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    Nossa Obsoleta Mentalidade de Mercado

    Karl Polanyi

    Our Obsolete Market Mentality, by Karl Polanyi

    Thomas Victor Conti1

     (Tradutor) – Email: [email protected] Originalmente publicado em 10 de abril de 2013, dividido em seis partes no blog pessoal do tradutor, oBlog Thomas Conti ( http://thomasconti.blog.br ).

    Breve introdução à Karl Polanyi e sua proposta neste texto

    Karl Polanyi foi um importante cientista social em seu sentido mais amplo, queatuou em diversas áreas e influenciou muito seus campos de estudo, em especial aantropologia econômica no século XX. O artigo que se segue, Our Obsolete Market

     Mentality, escrito por ele em 1947, ainda não havia sido traduzido para o português noBrasil.2 Encarreguei-me pessoalmente de traduzi-lo, na esperança de que algumas de suasreflexões sejam retomadas para pensarmos o presente.

    Tendo em vista o pensamento crítico, segundo o antropólogo Arensberg, asclassificações empíricas de Polanyi seriam “a primeira ruptura com as interpretações apriori, não-empíricas” para o estudo das relações humanas de troca (cit. “Trade and

     Markets in the Early Empires”, p. 99, no capítulo ‘Anthropology as History’, por ConradM. Arensberg). Polanyi estudou profundamente diversas sociedades primitivas ao redor

    do mundo, bem como as organizações do passado da Europa, donde extrai elementos paraquebrar paradigmas sobre como olhamos para o passado e como entendemos o presente.

    Estarei colocando notas de rodapé adicionais para explicar termos ou darreferências auxiliares, uma vez que o artigo é na verdade uma síntese e um avanço aoestudo maior do autor, o livro A Grande Transformação, publicado em 1944, assim comobebe de outros grandes estudos de antropologia de Polanyi (que infelizmente aindadesconheço em detalhe).

    Caso alguma parte não fique clara, apareçam problemas ou críticas, peço queentrem em contato através de meu email pessoal ou nos comentários ou formulário de

    contato em meu blog. A bibliografia que consta no fim do artigo é apenas uma lista das

    1 Mestrando em Desenvolvimento Econômico na área de História Econômica pela Universidade Estadualde Campinas (UNICAMP) e graduado em Ciências Econômicas pela mesma instituição.2  Apenas depois de ter traduzido praticamente o artigo inteiro tomei conhecimento de que existe umatradução feita para o português de Portugal em 1978. Comparei o meu trabalho com aquele e não concordeicom muitas traduções que foram feitas ali: juntaram-se parágrafos, palavras extras foram colocadas diversasvezes, termos que o autor não utilizou, dentre outras coisas, de modo que segui com minha tradução diretodo inglês e usei a tradução de Portugal apenas como parâmetro de comparação. Apenas para citar umexemplo: na versão portuguesa o título “Our Obsolete Market Mentality”  foi traduzido para “NossaObsoleta Mentalidade Mercantil”, que para nós traz um sentido equivocado de algo do passado, associadoao mercantilismo ou o capitalismo predominantemente comercial, quando na verdade Polanyi se refere à

    mentalidade gestada em meio ao que ele chama de uma economia de mercado, ou uma economiacaracterizada por um sistema de mercados autorreguláveis. O termo mais correto para “mercantil” em inglêsseria “mercantile”, termo que o autor não utiliza em todo o texto.

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    obras que o autor cita ao longo do texto ou que eu tenha citado nas notas de rodapé paraauxiliar alguma explicação.

    Nossa Obsoleta Mentalidade de Mercado

    A Civilização deve Achar um Novo Padrão de Pensamento

    O primeiro século da Era da Máquina está se encerrando num ambiente de medoe agitação.3  Seu fabuloso sucesso material foi devido à pronta, na realidade atéentusiástica, subordinação do homem às necessidades da máquina.

    O capitalismo liberal foi com efeito a resposta inicial do homem ao desafio daRevolução Industrial. De modo a gerarmos o escopo necessário para o uso de máquinaspoderosas e elaboradas, transformamos a economia humana em um sistema auto-reguladode mercados, e direcionamos nosso pensamentos e valores para os moldes dessa únicainovação.

    Hoje, começamos a duvidar da verdade de alguns desses pensamentos e davalidade de alguns desses valores. Fora dos Estados Unidos, dificilmente pode-se dizerque o capitalismo liberal ainda existe.4 Como organizar a vida humana em uma sociedadeda máquina é a questão que nos confronta, recolocada. Por trás do tecido gasto do

    capitalismo competitivo eleva-se o porte de uma civilização industrial, com a suaparalisante divisão do trabalho, padronização da vida, supremacia de mecanismo sobreorganismo, e da organização sobre a espontaneidade. A própria ciência é assombrada pelainsanidade.5 Essa é a preocupação duradoura.

    Nenhuma mera reversão aos ideais de um século passado pode nos mostrar ocaminho. Devemos afrontar o futuro, ainda que isso possa envolver-nos em uma tentativade deslocar o lugar da indústria na sociedade, de modo que o fator externo, da máquina,possa ser absorvido. A busca por uma democracia industrial não é meramente a busca poruma solução dos problemas do capitalismo, como a maioria das pessoas imagina. É a

    3 Polanyi considera a “Era da Máquina”, ou (nos termos do próprio) a era em que o mercado passou a regeros movimentos da sociedade, como sendo entre 1834 e 1846. Veremos a explicação sobre isso na discussãoempírica que o autor faz no tópico “Fatos” mais à frente. Nota do Tradutor.4 O texto original foi publicado em 1947 e dá sequência ao livro “A Grande Transformação” escrito em1944. Nessa época, o regime nazista na Alemanha pregava o ódio tanto ao capitalismo quanto aocomunismo; a URSS de Stalin obviamente tampouco era simpática ao capitalismo; na Europa, a década de30, herdeira da Crise de 29, e as economias de guerra da década de 40, com sua posterior reconstrução,foram a derrocada do ideal de não-intervenção do governo na economia. Para saber mais, ver: Hobsbawm,Eric. “Era dos Extremos - o breve século XX”, cap. 4: “A Queda do Liberalismo”. Nota do Tradutor.

    5 Vale lembrar: em 1945, os Estados Unidos lançavam as bombas atômicas “Fat Man” e “Little Boy” sobreas cidades japonesas de Nagasaki e Hiroshima, respectivamente. Entre 150 e 240 mil pessoas morreram.Nota do Tradutor.

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    busca por uma resposta à própria indústria. Aqui jaz o problema concreto da nossacivilização.

    Tal nova ordenação requer uma liberdade interior para qual estamos muito malpreparados. Nós nos encontramos imbecilizados pela herança de uma economia de

    mercado que nos legou visões ultra-simplificadas da função e o papel do sistemaeconômico na sociedade. Se a crise é para ser superada, devemos recapturar uma visãomais realista do mundo humano e moldar nosso propósito comum à luz dessaaveriguação.

    O industrialismo é um rebento precariamente enxertado sobre a duradouraexistência da humanidade. O resultado do experimento ainda está pendendo na balança.Mas o homem não é um ser simples e pode morrer em mais de uma forma. A questão daliberdade individual, tão apaixonadamente levantada na nossa geração, é apenas umaspecto desse angustiante problema. Na verdade, ela faz parte de uma necessidade muitomais ampla e profunda – a necessidade de uma nova resposta ao desafio total da máquina.

    A Heresia Fundamental

    Nossa condição pode ser descrita nos seguintes termos:

    A civilização industrial ainda pode aniquilar o homem. Mas como a ventura deum ambiente progressivamente artificial não pode, não vai, e, na verdade, não deveria servoluntariamente descartada, a tarefa de adaptar a vida em tal meio aos requerimentos da

    existência humana deve ser resolvida se for para o homem continuar na terra. Ninguémpode antever se tal ajuste é possível, ou se o homem deve perecer na tentativa. Daí o tomsombrio da questão.

    Enquanto isso, a primeira fase da Era da Máquina correu o seu caminho. Elaenvolveu uma organização da sociedade que derivou seu nome da sua instituição central,o mercado. Esse sistema está em decadência. Contudo, nossa filosofia prática foiesmagadoramente moldada por esse episódio espetacular. Novas noções sobre o homeme a sociedade tornaram-se correntes e ganharam o estatuto de axiomas. Aqui estão elas:

    Quanto ao homem, nós fomos levados a aceitar a heresia que suas motivações

    podem ser descritas como “materiais” e “ideais”, e que os incentivos sobre os quais a vidacotidiana está organizada emergem de motivos “materiais”. Tanto o utilitarismo liberalquanto o marxismo vulgar favoreceram tais visões.

    Ao que concerne à sociedade, semelhante doutrina colocada em consideração foique suas instituições eram “determinadas” pelo sistema econômico. Essa opinião foiainda mais popular entre os marxistas do que entre os liberais.

    Sob uma economia de mercado ambas as proposições eram, evidentemente,verdadeiras. Mas apenas em tal economia. No que concerne ao passado, tal visão não eramais que um anacronismo. No que corne ao futuro, ela era um mero preconceito. Porém

    sob a influência das atuais escolas de pensamento, reforçadas pela autoridade da ciência

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    e da religião, da política e dos negócios, esses fenômenos estritamente circunscritos notempo foram considerados como atemporais, como transcendendo a era do mercado.

    Para superar essas doutrinas, que restringem nossas mentes e almas e muitoaprimoram a dificuldade do ajustamento necessário para sobrevivermos, pode requerer

    nada menos do que uma reforma da nossa consciência.

    O Trauma do Mercado

    O nascimento do laissez-faire6  administrou um choque às visões do homemcivilizado sobre si mesmo, de cujos efeitos ele nunca se recuperou inteiramente. Apenasmuito gradualmente nós estamos dando conta do que nos aconteceu tão recentementequanto a um século atrás.

    A economia liberal, essa primeira reação do homem à máquina, foi uma rupturaviolenta com as condições que a precederam. Uma reação em cadeia foi iniciada – o queantes eram meros mercados isolados foram transmutados em um sistema de mercadosautorreguláveis. E com a nova economia, veio a surgir uma nova sociedade.

    O passo crucial foi esse: o trabalho e a terra foram transformados em mercadorias,isto é, eles foram tratados como se fossem produzidos para a venda. Evidentemente, elesnão eram realmente mercadorias, pois eles ou não eram de modo algum produzidos (comoa terra) ou, quando o eram, não para a venda (como o trabalho).

    Contudo, nunca houve uma ficção tão profundamente eficaz como essa. Pela livrecompra e venda de terra e de trabalho, o mecanismo do mercado foi aplicado a eles. Agorahavia uma oferta de trabalho, e demanda para ele; havia oferta de terra, e demanda paraela. Consequentemente, havia um preço de mercado pelo uso da força de trabalho,chamado salário, e um preço de mercado pelo uso da terra, chamado aluguel. Trabalho eterra foram providos com mercados próprios, semelhantes ao das próprias mercadoriasque eram produzidas com o auxílio deles.

    O verdadeiro alcance de tal passo pode ser aferido se nós lembrarmos que otrabalho é apenas outro nome para o homem, e terra para a natureza. A ficção damercadoria entregou o destino do homem e da natureza ao jogo de um autômato correndo

    em seu próprio ritmo e governado por suas próprias leis.

    Nada similar jamais fora testemunhado antes. Sob o regime mercantilista, emboraele deliberadamente pressionasse para a criação de mercados, o princípio contrário aindaoperava. Trabalho e terra não foram confiados ao mercado; eles formavam parte de umaestrutura orgânica da sociedade. Onde a terra era comercializável, apenas a determinaçãodo preço era, como regra, legada às partes; onde o trabalho era sujeito ao contrato, ossalários eram usualmente avaliados pela autoridade pública. A terra ficava sob o costume

    6 Do francês, significa “deixe-os fazer” - expressão faz referência a um ambiente econômico caracterizadopelo livre-mercado, sem tarifas, subsídios e monopólios. O termo foi usado pela primeira vez no séculoXVIII mas se popularizou apenas no século XIX. Nota do Tradutor.

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    do feudo, monastério e vilarejo, sob limitações da common-law7 quanto aos direitos depropriedade; o trabalho era regulado por leis contra a mendigagem e vadiagem, estatutosde trabalhadores e artesãos, leis dos pobres, ordenanças de guildas e de municípios. Comefeito, todas as sociedades conhecidas aos antropólogos e historiadores restringiam osmercados às mercadorias no sentido próprio do termo.

    A economia de mercado portanto criou um novo tipo de sociedade. O sistemaeconômico ou produtivo foi aqui confiado a um mecanismo automático. Um mecanismoinstitucional controlava os seres humanos em suas atividades diárias assim como osrecursos da natureza.

    O instrumento do bem-estar material estava sobre o controle único dos incentivosda fome e do ganho – ou, mais precisamente, medo de ficar sem as necessidades vitais, eexpectativas de lucro. Desde que nenhuma pessoa desprovida de propriedade pudessesatisfazer sua súplica por comida sem antes vender seu trabalho no mercado, e desde quenenhuma pessoa proprietária fosse prevenida de comprar no mercado mais barato evender no mais caro, o moinho cego traria quantidades cada vez maiores de mercadoriaspara o benefício da raça humana. O medo de morte pela fome entre os trabalhadores, e atentação de lucro entre os empregadores, manteriam o vasto estabelecimento girando.

    Dessa forma passou a existir uma “esfera econômica” nitidamente delimitada dasoutras instituições da sociedade. Como nenhum agregado humano pode sobreviver semum aparato produtor funcional, sua personificação em uma esfera distinta e separada teveo efeito de fazer o “resto” da sociedade dependente dessa esfera. Essa zona autônoma,por sua vez, era regulada por um mecanismo que controlava o seu funcionamento. Comoresultado, o mecanismo de mercado tornou-se determinante para a vida do corpo social.

    Não admira que o emergente agregado humano era uma sociedade “econômica” em umgrau nunca antes sequer aproximado. Os “Motivos econômicos” reinaram supremos emum mundo próprio a eles, e o indivíduo foi levado a agir sobre eles sob a pena de seratropelado pelo impiedoso8 mercado.

    Tal conversão forçada para uma perspectiva utilitária fatidicamente deformou oentendimento do homem Ocidental sobre si mesmo.

    Fome e Ganho Entronizados

    Esse novo mundo de “motivos econômicos” foi baseado em uma falácia.

    7 Common Law refere-se a um sistema de direito que tem origem na concepção do direito medieval inglêsque, ao ser ministrado pelos tribunais do reino, refletia os costumes comuns dos que nele viviam. Estesistema legal vigora no Reino Unido e em boa parte dos países que foram colonizados por este país. Aocontrário da Lei Civil ou Codificada onde os estatutos são adotados através do legislativo ou parlamentoe/ou regulamentos emitidos pelo poder executivo com base nos estatutos parlamentares, na Common Lawa aplicação de normas e regras não estão escritas mas sancionadas pelo costume ou pela jurisprudência.

    Nota do Tradutor.8 No original em inglês o termo utilizado pelo autor foi “juggernaut”, sem tradução direta para o portuguêsformal, mas que significaria “uma força impiedosamente destruidora e imparável”. Nota do Tradutor.

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    Intrinsecamente, a fome e o ganho não são mais “econômicos” que amor ou ódio,orgulho ou preconceito. Nenhum motivo humano é per se econômico. Não há algo comouma experiência econômica sui generis no sentido em que o homem pode ter umaexperiência religiosa, estética, ou sexual. Esses últimos dão origem a motivos que deforma ampla buscam evocar experiências similares. Com relação à produção material

    esses termos carecem de significado auto evidente.

    O fator econômico, que subjaz toda a vida social, não dá mais origem a incentivosdefinidos do que a lei universal da gravitação, igualmente universal. Certamente que, senós não comermos, devemos perecer, da mesma forma como se nós fossemos esmagadossob o peso de uma pedra caindo. Mas as dores da fome não são automaticamentetraduzidas em um incentivo a produzir. A produção não é um arranjo individual, mascoletivo. Se um indivíduo está faminto, não há nada definido que ele possa fazer. Feitodesesperado, ele pode furtar ou roubar, mas tal ação dificilmente pode ser chamada deprodutiva. Com o homem, o animal político, tudo é dado por circunstâncias sociais, não

    naturais. O que fez o século XIX pensar em fome e ganho como “econômicos” foisimplesmente a organização da produção sob uma economia de mercado.

    A fome e o ganho estão ligados com a produção através da necessidade de “ganharuma renda”. Pois sob tal sistema, o homem, para manter-se vivo, é compelido a comprarbens no mercado por meio de uma renda derivada da venda de outros produtos nomercado. O nome dessas rendas – salários, aluguel, juros – variam conforme o que éoferecido para a venda: uso da força de trabalho, da terra, ou do dinheiro; a renda chamadalucro – a remuneração do empresário – deriva da venda de bens que atingem um preçomaior que os bens que vão na produção deles. Assim todas as rendas derivam de vendas,e todas as vendas – direta ou indiretamente – contribuem para a produção. A última é,com efeito, incidental ao ganho de uma renda. Tão logo um indivíduo está “ganhandouma renda”, ele está, automaticamente, contribuindo para a produção.

    Obviamente, o sistema funciona apenas enquanto os indivíduos têm uma razãopara saciarem-se na atividade de “ganhar uma renda”. Os motivos da fome e do ganho –separadamente e conjuntamente – provém-los com tal razão. Esses dois motivos sãoassim orientados à produção e, por consequência, são denominados “econômicos”. Aaparência nos leva a pensar que fome e ganho são os incentivos em que qualquer sistemaeconômico deve se assentar.

    Essa suposição não tem qualquer fundamento. Se passarmos pelas váriassociedades humanas, veremos que fome e ganho não eram considerados incentivos paraa produção, e quando assim o eram, estavam fundidos com outros motivos poderosos.

    Aristóteles tinha razão: o homem não é um ser econômico, mas um ser social. Elenão procura salvaguardar seu interesse individual na aquisição de posses materiais, massim em garantir a sua consideração social, seu status social, seus ativos sociais. Elevaloriza possessões primariamente como meios para esse fim. Seus incentivos sãodaquele caráter “misto” que associamos com o esforço de ganhar aprovação social –esforços produtivos não são mais que incidentais a esse esforço. A economia do homemestá, como regra, submersa nas suas relações sociais. A mudança disso para uma

    sociedade que era, pelo contrário, submersa no sistema econômico foi umdesenvolvimento inteiramente novo.

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    Fatos

    A evidência de fatos, sinto, deveria a esse ponto ser trazida a tona.Em primeiro lugar, existem as descobertas da economia primitiva. Dois nomes se

    sobressaem: Bronislaw Malinowski e Richard Thurnwald. Eles e mais algunspesquisadores revolucionaram nossas concepções nesse campo e, ao fazê-lo, fundaramuma nova disciplina. O mito do selvagem individualista fora descreditado há muitotempo. Nem o egoísmo bruto, nem a duvidosa propensão ao escambo, tráfico e troca, nemmesmo a tendência de prover para si mesmo estava em evidência. Mas igualmentedescreditada estava a lenda da psicologia tipo comunista do selvagem, sua suposta faltade apreço pelos seus interesses pessoais. (Em geral, aparentava-se que o homem foipraticamente o mesmo através das eras. Tomando suas instituições não em isolamento,mas em suas inter-relações, ele estava na maioria das vezes se comportando de umamaneira grandemente compreensível para nós.) O que aparecia como “comunismo” era ofato de que o sistema produtivo ou econômico estava usualmente arranjado de forma tala não ameaçar nenhum indivíduo com a inanição. Seu lugar na fogueira do acampamento,sua parcela nos recursos comuns, estava segura a ele, seja qual papel ele possa ter tido nacaçada, pasto, lavoura ou jardinagem.

    Aqui estão alguns exemplos: sob o sistema kraal-land9 dos Kaffirs, “a destituiçãoé impossível: seja quem for necessitar de assistência, recebe-a sem questionamentos” (L.P. Mair, An African People in the Twentieth Century, 1934). Nenhum Kwakiutl “jamais

    passava pelo menor risco de ficar com fome” (E. M. Loeb, The Distribution and Functionof Money in Early Society, 1936). “Não existe morte pela fome em sociedades vivendona margem da subsistência” (M. J. Herkshovits, The Economic Life of Primitive Peoples,1940). Com efeito, o indivíduo não está em perigo de passar fome a menos que acomunidade como um todo esteja em uma situação semelhante. É essa ausência deameaça de privação individual que faz a sociedade primitiva, em certo sentido, maishumana que a sociedade do século XIX, e ao mesmo tempo menos “econômica”.

    O mesmo se aplica ao estímulo ao ganho individual. Novamente, algumascitações: “A característica distintiva da economia primitiva é a ausência de qualquerdesejo de realizar lucros da produção e da troca” (R. Thumpwald, Economics in PrimitiveCommunities, 1932). “O ganho, que é usualmente o estímulo ao trabalho nascomunidades mais civilizadas, nunca atua como um impulso ao trabalho sobre ascondições nativas originais” (B. Malinowski,  Argonauts of the Western Pacific, 1930).Se as assim chamadas motivações econômicas fossem naturais ao homem, nós teríamosque julgar todas as sociedades primitivas como completamente não naturais.

    Em segundo lugar, não existe diferença entre sociedades primitivas e civilizadasnesse aspecto. Seja se voltarmos à antiga cidade-estado, império despótico, feudalismo,vida urbana do século XIII, regime mercantil do século XVI, ou o regulacionismo doséculo XVIII – invariavelmente o sistema econômico é encontrado submerso no social.

    9 Sistema de partilha de terras. Nota do tradutor.

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    Os incentivos emergem de uma grande variedade de fontes, como o costume e a tradição,o dever público e o comprometimento individual, a observância religiosa e a aliançapolítica, a obrigação jurídica e a regulação administrativa tal como estabelecida pelopríncipe, pela administração municipal, ou pela guilda. Hierarquia e status, compulsão dalei e ameaça de punição, exaltação pública e reputação privada, garantem que o indivíduo

    contribua sua parte para a produção.

    Medo da privação ou amor ao lucro não precisam estar de todo ausentes. Mercadosocorrem em todas as várias sociedades, e a figura do mercador é familiar a muitos tiposde civilização. Mas mercados isolados não se associam em uma economia. O motivo doganho era específico aos mercadores, assim como o valor para o cavaleiro, a piedade parao sacerdote, e o orgulho para o artesão. A noção de tornar universal o motivo do ganhonunca entrou na cabeça de nossos ancestrais. Em nenhum momento antes do segundoquartil do século XIX os mercados foram mais que um traço subordinado na sociedade.

    Em terceiro lugar, houve a surpreendente rapidez da mudança. A predominânciados mercados emergiu não como uma questão qualitativa, e não gradual. Os mercadosatravés dos quais unidades familiares autossuficientes livravam-se de seus excedentesnem direcionavam a produção nem provinham ao produtor a sua renda. Esse é o casoapenas em uma economia de mercado onde todas as rendas derivam das vendas, emercadorias são obtidas exclusivamente pela compra. Um mercado livre de trabalhonasceu na Inglaterra apenas a por volta de um século atrás. A má reputada Poor Law

     Reform (1834)10 aboliu as provisões improvisadas oferecidas aos pobres pelos governospatriarcais. A casa dos pobres foi transformada de um refúgio dos destituídos em umaestadia de vergonha e tortura mental comparadas as quais até a fome e a miséria erampreferíveis. Morrer de fome ou trabalhar foram as alternativas deixadas aos pobres. Assimum mercado nacional competitivo de trabalho foi criado. Dentro de uma década, o Bank

     Act (1844) estabeleceu o princípio do padrão ouro; a fabricação do dinheiro foi tirada dasmãos do governo independentemente do seu efeito sobre o nível de emprego.Simultaneamente, a reforma da legislação fundiária mobilizou a terra e a revogação dasCorn Laws  (1846)11  criou uma reserva mundial de grãos, desse modo tornando odesprotegido camponês fazendeiro continental sujeito aos caprichos do mercado.

    Assim foram estabelecidos os três dogmas do liberalismo econômico, o princípiosobre o qual a economia de mercado foi organizada: que o trabalho deveria encontrar seupreço no mercado; que o dinheiro deveria ser suprido por um mecanismo auto ajustável;

    que as mercadorias deveriam ser livres para fluir de país a país independentemente dasconsequências – em suma, um mercado de trabalho, o padrão ouro, e o comércio livre.Foi induzido um processo auto inflamatório, como resultado do qual o antigo padrão demercado, inofensivo, expandiu-se para uma enormidade sociológica.

    10 Reforma da Lei dos Pobres inglesa. Para Polanyi, a antiga Lei dos Pobres, que objetivava dar algumamparo às massas de pobres inglesa, consistia em um freio à determinação do mercado sobre a sociedade.Nota do tradutor.

    11 As Leis do Trigo. Formavam uma barreira protecionista contra a importação de grãos do exterior, paraPolanyi, isso representava a garantia de certa estabilidade à produção agrícola nacional inglesa e limitavao alcance das flutuações de mercado sobre a produção material. Nota do tradutor.

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    O Nascimento de uma Ilusão

    Esses fatos esboçam a genealogia de uma sociedade “econômica”. Sob taiscondições o mundo humano deve aparecer como determinado por motivações

    “econômicas”. É fácil ver porquê.

    Isole qualquer motivação que queira, e organize a produção de tal maneira queessa motivação seja o incentivo do indivíduo a produzir, e você terá induzido a imagemdo homem como totalmente absorvido por esse motivo particular. Seja esse motivo oreligioso, o político, ou o estético; seja o orgulho, o preconceito, o amor, ou a inveja; e ohomem vai aparecer como essencialmente religioso, político, estético, orgulhoso,preconceituoso, absortos no amor ou inveja. Outros motivos, por contraste, vão aparecerdistantes e sombrios já que não podem ser confiados à operar o negócio vital da produção.Esse motivo particular selecionado representará o homem “real”.

    Acontece que os seres humanos são capazes de trabalhar por uma grandequantidade de razões desde que as coisas sejam organizadas de acordo. Monges trocavampor motivos religiosos, e monastérios tornaram-se os maiores estabelecimentos de trocana Europa. A troca Kula dos Ilhéus Trobriand, um dos mais intrincados arranjos deescambo conhecidos do homem, é primariamente uma busca estética. A economia feudalera regida conforme os princípios do costume. Com os Kwakintl, o objetivo principal daindústria parece ser a satisfação de uma questão de honra. Sob o regime mercantildespótico, a indústria era normalmente planejada para servir o poder e a glória. Porconseguinte, nós tendemos a pensar nos monges ou servos, Melanésios ocidentais, osKwakiutl, ou chefes de Estado do século XVII, como regidos pela religião, estética,costume, honra ou política, respectivamente.

    Sob o capitalismo, cada indivíduo tem que ganhar uma renda. Se ele for umtrabalhador, tem que vender sua força de trabalho ao preço corrente; se for umproprietário, tem que realizar um lucro tão alto quanto conseguir, pois sua permanência

     junto aos seus semelhantes vai depender do nível da sua renda. A fome e o ganho – mesmose indiretamente – os fazem arar e semear, fiar e tecer, minerar carvão, e pilotar aviões.Consequentemente, membros de tal sociedade vão pensar de si mesmos como governadospor essas motivações gêmeas.

    Mas na realidade o homem nunca foi tão egoísta quanto a teoria exigia. Ainda queo mecanismo de mercado tenha trazido à tona sua dependência dos bens materiais,motivações “econômicas” nunca formaram com ele o único incentivo a trabalhar. Em vãoele foi incitado por economistas e moralistas utilitários afins à descontar dos negóciostodos os outros motivos além daqueles “materiais”. Numa investigação mais minuciosa,ele ainda se encontraria agindo por motivações marcadamente “mistas”, não excluindoaqueles do dever quanto a si mesmo e aos outros – e talvez, secretamente, até mesmoapreciando o trabalho pelo trabalho.

    Entretanto, não estamos aqui preocupados com motivos reais, mas aquelesassumidos, não com a psicologia, mas com a ideologia dos negócios. Pois as visões da

    natureza humana são baseadas não nesses primeiros, mas nos últimos. Pois uma vez quea sociedade espere um determinado comportamento por parte de seus membros, e as

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    instituições prevalecentes tornam-se mais ou menos capazes de forçar um talcomportamento, as opiniões sobre a natureza humana vão tender a espelhar esse idealquer ele se aproxime da realidade ou não.

    Dessa forma, a fome e o ganho foram definidos como motivações “econômicas”,

    e era suposto que o homem agiria na base deles em sua vida cotidiana, enquanto suasoutras motivações apareciam como mais etéreas e distantes da existência mundana. Honrae orgulho, obrigação civil e dever moral, até mesmo auto-respeito e decência comum,eram agora vistos como irrelevantes à produção, e foram significativamente resumidosna palavra “ideal”. Desse modo acreditou-se que o homem consistia de dois componentes,um mais próximo da fome e do ganho, o outro mais próximo da honra e do poder. Umera “material”, o outro “ideal”; um era “econômico”, o outro “não-econômico”; um“racional”, outro “não-racional”. Os Utilitaristas foram tão longe a identificar doisconjuntos de termos, assim dotando o lado “econômico” do caráter do homem com a aurade racionalidade. Aquele que se recusasse a imaginar que ele estava agindo apenas pelo

    ganho era assim considerado não apenas imoral, como também insano.

    Determinismo Econômico

    O mecanismo de mercado ademais criou a ilusão do determinismo econômicocomo uma regra geral para toda a sociedade humana.

    Sob uma economia de mercado, evidentemente, essa lei se sustenta. De fato, nelao funcionamento do sistema econômico não apenas “influência” o resto da sociedade,mas o determina, assim como num triângulo os lados não apenas influenciam os ângulos,mas os determinam.

    Considere a estratificação das classes. A oferta e a demanda no mercado detrabalho eram idênticas com as classes de trabalhadores e empregadores, respectivamente.As classes sociais do capitalismo, donos de terra, inquilinos, brokers, mercadores,profissionais, e assim por diante, eram delimitadas pelos respectivos mercados para aterra, dinheiro, e capital e seus uses, ou pelos seus vários serviços. O rendimento dessasclasses sociais era fixado pelo mercado, e sua hierarquia e posição pelas suas rendas.

    Essa foi uma reviravolta completa da prática secular. Na famosa frase de Maine,os “contratos” substituíram o “status”; ou, como Tönnies preferia colocar, a “sociedade”substituía a “comunidade”; ou, nos termos do presente artigo, ao invés de o sistemaeconômico estar anexado nas relações sociais, essas relações sociais estavam agoraanexadas ao sistema econômico.

    Enquanto o mecanismo de mercado determinava diretamente as classes sociais,outras instituições eram-no indiretamente. O Estado e o governo, o casamento e a criaçãode filhos, a organização da ciência e da educação, da religião e das artes, a escolha daprofissão, as formas de habitação, o molde dos assentamentos, a própria estética da vidaprivada – tudo tinha que cumprir o padrão utilitário, ou ao menos não interferir com o

    funcionamento do mecanismo de mercado. Mas como muito poucas atividades humanaspodem ser carregadas no vácuo, até mesmo um santo precisando de apoio, o efeito

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    indireto do sistema de mercado chegou muito próximo de determinar o todo da sociedade.Era quase impossível evitar a errônea conclusão de que como homem “econômico” era ohomem “real”, de modo que o sistema econômico era “realmente” a sociedade.

    Sexo e Fome

    Contudo, seria mais verdadeiro dizer que as instituições humanas básicasrepugnam as motivações muito estreitas. Assim como o provisionamento do indivíduo e

    de sua família normalmente não depende da motivação da fome, assim também ainstituição da família não está baseada na motivação sexual.

    O sexo, como a fome, é uma das motivações mais poderosas quando liberada docontrole de outras motivações. É provavelmente por isso que a família, em toda a suavariedade de formas, nunca é permitida centrar-se no instinto sexual, com suasintermitências e caprichos, mas em uma combinação de numerosas motivações efetivasque previnem o sexo de destruir a instituição de que depende tamanha parte da felicidadedo homem. O sexo em si mesmo jamais produzirá nada melhor que um bordel, e mesmoaí ele pode ter que se apoiar em incentivos do mecanismo de mercado. Um sistema

    econômico de fato dependente da fome como mola principal seria quase tão perversoquanto um sistema familiar baseado apenas na crua incitação do sexo.

    Tentar aplicar o determinismo econômico a todas as sociedades humanas é poucomenos do que fantasioso. Nada é mais óbvio para o estudante da antropologia social quea variedade de instituições descobertas como compatíveis com instrumentos de produçãopraticamente idênticos. Apenas a partir de quando foi permitido ao mercado triturar otecido social do homem em uma uniformidade inexpressiva de erosão selênica tem acriatividade institucional do homem caído em inatividade. Não surpreende que suaimaginação social mostre sinais de fadiga. Pode-se chegar a um ponto onde ele não maisserá capaz de recuperar sua elasticidade, o poder e a riqueza imaginativa, da sua dotação

    selvagem.

    Nenhum protesto de minha parte, percebo, irá me salvar de ser tomado como um“idealista”. Pois aquele que deprecia a importância das motivações “materiais” deve, aoque parece, estar contando com a força daquelas “ideais”. Ainda que não seja possívelum equívoco pior. A fome e o ganho não têm nada de especificamente “material” sobreeles. Orgulho, honra, e poder, por outro lado, não são necessariamente motivações“superiores” às da fome e do ganho.

    A dicotomia em si, afirmamos, é arbitrária. Permita-nos mais uma vez demonstrara analogia do sexo. Seguramente, uma distinção significativa entre motivações “elevadas”

    e “baixas” pode ser traçada aqui. Contudo, seja a fome ou o sexo, é perniciosoinstitucionalizar a separação dos componentes “materiais” e “ideais” da existência

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    humana. No que concerne ao sexo, essa verdade, tão vital para a completude essencial dohomem, tem sido reconhecida por todo o tempo; ela está na base da instituição docasamento. Mas no igualmente estratégico campo da economia, ela tem sidonegligenciada. Esse último campo foi “separado” da sociedade como o reino da fome edo ganho. Nossa dependência animal diante da comida tem se tornado explícita e o medo

    nu do esfomeamento foi permitido correr solto. Nossa humilhante servidão ao “material”,que todas as culturas humanas são projetadas para mitigares, foi deliberadamente tornadamais rigorosa. Isso está na raiz da “doença da sociedade aquisitiva” que Tawney alertara.E o gênio de Roberto Owen estava em seu ápice quando, um século antes, ele descreveuo motivo do lucro como “um princípio inteiramente desfavorável à felicidade pública edo indivíduo”.

    A Realidade da Sociedade

    Eu argumento pela restauração daquela união de motivações que deveria informaro homem na sua atividade diária como um produtor, pela reabsorção do sistemaeconômico na sociedade, pela adaptação criativa dos nossos modos de vida em umambiente industrial.

    Em todos esses casos, a filosofia do laissez-faire, com seu corolário de umasociedade de mercado, cai por terra. Ela é responsável pela divisão da unidade vital dohomem no homem “real”, debruçado sobre valores materiais, e seu “ideal” melhor eu. Elaestá paralisando nossa imaginação social incentivando mais ou menos inconscientemente

    o preconceito do “determinismo econômico”. Ela fez o seu serviço naquela fase dacivilização industrial que está atrás de nós. Ao preço de empobrecer o indivíduo, elaenriqueceu a sociedade. Hoje, estamos diante da tarefa vital de restaurar a completude davida à pessoa, mesmo que isso possa significar uma sociedade tecnologicamente menoseficiente. Em diferentes países de diferentes modos, o liberalismo clássico está sendodescartado. Na Direita e Esquerda e Centro, novas avenidas estão sendo exploradas. OsSocial-Democratas britânicos, New Dealers americanos, e também os fascistas europeuse anti-New Dealers americanos das várias marcas “corporativistas”, rejeitam a utopialiberal. Nem o humor político presente de rejeição à tudo que é russo cega-nos daconquista dos russos em ajuste criativo a alguns dos aspectos fundamentais de um

    ambiente industrial.Em bases gerais, a expectativa Comunista da “degeneração do Estado” parece-me

    combinar elementos de utopismo liberal com indiferente prática às liberdadesinstitucionais. Quanto ao Estado em degeneração, é impossível negar que a sociedadeindustrial é uma sociedade complexa, e nenhuma sociedade complexa pode existir semum poder organizado no centro. Contudo, novamente, esse fato não é desculpa para a oestigma dos Comunistas sobre a questão das liberdades institucionais concretas.

    É nesse nível de realismo que o problema da liberdade individual deveria serencontrado. Nenhuma sociedade humana é possível na qual o poder e a compulsão

    estejam ausentes, nem é um mundo no qual a força não tem função. A filosofia liberal

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    deu uma falsa direção aos nossos ideais ao sugerir uma promessa de atendimento a taisexpectativas intrinsecamente utópicas.

    Mas sob o sistema de mercado, a sociedade como um todo permaneceu invisível.Qualquer um poderia imaginar-se livre da responsabilidade por aqueles atos de

    compulsão por parte do Estado no qual ele, pessoalmente, repudiava, ou pelo desempregoe destituição através das quais ele, pessoalmente, não se beneficiava. Pessoalmente, elepermaneceu desvencilhado nas maldades do poder e do valor econômico. Em boaconsciência, ele poderia negar a realidade deles em nome da sua imaginária liberdade.

    Poder e valor econômico são, de fato, um paradigma da realidade social. Nem opoder nem o valor econômico emergem da escolha humana; a não-cooperação éimpossível no que se refere a eles. A função do poder é garantir aquela medida deconformidade que é necessária para a sobrevivência do grupo: como David Humemostrou, sua fonte última é a opinião - e quem poderia abster-se de manter opiniões deuma forma ou de outra? O valor econômico, em qualquer sociedade, garante a utilidadedos bens produzidos; ele é o selo colocado sobre a divisão do trabalho. Sua fonte são osdesejos humanos - e como nós poderíamos esperar não preferir uma coisa à outra?Qualquer opinião ou desejo, não importa em qual sociedade vivamos, nos faráparticipantes na criação do poder e na constituição do valor. Nenhuma liberdade parafazer de outra forma é concebível. Um ideal que baniria o poder e a compulsão dasociedade é intrinsecamente inválido. Ao ignorar essa limitação aos desejos significativosdo homem, a visão de mercado da sociedade revela a sua essencial imaturidade.

    O Problema da Liberdade

    A derrocada da economia de mercado incorre em dois tipos de liberdade: algumasboas, outras ruins.

    Que a liberdade de explorar-se seus companheiros, ou a liberdade de se fazerganhos excepcionais sem um serviço mensurável à comunidade, a liberdade de aprisionarinovações tecnológicas sem que elas sejam usadas para o benefício público, ou a liberdadede lucrar a partir de calamidades públicas secretamente projetadas para auferir umavantagem privada, podem desaparecer juntamente com o livre mercado, são todas para o

    bem.

    Mas a economia de mercado sobre a qual essas liberdades prosperaram tambémproduziu liberdades que nós temos em alta estima. Liberdade de consciência, liberdadede expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher seupróprio emprego - nós as prezamos por elas mesmas. Entretanto, por uma larga medida,elas foram os subprodutos da mesma economia que também foi responsável pelasliberdades para o mau.

    A existência de uma esfera econômica separada na sociedade criou, como se assimsempre o fosse, uma clivagem entre a política e a economia, entre o governo e a indústria,

    que estava na natureza de homem nenhum. Assim como a divisão de soberania entre opapa e o imperador deixou os príncipes medievais em uma condição de liberdade que por

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    vezes beirava a anarquia, assim também a divisão de soberania entre governo e indústriano século XIX permitiu mesmo ao homem pobre experimentar liberdades que em partecompensavam seu estado amaldiçoado.

    O ceticismo atual com respeito ao futuro da liberdade reside nisso. Existem

    aqueles que argumentam, como Hayek, que como instituições livres foram um produtoda economia de mercado, elas devem ceder lugar para a servidão caso essa economiadesapareça. Existem outros, como Burnham, que argumentam sobre a inevitabilidade dealguma forma nova de servidão chamada “gerencialismo”.

    Argumentos como esses meramente provam a extensão com que o preconceitoeconomístico ainda é desenfreado. Para tal determinismo, como vimos, é apenas outronome para o mecanismo de mercado. Dificilmente é lógico argumentar sobre os efeitosda ausência desse mecanismo a partir da força derivada da sua presença. E certamenteisso é contrário à experiência Anglo-Saxã. Nem o congelamento dos trabalhos nem oserviço seletivo cancelaram as liberdades da população americana, como qualquer umque passou os anos 1940-1943 nos Estados Unidos pôde testemunhar. A Grã-Bretanhadurante a guerra introduziu em todas as áreas uma economia planejada e livrou-se daseparação entre governo e indústria da qual a liberdade do século XIX emergiu, entretantoas liberdades públicas nunca foram mais seguramente entrincheiradas do que no pontomais alto da emergência. Na verdade, nós teremos precisamente tantas liberdades quantodesejemos criar e proteger. Não existe nenhum fator determinante único na sociedadehumana. Garantias institucionais à liberdade pessoal são compatíveis com qualquersistema econômico. Apenas na sociedade de mercado o mecanismo econômico rebaixoua lei.

    Homem versus Indústria

    O que aparece para a nossa geração como o problema do capitalismo é, narealidade, o problema muito maior da civilização industrial. O liberalista econômico écego a esse fato. Ao defender o capitalismo como um sistema econômico, ele ignora odesafio da Era da Máquina. Ainda assim os perigos que fazem os maiores terremotos hojetranscendem a economia. As preocupações idílicas da quebra de confiança e aTaylorização foram substituídas por Hiroshima. O barbarismo científico está farejandonossos passos. Os alemães estão planejando uma engenhosidade para fazer o Sol emanarraios da morte. Nós, de fato, produzimos uma explosão de raios da morte que obscureceuo Sol. Porém os alemães tinham uma filosofia má, e nós temos uma filosofia humana.Nisso nós deveríamos aprender a enxergar o símbolo da nossa exposição ao perigo.

    Entre aqueles na América que estão cientes das dimensões do problema, duastendências são discerníveis: alguns acreditam em elites e aristocracias, no gerencialismoe na corporação. Eles sentem que toda a sociedade deveria ser mais intimamente ajustadaao sistema econômico, o qual eles desejam que permaneça imutável. Esse é o ideal doAdmirável Mundo Novo, onde cada indivíduo é condicionado a apoiar uma ordem que

    foi projetada para ele pelos que lhe são mais sábios. Outros, pelo contrário, acreditam queem uma sociedade puramente democrática o problema da indústria resolver-se-ia a si

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    mesmo através da intervenção planejada dos próprios produtores e consumidores. Talação consciente e responsável é, de fato, uma das encarnações da liberdade em umasociedade complexa. Porém, como os assuntos deste artigo sugerem, tal empreitada nãopode ser bem sucedida a menos que seja disciplinada por uma visão total do homem e dasociedade muito diferente daquela que herdamos da economia de mercado.

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