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Página 1 de 24 Notas sobre equilíbrio químico e termodinâmica, catálise enzimática e nomenclatura das enzimas Índice 1 Conceitos de termodinâmica e de equilíbrio aplicados a enzimas e a processos de transporte transmembranar ............................................................................................................................................... 2 1.1 Conceitos de processo endergónico, exergónico e energia livre de Gibbs. O sentido em que um processo reativo ou de transporte tende a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada a esse processo. ........................................................................................................................................................ 2 1.2 Conceito de acoplamento entre processos endergónico e exergónicos. O sentido em que os processos acoplados tendem a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada ao processo global. Transporte ativo e transporte passivo. ........................................................................................................... 3 1.3 Distinção entre ΔG e ΔH, entre reação exergónica e exotérmica e entre reação endergónica e endotérmica. .................................................................................................................................................. 6 1.4 Conceitos de variação de energia de Gibbs padrão. Conceitos de ΔG’º, K eq ’ e Q R ’ usados em Bioquímica. ................................................................................................................................................... 7 1.5 Relação entre diferença de potencial redox (ΔE) e função de Gibbs (ΔG). ........................................... 10 1.6 Conceitos de reação ou processo de transporte fisiologicamente reversível e irreversível. ................... 11 1.7 Conceito de “ligação rica em energia” usado em bioquímica. ............................................................... 12 2 - Conceito gerais do funcionamento das enzimas e sua nomenclatura ................................................... 14 2.1 As enzimas aumentam a velocidade das reações porque diminuem a energia livre de ativação, o Δrelativo à formação do estado de transição. ................................................................................................. 14 2.2 A presença de uma enzima não afeta o sentido em que a reação que ela catalisa vai evoluir. .............. 15 2.3 Significado das expressões cofator, grupo prostético e coenzima. ........................................................ 15 2.3.a O FAD é o grupo prostético da proteína de transferência de eletrões e mutações nesta proteína podem diminuir a ligação ao FAD ......................................................................................................... 16 2.4 Os nomes das enzimas descrevem as suas atividades catalíticas. .......................................................... 17 2.4.a As oxi-redútases (EC 1.x.y.z) catalisam reações redox. ................................................................ 17 2.4.b As transférases (EC 2.x.y.z) catalisam reações de transferência de grupos químicos ou resíduos entre os substratos. ................................................................................................................................. 20 2.4.c As hidrólases (EC 3.x.y.z) catalisam reações de hidrólise. ............................................................ 21 2.4.d As líases (EC 4.x.y.z) catalisam reações em que um reagente A=B que contém uma dupla ligação deixa de a ter quando se liga a um reagente C. ...................................................................................... 22 2.4.e As isomérases (EC 5.x.y.z) catalisam reações em que um isómero se converte noutro. ................ 23 2.4.f As lígases (ou sintétases; EC 6,x,y,z) catalisam reações que podem ser lidas como o somatório de duas reações sendo uma de hidrólise do ATP e outra de combinação de duas substâncias. ................. 23 2.4.g Por tradição algumas enzimas chamam-se vulgarmente síntases. ................................................ 23 3 Bibliografia .................................................................................................................................................. 24

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Notas sobre equilíbrio químico e termodinâmica, catálise enzimática e nomenclatura das enzimas

Índice

1 Conceitos de termodinâmica e de equilíbrio aplicados a enzimas e a processos de transporte transmembranar ............................................................................................................................................... 2

1.1 Conceitos de processo endergónico, exergónico e energia livre de Gibbs. O sentido em que um processo reativo ou de transporte tende a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada a esse processo. ........................................................................................................................................................ 2

1.2 Conceito de acoplamento entre processos endergónico e exergónicos. O sentido em que os processos acoplados tendem a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada ao processo global. Transporte ativo e transporte passivo. ........................................................................................................... 3

1.3 Distinção entre ΔG e ΔH, entre reação exergónica e exotérmica e entre reação endergónica e endotérmica. .................................................................................................................................................. 6

1.4 Conceitos de variação de energia de Gibbs padrão. Conceitos de ΔG’º, Keq’ e QR’ usados em Bioquímica. ................................................................................................................................................... 7

1.5 Relação entre diferença de potencial redox (ΔE) e função de Gibbs (ΔG). ........................................... 10

1.6 Conceitos de reação ou processo de transporte fisiologicamente reversível e irreversível. ................... 11

1.7 Conceito de “ligação rica em energia” usado em bioquímica. ............................................................... 12

2 - Conceito gerais do funcionamento das enzimas e sua nomenclatura ................................................... 14 2.1 As enzimas aumentam a velocidade das reações porque diminuem a energia livre de ativação, o ΔGº relativo à formação do estado de transição. ................................................................................................. 14

2.2 A presença de uma enzima não afeta o sentido em que a reação que ela catalisa vai evoluir. .............. 15

2.3 Significado das expressões cofator, grupo prostético e coenzima. ........................................................ 15 2.3.a O FAD é o grupo prostético da proteína de transferência de eletrões e mutações nesta proteína podem diminuir a ligação ao FAD ......................................................................................................... 16

2.4 Os nomes das enzimas descrevem as suas atividades catalíticas. .......................................................... 17 2.4.a As oxi-redútases (EC 1.x.y.z) catalisam reações redox. ................................................................ 17 2.4.b As transférases (EC 2.x.y.z) catalisam reações de transferência de grupos químicos ou resíduos entre os substratos. ................................................................................................................................. 20 2.4.c As hidrólases (EC 3.x.y.z) catalisam reações de hidrólise. ............................................................ 21 2.4.d As líases (EC 4.x.y.z) catalisam reações em que um reagente A=B que contém uma dupla ligação deixa de a ter quando se liga a um reagente C. ...................................................................................... 22 2.4.e As isomérases (EC 5.x.y.z) catalisam reações em que um isómero se converte noutro. ................ 23 2.4.f As lígases (ou sintétases; EC 6,x,y,z) catalisam reações que podem ser lidas como o somatório de duas reações sendo uma de hidrólise do ATP e outra de combinação de duas substâncias. ................. 23 2.4.g Por tradição algumas enzimas chamam-se vulgarmente síntases. ................................................ 23

3 Bibliografia .................................................................................................................................................. 24

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1 Conceitos de termodinâmica e de equilíbrio aplicados a enzimas e a processos de transporte transmembranar

1.1 Conceitos de processo endergónico, exergónico e energia livre de Gibbs. O sentido em que um processo reativo ou de transporte tende a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada a esse processo.

A equação de Gibbs (Equação 1) relaciona a variação da energia livre de Gibbs associada a um processo reativo com a razão Keq/QR mostrando que há uma proporcionalidade direta entre o valor da variação da energia de Gibbs (ΔG) e o simétrico do ln dessa razão. R e T são constantes de proporcionalidade correspondendo, respetivamente, à constante dos gases (8,314 J K-1 mol-1) e à temperatura (em graus Kelvin).

Equação 1 ∆G = −RT ln

O valor da constante de equilíbrio (Keq) é uma razão em que no numerador se multiplicam as concentrações dos produtos no equilíbrio (elevadas aos respetivos coeficientes estequiométricos) e no denominador se multiplicam as concentrações dos reagentes no equilíbrio (também elevadas aos respetivos coeficientes estequiométricos). O quociente de reação (QR) é uma expressão análoga mas em que as concentrações dos reagentes e dos produtos são as que existem no estado em que o ΔG está a ser determinado.

A relação entre os valores da Keq de uma determinada reação e o do QR que se observa em circunstâncias especificadas determina o sentido (direto ou inverso) em que a reação tende a evoluir. Numa qualquer reação A→B, quando a Keq>QR a reação diz-se exergónica no sentido em que foi expressa e endergónica no sentido contrário. Os adjetivos endergónico e exergónico classificam reações e relacionam-se com o valor da variação da energia livre de Gibbs (ΔG) associada que tem valor positivo ou negativo, respetivamente. Quando Keq>QR o valor de ΔG é negativo: o ln de um número superior a 1 é um número positivo e portanto, dado o sinal – na Equação 1, o valor do ΔG é um número negativo. O contrário acontece no caso de Keq<QR.

Quando QR=Keq o valor de ΔG é nulo (ln 1 = 0) e a reação está em equilíbrio químico: embora ao nível molecular se processe em ambos os sentidos a velocidades iguais, não há conversão líquida dos reagentes nos produtos nem dos produtos nos reagentes.

No caso mais simples de transporte transmembranar, quando a substância que atravessa a membrana não tem carga, o processo está em equilíbrio quando as concentrações em ambos os lados da membrana são iguais. Neste caso a equação de Gibbs pode aplicar-se se admitirmos que o valor da “Keq” é 1 e que “QR” é a razão entre a concentração da substância do lado da membrana para onde a substância difunde e a sua concentração do lado da membrana de onde a substância provem. Se, num determinado momento, a concentração de glicose é no plasma sanguíneo 5 mM e dentro de uma célula 0,1 mM, a glicose tende a entrar para dentro da célula e o valor de ΔG associado a esse processo de transporte é de cerca de -10 kJ por mole de glicose que atravessa a membrana (ver Equação 2).

Equação 2 ΔG = - RT ln (1 / (0,1 mM/5 mM) = - RT ln (5 mM / 0,1 mM/) = -10 kJ/mol

Se considerarmos um qualquer transporte de uma substância neutra a favor do gradiente uma equação equivalente à enunciada acima é a Equação 3 onde [S] representa o lado com maior concentração e [s] o lado onde a concentração é menor. Assim, o transporte de uma substância

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neutra a favor do gradiente é um processo exergónico (ΔG<0) e, no sentido contrário, seria endergónico (ΔG>0).

Equação 3 ∆G = −RT ln [S] [s]

No caso do transporte de substâncias iónicas deve ter-se em conta a diferença de cargas

entre a face exterior e a interior da membrana e que se traduz numa diferença de potencial elétrico. No caso da membrana citoplasmática não excitada (em “potencial de repouso”) e da membrana da mitocôndria a carga elétrica é negativa no interior (da célula e da mitocôndria, respetivamente) e a diferença de potencial favorece a entrada de iões positivos (e a saída de negativos). O valor da energia de Gibbs associado ao gradiente elétrico quando um ião de carga Z atravessa uma membrana em que a diferença de potencial é Ψ (psi) é dado pela Equação 4.

Equação 4 ΔG = Z F Ψ

Nesta equação F é o Faraday (96500 Coulomb mol-1). Ψ tem o sinal (positivo ou negativo)

do interior da membrana. Se o gradiente de concentrações for nulo e, portanto, não contribuir para a termodinâmica do processo de transporte, o valor de ΔG associado ao movimento de um ião de carga positiva (Z>0) do exterior para o interior de uma membrana onde o interior tem carga negativa tem sinal negativo e é, portanto, um processo exergónico. Quando existe também um gradiente químico (concentrações), o valor da energia de Gibbs associada ao gradiente eletroquímico é a soma dos valores obtidos na Equação 3 e na Equação 4.

Exemplificando com o caso do ião Na+ que atravessa a membrana citoplasmática de uma célula. Se admitirmos que, na membrana citoplasmática de uma determinada célula, Ψ = -0,086 V (interior negativo) e que as concentrações de Na+ no exterior e no interior são, respetivamente, 145 mM e 10 mM, quer o gradiente elétrico (Equação 4), quer o gradiente químico (concentrações; ver Equação 3) têm ΔG negativo. O ΔG associado ao gradiente elétrico será de -8,3 kJ mol-1 e o associado ao gradiente químico de -6,6 kJ mol-1; a soma é -14,9 kJ /mol de Na+ transportado. O valor negativo desta soma indica que o Na+ tende a mover-se a favor do seu gradiente eletroquímico: de fora para dentro da célula. De facto, em ambas as parcelas o ΔG era negativo: quer o gradiente elétrico, quer o químico “empurram” o Na+ na mesma direção.

Um resultado semelhante (-17,9 kJ) podia ser obtido se usássemos como exemplo o gradiente eletroquímico dos protões na membrana mitocondrial interna e admitíssemos um valor de Ψ = -0,150 V (negativo no interior) e valores de 10-7 M e 10-7,6 M para a concentração de protões no exterior e no interior, respetivamente. O valor negativo do ΔG indica que, também neste caso, o ião (neste caso o protão) tem tendência a mover-se para o interior da mitocôndria e que ambas as parcelas (as que resultam da aplicação das equações 3 e 4) são negativas.

1.2 Conceito de acoplamento entre processos endergónico e exergónicos. O sentido em que os processos acoplados tendem a evoluir é indicado pelo sinal da energia de Gibbs associada ao processo global. Transporte ativo e transporte passivo.

As reações químicas e os processos de transporte tendem a evoluir no sentido em o ΔG é negativo. Se, numa qualquer reação A→B, a razão Keq/QR>1, esta tende a evoluir no sentido em que foi escrita. A Equação 1 mostra que esta condição é suficiente para afirmar que na reação A→B, o valor de ΔG é negativo (é exergónica no sentido A→B) e que ela só pode evoluir no sentido em que

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A é consumido e se forma B. Ou seja, na ausência de acoplamento (ver à frente) todas as reações são exergónicas; a reação em análise não pode evoluir no sentido em que é endergónica (B→A).

As reações endergónicas (ΔG>0) não existem, mas é frequente que uma determinada reação enzímica (ou um processo de transporte) possa ser, conceptualmente, fracionado numa componente exergónica e noutra endergónica. A componente endergónica só pode ocorrer acoplada com uma componente exergónica em que o valor absoluto da variação da energia livre de Gibbs que lhe está associada é superior. Ou seja, entendido no seu todo, o processo catalisado por uma enzima ou por um transportador (ou transportador/enzima) que efetivamente ocorre terá sempre ΔG negativo e será sempre globalmente exergónico.

A equação que descreve a reação catalisada pela cínase da glicose (Equação 5) pode servir como exemplo para ilustrar o que se escreve acima. Esta reação pode ser conceptualmente entendida como o somatório de duas reações complementares expressas pela Equação 6 e pela Equação 7. Equação 5 ATP + glicose → glicose-6-fofato + ADP Equação 6 ATP + H2O → ADP + Pi Equação 7 glicose + Pi → glicose-6-fosfato + H2O

No caso da reação 6 a razão Keq6/QR6 [(2,7 × 105) / (4,5 × 10-4)] é, no citoplasma das células, cerca de 6 × 108. Porque nas células vivas as concentrações das substâncias variam em torno de valores muito estreitos (diz-se que as suas concentrações são estacionárias1), não deve surpreender-nos o facto de o QR de uma qualquer reação ter, nas células vivas, um valor que varia pouco ao longo do tempo. Uma razão Keq/QR de 6 × 108 equivale (ver Equação 1) a um valor de ΔG6 de -50 kJ mol-1: a reação de hidrólise do ATP em ADP e Pi (fosfato inorgânico; ver Equação 6) é, no citoplasma das células, exergónica.

No caso da reação 7, a razão Keq7/QR7 [(3,5 × 10-3) / 5] é cerca de 7 × 10-4: o ΔG7 é +18 kJ mol-1 e, no sentido em que está expressa, é endergónica não podendo ocorrer no citoplasma das células. O inverso da reação de hidrólise da glicose-6-fosfato não pode ocorrer nas células.

A razão Keq/QR do somatório das duas reações discutidas acima (Equação 5) é o produto (Keq6/QR6) × (Keq7/QR7) cujo valor é cerca de 4,2 × 105 e a partir deste valor, usando a Equação 1, podemos determinar o ΔG da reação catalisada pela cínase da glicose. O valor de ΔG5 pode ser calculado de forma mais simples porque quando se somam duas reações o valor do ΔG da reação soma é o somatório dos ΔG das reações parcelares: ΔG5 = ΔG6 + ΔG7 = -32 kJ (-50 kJ +18 kJ = -32 kJ). O valor negativo do ΔG da reação 5 indica-nos que esta reação é exergónica e que pode ocorrer no sentido em que está expressa.

Como referido acima o Na+ tem tendência a entrar para as células movendo-se a favor do seu gradiente eletroquímico do espaço extracelular para o citoplasma. No caso do ião K+ o ΔG associado ao seu transporte na membrana citoplasmática em repouso é, em muitas células, próximo de zero e existe um estado próximo do equilíbrio entre as duas faces da membrana. Embora a concentração de K+ (maior no interior que no exterior) favoreça a sua saída, o gradiente elétrico favorece a sua entrada; porque os valores de ΔG têm sinais contrários e os valores absolutos são semelhantes, o ΔG associado ao gradiente eletroquímico do K+ é, frequentemente, próximo de zero. A existência dos gradientes de concentração nos casos dos iões Na+ e K+ é, em grande parte, uma consequência da ação da ATPase do Na+/K+ que catalisa o transporte de 2 iões K+ do exterior para o interior e de 3 iões Na+ do interior para o exterior. Dado que o processo de entrada de Na+ é exergónico (ver Capítulo 1.1; penúltimo parágrafo) o transporte na direção contrária seria 1 Nos sistemas biológicos, em consequência da existência de mecanismos homeostáticos, as concentrações de intermediários das vias metabólicas mantêm-se em torno de valores estacionários pelo que os QR têm também valores “estacionários”. Assim, é de esperar, que a razão Keq/QR relativa a um determinado processo tenha, num determinado sistema biológico, valores “estacionários”.

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endergónico e portanto impossível. No entanto, o facto de o processo ocorrer acoplado com a hidrólise de ATP permite compreender que aconteça (ver Equação 8). Equação 8 ATP + H2O + 3 Na+ (citoplasma) + 2 K+ (extracelular) → ADP + Pi + 3 Na+ (extracelular) + 2 K+ (citoplasma)

Se usarmos os números obtidos acima podemos mesmo calcular o ΔG para o processo

global como sendo de -5,3 kJ por mol de ATP hidrolisado (-5,3 = -50 + 14,9 × 3). Para obter este valor, o ΔG estimado para o transporte de 1 ião Na+ contragradiente eletroquímico foi multiplicado por 3 porque a ATPase catalisa a saída de 3 iões Na+ por mol de ATP hidrolisado. O transporte de K+ foi ignorado nestes cálculos porque se considerou que o transporte de K+ foi feito em condições próximas do equilíbrio eletroquímico e que o ΔG associado ao seu transporte é nulo.

Quando uma reação química é o componente exergónico de um processo de transporte que é endergónico diz-se que o transporte é ativo primário. É o caso do transporte de Na+ por ação da ATPase do Na+/K+.

Os casos dos complexos I, III e IV da cadeia respiratória são exemplos do mesmo tipo. Neste caso o processo de transporte dos protões de dentro da mitocôndria para fora da mitocôndria é um processo endergónico (ocorre contra gradiente eletroquímico) que só pode evoluir nesse sentido porque está acoplado com um outro que é exergónico: as reações de oxirredução catalisadas por esses complexos. Os complexos I, III e IV podem ser comparados a motores elétricos de uma bomba hidráulica em que a transferência de eletrões (neste caso entre o redutor e o oxidante envolvidos na atividade de cada complexo) fornece a energia para que um processo mecânico (neste caso a transferência de protões da matriz mitocondrial para o citoplasma) possa ter lugar. A analogia é tão óbvia que às enzimas/transportadores que acoplam reações químicas (sendo este o processo exergónico) com o movimento contragradiente de substâncias através de membranas (sendo este o processo endergónico) se dá o nome de bombas. Quando a reação química envolvida não é uma reação de oxirredução, mas a reação de hidrólise do ATP o nome “bomba” também é aplicado – é o caso da bomba de sódio-potássio em que a hidrólise do ATP está acoplada com o movimento dos iões Na+ (e K+) contragradiente (ver Equação 8).

Em alguns casos quer o componente exergónico, quer o endergónico são processos de transporte: é o caso da atividade da SGLT1 (da expressão inglesa “Sodium dependent Glucose Transporter 1”) que catalisa o transporte de glicose do lúmen do intestino (e do nefrónio) para os enterócitos (e células tubulares renais) acoplado com o transporte de Na+ no mesmo sentido. O movimento do Na+ é exergónico e a absorção (e a reabsorção, no caso do rim) de glicose pode ocorrer contra o gradiente da glicose. Quando o transporte de uma qualquer substância (neste caso a glicose) ocorre contra gradiente diz-se que existe transporte ativo; neste caso, porque o gradiente eletroquímico do Na+ (o componente exergónico) foi criado por uma proteína (ATPase do Na+/K+) que desenvolve transporte ativo primário, o transporte da glicose diz-se ativo secundário.

No caso da atividade da síntase do ATP mitocondrial um processo reativo endergónico (ADP + Pi → ATP + H2O; a mesma reação descrita pela Equação 6, mas em sentido inverso) está acoplado com um processo de transporte exergónico, o transporte de protões do espaço extramitocondrial para a matriz da mitocôndria a favor do gradiente eletroquímico. O acoplamento é possível porque a síntase do ATP funciona de forma semelhante a um dínamo em que um movimento mecânico (neste caso o movimento dos protões que induzem alterações cíclicas na conformação das subunidades da proteína) fornece a energia necessária para que o processo endergónico de síntese de ATP tenha lugar. A equação que descreve a atividade da síntase do ATP (os dois componentes) é a Equação 9.

Equação 9 ADP + Pi + 3? protões (citoplasma) → ATP + H2O + 3? protões (matriz mitocondrial)

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O antónimo de transporte ativo é transporte passivo (outra palavra que se costuma usar com um significado idêntico é “difusão”) mas, quando estão em causa substâncias com carga elétrica, a sua definição não é absolutamente consensual. A maioria das vezes quando se diz que o transporte de um determinado ião é passivo quer-se dizer que ocorre a favor do gradiente eletroquímico; ou seja que o ΔG correspondente ao somatório dos ΔGs determinados pelas Equações 3 e 4 é negativo. Quando, como no caso do Na+ referido no Capítulo 1.1, em ambas as Equações o sinal é negativo não há nenhum tipo de conflito: o transporte é inequivocamente passivo. No entanto, pode dar-se o caso de o somatório ser negativo, mas que o ΔG correspondente ao gradiente de concentrações (o que é calculado pela Equação 3) seja positivo. Para isso basta que o ΔG corresponde ao gradiente elétrico (o que é calculado pela Equação 4) seja negativo e que o seu valor absoluto seja superior ao valor absoluto do ΔG correspondente ao gradiente de concentrações. Neste caso uma substância move-se contra o seu gradiente químico (do lado em que a concentração é mais baixa para o lado em que é mais elevada) porque, por exemplo, tem carga positiva e o compartimento para onde se está a mover tem carga suficientemente negativa para contrabalançar o efeito que seria de esperar do gradiente de concentrações. Porque a carga elétrica existente nas membranas biológicas é uma consequência da atividade da ATPase do Na+/K+, na opinião do autor destas linhas, seria adequado pensar que, apesar de o movimento ocorrer a favor do gradiente eletroquímico (o somatório das Equações 3 e 4 é negativo), porque ocorre contra gradiente de concentrações e o motor último do processo é uma reação química (a hidrólise do ATP) este tipo de transporte deveria ser classificado como transporte ativo secundário.

1.3 Distinção entre ΔG e ΔH, entre reação exergónica e exotérmica e entre reação endergónica e endotérmica.

É de notar que as palavras “exergónica” e “exotérmica” não são sinónimas: quando numa reação A ↔ B a entalpia de A > entalpia de B a reação será exotérmica (libertando calor) quando evolui no sentido A→B e, será endotérmica (consumindo calor), quando evolui no sentido B→A. No entanto, a reação só pode evoluir no sentido determinado pela razão Keq/QR e será sempre exergónica.

Os termos exotérmico (ΔH<0) e endotérmico (ΔH>0) referem-se à diferença entre as entalpias dos reagentes e dos produtos num processo reativo. Em geral, reações muito exotérmicas têm valores de Keq muito elevadas. Embora muitas reações evoluam no sentido em que são exotérmicas o sinal de ΔH não chega para prever o sentido em que uma reação vai evoluir. Se numa reação A→B a Keq for 10 e tivermos num tubo de ensaio 10 moles de A e 1 mole de B a reação evoluirá no sentido A→B até que 9 moles de A se transformem em 9 moles de B e se atinja o equilíbrio químico. Se a entalpia molar de A for maior que a de B e a diferença for 1 kJ mol-1 a reação vai libertar calor no valor de 9 kJ (reação exotérmica). Mas se tivermos à partida 11 moles de B e zero de A, a reação vai evoluir no sentido B→A e o equilíbrio químico será atingido quando 1 mole de B se transformar num mole de A. Neste caso haveria consumo de calor no valor de 1 kJ (o frasco onde decorria arrefeceria) e a reação seria endotérmica. O sinal do valor do ΔH (negativo no primeiro caso e positivo no segundo), ao contrário do sinal do valor de ΔG, não nos indica o sentido em que a reação tende a evoluir.

Porque as concentrações das substâncias existentes nas células (embora estacionárias) variam no tempo pode acontecer que o valor do QR de uma determinada reação possa situar-se, num determinado momento, abaixo da Keq e, noutro momento, possa situar-se acima. Neste caso a reação evoluirá em sentidos opostos nesses dois momentos diferentes; porque evolui sempre no sentido em que Keq>QR a reação será sempre exergónica. Se o valor das entalpias dos reagentes e dos produtos não forem iguais (como acontece quase sempre) o valor de ΔH será positivo num dos casos (reação endotérmica) e negativo no outro (reação exotérmica).

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Embora seja comum o uso da expressão “energia” quando nos referimos à “energia livre de Gibbs” e o seu valor seja expresso em unidades de energia (J ou calorias) já foi proposto que, neste contexto, se abandonasse o termo energia e se passasse a dizer função de Gibbs. A ideia de que a energia total do universo se conserva (primeiro princípio da termodinâmica) não se aplica à “energia” de Gibbs. Na reação A→B e na reação B→A quando as reações evoluem no sentido do equilíbrio a variação da “energia” de Gibbs é negativa e há diminuição da “energia de Gibbs”. No caso do ΔH o facto de ser negativo ou positivo quer dizer que se liberta ou se consome calor, respetivamente; neste caso a energia não se perde apenas ocorre troca de energia entre o sistema e o meio exterior. De notar que o sistema A→B analisado acima era um sistema in vitro e que a reação acabaria por parar (atingir o equilíbrio químico) apenas evoluindo num determinado sentido enquanto o ΔG fosse diferente de zero. Ao atingir o equilíbrio (10 moles de B e 1 mole de A) o ΔG seria zero. Nos seres vivos, com muito poucas exceções, as reações nunca atingem verdadeiramente o equilíbrio químico e, no sentido em que estão a evoluir, o ΔG é, obviamente, negativo. Uma das exceções são as reações ácido base que serão objeto de análise sumária à frente neste texto.

O conceito de “energia livre de Gibbs” está associado ao 2º princípio da termodinâmica, o princípio que permite prever o sentido em que uma transformação tende a evoluir. Quando o ΔG de uma transformação tem sinal negativo significa que a entropia do universo tende a aumentar quando essa transformação ocorre. De acordo com 2º princípio da termodinâmica é esta a condição para se poder afirmar que ela tenderá a evoluir no sentido em que foi formulada.

1.4 Conceitos de variação de energia de Gibbs padrão. Conceitos de ΔG’º, Keq’ e QR’ usados em Bioquímica.

O valor de ΔGº (variação da energia livre de Gibbs padrão) está intimamente relacionado com o da Keq (Equação 10) e é, apenas, uma outra forma de expressar este valor, não dando, por si só, qualquer indicação acerca do caráter endergónico ou exergónico do processo em sistemas biológicos.

Equação 10 ΔGº = -RT ln Keq

É, por isso, errado dizer que um determinado processo reativo é endergónico apenas porque

o valor de ΔGº é positivo: ΔGº positivo apenas significa que a Keq<1. O valor de ΔGº só coincide com o do ΔG quando o valor do QR é 1 (ou seja, quando as condições são padrão: quer os produtos quer os reagentes se encontram em concentrações unitárias; 1M se são solutos sólidos e 1 atm se são gazes) e só por improvável coincidência é que as condições definidas como padrão coincidirão com as condições da célula ou as de um qualquer sistema reativo real.

Na esmagadora maioria das reações que ocorrem em meio aquoso, quando um dos reagentes ou um dos produtos é a água a sua concentração não varia ao longo do processo. Se expressarmos a hidrólise dum composto AB usando a Equação 11 e decidirmos escrever a equação que traduz a Keq podemos, eventualmente, ser tentados a escrever a Equação 12.

Equação 11 AB + H2O → A + B

Equação 12 K = [A]( )[B]( )[AB]( )[H2O]( )

Nesta equação todos os termos se referem às concentrações quando o equilíbrio químico foi atingido mas, no caso da água, a questão é irrelevante porque a concentração de água é invariante. Se multiplicarmos ambos os termos da equação por [H2O] obtermos Keq1 × [H2O] = [A](eq) [B](eq) / [AB](eq). De facto, em meio aquoso, quando a água é um dos reagentes ou um dos produtos, a

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equação que expressa a Keq não inclui a água e o valor da sua concentração (55,5 M) está incluído no valor da Keq. (Um exemplo bem conhecido deste tipo de constantes de equilíbrio é o do produto iónico da água. Neste caso Kw = [H+] [OH-] mas a reação a que diz respeito é a de protólise da água: H2O → H+ + OH-.) Assim, no caso da reação de hidrólise de AB a Keq é, de facto, a que pode ser obtida dividindo a concentração dos produtos pelos reagentes no estado de equilíbrio com exclusão da água (ver Equação 13).

Equação 13 = [A]( )[B]( )[AB]( )

Nos sistemas reativos que interessam aos bioquímicos o pH também é fixo porque os meios

reativos (quer in vitro, quer in vivo) são tamponados. Admitamos que um ácido AH se dissocia de acordo com a equação: AH → A- + H+. A sua constante de acidez é expressa pela Equação 14.

Equação 14 = [A ]( )[H ]( )[AH]( )

Se, como admitimos, o sistema está tamponado o valor de [H+] é invariante. Se, por

exemplo, o pH for 7, o valor de [H+] é 10-7 M e, nestas condições, podemos definir uma constante Ka’ que resulta da divisão de ambos os termos da Equação 14 por [H+]: ver Equação 15. Para um determinado pH fixo a razão entre as concentrações das formas dissociada e não dissociada de um ácido é constante e é Ka’.

Equação 15 = [H ] = [A ][AH] Na Equação 15, para simplificar, deixamos de escrever que as concentrações são de

equilíbrio, mas, de facto, são: na escala de tempo da maioria das reações, incluindo as reações enzímicas, é sensato admitir que as reações de protólise (ou a reação inversa, a ligação de protões) atingem o equilíbrio instantaneamente.

Muitas substâncias orgânicas existem, em solução, como misturas das suas formas dissociada e não dissociada sendo a razão determinada pelo pH do meio e pelo Ka da forma ácida (a forma não dissociada), ou seja, pelo Ka’.

Consideremos um processo reativo que ocorre a pH constante e definido que pode ser descrito como ocorrendo em duas etapas discretas. Na primeira etapa duas substâncias aprótidas (A e B) reagem formando o ácido CH (ver Equação 16) e na segunda etapa CH sofre protólise dissociando-se em C- + H+ (ver Equação 17). Equação 16 A + B → CH Equação 17 CH → C- + H+

A constante de equilíbrio relativamente à formação de CH a partir de A e B é a Keq expressa pela Equação 18. Por sua vez à protólise de CH está associada uma constante Ka’ de tipo semelhante à expressa acima pela Equação 15; neste caso concreto será a Equação 19. A constante de equilíbrio corresponde ao processo reativo completo será o que se obtém multiplicando a Equação 18 pela Equação 19, ou seja, a Equação 20.

Equação 18 = [CH][A][B]

Equação 19 = C-[CH]

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Equação 20 × = C-[A][B]

Se o valor do pH do meio for muito baixo (ou seja, muito mais baixo que o pKa do ácido CH) poder-se-á ignorar a reação de protólise do CH e pensar que a Equação 18 expressa de forma adequada a constante de equilíbrio corresponde ao processo. Por outro lado, se admitirmos que o pH é muito mais alto que o pKa do ácido CH, podemos pensar que a dissociação de CH é completa e que a Equação 20 é a que melhor exprime o equilíbrio atingido.

Entre esses dois extremos de pH existe uma situação em que quer a Equação 18, quer a Equação 20 retratam uma parte da realidade. Neste caso é de considerar que a soma da Equação 18 e da Equação 20 exprime a razão entre a soma das concentrações de equilíbrio dos produtos CH e C- relativamente ao produto das concentrações dos reagentes A e B no estado de equilíbrio. A soma de duas constantes e também uma constante a que podemos chamar Keq’.

Equação 21 = + × = [CH]+ C-[A][B]

A maioria das vezes quando, em Bioquímica, se escreve uma equação que também envolve

processos de dissociação protónica a equação não está acertada relativamente aos protões e às cargas porque os componentes ionizáveis são misturas das formas ácida e dissociada. Se, por exemplo, se escrever que, na glicólise anaeróbia, uma mole de glicose (C6H12O6) se desdobra em duas de lactato (ver Equação 22) está-se a querer dizer que o produto final é uma mistura das formas não dissociada (ácido láctico; C3H6O3) e dissociada (lactato-; C3H5O3

-) e que o grau de dissociação é um assunto que, de momento, não nos interessa trazer para a discussão.

Equação 22 glicose → 2 lactato

Esta forma de escrever equações (ignorando a carga do lactato e a formação de protões)

simplifica a notação e a apreciação da constante de equilíbrio aparente (Keq’) para o processo de formação do lactato (a mistura das formas dissociada e não dissociada), mas tem a desvantagem de mascarar o processo de formação de protões que, de facto, também acontece durante o processo.

A conversão de glicose em ácido láctico é um processo catalisado por enzimas que é regulado e nunca está em equilíbrio. No entanto, o valor da Keq’ associado ao processo descrito pela Equação 22 (cerca de 1019 M) permite prever que tende a evoluir no sentido da formação do lactato. O estudo da formação dos protões pode ser apreciado em separado. O ácido láctico e o ião lactato- estão em equilíbrio e o pKa do ácido láctico (cerca de 4) permite prever que, a pH= 7 (ver nota 2), apenas uma em cada 1000 moléculas de ácido láctico se encontra na forma não dissociada. Ou seja, quase todas as moléculas de ácido láctico formadas na glicólise anaeróbia sofrem protólise e os produtos desse processo são iões lactato- e protões. De facto, no caso em análise, o valor da Keq’ praticamente coincide com a constante de equilíbrio correspondente à conversão de glicose em lactato ionizado, mas nem sempre isso acontece.

Se, por exemplo, considerarmos a reação de hidrólise da glicose-6-fosfato (ver Equação 23 que é o inverso da Equação 7) a Keq’ já contém somatórios no numerador e no denominador. No caso da glicose-6-fosfato porque o pKa da forma sem carga elétrica é 6,1, a pH 7, apenas cerca de 10% das moléculas estão nesta forma e os outros 90% na forma de glicose-6-fosfato-. No caso do

2 pKa de um ácido = - log Ka e o pH = - log [H+]. A Equação 15 permite prever a razão entre as concentrações das formas dissociada e não dissociada de um ácido AH conhecido o pH do meio e o pKa. Se, por exemplo, o valor do pH do meio coincide com o do pKa do ácido AH as concentrações das formas não dissociada (AH) e dissociada (A-) são iguais.

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Pi, na ausência de iões Mg2+, predominam os iões H2PO4- (cerca de 60%) e HPO4

2- (cerca de 40%) mas, na presença de iões Mg2+, também existe a forma MgHPO4.

Equação 23 glicose-6-fosfato + H2O → glicose + Pi

A Keq’ pode ter, em Bioquímica, significados mais complexos que o que explicamos acima

usando o exemplo da dissociação protónica. A reação de hidrólise do ATP pela ação catalítica das ATPases (ver Equação 6) só ocorre na presença do ião Mg2+ porque são complexos ATP-Mg que interagem com a enzima como reagentes e quer o ADP, quer o Pi também formam complexos com o Mg. Quando o ATP intervém num processo reativo, as Keq usadas em Bioquímica são Keq’ em que [ATP] significa a soma das concentrações das diferentes formas de ATP na mistura em equilíbrio. As formas que existem na mistura em equilíbrio são, predominantemente, o MgATP2-, o ATP4- e o HATP3- e a proporção de cada uma delas depende do pH do meio e da concentração de Mg2+ livre. Algo de semelhante se pode dizer em relação ao ADP e ao Pi. Tal como no caso da reação de hidrólise da glicose-6-fosfato, também a Keq’ para a reação de hidrólise do ATP é uma razão em a concentração do reagente (ATP) e a de cada um dos produtos (ADP e Pi) são somatórios das diferentes formas de cada um dos compostos em questão.

Se na Equação 10 substituirmos Keq por Keq’ o valor de ΔGº obtido denomina-se ΔG’º e é esse valor que pode ser encontrado nos textos de Bioquímica. Da mesma forma que se pode definir uma Keq’ também se pode definir um QR’: se, na Equação 1, Keq e QR forem substituídos por Keq’ e QR’, o valor de ΔG obtido será denominado de ΔG’. Às vezes a indicação explicita de que se trata de Keq’, QR’, ΔG’º e ΔG’ é omitida escrevendo-se, simplesmente, Keq, QR, ΔGº e ΔG e, por razões de simplificação, é o que faremos no restante texto.

1.5 Relação entre diferença de potencial redox (ΔE) e função de Gibbs (ΔG). A equação de Gibbs descreve a existência de uma relação direta entre o simétrico do ln

(Keq/QR) e o valor de ΔG (ver Equação 1). Quando a reação em análise é uma reação redox (do tipo oxi1 + red2 →red1 + oxi2) a

equação de Nernst3 (Equação 24) mostra que existe uma relação direta entre a diferença de potencial (E do semielemento de pilha onde ocorre a redução – E do semielemento de pilha onde se dá a oxidação) e o ln da razão Keq/QR.

Equação 24 ∆ = RTnF ln

Da Equação 1 e da Equação 24 deduz-se a Equação 25: existe uma relação direta entre o

valor de ΔG e o simétrico do valor de ΔE. Quando ΔG é negativo, ΔE é positivo e a reação tende a evoluir no sentido em que foi escrita. Equação 25 ΔG = -nF ΔE

3 Na equação ΔE = [RT/(nF)] ln (Keq/QR), R e T já foram definidos (ver Capítulo 1.1); n é o número de moles de eletrões trocados na reação em análise e F é a carga de um mole de eletrões (constante de Faraday = 96500 Coulomb). Esta equação é equivalente a uma outra em que se substituem o valor das constantes pelos respetivos valores, se considera a temperatura como 298 Kelvin e se usam log em vez de ln: ΔE = (0,059/n) log (Keq/Q). Em condições padrão em que QR = 1 fica ΔEº = [RT/(nF)] ln Keq ou ΔEº = (0,059/n) log Keq. Acrescenta-se ‘ ao ΔE (ΔE’) ou ao ΔEº (ΔEº’) quando se quer evidenciar a ideia que consideramos o pH constante e igual a 7 (ver Capítulo 1.4).

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Equações semelhantes (em que se substitui ΔG por ΔGº, ΔE por ΔEº e Keq/QR por Keq) podem ser escritas quando se consideram condições padrão.

Equação 26 ΔGº = -nF ΔEº; ∆ ° = RTnF ln

A Equação 24 e a Equação 25 servem para evidenciar que o sinal da diferença de potencial

entre dois semielementos de pilha nos mostra em que sentido a reação tende a ocorrer e que o seu valor nos indica se a reação está muito afastada do equilíbrio químico ou em equilíbrio químico. Está em equilíbrio químico quando Keq/QR=1, ΔE=0 e ΔG=0).

1.6 Conceitos de reação ou processo de transporte fisiologicamente reversível e irreversível.

A esmagadora maioria das reações químicas existentes nos seres vivos são catalisadas por enzimas, proteínas que foram selecionadas ao longo da evolução e que explicam a existência de determinadas reações e a inexistência (ou irrelevância) de outras. Quando a atividade de uma enzima é, numa célula ou num compartimento subcelular, muito elevada a reação que ela catalisa tende a situar-se próxima do equilíbrio químico (QR ≈ Keq)4. Neste caso, a reação é fisiologicamente reversível porque variações fisiológicas das concentrações dos reagentes e produtos (e, portanto, do QR) podem fazer balançar a reação entre o sentido direto (se o QR diminuir e ficar menor que a Keq) e o sentido inverso (se o QR aumentar e ficar maior que a Keq). Pelo contrário, noutros casos, a enzima responsável por uma determinada reação tem, na célula, uma atividade tão baixa que não permite a aproximação do QR à Keq. Nestes casos, a reação catalisada por esta enzima diz-se fisiologicamente irreversível. As enzimas situadas a jusante (as que removem os produtos dessa reação) e as enzimas situadas a montante (as que fornecem os substratos para essa reação) na via metabólica têm, comparativamente, uma atividade mais elevada e mantêm o QR da reação fisiologicamente irreversível abaixo da Keq.

Na glicólise, com exceção de três enzimas (as cínases da glicose, do piruvato e da frutose-6-fosfato; ver Equações 5, 27 e 28, respetivamente), todas as outras catalisam reações fisiologicamente reversíveis. Equação 27 fosfoenolpiruvato + ADP → piruvato + ATP Equação 28 frutose-6-fosfato + ATP → frutose-1,6-bisfosfato + ADP

De notar que, quando se diz que uma enzima catalisa uma reação fisiologicamente irreversível, apenas se quer dizer que o sentido da reação catalisada por essa enzima é, nas células do organismo, sempre o mesmo. No caso da reação catalisada pela cínase da frutose-6-fosfato, por exemplo, a conversão líquida de frutose-1,6-bisfosfato e ADP em ATP e frutose-6-fosfato (reação inversa à indicada na Equação 28) não ocorre nunca na célula porque o ΔG para esta reação é, em todas as condições do metabolismo, sempre positivo. Todos os valores de QR “fisiológicos” para a reação expressa pela Equação 28 são inferiores à Keq: a reação expressa pela Equação 28, nas células, só é exergónica no sentido em que o ATP fosforila a frutose-6-fosfato (Equação 28 no sentido em que está escrita).

4 As reações de associação e dissociação protónica (ácido-base) também se encontram, nas células e no líquido extracelular, num estado próximo do equilíbrio químico e a razão é a mesma: a alta velocidade com que estes fenómenos decorrem. A única diferença relativamente às reações enzímicas fisiologicamente reversíveis é que as reações ácido-base não são catalisadas por enzimas. Na verdade também se pode defender a ideia que esta afirmação tem exceções. O CO2 é um ácido porque, no meio interno, reage com a água para formar ácido carbónico que se dissocia em ião bicarbonato e protão (H2CO3 → HCO3

- + H+). A dissociação do ácido carbónico não é catalisada por enzimas mas o passo que a precede (CO2 + H2O → H2CO3) é catalisada por uma enzima que é costume designar de anídrase carbónica.

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Existe uma enzima que pode converter a frutose-1,6-bisfosfato em frutose-6-fosfato, mas a reação em causa é uma hidrólise (a enzima que a catalisa chama-se fosfátase da frutose-1,6-bisfosfato; ver Equação 29) e não é catalisada pela cínase da frutose-6-fosfato. O ATP e o ADP participam do processo reativo quando o catalisador é a cínase da frutose-6-fosfato, mas não quando o catalisador é a fosfátase da frutose-6-fosfato. Equação 29 frutose-1,6-bisfosfato + H2O → frutose-6-fosfato + Pi

Também os processos de transporte podem ser fisiologicamente reversíveis ou irreversíveis. No polo basal dos enterócitos existe um transportador para a glicose (um uniporte

designado por GLUT2) que catalisa o transporte da glicose através da membrana e o processo dá-se sempre a favor do gradiente (transporte passivo). Durante o processo de absorção de glicose a concentração é maior no enterócito que no plasma sanguíneo e o processo ocorre do enterócito para o plasma. Contudo, a condição inversa acontece fora do período absortivo e neste caso a glicose difunde do plasma para o enterócito.

Uma situação semelhante acontece no caso dos hepatócitos: durante o período absortivo o gradiente da glicose favorece a entrada de glicose para o fígado enquanto no jejum, o hepatócito sintetiza glicose e o gradiente favorece a saída de glicose. No caso do músculo, pelo contrário, o gradiente da glicose entre o plasma sanguíneo e as fibras musculares favorece sempre a entrada de glicose sendo o processo de entrada da glicose fisiologicamente irreversível. Curiosamente, o uniporte presente no fígado (GLUT2) e no músculo (GLUT4) são produtos de genes distintos, mas o que determina o caráter reversível ou irreversível do processo de transporte de glicose não é a estrutura dos transportadores mas o gradiente de concentrações da glicose: quando o gradiente se inverte, um sistema de transporte passivo passa a operar em sentido inverso.

A atividade da bomba de Na+/K+ (também chamada ATPase do Na+/K+) a que já fizemos referência (ver Equação 8) é fisiologicamente irreversível: a ação desta enzima/transportador é acoplar o processo exergónico de hidrólise do ATP com os processos endergónicos de transporte dos iões Na+ (e K+) contra gradiente.

Isso não quer, evidentemente, dizer que não existam outras enzimas que não promovam a formação de ATP a partir de ADP e Pi: a atividade da síntase do ATP a que também já fizemos referência (ver Equação 9) é exatamente essa. Também não quer dizer que os iões Na+ não possam passar do meio extracelular para o intracelular e que os iões K+ não possam sair do meio intracelular para o extracelular. Através de proteínas da membrana denominadas canais iónicos o movimento dos iões Na+ e K+ ocorre a favor do gradiente eletroquímico e é exatamente isso que acontece, por exemplo, nas células musculares esqueléticas quando uma célula muscular é estimulada pelo seu nervo motor. Nas situações de excitação celular a diferença de potencial da membrana varia em consequência da entrada e saída de iões mas o sentido em que os iões se movimentam através de canais iónicos é sempre a favor do gradiente eletroquímico (ver Capítulo 1.1).

1.7 Conceito de “ligação rica em energia” usado em bioquímica. Apesar do que afirmamos no Capítulo 4 (que o caráter exergónico ou endergónico de um

processo depende do ΔG e não do ΔGº) poderá compreender-se que, para justificar o caráter endergónico ou exergónico de uma reação que ocorre nos seres vivos seja, às vezes, invocado o valor muito positivo ou muito negativo do ΔGº de uma dada reação enzímica. Às vezes, não existem dados fiáveis acerca das concentrações estacionárias de um ou mais dos reagentes e produtos envolvidos no processo sendo impossível fazer uma estimativa dos QR possíveis. Sem o valor do QR é impossível estimar o valor do ΔG. Se, com base noutros dados, se sabe que, na célula, a reação evolui no sentido A→B é forçoso admitir que o valor da Keq da reação A→B é superior ao do QR e que a reação é exergónica.

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Se o valor do ΔGº de uma reação é muito negativo deve concluir-se que a Keq tem um valor elevado e que esse valor elevado contribui para o caráter exergónico da reação. A Equação 30 pode deduzir-se a partir das Equação 1 e da Equação 10 e mostra que o valor do ΔG é o somatório de ΔGº com uma expressão que depende do QR: quando o ΔGº é negativo e tem um valor absoluto elevado é provável que o ΔG também tenha um valor negativo e que o processo seja exergónico no sentido A→B.

Equação 30 ∆G=∆G° −RTln 1 QR

Ao contrário, do valor de ΔG que, se desconhecermos o valor do QR numa célula, não se

pode determinar, o valor do ΔGº é muito fácil de determinar a partir da Keq da reação (ver Equação 10). Por este motivo popularizou-se a ideia de usar o valor do ΔGº como um indicador da tendência de uma reação evoluir em determinado sentido e da sua capacidade de, quando acoplada a outra, determinar o sinal (negativo ou positivo) da reação global.

Como já referido (ver Capítulo 2) a hidrólise do ATP é, nas células, um processo exergónico e algumas das proteínas que ligam o ATP catalisam a sua hidrólise acoplando esta reação com outros processos endergónicos. São exemplos já referidos os casos da ATPase do Na+/K+ (ver Equação 8), das cínases da glicose e da frutose-6-fosfato (ver Equações 5 e 28); um outro é a reação catalisada pela carboxílase do piruvato (ver Equação 31).

Equação 31 CO2 + piruvato + ATP → oxalacetato + ADP + Pi

O transporte contragradiente do Na+ e do K+, a fosforilação da glicose e da frutose-6-fosfato

e a carboxilação do piruvato podem ocorrer porque o valor da energia livre de Gibbs (ΔG) associada ao processo de hidrólise do ATP é suficientemente negativo (processo exergónico) para que, apesar do valor positivo do processo acoplado (endergónico), o valor do ΔG associado ao processo global (somatório dos dois ΔG) seja também negativo.

O facto de muitas enzimas e transportadores de membrana acoplarem reações em que o componente exergónico é a rotura hidrolítica das ligações fosfoanidrido do ATP (as que existem entre os fosfatos α e β ou entre os fosfatos β e γ) levou ao uso da terminologia “ligações ricas em energia” para classificar estas ligações. O ΔGº (de facto, o ΔG’º; ver Capítulo 1.4) associado à rotura hidrolítica destas ligações é, respetivamente, -31 e -46 kJ/mol.

O valor do ΔGº associado à rotura hidrolítica de outras ligações fosfoanidrido (como a que existe no 1,3-bisfosfoglicerato entre o grupo carboxílico e o fosfato), de ligações fosfamida (como a que existe na fosfocreatina entre o grupo guanidina e o fosfato), enol-fosfato (como a que existe no fosfoenolpiruvato entre o grupo hidroxílico no carbono 2 e o fosfato) e tioéster (como a que existe na acetil-CoA e na succinil-CoA) é ainda mais negativo o que levou à extensão do conceito a estas ligações.

O valor do ΔGº associado à rotura hidrolítica de ligações glicosídicas ou éster situa-se, em geral, entre -10 kJ/mol e -20 kJ/mol e estas ligações não são “ricas em energia”.

O conceito revelou-se útil porque, normalmente, quando uma enzima catalisa o acoplamento de duas semirreações em que uma é a rotura de uma “ligação rica em energia” e a outra a formação de uma ligação que “não é rica em energia” a reação é fisiologicamente irreversível ocorrendo no sentido em que se dá a rotura das ligações “ricas em energia”. São exemplos as reações catalisadas pelas cínases da glicose e frutose-6-fosfato (ver Equação 5 e Equação 28).

Pelo contrário, quando uma enzima catalisa uma reação que pode ser entendida como o acoplamento de dois processos em que, num deles se rompe uma “ligação rica em energia” e no outro se forma uma “ligação rica em energia” o processo reativo é, com muita frequência,

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fisiologicamente reversível. São exemplos as reações catalisadas pelas cínases do 3-fosfoglicerato (Equação 32) e da creatina (Equação 33) e pela sintétase de succinil-CoA (Equação 34).

Equação 32 1,3-bisfosfoglicerato + ADP ↔ 3-fosfoglicerato + ATP Equação 33 fosfocreatina + ADP ↔ creatina + ATP Equação 34 succinato + CoA + ATP (ou GTP) ↔ succinil-CoA + ADP (ou GDP) + Pi

Uma exceção a esta última regra é a reação catalisada pela cínase do piruvato (ver Equação

27). Apesar de a reação catalisada pela cínase do piruvato poder ser entendida como um processo em que se rompe uma “ligação rica em energia” (a ligação enol-fosfato do fosfoenolpiruvato) formando-se outra (a ligação fosfoanidrido entre os fosfatos β e γ do ATP) a reação é fisiologicamente irreversível no sentido em que está escrita na Equação 27: rotura da ligação enol-fosfato e formação de uma ligação fosfoanidrido do ATP.

2 - Conceito gerais do funcionamento das enzimas e sua nomenclatura

2.1 As enzimas aumentam a velocidade das reações porque diminuem a energia livre de ativação, o ΔGº relativo à formação do estado de transição.

Numa reação, qualquer reação, a conversão dos reagentes em produtos ocorre por passos discretos formando-se no processo compostos instáveis e impossíveis de isolar a que chamamos estados de transição. Numa reação A→P haverá um estado de transição A* e a reação evolui via conversão A→A* e A*→P.

Em grande medida a catálise enzímica assim como a especificidade das enzimas resultam da complementaridade estrutural e de carga entre as enzimas e os estados de transição formados no processo reativo. De facto já foram sintetizadas enzimas artificiais produzindo anticorpos contra substâncias que são análogos do estado de transição de processos reativos. Estas enzimas artificiais designam-se por abzimas (o prefixo ab deriva da expressão inglesa “antibody”).

Porque a enzima se liga fortemente ao estado de transição (A*) favorece a formação deste estado de transição fazendo com que a sua concentração seja mais elevada que a que poderia existir na sua ausência. Se admitirmos que a velocidade da reação A*→P aumenta quando aumenta a concentração do estado de transição (A*) concluiremos que aumentar a concentração do estado de transição tem como consequência o aumento da velocidade da reação global (A→P).

Esta ideia também pode ser expressa em termos de energia livre de Gibbs. Na ausência de enzima o ΔGº correspondente à transformação A → A* será tanto mais elevado quanto menor for o valor da Keq relativa a esta transformação. Sendo a enzima complementar ao estado de transição (A*), a presença da enzima vai favorecer a formação deste estado de transição; ou seja, a presença da enzima vai aumentar a Keq aparente relativa à transformação A → A* e, portanto, aumentar a quantidade de A* em equilíbrio com A. Na realidade, passa a existir um estado de transição diferente daquele que se podia formar na ausência de enzima e que corresponde ao complexo enzima-estado de transição (E•A*). Dizer que a Keq aparente da transformação A → A* aumenta é equivalente a afirmar que diminui a energia livre de Gibbs padrão correspondente à formação do estado de transição. A energia livre de Gibbs padrão correspondente à transformação A→A* (r1) ou à transformação E + A → E•A* (r2) também se denomina “energia livre de ativação”. Porque a Keq da transformação r2 (a que envolve a enzima) é maior que a Keq da transformação r1 (a que não envolve a enzima), ΔGº2<ΔGº1. A presença da enzima diminuiu a energia livre de Gibbs padrão relativa à formação do estado de transição (energia livre de ativação) e, desta forma, possibilita a existência de uma concentração maior do composto “estado de transição” e um aumento da

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velocidade da reação global. Desta maneira se pode compreender a afirmação que diz que a ação catalítica das enzimas é uma consequência da diminuição da energia livre de ativação.

2.2 A presença de uma enzima não afeta o sentido em que a reação que ela catalisa vai evoluir.

As enzimas baixam a energia livre de ativação das reações que catalisam mas não têm nada que ver com o sentido global em que a reação vai evoluir sendo, pelo menos teoricamente, capazes de catalisar quer a reação direta (A→P) quer a inversa (P→A). Ao favorecerem a formação do complexo E•A* tanto aumentam o valor da Keq relativa à transformação E+A→E•A* como o da Keq relativa à transformação E+P→E•A*.

A maltase, por exemplo, catalisa a hidrólise da maltose (Equação 35) e a Keq correspondente ao processo de hidrólise é 5,2 × 102 M (equivalente a ΔGº’= -15,5 kJ mol-1). Equação 35 maltose + H2O → 2 glicose

Este valor da Keq permite prever que se adicionarmos maltase a uma solução de glicose será muito difícil observar a transformação inversa à da hidrólise: a reação ficará em equilíbrio químico logo que algumas poucas moléculas de glicose originem maltose. No entanto, os resultados experimentais com enzimas cujas reações têm Keq com valores mais próximos da unidade permitem induzir que, tal como acontece no caso destas enzimas, também a maltase catalisa a reação inversa à reação de hidrólise da maltose.

2.3 Significado das expressões cofator, grupo prostético e coenzima. A expressão cofator é usada para designar substâncias que, não sendo reagentes nem

produtos da reação, são indispensáveis à atividade da enzima que catalisa a reação em análise. O exemplo clássico é o Mg2+ que deve estar presente no meio de ensaio sempre que se ensaiam enzimas que usam como substrato o ATP. Esta necessidade é uma consequência do facto de a ligação do ATP às enzimas ser mediada por iões Mg2+. Pode dizer-se que o substrato das enzimas não é o ATP isolado mas sim o complexo ATP-Mg2+. No entanto o Mg2+ não sofre nenhuma transformação durante a reação mantendo-se, em parte, ligado aos produtos (quer estes sejam fosfatos orgânicos, o Pi, ou o PPi) e em parte na forma livre.

No entanto, não é infrequente designarem-se também de cofatores compostos que, com maior adequação, caberiam nas designações de grupos prostéticos ou coenzimas.

Usa-se a expressão “grupo prostético” para designar os componentes de uma proteína que não são constituídas por resíduos aminoacídicos mas que estão fortemente ligados (em muitos casos por uma ligação covalente) à(s) cadeia(s) aminoacídica(s). Quando queremos distinguir os componentes de uma proteína que contém um ou mais grupos prostéticos chamamos apoproteína à parte da cadeia aminoacídica e ao conjunto holoproteína: no caso de uma enzima as expressões equivalentes são apoenzima e holoenzima. Os grupos prostéticos de uma enzima são indispensáveis à sua atividade e também não se consomem quando se completa um ciclo catalítico; por isso, não é de estranhar que a palavra cofator também possa ser usada para os designar.

Por exemplo, o complexo desidrogénase do piruvato contém 3 grupos prostéticos: a tiamina-pirofosfato (também chamada tiamina difosfato), o ácido lipóico e o FAD. Durante o processo catalítico estes 3 grupos prostéticos intervêm diretamente no processo reativo. Num ciclo catalítico a tiamina pirofosfato fica ligada (e desligada) a um grupo hidroxietilo, o ácido lipóico liga-se (e desliga-se) a um acetilo e sofre redução (e oxidação) e o FAD também é reduzido (e oxidado). O oxidante final é uma substância que se liga de forma débil à enzima: o NAD+. O somatório das diversas reações parciais catalisadas pelo complexo desidrogénase do piruvato é expresso pela Equação 36:

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Equação 36 piruvato + NAD+ + CoA → acetil-CoA + CO2 + NADH

As expressões “grupo prostético” e “coenzima” não têm exatamente o mesmo significado mas podem confundir-se.

Coenzimas são substâncias que podem estar em dois estados (ou formas) interconvertíveis durante o metabolismo celular: o par NAD+, NADH e o par NADP+, NADPH são coenzimas porque variam entre o estado oxidado e reduzido; a coenzima A também é uma coenzima porque pode estar na forma livre (CoASH) ou ligada ao acetilo (acetil-CoA), ao succinilo (succinil-CoA) ou a diversos ácidos gordos (diversos acis-CoA). Em ensaios in vitro uma das formas de uma dada coenzima será um substrato como qualquer outro e, se estiver envolvida na atividade da enzima em estudo, tem de ser adicionada ao meio de ensaio. No entanto, se se pensar no contexto do metabolismo celular, percebe-se que, em analogia com as enzimas (que se transformam durante o ciclo catalítico mas se regeneram no final do ciclo), se chamem coenzimas ao NAD+, ao NADH, ao NADP+, ao NADPH e à coenzima A. Dois exemplos: (1) o NAD+ reduz-se a NADH durante a conversão glicose → piruvato, mas o NADH formado sofre reoxidação a NAD+ na conversão piruvato → lactato (ver Equação 37) ou por ação da cadeia respiratória; (2) a CoASH converte-se em acetil-CoA por ação da desidrogénase do piruvato mas, na “primeira” reação do ciclo de Krebs, a catalisada pela síntase do citrato, a CoASH é regenerada (ver Equação 38).

Equação 37 piruvato + NADH ↔ lactato + NAD+ Equação 38 oxalacetato + acetil-CoA → citrato + CoASH

Às vezes a expressão “coenzima” é também usada para incluir os grupos prostéticos. Percebe-se que assim seja se pensarmos que durante um ciclo catalítico os grupos prostéticos sofrem uma determinada transformação mas são regenerados no final. Durante o ciclo catalítico da desidrogénase do piruvato, o FAD é reduzido a FADH2 pela forma reduzida do ácido lipóico (que se oxida) mas, logo de seguida, é oxidado pelo NAD+ regenerando-se o FAD. O facto de a ligação do NAD+ (e do NADH), do NADP+ (ou do NADPH) e da coenzima A às enzimas com que interagem ser débil (não sendo adequado pensar no complexo da enzima com estas substâncias como uma holoenzima) permite compreender que a expressão “grupo prostético” não seja adequada para designar estas substâncias.

Para uma correlação com a clínica ver subcapítulo seguinte:

2.3.a O FAD é o grupo prostético da proteína de transferência de eletrões e mutações nesta proteína podem diminuir a ligação ao FAD

Uma doença congénita designada de acidemia glutárica tipo II é causada por mutações numa das duas enzimas que, de forma sequenciada, transferem eletrões desde o FAD de diversas desidrogénases até à ubiquinona situada na cadeia respiratória.

Essas duas proteínas designam-se de flavoproteína de transferência de eletrões (ETF) e de oxiredútase ETF: ubiquinona e ambas contêm FAD como grupo prostético.

Nalguns casos os doentes melhoram se tomarem doses elevadas de riboflavina, o precursor na síntese de FAD.

Num estudo recente (2009) uma equipa da Universidade Nova de Lisboa [1] participou num estudo em que se estudou uma ETF mutada causadora da doença. Os estudos mostraram que quando a temperatura do meio de ensaio era superior a 37ºC a enzima perdia afinidade para o FAD e que esta perda era acompanhada de diminuição de atividade e alterações conformacionais que a tornavam mais sensível à ação hidrolítica de protéases. Curiosamente o aumento da temperatura corporal (como a febre) é fator precipitante das crises nestes doentes. O FAD está ligado de forma

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permanente à ETF normal e diz-se, por isso, que é um grupo prostético da ETF, mas, a forma mutada usada no estudo acima referido essa ligação desfaz-se quando a temperatura se eleva.

2.4 Os nomes das enzimas descrevem as suas atividades catalíticas. As enzimas são, na esmagadora maioria das vezes, denominadas de acordo com critérios

funcionais, ou seja, o nome que lhes é atribuído está relacionado com a sua atividade catalítica. Em geral, uma mesma enzima pode ter vários nomes e a nomenclatura não é isenta de ambiguidades; a atribuição de um número EC às enzimas é uma tentativa de resolver essas ambiguidades. Quando a uma mesma atividade enzímica correspondem várias proteínas que são produtos de genes distintos que coexistem numa mesma espécie diz-se que estas proteínas são isoenzimas e são denominadas com o mesmo nome. Foram definidas 6 classes de enzimas: oxiredútases, transférases, hidrólases, líases, isomérases e lígases ou sintétases. No caso das reações mais complexas os critérios que levaram a Comissão de Enzimas do “Nomenclature Committee of the International Union of Biochemistry and Molecular Biology” a classificar uma enzima numa classe e não noutra pode ser difícil de compreender. O texto que se segue visa apenas ajudar a compreender alguns dos critérios usados para denominar as enzimas de maneira que os nomes usados não pareçam tão bizarros.

2.4.a As oxi-redútases (EC 1.x.y.z) catalisam reações redox.5

2.4.a.1 Desidrogénases e redútases

Muitas reações enzímicas de oxi-redução podem ser esquematizadas da seguinte maneira:

Equação 39 XH2 + NAD+ (ou NADP+, FAD, FMN) ↔ X + NADH (ou NADPH, FADH2, FMNH2)

Nestas reações a enzima envolvida no processo catalisa uma reação em que o NAD+, o NADP+, o FAD ou o FMN oxidam um substrato XH2. Nos casos em que o oxidante é o FAD ou o FMN, a reação pode ser interpretada como a perda de dois hidrogénios pelo reagente que se oxida (XH2) e a sua aceitação pelo FAD ou pelo FMN. Quando o oxidante é o NAD+ ou o NADP+, a reação pode ser interpretada como a transferência de um hidrogénio e dois eletrões (um ião hidreto) entre um reagente que se oxida (XH2) e o NAD+ ou o NADP+. Nestes casos, a enzima que catalisa a reação é, frequentemente, denominada desidrogénase do XH2. Obviamente que a mesma enzima também pode catalisar a reação inversa, mas o nome adequado será desidrogénase do “composto orgânico que cede o hidreto ou os hidrogénios ao NAD+, NADP+, FAD ou FMN”. São exemplos as desidrogénases do lactato (Equação 37), do piruvato (Equação 40), da glicose-6-fosfato (Equação 41) e do succinato (Equação 42).

Equação 40 piruvato + NAD+ + CoA → acetil-CoA + NADH + CO2 Equação 41 glicose-6-fosfato + NADP+ → 6-fosfogliconolactona + NADPH Equação 42 succinato + FAD → fumarato + FADH2

A desidrogénase do NADH também existe, mas não se refere a nenhuma das enzimas acima referidas. De facto, lidas em sentido inverso, as reações representadas pela Equação 37 e pela Equação 40 podem ser interpretadas como a perda de um ião hidreto pelo NADH, mas o nome desidrogénase do NADH não se aplica às enzimas que catalisam aquelas reações. A desidrogénase

5 A parte do texto relativa à nomenclatura das oxi-redútases também aparece num outro texto sobre reações redox, escrito pelo mesmo autor.

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do NADH é uma enzima da cadeia respiratória (também designada como complexo I) que catalisa a oxidação do NADH pela coenzima Q (ubiquinona). O agente oxidante direto é o FMN (um grupo prostético do complexo I), que se reduz a FMNH2 e acaba por ceder os hidrogénios à coenzima Q. A Equação 43 representa a primeira parte do processo catalisado pela desidrogénase do NADH.

Equação 43 NADH + FMN → NAD+ + FMNH2

Com alguma frequência as oxi-redútases em que um dos substratos é o NADPH catalisam reações fisiologicamente irreversíveis em que o NADPH funciona como agente redutor. São reações do tipo:

Equação 44 NADPH + Y → NADP+ + YH2

Nestas reações o NADPH reduz o composto Y cedendo-lhe um ião hidreto. Com muita frequência as enzimas que catalisam reações deste tipo designam-se “redútase do Y”. São exemplos a redútase das aldoses (Equação 45 – uma das aldoses possíveis é a glicose que se reduz ao polialcool correspondente), a redútase do hidroxi-metil-glutaril-CoA (Equação 46) e a redútase do glutatião (Equação 47).

Equação 45 NADPH + glicose → NADP+ + sorbitol Equação 46 2 NADPH + hidroxi-metil-glutaril-CoA → 2 NADP+ + mevalonato + CoA Equação 47 NADPH + GS-SG (dissulfureto do glutatião) → NADP+ + 2 GSH (glutatião)

2.4.a.2 Oxídases e oxigénases

Nalgumas reações enzímicas de oxi-redução o oxigénio molecular é um dos reagentes, funcionando como oxidante de um outro substrato (um composto orgânico). Quando o O2 é um dos reagentes as enzimas designam-se de oxídases ou de oxigénases.

Embora haja exceções, o nome oxídase é usado quando, como resultado da redução do O2, se forma H2O, peróxido de hidrogénio (H2O2) ou o ião superóxido (O2

•-) e nenhum dos átomos de oxigénio fica incorporado no composto orgânico que se oxida. De notar que o O2•- (-½), o H2O2 (-1) e a H2O (-2) contêm o elemento oxigénio com números de oxidação menores (os indicados entre parêntesis) que o oxigénio molecular (zero). São exemplos de oxídases, a oxídase do citocromo c (Equação 48), a oxídase do protoporfirinogénio III (Equação 49) e a oxídase do NADPH (Equação 50).

Equação 48 2 citocromo c (Fe2+) + ½ O2 + 2 H+ → 2 citocromo c (Fe3+) + H2O Equação 49 protoporfirinogénio III + 3 O2 → protoporfirina III + 3 H2O2 Equação 50 NADPH + 2 O2 → NADP+ + H+ + 2 O2

•-

O nome oxigénase é atribuído às enzimas em que, tal como no caso das oxídases, o oxigénio molecular é o agente oxidante, mas em que pelo menos um dos átomos do oxigénio fica incorporado no substrato orgânico que se oxida.

Dentro do grupo das oxigénases destaca-se um grande grupo designado de mono-oxigénases. As reações catalisadas pelas mono-oxigénases são particularmente complexas porque existem sempre dois agentes redutores, quer dizer, há duas substâncias distintas (WH2 e VH) que são oxidadas durante o processo catalítico. Em geral, as reações catalisadas pelas mono-oxigénases

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podem ser interpretadas pensando que um dos redutores (WH2) cede dois átomos de hidrogénio reduzindo um dos átomos do O2 a H2O enquanto o outro (VH) aceita o outro átomo de oxigénio:

Equação 51 WH2 + O2 + VH → W + H2O + VOH

Porque as mono-oxigénases oxidam simultaneamente duas substâncias distintas também se designam como oxigénases de função mista. Porque uma dessas substâncias, o VH sofre hidroxilação durante o processo (converte-se em VOH, “hidroxilando-se”), as mono-oxigénases deste tipo são, muitas vezes, designadas de hidroxílases do VH. São exemplos a hidroxílase da fenilalanina (Equação 52) e a hidroxílase da tirosina (Equação 53). Em ambos os casos a substância que é hidroxilada é um aminoácido e o dador de átomos de hidrogénio ao oxigénio, gerando água, é a tetrahidrobiopterina.

Equação 52 fenilalanina + tetrahidrobiopterina + O2 → tirosina + dihidrobiopterina + H2O Equação 53 tirosina + tetrahidrobiopterina + O2 → dihidroxifenilalanina (ou L-DOPA) + dihidrobiopterina + H2O

Com frequência as hidroxílases são componentes de um sistema enzímico que, além da hidroxílase, inclui uma redútase, a redútase do W. Nos dois exemplos acima referidos a tetrahidrobiopterina (WH2) é oxidada a dihidrobiopterina (W) por ação da hidroxílase mas, para que o ciclo catalítico possa continuar, tem de ser novamente reduzida a tetrahidrobiopterina. O componente do sistema enzímico que catalisa a redução da dihidrobiopterina a tetrahidrobiopterina é a redútase da dihidrobiopterina (Equação 54). Equação 54 NADPH + dihidrobiopterina → NADP+ + tetrahidrobiopterina

Algumas hidroxílases contêm como grupo prostético um grupo heme que se liga ao O2 (o agente oxidante nas mono-oxigénases) durante o processo catalítico. Muitas destas hidroxílases hemínicas designam-se por citocromos P450 e constituem um grande grupo de enzimas. Os citocromos P450 estão envolvidos na hidroxilação de compostos que são intermediários na síntese de corticosteroides e na metabolização de xenobióticos, como fármacos. Tal como as outras hidroxílases acima referidas, os citocromos P450 fazem parte de sistemas enzímicas que incluem uma redútase, a redútase do citocromo P450 em que o agente redutor é o NADPH. Neste caso, no entanto, não existe um intermediário exterior à enzima que aceita dos hidrogénios do NADPH. A redútase do citocromo P450 intervém no processo catalítico no decurso do ciclo catalítico em que o substrato que vai ser hidroxilado está ligado ao citocromo P450. Tal como já acontecia nos casos dos sistemas enzímicos que incluíam as hidroxílases da fenilalanina ou da tirosina, a atividade dos sistemas enzímicos que incluem o citocromo P450 pode ser esquematizada como se segue: Equação 55 NADPH + O2 + VH → NADP+ + H2O + VOH De notar que a Equação 55 é a que resulta da soma da Equação 51 com a equação correspondente à redução de W pelo NADPH. O composto VH é o composto que sofre hidroxilação e pode ser um xenobiótico, por exemplo.

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2.4.a.3 Peroxídases

As enzimas que catalisam a redução do oxigénio de peróxidos (cujo número de oxidação passa de -1 a -2) designam-se de peroxídases. São exemplos a peroxídase do glutatião (Equação 56) e a mieloperoxídase (Equação 57). Equação 56 2 GSH + H2O2 → GSSG + 2 H2O Equação 57 Cl- + H2O2 → ClO- (hipoclorito) + H2O

No caso da peroxídase do glutatião, o agente redutor é o glutatião: o número de oxidação do S do grupo tiol do glutatião reduzido (GSH) é -2 aumentando para -1 no dissulfureto de glutatião (oxidado; GSSG). A reação também pode ser interpretada como a aceitação pelo oxidante (o peróxido de hidrogénio) de átomos de hidrogénio cedidos pelo glutatião (que sofre oxidação).

No caso da mieloperoxídase, o agente redutor é o ião Cl- (número de oxidação do cloro = -1) que se oxida a hipoclorito (número de oxidação do cloro = +1). A reação também pode ser interpretada como a transferência de um átomo de oxigénio entre o oxidante (H2O2) e o redutor (Cl-

).

2.4.a.4 Reações enzímicas de dismutação

Designam-se como reações de dismutação reações de oxi-redução em que uma mesma substância funciona, simultaneamente, como oxidante e como redutor. São exemplos as reações catalisadas pela dismútase do superóxido (Equação 58) e pela catálase (Equação 59). Equação 58 2 O2

•- + 2 H+ → O2 + H2O2 Equação 59 2 H2O2 → O2 + 2 H2O

De notar que na reação expressa pela Equação 58, uma das moléculas de superóxido (número de oxidação do oxigénio = -½ ) se oxida a O2 enquanto a outra se reduz a H2O2 (número de oxidação do oxigénio = -1). De forma semelhante, na reação expressa pela Equação 59, enquanto uma das moléculas de H2O2 se oxida a O2, a outra reduz-se a água.

2.4.b As transférases (EC 2.x.y.z) catalisam reações de transferência de grupos químicos ou resíduos entre os substratos.

Nas reações catalisadas pelas transférases um substrato dador cede um grupo químico ou um resíduo T a um outro substrato (o substrato aceitador) que o aceita:

Equação 60 XT + Y ↔ X + YT

As cínases são a subclasse das fosfotransférases que catalisam reações do tipo:

Equação 61 ATP + Y ↔ ADP + Y-P

A ação catalítica de uma cínase pode ser descrita como a transferência do grupo fosfato (P) terminal do ATP (ou doutro nucleosídeo trifosfato) para um substrato Y que o aceita. Evidentemente que a reação inversa a esta (a transferência de um grupo fosfato de um composto Y-P para o ADP) também será catalisada pela mesma cínase. Independentemente do sentido em que a reação evolui na célula uma cínase deste tipo denominar-se-ia cínase do Y (o aceitador do fosfato do ATP). São exemplos de cínases a cínase da glicose (Equação 5), a cínase da frutose-6-fosfato (Equação 28) e a cínase do piruvato (Equação 27).

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As fosforílases e as pirofosforílases são transférases em que o substrato aceitador é, respetivamente, o fosfato inorgânico (Pi) e o pirosfosfato inorgânico (PPi):

Equação 62 XT + Pi ↔ X + T-P Equação 63 YT + PPi ↔ Y + T-P-P

No primeiro caso (Equação 62) a enzima denominar-se-ia fosforílase do XT e no segundo pirofosforílase do YT (Equação 63). Um exemplo de uma fosforílase é a fosforílase do glicogénio (Equação 64). Equação 64 glicogénio (n) + Pi → glicogénio (n-1) + glicose-1-fosfato

A reação catalisada pela fosforílase do glicogénio é fisiologicamente irreversível no sentido indicado pela Equação 64 e pode ser descrita como a transferência de um resíduo de glicose do glicogénio para o Pi.

Um exemplo de pirofosforílase é a pirofosforílase do UDP-glicose (Equação 65). Equação 65 glicose-1-fosfato + UTP → UDP-glicose + PPi

Nas células, a reação catalisada pela pirofosforílase do UDP-glicose também é irreversível (fisiologicamente irreversível) no sentido indicado pela Equação 65. A causa dessa irreversibilidade está relacionada com o facto de o PPi ser, nas células, instantaneamente hidrolisado a Pi: sem um dos produtos a reação não pode ocorrer em sentido inverso. Para compreendermos porque se chama pirofosforílase do UDP-glicose (uridino difosfato de glicose) à enzima que catalisa a reação expressa pela Equação 65 temos de pensar na reação inversa que pode ser entendida como a transferência do resíduo UMP (uridino monofosfato) para o PPi; ao romper-se a ligação entre os resíduos de fosfato do UDP-glicose liberta-se glicose-1-fosfato e o resíduo UMP é aceite pelo PPi.

Às reações catalisadas pelas fosforílases e pelas pirofosforílases chamam-se, respetivamente, fosforólises e pirofosfosforólises. Se atentarmos na Equação 64 notaremos que na lise do glicogénio o fosfato foi o reagente que provocou essa lise; se atentarmos na Equação 65 (lida em sentido inverso) notaremos que, na lise do UDP-glicose, o pirofosfato foi o reagente que provocou essa lise.

2.4.c As hidrólases (EC 3.x.y.z) catalisam reações de hidrólise.

As hidrólases catalisam reações de em que uma molécula de H2O é um dos reagentes e durante o processo ocorre cisão do outro reagente:

Equação 66 AB + H2O → A + B

Os ligações químicas que podem sofrer hidrólise são as ligações glicosídicas (semiacetal

ligado a hidroxilo, ácido, amina ou outro semiacetal + H2O → semiacetal livre + hidroxilo livre, ácido livre, amina livre ou outro semiacetal livre), as ligações éster ou tioéster (éster ou tioéster + H2O → ácido + hidroxilo ou tiol), as ligações amida (amida + H2O → ácido + amina) e as ligações anidrido (anidrido + H2O → ácido + ácido).

Exemplos de hidrólases em que há rotura de ligações glicosídicas são a maltase (Equação 35) e a fosfátase da frutose-2,6-bisfosfato (Equação 67). Equação 67 frutose-2,6-bisfosfato + H2O → frutose-6-fosfato + Pi

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Exemplos de hidrólases em que há rotura de ligações éster são a fosfátase da frutose-1,6-bisfosfato (Equação 29) e a hidrólase da 6-fosfoglicono-lactona (Equação 68). No caso da hidrólase da 6-fosfoglicono-lactona a ligação éster que sofre hidrólise é intramolecular (um éster intramolecular é uma lactona) e por isso, da rotura, não resultam dois compostos mas apenas um. Equação 68 6-fosfoglicono-lactona + H2O → 6-fosfogliconato

A glutamínase (Equação 69) e a asparagínase (Equação 70) são hidrólases que catalisam a hidrólise de ligações amida. Equação 69 glutamina + H2O → glutamato + NH4

+ Equação 70 asparagina + H2O → aspartato + NH4

+

As reações químicas catalisadas pela ATPase do Na+/K+ (Equação 8) e pela síntase do ATP (Equação 9) também são hidrólises. Em ambos os casos há rotura da ligação anidrido que existe entre os fosfatos β e γ do ATP e o outro reagente é a água. No caso da síntase do ATP, por motivos já explicados (ver Capítulo 1.2), a reação ocorre nas células no sentido inverso à reação de hidrólise.

As fosfátases são hidrólases em que um dos produtos é o Pi. Numa reação do tipo expresso pela Equação 71 a enzima seria uma fosfátase do XP. Exemplos de fosfátases já foram apontados acima (Equação 29 e Equação 67).

Equação 71 XP + H2O → X + Pi

2.4.d As líases (EC 4.x.y.z) catalisam reações em que um reagente A=B que contém uma dupla ligação deixa de a ter quando se liga a um reagente C.

Nas reações catalisadas pelas líases um dos reagentes que contém uma dupla ligação combina-se com um segundo reagente de tal maneira que o produto já não contém a dupla ligação:

Equação 72 A=B + C ↔ ABC

Obviamente que a reação inversa à descrita acima também será catalisada por uma líase. Em geral, as líases têm nomes de uso corrente que nos dizem pouco acerca da reação que

catalisam. A enólase (Equação 73), a fumárase (Equação 74) e a aldólase (Equação 75) são líases. Equação 73 2-fosfoglicerato ↔ fosfoenolpiruvato + H2O Equação 74 fumarato + H2O ↔ malato Equação 75 frutose-1,6-bisfosfato ↔ dihidroxiacetona-fosfato + gliceraldeído-3-fosfato

O fosfoenolpiruvato, o fumarato e o gliceraldeído-3-fosfato contêm duplas ligações que não existem nem no 2-fosfoglicerato, nem no malato nem na frutose-1,6-bisfosfato. De notar que as reações expressas pela Equação 73 e pela Equação 74 não são reações de hidrólise. Quando a H2O reage com o fosfoenolpiruvato ou com o fumarato desaparecem ligações duplas mas não se rompem ligações glicosídicas, éster, amida ou anidrido. Enzimas com atividades semelhantes às catalisadas pela enólase ou pela fumárase são às vezes conhecidas como hidrátases: é o caso da hidrátase do 2-enoil-CoA (Equação 76).

Equação 76 2-enoil-CoA + H2O → 3-hidroxi-acil-CoA

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2.4.e As isomérases (EC 5.x.y.z) catalisam reações em que um isómero se converte noutro.

As isomérases catalisam reações de isomerização (A↔B) interconvertendo isómeros. São exemplos de reações catalisadas por isomérases as expressas pela Equação 77 (isomérase das hexoses-fosfato), Equação 78 (epimérase das pentoses-5-fosfato) e Equação 79 (mútase do fosfoglicerato). Equação 77 glicose-6-fosfato ↔ frutose-6-fosfato Equação 78 ribulose-5-fosfato ↔ xilulose-5-fosfato Equação 79 3-fosfoglicerato ↔ 2-fosfoglicerato

Quando os isómeros que se interconvertem são epímeros, a isomérase em questão será uma epimérase. Quando apenas diferem na posição de um grupo fosfato a isomérase que catalisa a reação denomina-se mútase.

2.4.f As lígases (ou sintétases; EC 6,x,y,z) catalisam reações que podem ser lidas como o somatório de duas reações sendo uma de hidrólise do ATP e outra de combinação de duas substâncias.

As lígases (ou sintétases) catalisam reações dos tipos esquematizados pelas :

Equação 80 ATP (ou GTP) + A + B ↔ ADP (ou GDP) + Pi + AB Equação 81 ATP (ou GTP) + A + B ↔ AMP (ou GMP) + PPi + AB

Nos casos dos exemplos as sintétases que catalisassem estas reações poderiam denominar-

se, em ambos os casos, sintétase do AB. São exemplos de sintétases a sintétase de acil-CoA (Equação 82), a sintétase do succinil-CoA (Equação 34) e a carboxílase do piruvato (Equação 31). Equação 82 ácido gordo + CoA + ATP → acil-CoA + AMP + PPi

As sintétases são as enzimas em que mais facilmente se percebe que a reação que catalisam pode ser entendida como o somatório de uma reação de hidrólise (exergónica) acoplada a uma reação inversa a uma outra reação de hidrólise (endergónica). Nas mitocôndrias, a reação catalisada pela sintétase do succinil-CoA (ver Equação 34) evolui habitualmente no sentido da formação de succinato, CoA e GTP (ou ATP): geralmente, no ciclo de Krebs, a reação de hidrólise do succinil-CoA é a componente exergónica de um processo global em que a formação de ATP (ou GTP) a partir de ADP (ou GDP) + Pi é a componente endergónica.

2.4.g Por tradição algumas enzimas chamam-se vulgarmente síntases.

A palavra síntase não faz parte do léxico da classificação das enzimas, mas está popularmente associada a algumas enzimas. Em todas as reações se sintetizam compostos e não será de estranhar que um investigador que tenta descobrir a enzima que sintetiza o composto A, acabe por chamar síntase do A à enzima que descobriu e que catalisa a síntese de A.

A enzima que, nos seres vivos, catalisa a síntese do glicogénio (Equação 83) chama-se síntase do glicogénio e facilmente se compreende que esteja classificada como uma transférase: a síntase do glicogénio catalisa a transferência de um resíduo de glicose do UDP-glicose para uma molécula de glicogénio que fica com mais um resíduo de glicose. Equação 83 glicogénio (n) + UDP-glicose → glicogénio (n+1) + UDP

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A síntase do citrato catalisa uma reação mais complexa (Equação 84) e é fácil de compreender que a sua classificação na classe das líases não tenha qualquer relevância no nome que vulgarmente lhe é atribuído. Equação 84 acetil-CoA + oxalacetato + H2O → citrato + CoA Este texto foi, na sua 1ª versão, escrito em novembro de 2005 por Rui Fontes que agradece todas as críticas que queiram fazer-lhe. Foi revisto nos anos de 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011 (sempre entre setembro e dezembro).

3 Bibliografia Como bibliografia geral foram consultados diversos livros de texto de Bioquímica e de Química assim como: Cvitas, T. (2007) The Gibbs function of a chemical reaction, Croatica Chemica Acta. 80, 605-612. Banks, B. E. & Vernon, C. A. (1970) Reassessment of the role of ATP in vivo, J Theor Biol. 29, 301-26. Interunion commition on biothermodinamics. (1976) Recommendations for measurement and presentation of biochemical equilibrium data. Prepared by the Interunion Commission on Biothermodynamics, J Biol Chem. 251, 6879-85. Wilkie, D. (1970) Thermodynamics and biology, Chem Br. 6, 472-6. Crabtree, B. & Taylor, D. (1979) Thermodynamics and methabolism in Biochemical Thermodynamics (James, N., ed) pp. 333-78, Elsevier, Amsterdam. Referências específicas 1. Henriques, B. J., Rodrigues, J. V., Olsen, R. K., Bross, P. & Gomes, C. M. (2009) Role of flavinylation in a mild variant of multiple acyl-CoA dehydrogenation deficiency: a molecular rationale for the effects of riboflavin supplementation, J Biol Chem. 284, 4222-9.