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8/9/2019 Nosso racismo um crime perfeito!
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Nosso racismo um crime perfeito!
Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria [Tera-Feira, 18 de Agosto de2009 s 15:15hs]
Frum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de
contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, um pas bem
diferente. O senhor sentiu, quando veio pra c, a questo racial? Como foi
essa mudana para o senhor?
Kabengele - Essas coisas no so to abertas como a gente pensa. Cheguei
aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. No se deparacom o preconceito primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas
vm pouco a pouco, quando se comea a descobrir que voc entra em
alguns lugares e percebe que nico, que te olham e j sabem que no
daqui, que no como nossos negros, diferente. Poderia dizer que esse
estranhamento por ser estrangeiro, mas essa comparao na verdade
feita em relao aos negros da terra, que no entram em alguns lugares ou
no entram de cabea erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns
de meus professores eram especialistas na questo racial. Foi atravs da
academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas nopas. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, j era uma
disciplina sobre a questo racial com meu orientador Joo Batista Borges
Pereira. Depois, com o tempo, voc vai entrar em algum lugar em que est
sozinho e se pergunta: onde esto os outros? As pessoas olhavam mesmo,
inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos.
Porque uma famlia inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho
negro e um filho mestio. Em todos os lugares em que a gente entrava, era
motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre
escondia. Entrvamos em lugares onde geralmente os negros no entram.
A partir da voc comea a buscar uma explicao para saber o porqu e se
aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da
discriminao racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do
Otavio Ianni, do meu prprio orientador e de tantos outros que trabalharam
com a questo. Mas o problema que quando a pessoa adulta sabe se
defender, mas as crianas no. Tenho dois filhos que nasceram na Blgica,
dois no Congo e meu caula brasileiro. Quantas vezes, quando estavam
sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polcia?
Meus filhos estudaram em escola particular, Colgio Equipe, onde
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estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu no ia busc-los na
escola, e quando saam para tomar nibus e voltar para casa com alguns
colegas que eram brancos, eles eram os nicos a ser revistados. No
entanto, a condio social era a mesma e estudavam no mesmo colgio. Por
que s eles podiam ser suspeitos e revistados pela polcia? Essa situao eu
no posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais
velho, que hoje ator, quando comprou o primeiro carro dele, no sei
quantas vezes ele foi parado pela polcia. Sempre apontando a arma para ele
para mostrar o documento. Ele foi instrudo para no discutir e dizer que os
documentos esto no porta-luvas, seno podem pensar que ele vai sacar
uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladro do prprio carro que ele
comprou com o trabalho dele. Meus filhos at hoje no saem de casa para
atravessar a rua sem documento. So adultos e criaram esse hbito, porqueat voc provar que no ladro... A geografia do seu corpo no indica isso.
Ento, essa coisa de pensar que a diferena simplesmente social, claro
que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui tambm vai
junto com o social, no tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo
respondendo questo, por meio da vivncia, com o cotidiano e as coisas
que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da populao negra, e
entendi que a democracia racial um mito. Existe realmente um racismo no
Brasil, diferenciado daquele praticado na frica do Sul durante o regime do
apartheid, diferente tambm do racismo praticado nos EUA, principalmente
no Sul. Porque nosso racismo , utilizando uma palavra bem conhecida, sutil.Ele velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso no quer dizer que faa
menos vtimas do que aquele que aberto. Faz vtimas de qualquer maneira.
Revista Frum - Quando voc tem um sistema como o sul-africano ou um
sistema de restrio de direitos como houve nos EUA, o inimigo est claro.
No caso brasileiro mais difcil combat-lo...
Kabengele - Claro, mais difcil. Porque voc no identifica seu opressor.
Nos EUA era mais fcil porque comeava pelas leis. A primeirareivindicao: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar
polticas pblicas que busquem a promoo da igualdade racial. Aqui mais
difcil, porque no tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis
pra proteger esto na nova Constituio que diz que o racismo um crime
inafianvel. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com
essa lei, a prtica do racismo no era um crime, era uma contraveno. A
populao negra e indgena viveu muito tempo sem leis nem para
discriminar nem para proteger.
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Revista Frum - Aqui no Brasil h mais dificuldade com relao ao sistema
de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?
Kabengele - Tem segmentos da populao a favor e contra. Comearia
pelos que esto contra as cotas, que apelam para a prpria Constituio,
afirmando que perante a lei somos todos iguais. Ento no devemos tratar
os cidados brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma
inconstitucionalidade. Outro argumento contrrio, que j foi demolido, a
ideia de que seria difcil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar
pelas cotas por causa da mestiagem. O Brasil um pas de mestiagem,
muitos brasileiros tm sangue europeu, alm de sangue indgena e africano,
ento seria difcil saber quem afro-descendente que poderia serbeneficiado pela cota. Esse argumento no resistiu. Por qu? Num pas onde
existe discriminao antinegro, a prpria discriminao a prova de que
possvel identificar os negros. Seno no teria discriminao.
Em comparao com outros pases do mundo, o Brasil um pas que tem
um ndice de mestiamento muito mais alto. Mas isso no pode impedir uma
poltica, porque basta a autodeclarao. Basta um candidato declarar sua
afro-descendncia. Se tiver alguma dvida, tem que averiguar. Nos casos-
limite, o indivduo se autodeclara afrodescendente. s vezes, tem erros
humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestios, de
mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestio, e ooutro foi barrado porque acharam que era branco. Isso so erros humanos.
Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, no seria assim.
Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas no
isso que vai impedir uma poltica pblica que possa beneficiar uma grande
parte da populao brasileira.
Alm do mais, o critrio de cota no Brasil diferente dos EUA. Nos EUA,
comearam com um critrio fixo e nato. Basta voc nascer negro. No Brasil
no. Se a gente analisar a histria, com exceo da UnB, que tem suas
razes, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critrio das
cotas, usaram o critrio tnico-racial combinado com o critrio econmico.O ponto de partida a escola pblica. Nos EUA no foi isso. S que a
imprensa no quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota
simplesmente racial. No . Isso mentira, tem que ver como funciona em
todas as universidades. necessrio fazer um certo controle, seno no
adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantm a ideia de que, pelas
pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos ndices do Pnud, mostram que
o abismo em matria de educao entre negros e brancos muito grande.
Se a gente considerar isso ento tem que ter uma poltica de mudana.
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nesse sentido que se defende uma poltica de cotas.
O racismo cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que esto contra
cotas pensam como se o racismo no tivesse existido na sociedade, no
estivesse criando vtimas. Se algum comprovar que no tem mais racismo
no Brasil, no devemos mais falar em cotas para negros. Deveramos falar
s de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, ento no h como
voc tratar igualmente as pessoas que so vtimas de racismo e da questo
econmica em relao quelas que no sofrem esse tipo de preconceito. A
prpria pesquisa do IPEA mostra que se no mudar esse quadro, os negros
vo levar muitos e muitos anos para chegar aonde esto os brancos em
matria de educao. Os que so contra cotas ainda do o argumento de que
qualquer poltica de diferena por parte do governo no Brasil seria uma
poltica de reconhecimento das raas e isso seria um retrocesso, queteramos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.
Frum - Que o argumento do Demtrio Magnoli.
Kabengele - Isso muito falso, porque j temos a experincia, alguns falam
de mais de 70 universidades pblicas, outros falam em 80. J ouviu falar de
conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? No existe. claro
que houve manifestaes numa universidade ou outra, umas pichaes,"negro, volta pra senzala". Mas isso no se caracteriza como conflito racial.
Isso uma maneira de horrorizar a populao, projetar conflitos que na
realidade no vo existir.
Frum - Agora o DEM entrou com uma ao no STF pedindo anulao das
cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexo entre a
ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposio
ao sistema de cotas? Qual a raiz dessa resistncia?
Kabengele Tenho a impresso que as posies ideolgicas no so
explcitas, so implcitas. A questo das cotas uma questo poltica. Tem
pessoas no Brasil que ainda acreditam que no h racismo no pas. E o
argumento desse deputado do DEM esse, de que no h racismo no Brasil,
que a questo simplesmente socioeconmica. um ponto de vista
refutvel, porque ns temos provas de que h racismo no Brasil no
cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil
vive muito bem, no h problema com ele, que o problema s com os
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pobres, que no podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma
discriminao contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos
e pobres tambm so beneficiados pelas cotas, e eles negam esse
argumento automaticamente, deixam isso de lado.
Frum Mas isso no um cinismo de parte desses atores polticos, j que
eles so contra o sistema de cotas, mas tambm so contra o Bolsa-Famlia
ou qualquer tipo de poltica compensatria no campo socioeconmico?
Kabengele - interessante, porque um pas que tem problemas sociais do
tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudana, de transformao
da sociedade. Cada vez que se toca nas polticas concretas de mudana,
vem um discurso. Mas voc no resolve os problemas sociais somente coma retrica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pblica? Estou aqui
no Brasil h 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pblica mudou em
algum lugar? No, mas o discurso continua. "Ah, s mudar a escola
pblica." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola
particular e sabem que a escola pblica ruim. Poderiam eles, como
autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pblica
e lutar pelas leis, bom salrio para os educadores, laboratrios, segurana.
Mas a coisa s fica no nvel da retrica.
E tem esse argumento legalista, "porque a cota uma inconstitucionalidade,
porque no h racismo no Brasil". H juristas que dizem que a igualdade daqual fala a Constituio uma igualdade formal, mas tem a igualdade
material. essa igualdade material que visada pelas polticas de ao
afirmativa. No basta dizer que somos todos iguais. Isso importante, mas
voc tem que dar os meios e isso se faz com as polticas pblicas. Muitos
disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelncia
universitria. Est comprovado que os alunos cotistas tiveram um
rendimento igual ou superior aos outros. Ento a excelncia no foi
prejudicada. Alis, curioso falar de mrito como se nosso vestibular fosse
exemplo de democracia e de mrito. Mrito significa simplesmente que voc
coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nvel. Quando aspessoas no so iguais, no se pode colocar no ponto de partida para
concorrer igualmente. como voc pegar uma pessoa com um fusquinha e
outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o
carro mais veloz. O aluno que vem da escola pblica, da periferia, de
pssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade,
partindo do mesmo ponto, claro que os que vm de uma boa escola vo ter
uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur,
tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada
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muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8.
Dando oportunidade ao aluno, ele no vai decepcionar.
Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas so aplicadas desde
2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas
terminaram o curso universitrio e quantos anos o Brasil levaria para formar
o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso so coisas concretas
para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demtrio
Magnoli, ele me critica, mas no leu nada. Nem uma linha de meus livros.
Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro
no-negro e branco no-branco que pediu para eu fazer uma introduo, e
desta introduo de trs pginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas
frases, me acusa de ser um charlato acadmico, de professar o racismo
cientfico abandonado h mais de um sculo e fazer parte de um projeto deracializao oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.
A autora do livro mestia, psiquiatra e estuda a dificuldade que os
mestios entre branco e negro tm pra construir a sua identidade. Fiz a
introduo mostrando que eles tm essa dificuldade justamente por causa de
serem negros no-negros e brancos no-brancos. Isso prejudica o
processo, mas no plano poltico, jurdico, eles no podem ficar ambivalentes.
Eles tm que optar por uma identidade, tm que aceitar sua negritude, e no
rejeit-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supresso dos
mestios no Brasil e que isso faz parte do projeto de racializao do
brasileiro. No tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo ascotas, tirou trs frases e fez a acusao dele no jornal.
Frum - O senhor toca na questo do imaginrio da democracia racial, mas
as pessoas so formadas para aceitarem esse mito...
Kabengele - O racismo uma ideologia. A ideologia s pode ser
reproduzida se as prprias vtimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa
ideologia. Alm das prprias vtimas, outros cidados tambm, que
discriminam e acham que so superiores aos outros, que tm direito deocupar os melhores lugares na sociedade. Se no reunir essas duas
condies, o racismo no pode ser reproduzido como ideologia, mas toda
educao que ns recebemos para poder reproduzi-la.
H negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham
que so mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos
de comando. Como tambm tem os brancos que introjetaram isso e acham
mesmo que so superiores por natureza. Mas para voc lutar contra essa
ideia no bastam as leis, que so repressivas, s vo punir. Tem que educar
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tambm. A educao um instrumento muito importante de mudana de
mentalidade e o brasileiro foi educado para no assumir seus preconceitos.
O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros o
preconceito de ter preconceito de ter preconceito. O brasileiro nunca vai
aceitar que preconceituoso. Foi educado para no aceitar isso. Como se
diz, na casa de enforcado no se fala de corda.
Quando voc est diante do negro, dizem que tem que dizer que moreno,
porque se disser que negro, ele vai se sentir ofendido. O que no quer
dizer que ele no deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem
identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que negro, no precisa
branque-lo, torn-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar
assim, para no falar de corda na casa de enforcado. Quando voc pega um
brasileiro em flagrante de prtica racista, ele no aceita, porque no foieducado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "No vou alugar
minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, voc chegou
tarde, acabei de alugar". Porque a educao que o americano recebeu pra
assumir suas prticas racistas, pra ser uma coisa explcita.
Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinio em 1995,
perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de
80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "voc j
discriminou algum?". A maioria disse que no. Significa que h racismo,
mas sem racistas. Ele est no ar... Como voc vai combater isso? Muitas
vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "voc que complexado, o problema est na sua cabea". Ele rejeita a culpa e coloca na
prpria vtima. J ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo um crime
perfeito, porque a prpria vtima que responsvel pelo seu racismo,
quem comentou no tem nenhum problema.
Revista Frum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada
a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saa
com loiras. Houve uma reao grande e a continuao dos argumentos dele
para se justificar vai ao encontro disso que o senhor est falando. Ele dizia
que racista era quem acusava ele, e citava a questo do orgulho negro comoalgo de quem racista.
Kebengele - Faz parte desse imaginrio. O que est por trs que est
fazendo uma ilustrao de King Kong, que ele compara a um jogador de
futebol que vai casar com uma loira, a ideia de algum que ascende na
vida e vai procurar sua loira. Mas qual o problema desse jogador de
futebol? So pessoas vtimas do racismo que acham que agora ascenderam
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na vida e, para mostrar isso, tm que ter uma loira que era proibida quando
eram pobres? Pode at ser uma explicao. Mas essa loira no uma
pessoa humana que pode dizer no ou sim e foi obrigada a ir com o King
Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos no so por
dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia s se casa dentro da velha
burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da
sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, tambm pulam a cerca de suas identidades
pra casar com um negro jogador. Por que a corda s arrebenta do lado do
jogador de futebol? No fundo, essas pessoas no querem que os negros
casem com suas filhas. uma forma de racismo. Esto praticando um
preconceito que no respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas
que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor algo semfronteiras, e no teria tantos mestios nessa sociedade. Com tudo o que
aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que
chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse
humorista faz uma ilustrao disso, ou uma provocao ou quer reafirmar
os preconceitos na nossa sociedade.
Frum - que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um
argumento muito simplrio: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e
um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa
.
Kabengele - interessante isso, porque tenho a impresso de que um
cara que no conhece a histria e o orgulho negro tem uma histria. So
seres humanos que, pelo prprio processo de colonizao, de escravido, a
essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem
que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito
ou se achar feio. isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se
assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista
conhecesse isso, entenderia a histria do orgulho negro. O branco no tem
motivo para ter orgulho branco porque ele vitorioso, est l em cima. Ooutro que est l em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse
orgulho para poder se reerguer.
Frum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desbato, e
recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grmio, o
caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em
geral, as pessoas jornalistas que comentaram, a diretoria gremista
argumentavam que no campo de futebol voc pode falar qualquer coisa, e
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que se as pessoas fossem se importar com isso, no teria como ter jogo de
futebol. Como voc v esse tipo de situao?
Kabengele - Isso uma prova daquilo que falei, os brasileiros so
educados para no assumir seus hbitos, seu racismo. Em outros pases, no
teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune
mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... J ouviu caso contrrio, de
negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o
jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os tcnicos,
jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que assim no futebol. Ento a
gente no pode educar o jogador de futebol, tudo permitido? Quando h
violncia fsica, eles so punidos, mas isso aqui uma violncia tambm,uma violncia simblica. Por que a violncia simblica aceita a violncia
fsica punida?
Frum - Como o senhor v hoje a aplicao da lei que determina a
obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores,
de um modo geral, esto preparados para lidar com a questo racial?
Kabengele - Essa lei j foi objeto de crtica das pessoas que acham que
isso tambm seria uma racializao do Brasil. Pessoas que acham que,sendo a populao brasileira uma populao mestia, no preciso ensinar a
cultura do negro, ensinar a histria do negro ou da frica. Temos uma nica
histria, uma nica cultura, que uma cultura mestia. Tem pessoas que vo
nessa direo, pensam que isso uma racializao da educao no Brasil.
Mas essa questo do ensino da diversidade na escola no propriedade do
Brasil. Todos os pases do mundo lidam com a questo da diversidade, do
ensino da diversidade na escola, at os que no foram colonizadores, os
nrdicos, com a vinda dos imigrantes, esto tratando da questo da
diversidade na escola.
O Brasil deveria tratar dessa questo com mais fora, porque um pas quenasceu do encontro das culturas, das civilizaes. Os europeus chegaram, a
populao indgena dona da terra os africanos, depois a ltima onda
imigratria dos asiticos. Ento tudo isso faz parte das razes formadoras
do Brasil que devem fazer parte da formao do cidado. Ora, se a gente
olhar nosso sistema educativo, percebemos que a histria do negro, da
frica, das populaes indgenas no fazia parte da educao do brasileiro.
Nosso modelo de educao eurocntrico. Do ponto de vista da
historiografia oficial, os portugueses chegaram na frica, encontraram os
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africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. No foi
isso que aconteceu. A histria da escravido uma histria da violncia.
Quando se fala de contribuies, nunca se fala da frica. Se se introduzir a
histria do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.
por isso que a educao, a introduo da histria dele no Brasil, faz parte
desse processo de construo do orgulho negro. Ele tem que saber que foi
trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para
construir as bases da economia colonial brasileira. Alm do mais, houve a
resistncia, o negro no era um Joo-Bobo que simplesmente aceitou, seno
a gente no teria rebelies das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que
durou quase um sculo. So provas de resistncia e de defesa da dignidade
humana. So essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do
patrimnio histrico de todos os brasileiros. O branco e o negro tm queconhecer essa histria porque a que vo poder respeitar os outros.
Voltando a sua pergunta, as dificuldades so de duas ordens. Em primeiro
lugar, os educadores no tm formao para ensinar a diversidade.
Estudaram em escolas de educao eurocntrica, onde no se ensinava a
histria do negro, no estudaram histria da frica, como vo passar isso
aos alunos? Alm do mais, a frica um continente, com centenas de
culturas e civilizaes. So 54 pases oficialmente. A primeira coisa
formar os educadores, orientar por onde comeou a cultura negra no Brasil,
por onde comea essa histria. Depois dessa formao, com certo contedo,
material didtico de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografiaoficial, o processo pode funcionar.
Frum - Outra questo que se discute sobre o negro nos espaos de
poder. No se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar
contra isso?
Kabengele - O que um pas democrtico? Um pas democrtico, no meu
ponto de vista, um pas que reflete a sua diversidade na estrutura de
poder. Nela, voc v mulheres ocupando cargos de responsabilidade, noExecutivo, no Legislativo, no Judicirio, assim como no setor privado. E
ainda os ndios, que so os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria
um pas democrtico. O fato de voc olhar a estrutura de poder e ver
poucos negros ou quase no ver negros, no ver mulheres, no ver ndios,
isso significa que h alguma coisa que no foi feita nesse pas. Como
construo da democracia, a representatividade da diversidade no existe
na estrutura de poder. Por qu?
Se voc fizer um levantamento no campo jurdico, quantos
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desembargadores e juzes negros tm na sociedade brasileira? Se voc for
pras universidades pblicas, quantos professores negros tem, comeando
por minha prpria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil
professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande
faculdade, que a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
(FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politcnica, tenho certeza de
que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde
que entrei no Departamento de Antropologia, no entrou outro. Daqui trs
anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande
professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do
exterior e eu j estava aqui. Em toda a USP, no sou capaz de passar de dez
pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas no chega a 50, exagerando. Se
voc for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton,Standford, voc vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. L
eles so mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolio. Por que no houve uma certa mobilidade social para
os negros chegarem l? H duas explicaes: ou voc diz que ele
geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicao racista, ou
encontra explicao na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua
mobilidade. E isso passa por questo de preconceito, de discriminao
racial. No h como explicar isso. Se voc entender que os imigrantes
japoneses chegaram, ns comemoramos 100 anos recentemente da sua
vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos tambm ocupam umlugar na sociedade. Mas os negros j esto a 120 anos da abolio. Ento
tem uma explicao. Da a necessidade de se mudar o quadro. Ou ns
mantemos o quadro, porque se no mudamos estamos racializando o Brasil,
ou a gente mantm a situao para mostrar que no somos racistas. Porque
a explicao essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Ento
vamos deixar as coisas do jeito que esto. Esse o dilema da sociedade.
Revista Frum como o senhor v o tratamento dado pela mdia questo
racial?
Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do
mito da democracia racial um discurso tambm que absorvido por alguns
membros da imprensa. Acho que h uma certa tendncia na imprensa pelo
fato de ser contra as polticas de ao afirmativa, sendo que tambm no
so muito favorveis a essa questo da obrigatoriedade do ensino da
histria do negro na escola.
Houve, no ms passado, a II Conferncia Nacional de Promoo da
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Igualdade Racial. Silncio completo da imprensa brasileira. No houve
matrias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita no pautaram
isso. O silncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse
Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo
silncio. O silncio uma maneira de voc matar a conscincia de um povo.
Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vo buscar saber, se
conscientizar, mas se ficar no silncio a coisa morre por a. Ento acho que
o silncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratgia, o
no-dito.
Acabei de passar por uma experincia interessante. Sa da Conferncia
Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que
pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministrio das Relaes
Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reuniopequena de capoeiristas e fiz uma conferncia sobre a cultura negra no
Brasil. Saiu no El Pais, que o jornal mais importante da Espanha, noticiou
isso, uma coisa pequena. Uma conferncia nacional deste tamanho aqui no
se fala. um contrassenso. O silncio da imprensa no um silncio neutro,
um silncio que indica uma certa orientao da questo racial. Tem que
no dizer muita coisa e ficar calado. Amanh no se fala mais, acabou.
Essa matria parte integrante da edio impressa da Frum de agosto. Nasbancas.