norton de Matos, «Aerofotogrametria: Exposição resumida da evolução dos levantamentos topográficos aéreos» in Técnica: Revista de Engenharia dos Alunos do Instituto Superior Técnico, Nº 57, Fevereiro de 1934, p. 340. O último artigo desta série terminará em Abril de 1936, já como director da SPAL. Vide, ainda, Norton de Matos, «Fotogrametria», Separata dos nºs 29 e 30 da revista A Terra, Coimbra, Tipografia Bizarro, 1937; e Norton de Matos, «A Fotogrametria perante a urgência de trabalhos topográficos e cadastrais em Portugal», Separata do nº 25 do Boletim da Ordem dos Engenheiros, Lisboa, Papelaria Cisne, 1939. 1001

Sobre a Sociedade Portuguesa de Levantamentos Aéreos, Lda, veja-se in Rita Martins Henriques Matildes, «Voo SPLAL» in R. M. H. Matildes, Detecção Fotogramétrica de Movimentos em Arribas Costeiras e Gestão do Inventário num Sistema de Informação Geográfica, Mestrado em Engenharia Geográfica, 2009, pp. 70-81. 1002

ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 2o maço. Iniciado em 21 de Novembro de 1941 [e

terminado a 24-02-1941], fl. 64-65. 1003

Em Novembro de 1941 anota as dificuldades com os pagamentos. Idem, f. 2. Já no final de Março de 1943, recebe um aviso, «a respeito de qualquer pretensão da SPLAL: “Enquanto o N.M. estiver á frente dessa Empresa, vocês não conseguirão nada. A sua subida simpatia pelos ingleses e os seus esforços

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É certo que, em finais de 1942, os rumores sobre um alegado envolvimento do

velho general num movimento revolucionário reacendem-se mas são categoricamente

desmentidos pelo próprio. O general seria

«uma das principais figuras, senão a principal de qualquer movimento, agitação, manifestação de descontentamento, ou o que seja. Se é uma revolução o que se quer fazer, apontam-me quasi sempre como o chefe patente ou oculto. Isto apesar do meu aconselhar constante de que nada se ganhará com movimentos revolucionários, políticos ou sociais, sejam de natureza for, e que eles só servirão para manter no país o regime ditatorial.» 1004

Neste particular, Norton mantém a convicção que já lhe vinha desde os tempos

da ARS, de que qualquer revolução seria contraproducente, apenas servindo para

reforçar a ditadura. Com dois matizes novos, desde que rebentou a guerra. Antes de

mais, é preciso evitar o perigo acrescido de, na nova conjuntura, qualquer perturbação

da ordem pública poder servir como pretexto para uma intervenção militar espanhola.

Em segundo lugar, a evolução do conflito militar, nesse final de ano de 1942,

transformou numa certeza o que antes constituía apenas uma esperança: a derrota

dos alemães é, acredita Norton, uma fatalidade que acarretará inexoravelmente o

triunfo das democracias. Assim, nada mais há a fazer do que «esperar que a noute

acabe»1005.

Além destas circunstâncias conjunturais exteriores que, na sua visão,

desaconselham uma iniciativa revolucionária para apear o governo de Salazar, por

contraproducente e inútil, Norton procede a uma introspecção sobre a ausência de

condições pessoais para poder ser ele a assumir a chefia de um tal movimento. Se está

convicto de não lhe faltar nem o mérito nem a experiência e o conhecimento das

coisas e dos homens, faltar-lhe-iam, aos 76 anos, a «imaginação» e o «poder criador»:

«estas duas qualidades fugiram para sempre de mim e sinto e sei que nada valho sem elas, como homem de acção. Ora em 16 do corrente, á noute, alguém me avisou

para o predomínio da nossa política externa da modalidade anglo-lusa, em desacordo no momento actual com os interesses nacionais, faz com que seja muito mal visto pelos elementos oficiais”». Norton coloca-se na posição de esperar para ver mas começa a equacionar a sua retirada da empresa: «Estou a ver o que tudo isto dá, mas naturalmente terei de deixar a direcção da SP[LAL]. O General Ferreira Martins procurou-me hontem á tarde e prometeu-me diligenciar sobre o que se passava a meu respeito». ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4

o maço. De 31 de Agosto de 1942 a 22 d’Abril

de 1943, mns., com recortes de jornais e textos apostos, dact. e mns., 240 fls., fl. 221. 1004

Escreve na ”Vila Norton”, Algés, a 19-12-1942. ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4o

maço. De 31 de Agosto de 1942 a 22 d’Abril de 1943, fl. 112. 1005

Idem, fl. 114.

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de que nas “altas esferas governamentais” se dizia que eu estava á frente de um movimento revolucionário em preparação. Isto á força de repetições já me causa náuseas. Mais uma vez sou chefe revolucionário, chefe político, presidente de um governo a impor ao país, tudo isto sem eu o saber, sem ninguém me consultar…»1006

VI.1.2. Na presidência do Conselho Nacional da Unidade Antifascista…

A verdade, porém, é que algo de novo se movimenta nos meios oposicionistas

para a formação, em Portugal, de uma frente unida antifascista, à imagem dos comités

de libertação nacional nos países sob ocupação militar. Será precisamente entre este

final de 1942 e os inícios de 19431007, que um conjunto de personalidades dos campos

comunista, anarquista e socialista irá dar o pontapé-de-saída para as complicadas

negociações que irão permitir criar uma organização clandestina congregadora de

vários partidos e sensibilidades oposicionistas numa fronda de combate contra o

regime de Salazar, onde Norton virá a ter um lugar de referência simbólica.

É certo que, no misto de diário e memórias que começara a escrever em 1941,

para fazer o luto das mortes recentes da neta e da mulher, protesta a sua indiferença

para com o que se passa à sua volta. Contudo, o pesado luto familiar acabará por ser

ocasião para fazer também o luto da sua morte para a política, em tempos jurada.

Apesar de tardio, este último luto irá permitir-lhe ir em frente, reencontrando o seu

lugar na política portuguesa como referência emblemática da República. Até porque,

confessa, custa-lhe demasiado continuar a viver como que exilado na própria pátria.

Contudo, mesmo nessa espécie peculiar de exílio ou de proscrição política, a sua

sombra tem ainda – afirma com uma ponta de orgulho e alguma verdade – o condão

de molestar e enervar1008 os ditadores, que não deixam de especular sobre um seu

eventual regresso à acção política. Os boatos recentes, a par do seu histórico político,

colocam-no no radar dos vários grupos oposicionistas que, perante o evoluir dos

ventos da guerra, se posicionam já para um futuro pós-Salazar, manobrando,

1006

Idem, 114-115. 1007

Dawn L. Raby, «O MUNAF, o PCP e o problema da estratégia revolucionária da Oposição, 1942-47» in Análise Social, Vol. XX (84), 1984, p. 690. 1008

«Custa-me, porque não confessa-lo, ver-me viver quasi como exilado na minha própria Patria, mais do que exilado, quasi como um outcaste á moda indiana, de quem até a sombra molesta e enerva». Carta de Norton de Matos a Lopes Galvão, transcrita pelo autor no seu diário, a 28-11-1941 in ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 2

o maço. Iniciado em 21 de Novembro de 1941 [e terminado a

24-02-1941], fl. 14.

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entretanto, para um lugar de relevo na frente unitária antifascista, clandestinamente

constituída para o derrubar. O PCP é o primeiro a sondar o velho general, mesmo se

ainda não de forma pessoal, enviando-lhe um manifesto para casa1009.

Desta feita, o PC não só reclama ser impossível existir uma verdadeira unidade

nacional sem a sua participação como toma a iniciativa de estender a mão aos

republicanos e anarquistas, aos católicos e, inclusive, a membros das organizações

mais marcadamente fascistas do regime, como a Legião Portuguesa. Aos republicanos

e socialistas, considera-os velhos companheiros de luta, irmanados no mesmo amor

pela liberdade e no espírito antifascista, cimentados nas perseguições, torturas e

encarceramento de que, tal como os comunistas, foram alvo. Aos católicos, os

comunistas garantem o respeito pela sua liberdade de crença e de culto, apelando ao

seu amor pela justiça e solidariedade. Aos legionários, mais exactamente aos que

foram forçados a sê-lo e agora reconhecem o engano de que foram alvo, garantem

não guardar quaisquer ressentimentos, apelando à sua acção em duas frentes. Por um

lado, no seio da própria Legião de que fazem parte, minando as manobras nazis que

têm lugar dentro do comando da organização. Por outro, participando nas lutas

operárias em prol do derrube do governo de Salazar.

O governo, acusa o PC no mesmo panfleto, está minado pela quinta-coluna. Se

não for derrubado, Portugal será ocupado pelas tropas hitlerianas e os portugueses

irão ter de combater ao lado dos alemães. Apesar de estar em causa algo tão

substancial como a independência nacional, a agenda reivindicativa da frente unida

incluirá a luta por conquistas mais terra-a-terra, como o aumento dos salários ou o fim

da requisição de géneros e do seu fornecimento aos países do Eixo. Ou contra a

burocracia corporativista, os especuladores e açambarcadores. Ou pela extinção do

campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde («o campo da Morte») e a

libertação dos presos políticos lá encarcerados. Seriam essas as primeiras medidas a

1009

O Comité Central do Partido Comunista Português (S.P.I.C.), PORTUGUESES! //Unamo-nos contra a ameaça de ocupação hitleriana! // Unamo-nos para defesa da independência! // Unamo-nos para derrubar o governo salazarista de traição!, Dezembro 1942, Panfleto, imp., 1 fl., 1942. Agradeço a João Madeira as reflexões que partilhou comigo sobre este comunicado.

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tomar por um governo democrático de Unidade Nacional assim que o governo de

Salazar fosse deposto.

Por muito que Norton partilhasse destes anseios, a sua perplexidade perante o

manifesto recebido é grande:

«Depois de o ter lido atentamente e de ter repetido duas horas depois a sua leitura (é meu velho costume esta leitura intercalada de cousas enigmáticas) estou absolutamente convencido de que se trata de uma manobra vazia cujo fim é envolver os antigos políticos, os liberais que ainda hoje existem, os anti-totalitários, anti-marxistas, anti-fascistas e anti falangistas, com os comunistas. Tudo isto me leva a crer que alguma cousa se trama.» 1010

As reservas que coloca quer às intenções quer à própria origem do documento

não deixam de ser compreensíveis. Afinal, nesses anos da guerra, Lisboa em geral e a

sua caixa do correio em particular transbordam de propaganda e contrapropaganda

das mais diversas proveniências e intenções. Por outro lado, é patente o seu

desconhecimento do jornal clandestino do PCP que, nos tempos mais recentes, vinha

advogando o tema da unidade antifascista. Já o acrescento que faz, numa caligrafia

mais comprimida, ao parágrafo em que no seu diário anotava a autoria do comunicado

(Comité Central do Partido Comunista Português) – «em que pela primeira vez ouço

falar» – é mais difícil de explicar. Sendo inverosímil que um homem da sua cultura

experiência políticas apenas nessa data tivesse ouvido falar do PCP, já o seu

desconhecimento deste novo PCP dos ‘reorganizadores’, disponível para frentes

unitárias e com um novo élan, se nos afigura como mais plausível.

Na verdade, trata-se de um partido em fase de profunda reorganização1011. Ao

contrário do que acontecera em 1931, em que a Internacional Comunista não

sancionava a participação comunista em alianças interpartidárias nos vários países,

não tendo por isso o PCP alinhado na primeira tentativa de unidade dos opositores à

Ditadura Militar em Portugal, que Norton encabeçara, agora o PCP empenha-se

decididamente nessa tarefa.

1010

ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4o maço. De 31 de Agosto de 1942 a 22 d’Abril de

1943, fl. 116-117. 1011

Na verdade, trata-se de um novo partido, com novos quadros em rápida ascensão que, nesta fase, coexiste ainda com o antigo PCP que, profundamente abalado com a prisão da quase totalidade dos seus dirigentes, ainda tenta dar sinal de si mas será completamente ultrapassado pelo novo partido, sob a égide de Cunhal. Cf. João Madeira, História do PCP: das origens ao 25 de Abril (1921-1974), Lisboa, Tinta-da-China, 2013, pp. 59 e segs.

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À partida, a predisposição do general para participar numa tal frente

antifascista com a participação dos comunistas era real e não advinha apenas de

factores conjunturais, como a esperança que vinha de Leste, com a resistência dos

russos aos nazis. Na verdade, Norton está convicto que, com a revolução russa, a

humanidade dera um passo em frente na história da sua dignificação e bem-estar, de

cada país pode aproveitar:

«Não há duvida que a Revolução Russa, cuja explosão teve lugar ha 25 anos, em 7 de Novembro de 1917, em plena Grande Guerra, terá na história importância igual à da Revolução Francesa. As duas revoluções teem evidentes pontos de contacto, mas também há entre elas diferenças fundamentais. Para mim, homem de quase 76 anos, bisneto, neto e filho de portugueses, com o espírito e o coração caldados pelos princípios da Grande Revolução, temperado pela ligação (e pelo sangue) com ingleses que nos trouxeram os admiráveis procedimentos democráticos da Inglaterra, essas diferenças continuam a chocar-me. Mas sempre vi na Revolução Russa um passo em frente para se alcançar o bem estar e a dignificação da humanidade. Cada país tiraria dela, com esse fim, o que pudesse e entendesse conveniente tirar e deixaria o resto na Rússia até que o tempo mostrasse o seu mal ou o seu bem.» 1012

Ou seja, o mundo mudara e não é possível regressar, sem mais, ao passado. É,

pelo menos, essa a convicção do velho general. O que não impede que seja em nome

do seu passado que um grupo restrito de «pessoas categorizadas» lhe solicita, em

Fevereiro de 1943, um parecer sobre a situação actual do país. O seu conselho é que

não se pode deixar de lançar pontes, fazendo concessões, tanto à esquerda como à

direita. À esquerda, é necessário tomar medidas sérias para «atenuar a miséria e a

repelente esqualidez» dos portugueses, cortando cerce, deste modo, quaisquer

projectos de «revoluções sociais com laivos bolchevistas» que se possam perspectivar.

É necessário, igualmente, não subestimar a direita pois 16 anos de ditadura alteraram

profundamente, acredita, a mentalidade política do país. Só após vários anos de

investimento numa instrução pública que cultive os valores democráticos é que será

possível ter uma democracia plena em Portugal:

«as instituições democráticas virão pelo seu pé, quando tiverem de vir e quanto todos os que fingiram apoiá-las tiverem desaparecido. Não havendo uma revolução violenta, que por todos os meios se deve evitar, tem de haver uma transição que produza tranquilidade, socego e esperança de melhores dias, harmonia e confiança recíproca. Só o General Carmona poderá fazer essa transição, obrigando um e outros

1012

ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4o maço. De 31 de Agosto de 1942 a 22 d’Abril de

1943, fls. 75-76.

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a ceder para bem do país, para se afastarem tremendas calamidades. O que não sei é se a quererá fazer. É camisa de onze varas.» 1013

O longo período de obscuridade pelo qual passara não retirara a Norton a pose

institucional que sempre lhe fora cara. É certo que a sua aversão a soluções

revolucionárias não era de agora. Já o alvitre de que Carmona poderia estar doravante

disposto a patrocinar a transição para a democracia que na década anterior enjeitara,

poderá ter a ver com a convicção de que o Presidente estaria sensível à alteração da

conjuntura internacional que entretanto tivera lugar. Um golpe palaciano de militares,

sob o alto patrocínio do Presidente da República que até então sancionara o Estado

Novo de Salazar, poderia ser a solução para Portugal poder figurar, sem destoar, no

novo concerto das democracias aliadas que se perspectivavam já como vencedoras da

guerra contra os fascismos.

Enquanto não fica claro se Carmona estará ou não disposto a assumir esse

papel, crianças com «braços estendidos à fascista» da Mocidade Portuguesa

continuam a desfilar pelas ruas de Lisboa, sob a batuta de Marcello Caetano. O facto

de Norton considerar desfiles marciais como este um «verdadeiro crime»1014, não

significa que esteja disposto a envolver-se em conspirações para derrubar o governo,

muito menos com o patrocínio de potências estrangeiras. Um novo rumor, desta feita

de que estaria à frente de uma conspiração anglófila contra Salazar, é liminarmente

rejeitado como sendo uma calúnia, especialmente torpe por o querer envolver em

entendimentos com estrangeiros, entendimentos que toda a sua vida considerou

antipatrióticos, mesmo tratando-se de um país amigo ou de uma nobre causa1015.

1013

Idem, Algés, 05-02-1943. fl. 155. Estas são as considerações que escreve no seu diário, ao qual acrescenta o original do parecer: Norton de Matos, «O meu modo de ver», Fevereiro 1943, mns., ass., 8 fls., doc. avulso intercalado in Idem. 1014

Como anota a 01-03-1943 no seu diário: «Hontem realizou-se em Lisboa uma parada militar de 10.000 rapazinhos, que desfilaram de braços estendidos à fascista e a quem o Marcelo Caetano fez um deplorável discurso. [§] Porque estão a estragar a mocidade a transformar essas crianças em pequeninas feras? Considero isto um verdadeiro crime. Mas o que é preciso é que esses Marcelos e esses Caetanos possam dizer, apontando as formações infantes, o futuro pertence-nos» (ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4

o maço, entrada de 01-03-1943, fls. 199-200). A 7 de Março volta ao tema: «Mas

não estamos nós vendo entre nós o desfile marcial das crianças da Mocidade Portuguesa, a quem se estão incutindo mentalidades de odio e de destruição, e a quem uma fabrica alemã acaba de oferecer 100 espingardas “dernier cris”[?]» (Idem, fl.205). 1015

Rascunho de carta de Norton de Matos a Ferreira Martins, “Vila Norton”, Algés, 27-03-1943 in Idem, s.p.

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Em Abril, porém, a aproximação entre Salazar e Franco fá-lo ponderar sair da

posição de conselheiro de retaguarda para assumir uma posição potencialmente mais

activa:

«Continuo muito preocupado com a “aliança peninsular” que se deseja fazer, com o fim evidente de modificar por completo a linha histórica da aliança anglo-lusa. Será o fim de tudo, estou convencido disso. Tenho estado estes dias a pensar no que hei-de fazer. O meu dever de português não me permite ficar inactivo perante tão calamitosa perspectiva.»1016

O perigo de uma aproximação de Portugal a Espanha que pudesse dar trunfos a

esta última, cujas intenções anexionistas sempre temeu1017, poderá ter sido o incentivo

que faltava a Norton para decidir voltar à política activa. A notícia da queda de

Mussolini permite sonhar que a dos outros ditadores se seguirá, dando ânimo

suplementar às negociações que já decorrem para criar uma frente oposicionista

comum para derrubar o governo de Salazar e instaurar um governo provisório que

possa assegurar eleições livres.

Em Janeiro de 1944, será finalmente anunciada a criação dessa frente,

baptizada de Conselho Nacional de Unidade Antifascista (CNUAF), aberta a todas as

correntes da oposição e «a todas as individualidades de garantida idoneidade cívica e

anti-fascista»1018. CNUAF designa indistintamente ora a organização antifascista no seu

conjunto, ora o conselho de notáveis (a título próprio ou em representação dos vários

partidos), sendo que, a partir de certa altura, a organização começa a ser também

designada por Movimento de Unidade Antifascista (MUNAF). Ainda demorará mais

meio ano até que se chegue a um mínimo denominador comum para o programa do

governo provisório que se há-de seguir ao derrube de Salazar – derrube que, na

realidade, era, afinal, o único ponto em que todos os oposicionistas estavam

verdadeiramente de acordo.

Enquanto decorrem as morosas negociações para a redacção deste programa,

seguem os contactos para cooptar personalidades com perfil antifascista que não

faziam parte do grupo inicial. É o caso de Norton, cujo nome se encontra de novo sob

1016

ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário. 4o maço, entrada do dia 10-04-1943, fl. 226.

1017No caso, com fundada razão. Já durante a I Guerra Mundial era grande a preocupação de Norton

com o perigo espanhol. 1018

CNUAF, Comunicado ao Povo Português, Janeiro de 1944, 1 fl. dact., policop.

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as luzes da ribalta por via do sucesso fulgurante que a publicação do primeiro volume

do seu livro de Memórias conhece em Março de 1944: 3000 exemplares vendidos

apenas numa semana. O seu estado de espírito não é, porém, o melhor e, no auge de

uma crise de neurastenia, anota no seu diário que tem de se resolver a morrer. É

precisamente nessa altura que é contactado por um dos promotores dessa frente

clandestina, cujo nome tem o cuidado de omitir, referindo-se-lhe como uma

«pessoa que marca no meio bolchevista português, e que tem por mim uma alta consideração, apesar de saber que não sou comunista e muito menos bolchevista1019

A pessoa em causa é, muito provavelmente, o matemático Bento de Jesus

Caraça, compagnon de route dos comunistas e personalidade de grande cultura

humanista e carisma, com uma capacidade invulgar de criar pontes, que Norton muito

admira. Possivelmente, nele vislumbraria a imaginação e o poder criador que admitia

já faltar em si próprio, ganhando forças para um novo fôlego político. Instado por

Caraça, chega a ponderar a reconciliação com Cunha Leal mas a velha ferida reabre de

forma insanável quando, nesse Verão, volta a compulsar papéis dos tempos da sua

governação de Angola para a escrita de mais um volume de memórias1020.

É nessa altura contactado por um antigo ministro da República, que não

nomeia, que lhe faz uma exposição de duas horas sobre a intenção do Exército tomar

conta do país para instituir as liberdades, soltar os presos políticos, fazer eleições…

mas pretendendo, antes de avançar, sondar o país para saber se terá apoio popular.

Mas como sondar o país se não há liberdade? Norton aconselha, portanto, «prudência

e reserva» e não se compromete. Que o exército avance primeiro, com «actos e não

palavras» para que o país se convença de que, desta vez, é a sério1021. Ironia do

destino, não via o amigo em causa, que participara do golpe de 28 de Maio de 1926,

1019

O contacto ter-se-á dado antes de Norton regressar ao Minho (início de Março), como recorda na entrada do seu diário de 16-04-1944, escrita já na Casa do Bárrio, em Moreira do Lima. ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário 6º Maço: De 8 de Março de 1944, Algés e Moreira do Lima, 1944, fl. 16. 1020

ANM, Norton de Matos, P. Memórias e Diário 6º Maço, Rascunho de carta de Norton de Matos a [Bento de Jesus Caraça], Algés, 20-06-1944, mns., ass. O original está no Espólio de Bento de Jesus Caraça, depositado no AFMS. 1021

A visita tem lugar a 11-07-1944. ANM, P. Correspondência 1937-1945, Mç. 1944, [Norton de Matos], «Uma diligência política», S.l., S.d., mns., não ass., mas do punho de Norton, anexo a rascunho de carta ao «bom amigo» que o visitara, Vila Norton, Algés, 13-07-1944, 14 fls. mns., com emendas, não ass., do seu punho.

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desde 1927, quando tentara, sem êxito, aliciar Norton a passar para o lado do

adversário e assumir a liderança da Ditadura Militar. Todos estes anos depois,

arrependido do rumo que a vida política portuguesa tomara, pretenderia emendar a

mão. O agudo instinto político de Norton leva-o a desconfiar de «tanta fartura» e a

não afastar nenhum cenário, até o de espionagem. Seja como for, por mais que alegue

pretender manter-se fora da política, a política teima em ir ter-lhe a casa, pela mão de

políticos de vários quadrantes e gerações, animados pela esperança da liberdade.

Uma posição como presidente de uma estrutura como o CNUAF, cujo programa

finalmente sai em Agosto de 1944, vem apenas formalizar o que já informalmente

vinha fazendo, além de casar bem com o seu estatuto de referência da velha República

que carregava de forma cada vez mais solitária, agora que Bernardino Machado

acabara de falecer, seguindo os passos de Afonso Costa anos antes1022. Não é certo,

porém, qual a altura em que terá assumido tal cargo, tal como não é clara qual teria

sido a natureza do seu envolvimento no golpe militar abortado do Verão do ano

seguinte, logo após o fim da guerra. A tentativa de derrubar Salazar e o seu regime

pelas armas, comandada no terreno pelo brigadeiro Miguel dos Santos, teria sido obra,

aponta a historiadora Dawn Linda Raby, de um comité revolucionário formado por

militares republicanos do MUNAF, arquitectado numa reunião em casa do professor

Caraça. A literatura crítica deste período tende a acompanhar testemunhos de

natureza memorialística que colocam Norton à cabeça deste comité revolucionário e o

implicam como patrocinador desta tentativa golpista1023, embora o seu sobrinho-neto

e biógrafo traga à colação o facto de Norton estar a atravessar um período de grande

1022

Norton de Matos, «O Chefe» in O Diabo, 23-05-1937, pp. 1 e 8. 1023

Apesar das frequentes referências da literatura crítica ao seu envolvimento no golpe, os testemunhos memorialísticos em que se baseiam são assaz vagos. O mais conhecido é o testemunho indirecto de Mário Soares, que o teria ouvido de seu pai, João Lopes Soares, amigo de Norton, a quem este teria distinguido «com uma confiança absoluta nesses domínios conspirativos». Mário Soares, I: Depoimento sobre os Anos do Fascismo, S.l., Editora Arcádia, 1974 (tradução da versão em língua francesa Portugal bailloné – Un temoignage, Paris, Calmann-Levy, 1972), pp. 93-94 e 55. A historiadora Dawn L. Raby baseia-se em entrevistas orais efectuadas a José Magalhães Godinho e Fernando Piteira Santos. Dawn L. Raby, A Resistência Antifascista em Portugal (1941-1974), S.l., Salamandra, 1990, p. 29.

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sofrimento moral, o que o leva a concluir que Norton não estaria envolvido no

golpe1024.

A verdade é que o general não parece depositar grandes esperanças na

capacidade do MUNAF em unir efectivamente as oposições e, menos ainda, derrubar

Salazar. Não soube aproveitar a onda de entusiasmo popular que se seguiu à notícia da

rendição incondicional da Alemanha, a 7 de Maio de 1945, apesar o país ter parado. Na

verdade, considera que

«não existe entre nós uma organização contra o fascismo digna desse nome (…). Havia sem duvida nas manifestações feitas, a anima-las, a esperança de que baquearia entre nós o regime totalitario. Mas não foram levadas a cabo essas manifestações de modo que revelassem a existencia de força e de organização. // Estas duas circunstancias indispensaveis para triunfar, continuam a estar nas mãos dos fascistas portugueses.» 1025

Apesar de se apresentar como força congregadora do PCP, do PRP, do Partido

Republicano da Esquerda Democrática, do grupo da Seara Nova, do Partido Socialista

(SPIO), da União Socialista e de vários independentes da área do anarquismo e outras,

a verdade é que o MUNAF desperdiça grande parte do seu tempo e energias a tentar

manter a sua própria unidade interna. Tanto que, um par de anos mais tarde, o

general, na sua qualidade de presidente do CNUAF, andará ainda ocupado com

diligências para facilitar a criação de uma plataforma mínima de entendimento no

campo socialista1026.

VI.1.3. … e da Comissão Consultiva do Movimento de Unidade

Democrática

Ao clandestino MUNAF viera juntar-se, no Outono de 1945, uma nova

organização oposicionista, o MUD, que aproveita a janela de oportunidade dada por

Salazar com a sua promessa tacticista de realizar eleições tão livres como na livre

Inglaterra. O novo movimento para-legal a todos – regime e MUNAF – surpreende,

1024

«Não parece provável que Norton de Matos tivesse disponibilidade para tal, naquele período de grande sofrimento moral». José Norton, Norton de Matos: Biografia: Fronteiras do Tempo, p. 378. 1025

ANM, Norton de Matos, P. 7º Maço Memórias e Diário 9 de Maio de 1945, fls. 4-5. 1026

Num processo que se se arrasta, pelo menos, desde Junho de 1946, altura em que teria ficado acordado, com a mediação de Norton, que a Frente Socialista entraria para o MUNAF. ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947, Cx 81, Cópia de carta de Norton de Matos a António Sérgio, Lisboa, 19-01-1947, anexa a rascunho de carta de Norton a Bento de Jesus Caraça, da mesma data, mns.; Idem, Rascunho de carta de Norton de Matos a António Sérgio, Lisboa, 16-02-1947, mns.

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com uma sessão pública inaugural no Teatro Taborda em Lisboa, a 8 de Outubro de

1945, e a adesão fulgurante e entusiástica de largos milhares de pessoas em todo o

país que apõem o seu nome em listas de apoio. Não tardará muito a que dêem origem

a inúmeras demissões de funcionários públicos e perseguições várias por parte do

regime que, após ter permitido um momento de descompressão política, apertará

novamente a repressão.

O primeiro sinal de ligação de Norton à nova organização oposicionista, de que

encontrámos rastro documental, data do início de 1946, a partir de um contacto de

Álvaro Salema. Será na qualidade de colaborador permanente da imprensa portuguesa

que Norton será convidado a assinar a representação que a Comissão de Escritores,

Jornalistas e Artistas do MUD se prepara para entregar ao Presidente da República,

reclamando a publicação da Lei de Imprensa e a abolição da censura. Norton, colunista

profícuo, tem um longo contencioso com a censura prévia, que constantemente mutila

a sua prosa, não tendo portanto quaisquer dúvidas em assinar1027.

Só no Outono de 1946, um ano após a criação do MUD, o general passará a

assumir um papel de proeminência no MUD, como presidente da Comissão Consultiva,

então criada. Após a surpresa inicial, tanto o MUNAF como o regime tinham reagido ao

novo élan trazido pelo MUD: o primeiro, sob a égide do PCP, levando os seus quadros

e potencial organizativo para as estruturas do MUD, a nível local, distrital e central; o

segundo aumentando a repressão e o cerco aos seus membros, após ter recuado nas

promessas de eleições livres.

A constituição de uma junta consultiva e o convite a Norton para a chefiar

surge precisamente como resposta do MUD a uma investida do regime que atingiu a

nova comissão central do movimento, com a instauração de um processo disciplinar

pelo ministro da Educação a Mário de Azevedo Gomes e Bento de Jesus Caraça,

respectivamente presidente e vice-presidente da comissão central do movimento 1028.

Os dois professores catedráticos são acusados de difamação grave dos membros do

1027

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Carta de Álvaro Salema a Norton de Matos, Lisboa, 07-01-1946, mns., ass., com nota aposta, mns., do punho de Norton. 1028

ANM, P. Opositor… 1, Processo disciplinar aos professores Mário de Azevedo Gomes e Bento de Jesus Caraça: Carta ao senhor ministro da Educação Nacional, Lisboa, 26-09-1946, imp., 1 fl.

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governo, acabando por ser expulsos das suas cátedras e impedidos de ensinar, mesmo

no ensino privado. O professor Caraça chega a ser preso pela polícia política, a PIDE,

por alguns dias. O pretexto é a publicação de dois manifestos do MUD sobre a posição

de Portugal perante a ONU, de que Gomes e Caraça são os primeiros subscritores. No

primeiro, reclamam a democratização do país como condição indispensável para

Portugal poder ser admitido na ONU, no pleno respeito pelos princípios da Carta das

Nações Unidas. No segundo, dirigido expressamente ao Presidente da República, já

após a candidatura portuguesa à ONU ter sido vetada pela URSS, o governo é fustigado

por ter desprestigiado o país, sujeitando-o a um vexame escusado, visto persistir em

não dar os passos indispensáveis para que Portugal possa ingressar nessa assembleia

de povos livres que é a ONU: respeitar os direitos humanos e as liberdades

fundamentais de todos1029.

É o próprio Azevedo Gomes que explica a Norton que, no preciso momento em

que a comissão central estava a ser assim atacada, o MUD «teria vantagem em dar

para o público a prova» da sua «força»1030, avançando com a formalização da junta

consultiva que, desde a reunião do Teatro Taborda um ano antes, tinha ficado já

mandatado para constituir. É para António Sérgio, indigitado para vice-presidente da

junta, que Norton envia a resposta, por não se recordar do endereço de Azevedo, tão

longe iam os tempos que ambos privaram na ARS1031. A Sérgio escreve num registo

1029

Mário de Azevedo Gomes, Bento de Jesus Caraça, Hélder Ribeiro, et. alia, O M.U.D. perante a admissão de Portugal na ONU, Lisboa, Agosto de 1946, 1 fl., dact., polic.; Portugal fora das nações Unidas: Representação da Comissão Central do M.U.D. ao Senhor Presidente da República, M.U.D. – Comissão Central, Lisboa, 09-09-1946, 1 fl., dact., polic. Em reacção contra a investida do governo de Salazar, o MUD emitirá um comunicado, e Azevedo e Caraça editarão um opúsculo: ANM, P. Opositor...1, Mç. 1, «Comunicado» da Comissão Central do M.U.D., 26-10-1946, dact., polic., 1 fl.; e Mário de Azevedo Gomes, Bento de Jesus Caraça, Duas defesas. O MUNAF também se pronuncia contra o vexame a que Salazar sujeitou o país com a questão da ONU, embora defenda a entrada de Portugal na organização mas apenas quando o regime de Salazar for derrubado pois «É o povo português, é Portugal Democrático que deverá entrar na ONU!». A diferença é que o panfleto é clandestino e desprovido de assinaturas. ANM, P. Opositor 1, Comissão Executiva do MUNAF, A ENTRADA DE PORTUGAL NA O.N.U., NOVAMENTE PREJUDICADA POR SALAZAR!, Agosto de 1947, 2 pp., dact., polic. 1030

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 31-10-1946, 1 fl., frente e verso, mns., ass. Azevedo avança com uma lista de nomes a juntar ao de Norton: António Sérgio, José de Magalhães, Fernando da Fonseca, Ferreira de Macêdo, Aquilino Ribeiro, Rocha Martins, Emílio Costa, Carlos Olavo, Maria Lamas, Adelino da Palma Carlos, João de Barros, Lelo Portela, a que junta mais três nomes cuja inclusão ainda não é segura, como o comandante Penteado, o almirante Cerqueira e o Prof. Ferreira de Mira. 1031

Vide, respectivamente, ANM, P. Correspondência 1946-1948, Rascunho da carta de Norton de Matos a Mário de Azevedo Gomes, Ponte do Lima, 06-11-1946, mns., ass., 3 pp.; e Idem, Rascunho da

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mais confessional, dizendo-se sem forças, doente e perto da morte, tendo passado os

últimos três meses em completo isolamento na casa de Ponte de Lima, aparte a leitura

regular de jornais. A Azevedo Gomes responde colocando os seus préstimos à

disposição, «nas primeiras fileiras do combate que é nosso dever manter

intransigentemente contra o fascismo». Nelas, estava disposto a manter-se como

simples soldado mas, se preciso for, declara não se eximir a sofrer o que os restantes

membros da junta «estiverem dispostos a sofrer» de entre o leque de práticas

costumeiras «de «"censura", de "fiscalização" e de "impertinencia" que, por certo, as

autoridades fascistas não deixarão de aplicar ao exercício de funções da Junta.» Ao

presidente da comissão central do MUD, em particular, manifesta «as maiores

homenagens» pelo «procedimento que contra si houve por parte do Fascismo,

identico ao que contra mim houve, ha tantos anos já.».

Perante a disponibilidade manifestada, a 9 de Novembro segue o convite oficial

do MUD. À utilidade de poder beneficiar das «sugestões sensatas e dos conselhos

nascidos da maior autoridade e experiência» de homens como Norton, retomam-se,

na missiva oficial, considerações de «boa táctica política»: o MUD precisa de responder

ao ataque do regime «mostrando perante a opinião que estão estreitamente solidárias

connosco figuras representativas da Oposição»1032.

A apresentação pública tem lugar a 30 de Novembro, no salão da Voz do

Operário, sob a presidência do velho general, que é recebido com uma estrondosa

aclamação dos presentes, embora não profira nenhum dos discursos de fundo1033. A

recepção que recebeu e a forma como decorreu todo o evento impressioná-lo-ão

vivamente como a ocasião em que pôde experimentar pessoalmente «a legalidade»

carta de Norton a António Sérgio, mns., emendada, do seu punho. Até indicação em contrário, as citações são destas duas cartas. 1032

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Of. nº 1.065 da Comissão Central do MUD, assinado por Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, Lisboa, 09-11-1946, dact. A resposta oficial de Norton pode ser conferida em Idem, Rascunho de carta de Norton a Azevedo Gomes, Ponte do Lima, 14-11-1946. 1033

A Sessão de 30 de Novembro de 1946 do Movimento de Unidade Democrática, Lisboa, Ed. da Comissão Central do M.U.D., 1946, p. 18. Discursam Azevedo Gomes («Análise da situação política através do discurso do Sr. Presidente do Conselho na 1ª Conferência da União Nacional»), Ramos da Costa («Alguns aspectos económicos e sociais da organização corporativa»), Lobo Vilela (que lê uma mensagem do escritor Ferreira de Castro sobre a acção da censura na vida intelectual portuguesa), Fernando Fonseca (os problemas da assistência), Bento de Jesus Caraça («Alguns aspectos do problema cultural português»), Mário Soares («A Juventude não está com o Estado Novo»). Finaliza Fernando Mayer Garção que, em nome da comissão central, sintetiza o caderno reivindicativo do MUD.

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«em toda a sua plenitude»1034. Habilmente, o MUD aproveita as declarações de Salazar

na 1ª Conferência da União Nacional, acabada de realizar, colocando-as na ordem de

trabalhos da sessão da Voz do Operário, apresentada ao governo civil de Lisboa.

O caderno reivindicativo do MUD para a resolução do problema político

identificado por Salazar é apresentado em torno de dois eixos fundamentais. O

primeiro visa a restituição aos cidadãos das liberdades fundamentais, exigindo

amnistia total, extinção do campo de concentração do Tarrafal, abolição da censura e

liberdade para os partidos políticos. O segundo visa dar todos os passos necessários

para que se possa passar a ter um Estado democrático em Portugal: dissolução da

Assembleia Nacional, nomeação de um governo transitório que garanta as condições

de seriedade indispensáveis para que se possam realizar eleições verdadeiramente

livres, nomeadamente, implementação de nova lei eleitoral, novo recenseamento

eleitoral e liberdade de expressão.

São estas as reivindicações que Norton leva pessoalmente ao Presidente da

República duas semanas mais tarde, a 14 de Dezembro. A par das propostas de uma

transição legal para a democracia, teria colocado em cima da mesa um plano

alternativo, sondando Carmona sobre o seu eventual apoio a uma intervenção golpista

que derrubasse o governo de Salazar. Afinal, o Presidente da República é o único com

poder legal para demitir o executivo, sendo considerado por Norton, já há algum

tempo, como o homem-chave para patrocinar uma transição controlada para a

democracia. Segundo um testemunho indirecto, a sondagem de Norton teria tido

algum resultado, tendo o Presidente feito saber, três semanas mais tarde, que não se

oporia a um tal golpe, desde que este se mantivesse na esfera de controlo militar, sem

a intervenção de civis, ou seja, longe da rua revolucionária1035.

1034

Como recorda em carta de felicitações à comissão central do MUD, presidida por Azevedo Gomes, pelo primeiro aniversário da tomada de posse desta última. ANM, P. Opositor…1, Rascunho de carta de Norton de Matos a Mário de Azevedo Gomes, Lisboa, 01-07-1947, 7 fls., mns., com emendas do punho do autor. 1035

Testemunho que há que ser visto com as devidas cautelas pois, antes de chegar a Norton, passou por quatro pessoas (Maria do Carmo Carmona, Ferreira Marques, Pinto da Costa e Francisco Lemos). ANM, P. Correspondência 1946-1948, Carta de Francisco Lemos a Norton de Matos, 11-01-1947, mns., transmitindo palavras de Maria do Carmo Carmona ao médico da família, dr. Ferreira Marques, no passado dia 9: «depois de lhe significar q[ue] o marido nunca considerara as intervenções de Vic[cente] de Freitas, Quintão, etc. porque “bem sabia nada valerem”, lhe dissera – textualmente – que “se o Sr.

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Para a opinião pública, naturalmente, o que transparece da audiência com o

Presidente Carmona são as propostas relativas a direitos e liberdades. O MUD, em

comunicado, assegura ter-se tratado de «uma longa conferência»1036. O jornal

oposicionista República, no seu relato do acontecimento, é mais comedido, precisando

as horas de entrada e de saída no Palácio de Belém, entre as quais não teriam

decorrido mais de 15 minutos. O periódico apresenta Norton como um «ilustre

democrata e grande homem de Estado», lembrando que não é a primeira vez que vai

ao Palácio de Belém na qualidade de representante de um movimento unitário da

oposição. Já lá vão 15 anos1037 desde que Norton se deslocara ali para reclamar

liberdades idênticas para a ARS. Ao contrário do que acontecia em 1931, porém, agora

o Estado Novo de Salazar está plenamente instituído e consolidado, encontrando-se,

inclusive, em plena fase de reorganização para lidar com o abalo trazido com os ventos

de liberdade do período final da guerra e do pós-guerra.

Precisamente no dia anterior à audiência, numa demonstração de força do

regime contra o MUD, três dos signatários do manifesto sobre a candidatura de

Portugal à ONU tinham sido convocados pela PIDE para interrogatório, passando a

noite sob prisão. Isabel Aboim Inglês, Bento de Jesus Caraça e Francisco Mayer Garção

só serão libertados, sob pesada caução, ao final da tarde de dia 14, após a audiência de

Carmona a Norton. Nada de especialmente animador, contudo, pois estão já

convocados para o dia seguinte outros três: Mário de Azevedo Gomes, Luciano Serrão

de Moura e Manuel Tito de Morais.

General Norton de Matos garantisse ao seu marido q[ue] naquilo que outro dia lhe disse, não entravam civis” êle tomaria uma decisão e ela assim o apoiaria. [§] O Dr. Ferreira Marques perguntou à Senhora D. Maria do Carmo se podia transmitir o q[ue] ela acabara de dizer, ao que ela respondeu afirmativamente.» Francisco Lemos transmite a Norton ecos de uma outra conspiração em preparação: Lobo Pimentel teria sido procurado por Teófilo Duarte e por Moreira Lopes, convidando-o a ajudar Botelho Moniz num golpe. É crível que Carmona tenha dado alguns sinais ambíguos a este respeito, tanto que o seu apoio será invocado pelos conspiradores, chefiados pelo almirante Cabeçadas, de uma autodenominada Junta Militar de Libertação Nacional, descobertos e presos pelo ministro da Guerra Santos Costa a 10 de Abril desse ano. Não existem dados objectivos que provem uma ligação de Norton a esta última conspiração embora seja verosímil que estivesse a par do que se preparava, no que concordamos com J. Norton, Norton de Matos: biografia : fronteiras do tempo, p. 383. 1036

ANM, P. Opositor…1, «COMUNICADO» da Comissão Central do M.U.D., Lisboa, 14-12-1946, dact., polic., 1 p. 1037

E não 11, como se infere da data, gralhada, que aparece no artigo. A ida do triunvirato Matos-Cabeçadas –Morais a Belém teve lugar em 1931 e não em 1935. «O Chefe do Estado recebeu ontem o sr. general Norton de Matos», República, 15-12-1946.

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Mayer Garção, que lera as propostas do MUD na sessão da Voz do Operário,

ainda voltará à PIDE antes do final do mês «e magoaram-no deveras» durante o

interrogatório, conta Azevedo Gomes em carta pessoal a Norton1038. O argumento de o

MUD ter prejudicado os interesses do Estado em matéria de política internacional, ao

falar como falou da candidatura de Portugal à ONU, volta a ser invocado mas,

seguramente, o facto de o movimento oposicionista ter dado novo sinal de pública

vitalidade na Voz do Operário não terá sido alheio a mais este acto intimidatório por

parte do regime.

Além da acção policial, Salazar tenta mobilizar os quadros e estruturas do

partido único, a União Nacional, que, por não ter autonomia política em relação ao

governo, nunca demonstrou especial dinamismo ou suscitou grandes entusiasmos,

mesmo entre as hostes do regime. Com a recente organização da sua I Conferência

Nacional e a nomeação, em Março de 1947, de Marcello Caetano como presidente da

comissão executiva da União Nacional, Salazar tenta imprimir-lhe alguma vitalidade.

Apesar da aversão de Norton à actuação de Caetano durante os anos em que

fora comissário da MP, alguma sintonia encontra com ele quanto à relevância que as

questões coloniais devem ter para a nação1039. Fora um «penhorante bilhete»1040 de

Caetano que Norton encontrara à sua espera, quando regressara à sua casa de Lisboa,

precisamente na véspera de presidir à sessão do MUD na Voz do Operário. O bilhete

acompanhava um exemplar de uma edição antológica patrocinada por Caetano, então

ministro das Colónias, sobre temas coloniais que inclui um texto de Norton e encerra

com outro de Salazar1041, sendo este último, aliás, um discurso que o general escutara

de viva voz na Assembleia Nacional em Junho de 1933, por ocasião da abertura solene

da I Conferência dos Governadores Coloniais.

1038

ANM, P. Correspondência 1946-48, Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 30-12-1946, 1 fl., mns., ass. 1039

Independentemente das divergências quanto a políticas concretas seguidas, cuja análise está fora do âmbito deste trabalho. Caetano foi ministro das Colónias entre 1944 e 1947, tendo saído do governo precisamente para assumir o novo cargo na UN. 1040

ANM, P. Opositor…1, Rascunho de carta de Norton de Matos a Marcello Caetano, ministro das Colónias, mns., não ass. mas do punho de Norton, Lisboa, 29-11-1946. 1041

Antologia colonial Portuguesa. Política e administração, Vol. 1, Agência Geral das olónias, 1946.

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VI.1.4. O duplo registo antifascista

Nada que desviasse Norton da rota antifascista, na sua dupla vertente, a legal e

a clandestina. No figurino legal, é o primeiro subscritor de duas cartas, assinadas pelas

mais representativas personalidades do MUD, ao ministro da Justiça, reclamando a

extinção do campo de concentração do Tarrafal, bem como um inquérito aos abusos aí

cometidos1042.

No figurino clandestino, convoca o conselho nacional do MUNAF para discutir

os desafios do combate antifascista em Portugal perante a nova conjunção de forças

internacional em 1947: os EUA, com o seu «imperialismo industrialista e

financeiro»1043, e a Rússia com os seus propósitos de domínio territorial, directo ou

indirecto na Europa, levando a luta de classes para a arena internacional. Às nações

europeias colocam-se dois cenários que apresenta no seu discurso ao CNUAF. Por um

lado, existe o perigo de limitações de soberania e de independência nacionais, além de

eventual diminuição de território nacional (que, da parte dos EUA não se colocaria, a

não ser, potencialmente, nos territórios coloniais, cuja internacionalização advoga, tal

como a Rússia). Por outro, perspetiva-se uma intervenção económica ou política. Se o

general não esclarece qual deverá ser a posição de Portugal quanto a esses dois

cenários, fazendo uma alusão genérica apenas à necessidade de manter a aliança

tradicional de Portugal com a Grã-Bretanha, deixa o aviso:

«a eliminação do Fascismo da Nação Portuguesa, é uma questão de exclusiva política interna (...). A única coisa que os Anti-Fascistas Portugueses pedem ás nações do mundo é que não deem o menor apoio aos Fascistas Portugueses, que estudando bem o que eles são, não caiam no ridiculo de dar á ditadura, à tirania, às instituições políticas que imperam em Portugal, o nome de ditadura paternal, que não pratiquem quaisquer atos de proteção ou intervenção favorável junto de classes ou partidos portugueses (...). Deixem-nos a nós resolver as nossas contendas no seio das instituições democráticas que desejamos implantar.»

1042

A primeira é assinada em conjunto com Azevedo Gomes e Caraça e a segunda em conjunto com os membros dos corpos dirigentes do MUD (Sérgio, como seu vice-presidente na Comissão Consultiva e toda a Comissão Central). No panfleto do MUD do início de Março, são reproduzidas as duas cartas, datadas de 19 de Fevereiro. ANM, P. Opositor...1, COMISSÃO CENTRAL DO MOVIMENTO DE UNIDADE DEMOCRÁTICA, TARRAFAL / RECLAMA-SE UM INQUÉRITO, dact., polic., Lisboa, 01-03-1947, p. 1. 1043

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Cx 93, [Norton de Matos], Tópicos para o meu discurso. As razões que me levaram a convocar esta reunião, S.l., S.d. [1947], 16 fls. mns. e/ou dact. com emendas mns., do punho do autor + 1 fl. com «Agenda», dact. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste rascunho.

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À atitude das nações do mundo perante o regime de Salazar nestes tempos

iniciais da Guerra Fria, e ao modo como influenciou a luta dos antifascistas

portugueses em geral e a de Norton em particular, ainda voltaremos. Por ora,

interessa-nos sobretudo sublinhar dois aspectos desta mensagem de Norton

importantes para compreender o seu posicionamento no seio do meio oposicionista

português neste ano de 1947 e, sobretudo, nos anos que se seguirão.

O primeiro tem a ver com o modelo de regime a instituir quando se derrubar o

Estado Novo: uma democracia representativa que junte às liberdades políticas uma

justiça económica que permita acabar com a miséria e, logo, com o poder de atracção

do comunismo junto dos pobres e miseráveis, afastando assim o espectro de ver a

ditadura fascista substituída por uma ditadura comunista. O segundo aspecto tem a

ver com a necessidade de subordinar todas e quaisquer agendas partidárias ou

pessoais à agenda da unidade:

«nenhum desses cidadãos ou grupos de cidadãos, se poderá aproveitar da UNAF, das suas declarações e dos seus esforços e luta contra o Fascismo, para fazer propaganda dos seus ideais, para fortalecer o seu partido, para tentar predominar na vida política portuguesa, ou para ganhar forças, mediante a campanha Anti-Fascista, que todos unidos estamos levando a cabo, para tomar de assalto o Poder»

É uma unidade que não admite ser controlada por nenhum partido, até porque

a posição pessoal de Norton, no MUNAF tal como, aliás, no MUD, é «contrária

inteiramente a disciplinas férreas, e quaisquer tiranias, incluindo as dos partidos»,

como explicitará ao presidente da Comissão Central do MUD1044.

Retendo esta ideia de um homem que quer a unidade e se coloca num plano

suprapartidário, regressemos ao seu discurso ao CNUAF que temos vindo a

acompanhar, e ao primeiro ponto que assinalámos. Vale a pena sublinhar que a

palavra comunismo nunca é referida, estando apenas subentendida. O acento tónico é

colocado no facto de o derrube do regime de Salazar não poder ser um fim em si

mesmo, sendo indispensável «ter a certeza» que o governo provisório que se lhe

seguirá restabeleça ao fim de «algumas horas» as bases para uma democracia

representativa:

1044

ANM, P. Opositor 1, Rascunho de carta de Norton de Matos a Mário de Azevedo Gomes, Lisboa, 01-07-1947, mns., com emendas, do punho do autor, 7 fls.

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«as liberdades fundamentais, os direitos essenciais do homem, o prestigio dos tribunais judiciais, com o desaparecimento de todos os tribunais de excepção e do Estado Policia, a extinção do Tarrafal, a aplicação do Habeas Corpus, mais no seu espírito do que na sua actual letra portuguesa aos presos aguardando julgamento e aos que se encontrem presos ou desterrados por motivos políticos, a declaração de que dentro trez meses (o máximo) será realizada a eleição inteiramente livre de uma Câmara Constituinte, à qual competirá dotar a Nação com instituições puramente democráticas e a tomar medidas que impeçam de vez para sempre o restabelecimento ou a implantação de ditaduras em Portugal, seja qual for a natureza dessas ditaduras.»1045

Neste seja qual for a natureza dessas ditaduras é evidente a alusão às

ditaduras comunistas. A proposta de que o governo provisório tome, a par das

medidas políticas, medidas económicas «radicais», que deverão ficar expressas na

nova Constituição, para banir a «desprestigiante miséria» que grassa no país, apesar

da exponencial subida das receitas públicas nas últimas duas décadas1046, visa

claramente retirar ao comunismo argumentos para poder implantar em Portugal uma

tal ditadura. É uma ideia recorrente em escritos anteriores seus, embora, perante a

assembleia que o escuta – na qual os comunistas não só estão representados como

têm um grande peso na máquina operacional –, se abstenha de fazer essa associação

de forma expressa.

Na verdade, o clima entre Norton e os vários movimentos unitários

oposicionistas – MUNAF, MUD e, também, o mais recente MUD Juvenil – é assaz

caloroso. A aproximação do 80º aniversário do general, a 23 de Março, faz movimentar

os jovens simpatizantes do MUDJ que recolhem 8000 assinaturas de todo o país para

homenagear as «altas qualidades morais e cívicas» que o fazem ocupar «um lugar de

singular relevo entre os democratas portugueses», «um símbolo daquele tipo de

Homens que nos podem e devem guiar pelos caminhos do Futuro»1047. A recolha de

assinaturas é expressiva, mas a sessão de homenagem a esse «grande estadista

1045

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Cx 93, [Norton de Matos], Tópicos para o meu discurso. As razões que me levaram a convocar esta reunião. 1046

«Mais temos de formular o nosso desejo de que o Governo Provisório tome sem a menor perda de tempo medidas para atenuar a miséria que alastra no país e que é incomparavelmente maior do que a de 1920, apesar das receitas públicas terem subido de 260.700 contos naquele ano para 3.983.800 contos em 1945, e que a Câmara Constituinte não deixe de introduzir na Constituição medidas radicais para o desaparecimento dessa desprestigiante miséria». Idem, fl. 9. 1047

MUD - Comissão Central Lisboa, A Juventude saúda Norton de Matos, Lisboa, 29-03-1947, dact., polic., 1 fl.

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verdadeiramente nacional»1048 é proibida pelo ministro do Interior, contrariando uma

autorização já concedida pelo governador civil de Lisboa. Estava prevista para o grande

palco das manifestações oposicionistas de Lisboa, o salão da Voz do Operário, onde o

MUD esperava reeditar a mobilização da sessão de Novembro. O ar de liberdade e

legalidade que Norton então pudera experimentar nesse palco, que tanto o tinha

emocionado, não seria reeditado desta vez. O regime, passado o abalo do imediato

pós-guerra, tinha cada vez menos necessidade de proporcionar válvulas de escape à

oposição para aliviar a tensão, medir a sua força e melhor poder controlá-la. Até

porque era cada vez maior a evidência de que, como Norton antevira, o mundo livre

parecia não ter medo do ridículo de considerar o Estado Novo de Salazar uma ditadura

paternal e, com essa etiqueta benévola, mantê-lo sob a sua asa. Num novo contexto

de Guerra Fria, o interesse geoestratégico dos Açores e o anticomunismo de Salazar

eram trunfos demasiado importantes para poderem ser descartados pela Grã-

Bretanha e pelos EUA.

Pouco menos de um mês depois de proibir a homenagem a Norton, o ministro

do Interior emite um despacho de ilegalização do MUD, alegando, precisamente o

facto de nele colaborar o Partido Comunista1049, mas ainda tolerará a sua persistência

numa situação de semilegalidade até aos primeiros meses de 1948. A 31 de Janeiro, a

totalidade dos membros da comissão central e da comissão distrital do MUD são

presos e, em Março, são formalmente notificados do despacho de extinção. Estavam

assim liquidadas quaisquer ilusões que pudessem restar de que Salazar pactuaria com

uma oposição legal. É neste contexto que a oposição decide jogar uma carta inédita,

em que Norton terá um lugar central.

VI.2. A candidatura à Presidência da República: uma unidade à prova de Guerra Fria?

VI.2.1. A ponte entre os dois tempos da oposição

1048

Comissão Central do MUD, VINTE E OITO DE MAIO / O VIGÉSIMO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO COMENTADO PELO M.U.D., 05-1947, dact., polic., 4 pp. 1049

«subordinado a um poder político estrangeiro, e associação secreta e proibida pelo Código penal de 1886». Despacho de Abril de 1947 citado in José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal : uma Biografia Política, Volume 2, “Duarte”, o Dirigente Clandestino, 1941-1949, Lisboa, Temas e Debates, 1999, p. 798. Curiosamente, em Julho de 1947, Norton manifestara nada saber da ilegalização quando, em carta a Azevedo Gomes o felicita, na sua qualidade de presidente da comissão central, pela forma como, legalmente, tem conseguido defender a causa da liberdade.

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Foi necessário esperar até 1948 para a oposição apresentar um candidato seu à

Presidência da República, tentando, de forma ousada mas algo desesperada, forçar o

Estado Novo a participar num jogo eleitoral concorrencial. Na verdade, pouco havia a

fazer contra a viciação da máquina eleitoral, desde os cadernos eleitorais ao próprio

acto do escrutínio1050, passando pela rede de organizações e práticas que asseguravam

a disseminação de um clima geral de intimidação e abstenção cívica, a «surda

socialização do medo»1051 que caracterizava Portugal de meados do século XX.

Confrontado com o desplante, Salazar não estará com evasivas na avaliação desse

limiar transposto pela oposição, já em contraciclo1052: o primeiro erro fundamental da

campanha eleitoral da oposição foi… concorrer1053.

Até então, as eleições presidenciais tinham-se limitado a funcionar como

plebiscitos1054 do candidato único, Carmona, verdadeiro fiel da balança da Ditadura

Militar, primeiro, e do Estado Novo, depois, já lá iam 22 anos. Apesar dos sinais

manifestos de decadência mental do general Carmona1055 e do jogo dúbio que jogou

com Salazar ter sido exposto, com escândalo, no julgamento dos militares implicados

na conspiração de 10 de Abril de 19471056, Salazar dera-lhe o bastão de marechal,

1050

Já não tendo o carácter acentuadamente plebiscitário do início do regime, a abertura do Estado Novo à participação eleitoral da concorrência, no pós-guerra, é puramente «simulada», como lembra Manuel Braga da Cruz no seu estudo clássico sobre O Partido e o Estado no Salazarismo, Lisboa, Ed. Presença, 1988, p. 225 e passim. Veja-se, também do mesmo autor, «Oposição Eleitoral ao Salazarismo» in Revista de História das Ideias, Vol. 5, 1983, pp. 701-781 e, de Manuel Loff, «O Processo Eleitoral Salazarista (1926-1974) no contexto de 150 anos de sufrágio elitista em Portugal» in Encontros de Divulgação e Debate em Estudos Sociais, V.N. Gaia, Nº 2, 1º semestre de 1997, pp. 39-51. 1051

Fernando Rosas, Salazar e o poder: a arte de saber durar, Lisboa, Tinta-da-China, 2013, p. 200. Uma vez transposto este «primeiro círculo de segurança», ter-se-ia então que enfrentar a violência repressiva. Sobre a dupla face da violência em que assentou o «saber durar» do salazarismo, a preventiva e a punitiva, veja-se Idem, pp. 190-210. 1052

Fernando Rosas, «Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: uma candidatura em contraciclo» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, pp. 9-16. 1053

Um dos «três erros fundamentais da campanha da Oposição» foi «disputar a eleição presidencial». António Oliveira Salazar, «No fim da campanha» in Discursos e notas políticas, Volume IV, 1943-1950, S.l., Coimbra Ed., 1951, p. 386. Os outros dois teriam sido: pôr em causa o regime e aliar-se com os comunistas. 1054

Após ano e meio a exercer o cargo interinamente, desde 26 de Novembro de 1926, por decreto assinado pelo próprio, enquanto chefe do governo da ditadura, e pelos ministros do seu governo, Carmona fora eleito e reeleito em três eleições sucessivas (em 25-03-1928, 17-02-1935 e 08-02-1942) que, na prática, funcionaram como plebiscitos, devido à ausência de candidatos alternativos. 1055

NA-UK, FO/494, «Leading personalities, 1948», anexo ao of. nº 187 de C. N. Sterling para E. Bevin, 14-09-1948. 1056

Ao deixar constar que não se oporia a um golpe militar que apeasse Salazar do governo.

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deixando antever que Carmona iria voltar a ser o candidato da situação nas eleições

previstas para os primeiros meses de 1949. Independentemente do nome escolhido

por Salazar, na candidatura oposicionista o que está em causa não é um nome mas,

antes, um regime. Numa carta escrita a Domingos Pereira na véspera de comunicar a

sua decisão final de apresentar a sua candidatura, Norton explica que se trata de

«uma luta legal (…) contra o regime. Não será, pois uma luta de partidos (..) sob o

signo da Democracia Representativa (...) mas uma luta mais profunda, a da

Liberdade, da Democracia, da Justiça e da própria República contra os seus

Contrários.»1057

O convite para se candidatar fora feito por «um grupo de cidadãos contrários

ao Fascismo Português»1058 quando, a 11 de Fevereiro de 1948, regressara a Lisboa

vindo de uma estada em Ponte de Lima. Mais uma vez, Bento de Jesus Caraça tem um

papel fulcral como interlocutor neste processo. É certo que, encontrando-se então

preso no Aljube, não faria parte daquele grupo de cidadãos mas é a ele que Norton

comunica no mês seguinte não poder, afinal, aceitar o honroso convite1059. Tinha

colocado como condição prévia que todos os antifascistas, de todas as correntes e

partidos, o apoiassem, numa candidatura que teria de ser nacional, e verificava agora

que o seu próprio partido, o PRP, tinha dúvidas em apoiá-lo, mesmo se, alegadamente,

duvidava não do nome do candidato mas, antes, da oportunidade de a oposição

concorrer às eleições. Norton só se demove quando confrontado com as assinaturas

de apoio dos membros mais destacados do PRP pelo país fora, recolhidas pelos jovens

do MUDJ numa maratona automóvel arquitectada por Caraça e pelo seu amigo

Manuel Mendes1060. Mais uma vez, é o MUDJ, fortemente ligado à máquina comunista,

a ser mobilizado em iniciativas de apoio ao general, como havia já um ano acontecera

1057

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93) Cópia de carta para o Dr. Domingos Pereira, Lisboa, 07-04-1948 respondendo a carta de 05-04 (2ª via de uma outra, de 22 Março, que nunca chegou a receber). 1058

Idem. Embora a geografia do encontro não coincida, na memória do visitado e dos visitantes, o grupo de antifascistas poderá ter sido Soeiro Pereira Gomes, Mário de Azevedo Gomes e Jaime Pereira Gomes, segundo testemunho de Dias Ferreira, referido por José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Volume 2, p. 810. 1059

Carta de 11-03-1948. José Pacheco Pereira, op. cit., p. 809. 1060

Numa viagem relâmpago relatada por um dos participantes nas suas memórias. Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 143.

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para a homenagem nacional a Norton no seu 80º aniversário. Claramente, o seu nome

já então estava na calha para a candidatura à Presidência da República1061.

O facto de ser militar vai de encontro a um desejo dos militares republicanos,

na ressaca de mais uma tentativa falhada de derrubar Salazar por via golpista. Seria

bom que o candidato fosse «um general com possibilidades de ser votado pela

tropa»1062 até porque, de acordo com o novo estatuto dos oficiais do Exército, de Maio

de 1947, as eleições presidenciais são as únicas em que os oficiais do Exército e,

consequentemente, os sargentos e praças, podem votar. Mesmo se outros nomes são

aventados, como o do general Ferreira Martins, Norton preenche, de facto, aquele

requisito, mesmo se não se posiciona, em caso algum, como um candidato dos

militares1063 mas sempre como um candidato nacional.

A seu favor tinha, igualmente, o facto de ser presidente quer do CNUAF quer do

conselho consultivo do MUD e, como lembra Mário de Azevedo Gomes, ter já liderado,

no passado, a primeira experiência unitária da oposição, a ARS1064. Fazia, assim, a

ponte entre dois momentos marcantes da história da oposição, separados por quase

duas décadas, quase o tempo de uma geração.

1061

A sugestão, apresentada por António Macedo, da comissão distrital do Porto, foi bem acolhida pela comissão central do MUD, numa reunião em 1947, embora Soares, Tito de Morais e Isabel Aboim Inglês preferissem «de longe» Mário de Azevedo Gomes. Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 141. Noutros círculos oposicionistas, outros nomes são falados, como Costa Ferreira ou Egas Moniz, aventados por António Sérgio. 1062

ARQUIVO DA FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES (AFMS), Espólio de Teófilo Carvalho dos Santos disponibilizado por Joaquim Romero de Guimarães, P. 04691.045, Carta de autor desconhecido [rúbrica ilegível] aos “Amigos da Mira-Sé”, 17-01-1948, mns. O nome aventado não é o de Norton mas, antes, o do general Ferreira Martins. 1063

Uns dias antes de formalizar a sua candidatura, a possibilidade de o Exército apresentar um candidato seu ainda estará em cima da mesa. Norton considera que tal solução seria um erro crasso que conduziria a uma nova ditadura («Não creio que se tenha a insensatez de praticar tal acto. Seria uma nova ditadura militar que duraria menos que a de 28 de maio de 1926. A breve trecho ela passaria para as mãos de um ditador civil e o Exército passaria de novo a não ter, como agora não tem, a menor influencia na vida social da Nação»). Claramente, apesar da sua própria condição de militar, Norton coloca-se num plano eminentemente político, como, aliás, foi seu timbre ao longo de toda a sua vida pública. ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1946 e 1948 (Cx 93), Rascunho de carta de Norton de Matos ao Comte J. Moreira de Campos, Lisboa, 01-07-1948, 16 fls., mns., do punho de Norton, f. 5. 1064

AFMS, Espólio de Mário Soares, P. 02591.014, HOMENAGEM AO GENERAL NORTON DE MATOS: Discurso que devia ter sido proferido pelo Professor Dr. Mário de Azevedo Gomes na grande sessão de homenagem ao General Norton de Matos, que depois de ter sido autorizada pelo Governador Civil do Distrito de Lisboa, foi proibida pelo Ministro do Interior, S.d. [1947], 6 fls., dact., polic.

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No primeiro tempo, era a oposição que marcara os anos finais da década de 20

e os anos iniciais da década seguinte, dominada pelo leque dos partidos, correntes e

personalidades republicanas anteriores ao 28 de Maio, com os socialistas e

anarquistas, em que o peso dos comunistas era residual. No reviralho, como

depreciativamente foi chamado, quer pela ditadura quer pelo PCP, havia, porém,

espaço para algo mais do que a vontade de revirar a ditadura e voltar ao passado de

hegemonia do partido democrático, ou não estivesse a revisão da Constituição de

1911 no programa da ARS. Além do mais, aos velhos oposicionistas, juntavam-se

elementos de uma nova geração, iniciada na política nas lutas académicas encetadas já

sob o regime ditatorial, que se bate contra a perspectiva de um regime fascista se vir a

instalar em Portugal. A contracorrente, pois o fascismo tinha então o apelo da

modernidade. Em 1931, depois de muitos oposicionistas mortos, feridos, presos, com

residência fixada, deportados pelas ilhas adjacentes e pelas colónias várias do

império1065, a unidade da oposição surgira já como uma das últimas tentativas de virar

a maré de derrotas oposicionistas, prenunciando um novo fôlego da ditadura e a sua

evolução para o Estado Novo, na sua fase mais pujante.

Num segundo tempo, era a oposição saída dos anos finais da II Guerra Mundial,

plural mas claramente hegemonizada pelo aparelho clandestino do PCP que, ou tem

lugar marcante nas frentes unitárias ou, como é o caso do MUD, rapidamente toma de

assalto as suas estruturas organizativas. Em 1948, a esperança e o vigor desta oposição

antifascista plasmada na guerra estava em claro refluxo, inversamente proporcional ao

novo fôlego que o Estado Novo estava a ganhar, como campeão do anticomunismo e

peça de acentuado valor geoestratégico no crispado mundo dicotómico da Guerra Fria.

Apesar de Azevedo Gomes, no seu elogio a Norton, se encontrar praticamente

sozinho a resgatar a memória do primeiro ciclo oposicionista em geral e da ARS em

particular, esta funcionou como um verdadeiro laboratório das virtualidades e das

dificuldades da unidade que nos pode ajudar a reflectir sobre a campanha presidencial

de Norton e a colocá-la em perspectiva. Mesmo se, quando olhamos tanto para a

1065

Cerca de duas centenas de mortos, cerca de mil feridos, mais de dois mil presos, para cima de 1.500 deportados, entre 1927 e 1931, segundo cálculos de Fernando Rosas, Salazar e o poder…, p. 68.

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oposição como para o seu adversário, para já não falar do contexto internacional, é

todo um mundo que parece ter mudado.

VI.2.2. Apoiantes

VI.2.2.1. O pleno da unidade?

Em 1948, as duas mais importantes excepções à unidade do tempo da ARS

encontram-se claramente resolvidas, tanto no que respeita à oposição no interior

como à oposição no exterior. No seio da oposição no país, o apoio comunista é a

novidade mais significativa1066 relativamente a 1931, assunto a que, por se revestir de

uma importância fulcral na campanha, ainda regressaremos. Quanto aos opositores no

exílio, desta vez não hostilizam o novo movimento unitário em torno de Norton, tendo

colaborado activamente com recolha de fundos para a campanha em Portugal e com

acções de propaganda no exterior. Por muito que alguns dos exilados políticos não

nutram especiais simpatias por Norton, regra geral tendem a colocar a causa do

combate a Salazar e ao seu regime acima dos seus sentimentos pessoais pelo

candidato. É o caso, entre os exilados em França, de José Domingues dos Santos,

esquecido de sarcasmos antigos sobre as ambições de Norton de em tudo querer

mandar, até na chuva impertinente. É também o caso de Alberto Moura Pinto que, no

1066

De forma residual, também surgem outras novidades entre as forças de apoio à candidatura: algumas franjas monárquicas e católicas. As correntes de apoio ao general, em 1948-1949 iam «dos monárquicos aos comunistas, passando pelos republicanos históricos, pelas várias gamas de socialistas, por personalidades sem partido ou ideologia definida, por dissidentes da “Situação” e pelos raros católicos que nessa época estavam ligados à Oposição». Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 146. A propaganda situacionista não deixa de explorar as tensões que esses dois novos apoios não deixam de provocar entre os oposicionistas. Botelho Moniz, aos microfones da Rádio Club Português, insinua que o atraso na distribuição do primeiro livro de propaganda de Norton teria sido provocado pelo desagrado entre alguns dos seus apoiantes com a decisão de Norton de nele incluir uma carta de resposta às dúvidas de um monárquico sobre se a Câmara Constituinte que Norton instituiria após ser eleito Presidente da República seria livre de deliberar o restabelecimento da monarquia. Na sua resposta, Norton garante que a Câmara seria «inteiramente livre» nas suas deliberações e que ele limitar-se-ia «a aspirar a que a Constituição Política que essa Câmara der à Nação, seja uma Constituição Republicana». É uma resposta que deixa muitos dos seus apoiantes à beira de um ataque de nervos (Norton de Matos, «Uma carta» in Os Dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), 1ª ed., Lisboa, Edição do Autor, 1948, pp. 46-48). Jorge Botelho Moniz, Campanha Eleitoral (Palestras Radiofónicas), Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1949, p. 41.

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Brasil, é um dos mais activos angariadores de financiamento para a candidatura de

Norton, apesar de no passado com ele ter trocado «magníficas injúrias»1067.

No que respeita a personalidades-chave nas estruturas dirigentes, a mais

importante das relações cimentadas nos tempos da ARS com relevo para a candidatura

presidencial é a de Mário de Azevedo Gomes, que Norton já reencontrara no MUD. A

11 de Julho de 1948, dois dias após a apresentação formal da sua candidatura no

Tribunal de Justiça, o general convida-o a presidir ao grupo que coordenará a

campanha1068. Azevedo Gomes teria já participado activamente na redacção do

manifesto em que Norton se tinha acabado de apresentar «À Nação» em nome de

«uma oposição indomada e indomável», muito embora o texto tenha, inegavelmente,

a marca pessoal do candidato1069. Alvo de «grandes discussões»1070 no seio das várias

correntes oposicionistas, o documento acabaria por ser aprovado por unanimidade,

constituindo a plataforma política da candidatura. Já em 1931, como vimos no capítulo

anterior, Azevedo interviera de forma decisiva no conteúdo do manifesto da ARS,

tanto a nível dos princípios como da própria redacção de uma versão final e das

negociações para que fosse aceite por todas as sensibilidades políticas em presença.

O percurso de Azevedo Gomes é, aliás, assaz singular, pois estabelece pontes a

vários níveis. Começa por ser uma notabilidade republicana que não enjeita nem o seu

passado de ministro e deputado da I República nem as fortíssimas polémicas que

marcaram o regime, em especial as protagonizadas por Norton. Pelo contrário,

1067

«Como nascemos para ficarmos no martirológio aqui me tem cacique financeiro do Norton com quem joguei magníficas injúrias, duelos na maior parte da República Romântico-Idiota que nos consumiu o melhor da nossa vida e ainda agora nos faz sofrer». Carta de Alberto Moura Pinto a Jaime de Morais, Rio de Janeiro, 06-01-1949, 3 fls., mns., citada por Heloísa Paulo, «A oposição exilada e as eleições de Norton de Matos: entre o apoio e a esperança» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, p. 89. Juntamente com a França e o Brasil, uma terceira colónia de exilados portugueses que participou activamente na campanha de Norton foi a radicada nos EUA, esta última mobilizada de modo especial por Abílio Águas. Heloísa Paulo, Idem, p. 87. Sobre Domingos dos Santos e a «chuva impertinente» veja-se o que escrevemos no capítulo anterior desta tese. 1068

ANM, P. Correspondência 1947 e 1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Rascunho de carta de Norton de Matos a Mário de Azevedo Gomes, mns., c/ rasuras. 1069

Norton de Matos, «À Nação», Julho de 1948 in Os Dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), pp. 75-87. Segundo Mário Soares, teria sido Azevedo Gomes a redigir, «no essencial» o manifesto (Portugal Amordaçado…, p. 146) mas, como faz notar Pacheco Pereira, o texto tem a marca inconfundível do general, em especial na parte relativa à questão colonial. José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Volume 2, pp. 813-814. 1070

Mário Soares, Portugal Amordaçado…., p. 146

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apresenta essas controvérsias como um trunfo. Constituem, defende, a própria

democracia representativa em acção. A invocação da sua experiência de deputado que

assistiu ao embate violento, sim, mas de ideias, no parlamento em 1924 é

especialmente interessante. Norton, sendo um homem de autoridade, é igualmente a

prova viva, argumenta Azevedo Gomes, de que autoridade não é incompatível com

democracia. A autoridade pode e deve ser discutida no órgão que representa os

cidadãos, o parlamento, até porque quem tem verdadeira autoridade não tem que ter

medo do confronto de ideias, sobretudo com os representantes do povo1071.

A segunda ponte que Azevedo Gomes faz é, naturalmente, com o primeiro ciclo

oposicionista, dominado pelo reviralhismo. Mas não só. Faz igualmente a ligação com

o segundo ciclo oposicionista, o ciclo das frentes unitárias, crucial para a campanha de

Norton. O que nos leva à quarta ponte que Azevedo Gomes estabelece, com grande

mestria. É a ponte com o partido dominante neste segundo ciclo da oposição, por,

entre outros motivos, ser o único partido que, na clandestinidade, tinha uma

implantação e organização verdadeiramente nacionais, o PCP. Na comissão central da

candidatura, Azevedo Gomes, apesar de não ser comunista, era um homem de

confiança dos comunistas, apresentado pelo Avante! como sendo um dos «honrados

patriotas que defendem os interesses do povo e da Pátria, dos que perante o inimigo

têm sabido defender o Partido e o Povo Português» e «lutado pelas liberdades

fundamentais do povo português»1072.

1071

«Governos fortes foram estes que praticaram os actos necessários e Estado forte foi aquele que tais governos representaram na emergencia; e quem quer que conheça mais de perto o General Norton de Matos, a sua vincada personalidade, quanto ele em si mesma exemplifica e exterioriza os principios da autoridade e do respeito á mesma é devido, logo compreenderá que não se prestou um homem destes a ser governo para viver constrangido e humilhado na fraqueza e desprestígio do Poder; e a verdade é que lhe foi possível manifestar prestigio e força na vigencia daquele mesmo regime parlamentar a que aludi; isto é: na vigencia de um regime de livre crítica, sem Censura e Policia Politica, dando amiudadas contas dos seus actos ao País e, fazendo ele, como bom democrata que é, que vingassem sempre este principio e esta doutrina: de que só é forte o Governo e é forte o Estado na medida em que tiverem a sustentá-los fortes correntes de opinião, livremente expressa esta e educada na prática dos deveres duma cidadania exemplar». AFMS, Espólio de Mário Soares, P. 02591.014, HOMENAGEM AO GENERAL NORTON DE MATOS: Discurso que devia ter sido proferido pelo Professor Dr. Mário de Azevedo Gomes…, já citado. 1072

A prosa, do próprio órgão central do PCP («100 Números! Ao serviço do Povo e da Pátria» in Avante!, VI Série, Nº 100, Abril 1947, p. 2) é transcrita por Botelho Moniz, Campanha Eleitoral (Palestras Radiofónicas), pp. 115-116.

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Na estrutura dirigente da candidatura de mais de uma quinzena de

personalidades1073 representativas de várias tendências, é em Azevedo Gomes e dois

outros homens também com um passado político na I República e, simultaneamente,

nos dois ciclos oposicionistas, que Norton delega as suas atribuições para aprovar as

comissões distritais constituídas em nove distritos, alterando-as se preciso for, e dar-

lhes posse como suas mandatárias: almirante Tito de Morais e o advogado Jacinto

Simões1074.

VI.2.2.2. Jovens, propaganda e mobilização

Tal como acontecera com Mário de Castro na ARS, é pela mão de Azevedo

Gomes que um jovem como Mário Soares, com quem já trabalhara na comissão

central do MUD, assume o lugar-chave de secretário-geral da candidatura, onde

trabalhará directamente com Norton. O general, que desconhece a filiação comunista

de Soares, sabe-o filho de um republicano de velha cepa revolucionária dos tempos do

reviralho, João Soares, a favor de quem ainda recentemente testemunhara no

julgamento dos implicados no 10 de Abril. De resto, sempre foi seu timbre manter-se

atento aos novos talentos e valorizar o contributo das gerações mais jovens, como

1073

Em documento que tudo aponta tenha sido apresentado na reunião de 15 de Novembro de 1948, na qual Norton propôs que a comissão central passasse a incluir os presidentes das comissões distritais, são 17 pessoas, a que acresce o nome de Mário Soares que aparece numa subcomissão administrativa: Jacinto Simões, Rodrigo de Abreu, Mário de Lima Alves, Gustavo Soromenho, Manuel Mendes, almirante Tito de Morais, comandante António Luís de Gouveia Prestes Salgueiro, capitão César de Almeida, coronel Bento Esteves Roma, Carvalhão Duarte, Manuel Tito de Morais (engº), José Tendeiro, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães e Manuel Duarte. «COMISSÃO CENTRAL DOS SERVIÇOS DA CANDIDATURA», S.l, S.d., 1 fl., dact. in Alexandre dos Reis, Amílcar Braga, Daniel Melo, As Eleições Presidenciais de 1949. Estudo Monográfico do Primeiro Processo Eleitoral com Oposição sob o Estado Novo português, s.p. Em documentos do final da campanha, já de Fevereiro, aparecem também como membros da comissão central, António Pedro e Maria Isabel Aboim Inglês. ANTT, PIDE-DGS, Francisco Ramos da Costa, SC, CI (2), Processo 2521, [fl. 957-962] S.a., «ASSEMBLEIA DE DELEGADOS» (7 de Fevereiro de 1949), dact., 6 fls. Para uma breve caracterização de cada um dos membros deste núcleo central, vejam-se as considerações de Mário Soares, «Um jovem comunista em campanha por Norton: Entrevista a Mário Soares, 60 anos depois» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, Lisboa, Colibri, 2010, pp. 96-99. 1074

ANM, P. Correspondência 1947 e 1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Cópia de carta de Norton de Matos ao Prof. Mário de Azevedo Gomes, Almirante Tito de Morais, Dr. Jacinto Simões, Lisboa, 06-09-1948, dact., com emendas mns. do punho de Norton. A um outro membro da comissão central, o seu amigo pessoal e conterrâneo Rodrigo de Abreu Lima, faz idêntica delegação, para cinco distritos do Norte. Idem, Cópia de carta de Norton de Matos a Rodrigo de Abreu Lima, Lisboa, 25-08-1948, dact. com emendas mns. do punho de Norton.

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fizera na ARS com Castro ou na Maçonaria com Adelino da Palma Carlos1075.

«Mocidade, vida, movimento, criação é o que nós carecemos em Portugal», anotava

no seu diário de então1076, já sexagenário. Logo no início da campanha presidencial,

aos 81 anos, será ele a sancionar, com particular bom humor, iniciativas de agitação

menos ortodoxas, propostas por jovens apoiantes que tentam, com imaginação,

encenar eventos surpresa para dar visibilidade ao candidato1077, tentando de alguma

forma recuperar algum do tempo perdido com o bloqueio informativo total imposto

ao candidato pela censura à imprensa portuguesa nos meses anteriores. É certo que a

comissão de candidatura avançara já com a publicação do manifesto e de outros

documentos sobre a candidatura, sob a forma de livro1078, prevenindo-se da mais que

provável acção da polícia, de modo que quando acontece a rusga nos escritórios da

«Seara Nova», a polícia só lá encontra cinco exemplares1079.

Deste livro far-se-á uma segunda edição, ainda durante a campanha, durante a

qual será publicada uma série de outros livros e brochuras temáticas, elaboradas por

comissões de especialistas1080. Não será esse, porém, o traço mais saliente da

1075

Vimos no capítulo anterior como o general seguira atentamente os contributos de Mário de Castro para uma reforma constitucional. Adelino da Palma Carlos é outro jovem advogado que, apesar dos seus 25 anos, escolhe para orador especial na primeira grande cerimónia no palácio maçónico após a tomada de posse como grão-mestre, a Festa da Paz. «Festa da Paz» in Boletim Oficial do Grande Oriente Lusitano Unido. Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, Lisboa: Grémio Lusitano, Ano 50º, Nº 5 e 6, Maio e Junho de 1930, pp. 39-40. 1076

Norton de Matos, Diario, Algés, 1930-1931, p. 4. 1077

Como a compra de metade da lotação da sala do Teatro Nacional para apoiantes seus que, no intervalo do espectáculo, reconheceriam o candidato, também presente num camarote, e lhe fariam uma aclamação ‘espontânea’. A manobra, vista com cepticismo pela maior parte dos membros da comissão central mas aprovada por Norton, foi um sucesso. Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 149 1078

Norton de Matos, Os Dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48). O manifesto «À Nação», de Julho de 1948, é publicado em idem, pp. 75-87. 1079

«quando a polícia acordou (talvez a partir de alguma denuncia da embaixada) já estava tudo onde devia estar, ou distribuído ou em condições de assegurar-se a distribuição. Peor é, e mais difícil, obter o valor dos livros». ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 18-10-1948, mns. 1080

Norton de Matos, Mais Quatro Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-IX-48 a 9-I-49), Lisboa, Edição do Autor, 1949; AAVV, O Problema do Ensino Primário, Lisboa, Ed. Serviços Centrais da candidatura do General Norton de Matos (SCGNM), 1949; AAVV, Alguns Comentários à Política do Ensino Secundário do Estado Novo, Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; AAVV, O Ensino Profissional Industrial e Comercial (Estudo Crítico Sobre Uma Recente Reforma), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; AAVV, Para Onde nos Leva a Política Económica do Governo? (Razões Económicas de uma Crítica), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; AAVV, Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimento contra depoimento (Primeira Série), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; AAVV, Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimentos (Segunda Série), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; AAVV, Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimentos (Terceira Série), Lisboa, Ed.

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propaganda da candidatura oposicionista. A ideia é «deixar o adversário atónito e a

escorrer sangue»1081. A expressão é de Azevedo Gomes mas será o escritor Manuel

Mendes a coordenar uma equipa em que os jovens terão um papel crucial, tanto a

nível da concepção como da sua multiplicação e distribuição por todo o país,

recorrendo a meios e suportes pouco usuais em Portugal que causam sensação1082.

São cartazes e panfletos com palavras de ordem irreverentes, frases curtas, de

incisiva eficácia publicitária, muito diferentes da verborreia complicada e pomposa a

que a propaganda oposicionista estava habituada. São imagens gigantes do candidato

que propagandistas da Situação tentam fazer colar ao culto da personalidade de

figuras comunistas como Estaline1083. São pichagens gigantes de paredes e de muros,

em locais estratégicos e de grande efeito visual. São, ainda, tentativas, geralmente

frustradas pelas autoridades, de caravanas ciclistas e caravanas automóveis.

Já o uso de meios audiovisuais de propaganda, como o cinema ou a rádio,

acaba frustrado pela acção das autoridades ou de alguma forma diminuído na sua

eficácia pela colagem ao bolchevismo. No primeiro caso, a fita cinematográfica,

encomendada à Lisboa Filme Lda., do grande comício do Porto não recebe o aval da

censura para ser exibida, ficando retida indefinidamente na Inspecção-Geral de

Espectáculos1084. No segundo, Norton recusa a oferta, que considera insultuosa, dos 45

minutos de antena na Emissora Nacional, concedidos pelo regime para a totalidade do

período da campanha, mas contará com o concurso das emissões da Rádio Moscovo,

SCGNM, 1949; AAVV, Às Mulheres de Portugal (Colectânea dalguns Discursos Pronunciados para Propaganda da Candidatura), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; António Lobo Vilela, Democracia: Princípios - Métodos - Instituições - Críticas, Lisboa, Ed. SCGNM, 1949; Cartilha do Eleitor, Lisboa, Serviços Centrais da Candidatura, 1949; Nota relativa aos direitos e deveres dos delegados eleitorais, Lisboa, Ed. SCGNM, 1949. 1081

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 12-10-1948, mns. 1082

Sobre a modernidade da propaganda vejam-se as considerações de José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Volume 2, pp. 821-825. Como testemunhará Mário Soares, são os jovens do MUDJ que sustentam a propaganda da campanha. Mário Soares, «Um jovem comunista em campanha por Norton: Entrevista a Mário Soares, 60 anos depois»» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, p.100. 1083

Botelho Moniz, Campanha Eleitoral (Palestras Radiofónicas), p. 134. 1084

A empresa tenta retirar o pedido de autorização à censura, garantido que já não pretende exibir a fita, esperando que, assim, lhe seja devolvida a película para a poder entregar à entidade que a encomendara (a comissão central da candidatura de Norton), sem o que não seria paga pelo seu trabalho. ARQUIVO DO MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA (AMAI), G.M., Cx 17, Of. nº 985-S.I.R., confidencial, do director da PIDE ao chefe de gabinete do Ministro do Interior, Lisboa, 02-06-1949.

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transmitidas em língua portuguesa em várias frequências1085. Será uma arma de dois

gumes. Apesar de fazer a propaganda da candidatura, usa linguagem estereotipada e

algo desligada da realidade portuguesa não tendo todo o efeito que um poderoso

meio como é a rádio poderia ter junto de outras audiências que não apenas a

comunista. As emissões serão, aliás, aproveitadas pela Situação para defender que

Norton estaria dominado pelo comunismo internacional, a soldo de Moscovo.

Os jovens comunistas do país, na entourage de Norton, relevar-se-ão

propagandistas bem mais talentosos e eficazes. Entre eles, encontra-se o pintor Júlio

Pomar, que desenha um retrato estilizado de Norton que será a imagem de marca da

campanha, multiplicado por todo o país sob os mais variados suportes, como

panfletos, postais, selos, cartazes e pratos decorativos. Com um efeito limitado a

círculos mais elitistas, outros jovens, do grupo surrealista de Lisboa, inauguram em

Lisboa, em plena campanha eleitoral, uma exposição com um claro intuito político.

Provocatoriamente, desafiam a censura com a capa do catálogo da exposição que lhe

apresentam, onde se pergunta «Depois de 22 anos de medo ainda seremos capazes de

um acto de liberdade?». O acto de liberdade constituía não apenas em «votar contra o

fascismo», como se propunha na mesma capa1086, mas em enxotar o medo de pensar e

de falar pluralmente, afrontando todas as consequências, inclusive policiais.

Havia ainda poucos meses, nas viagens pelo país para formalização da

constituição das comissões distritais da candidatura, não era raro os enviados de

Norton encontrarem homens «cheios de medo e de mistério», a quem era preciso

desafiar «a deitar o medo para trás das costas»1087. É o que faz a estudante algarvia

Maria das Dores Medeiros, em vários palcos no Barreiro, Vila Real de Santo António e

1085

J. Botelho Moniz, Campanha Eleitoral (Palestras Radiofónicas), p. 195. 1086

Naturalmente censurada, sendo substituída por um grande X. A apoplexia do censor perante o desaforo e a ameaça de mandar os apoiantes de Carmona à exposição escaqueirá-la é testemunhada por José Augusto França, um dos jovens surrealistas que, com António Pedro, levou o catálogo à censura, citado por José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Volume 2, p. 823. 1087

É neste estado de espírito que Azevedo Gomes e Jacinto Nunes vão encontrar os apoiantes de Norton em Setúbal, que visitam num domingo de Outubro: «Foi, em resumo, mais uma bôa jornada, embora bastante fatigante; a casa em que reunimos nem tinha onde nos sentássemos; os homens ainda estavam cheios de mêdo e de mistério. Tive de lhes fazer ver que não havia razão para tal e que exortá-los a deitarem o mêdo para trás das costas». ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, Parede, 25-10-1948, mns.

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Lisboa, com palavras de desafio: «não há violência que consiga amedrontar a

juventude»1088.

À velha notabilidade republicana junta-se, assim, uma nova geração que

experimenta pela primeira vez a liberdade de poder exprimir a sua voz. A liberdade de

expressão sairá para o espaço público e surpreenderá tudo e todos, começando por

um comício no Teatro Circo de Braga a 8 de Janeiro, logo seguido, no dia seguinte, por

outro no estádio de futebol do Salgueiros, no Porto, com a presença estimada,

respectivamente, de quatro mil e trinta mil pessoas1089. O contraste entre as massas

populares e a audiência de notáveis na II Conferência da União Nacional do Porto,

inaugurada por Salazar no Palácio da Bolsa dia 7 é flagrante. Salazar avisa, no seu

discurso, que está fora de questão o regresso à «fragmentação partidária» através de

um «golpe de Estado constitucional» mas, claramente, desvaloriza o adversário. A

oposição, admite, iria falar de liberdade, enquanto o regime iria ficar à espera que «o

aguaceiro» passasse, «para continuar»1090. Simplesmente, logo nos dois dias seguintes

ficará claro que a oposição não se limitará a falar de liberdade. Na verdade, exerce o

direito à liberdade e proporciona essa experiência a muitos milhares de pessoas,

multiplicada nos dias seguintes em muitos palcos por todo o país1091.

Entre as hostes salazaristas, as campainhas de alarme soam, de modo especial,

perante os acontecimentos no comício presidido por Norton no centro hípico da Fonte

da Moura, também no Porto, no final do mês. As cerca de cem mil pessoas que aí se

juntaram, após terem ido esperar o general aos Carvalhos, pararam a capital do Norte

tanto que, a certa altura, ninguém pagava nos transportes públicos, tal a mole de

gente1092. As fotografias panorâmicas tiradas na ocasião foram transformadas em

material de propaganda, traduzindo em imagens poderosas que levaram a todo o país

a experiência inolvidável então vivida por quem lá esteve. Nunca se vira nada assim

1088

Palavras proferidas no comício da Voz do Operário em Lisboa, a 12 de Janeiro. «Chama ardente da Pátria (...)» in República, 13-01-1949, p. 4. 1089

Fernando Rosas (coord.), Norton de Matos, Uma Oposição Indomada e Indomável. Campanha eleitoral do General Norton de Matos 1948/1949, S.l., ed. CML/BMRR, S.d. 1090

António Oliveira Salazar, «O meu depoimento» in Discursos e Notas Políticas, Vol. IV, , 1943-1950, pp. 349-381. 1091

Fernando Rosas (coord.), Norton de Matos, Uma Oposição Indomada e Indomável… 1092

Virgínia de Moura, Mulher de Abril: álbum de memórias, Lisboa, Avante!, 1996, p. 49.

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desde as manifestações públicas de júbilo pela vitória aliada em 1945. Definitivamente,

era um aguaceiro que o Estado Novo não se podia limitar a esperar que passasse por

mais que soubesse, para retomar as palavras textuais do governador civil de Bragança,

que «os actos eleitorais, nos moldes usados, foram, são e serão uma pura ficção»1093.

De outros pontos do país, como Leiria, o ministro do Interior recebe

informações enviadas pela Legião Portuguesa sobre o estado da opinião pública e a

necessidade de tomar previdências para inverter a situação:

«O interesse é grande, havendo grande actividade, mas maior do lado oposicionista

do que do lado nacionalista. Sente-se a oposição na ofensiva e o lado nacionalista na

defensiva, convindo que tome a ofensiva, única maneira de tornar mais enérgica a

sua propaganda.»1094

Após uma série de comícios pelo país em que, manifestamente, as autoridades

são apanhadas de surpresa pela temeridade das intervenções de oradores que,

seguindo o conselho de Azevedo Gomes, parecem ter deixado o medo para trás das

costas e incendeiam, com as suas palavras, plateias sedentas de liberdade, as

autoridades tomam precauções adicionais. Se um tenente da GNR acaba admoestado

pelos seus superiores por se ter deixado ultrapassar pelos acontecimentos num

comício da juventude oposicionista em Coimbra, em que o Estado Novo é

publicamente colocado no banco dos réus1095, em Aveiro, o representante do

governador civil é mais precavido, entregando pessoalmente uma lista de temas

proibidos aos organizadores1096.

1093

AMAI, G.M., Cx 10, Of. nº 140, confidencial, de Augusto Soares Machado, governador civil do distrito de Bragança, ao ministro do Interior, Bragança, 28-09-1948. 1094

AMAI, G.M., Cx 14, Campanha eleitoral. Relatório da semana de 9 a 15 de Janeiro. Estado da opinião pública em relação à Situação e à Oposição [em Leiria], anexo a Of. confidencial nº 51/49 do comandante da Legião Portuguesa, brigadeiro de aeronáutica Craveiro Lopes, ao chefe de gabinete do Ministro do Interior, Lisboa, 24-01-1949. 1095

AMAI, G.M., Cx 17, Despachos apostos ao relatório do representante do governador civil, tenente José Barreto Ferraz Sachetti, do Batalhão nº 5 da GNR, Coimbra, 28-01-1949. 1096

Abordar a atitude do exército ou de violências das polícias, ou do campo de concentração do Tarrafal, ou de propaganda comunista ou, ainda, fazer ameaças, ter «atitudes sediciosas» ou dar «gritos subversivos» eram palavras e atitudes expressamente proibidas, sob pena de encerramento imediato das sessões de propaganda. Tal não invalida que não se tentassem estratégias várias para tentar desafiar proibições como estas, jogando o jogo do gato e do rato com o representante do governador civil, obrigatoriamente presente, como esperar pelo soar das badaladas da meia-noite, hora a que obrigatoriamente a sessão teria de encerrar, para gritar “Abaixo o Tarrafal” e “Viva a Liberdade”. Manuel da Costa e Melo, Memórias cívicas 1913-1983, Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp. 116-119.

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Rapazes e raparigas são oradores em sessões especialmente destinadas à

juventude mas, igualmente, em sessões de propaganda de adultos por todo o país

onde frequentemente há um jovem que também discursa. Os oradores, à partida já

mais politizados, geralmente formados no MUDJ ou, simplesmente, no PCP, não são os

únicos jovens a comparecer. A emotividade destas sessões, que juntam na esfera

pública um grande número de pessoas desejosas de liberdade, é grande, constituindo

o baptismo político de muitos jovens portugueses que marcam presença também na

assistência. Marcam presença pela quantidade, anotada, com manifesta surpresa,

pelas autoridades presentes. Sem dificuldade, conseguem reunir à volta de um milhar

de presenças em eventos organizados por jovens e expressamente a eles dirigidos.

Mais de mil são reportados na Voz do Operário, em Lisboa a 12 de Janeiro1097. A 25,

uma multidão de jovens empregados do comércio, operários, «gente da rua» e

estudantes enche literalmente o Teatro Avenida de Coimbra. Marcam presença pelo

entusiasmo e, entre todos, um grupo destaca-se pela irreverência de símbolos

exteriores de cor vermelha: eles de laço, servindo de gravata; elas de boina e lenço. O

tenente Sachetti – o militar da GNR a que atrás aludimos – não esconde o espanto

perante a realidade desconcertante com a qual é confrontado. No seu relatório,

descreve um teatro «repleto – tanto quanto traduz o verdadeiro sentido da palavra –

de uma multidão» «delirante de entusiasmo», acrescentando que não pode deixar

«salientar esse entusiasmo» pois «seria tentar ocultar uma realidade que, embora

triste, deve ser por todos claramente conhecida»1098. A 4 de Fevereiro, num cinema da

Amadora, o capitão Romão, do Batalhão Nº 2 da GNR, calcula o número de pessoas

que entraram no recinto, controladas pela comissão organizadora e pelas praças do

seu batalhão, entre 1000 a 1200 pessoas, maioritariamente jovens, entre os 18 e os 25

anos1099 e manifesta a sua perplexidade:

1097

«Chama ardente da Pátria…» in República, 13-01-1949. 1098

AMAI, G.M., Cx 17, Relatório do representante do governador civil, tenente José Barreto Ferraz Sachetti do Batalhão nº 5 da GNR, Coimbra, 28-01-1949. 1099

«O mais heterogénia que pode supôr-se e nela largamente representado o elemento feminino; contudo o que feriu mais a minha atenção foi o número preponderantíssimo de rapazes entre os 18 e os 25 anos». AMAI, G.M., Cx 17, António Amaro Romão, capitão do B. 2 da GNR, RELATÓRIO DA SESSÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL LEVADA A EFEITO PELA OPOSIÇÃO NO SALÃO DO CINEMA DOS RECREIOS DESPORTIVOS DA AMADORA NA NOITE DE 4/5 DE JANEIRO DE 1949, Quartel em Lisboa, Janelas Verdes,

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«A oposição parece interessar um número tão grande de jovens de ambos os sexos que julgo que a curiosidade e os anseios em gente nova só por si não bastam para uma explicação capaz.»1100.

À perplexidade do capitão corresponderá o embaraço de um seu colega dos

serviços de censura quando é confrontado com a notícia de que a participação em

comícios de apoio a Norton custará a duas jovens alunas a expulsão do liceu de Faro

1101. A notícia chegara, célere, a Lisboa e logo a 4 de Março uma delas, aluna do 6º ano,

é irradiada da Mocidade Portuguesa Feminina por despacho ministerial1102. O reitor do

Liceu, não querendo ficar atrás, usa da prerrogativa de que dispõe para lhe negar a

matrícula no ano lectivo seguinte. É um caso extremo, sintomático do que caracteriza

como uma «inquietação crescente das massas discentes, de origem difícil de

determinar, posto que os métodos seguidos na sua educação liceal são os mesmos que

os usados anteriormente», só podendo ser «consequência da tremenda acção que o

meio dissoluto e irreverente do nosso tempo» exerce sobre elas1103. Era a continuação

do mal-estar iniciado no ano em que Norton viera, com a sua candidatura, perturbar

os jovens do Algarve1104, precisamente em ano de estreia do novíssimo edifício do

liceu, símbolo da capacidade de realização do Estado Novo1105.

05-02-1949, anexo of. confidencial nº 72 do Comte Geral da GNR, general Afonso Botelho, ao chefe de gabinete do ministro do Interior, Lisboa, 06-02-1949, fl. 2. 1100

AMAI, G.M., Cx 17, António Amaro Romão, Relatório citado, fl. 6. 1101

AMAI, G.M., Cx 14, Direcção dos Serviços de Censura, cap. José Augusto Brandão Pereira de Melo, Boletim de registo dos principais cortes efectuados nos jornais, confidencial, nº 71, Lisboa, 17-12-1949. 1102

ARQUIVO HISTÓRICO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (AHME), Liceu de Faro, 1949/50, 253, Cx 35, José Ascenso, Liceu Nacional de Faro. Ano lectivo 1948-1949, Relatório das actividades, fl. 38. 1103

AHME, Liceu de Faro, 1949/50, 253, Cx 35, José Ascenso, Liceu Nacional de Faro. Ano lectivo 1949-1950, Relatório geral das actividades, Reitoria do LNF, 27-01-1951, fls. 49-50. 1104

Fora no Algarve, junto a Olhão, que o MUDJ tinha realizado em 1947 um dos grandes convívios ao ar livre, desafiando a polícia, que ficaram na memória de toda uma geração e que contou certamente com jovens algarvios que depois terão participado na campanha presidencial. A diferença entre esse ambiente de semiclandestinidade de 1947 era que, na campanha de Norton em 1949, havia uma legalidade, mesmo se controlada, que permitiu o contacto de muito mais jovens com as pessoas e as ideias da oposição em locais como os cine-teatros das cidades e vilas algarvias, mesmo se, durante a viagem de Norton pelo Alentejo e Algarve, as populações tenham aproveitado a oportunidade para acompanhar o candidato e manifestarem-se também pelas estradas por onde ele passava. 1105

Em Março de 1949, deu-se um acontecimento inaudito: um acto de indisciplina colectiva dos alunos do 7º ano, em protesto contra o castigo injusto de uma colega. O Conselho Disciplinar «julgou com grande espírito paternal, os delinquentes» (sic) mas perturba-se com a «inquietação» «que traz perturbados os espíritos», «inquietação e perturbação essa que não se consegue sempre eliminar pelos meios suasórios». AHME, Liceu de Faro, 1948/49, 223, Cx 33, José Ascenso, Liceu Nacional de Faro. Ano lectivo 1948-1949, Relatório das actividades, fl. 37.

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O dinamismo dos jovens apoiantes da candidatura de Norton é

extraordinariamente mais apelativo do que o Centro da Mocidade Portuguesa naquele

liceu onde o «alheamento», para não dizer «má vontade», dos filiados é «enorme». Na

verdade, só devido à imposição de uma disciplina rígida é que tem sequer membros,

admite o reitor1106. Outro tanto acontece com outras instituições enquadradoras do

regime, como a Legião Portuguesa, noutros pontos do país: «Os pais estão connosco.

Os filhos estão com eles»1107. Não admira que, perante este cenário, aos jovens mais

politizados do MUDJ se junte um conjunto de rapazes e raparigas que nascem para a

vida política no ambiente de grande emotividade e mesmo efervescência que envolveu

a campanha oposicionista.

VI.2.2.3. Mulheres, religião e liberdade

A grande presença de jovens do sexo feminino é sintomática de uma novidade

absoluta desta campanha presidencial: a saída das mulheres à vida pública, já não

apenas a título individual, enquanto excepções que confirmam a regra da exclusão,

mas enquanto corpo1108. Juntam-se aos oradores masculinos na defesa da agenda

central da candidatura (a conquista dos direitos, liberdades e garantias que o Estado

Novo cerceia1109) mas advogam uma agenda reivindicativa própria1110, procedendo,

1106

Idem, fl. 60. 1107

AMAI, G.M., Cx 14, Campanha eleitoral. Relatório da semana de 9 a 15 de Janeiro. Estado da opinião pública em relação à Situação e à Oposição [em Leiria. 1108

Tese que foi por nós defendida e desenvolvida noutra sede: Helena Pinto Janeiro, «A Questão Feminina na Campanha de Norton de Matos» in Heloísa Paulo; Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 anos depois, pp. 35-56. Sobre a participação feminina na campanha em Évora, veja-se Daniel Bastos, «Mulheres na Política. A Participação Feminina na Campanha Presidencial de 1949 em Évora» in Sara Marques Pereira et. al. (coord.), Feminino Ao Sul: História e Historiografia da Mulher, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 37-43. Para uma visão global da elite das mulheres oposicionistas durante o Estado Novo, cf. Vanda Gorjão, Mulheres em tempos sombrios: oposição feminina ao Estado Novo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002. 1109

No topo das condições fundamentais a observar pela propaganda oposicionista aparecem estas duas: «1ª - A propaganda nunca perderá de vista as reclamações básicas, para a conquista das liberdades públicas, que são o terreno comum em que se encontraram e encontram todos os portugueses que apoiam a Candidatura personificada pelo Candidato, Sr. General Norton de Mattos»; «2ª - Pelo que pode dizer-se, afirmar o espírito dessas reclamações deve ser preocupação constante, cumprindo aos propagandistas, mesmo quando tratem de assuntos especializados, aproveitar todos os ensejos para recordá-las perante o público ao qual se dirigem». («Esquema do programa geral para a propaganda....» in Mais Quatro Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-IX-48 a 9-I-49), p. 148). 1110

A saber: abolição do regulamento da prostituição; salário igual para trabalho igual; equiparação jurídica para ambos os sexos; assistência social para todas as mulheres independentemente de crenças, credos políticos e estado civil. A estas junta-se a exigência de um sufrágio universal que, embora

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simultaneamente a um diagnóstico impiedoso da realidade da metade feminina da

nação, que trazem para a luz do dia de uma forma nunca antes vista em Portugal. Na

linha da frente estão mulheres de várias gerações, que se destacam pela sua militância

feminista anterior, pela excepcionalidade do seu saber em várias áreas ou pela

pertença a famílias de fortes tradições oposicionistas.

Não obstante, não são estas as únicas a ocupar o palco feminino nas reuniões

da oposição, pelos teatros, cinemas e salões recreativos de todo o país. Muitas outras

são de humilde condição social. A verdade é que estas mulheres denunciam realidades

de que têm conhecimento em primeira mão, por terem experimentado a prepotência

do Estado Novo, na sua pele, ou na da sua família. É o caso de Irene Russel que se

apresenta, num comício em Lisboa, como uma simples «mulher do povo» cuja vida

familiar foi arruinada porque a ditadura salazarista pune com «a prisão, a tortura, o

exílio, a perda de saúde, a morte»1111 quem tenha uma opinião política diferente da do

governo1112. Irmã e mãe de dois presos políticos, presos anos a fio por delito de

opinião, saúda Norton «como libertador do mêdo e da angústia que há tantos anos

afogam» os corações das mulheres cujos entes queridos «povoaram e povoam as

numerosas prisões políticas do País»1113. Em Coimbra, é uma doméstica, Dalila

Marques Maia, a expor o caso pessoal que viveu em primeira pessoa, encarcerada

durante seis meses, sem julgamento ou sequer acusação. Além do enxovalho que

recebeu, foi depois impedida pela PIDE de ocupar um lugar público ao qual tinha

concorrido e ficado aprovada1114. Já Lídia Pereira discursa em Lisboa em nome das

mulheres operárias denunciando «a exploração afrontosa que é feita hoje à mulher

interpelando também os homens, que dele não dispunham em 1949, visa principalmente as mulheres, que mais longe estão desse horizonte. As reivindicações do Núcleo Feminino da Propaganda são apresentadas no «Discurso pronunciado pela Drª Cesina Bermudes, em Santarém» in Às Mulheres de Portugal (Colectânea dalguns Discursos Pronunciados para Propaganda da Candidatura), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949, pp. 98-99. 1111

«Palestra de D. Irene Bártolo Russel» in Às mulheres de Portugal…, p. 45. 1112

Por delito de opinião, o irmão, marinheiro, esteve quase 11 anos nas prisões do Aljube, de Peniche e do Tarrafal. O noivo, empregado de escritório, seguiu o mesmo caminho: 9 anos no Tarrafal, sem jamais ter sido julgado. A própria oradora, «sem outro crime senão ser noiva dele», passou pela prisão. Não se ocupa «de política» mas apenas do «lar, e esse lar foi desfeito pela crueldade da repressão salazarista». Idem, p. 47. 1113

Idem, p. 48. 1114

AMAI, G. M., Cx 17, Relatório do tenente Sachetti, Coimbra, 28-01-1949, atrás citado.

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portuguesa», principal vítima da «miséria económica em que vivem os

portugueses»1115.

Outras mulheres serão protagonistas de intervenções que trazem para a

agenda pública temas que estão a anos-luz de velhas polémicas do tempo da I

República, como a questão religiosa, recauchutada pela velha guarda republicana, para

gáudio da Situação. Mesmo quando os discursos femininos cruzam polémicas antigas,

como a questão religiosa, fazem-no de modo subversivo, com a enfermeira Palmira

Tito de Morais, no primeiro comício a que Norton presidiu em Lisboa, na Voz do

Operário, ou a estudante Maria Augusta Mimoso, em Coimbra. Velhos argumentos e

velhos polemistas cruzam-se com novos argumentos e novas polemistas que se

colocam num outro plano: o da liberdade de pensamento e de acção da outra metade

da população. Algo tem de mudar, defendem Palmira e Maria Augusta, pois das

mulheres portuguesas não se pode continuar a esperar, como se se esperava das

alemãs sob o jugo de Hitler, que se limitem a ter filhos, a cozinhar e a ir à Igreja,

mesmo se frequentemente a sua crença nada tenha de genuíno, não passando de

superstição1116. Na verdade, advoga a obstetra Cesina Bermudes, mesmo que os seus

filhos nasçam no seio de um casamento não católico ou, mesmo, fora do casamento,

elas e as suas crianças devem ter os mesmos direitos que todas as outras e só

«moralistas sem miolos e sem coração»1117 poderão defender o contrário. No limite,

para serem respeitadas como mulheres não precisam sequer de «desentranhar-se em

filhos»1118, se for essa a sua escolha, defende a escritora e actriz Manuela Porto.

As palavras destas mulheres deitam gasolina no fogo das hostilidades abertas

por Tomás da Fonseca que se pronunciara em tom fortemente acintoso contra os

católicos e, em particular, contra o culto a Nossa Senhora de Fátima, em dois artigos

de página inteira no jornal República de 8 e 9 de Janeiro. Era o passado anticlerical da I

República, na qual Norton e muitos dos seus apoiantes tinham desempenhado cargos

1115

«Palestra de D. Lídia França Pereira» in Às mulheres de Portugal..., p. 54. 1116

«Palestra pronunciada por D. Maria Palmira Tito de Morais na sessão promovida pela Comissão Central na «Voz do Operário»» in Às mulheres de Portugal..., p. 71. As palavras de Mª Augusta Mimoso são relatadas em AMAI, G. M., Cx 17, Relatório do tenente Sachetti, Coimbra, 28-01-1949, f. 3. 1117

«Discurso pronunciado pela Srª Dra. Cesina Bermudes, em Évora» in Às mulheres de Portugal..., p. 83. 1118

«Palestra de D. Manuela Porto» in Às mulheres de Portugal..., p. 38.

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públicos de destaque, a vir assombrar a campanha1119. Com a entrada daquele velho

livre-pensador na campanha, cumpria-se o vaticínio feito por Salazar à União Nacional,

na abertura da campanha, no Porto1120. O que não estava nas expectativas de Salazar,

nem, na verdade, de ninguém de ambos os lados da contenda, era que as mulheres

irrompessem em força a defender a liberdade no seu estado mais puro para a metade

da população portuguesa que dela mais estava desapossada.

As palavras incendiárias dos velhos livres-pensadores e das novas protagonistas

no feminino, no campo oposicionista, acabariam por provocar uma reacção em cadeia

do outro lado da barricada que mudou a maré da campanha. Da defensiva, o regime

passou para a ofensiva. Para a linha da frente dos ataques à oposição vieram novas

protagonistas, também elas mulheres, juntamente com uma nova geração de jovens

católicos de ambos os sexos que nascem para a vida pública nesta ocasião1121. Uma

forma de desagravo ao que é considerado como um insulto à consciência católica da

nação e à própria dignidade feminina consistirá na assinatura de listas de apoio das

mulheres portuguesas ao marechal Carmona, nas câmaras municipais e nas juntas de

freguesia, por todo o país. Além das dezenas de milhares de mulheres que assinam as

listas, muitas pela primeira vez discursam, ou simplesmente participam, em comícios

políticos. Outras escrevem na imprensa sobre assuntos políticos. Muitas, também pela

primeira vez, vão votar, exercendo um direito que, paradoxalmente, tinha sido o

Estado Novo a conceder-lhes, mesmo se de forma muito restritiva. Por muito que, do

outro lado da barricada, se desvalorize o fenómeno, tentando reduzi-lo a um desfile de

toilettes das mulheres da melhor sociedade e à arregimentação de mulheres

dependentes, como criadas de servir ou operárias, para assinar as listas, quer saibam

1119

Os ataques a Norton por este motivo são constantes na propaganda do regime. Veja-se, em especial, o livro de Costa Brochado, O Sr. Norton de Matos e a sua candidatura. 1120

«Não vi ainda nada que expressamente se referisse ao problema religioso; mas conhecemos os homens e as suas ideias; sabemos das ligações e compromissos subterrâneos que mais uma vez pretenderiam impor-se à Nação; vimos escrita a intenção genérica de destruir a obra realizada nos últimos vinte anos». António Oliveira Salazar, «O meu depoimento» [Discurso na inauguração da conferência da União Nacional e da campanha presidencial, 7 de Janeiro de 1949] in Discursos e notas políticas, Volume IV, 1943-1950, p. 373. 1121

Como já anteriormente sublinhado, «O Patriarca não intervém. (…) Não necessita: o laicado, a sua obra, age.» (Luís Salgado Matos, «Cerejeira, D. Manuel Gonçalves» in BARRETO, António, MÓNICA, Maria Filomena (coord.), Dicionário de História de Portugal, Suplemento, Volume 7, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 303-304).

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ler e escrever, quer sejam analfabetas1122, a importância desse autodesignado

Movimento Nacional Feminino não deve ser escamoteada. Não sendo aqui o local para

desenvolver o tema, fica o argumento: esta campanha presidencial representa uma

mudança de paradigma na participação política das mulheres em Portugal que é

transversal aos vários sectores políticos, independentemente das contradições e

limitações de que essa saída à vida pública se revestiu.

Ao centrar a sua campanha na defesa das liberdades, incluindo a liberdade mais

íntima do ser humano, a de ser um ser pensante, as mulheres e os homens da oposição

viram o foco da sua luta desviar-se para a questão da liberdade religiosa1123. Deste

modo, ao juntar às vozes que defendem intransigentemente a liberdade, com toda a

sua paleta de consequências, outras vozes, mesmo que minoritárias, que ridicularizam

as crenças religiosas de muitos portugueses, a candidatura de Norton de Matos deixa-

se enredar na movediça questão religiosa, habilmente aproveitada e manipulada pelas

hostes salazaristas.

Norton manteve sempre, pessoalmente, uma atitude de respeito e de defesa

do princípio da liberdade religiosa mas parece não ter percebido a dimensão deste

erro político da sua candidatura. Num balanço feito nos dias finais da campanha,

coloca, antes, o ónus do lado do adversário e culpa a Igreja de ter embarcado numa

«campanha religiosa que, cheia dos insultos, da estupidez e da ignorância habituais,

1122

Maria Lamas, num discurso em Lisboa, afirma que as mulheres nacionalistas só têm dito disparates e as mulheres que iam à Câmara assinar as listas de apoio a Carmona «o faziam numa parada de elegancia, enquanto as pobres eram arrebanhadas pelas pessoas de quem dependiam»; muitas mulheres analfabetas apareciam como assinantes das listas, muitas assinavam várias vezes; e chegava-se ao ponto, acusa, de crianças serem obrigadas pelos professores a assinar. AMAI, G.M., Cx 17, Mário de Matos Queiroz, capitão da GNR, e José [apelido ilegível], comissário da PSP, RELATORIO SUCINTO DA SESSÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL LEVADA A EFEITO POR ELEMENTOS DA OPOSIÇÃO NO CENTRO ESCOLAR REPUBLICANO ALMIRANTE REIS SITO NA RUA DO BENFORMOSO Nº 50 DESTA CIDADE NA NOITE DE 10/11 DO CORRENTE, Lisboa, 10/11-02-1949, anexo ao of. confidencial do comandante geral da GNR ao chefe de gabinete do ministro do Interior, Lisboa, 11-02-1949, fl. 6. 1123

Que era, aparentemente, a única liberdade que o regime admitia ser digna de defesa, embora não de forma incondicional. Vejam-se as considerações sobre a liberdade feitas pelo antigo ministro da Economia de Salazar, recentemente afastado do governo, que intervém na campanha. A defesa da liberdade religiosa (para os católicos) contrasta claramente com os limites que admite serem necessários quando se trata de «Liberdades de natureza política», que devem ser condicionados ao «interesse geral». A liberdade, defende, tem de ser selectiva, não se podendo pôr «sob o princípio de ter de ser dada a toda a gente». Daniel Vieira Barbosa, Carta aberta ao candidato da oposição, Lisboa, Imp. Companhia Nacional Editora, 1949, pp. 11-15.

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alastrou pelo País»1124. As autoridades eclesiásticas não teriam, na avaliação de

Norton, medido «as graves consequências» de terem desencadeado uma tal acção,

levada a cabo em plena campanha eleitoral, que deveria ter-se mantido no campo

político1125. Se Norton não reconhece que apoiantes seus deram, neste particular, o

flanco ao adversário1126, que, naturalmente, não desperdiçou a oportunidade, o PCP

admite o erro e tira lições para o futuro, até porque acabou por sofrer alguns danos

colaterais, quando, em zonas mais arreigadamente católicas, alguns oradores da

oposição resolveram adoptar um discurso anticomunista para contrariar a propaganda

dos padres1127.

Na verdade, o Estado Novo dispunha de um argumento muito mais poderoso

do que os telhados de vidro do passado da I República ou, sequer, do que a filiação

maçónica de Norton. É certo que o argumento antimaçónico foi abundantemente

usado pela campanha situacionista. Simplesmente, há muito que o comunismo tinha

suplantado a maçonaria como inimigo público nº 1 do Estado Novo, com esta última a

atravessar uma verdadeira travessia do deserto e o primeiro a impor-se como a força

mais dinâmica e organizada da oposição. A conjuntura da Guerra Fria vem reforçar

extraordinariamente o potencial apelativo do argumento anticomunista. Afinal, numa

altura em que a prisão e pública humilhação do cardeal Mindszenty aparecem como

símbolo da negação da liberdade religiosa e, simultaneamente, da própria subjugação

1124

ANM, P. Opositor 2B, REUNIÃO DA COMISSÃO CENTRAL DOS SERVIÇOS DA CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA // Sessão de 7 de Fevereiro de 1949 sob a Presidência do General Norton de Mattos // ORDEM DO DIA// Palavras do Presidente, 2 pp., dact., com emendas mns. em papel timbrado da «Candidatura à Presidência da República (Candidato: General Norton de Matos)». 1125

E a Igreja deveria abster-se de fazer política. Como explicara a uma jornalista norte-americana a 18 de Janeiro, se fosse eleito, «he would warn the Church "not to mix politics with religion", while sedulously guaranteeing the liberties of conscience and creed». AHD-MNE, SE-RNP, 2º P., A. 50, Mç. 27, Olive Holmes, «Political Stages Elections as bid to West» in Foreign Police Bulletin, Vol. XXVIII, Nº 16, 28-01-1949. 1126

Embora, num registo mais privado, não deixe de reconhecer a abordagem militantemente anticlerical como contraproducente: «As superstições desaparecerão se tivermos a coragem de as não combater directamente e se substituirmos os estúpidos combates à Tomás da Fonseca, pelo espalhar cada vez maior, cada vez mais profundo da instrução». ANM, Norton de Matos, P. Memórias e diário 1948-53, mns., entrada de 13-10-1951. 1127

«Houve, quanto a nós, uma subestimação do problema religioso como elemento de influência na campanha eleitoral e de mobilização de massas, da parte da oposição, e o fascismo tirou algumas vantagens dêsse facto. Esta experiência sôbre a questão religiosa, é uma lição que deve ser decorada para o futuro de novas lutas». ANTT, PIDE-DGS, Joaquim A. Campino, P52-GT, Afonso, «Algumas considerações sobre a campanha eleitoral do general Norton de Matos», Março 1949, p. 11.

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do povo húngaro às mãos do diktat soviético1128, Norton apresentava-se à liça com o

apoio dos comunistas. Era uma situação potencialmente explosiva para a unidade da

oposição, tão arduamente conquistada e mantida nos anos anteriores.

VI.2.3. A aliança com os comunistas: sobreviver à Guerra Fria, custe o

que custar

Quando Norton pela primeira vez convida os jornalistas portugueses e

estrangeiros para lhes apresentar, na sua casa de Lisboa, a candidatura à Presidência

da República Portuguesa, as atenções do mundo estão viradas para uma outra cidade

europeia, retalhada pelos vencedores da II Guerra Mundial: Berlim. O bloqueio

terrestre e fluvial imposto por Estaline à zona ocidental da cidade começara algumas

semanas antes, cortando o fornecimento de electricidade e de todo o tipo de bens a

uma cidade com o tecido económico destruído pela guerra e dois milhões e meio de

pessoas para alimentar. Era apenas o princípio da resistência dos berlinenses à pressão

do gigante soviético e da monumental operação de solidariedade montada pelos

aliados ocidentais para os socorrer. A ponte aérea que garante os bens essenciais à

sobrevivência dos sitiados prolongar-se-á durante dez longos meses, sendo o pano de

fundo internacional que acompanha toda a campanha presidencial de Norton, tanto

no período oficioso que decorre até ao final do ano, como no período oficial a partir de

Janeiro e, finalmente, no rescaldo das eleições de 13 de Fevereiro. Entretanto,

acentua-se o processo de satelização pelos soviéticos dos países do Leste europeu,

enquanto, do outro lado da cortina de ferro, nasce o conceito de Ocidente1129 em

torno do Plano Marshall e do projecto de um tratado militar de defesa mútua. O

1128

O processo do cardeal húngaro é apresentado pela propaganda situacionista como exemplo da vacuidade das liberdades apregoadas pela oposição. Pois, argumenta-se no órgão da União Nacional, uma coisa é o «anticlericalismo bruto e extreme, a correr em pelo, à antiga maneira mata-frades» de Tomás da Fonseca, outra, mais inteligente, é a abordagem comunista que, no momento em que se prepara para assaltar o poder prefere, por razões tácticas, não atacar a Igreja, embora, após conquistado este, faça o que está a fazer na Hungria. «O diabo feito frade» in Diário da Manhã, 17-01-1949, p. 1. Veja-se, igualmente, Daniel Vieira Barbosa, Carta aberta ao candidato da oposição, p. 12. 1129

«It [o Plano Marshall] was far more than a foreign aid program. It represented the first stage in the construction of that community of ideas, economic links, and security ties between Europe and the United States we know simply as “the West”». William I. Hitchcock, «The Marshall Plan and the creation of the West» in Melvyn Leffler, Odd Arne Westad (ed.), The Cambridge History of the Cold War, Volume 1, Origins, Cambridge, Cambridge UP, 2010, p. 152.

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patrocínio dos EUA e da Grã-Bretanha à candidatura – frustrada pelo veto da URSS –

de Portugal à ONU, em 1946, dera já um sinal inequívoco de que havia um lugar

naquele Ocidente para o Estado Novo de Salazar. A importância geoestratégica dos

Açores, sendo já um dado incontornável, provará ser absolutamente vital ao sucesso

da ponte aérea de Berlim1130 e desta vez não haverá veto que impeça Portugal de ser

um dos doze membros fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte

(NATO) a 4 de Abril de 1949.

Se o contexto internacional é vital para a sobrevivência e acréscimo de

respeitabilidade internacional da Situação, terá também efeitos incontornáveis no seio

da Oposição. Neste que é o período mais agudo da Guerra Fria, a manutenção de uma

frente unitária com os comunistas em Portugal, em torno da candidatura de Norton,

constitui um desafio assinalável1131. Tanto pelas armas extra que forneceu ao

adversário como pelas fracturas que provocou no seio da candidatura oposicionista.

VI.2.3.1. Com os comunistas, contra a miséria e o medo

A questão está em cima da mesa desde a primeira hora, ou não tivessem os

comunistas estado no âmago das várias iniciativas que lançaram Norton como um

presidenciável em condições de ser escolhido como candidato da oposição unitária,

como vimos. O papel de Bento de Jesus Caraça, entretanto falecido, tinha sido fulcral

para que o general se comprometesse com uma questão central para o PC o poder

apoiar1132. O requisito era a candidatura só ir até ao fim caso se conseguisse obter do

regime as condições mínimas para as eleições serem inteiramente livres. Como esta

possibilidade não passava de uma hipótese académica, a candidatura estava

1130

O brutal esforço logístico de colocar aviões a aterrar em Berlim a um ritmo capaz de assegurar os bens essenciais à subsistência de tantas pessoas durante quase um ano, não seria possível sem a utilização da base aérea dos Açores para escala dos aviões norte-americanos, responsáveis por mais de metade dos voos de abastecimento à cidade alemã. 1131

Sobre o papel do PCP na campanha de Norton, veja-se, essencialmente, José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política, Volume 2, pp. 805-853; João Madeira, «O PCP e a campanha eleitoral de Norton de Matos - "uma luta conduzida em duas frentes"» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, pp. 9-16; João Madeira, História do PCP: das origens ao 25 de Abril (1921-1974), pp. 144 e segs (páginas precedidas por uma síntese sobre os efeitos da Guerra Fria em Portugal no período que precedeu a campanha presidencial: Idem, pp. 125-144). 1132

Segundo o testemunho de Dias Lourenço. Cf. José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política, Volume 2, p. 811.

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destinada, na prática, a não ir a votos, mesmo se, depois, perante a enorme

mobilização popular que a campanha suscitou, mesmo entre os comunistas tenha

surgido quem tivesse divergido deste compromisso, na linha, aliás, do que aconteceu

ao próprio candidato.

Muito antes deste embate entre Norton e o PCP na recta final da campanha,

em torno da ida ou não a votos, surgem tensões sérias entre ambos. Uns dias após o

funeral de Caraça, ainda nas vésperas da formalização da sua candidatura, são

desconfianças que ainda não atingem o candidato, circunscrevendo-se apenas a alguns

dos seus apoiantes, cujas preocupações Norton tenta apaziguar. É o que faz perante o

comandante Moreira de Campos, clarificando a sua «linha política desde a

implantação da ditadura fascista»1133.

O seu único objectivo, garante o general, é fazer desaparecer o regime actual e,

para o conseguir, todos são poucos. Ligados a si, no caso de ser eleito

democraticamente Presidente da República, considerará «todos os cidadãos

portugueses, sejam quais forem os seus programas, as suas ideologias e as suas

crenças, desde que desejem o desaparecimento do regime político actual». Não existe

«a menor dúvida» no seu espírito de que disso «nenhum mal pode resultar e que

algum bem pode advir em Liberdade e Democracia». A sua posição política pessoal

pode – e deve – conviver com a pluralidade e nada tem a temer de que ela se possa

exercer em plena luz do dia, como deve ser numa democracia1134. Perseguições e

violência, aliás, são manifestamente contraproducentes, só servindo para aumentar o

número de comunistas e o seu poder de organização. Pelo contrário, tirar o partido

comunista da clandestinidade é «a única maneira democratica de fazer desaparecer

ideologias contrárias ao nosso modo de ser português». É preciso combate-los, sim,

mas na arena democrática. E, embora deixe bem claro que, se for eleito, o seu único

1133

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1946 e 1948 (Cx 93), Rascunho de carta de Norton de Matos ao Comte J. Moreira de Campos, Lisboa, 01-07-1948, 16 fls., mns., do punho de Norton. Até referência em contrário, as citações são desta carta. 1134

Não sou comunista como não sou monárquico, mas sou de opinião que, quando chegar o momento de o poderem fazer, essas duas ideologias, bem como a de outros grupos ou partidos políticos, tenham inteira liberdade e expor à luz do dia os seus ideais fora portanto de clandestinidades, de movimentos subterrâneos, de perseguições, de violências e de medo». Idem.

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programa seria demitir o governo de Salazar e nomear um governo provisório que

estabeleça todas as liberdades indispensáveis para o povo poder eleger uma nova

assembleia constituinte que seria soberana, sempre vai adiantando dicas para o que

um programa político no Portugal democrático não poderá deixar de incluir. Não

bastam as liberdades, é preciso acabar com a miséria e o medo. É que não só pode ser

esquecido que os comunistas «são portugueses» — e nenhum português pode ser

excomungado da comunidade nacional —, como é preciso retirar da doutrina

comunista o que ela tem de positivo. Na linha de reflexões feitas em anos anteriores,

reveladoras de admiração pelo programa social e económico do comunismo soviético,

Norton lembra a Moreira de Campos:

«É meu dever dizer bem alto que nessas camadas do povo português, ás quais acabo de me referir, muitos portugueses estão chegando à conclusão que não basta a Liberdade, a livre expressão do pensamento pela escrita ou pela palavra, o aumento cada vez maior da instrução pública, as instituições parlamentares e eleições inteiramente honestas para se conseguir o afastamento da miséria e do medo, para se poder viver vida sã, confortável e que não apouque a dignidade humana, bem supremo dos homens»

Mais: é precisamente com este povo que sofre a miséria e o medo que ele,

Norton, mais conta pois estão unidos em torno do único objectivo que interessa:

derrubar o Estado Novo. Os restantes oposicionistas, pelo contrário, parecem mais

interessados noutras agendas, com grave prejuízo para a unidade, sem a qual tudo se

perderá. É para esta unidade que Norton apela:

«Vendo nas fileiras da oposição ao regime actual mais desunião do que união, julguei de meu dever dizer a todos os oposicionistas, ainda que correndo o perigo de se julgar que apenas estou trabalhando pro domo mea, que cerquem todos os seus actos da maior prudencia, que afastem neste momento que pode ser o início de um triunfo, todas as querelas, todas as divergências que, a meu ver, só tem servido para dividir os democratas e para diminuir a sua força política em face de forças totalitárias de variada espécie.

Estou sentindo que não fui inteiramente ouvido. União verdadeira só a sinto nas camadas do povo português, que, a custo, vivem sem alimentação suficiente, sem habitação condigna, sem existência social, sem qualquer conforto, sem instrução e com constante medo, e apenas se aguentam com a esperança de dias de Liberdade e de bem estar que os sobreviventes da derrocada da República em 28 de Maio de 1926, continuam a dizer que virão em breve.»

Levantar, nesta fase, «questões de programas ou de ideologias» só enfraquece

a força da oposição, que lhe advém «principalmente da sua unidade». Enquanto uns

estão contra os comunistas, outros contra os socialistas ou contra os monárquicos

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«nem tempo temos para atacar o único inimigo que actualmente temos pela frente, - o Fascismo .

Repito, o ataque a esse formidável inimigo é o único laço que nos deve unir a todos. Foi assim que procederam a França e a Itália, onde o Fascismo era bem mais forte do que entre nós».

VI.2.3.2. Verão, 1948: a corda estica mas não parte

No discurso que uma semana depois faz aos jornalistas para apresentar

publicamente a sua candidatura1135 não irá tão longe mas deixa clara a sua posição

sobre os comunistas: aceita os seus «votos e apoio», como aceita os de quaisquer

outros portugueses pois é isso que eles «acima de tudo» são: «portugueses». Apesar

de saber que foram postos «fora da lei» em Portugal, esse foi um acto injusto, violento

e… pouco inteligente1136. Seja como for, ele, candidato, é «absolutamente contrário a

quaisquer excomunhões por motivos religiosos ou políticos», no que, recorda, está em

consonância com o candidato republicano às eleições presidenciais norte-americanas,

Dewey. O que não significa que não deixe de afirmar publicamente não ser comunista

e marque, até, as suas distâncias em relação a essa doutrina. Há nela, enfatiza, muita

coisa que não compreende:

«a não ser a ânsia de expansão que vem de um passado longínquo, à procura de terras menos bravias e de possibilidades de vida mais suave, o resto está constituindo a intranquilidade, o receio e o desassossego que resultam da incompreensão.».

Vemos, assim, a par da solidariedade e de alguma condescendência, a pública

confissão do general de que partilha, como liberal confesso do lado de cá da cortina de

ferro, a intranquilidade, receio e desassossego de muitos ocidentais face à expansão do

comunismo. Da sua parte, fica, na ocasião, «claramente resolvida» a sua relação com

os comunistas, até porque, no manifesto À Nação é leal com os compromissos

assumidos, declarando «o propósito de não colaborar nos actos públicos, pre-eleitorais

1135

O discurso está publicado em Norton de Matos, Os dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), pp. 33-38. Até referência em contrário, as citações são deste discurso. 1136

As suas palavras textuais são: a proibição constituiu «uma curiosa manifestação de falta de qualidades governativas».

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e eleitorais, a que faltem as características democráticas da liberdade, seriedade e

independência»1137.

Simplesmente, não é aquele o entendimento do PCP que faz questão de deixar

bem claro que não admite ser tratado com condescendência, ele que se considera a

força motriz da candidatura. Fá-lo publicamente, no jornal Avante!, e em privado, em

carta ao general. No Avante!, reclama ter um papel preponderante na oposição, ou

não fosse o PC «o maior obreiro da Unidade das forças democráticas», e apoia

publicamente Norton como seu candidato presidencial, deixando implícito que ele

concordara com os termos indispensáveis para receber esse apoio, comprometendo-

se a ir a votos apenas se se conseguisse conquistar ao regime as condições mínimas

para que o acto eleitoral pudesse ser verdadeiramente livre1138. A pública declaração

de apoio, e de força, é acompanhada por uma carta a Norton que quase deita tudo a

perder. Não conhecemos o teor exacto da missiva mas conhecemos a reacção violenta

que ela provocou em Norton, resumida num escrito seu, de final de Agosto, sobre «A

questão das minhas relações com os comunistas portugueses»1139. Estando fora de

questão entrar em «negociações ou fixação de compromissos», seja com o PCP ou com

qualquer outro partido, vê-se obrigado a dizer-lhes:

«1º. Que me declarem que deem por não escrita a carta que me escreveram, dada a tremenda injustiça para comigo; 2º. Que declarem reconhecer que na minha Candidatura ha altos interesses nacionais muito superiores a qualquer disciplina de partido. 3º. Que durante os poucos meses que faltam para o acto eleitoral, os dirigentes do P.C.P. se conservem em quasi nula actividade, limitando-se á propaganda dessa Candidatura; 4º. Que reconheçam que não podem fazer parte do meu Secretariado; 5º. Que reconheçam que as Comissões dos Serviços da Candidatura teem de ser estritamente minhas mandatárias; 6º. Que não tentem continuar [sic] que diversas correntes de opinião se congreguem em torno de mim com fins de propaganda e de organização da Frente Eleitoral, que absolutamente careço; 7º. Que se abstenham por completo de provocar o funcionamento durante os meses referidos de quaisquer instituições de caracter clandestino.

1137

Norton de Matos, «À Nação» in Os dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), p. 76. 1138

«O P. Comunista e as eleições presidenciais» in Avante!, VI Série, Nº 121, Agosto de 1948, pp. 1-2. 1139

ANM, P. Opositor 2B, [Norton de Matos], S/ título, iniciando «A questão das minhas relações com os comunistas portugueses (…)», Lisboa, 26-08-1948, 4 fls., mns., não ass., mas do punho de Norton. Até referência em contrário, as referências são deste documento.

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8º. Que não esqueçam as declarações por mim feitas de que todo o trabalho e propaganda da minha Candidatura, será feito dentro da lei e à clara luz do dia. 9º. Que não esqueçam que com a apresentação da minha Candidatura o principal fim que tive em conta foi reunir todos os portugueses em torno do engrandecimento e prestígio de Portugal que todos temos o dever de pôr acima de quaisquer outros desígnios.»

A carta do PC terá tido, verosimilmente, também algo a ver com a troca de

acusações, entre o partido e os membros mais abertamente anticomunistas da

entourage de Norton, por via da intervenção da PIDE na reunião da candidatura de 19

de Agosto, para a qual o general convocara dois representantes de cada partido seu

apoiante. Os comunistas, desconfiando de alguma armadilha, não aparecem e

acusarão alguns dos presentes de terem informado a polícia. Apesar da fúria de

Norton com Salazar por convidados de sua casa serem importunados com

interrogatórios policiais e idas à esquadra1140, o general não concebe a possibilidade de

haver, entre os seus mais próximos apoiantes, informadores da polícia política, não

admitindo fundamento às acusações do PC. A verdade, porém, é que a partir de certa

altura, a PIDE passou a ter informadores privilegiados que relatavam quanto lá se

passava, tanto que deixará de ter necessidade de fazer vigias ostensivas tanto ao

general como à sua residência1141.

O texto da convocatória de Norton trazia já um potencial ponto de conflito com

as intenções do PC. A reunião visava discutir a constituição das comissões distritais da

candidatura seguindo uma orientação específica: não podem ser de natureza

partidária, devendo ser exclusivamente mandatárias do candidato1142. Será, de facto,

em torno da questão das comissões de apoio, embora não tanto a nível distrital mas a

1140

O incidente é alvo de protesto que dirige a Salazar, o primeiro de muitos se seguirão contra os «vexames, as violências e principalmente a privação de direitos, de regalias e de respeito» com que o regime mimoseia a sua candidatura. Norton de Matos, Representação ao Presidente do Conselho, Lisboa, 08-09-1948 in Os dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), p. 67. 1141

«Tal ausência de vigilância foi suprida duma maneira "mais eficiente e mais económica" recorrendo a informações obtidas através de "alguns correligionários daquele General" que, participando das suas reuniões, "nos relatam posteriormente os fins e resultados destas"». AOS/ANTT/AOS/CO/PC-28, «Relatório» s/ nº da PVDE, «confidencial-reservado», ass. ilegível, Lisboa, 27-09-1948. Apesar de haver suspeitas, não existem provas concludentes de quem seriam os informadores privilegiados. 1142

«Essêncial é que essas comissões não sejam partidárias mas apenas minhas mandatárias, mas que nelas se encontrem representadas todas as correntes políticas congregadoras de cidadãos "que desejam o desaparecimento entre nós de regimes com características totalitárias"». ANM, P. Correspondência 1947 e 1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Minuta de carta circular de Norton de Matos aos vários partidos / correntes suas apoiantes, 16-08-1948.

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nível mais local e/ou sectorial, que o conflito com os comunistas essencialmente se

jogará nos meses seguintes.

Antes de aprofundar este ponto, vale a pena sublinhar, desde já, que os

conflitos da Guerra Fria entram na campanha de forma aguda bem antes do ponto

crítico, geralmente sublinhado pela literatura crítica, dos dias finais da campanha, em

que se consumará a ruptura de Norton com os comunistas. Logo no Verão de 1948,

imediatamente após a formalização da candidatura, ela esteve iminente, como o

escrito atrás citado, do final de Agosto, bem documenta. Muito verosimilmente é a

esta crise que se refere Mário Soares quando alude, algo cripticamente, a uma

conspiração de palácio1143 em que participou para fazer abortar a manobra de alguns

apoiantes anticomunistas de Norton, que o estariam a pressionar para se desligar

publicamente do patrocínio do PCP. O general reunira alguns dos seus conselheiros

mais próximos (Azevedo Gomes, Adelino da Palma Carlos e João Soares que, não

podendo, delega no filho) para discutir essa possibilidade, que não chega a

concretizar-se. Simplesmente, a ruptura estivera iminente não apenas devido ao

instinto político do velho general, antecipando danos demasiado elevados para a

candidatura se os seus adversários continuassem a poder explorar a tecla

anticomunista. Tão-pouco se trataria de uma cedência de Norton às pressões dos mais

anticomunistas dos seus apoiantes. Afinal, não era, nem nunca foi, «manequim para

espantar pardais»1144, viessem as pressões de onde viessem.

O seu instinto político dizia-lhe, isso sim, que a sua candidatura tinha de ser

nacional, não podendo ser refém de nenhum partido e, menos ainda, do partido

comunista. A unidade em torno desse objectivo nacional, porém, era frágil, apesar de

não ser formalmente rompida. Na avaliação que, nesse fim de Verão, dela faz a União

Socialista, não passaria, inclusive, de uma ficção1145. Mas, para Norton, os comunistas

1143

Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 159. 1144

«Nunca permiti que ninguém me empregasse para aumentar a sua fortuna ou o seu prestígio e que de mim se fizesse um instrumento para conseguimento de fins escuros ou um manequim para espantar pardais». ANM, Norton de Matos, P. Memórias e diário 1948-53, entrada de 18-09-1948. 1145

Referindo-se à comissão de apoio a Norton: «Não queremos de maneira alguma destruir esse resto de "unidade" mas desejamos ardentemente que esta deixe de ser uma ficção para se transformar numa unidade de facto». ANM, P. Correspondência 1947 e 1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Cópia de carta, da qual não consta a assinatura, «pela U.S.» a «Prezados camaradas [dirige-se ao PCP]», Lisboa, 04-09-1948, 3 fls., dact.

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não eram os únicos a contribuir para a crise da candidatura, tendo os socialistas a sua

quota-parte de responsabilidade nesse facto1146, até por não haver maneira de

ultrapassarem os seus próprios conflitos internos.

VI.2.3.3. A batalha pelo controlo das comissões de apoio

Entretanto, o general tenta impor a sua perspectiva quanto à organização das

comissões de apoio. A 9 de Setembro, entregara ao seu núcleo mais próximo de

apoiantes um esquema com a organização dos serviços da candidatura, em que, volta

a frisar, todos têm de ser seus representantes, com um cunho eminentemente

nacional, estando, consequentemente, desvinculados de todo e qualquer espírito

sectário e/ou partidário. Comissões sectoriais, só com a sua «autorização

expressa»1147. Em especial, as comissões do ilegalizado MUD não podem, em caso

algum, travestir-se em comissões da sua candidatura, embora cidadãos isolados que

tenham pertencido ao MUD possam figurar nestas últimas.

A verdade, porém, é que, tal como no tempo da ARS, é a rede de estruturas

políticas pré-existente que vai assegurar o esqueleto organizativo da campanha

eleitoral. Numa altura em que da velha galáxia de partidos, centros republicanos e

associações cívicas várias, bem como da rede maçónica, ainda muito presentes no

tempo da ARS, muito pouco restava já (ou, restando, estava geralmente neutralizado),

as comissões locais e sectoriais do MUD serão a tessitura que assegurará a propaganda

eleitoral de Norton. E, nelas, sobretudo ao nível mais local, os comunistas têm um

papel incontornável1148. Não é, aliás, um acaso que o braço mais jovem e dinâmico do

MUD, o MUDJ, venha à liça em Outubro, emitindo um comunicado de apoio a Norton

que visa lembrar(-lhe), antes demais, que o MUDJ existe e é legal (e, logo, não há

motivo para demarcar-se do apoio das suas organizações). Em segundo lugar, visa

refrescar a memória do general, recordando-lhe que foi o MUDJ que o pré-lançou 1146

Na avaliação feita por Norton a Domingos Pereira, que o visita a 21 de Setembro, e a quem coloca a par de tudo. ANM, Norton de Matos, P. Memórias e diário 1948-53, fls. soltas, mns., entrada de 22-09-1948. A U.S., na carta citada na nota anterior, refere-se à decisão dos seus dois delegados, presentes na reunião de 19 de Agosto, em que teriam comunicado a intenção de sair da comissão de apoio, tendo depois decidido voltar atrás nessa intenção. 1147

ANM, P. Correspondência 1947 e 1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), «Organização dos Serviços da Candidatura (lembrança e observações) Um original e 4 cópias N.M.», Lisboa, 09-09-1948, 2 fls., mns., do punho de Norton de Matos. 1148

José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política, Volume 2, pp. 816-817 e passim.

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como candidato, garantindo-lhe o apoio de milhares de jovens de todo o país por

ocasião do seu 80º aniversário. Em terceiro lugar, ele é o candidato de toda a

oposição, sem excepção, razão pela qual, finalmente, a juventude lhe dá o seu apoio

que, porém, não é incondicional, pois dever-se-á

«traduzir na acção ao lado de todos os democratas portugueses, principalmente no sentido de se realizarem VERDADEIRAS eleições livres (...) para que se realizem num verdadeiro espírito de liberdade, sem a qual deixarão de ser eleições para se tornarem numa farsa eleitoral QUE NUNCA PODERÁ TER O APOIO DA JUVENTUDE.»1149

É a «melindrosa matéria» sobre a qual «vamos ter muito que discutir» «quando

chegar a altura própria»1150, antecipa Mário de Azevedo Gomes depois uma primeira

reunião em Beja, onde fora, com Tito de Morais e Jacinto Simões, a 17 de Outubro dar

posse, em nome do candidato, à comissão da candidatura nesse distrito. Perante a

divergência de opiniões, aí manifesta, sobre se os atropelos à legalidade do

recenseamento seriam motivo para desistir de levar a candidatura até ao fim, Azevedo

Gomes insiste que a discussão é prematura. Na semana anterior, concordara com

Norton em que não convinha insistir na hipótese de uma desistência, pois havia que

«aproveitar até aos últimos momentos a efeverescencia da propaganda pro-

candidatura» para fazer «agitação política» e mobilizar as «energias populares

oposicionistas»1151.

Se, por enquanto, ainda não chegou a altura própria de enfrentar a questão da

desistência, até porque pouca propaganda fora ainda possível fazer, visto Salazar não

ter autorizado a abertura oficial da campanha eleitoral, Norton trata de «meter na

ordem os comunistas»1152 na primeira reunião da comissão central que faz após o

Lisboa no início de Novembro, após uma estadia de mês e meio em Ponte de Lima.

1149

UNIDADE DA JUVENTUDE PROGRESSIVA E DEMOCRÁTICA // EM DEFESA DO MUD JUVENIL // EM APOIO DA CANDIDATURA DO GENERAL NORTON DE MATOS, Outubro 1948, 1 fl., dact., polic., in Alexandre dos Reis, Amílcar Braga, Daniel Melo, As Eleições Presidenciais de 1949. Estudo Monográfico do Primeiro Processo Eleitoral com Oposição sob o Estado Novo português, s.p. 1150

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 18-10-1948, mns. 1151

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Mário de Azevedo Gomes a Norton de Matos, 12-10-1948, mns. 1152

«como é fácil de ver, era meter na ordem os comunistas». ANM, P. Opositor… 2, Rascunho de carta de Norton de Matos a Correia de Freitas, S.d., 5 fls., mns., do punho do autor. É anterior a 19 de Junho de 1951, data em que o destinatário da missiva respondeu. O discurso está publicado in Norton de

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A Fernando Lopes, da comissão distrital de Coimbra, a quem há duas semanas

dera pessoalmente posse na sua viagem de regresso a Lisboa, explicitará a razão pela

qual não quer que se cubra o país com uma profusão de comissões eleitorais que não

sejam controladas pelos seus mandatários. Não sanciona a sua criação pois a ideia é

patrocinada pelo PCP que, não por acaso, advoga no seu jornal clandestino a

constituição de milhares delas, por todo o país, ao nível da freguesia, do bairro, da rua.

Os comunistas tudo perturbam, tudo atrapalham, estando «sendo de grande atraso à

marcha»1153 da sua candidatura. Após a crise do Verão, em que a ruptura estivera

iminente, Norton, basicamente, tolera-os: «não os quero pôr de parte, mas tenho de

os reduzir ao mínimo que representam». Para isso recomenda que, em cada distrito,

os representantes da sua candidatura estejam atentos às «manobras comunistas».

São manobras que chegam a todo o lado, inclusive às colónias africanas, e,

também aí, Norton trata de colocar os pontos nos ‘is’:

«Chegando ao meu conhecimento que em Angola se fez constar que a minha candidatura à Presidência da República se apresentava como delegada ou dimanada do MUD (…) o que é inteiramente inverosímil e, até, inaceitável (visto que aquêle “Movimento” foi interditado pelo Govêrno) cumpre-me repetir, esclarecendo, que tal não tem o menor fundamento. A minha candidatura, embora de oposição do Govêrno, (…) é uma candidatura que não está prêsa a qualquer corrente, movimento, ou grupo político, único ou especial, mas, pelo contrário, livre de qualquer subordinação expressa, procurando, o mais possível, representar todas as correntes de oposição, de espírito liberal e democrático, dentro da índole e tradições nacionais. Assim, o candidato, desde a primeira hora, considera a sua candidatura como nacional, para todos os portugueses liberais e democratas, que como tal a quisessem considerar como o próprio candidato a considera e sente que ela deve ser. (…)

Nesta conformidade, o candidato faz saber aos seus amigos do Ultramar Português que é necessário, e urgente, corrigir esse êrro fundamental, inteiramente fora e contradictório do programa e intenções do Candidato e do verdadeiro espírito da candidatura. (…)

A unidade de acção é, sem discrepância, fundamental e, por isso, nela todos temos de colaborar, o que, a todos, assim, me cumpre solicitar.»1154

Matos, Mais Quatro Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-IX-48 a 9-I-49), pp. 103-110. 1153

ANM, P. Correspondência 1948-1950, Cópia de carta de Norton de Matos ao Doutor Fernando Lopes - Coimbra, Lisboa, 17-11-1948. Até referência em contrário, as citações são desta carta. 1154

ANM, P. Correspondência 1948-1950, Cópia de «Circular às colónias portuguesas», Lisboa, 15-11-1948, mns.

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As circulares sucedem-se mas a realidade no terreno parece escapar às suas

orientações, tanto que, em Dezembro, tem de voltar a lembrar que as comissões

profissionais nos distritos, concelhos, bairros e freguesias não têm o seu acordo.

Lembra que o processo de constituição das comissões eleitorais está concluído e à sua

distribuição pelo país presidiu apenas a divisão administrativa existente do território. É

preciso, acrescenta, que o bloco eleitoral esteja mais unido que nunca em torno do

objectivo único de fazer desaparecer de Portugal o Estado Novo e substituí-lo por um

regime democrático e liberal:

«No bloco de eleitores que saúdo como ligados e unidos a mim para o resultado que desejamos, como meus correligionários e amigos nesta tarefa comum e, acima de tudo, como portugueses, eu não posso ver indivíduos ou grupos separados em partidos, por ideologias, por crenças ou por profissões.

Escolhendo-me para Candidato à Presidência da República, todos me indicavam como um candidato inteiramente nacional que ao acto eleitoral e depois dele, como disse no meu Manifesto à Nação, conservaria essa alta característica.

Tomei esse compromisso e todos sabem que nunca faltei a promessas que faço.»

1155

A necessidade de repetir as mesmas orientações é indício seguro de que a

realidade teima em fugir aos seus desejos. Não obstante, Norton continua a evitar, a

todo o custo, a ruptura com os comunistas. Entre os apoiantes do seu partido, pelo

contrário, sobem de tom as pressões para que se descarte daquele incómodo apoio:

«De resto, se o General tem a preocupação de tornar a sua posição absolutamente clara, nada justifica que deixe na sombra o ponto mais discutido da actualidade internacional. A oposição, mesmo que triunfe, não pode pretender viver em vaso fechado e se não triunfar já, deve ficar com a força moral necessária para triunfar mais tarde.

Vale mais perder já os comunistas, que nos tiram mais votos do que trazem, para ganhar já a confiança de forças muito mais poderosas que, a partir de Janeiro próximo, podem ajudar-nos a reconquistar a liberdade para todos os portugueses. Isto é um ponto muito importante que está a prejudicar o General. (…) É uma questão de separar-se duma companhia que lhe desgosta tanto como a nós por um lado e por outro de reconhecer que os comunistas não o elegerão, mas, se trabalham para a sua eleição, é com algum fim, o qual não pode limitar-se a ser a ver o fim à ditadura, já que o seu objectivo é a implantação duma Ditadura. Isto é tão evidente

1155

ANM, P. Correspondência 1948-1950, Candidatura à Presidência da República - Comissão Central, Norton de Matos, CIRCULAR Nº 10 INSTRUÇÕES COMPLEMENTARES DO CANDIDATO SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DA CANDIDATURA, de 16 de Agosto de 1948, Lisboa, 10-12-1948 (Não confundir com uma outra circular nº 10, também da comissão central da candidatura, reproduzida in Alexandre dos Reis, Amílcar Braga, Daniel Melo, op. cit., s.p., com um conteúdo completamente diferente].

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que mal se compreende a atitude do General, excepto pela sua subordinação ao conselho de Amigos que o rodeiam e que podem muito bem ser Amigos do Diabo ou do Zé que a sua mais moderna incarnação.»1156

Norton não seguirá o conselho e manterá formalmente a unidade até ao fim,

apesar de, já em Janeiro, vir a ter um choque de realidade quando o PCP, numa

demonstração de poder, forçar o jovem secretário da comissão central e seu

colaborador privilegiado a revelar a sua filiação comunista ao atónito general. O resto

da história é já relativamente bem conhecido. À revelação de que Soares é comunista

e é a título de representante do PC que se encontra nesse lugar-chave da candidatura,

Norton reagirá com o corte de relações pessoais e políticas e o afastamento de Soares

das funções que até aí desempenhava na comissão, embora a expulsão seja evitada, in

extremis, devido à intervenção pessoal de Mário de Azevedo Gomes1157.

Só na recta final da campanha se consumará a ruptura, após os comunistas –

com as comissões sectoriais e profissionais que, apesar de todos os seus esforços em

contrário, continuam a multiplicar-se – terem sido determinantes na imposição da

desistência da candidatura à boca das urnas. Na assembleia magna de delegados da

sua candidatura que, a cinco dias das eleições, tem o debate crucial sobre se sempre se

iria a votos ou não, «o General foi vencido: é o termo»1158.

A batalha pelo controlo da miríade de comissões eleitorais parecia ter sido

perdida pelo candidato a favor da organização e da agenda comunista. Aliás, assim que

passam as presidenciais, o PCP pressiona para a manutenção da rede das comissões de

candidatura, transmutadas em comissões do Movimento Nacional Democrático

(MND), que o partido pretende impor como a nova frente unitária da oposição. Sem

sucesso, pois o tempo das frentes unitárias passara. Contra as indicações expressas de

Norton – que desta vez são seguidas pelo menos ao nível distrital das suas antigas

comissões, que se extinguem –, o MND será o novo nome das comissões da

1156

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Carta de Francisco Rendeiro a Domingos Pereira, 10-12-1948, mns. 1157

Maria João Avillez, Soares, Ditadura e Revolução, S.l., Círculo de Leitores, 1996, pp. 80-84. 1158

ANTT, PIDE-DGS, Francisco Ramos da Costa, SC, CI(2), Processo 2521, [fl. 957-962] S.a., ASSEMBLEIA DE DELEGADOS (7 de Fevereiro de 1949), dact., fl. 6. No dia seguinte, apesar da maioria dos presentes se ter pronunciado pela abstenção, a decisão de Norton não estava ainda tomada, tanto que ainda envia telegrama urgente a presidentes das comissões distritais pedindo para informar «detalhadamente estado esse distrito questão delegados eleitorais». ANM, Norton de Matos, [Diário], caderno, 1949, 16 fls., mns.

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candidatura de Norton, tal como estas tinham sido, até certo ponto, o novo nome das

comissões do MUD.

Um caso houve, até, em que a comissão regressa à designação primitiva, como

acontece com o comité de Nova Lisboa da candidatura que, logo no dia a seguir às

eleições anuncia, candidamente, que, doravante, passa a assumir as funções de

Comissão Central de Angola do MUD. Confrontando-se com o fracasso das suas

orientações, é um conformado Norton que comenta: «Estes de Nova Lisboa são tão

autênticos que nem o nome lhe mudaram. Nada perceberam do que se tratava.»1159. A

realidade nas colónias era, porém, bastante particular, estando em causa outras

agendas que não apenas uma disputa pelo controlo interno das estruturas da oposição

ou ‘apenas’ o derrube do Estado Novo. Em Angola, tratava-se de rejeitar a

«menoridade política que lhe pretendem impor»1160 e por isso, na linha da frente no

apoio a Norton encontramos, esquecido de polémicas antigas com o ex-governador-

geral de Angola, o advogado António Simões Raposo1161.

A realidade das comissões eleitorais era, assim, muito variada. Por muito que

Norton, retrospectivamente, se tenha sentido cercado pelos comunistas, a verdade é

que estes mesmos foram fortemente abalados na sua disciplina e organização internas

pela mobilização da campanha. A liberdade saiu para o espaço público com um ímpeto

tão arrebatador que os comunistas se viram forçados, nas palavras de um seu alto

quadro, Joaquim Campino,

«a andar a correr de um lado para outro, procurando, por um lado, segurar a organização que, fugidia, se nos escapava por entre os dedos, por outro agarrar pelos cabelos o movimento da candidatura»1162

VI.2.4. Liberdade: da embriaguez à ressaca

No final da campanha presidencial, sobretudo depois da dramática reunião de

7 de Fevereiro, Norton de Matos não tem dúvidas sobre quem o venceu: os

1159

ANM, P. Correspondência 1946-1948, Mç. 1947 e 1948 (Cx 93), Comissão Central de Angola do MUD, Circular , dact., polic., 14-02-1949, 4 fls., comentário mns., do punho de Norton, aposto à circular. 1160

Idem. 1161

Que acompanhámos no capítulo 2 desta tese. 1162

ANTT, PIDE-DGS, Joaquim A. Campino, P52-GT, Afonso, Algumas considerações sobre a campanha eleitoral do general Norton de Matos, Março 1949, dact., fl. 16.

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comunistas. O que, sendo verdade, está longe de ser toda a verdade. É certo que as

intervenções dos elementos «contra a ida enviados pelos comunistas»1163, em especial

os das comissões de natureza não geográfica, foram particularmente perturbadoras

mas a maioria dos delegados distritais defendera idêntica posição1164.

Em segundo lugar, o próprio candidato, no texto do discurso que preparou para

a abertura dessa reunião, admitia, num parágrafo entretanto riscado1165, que a maior

parte dos últimos acontecimentos lhe eram desfavoráveis, mesmo se a recente

concentração de tropas e as ameaças de o exército intervir em caso de um fracasso

eleitoral do candidato do regime até poderem vir a ser, paradoxalmente, capitalizadas

a favor da causa oposicionista, ao exporem publicamente os métodos de Salazar. Era,

na verdade, grande a sua vontade de não defraudar «a ânsia» de «libertação» do povo

português que de tal forma crescera que «o seu entusiasmo chegou ao paroxismo». As

sessões de propaganda por todo país e, muito em especial, o imponente comício do

Porto e a recepção entusiástica que tivera na viagem que depois fizera ao Alentejo e

Algarve, constituíam, argumenta, a «prova evidente e incontestavel que o Povo

Portugues deseja ardentemente a mudança do actual regime político». Desafiando a

proibição de manifestações ou ajuntamentos em espaços públicos, as estradas do

Alentejo até ao Algarve tinham-se enchido de pessoas para ver passar e saudar o

homem que se tornara símbolo da liberdade, mesmo sabendo que a diligente rede de

informadores das várias polícias e outras organizações velavam para que, quem de tal

modo desafiava o medo, não ficasse impune1166. Mas é sobretudo «o teatral sucesso»

1163

No seu diário, resume a reunião do dia anterior em duas frases: «Atmosfera contra a ida. // Elementos perturbadores contra a ida enviados pelos comunistas muito me indignaram e irritaram». ANM, Norton de Matos, [Diário], caderno, 1949, 16 fls., mns. 1164

ANTT, PIDE-DGS, Francisco Ramos da Costa, SC, CI(2), Processo 2521, [fl. 957-962], S.a., ASSEMBLEIA DE DELEGADOS (7 de Fevereiro de 1949), dact. 1165

ANM, P. Opositor 2B, REUNIÃO DA COMISSÃO CENTRAL DOS SERVIÇOS DA CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA // Sessão de 7 de Fevereiro de 1949 sob a Presidência do General Norton de Mattos // ORDEM DO DIA// Palavras do Presidente, 2 pp., dact., com emenda mns., em papel timbrado da «Candidatura à Presidência da República (Candidato: General Norton de Matos)». Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste documento. 1166

Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 153. O caso dos professores primários de Alcácer do Sal que fecham a escola e vão com os alunos esperar Norton passar é diligentemente relatado pela Legião Portuguesa ao ministro do Interior. ANTT/LP/Processo AG nº 7989, Pasta 2, NT 1491, Inf. da LP-Comando Geral, s/nº, 12-03-1949; e Idem, cópia de of. do comandante geral da LP ao chefe de gabinete do Ministro do Interior, Lisboa, 06-05-1949.

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do comício do Porto que deixa Norton «embriagado»1167, a ponto de se sentir

«tentado a cair na ratoeira»1168 de ir a votos. Quem o afirma não é, aliás, um

comunista, mas antes um republicano da velha guarda, há muito exilado, Alberto de

Moura Pinto. Moura Pinto reclama ter tido alguma influência, com os «angustiosos

apelos» que fez à sua «gente» em Portugal, para «fazer baixar» o general «das regiões

dos sonhos». Não seria o único não comunista a fazê-lo, mesmo se não falta quem lhe

diga o que ele quer ouvir, incentivando-o a ir até ao fim.

Sonho ou não, o desejo de Norton não tinha condições de ser concretizado nas

eleições de 13 de Fevereiro de 1949, embora o general tenha protelado o anúncio

público da decisão de desistir até ao último momento, já na véspera das eleições1169. A

ausência de condições não se devia apenas à máquina de apoio à sua candidatura, já

na expectativa de que não se iria até ao fim, não ter assegurado devidamente a

impressão e distribuição pelos eleitores dos boletins de voto que, de acordo com a lei

eleitoral, cabia a cada candidato entregar aos eleitores. A verdade é que seria muito

difícil fazê-lo, atendendo à eliminação sistemática dos oposicionistas, publicamente

conhecidos como tais, da lista dos eleitores recenseados1170, para já não falar da

impossibilidade de a oposição saber exactamente quem é considerado eleitor, por a

1167

O sucesso do Porto foi tão extraordinário que até entre os exilados políticos no Rio de Janeiro se comenta, com preocupação, que existe o risco de Norton se deixar levar pelo entusiasmo, esquecendo-se que as eleições são fraudulentas e é fundamental fazer uma «retirada estratégica». Carta de Moura Pinto a Jaime de Morais, 28-01-1949, citada por Heloísa Paulo, «A oposição exilada e as eleições de Norton de Matos» in Heloísa Paulo, Helena Pinto Janeiro (coord.), Norton de Matos e as Eleições Presidenciais de 1949: 60 Anos Depois, p. 93. 1168

Nova carta de Moura Pinto a Jaime de Morais, 27-01-1949 in ibidem. Até referência em contrário, as citações são deste documento. 1169

A 10, Azevedo Gomes ainda discursa em seu nome no último comício da campanha em Lisboa, na Voz do Operário, apelando para a continuação da luta até ao fim. Como frisa Dawn L. Raby, o facto de circularem várias versões quanto à data em que a desistência foi publicamente anunciada não é inocente (Dawn L. Raby, «The Portuguese Presidential Election of 1949: A Successful Governmental Maneuver?» in Luso-Brazilian Review, Vol. 27, Nº 1, Summer 1990, p. 72). O general só a 12 apresentará a sua desistência oficial, que não é aceite. Suprema humilhação, pois os votos de algum seu apoiante mais distraído, a quem não tenha chegado a notícia da sua desistência, serão contabilizados. Aos portugueses escreverá uma última mensagem, muito emendada pela sua entourage que conseguiu, com esforço, convencê-lo a retirar as partes mais amargas. Norton de Matos, À Nação, Lisboa, Edição dos Serviços Centrais da Candidatura, 1949. 1170

A este propósito é muito elucidativa a leitura dos relatórios das reuniões das comissões da União Nacional, na preparação do acto eleitoral, com referência – explícita ou eufemística – ao expurgo de opositores dos cadernos eleitorais pois, como lembra o presidente da Câmara de Portalegre, ainda é preciso fazê-lo, lamentando que «ao cabo de 20 anos ainda se tenha de recorrer ao expediente de preparar os cadernos eleitorais para se ganhar uma eleição presidencial». Eleições no regime fascista, [Lisboa], Presidência do Conselho de Ministros – CLNRF, 1979, p. 40 e passim.

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consulta dos cadernos eleitorais ser extraordinariamente dificultada. É certo que

nalguns locais mais distantes do controlo metropolitano, como a cidade de Benguela,

os apoiantes de Norton não só distribuíram com eficácia os boletins de votos com o

nome do seu candidato como contaram com uma tolerância muito invulgar da parte

das autoridades no que respeita à fiscalização do acto eleitoral e do escrutínio, a ponto

de, nessa cidade, o general ter ganho1171.

São muitos os testemunhos, do lado da oposição, que poderíamos citar a

propósito desta questão das condições mínimas para o acto eleitoral poder ser livre

mas talvez mais eloquente seja o testemunho de um homem do regime que será alvo

de um assassínio de carácter por não ter compreendido as leis não escritas que regiam

as eleições sob o Estado Novo. António Villa-Lobos, notário de Montemor-o-Novo,

equivocado quanto ao seu papel enquanto delegado do governador civil de Évora na

comissão de recenseamento eleitoral do seu concelho, confronta-se, com genuíno

espanto, com os entorses à legalidade que dele eram esperados. De nada lhe servem

os protestos de se ter limitado a cumprir escrupulosamente a lei e a ser isento, como,

aliás, era sua especial obrigação por ser notário. De nada adianta, tão-pouco, chamar à

colação a sua qualidade de conservador, católico praticante e devotado nacionalista. A

verdade é que não percebera um não-dito essencial a todo o bom e fiel nacionalista:

que, lá por não lhe terem sido dadas instruções explícitas para tornear a lei, excluindo

dos cadernos eleitorais os opositores, era exactamente isso que dele se esperava. Não

o tendo feito, é admoestado por o recenseamento ter «legalidade a mais»1172, sendo,

de seguida, alvo de calúnias que o atingem na sua honorabilidade.

Villa-Lobos franqueara, de certa forma, a linha invisível de segurança1173 que

todos em Portugal sabiam não poder ultrapassar sem consequências. Mais sofrerá

1171

Apesar de ter chegado na véspera um telegrama anunciando a desistência e da maior parte não ter sequer ido voltar, os que, mesmo assim, votaram foram suficientes para derrotar Carmona, num escrutínio feito sem ilegalidades, cumprindo-se, assim, a garantia pessoal dada pelo governador provincial de Benguela, Mário Zanatti, à comissão de candidatura de Norton, a que esta dá publicidade. O governador seria demitido por este motivo. António A. Durães, Angola e o General Norton de Matos. Subsídios para a História e para uma Biografia, Melgaço, Edição do Autor, 1976, pp. 49-58. 1172

AMAI, G.M., Cx 17, Cópia de of. de António Villa-Lobos, Notário de Montemor-o-Novo, ao Director-geral dos Serviços de Registo e Notariado, Montemor-o-Novo, 04-05-1949. 1173

Retomamos aqui o conceito de violência, na sua dupla vertente preventiva e repressiva, caracterizado por Fernando Rosas, Salazar e o poder: a arte de saber durar, atrás citado.

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quem de alguma forma exerceu o direito à liberdade de expressão e de reunião em

apoio à candidatura de Norton. Apesar da forma condicionada em que o governo a

pretendeu manter, a liberdade rapidamente saiu das baias impostas, tendo um efeito

electrizante1174. Deitando o medo para trás das costas, muitos portugueses

ultrapassam claramente aquela linha, tendo de enfrentar a punição do regime que

pode ir até à perda de liberdade. Mais insidiosamente, pode passar pela perda do

emprego, no caso dos funcionários públicos ou dos que tinham negócios com o Estado.

Pode passar, ainda, pela negação da possibilidade de continuar a estudar, mesmo se

ainda se é menor e apenas se frequenta o liceu, como aconteceu às alunas do liceu de

Faro cujo caso atrás abordámos.

Aos apoiantes que, por via da participação na campanha, se viram em apuros

com a justiça o general não negará solidariedade, assumindo a responsabilidade de

tudo o que se passou no âmbito da sua candidatura, muito embora não estenda esse

apoio àqueles que sabe serem comunistas1175. A repressão atinge de modo especial

estes últimos que, levados pelo entusiasmo da campanha, se expuseram de uma forma

que muito facilitou o trabalho da polícia. A verdadeira hecatombe sofrida pelo PCP ao

longo do ano de 1949, com a prisão dos seus mais altos dirigentes e a apreensão dos

seus arquivos clandestinos, vai de par com a agora franca ostracização que o partido

sofrerá por parte dos restantes sectores da oposição que, aliás, praticamente sai de

cena, entrando num período de refluxo acentuado. Era não apenas a ruptura definitiva

da unidade da oposição como a liquidação, por muitos anos, da esperança de se

conseguir derrubar o Estado Novo. O refluxo da oposição ia a par com a recomposição

1174

Na apreciação de múltiplos observadores, entre os quais uma jornalista norte-americana que viajou para Portugal: «The conditions of "sufficient liberty", by all accounts, had an electrifying effect». Olive Holmes, «Political Stages Elections as bid to West» in Foreign Police Bulletin: An analysis of current international events, Vol. XXVIII, Nº 16, 28-01-1949. 1175

A apoiantes seus, de Braga, que são alvo de uma acusação crime contra a segurança interior do Estado e abuso de liberdade de imprensa devido à publicação, pela comissão de candidatura distrital de Braga, do boletim interno Eleições Livres (nº único, 08-01-1949), sem o visto da censura, afirma: «declararei mais publicamente que se há alguém que mereça censura, reprovação e castigo em tudo o que se passou ao meu lado, na minha Candidatura, já lá vai mais de um ano, esse alguém só posso ser eu». Carta de Norton de Matos, ao major Miguel Ferreira e Dr. José Graça, Ponte do Lima, 02-04-1950, transcrita por Armando Malheiro da Silva, «Para a História da Oposição…», Separata de Bracara Augusta, p. 405. Apesar de serem vários os exemplos de casos do género em que Norton não falhou com a sua solidariedade, já o mesmo não aconteceu com comunistas que foram presos após a campanha, como Mário Soares que, apesar de tudo, teve a sorte de a PIDE nunca ter conseguido provar a sua filiação no PCP. Mário Soares, Portugal Amordaçado…, p. 165.

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e fortalecimento do regime, tanto no plano interno como no plano externo,

consumando-se a sua integração plena na esfera de hegemonia norte-americana1176,

apesar de Salazar esticar a corda até ao último momento antes de aceitar quer a ajuda

financeira do Plano Marshall quer a entrada na NATO, sem ter conseguido impor,

como gostaria, a entrada da Espanha franquista nesta organização de defesa do

mundo ocidental.

É na prisão que o jovem comunista português que secretariara Norton na

campanha presidencial recebe a notícia de que Portugal tinha sido aceite como

membro fundador da NATO. Preso pela PIDE no dia seguinte às eleições, o jornal em

que sua mãe estrategicamente embrulhara a panela de arroz do almoço que lhe leva à

prisão, traz a notícia da consternação1177. A consternação não era tanto pelo facto de o

país entrar numa organização tutelada pelo arqui-inimigo de qualquer bom comunista

mas, antes, sobretudo, por essa entrada constituir o golpe de misericórdia na

esperança de que os aliados que venceram o nazi-fascismo ajudassem os portugueses

a derrubar Salazar ou, no mínimo, se abstivessem de o apoiar. Se o fim de festa da

campanha estava já a ser complicado para a oposição anti-salazarista, esta tinha agora

que encaixar mais uma traição dos britânicos e dos norte-americanos, que tantas

esperanças tinham alimentado junto dos adversários de Salazar nos anos finais da II

Guerra Mundial, quando a URSS era ainda uma aliada do mundo anglo-saxónico. Será,

definitivamente, o fim de um ciclo. A realidade do novo mundo bipolar e do lugar nele

reservado à República Portuguesa, impõe-se a todos.

VI.3. Das frentes unitárias ao… Partido Republicano Unido

1176

Sobre a «integração reticente» do Portugal de Salazar nesta esfera de influência, veja-se Fernando Rosas, História de Portugal. O Estado Novo (1926-1974), José Matoso (dir.), Vol. VII, S.l., Círculo de leitores, 1994, p. 399 e segs. Foi uma integração que contou com a colaboração empenhada da tradicional aliada de Portugal, a Grã-Bretanha. Para uma síntese do papel do governo trabalhista britânico nesse processo, cf. Pedro Aires Oliveira, «Sob o patrocínio de Sua Majestade: a adaptação de Portugal ao pós-II Guerra Mundial» in Os despojos da aliança: a Grã-Bretanha e a questão colonial portuguesa, 1945-1975, Lisboa, Tinta-da-China, 2007, pp. 46-55. Sobre as negociações luso-americanas a propósito da entrada de Portugal na Nato, cf. António Telo, Portugal e a NATO: o reencontro da tradição atlântica, Lisboa, Cosmos, 1996, pp. 59-84. 1177

O expediente acaba por não ter o efeito esperado pois Soares não percebe o motivo pelo qual a panela vem embrulhada naquele papel de jornal, deitando-o fora sem o ler. O episódio foi contado pelo próprio na conferência que proferiu em Coimbra no colóquio que se realizou no Arquivo Histórico da Universidade de Coimbra, em 2009, a propósito do 60º aniversário das eleições presidenciais de 1949.

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Após ter patrocinado, nos anos 30, uma frente eleitoral com o campo partidário

republicano e socialista e ter estado à frente da instituição maçónica que abrigava,

transversalmente, membros de quase toda a elite oposicionista portuguesa, Norton

prometera morrer para a política. A ARS fracassara às mãos da revolução e da

repressão e a maçonaria concitara o ódio de integralistas, nacional-sindicalistas e

salazaristas até ser ilegalizada e forçada à clandestinidade. O general regressará à

política na década seguinte dando o seu nome e o seu prestígio de figura de referência

da República às frentes unitárias que em Portugal nascem no âmbito da aliança

mundial antifascista. Apesar de, no contexto do fim da guerra, a real hegemonia

política dos comunistas na oposição portuguesa ser um dado incontornável, não deixa

de ser assinalável o modo como aceita dar a cara por movimentos de unidade que

sabia terem no PCP o seu principal motor. Quando o contexto internacional se altera,

na sequência do rompimento crispado da aliança entre as potências anglo-saxónicas e

a URSS, o general português conseguirá a proeza de, na fase mais dura da Guerra Fria,

congregar à sua volta uma fronda transversal de correntes políticas, resistindo até ao

fim ao avolumar de tensões e desconfianças, evitando, a todo o custo, a ruptura com

os comunistas.

Para um homem tão acusado de ter tiques autoritários, não deixa de ser

notável o jogo de cintura político com que conseguiu negociar as fortíssimas tensões

de sinal contrário que minaram a sua candidatura a todos os níveis, perante um

adversário que não jogava o jogo democrático e, finalmente, perante um contexto

internacional extraordinariamente adverso. É certo que a Declaração Universal dos

Direitos Humanos é assinada em Paris precisamente neste período, a 10 de Dezembro

de 1948, tendo, aparentemente, todos os ingredientes para espaldar a campanha

presidencial que, em Portugal, pugnava pelos mesmos princípios. Pura ilusão, pois o

chamado mundo livre, a começar pelo velho aliado britânico, desvaloriza a candidatura

oposicionista portuguesa, do mesmo passo que justifica as prisões políticas que o

Estado Novo faz durante a campanha eleitoral como uma contingência necessária.

Afinal, Salazar não iria deitar a perder tudo o que tinha conquistado para os

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portugueses com detalhes próprios de países mais civilizados, como a liberdade e a

democracia1178.

Apesar de, em Janeiro de 1949, Norton ter garantido a uma jornalista norte-

americana que, se fosse eleito, nunca consentiria que os comunistas tivessem

qualquer influência em Portugal, a verdade é que se recusou sempre a fazer qualquer

declaração categórica a este respeito à imprensa portuguesa durante toda a

campanha1179. Aos 81 anos, é o mesmo Norton de sempre, de vincada tenacidade, a

raiar a obstinação, que, contra todas as probabilidades em contrário, insiste em

trabalhar pela unidade, persistindo em cultivá-la e salvá-la, mesmo que a corda esteja

esticada para lá do tolerável, porque o interesse do país assim o exige. E porque o

grande conceito que faz de si próprio leva-o a não ter dúvidas de haver uma perfeita

coincidência entre o seu próprio interesse e o interesse público. Nada, nem mesmo a

cortina-de-ferro, podia impedir o derrube dos pigmeus que há mais de vinte anos

governavam Portugal.

Na ressaca da esperança de tal vir a acontecer a curto ou a médio prazo,

Norton continuará a estar a par das movimentações das várias correntes oposicionistas

mas centrará os seus esforços a tentar reanimar o velho campo republicano. É aos

republicanos de Portugal que, em Outubro de 1949, dirige uma exortação, desafiando-

1178

O embaixador britânico em Lisboa, que está nessa altura empenhado em convencer um relutante Salazar a integrar o clube fundador da NATO, não vê que Norton possa ser uma alternativa credível, em especial quando este último, em declarações a um jornalista brasileiro, não só insiste não ter medo de trabalhar com os comunistas como parece demarcar-se de qualquer aliança militar, nomeadamente do Pacto do Atlântico Norte: «It is difficult, however, to regard the opposition candidate as anything more than a venerable figurehead and the interview, however much it have been distorted, reinforces the general conclusion that the old man is completely out of touch with reality». NA-UK/FO/371/1015, Dispatch Nº 274, confidencial, de Nigel Ronald a Ernest Bevin, 31-12-1948. É difícil, no entanto, desligar esta desvalorização do candidato oposicionista da avaliação encomiástica que Sir Roland faz de Salazar e do seu regime, organizador, além do mais, de eleições que ele, embaixador, não está convencido sejam fraudulentas. Veja-se NA-UK/FO/494/3, Dispatch nº 33, confidencial, Nigel Roland para Bevin, 04-02-1949; e Idem, Dispatch nº 44, confidencial, de 18-02-1949. No Foreign Office não há, porém, dúvidas da fraude, embora lhe dêem outra designação: «eleições controladas». ‘Controlar’ as eleições, tal como ter presos políticos é, tratando-se de um povo como o português, uma necessidade, como este comentário à notícia da prisão de alguns apoiantes de Norton de Matos bem ilustra: «It is only to be expected that Dr. Salazar will refuse to permit his twenty years hard effort to be overthrown by those who have shown no sign of being able to do better. The root of the matter is that the Portuguese electorate are still unable to assimilate a strong dose of democracy and that the Estado Novo has done little to further their political education. So long as this is this case elections cannot be either controlled or chaotic». NA-UK/FO/371/1015, comentário de 12-01-1949. 1179

Olive Holmes, «Political Stages Elections as bid to West» in Foreign Police Bulletin.

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os a que se reorganizem «com toda a amplitude que a palavra ”organização”

implica»1180. Curiosamente, sai do silêncio para se pronunciar sobre a justeza de a

oposição se abster nas eleições de deputados para a Assembleia Nacional. As eleições

«não seriam nem livres, nem inteiramente fiscalizadas» e, nelas, «o número de

votantes será o que se quiser» (leia-se: o que as autoridades quiserem). Nada que não

soubesse já ser a realidade aquando das presidenciais mas, legalista como é seu

timbre, usa como argumento, para agora sancionar a abstenção, o facto de a lei

eleitoral de 3 de Julho de 1913 ter sido, entretanto, formalmente revogada. Não fecha,

porém, a porta a algum diálogo com os deputados que acabam de tomar posse, a

quem invectiva a que, lembrando-se que são portugueses, oiçam a opinião pública

antes de tomarem as suas resoluções.

Quando, dois anos depois, Carmona morre, Norton seguirá de perto todas as

movimentações no seio da oposição para as novas eleições presidenciais. A ruptura

com os comunistas, que ainda não chegara a assumir publicamente, e a vontade do

PCP em manter, contra toda a evidência, a ficção da unidade antifascista, leva uma

comunista – muito provavelmente Virgínia de Moura – a deslocar-se a sua casa de

Ponte de Lima, tentando convencê-lo a de novo candidatar-se a Presidente. «A esta

gente nunca digo que sei que são comunistas e ponho-me sempre em atitude de os

considerar bons portugueses e republicanos», comenta a Rodrigo de Abreu Lima1181. O

velho general, habitualmente tão cortês com as senhoras, não é particularmente

amável, mandando dizer que vai almoçar e tem convidados. Virgínia terá de regressar

mais tarde, vendo, naturalmente, gorados os seus propósitos. O tempo das frentes

unitárias tinha definitivamente passado e o PCP estará sozinho no apoio a Rui Luís

Gomes, cuja candidatura é barrada pelo Conselho de Estado, enquanto os

republicanos liberais e alguns dissidentes do regime apoiam a candidatura de Quintão

1180

ANM, P. Opositor 2, Norton de Matos, Aos Republicanos de Portugal, Ponte do Lima, 22-10-1949, documento transcrito por Armando Malheiro da Silva, Para a história da Oposição…., pp. 375-378. Até referência em contrário, as citações são deste documento. 1181

«A esta gente nunca digo que sei que são comunistas e ponho-me sempre em atitude de os considerar bons portugueses e republicanos». ANM, P. s/ título, Mç. A minha atitude política após a morte do Marechal Carmona em 18-IV-51, Cópia de carta de Norton de Matos a Rodrigo de Abreu Lima, Ponte do Lima, 07-05-1951.

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Meireles que, tal como Norton, acabará por desistir por não haver condições de

liberdade.

Doravante, é como um «velho de Esparta»1182 que Norton se posiciona. O PRP

elegera em Maio um novo directório, convidando todos os republicanos, todos os

democratas e todos os liberais a «considerar-se dentro do P.R.P. em casa sua»1183.

Norton vai no mesmo sentido embora frisando que a mentalidade política mudou

muito nos últimos 25 anos, razão pela qual acha fundamental que sejam formados dois

partidos, ambos republicanos, um conservador e outro socialista ou trabalhista. A

existência de um partido socialista seria fundamental para ir ao encontro daquela

mudança de mentalidade, preenchendo os anseios de justiça social a que o

comunismo apelava e esvaziando, deste modo, a capacidade de atração deste último.

Após a sua formação e publicação dos manifestos respectivos, os dois partidos deviam

fazer uma declaração conjunta em como

«se conservariam unidos conquanto existisse qualquer regime ditatorial ou totalitário no País, com o fim de o combaterem e de combaterem o comunismo, ordeiramente e dentro dos seus princípios inteiramente contrários a violências de qualquer espécie.»1184

Há quem, porém, experimente novos caminhos, o de organizações cívicas que

possam ser, do outro lado da barricada, o contraponto da União Nacional. Em Agosto,

é-lhe pedido um parecer sobre uma nova instituição política em gestação, a

Organização Cívica Nacional1185 (OCN), que António Sérgio, Carlos Sá Cardoso e

Henrique Galvão pretendem criar. O general é peremptório, declarando-se

1182

ANM, P. s/ título, Mç. A minha atitude política após a morte do Marechal Carmona em 18-IV-51, Norton de Matos, [Carta-Parecer sobre o projecto de estatutos da Organização Cívica Nacional], Ponte do Lima, 31-08-1951, 3 fls., dact., ass. 1183

ANM, P. s/ título, Mç. A minha atitude política…, Carta da comissão executiva do directório do PRP ao general Norton de Matos, S.l., s.d. [1951], dact. Do novo directório fazem parte Daniel Rodrigues, Domingos Pereira, Santos Silva, Tavares Ferreira, José dos Santos, Manuel Duarte, Manuel de Sousa Coutinho, Sant’Iago Prezado e Carlos Olavo. 1184

ANM, P. s/ título, Mç. A minha atitude política…, Norton de Matos, Atitudes políticas, Ponte do Lima, Junho de 1951, fls., dact., ass. 1185

Pelo artº 1º dos Estatutos trata-se de «uma instituição de estudo, investigação, divulgação e acção cívica sem carácter partidário e orientada exclusivamente pelos superiores interesses da Pátria». ANM, P. s/ título, Mç. A minha atitude política…, ESTATUTO DA ORGANIZAÇÃO CÍVICA NACIONAL, [6] fls., dact., com acrescentos mns. do punho de Norton de Matos.

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«absolutamente contrário ao estabelecimento de instituições do género»1186 «que

saltam fora dos quadros das verdadeiras democracias actuais», servindo apenas ou

para suscitar a repressão do regime ou para «levar-nos para uma luta que terá por

consequência fatal uma guerra civil».

O que é preciso, pelo contrário, é aproveitar o que resta dos partidos da

República e dar-lhes nova vida. Basicamente, só resta o PRP e, mesmo assim,

moribundo mas será, defende Norton, «um verdadeiro crime político» se não lhe for

lançada a mão, reorganizando-o como no tempo da propaganda. A ideia é que se

abatam as bandeiras partidárias e todos os portugueses que querem derrubar o

regime se filiem temporariamente neste PRP reorganizado, até se conseguir o derrube

do Estado Novo. Até os monárquicos, que «continuam a ser verdadeiros liberais»,

poderiam fazer parte deste partido-frente, de onde, pelo contrário, seriam excluídos

os comunistas, fascistas ou os adeptos de quaisquer totalitarismos. Seria o «Partido

Republicano Unido» que a situação interna de Portugal, da Europa e do mundo

exigem.

Aos 84 anos, Norton de Matos retoma assim a veia utópica que, ciclicamente,

assoma na sua vida, geralmente em períodos de maior afastamento da vida pública.

Não está, porém, totalmente desfasado do mundo real, ao contrário do que o

embaixador britânico em Lisboa considerara no início de 1949, num apressado juízo

sobre as reticências do general português ao Pacto do Atlântico Norte então em

gestação1187. É certo que, para Norton, a aliança com a Grã-Bretanha é a grande

referência da política externa portuguesa, ao passo que as ideias anti-imperialistas dos

EUA tinham um eco particularmente inquietante para a manutenção das colónias

portuguesas. Não tardará muito, porém, que passe a considerar que há razões para os

portugueses estarem «altamente satisfeitos»1188 com essa alteração tão considerável

da política externa portuguesa que a adesão à NATO implicou.

1186

ANM, Norton de Matos, Carta-parecer sobre o projecto de estatutos da Organização Cívica Nacional, Ponte do Lima, 31-08-1951, 3 fls., dact., ass. Até referência em contrário, as citações são deste documento. 1187

NA-UK/FO/371/1015, Dispatch Nº 274, confidencial, de Nigel Ronald a Ernest Bevin, 31-12-1948. 1188

Estas considerações sobre a NATO são feitas no mesmo parecer sobre a OCN que temos vindo a seguir: ANM, Norton de Matos, Carta-parecer sobre o projecto de estatutos da Organização Cívica

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Além de garantir a independência de Portugal como nação – que ficaria

comprometida se se desse a «escravização do Ocidente pelo bolchevismo russo» –

existe uma outra vantagem inestimável. É que «a democracia e a liberdade que têm

sido apanágio das nações ocidentais» são doravante a bitola com a qual Portugal se

passa a comparar mais de perto, passando «a constituir para as nações que o

compõem a obrigação de todas terem constituições políticas fundamentalmente

idênticas». Inversamente, o facto de terem Portugal entre si, fará nascer nos outros

países do Pacto «o natural desejo de que os princípios fundamentais do regime e

organização política de Portugal sejam idênticos aos que nela existem».

É certo que a outra consequência que vaticina – entrando na NATO, Portugal

está mais perto de entrar na ONU – ir-se-á concretizar em breve, precisamente no ano

da sua morte, 1955. Que se combata pela liberdade em Portugal é o último apelo que

faz numa breve saída dos bastidores da política oposicionista para o palco público, na

campanha eleitoral dos candidatos democratas do círculo de Aveiro para a Assembleia

Nacional de 1953. E, quebrando a contenção pública que até então tinha mantido

relativamente aos comunistas, liga o apelo para que haja liberdade a um apelo para

que se combata o comunismo1189. Liberdade, porém, é algo que tão cedo não chegará

a Portugal.

CONCLUSÃO

Longe de ter sido um político acidental ou, tão-pouco, um republicano

acidental, é com a revolução de 5 de Outubro de 1910 ainda a quente que José Norton

Nacional, Ponte do Lima, 31-08-1951, fl. 3. Até referência em contrário, as citações que se seguem são deste documento. 1189

«Com o comunismo dentro das nossas fronteiras nunca teremos liberdade; sem liberdade nunca conseguiremos destruir o comunismo». Norton de Matos, General Norton de Matos (Conferência), Aveiro, Edição dos Candidatos Democratas por Aveiro, 1953. Na sua visão, o comunismo punha em causa a independência nacional e a missão civilizadora de Portugal no mundo, tema sobre o qual publica dois livros neste mesmo ano: Norton de Matos, A Nação Una: Organização Política e Administrativa dos Territórios do Ultramar Português, Lisboa, Paulino Ferreira, Filhos, Lda., 1953; Africa Nossa: O que Queremos e o que Não Queremos nas Nossas Terras de Africa, Porto, Edições Marânus, 1953.

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de Matos se começa a posicionar, aos 43 anos, para um lugar ao sol na República. Em

privado e em público, através de correspondência cirurgicamente dirigida e de uma

bateria de artigos na imprensa, este oficial do Estado-Maior do Exército Português

seduz a elite política republicana essencialmente com duas armas: as suas credenciais

coloniais e a entrada na polémica do cacau escravo, que lhe permite figurar entre os

sócios fundadores da Associação Portuguesa Anti-Esclavagista. A sua reconhecida

experiência de funcionário e dirigente colonial, no que então restava do antigo império

português no Oriente, é o trunfo de onde parte para voos mais largos. Permite-lhe

juntar à carreira militar uma carreira paralela de docente universitário numa

instituição de grande prestígio, cuja criação simboliza a aposta da República num

caminho de modernidade tecnológica e científica. Ao integrar, no pioneiro ano lectivo

de 1911-1912, o escol de professores do Instituto Superior Técnico, Norton de Matos

tomará parte não apenas na formação daquelas que viriam a ser as primeiras gerações

de engenheiros portugueses formados num Instituto Superior não militar em Portugal,

mas, de certa forma, será, também ele, parte integrante do projecto de modernidade

e progresso que a República pretende encarnar. O livro sobre a Índia Portuguesa, que

estava a escrever, deixa de ser uma prioridade mas não apenas por ter de se dedicar

ao ensino da Topografia e Geodesia no Técnico. É que Norton está em campanha por

um lugar de governador, já não da pequena e distante Índia, mas da maior colónia

portuguesa em África. Não se limita a escrever e a discursar sobre os sítios onde

trabalhou, a Índia e Macau. Pronuncia-se, igualmente, sobre como desenvolver as

colónias de povoamento, com Angola à cabeça, propondo medidas para lidar com os

problemas da mão-de-obra, da colonização e do fomento, entre outros. Às questões

mais técnicas junta a questão propriamente política, desafiando a República a fazer

nas colónias o que a monarquia não tinha querido, ou podido, fazer, e assim salvar as

colónias portuguesas da cobiça de potências estrangeiras. As manifestações de

esperança na República são acompanhadas de manifestações de fé anticlericais, bem

ao gosto do tempo, em especial da facção liderada por Afonso Costa. Está, assim, cada

vez mais próximo dos Democráticos, tanto que se encontra entre os sócios do primeiro

centro republicano fundado em Lisboa por este grupo parlamentar.

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Por seu turno, às elites republicanas de topo – onde, como lembra Norton em

artigo de 1911, não abundam os coloniais – interessa cooptar coloniais, e militares,

com experiência significativa, como é a de Norton. A República – com Bernardino

Machado, Afonso Costa e Correia Barreto com os seus Jovens Turcos – começa por o

acolher como membro do PRP na altura em que o partido fica circunscrito ao núcleo

dos Democráticos. Assim que o Ministério das Colónias fica nas mãos destes últimos

(com Freitas Ribeiro, primeiro, e Cerveira de Albuquerque, depois), Norton é nomeado

perito governamental na questão dos caminhos-de-ferro de Ambaca e o seu nome

proposto ao Senado para governador-geral de Angola. As ideias que tinha expressado,

não apenas na imprensa mas igualmente em vários grupos de peritos de que fizera

parte (União Colonial Portuguesa, Sociedade de Geografia de Lisboa, Comissão

Colonial do PRP), irão ser postas à prova. Para Luanda, só parte após aderir à

maçonaria, mais concretamente, à loja de militares republicanos Pátria e Liberdade, e

de jurar liquidar as práticas remanescentes de escravatura em Angola. Em dois anos,

passara de ilustre desconhecido sem militância partidária firmada, recém-chegado de

uma extensa e honrosa carreira colonial no distante Oriente, a governador-geral da

maior e mais apetecida colónia portuguesa, correligionário de tutti quanti na facção

que tomou conta do PRP, os Democráticos, e membro da maçonaria.

Aclarados os motivos que levaram um liberal como Norton, monárquico de

tradição embora não de filiação, a aderir à República, por um lado, e a sua adesão a ser

desejada pelos republicanos vencedores do 5 de Outubro, por outro, podemos reflectir

sobre o segundo grupo de perguntas a que nos propusemos responder no início desta

tese, centradas em torno do conceito e prática da missão civilizadora da I República tal

como foi protagonizada por Norton nos seus dois mandatos à frente do governo de

Angola, respectivamente, nos anos 10 e nos anos 20 do século XX.

O plano altamente democrático, patrocinado pelo novo governador, em 1913,

de formar a elite dos naturais de Angola de modo a serem eles os professores dos

indígenas seus irmãos, levando a todos as luzes da educação, acaba na gaveta,

frustrando as elevadas expectativas que tinham sido depositadas na República. Apesar

da fundação de algumas escolas e do investimento feito, já no seu alto-comissariado,

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nas missões civilizadoras laicas e nas suas escolas-oficinas, Norton recorre sobretudo à

rede escolar das missões católicas e protestantes, aproveitando o seu potencial do

mesmo passo que as tenta controlar, submetendo-as às regras do Estado. Alguma

retórica anticlerical dos inícios do seu primeiro governo, em linha com o que acontecia

no partido, não impediu Norton de apostar nas missões religiosas como aliadas na

tarefa civilizadora, acabando por contar, aliás, com o beneplácito dos governos de

Lisboa. O pragmatismo colonial da República Portuguesa neste particular não se

afastava muito, aliás, do que se passava no império da outra República europeia coeva,

a França, em cujo anticlericalismo a portuguesa se inspirara. O que não significa que a

actuação de Norton não tenha sido isenta de contradições, neste como noutros

domínios, nem que tensões de sinal contrário não tenham marcado presença no seio

das elites republicanas e inclusive entre os seus mais próximos colaboradores.

O mergulho num amplo corpo documental a várias vozes permitiu-nos

conhecer melhor o outro pilar da missão civilizadora, o trabalho indígena,

complexificando as contradições entre o avanço da malha colonial e a protecção dos

direitos dos colonizados sobre os quais Norton tanto discursou e legislou.

Por um lado, revisitámos, completando-as com outra documentação, fontes

que serviram de base a estudos já clássicos da historiografia anglo-saxónica que

enfatizam o papel desempenhado por Norton, durante o primeiro mandato, na

liquidação da escravatura em Angola, que persistia de forma generalizada em muitos

locais da colónia, não obstante ser ilegal há décadas.

Tendo mandado comissões libertar, de forma sistemática, trabalhadores que,

como pessoalmente constatou, trabalhavam como escravos em sanzalas que mais

pareciam prisões, nem por isso as populações indígenas da colónia passaram a ser tão

livres como qualquer dos europeus que assim lhes garantiam a liberdade. Os dados

que trouxemos à colação confirmam e reforçam indícios de alguns estudos anteriores

que, indo às fontes, não se ficaram pelas declarações nortonianas de quão tenazmente

combateu a exploração do trabalho indígena. Se é inegável quer a determinação de

Norton em pôr cobro aos abusos mais notórios, quer a sua convicção de que Angola só

se desenvolveria plenamente quando os contratos de trabalho deixassem de ser um

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eufemismo para o trabalho forçado e passassem a corresponder a autêntico trabalho

livre, isso não impediu que, paradoxalmente, o trabalho forçado tenha aumentado

durante os seus governos.

Sofreu até um impulso considerável, acompanhando a par e passo o avanço da

malha da ocupação e da administração coloniais. À documentação mais conhecida,

ligada ao universo missionário protestante e à Diamang, juntámos um corpo de fontes

inéditas produzidas por missionários católicos, altos quadros coloniais de empresas

privadas e pela própria administração colonial. São poderosos testemunhos de quão

disseminada é a realidade do trabalho forçado, frequentemente acompanhado de

maus-tratos e abusos de vária ordem, e com remuneração muitas vezes reduzida ao

mero pagamento do imposto devido ao Estado ou, às vezes, nem isso. Se tanto a

gratuitidade como os maus-tratos, apesar de muito difundidos, contrariam

expressamente as orientações do governador, outro tanto não acontece quanto à

obrigatoriedade de trabalhar para o Estado ou para privados como se do Estado se

tratasse.

Na verdade, o que Norton admitira anteriormente como um mal menor e

transitório generaliza-se durante o seu alto-comissariado, para as obras do Estado

como para as grandes empresas com as quais o Estado estabelece entendimentos, que

passam pela facilitação de mão-de-obra em troca de participação no capital e nos

lucros, de modo a encontrar financiamento para o desenvolvimento de Angola. Era,

como a sua experiência nos bastidores da Conferência da Paz em Paris bem tinha

demonstrado, um imperativo patriótico que não podia continuar a ser adiado. Havia,

porém, um impasse por resolver. Se é certo que, sem investimento, o império se

perderia inexoravelmente, não havia no país capitais para o financiar nem, tão-pouco,

consensos políticos alargados para uma política de empréstimos. É este impasse que

Norton, com uma autonomia de que não dispusera no governo anterior, tenta resolver

de forma criativa, agindo desde logo como se tivesse os meios de que, na realidade,

não chegará a dispor. Até que, com a suspensão unilateral pelo BNU das transferências

bancárias entre Angola e a metrópole a estrangular a economia da colónia, recorre, no

Verão de 1923, a uma medida desesperada, ordenando aos seus colaboradores que

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forneçam indiscriminadamente mão-de-obra aos produtores por um período que

estende de seis para nove meses ao ano, com o fito de aumentar rapidamente a

produção e as exportações e assim combater a alta finança. Parafraseando António

José de Almeida, foi sem dúvida uma ousada improvisação, já que notável nem todos

concordarão que tenha sido. Na verdade, o coro de elogios que acompanhara Norton

nos primeiros tempos do seu alto-comissariado transforma-se num violento coro de

críticas quando, deixado só no seu ambicioso empreendimento sem o apoio de Lisboa,

bate com a porta e vai para embaixador em Londres.

Independentemente das contradições e mesmo da megalomania, protagonizou

porventura uma das políticas mais marcantes da I República para o império que, tendo

um timbre próprio, se insere numa linha de continuidade com a realidade que herdou

e com a que se lhe seguirá. Algo inesperadamente para uma personalidade

egocêntrica como a sua, fá-lo a corpo, motivando equipas, estabelecendo alianças que

vai fazendo e refazendo consoante as conjunturas. Vai, deste modo, gerindo tensões

com as várias elites metropolitanas e coloniais, no seio das quais coexistem diferentes

entendimentos quanto ao significado das promessas republicanas, a começar pela

descentralização. O que não significa necessariamente que todas elas – incluindo a

generalidade das elites europeizadas dos filhos de Angola – não deixem de se

considerar investidos de uma mesma missão civilizadora sobre a massa dos habitantes

não ocidentalizados da colónia.

O processo de criação dos Serviços de Negócios Indígenas, primeiro, e de uma

Secretaria com o mesmo nome, depois, é um entre muitos exemplos do que temos

vindo a afirmar, razão pela qual nele nos detivemos. Em primeiro lugar, é um exemplo

das tensões entre as várias elites coloniais e metropolitanas com as quais o novo

governador teve de lidar. O facto de, na crise do decreto fazendário do Verão e

Outono de 1912, Norton não ter ido até ao fim no seu braço-de-ferro com o

centralismo de Lisboa, tendo tido um recuo táctico, fez com que alineasse a sua

primeira escolha para chefe da SNI, o juiz António Simões Raposo. Este passa, assim,

de peça-chave na política indígena de Norton a seu principal inimigo, aproveitando

precisamente a SNI para atacar o governador-geral por este bater com o pé a Lisboa,

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desta feita com sucesso, forçando a criação do novo organismo. Raposo vai, inclusive,

ao ponto de recauchutar acusações antigas de escravatura, fazendo-as soar como

contemporâneas, para tentar comprometer Norton – o que não o impedirá de,

décadas mais tarde, vir a ser um dos principais apoiantes em Angola da candidatura do

antigo governador-geral à Presidência da República.

Em segundo lugar, sendo o novo organismo um marco de grande simbolismo

no caminho que levará à institucionalização do sistema do indigenato, Norton tem

neste processo um papel bem mais determinante do que tem sido apontado pela

literatura crítica que tende a enfatizar, tanto em termos teóricos como de execução, o

contributo do chefe da SNI, José Ferreira Diniz. Apesar da importância deste último, a

verdade é que não só foi uma segunda escolha, como bem antes de assumir o cargo, já

Norton tinha traçado as linhas fundamentais do novo organismo.

Outro tanto acontece relativamente ao pioneirismo na definição do conceito de

indígena, um ano e meio antes de o ministro Almeida Ribeiro o ter inscrito nas bases

da futura Lei orgânica da Administração Civil do Ultramar. Sendo certo que era um

conceito que se inseria numa tradição que vinha da monarquia constitucional,

surgindo em diplomas relativos a questões específicas como o trabalho, a

caracterização geral, a nível legislativo e político, do indígena como o não-cidadão

ocorre sob a República, e Norton de Matos tem nesse processo um papel fundamental,

antecipando com uma portaria em Angola, em Janeiro de 1913, uma tal definição e

pressionando o ministro para que inscreva essa distinção no corpo legislativo em

preparação para o conjunto das colónias. Fá-lo de acordo com o Conselho de Governo

e o apoio da generalidade das elites europeias e europeizadas de Angola, mesmo se

estas últimas cedo irão perceber que a República em geral e Norton em particular não

lhes trará a igualdade, trazendo, pelo contrário, uma carreira segregada na função

pública, onde não terão hipótese de competir com os colonos, ficando afastados dos

lugares de topo.

A descentralização que a República finalmente concede no início dos anos 20

não será para os filhos da terra. Mesmo para a figura do alto-comissário, a

descentralização de poderes é feita a contragosto e minada por contradições

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legislativas, o que não impedirá Norton de interpretar os seus novos poderes da

década de 20 de uma forma invulgarmente independente, a ponto de chegar a ser

acusado de intenções separatistas que, na realidade, não tinha. Afonso Costa, que

permanece voluntariamente em Paris, de onde continua a alimentar a aura de putativo

salvador da pátria, admite essa possibilidade. Afinal, há já algum tempo que Norton

começara a descolar da órbita de influência afonsista e a sua ambição de maior

protagonismo político conferia alguma verosimilhança até a cenários mais radicais.

Desde o seu primeiro mandato em Angola não restavam grandes dúvidas sobre

a sua fibra de político. Sem se deixar tolher pelo republicanismo de fresca data, batera

o pé a decisões da máquina do Ministério das Colónias e a projectos preconizados por

várias correntes que, em sede governativa, parlamentar ou partidária, ameaçavam

comprometer a sua legitimidade de chefe. E fê-lo sem tergiversar ou pedir desculpas,

antes exigindo-as de outrem. Mesmo quando não obteve exactamente aquilo que

queria, conseguiu de alguma forma vergar ou, pelo menos, intimidar quem se colocou

no seu caminho, impondo-se ao respeito. Os boatos da sua iminente substituição

multiplicavam-se mas foi ele a escolher o momento da saída, quase três anos após a

sua nomeação – um tempo considerável para um governador colonial sob a I

República. A explicação reside, sobretudo, na forma invulgarmente determinada como

se apresentara como chefe providencial, com um projecto maior do que a vida ou não

prometesse cumprir e fazer cumprir o recorrente desígnio nacional e patriótico, de

republicanos como de monárquicos, de fazer de Angola um novo Brasil. Finalmente.

Em Lisboa, depois da surpresa inicial pela sua reacção invulgarmente firme, para não

dizer mesmo virulenta, face às investidas com que a máquina burocrático-política da

metrópole tenta coarctar os seus poderes de governador-geral, se não é amado, é

respeitado e, mesmo, temido.

A teia de relações que vai estabelecendo começa a dar-lhe uma força e voz

próprias no seio do PRP, primeiro, e no conjunto da galeria partidária republicana pós-I

República, depois. Em poucos anos, passa de improvável republicano, primeiro, e

afonsista, depois, a sério concorrente ao afonsismo embora o seu nome não tenha

chegado a inspirar uma tendência política própria. Tal não o impediu de estar no cerne

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da política guerrista que levou dezenas de milhares de portugueses a combater em

França, na esperança de que uma operação de treino de poucos meses em Tancos e a

natureza da guerra fizesse deles o que, em seis anos, o regime não conseguira até

então fazer: transformar uma população esmagadoramente rural, pobre, analfabeta e

de parcas simpatias republicanas em cidadãos e soldados da República. Por muito que

não deixe de ser um feito assinalável, a improvisação, que lhe valeria a promoção a

general por distinção, tinha fortes probabilidades de correr mal, até porque, a juntar às

debilidades do exército e à fraca literacia e consciência política da população, havia

todo um outro conjunto de óbices grandemente penalizadores. Na verdade, a

República Portuguesa não tinha a capacidade logística para assegurar, por si só, o

transporte, alimentação, formação e armamento necessário para o CEP nem, sequer,

os recursos financeiros para pagar esse esforço sem recurso a um severo

endividamento. Na impossibilidade de antecipar os resultados da Conferência da Paz e

dos acordos subsequentes quanto a compensações financeiras por parte da Alemanha

nem, tão-pouco, de adivinhar que seriam incapazes de aliviar o pesado efeito da dívida

de guerra portuguesa à Grã-Bretanha nas finanças do país, seria porém previsível que

o empreendimento beligerante, com o figurino no qual a República apostou, envolvia

riscos avultadíssimos. Simplesmente, eram riscos que, se não fossem corridos, trariam,

na avaliação de Norton, um risco bem maior: a perda do império à mesa das

negociações de paz, na qual Portugal não teria lugar, e tudo o que essa perda

acarretaria para a pátria. Na concepção nortoniana, a pátria ou era imperial ou não

teria condições de sobreviver como entidade independente. Apesar de se tratar de

uma concepção fortemente consensual entre as elites políticas coevas, tanto entre

republicanos como entre monárquicos, nem todos, porém, são concordes em

estabelecer uma relação de causa-efeito entre a não ida à guerra na Flandres e a

inevitabilidade da perda das colónias. Para Norton, porém, esta era uma certeza

cristalina, não havendo risco que não valesse a pena correr para garantir que tal não

sucederia.

A sua marcha para a guerra – que é também, e sobretudo, uma marcha para o

governo de Lisboa – justificou até o seu baptismo de fogo como revolucionário ao lado

dos Jovens Turcos, ultrapassando repugnâncias antigas quanto a revoluções que caem

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na rua. A partir de então, a sua ascensão na política nacional, em sede partidária e

governamental, é imparável. Longe de ser o braço militar de decisores políticos que se

sucedem à frente do governo entre 1915 e 1917 – José de Castro, Afonso Costa,

António José de Almeida e, de novo, Afonso Costa –, Norton protagoniza, inclusive em

sede governamental, uma luta tenaz para que a beligerância se concretize e o exército

português vá combater no teatro europeu da guerra.

Os termos em que o CEP se constitui para esse efeito não podem ser desligados

da megaoperação de treino militar que promoveu, no Verão de 1916, em Tancos, nas

vésperas da chegada a Lisboa da missão franco-britânica, chefiada pelo major-general

Baranardinston, que veio negociar os termos da colaboração militar portuguesa.

Registado no suporte técnico mais moderno de então, a película cinematográfica, o

treino de Tancos foi um argumento de peso que usou para convencer Barnardinston

de que os portugueses podiam integrar com vantagem o exército britânico na

Flandres. A experiência, pioneira em Portugal, de promoção do cinema como suporte

de propaganda política oficial teve igualmente grande sucesso junto do público

português. Tal como os leitores dos jornais de várias tendências que, em maior ou

menor grau, momentaneamente se renderam ao milagre de Tancos, o público que

frequentava as salas de cinema onde os filmes de Tancos foram exibidos era sobretudo

urbano. Mesmo assim – caso raro em Portugal, na altura em que mais importante seria

investir na conquista da opinião pública para a causa da guerra –, eis um ministro que

dedica atenção a esse dossier, mesmo se encarna sobretudo esse tipo peculiar de

propaganda que Jaime Cortesão crismou de propaganda pelo facto. A aposta do Verão

de 1916 acabará por dar origem a algo mais permanente, sensivelmente na mesma

altura em que investimentos semelhantes surgem noutros países beligerantes: a

criação do primeiro organismo estatal dedicado ao cinema, o SFCE, mesmo a tempo de

filmar o embarque do primeiro contingente do CEP para França.

Escorado no milagre de Tancos, designação que começa a descolar do tempo

curto do treino militar no centro do país para se tornar sinónimo da própria ida de

Portugal à guerra na Flandres, o peso político do ministro da Guerra cresce

consideravelmente com a missão diplomática que o leva a França e à Inglaterra na

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Primavera e início do Verão de 1917. Em Londres, joga-se o próprio destino do CEP,

ameaçado pela intenção da armada britânica de retirar os navios que asseguravam o

transporte das tropas portuguesas, comprometendo tanto o processo de

transformação das forças expedicionárias portuguesas num Corpo de Exército como,

até, a própria rendição periódica das tropas. É certo que a vitória diplomática,

conseguida in extremis com o apoio de Teixeira Gomes após duras negociações com o

governo de Lloyd George, virá a revelar-se uma vitória de Pirro pois, passados poucos

meses, a armada britânica leva a sua avante, deixando o CEP numa posição de extrema

fragilidade da qual não mais recuperará. Entretanto, porém, Norton faz uma gestão

cirúrgica interna do capital de prestígio acumulado no estrangeiro. Capital de prestígio

no seio do seu partido, onde se torna concorrente não negligenciável do afonsismo,

mas igualmente capital de ódio que granjeia entre sindicalistas e jornalistas durante a

severa crise social e política do final do Verão e Outono de 1917. Além do ónus da

guerra, partilha com Afonso Costa o ónus do poder até que, encontrando-se na

presidência interina do governo, claudica perante Sidónio Pais e parte para o exílio.

É já na qualidade de velho republicano que regressa à política na Nova

República do pós-guerra, no palco diplomático da delegação portuguesa à Conferência

da Paz em Paris, destacando-se nas negociações dos acordos de Saint-Germain-en-

Laye, sempre com o legado da República beligerante na bagagem e o império no

horizonte. Encontra-se novamente na equipa de Afonso Costa, com Augusto Soares,

mas cada vez menos disponível para se confinar a um papel subalterno. Parte, por isso,

para Angola com poderes reforçados de alto-comissário da República. A tenacidade

com que, a todo o transe, busca os modos de conseguir financiar a sua obra de

fomento, termina num duro confronto com a realidade. Além da incapacidade de as

elites, tanto na metrópole como em Angola, se entenderem sobre o modo de viabilizar

uma missão civilizadora coerente para a nova República do pós-guerra, havia o

problema de fundo que o general não consegue ultrapassar: a falta de capitais, a que

se vem juntar uma aguda crise financeira.

Quando, demitido pelo governo da Ditadura Militar, regressa a Lisboa após um

par de anos na embaixada em Londres, a poeira das fortes controvérsias que

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protagonizara na República anterior ao golpe do 28 de Maio começara já a assentar. É

certo que as polémicas antigas nunca deixarão de vir ao de cima como mote de novos

ataques a si próprio e à I República. Não obstante, embora o milagre de Tancos

continue a ser um tópico fracturante, as solidariedades castrenses entre antigos

combatentes, bem como a transmutação de derrotas militares como Naulila e,

sobretudo, La Lys, em ocasião de celebração nacional, matizam clivagens antigas. Do

mesmo modo, a polémica sobre Angola e a sua situação financeira, apesar de originar

uma pública troca de notas entre Norton e Salazar em 1930, começa a ser colocada em

perspectiva, após os fracassos de sucessivos governadores-gerais e governos

metropolitanos em lidar com maior proficiência com o ovo atravessado na galinha

chamada Angola, para retomarmos a expressão de Rodrigues Gaspar no debate

parlamentar em que Cunha Leal colocara o mais polémico alto-comissário da República

na linha de fogo.

A poeira contra Norton assentara também no campo dos seus antigos pares na

velha política republicana, doravante quase todos na oposição. Para alguns dos mais

marcantes, muitos deles no exílio, o concurso de Norton é visto como incontornável

para combater a ditadura pela via militar. Muito embora haja quem o veja, igualmente,

como um possível primeiro-ministro, o máximo que as figuras mais destacadas do

exílio lhe concederiam, nos vários elencos ministeriais que se vão ocupando a

desenhar para o governo que se há-de seguir à almejada queda da ditadura, seria um

lugar de ministro. Norton tem, no entanto, outros planos, encarando a via golpista de

um ponto de vista eminentemente político. Quando o seu envolvimento na preparação

de um movimento militar em 1930, descoberto pelas autoridades, o leva ao exílio nos

Açores, tratará de propor aos combatentes de várias revoltas militares fracassadas que

se escolha um chefe único para derrotar a ditadura e implantar a democracia, que terá

de ser refundada. Embora não se ofereça abertamente para o cargo, poucos dos que

lêem a sua proposta terão dúvidas de que é precisamente esse o seu objectivo. Apesar

da entusiástica resposta positiva dos deportados políticos na Madeira, a ideia está

longe de recolher a unanimidade entre as hostes republicanas, em especial da Liga de

Defesa da República, na qual, em Paris, Afonso Costa e Bernardino Machado intentam,

sem sucesso, congregar as várias oposições numa frente unida sob égide de ambos,

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que persiste em encarar os militares em geral e Norton em particular de forma

meramente instrumental.

Não tendo conseguido recolher os apoios políticos de que precisava, a

maçonaria proporcionará a Norton um recuo estratégico e, simultaneamente, um

palco alternativo. Apesar de já não ter o fulgor de outros tempos, ainda tem como

membros uma parte não despicienda das elites políticas do país. Como grão-mestre do

GOLU, o general trava um combate eminentemente político na frente constitucional e

partidária.

Os seus adversários começam a encará-lo como um líder da oposição. Do

mesmo modo que temem que possa liderar um golpe que derrube a ditadura, vêem-

no como um chefe político com quem se poderá contar para uma solução negociada. O

próprio coloca-se em campo para uma possível transição por via eleitoral anunciada

pelas autoridades, demarcando-se crescentemente da via golpista, muito embora não

descarte esta última como solução de recurso. Em tempo recorde, patrocina um feito

assaz notável, atendendo ao grau de divisão que há anos grassa entre os partidos

republicanos: uma frente eleitoral unida que obriga a que, do outro lado da barricada,

a União Nacional comece a sair do papel para o terreno e a impor-se, também face às

alternativas partidárias que, à sua direita, se põem em campo perante a perspectiva de

eleições.

Abortada a via eleitoral com a revolução fracassada que, em Agosto de 1931,

sai à rua em Lisboa à sua revelia, Norton é obrigado a partir para um novo exílio de

mais um ano, de onde só será autorizado a regressar por decisão de um dos primeiros

conselhos de ministros chefiados por Salazar, o civil que considera o principal

adversário político. Apesar de estar decidido a morrer para a política e a afastar-se da

chefia efectiva do GOLU, são políticos os motivos invocados pelo regime para o demitir

de professor catedrático do Técnico. Será ainda ele a dar a cara pela maçonaria

quando, em 1935, o Estado Novo a ilegaliza, remetendo-a para uma clandestinidade

de décadas.

Encerra-se, assim, o primeiro ciclo oposicionista de Norton de Matos. Apesar

das acusações de querer alcandorar-se a ditador, a verdade é que, quer quando

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propôs a chefia única para derrotar a ditadura por via militar, quer quando patrocinou

a aliança dos partidos para a transição eleitoral, deixou sempre bem claro que

defendia a liberdade, a separação de poderes e uma democracia parlamentar que

deveria ultrapassar as debilidades do modelo de República derrubado pelo 28 de Maio.

Não tendo conseguido ser unanimemente aceite pelos seus pares como chefe

inequívoco da oposição, foi o chefe da oposição que, tendo feito os compromissos

mínimos para permanecer no país, tem no seu activo aquela que foi a primeira

experiência bem-sucedida de unidade da oposição à ditadura, prenúncio de outras que

se seguirão na década seguinte, também sob o seu patrocínio.

Apesar de se ter declarado morto para a política, a verdade é que o general

renasce das cinzas nos anos finais da II Guerra Mundial. Na Primavera de 1943, a

perspectiva de uma aliança entre o Portugal de Salazar e a Espanha de Franco leva-o a

ponderar o regresso a um papel político mais activo. A oportunidade surge quando,

em Março do ano seguinte, uma personalidade comunista o contacta no âmbito da

frente unida antifascista que então se implantava em Portugal, à imagem dos comités

de libertação nacional dos países ocupados: o Conselho Nacional de Unidade

Antifascista. Está de regresso à presidência de uma fronda unitária da oposição só que

com três importantes diferenças face à ARS. Antes de mais, Norton de Matos já não é

promotor da unidade mas antes um senador que traz o passado da República e da

oposição para o novo ciclo oposicionista, tendo doravante um papel eminentemente

simbólico e honorário. Em segundo lugar, a frente de partidos, sensibilidades e

personalidades não só passa a contar com o concurso dos comunistas como estes

últimos são precisamente a força motriz da unidade. Em terceiro lugar, ao contrário da

ARS, que actuava no plano legal, o CNUAF é uma frente clandestina.

Será também um papel honorário, embora não clandestino, o que

desempenhará no Movimento de Unidade Democrática, a outra frente unitária

oposicionista que irrompe em Portugal com o fim da guerra com um ímpeto que

surpreende tudo e todos, obrigando Salazar a tolerar, num recuo táctico, a existência

de uma oposição legal. Porém, quando Norton é convidado para presidir à sua

comissão consultiva, no Outono de 1946, já a conjuntura mudara e a legalidade do

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MUD estava por um fio. Dois dos seus dirigentes tinham sido expulsos das respectivas

cátedras universitárias por delito de opinião, ao defenderem que Portugal só poderia

ser admitido na assembleia de povos livres que é a ONU quando o país fosse a

democracia que manifestamente não era. Face à investida do regime, a criação de uma

comissão consultiva presidida por uma personalidade com o estatuto do general

Norton de Matos era uma forma de dar uma prova da força do MUD.

Apesar da emoção que sente pelo ambiente em que decorre a sessão pública

do MUD, a que preside na Voz do Operário em Lisboa, e da esperança suscitada pelas

palavras ambíguas do Presidente Carmona quando, em nome do MUD, lhe vai

entregar o caderno reivindicativo de liberdades, o regime está já em pleno contra-

ataque. O último combate antes de a primeira crise séria do regime ser encerrada

ainda não tinha, porém, tido lugar. Desta feita, Norton terá nele um papel que já não

será apenas honorário e simbólico mesmo se a sua candidatura à Presidência da

República contra o candidato de Salazar, Carmona, está repleta de simbolismo.

Afinal, não apenas é o primeiro candidato da oposição a desafiar o viciado

processo eleitoral do regime com uma candidatura à Presidência da República como

será o último dos grandes adversários do Estado Novo do tempo da I República. É certo

que, até por uma questão de geração, outros políticos da República anterior ao 28 de

Maio continuarão ainda a marcar presença noutros combates da oposição. Nenhum

deles, porém, possuirá de forma tão vincada o estatuto emblemático de Norton.

Independentemente dos muitos anticorpos que, mesmo se atenuados pela patine do

tempo, o seu nome continua a gerar no campo político republicano, a verdade é que

Norton tem um perfil de uma transversalidade invulgar, fazendo a ponte não apenas

com a I República mas igualmente com os vários tempos da oposição.

Tendo o PCP desempenhado um papel essencial na promoção do nome de

Norton como candidato, logo desde 1947, e dispondo de uma máquina organizativa

sem paralelo com qualquer das restantes forças oposicionistas, a participação dos

comunistas é desta feita incontornável. Simplesmente, se algumas das personalidades

republicanas – significativamente algumas das que mais se destacaram na ARS, como

Mário de Azevedo Gomes – partilham com Norton a plasticidade necessária para se

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adaptarem à nova conjuntura, tendo já feito parte desse caminho em comum com o

PCP nas frentes comuns antifascistas dos anos 40, esse não é um caminho consensual.

Com a Guerra Fria na sua fase mais crispada e o processo de satelização da

Europa de Leste pela URSS a decorrer, homens como o comandante Moreira de

Campos ou Francisco Rendeiro põem-se em campo para tentarem convencer Norton

de Matos a demarcar-se do apoio comunista. Afinal, não é para abrir caminho a uma

ditadura comunista que estão a combater a ditadura de Salazar, argumentam junto do

general. Chega mesmo a ser incompreensível que ele não se demarque de tão

incómodo apoio, comentam com preocupação entre si. Os relatos mais conhecidos do

que se passou nas reuniões das estruturas dirigentes na recta final da campanha, em

que a desistência de levar a candidatura até ao fim é imposta ao general como uma

inevitabilidade, já amplamente glosados pela literatura crítica, parecem confirmar

aquela visão de um homem que se deixou instrumentalizar pelo PCP sem sequer se dar

conta disso. Caído das nuvens da sua ilusão de velho político já sem a completa noção

da realidade, teria passado depois, segundo esta mesma visão, à fase do

ressabiamento que culminaria num público ataque aos comunistas em 1953.

E, no entanto, esta é uma visão que ganhará em ser matizada. Ao trazer à

colação, nesta tese, uma série de fontes que documentam com mais pormenor as

tensões anticomunistas no seio da sua candidatura, podemos verificar que Norton de

Matos esteve longe de ser um joguete nas mãos do PCP e longe de ter sido apanhado

de surpresa pelo modo como a rede de apoiantes da esfera do comunismo se

confundiu com a rede da sua campanha.

Antes de mais, a sua cumplicidade com os comunistas tinha já alguns anos:

foram eles que o trouxeram, novamente, para a linha da frente da oposição, já na

década de 40, e foram eles que pré-lançaram a sua candidatura. Em segundo lugar, o

general considera que a doutrina comunista tem virtualidades que não podem ser

escamoteadas e que os democratas só terão a ganhar em dar-lhes atenção. É o caso,

nomeadamente, da miséria que considera não poder ser combatida apenas com

liberdade política, exigindo igualmente políticas económicas de redistribuição dos

rendimentos. Dissera-o em vários escritos privados desde a revolução russa e lembra-o

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durante a campanha aos seus amigos mais vincadamente anticomunistas. A melhor

forma, aliás, de impedir que as ideias comunistas se fortaleçam é, acredita, retirar-lhes

os argumentos que só alimentam o seu crescimento, nomeadamente atacando a

pobreza. Em terceiro lugar, há que não esquecer que o verdadeiro adversário a

combater é o Estado Novo de Salazar e que só a ele aproveita que a oposição se divida

em combates intestinos. Por fim, Norton faz questão de se afirmar como o futuro

presidente de todos os portugueses, sem excepção.

É precisamente este posicionamento de candidato nacional e, logo, não

condicionável por agendas particulares ou partidárias que o faz entrar em confronto

directo com o PCP logo no Verão de 1948, quando a sua candidatura é apresentada

aos jornalistas. Mesmo se a ruptura foi evitada in extremis, o general manterá um

braço-de-ferro intermitente com os comunistas, que acompanha os períodos tanto da

pré-campanha como da campanha eleitoral oficial, a propósito da questão do controlo

da rede de estruturas de apoiantes. A insistência em que as comissões de apoiantes,

em formação por todo o país e colónias, sejam unicamente suas mandatárias pessoais

e não representantes de partidos ou facções acabará por ser em grande parte

contrariada pela realidade, como é sabido. É algo de que, porém, o general tem plena

consciência desde o princípio, fazendo de tudo para a tentar neutralizar mas não

estando nunca disponível para ir até à ruptura. Romper a unidade não significaria

apenas privar-se de meios humanos e logísticos essenciais a uma campanha que

ambicionava ganhar uma mobilização tal que, no limite, forçasse Salazar a ceder,

permitindo que o acto eleitoral fosse verdadeiramente livre. Por mais que esta não

passasse de uma hipótese académica, se a oposição não se apresentasse unida, a

corpo, mais valia desde logo desistir. Romper a unidade significaria, igualmente,

admitir que não seria possível viver numa pátria onde todos tivessem lugar e na qual o

Presidente da República pudesse ser, verdadeiramente, o presidente de todos os

portugueses.

Por mais marcantes que tenham sido as tensões da Guerra Fria – que, no limite,

deram às potências ocidentais mais um pretexto para não recearem, como intuíra

Norton de Matos, cair no ridículo de tratar o Estado Novo como uma ditadura paternal

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–, a originalidade da campanha presidencial portuguesa não se limitou à manutenção,

a contracorrente da tendência internacional, de uma frente unitária antifascista. Outra

originalidade, porventura mais marcante, foi a saída à vida pública das mulheres

portuguesas, de um lado e do outro do combate político, com um impacto tal que

mudou a maré da campanha.

É certo que, como sempre, a campanha oposicionista centrou-se na

reivindicação das liberdades mas, desta vez, a reivindicação de liberdade para a

metade feminina da população portuguesa ganhou um protagonismo inesperado. A

mistura entre as novas protagonistas no feminino que vêm à liça defender para as

portuguesas a liberdade mais íntima do ser humano, a de serem um ser pensante, e os

velhos protagonistas de recauchutadas polémicas anticlericais que, imprudentemente,

reacendem a questão religiosa viria a revelar-se explosiva.

Aproveitando a deixa anticlerical e ligando-a aos ataques à Igreja em países do

Bloco de Leste, então na ordem do dia, o regime passa da defensiva para a ofensiva,

trazendo para a linha da frente do combate político também mulheres. Mesmo se em

grande parte arregimentadas para tal, a verdade é que para muitas delas será uma

estreia na esfera pública que marcará um ponto de não retorno. Ao contrário do que

acontecerá com as situacionistas, porém, a experiência fugaz da liberdade terá um

preço alto para as mulheres como para os homens, velhos e jovens, que, seguindo o

desafio de Mário de Azevedo Gomes, deitaram o medo para trás das costas, e

apoiaram Norton de Matos.

Aos 81 anos, a liberdade foi uma electrizante experiência também para Norton

que não se conforma por, desta vez, não conseguir impor a uma equipa sua a vontade

que na recta final da campanha o assola: ir a votos. Mesmo se, manifestamente, não

conseguira que Salazar, vergando-se ao peso do seu prestígio e à vontade expressa por

multidões de apoiantes galvanizadas pela sua candidatura, aceitasse jogar um jogo

eleitoral justo.

Uns meses mais tarde, quando a poeira dos banhos de multidão que recebera

no comício do Porto e na viagem ao sul do país já assentara, o general não hesitará em

aconselhar correligionários seus a absterem-se de concorrer às eleições à Assembleia

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Nacional, invocando precisamente o argumento que por momentos se tinha sentido

tentado a ignorar no anterior mês de Fevereiro: a ausência de condições objectivas

para as eleições poderem ser livres. De ora em diante, o outrora improvável

republicano regressará às origens político-partidárias, envolvendo-se em tentativas de

refundar o PRP e reinventá-lo como um partido-frente, à sombra do qual todos se

possam acolher. Até ao dia em que, reconquistada a liberdade, o PRP possa dar origem

a um leque de partidos entre os quais não poderia deixar de existir um partido

socialista forte – a que, já nos tempos do MUNAF, Norton a todo o transe tentara dar

força, patrocinando a unidade entre as várias facções em que o campo socialista se

dividia. Enquanto a liberdade não chega, os democratas devem – aconselha à laia de

um velho de Esparta –, convergir num Partido Republicano Unido. É o utópico projecto

– sem qualquer hipótese de tradução real, dada a irrelevância a que o PRP há muito

estava reduzido – com que acena a todos os que continuam a passar por sua casa na

vaga esperança de que a amarga crise em que a oposição mergulhou, após o último

fôlego proporcionado pela candidatura presidencial de 1948/49, passe depressa. O

tempo das frentes unidas antifascistas, esse, estava decididamente encerrado. O que

não impede que um PCP em negação ainda se dê ao trabalho de enviar uma emissária

a Ponte de Lima sondar o velho general para de novo se candidatar à Presidência

quando, apenas dois anos após a reeleição de Carmona, este morre. Foi o único

Presidente da República que António de Oliveira Salazar verdadeiramente respeitou.

Em 1955, morrerá José Norton de Matos, o último opositor a quem Salazar

reconheceria o estatuto de grande adversário do regime, apesar de por ele ser tratado

com uma temerária sobranceria (ou, precisamente, por isso mesmo). A megalomania

que levara Afonso Costa a querer colocá-lo numa vitrina, de onde não pudesse sair

nem mexer-se, é a mesma que leva Norton a não ter pejo de meter publicamente

Salazar na ordem, declarando dele não ter a receber quaisquer lições de patriotismo.

Tardiamente entrado na política como colonial e improvável republicano, quando

morre é, definitivamente, um político por todos reconhecido como símbolo da I

República.

No final desta viagem pela vida pública de Norton de Matos parece-nos que a

aposta feita na deslocação do foco de análise mais habitual pelo qual é geralmente

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visto, o colonial, para outro geralmente visto como subsidiário, o político, parece-nos

ganha. O que não significa, naturalmente, que a nossa não deixe de ser uma voz que se

junta a uma multiplicidade de outras vozes que têm surgido na historiografia entre nós

valorizando outras perspectivas, nem, tão-pouco, que tenhamos esgotado o filão

político. Muito fica em aberto, não faltando pistas para investigações futuras. É o caso,

nomeadamente, da crise financeira dos anos 20 cuja centralidade política durante o

alto-comissariado de Norton mais do que justificaria uma investigação que a

esclarecesse cabalmente, fornecendo dados mais seguros do que os que hoje

dispomos, demasiado condicionados pelo fragor dos violentos combates políticos

coevos. É o caso, igualmente, do que ainda falta investigar sobre outras realidades

concretas do trabalho forçado nos vários pontos de Angola, além das aqui analisadas,

de modo a poder comparar, de forma mais fundamentada, o que nesse domínio

acontecia nos outros impérios europeus com colónias na África subsariana durante o

primeiro quartel do século XX. É o caso, para dar só mais um exemplo, da análise do

atribulado processo de elevação da representação diplomática portuguesa em Londres

à categoria de Embaixada, iniciado no tempo de Sidónio Pais mas só concretizado em

1924. É bem provável que o significado político da escolha de Norton de Matos para o

cargo não se fique pela prateleira dourada que proporcionou, num momento crítico,

ao improvável republicano que, entre os muitos papéis políticos protagonizados no

seio da galáxia republicana durante a primeira metade do século XX, em múltiplas

geografias de Portugal e do seu império, foi também o primeiro embaixador da

República em Londres.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. FONTES

1.1. FONTES DE ARQUIVO

ARCHIVIO SEGRETO VATICANO (ASV), Cidade do Vaticano Archivio della Nunziatura Apostolica di Lisbona

ARCHIVIO STORICO DELLA CONGREGAZIONE DE PROPAGANDA FIDE (APF), Cidade do Vaticano Nuova Serie ARQUIVO BERNARDINO MACHADO (ABM), Famalicão

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Espólio de Bernardino Machado ARQUIVO DA BIBLIOTECA-MUSEU REPÚBLICA E RESISTÊNCIA (ABMRR), Lisboa Espólio Carlos Ferrão

ARQUIVO DE CULTURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA DA BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL (ACPC-BNP), Lisboa Espólio de António Ginestal Machado Espólio de Augusto Casimiro Espólio Raul Proença

ARQUIVO DA FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES (AFM), Lisboa (parcialmente acessível on-line em www.casacomum.org) Espólio de Bento de Jesus Caraça Espólio de Bernardino Machado Espólio de Mário Soares Espólio de Teófilo Carvalho dos Santos

ARQUIVO DO GRÉMIO LUSITANO (AGL), Lisboa

Livros de registo e documentação avulso ARQUIVO HISTÓRICO-DIPLOMÁTICO DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS (AHD-MNE), Lisboa

Arquivo da Legação de Portugal em Londres Arquivo da Legação de Portugal em Paris Secretaria de Estado – Repartição dos Negócios Políticos Colecção de cópias de correspondência expedida e recebida

ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR (AHM), Lisboa Fundos particulares - Espólio de Fernando Tamagnini Abreu e Silva Fundos orgânicos 1ª Divisão 3ª Divisão

ARQUIVO HISTÓRICO-PARLAMENTAR (AHP), Lisboa

Livros de registo de deputados e senadores

ARQUIVO HISTÓRICO-ULTRAMARINO (AHU), Lisboa Relatórios

Correspondência entre o Ministério das Colónias e o Governo-geral de Angola Consultas do Conselho Colonial ARQUIVO DO INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO (AIST), Lisboa

Livros de tomadas de posse e do Conselho Escolar Notas biográficas de funcionários

ARQUIVO HISTÓRICO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Lisboa

Liceu Nacional de Faro ARQUIVO DO MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA (AMAI), LISBOA Gabinete do Ministro, 1948-1949 ARQUIVO NACIONAL DE ANGOLA, Luanda

Documentação avulso facultada por Maria da Conceição Neto

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ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (ANTT), Lisboa Arquivo do Ministério do Interior1190

Arquivo da Legião Portuguesa Arquivo da PIDE-DGS Arquivo Oliveira Salazar

ARQUIVO NORTON DE MATOS-Casa de Ponte de Lima (ANM), Ponte de Lima Espólio de José Mendes Ribeiro Norton de Matos SCHOOL OF ORIENTAL AND AFRICAN STUDIES – MISSIONARY ARCHIVES (SOAS-MA),

Londres Documentação do Internacional Missionary Council / Conference of British Missionary Society (IMC/CBMS)

NATIONAL ARCHIVES – UNITED KINGDOM (NA-UK), Londres

Cabinet Papers (parcialmente acessível online em http://www.nationalarchives.gov.uk/cabinetpapers) Foreign Office War Office

KING’S COLLEGE LONDON – LIDDELL HART CENTER FOR MILITARY ARCHIVES (KCL-

LHCMA), Londres Espólio de Nathaniel Walter Barnardiston

1.2. FONTES DE ARQUIVO ACEDIDAS EXCLUSIVAMENTE VIA INTERNET

ARQUIVO NACIONAL DAS IMAGENS EM MOVIMENTO (ANIM), Bucelas in

http://www.cinemateca.pt ARQUIVO RICÓN PERES, Lisboa in

http://republica100anos19102010.blogspot.pt/2008/10/blog-post.html GAUMONT PATHÉ ARCHIVES (GPA), Saint-Ouen in

http://www.gaumontpathearchives.com

1.3. FONTES PUBLICADAS

1.3.1. PUBLICAÇÕES DE NORTON DE MATOS 1191

MATTOS, José Mendes Ribeiro Norton de, Manual do Agrimensor, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1904, 2 volumes

_____«Índia Portugueza II» in O Economista Portuguez, Nº 213, 10-07-1910, pp. 481-482 (Sob pseudónimo de Mendes Ribeiro)

_____«India Dez Annos de Residencia em Goa, Damão e Diu – O Passado e o Presente de Uma Colonia Portugueza – Duas Palavras de Introducção» in O Economista Portuguez, Nº 219, 21-08-1910, pp. 580-581

_____«CHINA CONTRA PORTUGAL: Perigo amarello em fundo negro: Os chineses preparam uma reclamação E o statu quo? Foi-se?» in O Economista Portuguez, nº 220, 28-08-1910, pp. 600-601 (Sob pseudónimo de Mendes Ribeiro)

1190

Parte da documentação deste fundo foi consultada ainda no Arquivo do Ministério da Administração Interna (AMAI), tendo posteriormente sido transferida para o ANTT, onde ainda não se encontra acessível aos leitores. A ela nos referimos no texto como AMAI. 1191

Lista-se, por ordem cronológica, exclusivamente as publicações de Norton directamente citadas na presente tese. Do corpo legislativo que produziu, só se listam as colecções ou conjuntos de documentos com publicação autónoma por iniciativa do autor, excluindo a que só consta do BOPA ou do DG.

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_____«CHINA CONTRA PORTUGAL Perigo amarello em fundo negro: A China tem tentado, tenta e tentará expulsar-nos. Mandem soldados para Macau! Soldados é o que mais é preciso!» in A Instrucção Commercial Da Casa: Revista Quinzenal Encyclopedica de Instrucção Commercial e Interesses do Commercio, nº 223, 18-09-1910, pp. 649-650 (Sob pseudónimo de Mendes Ribeiro)

_____«Arte De Compellir: Grandes Remedios Para Grandes Males» in O Economista Portuguez, Nº 226, 16-10-1910, pp. 700-701 (Sob pseudónimo de Mendes Ribeiro)

_____«Credito Predial Portuguez» in O Economista Portuguez. Revista de Politica Economica e de Finanças (Metropole e colonias), Nº 226, 16-10-1910, p. 703-704 (Sob pseudónimo de Mendes Ribeiro)

_____«Arte de compellir. O que se vae passando na casa do vizinho – Há exemplos a seguir e outros a pôr de reserva – Uma conferencia notável» in O Economista Portuguez, Nº 228, 30-10-1910, pp. 741-742

_____ «Arte de compellir [Traduzida da lei belga]» in O Economista Portuguez, Nº 229, 06-11-1910, pp. 758-760

_____ «LEITURA RETROSPECTIVA. Mão d’obra em S. Tomé» in O Economista Portuguez, Nº 232, 27-11-1910, pp. 802-803

_____«FINANÇAS» in Revista Commercial e Industrial, Nº 29, 05-03-1911, pp. 49-51 _____ «L'oeuvre de la Republique» / «The Performance of the Republic» in Revista

Commercial e Industrial, Nºs 33-34, Édition extraordinaire dediée au IV Congrès International de Tourisme, 05-1911, pp. 97-98 / pp. 113-114

_____«Índia» in Revista Commercial e Industrial, Nºs 39-48 (Nº Extraordinário Consagrado ao 1º Aniversário da Implantação da República), 10-1911, pp. 258-263

_____ «Um Imperio Colonial» in Revista Commercial e Industrial, Nºs 39-48, No Extraordinário Consagrado ao 1o Aniversário da Implantação da República, 10-1911, pp. 229-231

_____«A Questão de Ambaca» in Revista Commercial e Industrial, Nº 52, 02-1912, pp. 69-71

_____«Conferencia Realisada no Dia 23 Fevereiro de 1912 pelo Major Norton de Mattos no Centro Republicano Democratico» in Questão de Ambaca, Lisboa, Centro Republicano Democrático, 1912, pp. 13-40

_____ «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Governador Geral, major do serviço do Estado Maior, ao assumir o Governo de Angola» in Supplemento ao Boletim Official da Província de Angola, 1912, n. 24, 18-06-1912, pp. 1-2

_____ «Discurso Pronunciado, em 22 de Outubro de 1912, pelo major Norton de Matos, Governador Geral de Angola, na sessão do Conselho de Govêrno em que foi presente o projecto da “Lei orgânica das instituições administrativas da Província de Angola”» in J.M.R. Norton de Matos, Projectos de Lei Orgânica da Provincia de Angola e de Organização de Alguns Serviços Provinciais Submetidos à Apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador Geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional, 1912, pp. 9-18

_____Projectos de Lei Orgânica da Provincia de Angola e de Organização de Alguns Serviços Provinciais Submetidos à Apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador Geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional, 1912

_____Projecto de orçamento para o ano económico de 1913-1914 Acompanhado das respectivas propostas orçamentais e de um Projecto de empréstimo para ocupação e fomento da Província, Loanda, Imprensa Nacional, 1913

_____ Projecto de Organização de instrução pública na província de Angola Submetido à apreciação do Ministro das Colónias pelo Governador-geral José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Loanda, Imprensa Nacional de Angola, 1913

_____Discurso Pronunciado, em 1 de Agosto de 1913, pelo Major Norton de Matos, Governador Geral de Angola, na Sessão de Abertura da Junta Geral da Provincia, Luanda, Governo Geral da Provincia de Angola, 1913

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_____ Regulamento das Circunscrições Administrativas da Província de Angola: Decreto de 2 de Novembro de 1912: Portarias Provinciais e Circular de 17 de Abril de 1913, Loanda, Imprensa Nacional de Angola, 1913

_____ A situação financeira e económica da Província de Angola: Conferência realizada em Maio de 1914 no Centro Republicano Democrático, Lisboa, Tipografia da Coop. Militar, 1914

_____ Discurso pronunciado na Residência do Govêrno Geral de Angola, em Loanda, em 16 de Abril de 1921, pelo General José Mendes Ribeiro Norton de Matos, alto Comissário da República em Angola, por ocasião da sua posse do cargo de Governador-geral da Província, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1922

_____Providencias tomadas pelo General J.M.R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Abril a Dezembro de 1921, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1922

_____ Providências tomadas pelo general J.M.R. Norton de Matos, como alto comissário da república e governador-geral, Janeiro a Dezembro de 1923, Lisboa, Pap. Fernandes, 1923

_____ «Discurso proferido por Sua Ex.ª o Presidente» in Actas do Conselho Legislativo: Sessão de Encerramento em 14 de Setembro de 1923, S.l., S.d. [1923]

_____ A Província de Angola, Porto, Maranus, 1926 _____ Ao Povo Maçonico: Mensagem do Grão-Mestre da Maçonaria portuguêsa José

Mendes Ribeiro Norton de Matos Eleito em 31 de Dezembro de 1929, para o biénio de 1930-1931, Lisboa, 1930

_____La formation de la nation portugaise envisagée au point de vue colonial: édition speciale de la Conference réalisée à Anvers, durant la «Semaine Portugaise», dans la soirée du 23, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1930

_____Mensagem à Gra Dieta do Grão Mestre da Maçonaria José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Lisboa, 1931

_____«O Estado Corporativo» in Humanidade: Jornal Republicano Anti-Clerical, 1931, pp. 69-86

_____«Como pretendi povoar Angola» in Boletim Geral das Colónias (BGC), II Série, Nº 100, Outubro de 1933

_____«Aerofotogrametria: Exposição resumida da evolução dos levantamentos topográficos aéreos» in Técnica: Revista de Engenharia dos Alunos do Instituto Superior Técnico, Nº 57, Fevereiro de 1934

_____«Fotogrametria», Separata dos nºs 29 e 30 da revista A Terra, Coimbra, Tipografia Bizarro, 1937

_____«O Chefe» in O Diabo, 23-05-1937, pp. 1 e 8 _____«A Fotogrametria perante a urgência de trabalhos topográficos e cadastrais em

Portugal», Separata do nº 25 do Boletim da Ordem dos Engenheiros, Lisboa, Papelaria Cisne, 1939

_____Memórias e Trabalhos da Minha Vida: Factos, Acontecimentos e Episódios que a Minha Memória Guardou: Conferências, Discursos e Artigos e Suas Raízes no Passado, Lisboa, Editora Marítimo Colonial Lda., Tomos I a IV, 1945-1945 (reeditados pela Imprensa da Universidade, de Coimbra, em 2005, em 2 volumes)

_____Os Dois Primeiros Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-VII-48 a 9-IX-48), 1ª ed., Lisboa, Edição do Autor, 1948

_____Mais Quatro Meses da Minha Candidatura à Presidência da República (9-IX-48 a 9-I-49), Lisboa, Edição do Autor, 1949

_____À Nação, Lisboa, Edição dos Serviços Centrais da Candidatura, 1949 _____A Nação Una: Organização Política e Administrativa dos Territórios do Ultramar

Português, Lisboa, Paulino Ferreira, Filhos, Lda., 1953 _____Africa Nossa: O que Queremos e o que Não Queremos nas Nossas Terras de

Africa, Porto, Edições Marânus, 1953 _____General Norton de Matos (Conferência), Aveiro, Edição dos Candidatos

Democratas por Aveiro, 1953

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_____Memórias e Trabalhos da Minha Vida: Factos, Acontecimentos que a Minha Memória Guardou Conferências, Discursos e Artigos e Suas Raízes no Passado, Volume 3, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005 (com tomos V e VI, até então inéditos)

LIMA, Magalhães, SILVA, Alfredo H. da, MACEDO, José de, MATOS, J. M.R. Norton de, et alia, «[Sociedade Anti-Esclavagista Portugueza - Circular de Apresentação]» in O Monstro da Escravatura: a Minha Defesa na Campanha Levantada a Propósito da Publicação do Folheto Alma Negra, Porto, Tipografia Mendonça, 1910, pp. 17–19

MATOS, J.M.R. Norton de, PINTO, E.E. Goes Pinto, Orçamento Geral da Província de Angola para o ano económico de 1921-1922, Loanda, Imprensa Nacional, 1921

1.3.2. OUTRAS PUBLICAÇÕES

1.3.2.1. PERIÓDICAS

Avante! Órgão central do Partido Comunista Português (S.P.I.O.), I Série, 1931, e VI

Série, S.l., 1947-1948 Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1909 Boletim Oficial da Província de Angola (BOPA), Loanda, Imprensa Nacional, 1912-1914,

1921 Boletim Oficial do Grande Oriente Lusitano Unido. Supremo Conselho da Maçonaria

Portuguesa, Lisboa, 1930 Bulletin de la Congrégation [du Saint-Esprit], La Chapelle-Montigleon, 1923 A Capital: Diario Republicano da Noite, Lisboa, 1914, 1916, 1917, 1919 Cine-Revista, Lisboa, 1917, 1920 La Dernière Heure, Bruxelas, 1920 O Dia, Lisboa, 1916, 1917 O Diabo, Lisboa, 1937 Diario da Camara dos Deputados, Lisboa, 1913, 1914, 1916, 1919, 1921, 1924, 1925 Diário da Manhã, Lisboa, 1931, 1949 Diário de Notícias, Lisboa, 1915, 1916, 1917, 1931 Diário do Governo, Lisboa, 1911, 1917, 1929 Diário do Senado, Lisboa, 1911, 1912, 1914, 1919 O Economista Portuguez. Revista de Politica Economica e de Finanças

(Metropole e colonias), Lisboa, 1910 Foreign Police Bulletin, New York, 1949 Humanidade: Jornal Republicano Anti-Clerical, Porto, 1929-1931 Ilustração portugueza: revista semanal dos acontecimentos da vida portuguesa,

Lisboa, 1916 Independente: Semanario Colonial, Literario e de Informação, Loanda, 1912 A Instrucção Commercial da Casa: Revista Quinzenal Encyclopedica de Instrucção

Commercial e Interesses do Commercio, Coimbra / Lisboa, 1910 Jornal de Benguela, Benguela, 1921 A Lucta, Lisboa, 1916 A Montanha, Porto, 1916 O Movimento Operário: Boletim da União Operária Nacional, Lisboa, 1917 O Mundo, 1911, 1915, 1916, 1917 A Nação, Lisboa, 1916 La Nation Belge, Bruxelas, 1920 O Norte, Porto, 1919 O De Aveiro: Semanario Independente, Aveiro, 1917 Ordem do Exército, Lisboa, 1917 O Povo: Diario Republicano da Noite, Lisboa, 1915 Portugal na Guerra, Paris, 1917 O Primeiro de Janeiro, Porto, 1916 O Progresso: Semanario Colonial, Loanda, 1913

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República, Lisboa, 1931, 1946, 1949 Revista Commercial e Industrial: Publicação Quinzenal Illustrada de Instrucção Commercial, Profissional e Interesses do Commercio e da Industria: Orgão do Commercio e da Industria e de Propaganda Colonial, 1912 Revista de Obras Publicas e Minas, Lisboa, 1911 Seara Nova, Lisboa, 1955 O Século, 1915, 1916, 1919 O Século da Noite, 1915 Le Temps, Paris, 1917 The Times, Londres, 1917 A Vanguarda, Lisboa, 1916 A Verdade: Orgão Republicano Independente - Defensor dos Interesses de Angola,

Loanda, 1912

1.3.2.2. NÃO PERIÓDICAS AAVV, O Problema do Ensino Primário, Lisboa, Ed. Serviços Centrais da candidatura do

General Norton de Matos (SCGNM), 1949 _____ Alguns Comentários à Política do Ensino Secundário do Estado Novo, Lisboa, Ed.

SCGNM, 1949 _____ O Ensino Profissional Industrial e Comercial (Estudo Crítico Sobre Uma Recente

Reforma), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949 _____ Para Onde nos Leva a Política Económica do Governo? (Razões Económicas de

uma Crítica), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949 _____ Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimento contra depoimento (Primeira

Série), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949 _____ Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimentos (Segunda Série), Lisboa, Ed.

SCGNM, 1949 _____ Campanha Eleitoral da Oposição: Depoimentos (Terceira Série), Lisboa, Ed.

SCGNM, 1949 _____ Às Mulheres de Portugal (Colectânea dalguns Discursos Pronunciados para

Propaganda da Candidatura), Lisboa, Ed. SCGNM, 1949 ABREU, José de, «Depoimento de José de Abreu: Para a história. A prisão do Dr. Afonso

Costa» in MARQUES, A. H. R. de Oliveira (coord.), Afonso Costa, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 159–171

Antologia colonial Portuguesa. Política e administração, Vol. 1, Agência Geral das Colónias, 1946

AVILLEZ, Maria João, Soares, Ditadura e Revolução, S.l., Círculo de Leitores, 1996 BARBOSA, Daniel Vieira, Carta aberta ao candidato da oposição, Lisboa,

Imp.Companhia Nacional Editora, 1949 BRANCO, José Emilio de Sant’Anna da Cunha Castel, «Notícia dos trabalhos realizados

pela Direcção dos Estudos de Hydraulica na Índia Portuguesa (Janeiro de 1904 a Março de 1906)» in O clima da Índia portuguesa, Bastorá, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1921

BRÁSIO, António (ed.), Spiritana Monumenta Historica: Series Africana 5 Angola, Vol. V (1904-1967), Pittsburgh, Pa & Louvain, Duquesne University Press & Editions E. Nauwelaerts, 1971

BROCHADO, Costa, O Sr. Norton de Matos e a sua candidatura, 3ª edição, Lisboa, Portugália Editora, 1948 Cartilha do Eleitor, Lisboa, Serviços Centrais da Candidatura, 1949 CASTRO, Mário de, Ideário republicano, S.l., Edição da “Seara Nova”, 1931 COELHO, A. de Paula, et alia (ed.), Portugal na primeira guerra mundial (1914-

1918), Tomo 1, As negociações diplomáticas até à declaração de guerra, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995

_____ Portugal na primeira guerra mundial (1914-1918), Tomo 2, As negociações

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451

diplomáticas e a acção militar na Europa e em Africa, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997

Congresso Mç Nacional realisado no Porto nos dias 19, 20, 21, 22 e 23 de Junho de 1914 (e v ): Relatorio, 1914

Constituição do Grande Oriente Lusitano Unido Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Tipografia do Grémio Lusitano, 1926

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N.B. Esta dissertação corresponde à aprovada pelo júri, tendo sido feita apenas uma correcção

muito pontual de gralhas que acarretou ligeiras alterações a nível da paginação.