Nosso racismo é um crime perfeito!

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  • 8/9/2019 Nosso racismo um crime perfeito!

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    Nosso racismo um crime perfeito!

    Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria [Tera-Feira, 18 de Agosto de2009 s 15:15hs]

    Frum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de

    contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, um pas bem

    diferente. O senhor sentiu, quando veio pra c, a questo racial? Como foi

    essa mudana para o senhor?

    Kabengele - Essas coisas no so to abertas como a gente pensa. Cheguei

    aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. No se deparacom o preconceito primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas

    vm pouco a pouco, quando se comea a descobrir que voc entra em

    alguns lugares e percebe que nico, que te olham e j sabem que no

    daqui, que no como nossos negros, diferente. Poderia dizer que esse

    estranhamento por ser estrangeiro, mas essa comparao na verdade

    feita em relao aos negros da terra, que no entram em alguns lugares ou

    no entram de cabea erguida.

    Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns

    de meus professores eram especialistas na questo racial. Foi atravs da

    academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas nopas. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, j era uma

    disciplina sobre a questo racial com meu orientador Joo Batista Borges

    Pereira. Depois, com o tempo, voc vai entrar em algum lugar em que est

    sozinho e se pergunta: onde esto os outros? As pessoas olhavam mesmo,

    inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos.

    Porque uma famlia inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho

    negro e um filho mestio. Em todos os lugares em que a gente entrava, era

    motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre

    escondia. Entrvamos em lugares onde geralmente os negros no entram.

    A partir da voc comea a buscar uma explicao para saber o porqu e se

    aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da

    discriminao racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do

    Otavio Ianni, do meu prprio orientador e de tantos outros que trabalharam

    com a questo. Mas o problema que quando a pessoa adulta sabe se

    defender, mas as crianas no. Tenho dois filhos que nasceram na Blgica,

    dois no Congo e meu caula brasileiro. Quantas vezes, quando estavam

    sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polcia?

    Meus filhos estudaram em escola particular, Colgio Equipe, onde

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    estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu no ia busc-los na

    escola, e quando saam para tomar nibus e voltar para casa com alguns

    colegas que eram brancos, eles eram os nicos a ser revistados. No

    entanto, a condio social era a mesma e estudavam no mesmo colgio. Por

    que s eles podiam ser suspeitos e revistados pela polcia? Essa situao eu

    no posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais

    velho, que hoje ator, quando comprou o primeiro carro dele, no sei

    quantas vezes ele foi parado pela polcia. Sempre apontando a arma para ele

    para mostrar o documento. Ele foi instrudo para no discutir e dizer que os

    documentos esto no porta-luvas, seno podem pensar que ele vai sacar

    uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladro do prprio carro que ele

    comprou com o trabalho dele. Meus filhos at hoje no saem de casa para

    atravessar a rua sem documento. So adultos e criaram esse hbito, porqueat voc provar que no ladro... A geografia do seu corpo no indica isso.

    Ento, essa coisa de pensar que a diferena simplesmente social, claro

    que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui tambm vai

    junto com o social, no tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo

    respondendo questo, por meio da vivncia, com o cotidiano e as coisas

    que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da populao negra, e

    entendi que a democracia racial um mito. Existe realmente um racismo no

    Brasil, diferenciado daquele praticado na frica do Sul durante o regime do

    apartheid, diferente tambm do racismo praticado nos EUA, principalmente

    no Sul. Porque nosso racismo , utilizando uma palavra bem conhecida, sutil.Ele velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso no quer dizer que faa

    menos vtimas do que aquele que aberto. Faz vtimas de qualquer maneira.

    Revista Frum - Quando voc tem um sistema como o sul-africano ou um

    sistema de restrio de direitos como houve nos EUA, o inimigo est claro.

    No caso brasileiro mais difcil combat-lo...

    Kabengele - Claro, mais difcil. Porque voc no identifica seu opressor.

    Nos EUA era mais fcil porque comeava pelas leis. A primeirareivindicao: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar

    polticas pblicas que busquem a promoo da igualdade racial. Aqui mais

    difcil, porque no tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis

    pra proteger esto na nova Constituio que diz que o racismo um crime

    inafianvel. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com

    essa lei, a prtica do racismo no era um crime, era uma contraveno. A

    populao negra e indgena viveu muito tempo sem leis nem para

    discriminar nem para proteger.

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    Revista Frum - Aqui no Brasil h mais dificuldade com relao ao sistema

    de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?

    Kabengele - Tem segmentos da populao a favor e contra. Comearia

    pelos que esto contra as cotas, que apelam para a prpria Constituio,

    afirmando que perante a lei somos todos iguais. Ento no devemos tratar

    os cidados brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma

    inconstitucionalidade. Outro argumento contrrio, que j foi demolido, a

    ideia de que seria difcil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar

    pelas cotas por causa da mestiagem. O Brasil um pas de mestiagem,

    muitos brasileiros tm sangue europeu, alm de sangue indgena e africano,

    ento seria difcil saber quem afro-descendente que poderia serbeneficiado pela cota. Esse argumento no resistiu. Por qu? Num pas onde

    existe discriminao antinegro, a prpria discriminao a prova de que

    possvel identificar os negros. Seno no teria discriminao.

    Em comparao com outros pases do mundo, o Brasil um pas que tem

    um ndice de mestiamento muito mais alto. Mas isso no pode impedir uma

    poltica, porque basta a autodeclarao. Basta um candidato declarar sua

    afro-descendncia. Se tiver alguma dvida, tem que averiguar. Nos casos-

    limite, o indivduo se autodeclara afrodescendente. s vezes, tem erros

    humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestios, de

    mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestio, e ooutro foi barrado porque acharam que era branco. Isso so erros humanos.

    Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, no seria assim.

    Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas no

    isso que vai impedir uma poltica pblica que possa beneficiar uma grande

    parte da populao brasileira.

    Alm do mais, o critrio de cota no Brasil diferente dos EUA. Nos EUA,

    comearam com um critrio fixo e nato. Basta voc nascer negro. No Brasil

    no. Se a gente analisar a histria, com exceo da UnB, que tem suas

    razes, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critrio das

    cotas, usaram o critrio tnico-racial combinado com o critrio econmico.O ponto de partida a escola pblica. Nos EUA no foi isso. S que a

    imprensa no quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota

    simplesmente racial. No . Isso mentira, tem que ver como funciona em

    todas as universidades. necessrio fazer um certo controle, seno no

    adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantm a ideia de que, pelas

    pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos ndices do Pnud, mostram que

    o abismo em matria de educao entre negros e brancos muito grande.

    Se a gente considerar isso ento tem que ter uma poltica de mudana.

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    nesse sentido que se defende uma poltica de cotas.

    O racismo cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que esto contra

    cotas pensam como se o racismo no tivesse existido na sociedade, no

    estivesse criando vtimas. Se algum comprovar que no tem mais racismo

    no Brasil, no devemos mais falar em cotas para negros. Deveramos falar

    s de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, ento no h como

    voc tratar igualmente as pessoas que so vtimas de racismo e da questo

    econmica em relao quelas que no sofrem esse tipo de preconceito. A

    prpria pesquisa do IPEA mostra que se no mudar esse quadro, os negros

    vo levar muitos e muitos anos para chegar aonde esto os brancos em

    matria de educao. Os que so contra cotas ainda do o argumento de que

    qualquer poltica de diferena por parte do governo no Brasil seria uma

    poltica de reconhecimento das raas e isso seria um retrocesso, queteramos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.

    Frum - Que o argumento do Demtrio Magnoli.

    Kabengele - Isso muito falso, porque j temos a experincia, alguns falam

    de mais de 70 universidades pblicas, outros falam em 80. J ouviu falar de

    conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? No existe. claro

    que houve manifestaes numa universidade ou outra, umas pichaes,"negro, volta pra senzala". Mas isso no se caracteriza como conflito racial.

    Isso uma maneira de horrorizar a populao, projetar conflitos que na

    realidade no vo existir.

    Frum - Agora o DEM entrou com uma ao no STF pedindo anulao das

    cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexo entre a

    ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposio

    ao sistema de cotas? Qual a raiz dessa resistncia?

    Kabengele Tenho a impresso que as posies ideolgicas no so

    explcitas, so implcitas. A questo das cotas uma questo poltica. Tem

    pessoas no Brasil que ainda acreditam que no h racismo no pas. E o

    argumento desse deputado do DEM esse, de que no h racismo no Brasil,

    que a questo simplesmente socioeconmica. um ponto de vista

    refutvel, porque ns temos provas de que h racismo no Brasil no

    cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil

    vive muito bem, no h problema com ele, que o problema s com os

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    pobres, que no podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma

    discriminao contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos

    e pobres tambm so beneficiados pelas cotas, e eles negam esse

    argumento automaticamente, deixam isso de lado.

    Frum Mas isso no um cinismo de parte desses atores polticos, j que

    eles so contra o sistema de cotas, mas tambm so contra o Bolsa-Famlia

    ou qualquer tipo de poltica compensatria no campo socioeconmico?

    Kabengele - interessante, porque um pas que tem problemas sociais do

    tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudana, de transformao

    da sociedade. Cada vez que se toca nas polticas concretas de mudana,

    vem um discurso. Mas voc no resolve os problemas sociais somente coma retrica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pblica? Estou aqui

    no Brasil h 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pblica mudou em

    algum lugar? No, mas o discurso continua. "Ah, s mudar a escola

    pblica." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola

    particular e sabem que a escola pblica ruim. Poderiam eles, como

    autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pblica

    e lutar pelas leis, bom salrio para os educadores, laboratrios, segurana.

    Mas a coisa s fica no nvel da retrica.

    E tem esse argumento legalista, "porque a cota uma inconstitucionalidade,

    porque no h racismo no Brasil". H juristas que dizem que a igualdade daqual fala a Constituio uma igualdade formal, mas tem a igualdade

    material. essa igualdade material que visada pelas polticas de ao

    afirmativa. No basta dizer que somos todos iguais. Isso importante, mas

    voc tem que dar os meios e isso se faz com as polticas pblicas. Muitos

    disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelncia

    universitria. Est comprovado que os alunos cotistas tiveram um

    rendimento igual ou superior aos outros. Ento a excelncia no foi

    prejudicada. Alis, curioso falar de mrito como se nosso vestibular fosse

    exemplo de democracia e de mrito. Mrito significa simplesmente que voc

    coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nvel. Quando aspessoas no so iguais, no se pode colocar no ponto de partida para

    concorrer igualmente. como voc pegar uma pessoa com um fusquinha e

    outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o

    carro mais veloz. O aluno que vem da escola pblica, da periferia, de

    pssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade,

    partindo do mesmo ponto, claro que os que vm de uma boa escola vo ter

    uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur,

    tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada

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    muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8.

    Dando oportunidade ao aluno, ele no vai decepcionar.

    Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas so aplicadas desde

    2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas

    terminaram o curso universitrio e quantos anos o Brasil levaria para formar

    o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso so coisas concretas

    para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demtrio

    Magnoli, ele me critica, mas no leu nada. Nem uma linha de meus livros.

    Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro

    no-negro e branco no-branco que pediu para eu fazer uma introduo, e

    desta introduo de trs pginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas

    frases, me acusa de ser um charlato acadmico, de professar o racismo

    cientfico abandonado h mais de um sculo e fazer parte de um projeto deracializao oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.

    A autora do livro mestia, psiquiatra e estuda a dificuldade que os

    mestios entre branco e negro tm pra construir a sua identidade. Fiz a

    introduo mostrando que eles tm essa dificuldade justamente por causa de

    serem negros no-negros e brancos no-brancos. Isso prejudica o

    processo, mas no plano poltico, jurdico, eles no podem ficar ambivalentes.

    Eles tm que optar por uma identidade, tm que aceitar sua negritude, e no

    rejeit-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supresso dos

    mestios no Brasil e que isso faz parte do projeto de racializao do

    brasileiro. No tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo ascotas, tirou trs frases e fez a acusao dele no jornal.

    Frum - O senhor toca na questo do imaginrio da democracia racial, mas

    as pessoas so formadas para aceitarem esse mito...

    Kabengele - O racismo uma ideologia. A ideologia s pode ser

    reproduzida se as prprias vtimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa

    ideologia. Alm das prprias vtimas, outros cidados tambm, que

    discriminam e acham que so superiores aos outros, que tm direito deocupar os melhores lugares na sociedade. Se no reunir essas duas

    condies, o racismo no pode ser reproduzido como ideologia, mas toda

    educao que ns recebemos para poder reproduzi-la.

    H negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham

    que so mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos

    de comando. Como tambm tem os brancos que introjetaram isso e acham

    mesmo que so superiores por natureza. Mas para voc lutar contra essa

    ideia no bastam as leis, que so repressivas, s vo punir. Tem que educar

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    tambm. A educao um instrumento muito importante de mudana de

    mentalidade e o brasileiro foi educado para no assumir seus preconceitos.

    O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros o

    preconceito de ter preconceito de ter preconceito. O brasileiro nunca vai

    aceitar que preconceituoso. Foi educado para no aceitar isso. Como se

    diz, na casa de enforcado no se fala de corda.

    Quando voc est diante do negro, dizem que tem que dizer que moreno,

    porque se disser que negro, ele vai se sentir ofendido. O que no quer

    dizer que ele no deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem

    identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que negro, no precisa

    branque-lo, torn-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar

    assim, para no falar de corda na casa de enforcado. Quando voc pega um

    brasileiro em flagrante de prtica racista, ele no aceita, porque no foieducado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "No vou alugar

    minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, voc chegou

    tarde, acabei de alugar". Porque a educao que o americano recebeu pra

    assumir suas prticas racistas, pra ser uma coisa explcita.

    Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinio em 1995,

    perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de

    80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "voc j

    discriminou algum?". A maioria disse que no. Significa que h racismo,

    mas sem racistas. Ele est no ar... Como voc vai combater isso? Muitas

    vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "voc que complexado, o problema est na sua cabea". Ele rejeita a culpa e coloca na

    prpria vtima. J ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo um crime

    perfeito, porque a prpria vtima que responsvel pelo seu racismo,

    quem comentou no tem nenhum problema.

    Revista Frum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada

    a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saa

    com loiras. Houve uma reao grande e a continuao dos argumentos dele

    para se justificar vai ao encontro disso que o senhor est falando. Ele dizia

    que racista era quem acusava ele, e citava a questo do orgulho negro comoalgo de quem racista.

    Kebengele - Faz parte desse imaginrio. O que est por trs que est

    fazendo uma ilustrao de King Kong, que ele compara a um jogador de

    futebol que vai casar com uma loira, a ideia de algum que ascende na

    vida e vai procurar sua loira. Mas qual o problema desse jogador de

    futebol? So pessoas vtimas do racismo que acham que agora ascenderam

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    na vida e, para mostrar isso, tm que ter uma loira que era proibida quando

    eram pobres? Pode at ser uma explicao. Mas essa loira no uma

    pessoa humana que pode dizer no ou sim e foi obrigada a ir com o King

    Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos no so por

    dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia s se casa dentro da velha

    burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da

    sociedade.

    Essas jovens brancas, loiras, tambm pulam a cerca de suas identidades

    pra casar com um negro jogador. Por que a corda s arrebenta do lado do

    jogador de futebol? No fundo, essas pessoas no querem que os negros

    casem com suas filhas. uma forma de racismo. Esto praticando um

    preconceito que no respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas

    que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor algo semfronteiras, e no teria tantos mestios nessa sociedade. Com tudo o que

    aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que

    chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse

    humorista faz uma ilustrao disso, ou uma provocao ou quer reafirmar

    os preconceitos na nossa sociedade.

    Frum - que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um

    argumento muito simplrio: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e

    um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa

    .

    Kabengele - interessante isso, porque tenho a impresso de que um

    cara que no conhece a histria e o orgulho negro tem uma histria. So

    seres humanos que, pelo prprio processo de colonizao, de escravido, a

    essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem

    que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito

    ou se achar feio. isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se

    assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista

    conhecesse isso, entenderia a histria do orgulho negro. O branco no tem

    motivo para ter orgulho branco porque ele vitorioso, est l em cima. Ooutro que est l em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse

    orgulho para poder se reerguer.

    Frum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desbato, e

    recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grmio, o

    caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em

    geral, as pessoas jornalistas que comentaram, a diretoria gremista

    argumentavam que no campo de futebol voc pode falar qualquer coisa, e

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    que se as pessoas fossem se importar com isso, no teria como ter jogo de

    futebol. Como voc v esse tipo de situao?

    Kabengele - Isso uma prova daquilo que falei, os brasileiros so

    educados para no assumir seus hbitos, seu racismo. Em outros pases, no

    teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune

    mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... J ouviu caso contrrio, de

    negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o

    jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os tcnicos,

    jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que assim no futebol. Ento a

    gente no pode educar o jogador de futebol, tudo permitido? Quando h

    violncia fsica, eles so punidos, mas isso aqui uma violncia tambm,uma violncia simblica. Por que a violncia simblica aceita a violncia

    fsica punida?

    Frum - Como o senhor v hoje a aplicao da lei que determina a

    obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores,

    de um modo geral, esto preparados para lidar com a questo racial?

    Kabengele - Essa lei j foi objeto de crtica das pessoas que acham que

    isso tambm seria uma racializao do Brasil. Pessoas que acham que,sendo a populao brasileira uma populao mestia, no preciso ensinar a

    cultura do negro, ensinar a histria do negro ou da frica. Temos uma nica

    histria, uma nica cultura, que uma cultura mestia. Tem pessoas que vo

    nessa direo, pensam que isso uma racializao da educao no Brasil.

    Mas essa questo do ensino da diversidade na escola no propriedade do

    Brasil. Todos os pases do mundo lidam com a questo da diversidade, do

    ensino da diversidade na escola, at os que no foram colonizadores, os

    nrdicos, com a vinda dos imigrantes, esto tratando da questo da

    diversidade na escola.

    O Brasil deveria tratar dessa questo com mais fora, porque um pas quenasceu do encontro das culturas, das civilizaes. Os europeus chegaram, a

    populao indgena dona da terra os africanos, depois a ltima onda

    imigratria dos asiticos. Ento tudo isso faz parte das razes formadoras

    do Brasil que devem fazer parte da formao do cidado. Ora, se a gente

    olhar nosso sistema educativo, percebemos que a histria do negro, da

    frica, das populaes indgenas no fazia parte da educao do brasileiro.

    Nosso modelo de educao eurocntrico. Do ponto de vista da

    historiografia oficial, os portugueses chegaram na frica, encontraram os

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    africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. No foi

    isso que aconteceu. A histria da escravido uma histria da violncia.

    Quando se fala de contribuies, nunca se fala da frica. Se se introduzir a

    histria do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.

    por isso que a educao, a introduo da histria dele no Brasil, faz parte

    desse processo de construo do orgulho negro. Ele tem que saber que foi

    trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para

    construir as bases da economia colonial brasileira. Alm do mais, houve a

    resistncia, o negro no era um Joo-Bobo que simplesmente aceitou, seno

    a gente no teria rebelies das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que

    durou quase um sculo. So provas de resistncia e de defesa da dignidade

    humana. So essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do

    patrimnio histrico de todos os brasileiros. O branco e o negro tm queconhecer essa histria porque a que vo poder respeitar os outros.

    Voltando a sua pergunta, as dificuldades so de duas ordens. Em primeiro

    lugar, os educadores no tm formao para ensinar a diversidade.

    Estudaram em escolas de educao eurocntrica, onde no se ensinava a

    histria do negro, no estudaram histria da frica, como vo passar isso

    aos alunos? Alm do mais, a frica um continente, com centenas de

    culturas e civilizaes. So 54 pases oficialmente. A primeira coisa

    formar os educadores, orientar por onde comeou a cultura negra no Brasil,

    por onde comea essa histria. Depois dessa formao, com certo contedo,

    material didtico de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografiaoficial, o processo pode funcionar.

    Frum - Outra questo que se discute sobre o negro nos espaos de

    poder. No se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar

    contra isso?

    Kabengele - O que um pas democrtico? Um pas democrtico, no meu

    ponto de vista, um pas que reflete a sua diversidade na estrutura de

    poder. Nela, voc v mulheres ocupando cargos de responsabilidade, noExecutivo, no Legislativo, no Judicirio, assim como no setor privado. E

    ainda os ndios, que so os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria

    um pas democrtico. O fato de voc olhar a estrutura de poder e ver

    poucos negros ou quase no ver negros, no ver mulheres, no ver ndios,

    isso significa que h alguma coisa que no foi feita nesse pas. Como

    construo da democracia, a representatividade da diversidade no existe

    na estrutura de poder. Por qu?

    Se voc fizer um levantamento no campo jurdico, quantos

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    desembargadores e juzes negros tm na sociedade brasileira? Se voc for

    pras universidades pblicas, quantos professores negros tem, comeando

    por minha prpria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil

    professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande

    faculdade, que a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politcnica, tenho certeza de

    que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde

    que entrei no Departamento de Antropologia, no entrou outro. Daqui trs

    anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande

    professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do

    exterior e eu j estava aqui. Em toda a USP, no sou capaz de passar de dez

    pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas no chega a 50, exagerando. Se

    voc for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton,Standford, voc vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. L

    eles so mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?

    120 anos de abolio. Por que no houve uma certa mobilidade social para

    os negros chegarem l? H duas explicaes: ou voc diz que ele

    geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicao racista, ou

    encontra explicao na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua

    mobilidade. E isso passa por questo de preconceito, de discriminao

    racial. No h como explicar isso. Se voc entender que os imigrantes

    japoneses chegaram, ns comemoramos 100 anos recentemente da sua

    vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos tambm ocupam umlugar na sociedade. Mas os negros j esto a 120 anos da abolio. Ento

    tem uma explicao. Da a necessidade de se mudar o quadro. Ou ns

    mantemos o quadro, porque se no mudamos estamos racializando o Brasil,

    ou a gente mantm a situao para mostrar que no somos racistas. Porque

    a explicao essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Ento

    vamos deixar as coisas do jeito que esto. Esse o dilema da sociedade.

    Revista Frum como o senhor v o tratamento dado pela mdia questo

    racial?

    Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do

    mito da democracia racial um discurso tambm que absorvido por alguns

    membros da imprensa. Acho que h uma certa tendncia na imprensa pelo

    fato de ser contra as polticas de ao afirmativa, sendo que tambm no

    so muito favorveis a essa questo da obrigatoriedade do ensino da

    histria do negro na escola.

    Houve, no ms passado, a II Conferncia Nacional de Promoo da

  • 8/9/2019 Nosso racismo um crime perfeito!

    12/12

    Igualdade Racial. Silncio completo da imprensa brasileira. No houve

    matrias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita no pautaram

    isso. O silncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse

    Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo

    silncio. O silncio uma maneira de voc matar a conscincia de um povo.

    Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vo buscar saber, se

    conscientizar, mas se ficar no silncio a coisa morre por a. Ento acho que

    o silncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratgia, o

    no-dito.

    Acabei de passar por uma experincia interessante. Sa da Conferncia

    Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que

    pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministrio das Relaes

    Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reuniopequena de capoeiristas e fiz uma conferncia sobre a cultura negra no

    Brasil. Saiu no El Pais, que o jornal mais importante da Espanha, noticiou

    isso, uma coisa pequena. Uma conferncia nacional deste tamanho aqui no

    se fala. um contrassenso. O silncio da imprensa no um silncio neutro,

    um silncio que indica uma certa orientao da questo racial. Tem que

    no dizer muita coisa e ficar calado. Amanh no se fala mais, acabou.

    Essa matria parte integrante da edio impressa da Frum de agosto. Nasbancas.