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JORNAL LABORATÓRIO FANOR Fortaleza, dezembro de 2014 CULTIVARTE GALERIAS URBANAS Foto: Beto Skeff. Ação ‘Corpo Urbano’, Praça do Ferreira, 16/08/2014. Performer: Michele Tajra. 2 CRÔNICA Paisagem interna ou o caminho de volta 3 CULTIVARTE Jornalismo Literário 5 CULTIVARTE A escravidão na literatura machadiana 6 REALIDADE SOCIAL A Fuga da seca 7 TECNOLOGIA Fotojornalismo e a fotografia em movimento 8 REALIDADE SOCIAL O retrato da fé brasileira 10 CULTIVARTE Galerias Urbanas 11 IMAGINÁRIO INFANTIL Era uma vez os donos da palavra atual.indd 1 28/11/2014 12:42:01

Novembro 2014

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Novembro

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JORNAL LABORATÓRIO FANORFortaleza, dezembro de 2014

CULTIVARTE

GALERIAS URBANAS

Foto: Beto Skeff. Ação ‘Corpo Urbano’, Praça do Ferreira, 16/08/2014. Performer: Michele Tajra.

2 CRÔNICA Paisagem interna ou o caminho de volta 3 CULTIVARTE Jornalismo Literário 5 CULTIVARTE A escravidão na literatura machadiana 6 REALIDADE SOCIAL A Fuga da seca 7 TECNOLOGIA Fotojornalismo e a fotografia em movimento 8 REALIDADE SOCIAL

O retrato da fé brasileira 10 CULTIVARTE Galerias Urbanas 11 IMAGINÁRIO INFANTIL Era uma vez os donos da palavra

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O tempo transforma a realidade. Quando nos au-sentamos de algum contexto específico – lugares,

situações, pessoas, instituições e atividades -, perce-bemos, divagando admirados, o quanto a realidade de um passado conhecido difere do presente obser-vado. Apenas então, nos damos conta das condições impostas por Chronos, que devora, agrega, destrói, constrói: transforma.

Esta edição do Grande Circular está estreitamente ligada às transformações do tempo. Nossa equipe de reportagem averigua como os avanços tecnológicos das últimas décadas plasmam um novo fazer para o Fotojornalismo. O mesmo para outras mídias que su-plantaram e substituíram o Encanto do Vinil, hoje preso aos sebos teimosa e graciosamente resistentes às transmutações tecnológicas. As intervenções urbanas, retratadas na reportagem intitulada Galerias Urbanas, relativizam as fronteiras entre as expressões artísticas, nos fazendo perceber o quanto a compartimentalização entre as diferentes formas de arte e o próprio conceito do que é arte mudaram com o tempo - já não se aplicam tão nitidamente à condição contemporânea.

Por outro lado, o Jornalismo, que nasce a partir de um relacionamento íntimo com a literatura, se transforma e apresenta, nas últimas décadas, novos caminhos que o levam novamente ao encontro com a forma literária, como podemos ler na reportagem sobre os jornalistas cearenses que se aventuram no Jornalismo Literário. Outra seara, não menos suscetível às transmutações do ritmo dos anos, é a religião. Algumas décadas alte-raram o perfil da religiosidade no Brasil. Trazemos um panorama da fé e da migração religiosa que modificou a relação entre igreja e fiel no País.

O abismo entre passado e presente fica evidente na re-portagem A Fuga. A seca, que mata e destrói, também se torna o ponto de partida para um novo começo da vida do casal Marta e Francisco. O mesmo abismo separa o Brasil escravista de Machado de Assis e o Brasil atual, como atesta nossa reportagem. Entretanto, não há melhor indício da dinâmica da história do que assistir aos primeiros passos de uma nova geração. Acompanhamos crianças em suas visitas à biblioteca e nos deparamos com seu encantamento com uma das mais velhas artes: contação de histórias.

Boa leitura!

Jornal laboratório do Curso de Jornalismo da Fanor/DeVry Brasil.

PRESIDENTE Carlos Alberto Guerra Filgueiras DIREÇÃO GERAL Marcelo Adler COORDENAÇÃO ACADÊMICA Professor Humberto Fonseca COORDENAÇÃO ACADÊMICA DE JORNALISMO Alyne Virino Ricarte COORDENAÇÃO DE OPERAÇÕES ACADÊMICAS DA COMUNICAÇÃO Aurileide Alves EDITOR CHEFE Jornalista/Professor Rodrigo Cesar Garcia Rodrigues REPORTAGENS André Silvestre, Elves Rabelo, Heliana Querino, Marisa Beserra, Priscilla Ramos, Rafaela Ferreira, Roberto Eduardo Gonçalves Fontenelle REVISÃO Elves RabeloDIAGRAMAÇÃO Luan Matias IMPRESSÃO Expressão Gráfica TIRAGEM 300 exemplares

EDITORIAL

EXPEDIENTE

Cotidiano: Paisagem interna ou o caminho de voltaCRÔNICA

TEXTO: HELIANA QUERINO

Companhia de si, no afã de todos os dias, em percurso

de volta para casa, concedia-lhe o direito de entregar-se a imaginação. Qual o caminho conduziria suas escolhas e que ações dariam sentido a elas?

Tinha desprezo pela repetição e um ódio mortal pela execução de coisas que pareciam inúteis.

Ao regressar, quando possível, des-cansava na lotação e reunia duas paixões: os devaneios e a leitura. Era essa a maneira de abstrair--se da realidade temporal e viver o sonho do amanhã.

Tentava linhas que parecessem fazer sentido, pouco previsíveis, de preferência. Nem se dava conta quando outros passageiros olhavam estranho, pelas desper-cebidas risadas jogadas ao vento, sem que ninguém soubesse do que se tratava ou enxergasse ali um motivo para tal.

O que parecia absurdo para uns, aos seus libertadores pensamen-tos conduzia a um namoro com o equilíbrio insano. Mesmo assim, seus olhos registravam a instabili-dade das esquinas e a fragilidade

dos que se julgavam detentores de bons modos.

A ida, de todos os dias, interessava muito. Mas a volta, essa sim, era o grande momento.

Acalmados pelo cansaço, eram presas susceptíveis de contempla-ção.

Havia quem demonstrasse ironica-mente uma felicidade inexistente. Ou ainda quem mirasse tão distante que sua íris até transmitia dó. Era por vezes, uma tentativa falha na construção de mil interrogações “onde será que seus pensamentos pousam agora”?

Não, não ousaria perguntar.

No dia seguinte começaria tudo de novo, como numa partida de xadrez, que ao final, à repetição. Aprendeu alguma coisa? Aquietou alguma aflição? Sentimento visceral!

Quando se dava conta dessa re-petição, notava que ao invés de sonhar, estava a pensar. Então, ra-pidamente retornava ao mundo das fantasias.

Por quê? Por quê?

Porque pensar fazia doer, porém, conduzia ao estado consciente, e isso, doía ainda mais.

Rendia-se, mais uma vez, aos sonhos. Esses, transformavam os seus dias, e os dias eram tão bons que pareciam curtos e a vida, infini-tamente longa.

Sim, tomava consciência, mesmo através do sonho. Porque ao sonhar pensava, e pensava uma nova coisa. Ganhava portanto, a liberda-de, tornando-se um Ser autônomo.

Provavelmente chegará a con-clusão de que não é um figurino autômato, mas, um indivíduo capaz de pensar sobre seu ato de fazer, de produzir e, acredite, de repetir.

Contemplativo, para hoje escolheu um novo cenário, não estava num ônibus abarrotado – nada disso – ali era o mar azul, um barquinho e um protagonista abraçando versos de Neruda e contando as vezes que aqui se REPETIU o verbo SONHAR.

E você aí, em qual “viagem” embarca de volta para casa?

FOTO: Heliana Querino - Orla de João Pessoa - PB

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Jornalistas que se aventuraram na literatura

CULTIVARTE

TEXTO: EDUARDO FONTENELE

O jornalista Paulo Verlaine e Eduardo Fontenele (Foto: Laila Araújo Coelho)

“Estou ansioso por apostar que, não há muito tempo, a metade das pessoas que iam trabalhar na imprensa o faziam na crença de que o seu destino real era o de ser romancistas.”, como disse Tom Wolfe em seu livro The New Jour-nalism.

Existe uma hierarquia dentro do mundo das letras que prega

que o romance seria a forma mais nobre na escala de valores literá-rios, em seguida viriam o conto, a novela e a arte poética, enquanto o jornalismo seria a mais baixa forma de utilização da escrita. Alguns escritores se referem aos jornalis-tas como “prostitutas”, que alugam a sua pena em troca de alguns trocados.

O jornalismo e a literatura cami-nharam juntos desde seu surgi-mento. Os escritores eram estrelas dentro das redações, responsáveis por colunas, resenhas, crônicas e artigos. No Brasil, o jornalismo e a literatura só se separaram na década de 50 do século passado, com a importação do lead, sublead e da pirâmide invertida, técnicas criadas nas redações norte-ame-ricanas. Os jornalistas Samuel Wainer e Alberto Dines viajaram

aos EUA, tiveram contato com o estilo americano de fazer jor-nalismo e foram os pioneiros em terras tupiniquins na utilização das técnicas desenvolvidas no solo ianque.

Hoje, os escritores que frequen-tam as redações são considera-dos trabalhadores “braçais”, como qualquer “foca”, ou seja, jornalis-ta recém-formado, pois gastam sola de sapato indo à rua apurar notícias. Carlos Drummond de Andrade (1902-10987) foi chefe de redação, Graciliano Ramos (1892-1953) foi copidesque, enquanto Oswald de Andrade (1890-1954) foi repórter, redator, diretor de suple-mentos literários e dono de jornais e revistas.

Um dos primeiros jornais brasileiros a implantar o modelo americano foi o Diário Carioca, pioneiro também ao colocar uma mulher como chefe de reportagem, mas as inovações duraram pouco tempo, pois o jornal faliu em 1964. O Diário ajudou a popularizar a busca pela objetivida-de jornalística. Objetividade essa, duramente criticada pelo jornalista--escritor-dramaturgo pernambuca-no Nelson Rodrigues (1912-1980).

“Por que você acaba se tornando o que o Nelson Rodrigues dizia, com algum sarcasmo… ele considerava o jornalista “o idiota da objetivida-de”, que a gente começa a se pre-ocupar muito com “onde”, “o quê”, “quem”, “quando”, “como”, “por que”, e esquece outros meandros da notícia, que às vezes são até mais interessantes, mas, felizmen-te, o jornalismo de hoje, eliminou essa fase de… tipo, esquecer o fato puro e simples, mas acrescentaram detalhes do cotidiano, que não são aproveitados, não são percebidos, como descrever o ambiente, já é alguma coisa, não?”, como disse o veterano jornalista cearense, Paulo Verlaine.

O jornalista literário Truman Capote (1924-1984) iniciou seu aclamado romance-reportagem A Sangue Frio, com uma longa e detalhada descrição da cidade de Holcomb e seus habitantes, a cidade é lo-calizada no interior do estado do Arkansas, nos EUA. A reportagem de Capote acompanhou dois as-sassinos condenados até o dia de suas execuções. Os jovens Perry Smith e Dick Hickock chacinaram uma família inteira, os Clutter, em busca de uma suposta fortuna escondida na casa onde a família

residia, uma típica família interio-rana americana. Não obtiveram sucesso na empreitada e morreram na forca em 1965, ano de lança-mento do livro.

Capote levou cinco anos pesqui-sando a história e não fazia nenhum tipo de anotação, guardava tudo na memória. Capote, especula-se, envolveu-se com Perry Smith. Mas de forma calculista e fria, esperou, impaciente, que o executassem, para dar um desfecho apropria-do ao seu livro. O livro virou filme em 1967, com direção de Richard Brooks, estrelado por Robert Blake e Scott Wilson.

Paulo Verlaine Coelho é um jorna-lista de 64 anos, nascido em For-taleza, ex-militante do movimento estudantil, foi preso em 1969, no período da Ditadura Militar. Foi processado com base na Lei de Segurança Nacional e perdeu seu emprego nos Correios. Trabalhou nos jornais Diário do Nordeste e O Povo, recentemente foi ombuds-man deste jornal. Em 2010 desli-gou-se de O Povo.

Segundo Verlaine: “Eu não me considero um escritor. Eu sou um jornalista que faz livros. E é claro que tenho que conhecer alguma coisa de literatura.” E acrescenta: “Não um livro assim no sentido de criação literária, mas um livro--reportagem, que tem grandes exemplos por aí, Truman Capote, John Reed, dois grandes, que eu considero os melhores, que intro-duziram o livro-reportagem.”

John Reed (1887-1920) foi um jor-nalista e ativista de esquerda norte--americano, que nasceu em berço de ouro e se formou na conserva-dora universidade de Harvard, mas preferiu engajar-se e participar das lutas da classe operária, ao invés de viver uma vida confortável de in-telectual burguês. Foi casado com a escritora, Louise Bryant (1885-1936), também feminista e anar-quista. Os dois ficaram juntos até a morte precoce do jornalista. Reed cobriu a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Mexicana (1910-1920) e a Revolução Russa (1917).

Histórias que a imprensa cearense convencional não cobriu.

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“Os fatos que eles cobriram se transformaram em livros. Truman Capote com mais densidade e também John Reed, que foi cobrir, como repórter, embora fosse engajado, politicamente, ele era um comunista americano. Ele viveu a Revolução de 1917 e a transformou num livro, num grande livro, Dez Dias que Abalaram o Mundo” – afirmou Verlaine.

O livro-reportagem Companheiro Praiano: 30 anos de vida pública de José Airton Cirilo, de 2014, escrito a seis mãos, por Paulo Verlaine, Salomão de Castro, e com colaboração ativa do próprio retratado, relata a vida pública do político cearense José Airton (57), que foi vereador em Fortaleza duas vezes e candidato a governador do Ceará por duas vezes. Também foi prefeito de Icapuí, sua cidade de origem, e deputado federal. Nas últimas eleições, em 2014, foi reeleito deputado federal pelo PT.

Salomão de Castro, coautor do livro, é um jornalista cearense, nascido em 1977, formado pela UFC, em 1999, especializado em Marketing Político pela Faculdade Christus, em 2008, foi assessor de imprensa na campanha do can-didato petista Camilo Santana ao governo do estado do Ceará.

Os jornalistas escritores cearen-ses do momento são Lira Neto, que alcançou projeção nacional, principalmente devido à recente publicação da elogiada trilogia sobre Getúlio Vargas e da biogra-fia Maysa – Só numa multidão de amores, de 2007, transformada em minissérie pela TV Globo, em 2009; Ciro Saraiva, que produziu uma trilogia sobre a história política do Ceará chamada Nos Tempos dos Coronéis, em 2011; e Flávio Paiva.

“[…] tem uma produção variada, tanto com crônicas, com um pouco de ficção, mas tem um livro muito interessante que ele fez sobre o fim da era do Tasso Jereissati (65), em 2002, [Mobilização Social no Ceará – 16 anos de tentativas e 1 promessa de diálogo] [...] ele expôs ali os fatores que levaram àquele período de governo se desgas-tar com a população”, comentou Salomão sobre a obra do colega Flávio Paiva.

Salomão, que possui uma pegada mais voltada para a política, reco-nhece a influência da escola do New Journalism, e se declara como

um herdeiro daqueles desbravado-res do jornalismo literário.

“Na verdade, assim, o jornalis-mo norte-americano, ele acabou sendo referência para o jornalismo mundial, pela riqueza com que, prin-cipalmente, a apuração era feita. A apuração do jornalismo norte-ame-ricano, ela é fantástica. É uma refe-rência realmente para as gerações de jornalistas, e acabou dando ao jornalismo uma dimensão própria, específica, particular, na literatura. [...] e permitiu que em outros países essa prática se desenvolvesse, e resultasse numa série de produtos muito expressivos, jornalisticamen-te, e também do ponto de vista li-terário.”

O New Journalism, ou Novo Jorna-lismo, nasceu nas redações norte--americanas na década de 60, influenciado por escritores realis-tas, como Émile Zola (1840-1902), Honoré de Balzac (1799-1850), Charles Dickens (1812-1870), Victor Hugo (1802-1885), Daniel Defoe (1660-1731) e Gustave Flaubert (1821-1880), que militavam por uma literatura ancorada na realidade. Seus principais expoentes foram o já citado Capote, Norman Mailer (1923-2007), Gay Talese (1932- ) e Tom Wolfe (1931- ). Tom Wolfe escreveu sobre a relação entre jor-nalismo e literatura em seu livro de ensaios The New Journalism:

“O que lhes conferia um traço em comum era o fato de todos conside-rarem o jornal como um motel onde se passa a noite em sua jornada a caminho do triunfo final. O objetivo era conseguir emprego em um jornal, permanecer íntegro, pagar o aluguel, conhecer ‘o mundo’, acumular ‘experiência’, talvez polir alguma imperfeição do seu estilo… logo, em um momento, deixar o emprego sem vacilar, dizer adeus ao jornalismo, mudar-se para uma casinha em qualquer lugar, traba-lhar dia e noite durante seis meses e iluminar o céu com o triunfo final. O triunfo final só poderia se chamar O Romance.”

As principais características do New Journalism são as digressões, as descrições minuciosas de lugares e pessoas, a linguagem coloquial e direta, reprodução dos diálogos das personagens, a apuração rigorosa, o fluxo de consciência, as repor-tagens de fôlego, a construção cena a cena, o narrador-repórter na terceira pessoa, “Alternavam o foco narrativo: o narrador podia ser observador do foco onipresente,

testemunha e/ou participante dos acontecimentos.”, ainda segundo Tom Wolfe. Também se utilizavam do recurso das entrevistas para es-clarecer fatos obscuros da história que se pretendia contar.

Outros pioneiros do mundo das re-portagens literárias não foram es-quecidos pelo jornalista Salomão de Castro, como seus influen-ciadores, entre os brasileiros há exemplos como o de Euclides da Cunha e seu livro-reportagem Os Sertões.

“O Euclides da Cunha, principal-mente, eu vejo, talvez como a re-ferência maior do ponto de vista histórico, no desenvolvimento do que é um livro-reportagem, pela temática que ele escolheu, uma temática forte, de cunho social, e que foi a Guerra de Canudos [1896-1897], e pela vivência que ele pôde ter, participando daquele momento, apurando bastante e tendo condição de desenvolver depois uma grande reportagem, que se transformou no livro, no caso.”

Euclides da Cunha (1806-1909) foi um engenheiro militar, jornalista, escritor, físico, naturalista, geólogo, zoólogo, hidrógrafo, botânico, historiador, sociólogo, professor, poeta, romancista, ensaísta e filósofo carioca. Euclides da Cunha foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo para cobrir a Guerra de Canudos no sertão da Bahia, comandada pelo beato Antônio Conselheiro (1828-1897). A revolta resultou num massacre de propor-ções épicas, foram aproximada-mente 25 mil mortos, executados pelo Exército Brasileiro.

Anos depois de se consagrar como um dos maiores nomes da literatu-ra e do jornalismo em língua portu-guesa em todos os tempos, e ser eleito para a Academia Brasileira

de Letras, Euclides da Cunha foi assassinado em uma troca de tiros com o amante de sua esposa, o jovem oficial, escritor e maçom Di-lermando de Assis (1888-1951).

Sobre Euclides da Cunha e sua influência na literatura e no jorna-lismo de hoje, Paulo Verlaine sen-tenciou:

“É, Euclides da Cunha foi o máximo, não é? Foi o que eu con-sidero o introdutor… e de uma fe-licidade extrema, porque ele, além disso, ele estava do lado da repres-são, estava do lado do exército, que esmagou aquele movimento popular, Conselheiro e Canudos, mas mesmo assim, ele soube ver o outro lado, ele era oficial do exército e ao mesmo tempo um cor-respondente. Ele cobriu e do lado das forças dominantes e conse-guiu mostrar uma realidade brutal, que jamais uma pessoa que não tivesse a visão dele, teria mostrado naquele livro, que aquilo é um retrato do Brasil, o retrato do que houve em Canudos, os massacres, o fanatismo, claro que ele descreve numa linguagem que para hoje seria preconceituosa, quando em algum trecho do livro ele fala em sub-raças, chamando os caboclos, que seguiam o Conselheiro de sub--raças”. E ainda acrescentou:

“Mas ao mesmo tempo, ele até entra em contradição, porque essa mesma sub-raça, que ele diz, con-seguiu dar prova de heroísmo, de resistir até nas interdições do exército e derrotou duas e sucumbiu na terceira, depois de muita luta. […] A frase mais bonita de Os Sertões, que ele diz: ‘Canudos não se rendeu!’ De fato, não se rendeu! Um velho, um menino e um grupo bem reduzido, resistindo contra canhões, contra metralhadoras, contra fuzis do exército, É uma página belíssima da literatura bra-sileira”, concluiu Verlaine.

O jornalista Paulo Verlaine (Foto: Laila Araújo Coelho)

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Tinha inteligência natural...

[...] aos 18 anos era o tipo mais completo de sua raça.

Talhe esbelto e elegante, colo vo-luptuoso, pé pequeno e mãos de senhora...

[...] apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e mulheres.

Assim é descrita Mariana, a escrava do conto de Machado de Assis que se apaixona perdidamente por nhonhô Coutinho, o jovem compro-metido com sua prima Amélia

Machado de Assis não poupou esforços para fazer o leitor acredi-tar no amor verdadeiro da escrava Mariana por seu dono Coutinho, é fácil perceber isso logo no início do conto quando Machado, através do personagem sinhozinho, revela a dolorosa recordação, “Antes e depois amei e fui amado muitas vezes; mas nem antes nem depois, e por nenhuma mulher fui amado jamais como fui...”

A “Isaura” da vez era tratada como uma sinhazinha dentro da Casa Grande. Sabia ler e escrever, in-clusive francês, mas também tinha conhecimento de sua condição escrava.

É notório o choque que os amigos de Coutinho sentem ao saber da história e para alguns especialistas, esse é o motivo que faz com que Machado mesmo tentando frisar o amor da escrava, também dê um toque de escárnio às falas do per-sonagem. “Apesar de todo mundo saber da relação que muitos Senhores de escravo tinham com suas mulatas, esses casos não eram divulgados em praça pública, existir uma escrava apaixonada pelo dono era motivo de risadas, além de causar certa estranheza”, diz Francidélia Moura, professora de literatura brasileira.

Mariana amava Coutinho, que amava Amélia, que amava Coutinho. Não era um triângulo amoroso. Na vida real o leitor pode até imaginar uma história seme-lhante, entretanto, no final teríamos uma escrava resignada, ciente da impossibilidade do seu amor

para com outra raça. Mas, em se tratando de uma obra machadiana, o que podemos observar é uma personagem que antes da abolição da escravatura, traduz em suas atitudes a vontade de ser aceita enquanto mulher. Para Francidélia, “Essa é uma das características das obras de Machado de Assis, ele sempre cria situações contra-ditórias. No caso de Mariana, ele apresenta uma escrava que ama numa sociedade onde escravos não tinham direito algum, que dirá amar”.

Machado de Assis foi um dos fun-dadores da Academia Brasileira de Letras além de jornalista, contista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu e faleceu na cidade do Rio de Janeiro. Filho de pais pobres, seu José de Assis e D. Maria Le-opoldina, Machado perdeu a mãe ainda na infância e foi criado no morro do Livramento com pouquís-simos meios para um bom estudo. Ainda assim buscou empenho no universo da escrita, e hoje é reco-nhecido como um dos cânones da literatura brasileira. Autor de vários gêneros, passeou por dois grandes movimentos artísticos e literários, o Romantismo e o Realismo.

Da escola romântica Machado trouxe o amor platônico, os temas religiosos e as emoções em

obras como Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Com a passagem do Romantismo para o Realismo, Machado assumiu uma nova postura e se destacou com a obra Memórias Póstuma de Brás Cubas em 1881. Assim iniciou uma nova fase de sua escrita, agora com ca-racterísticas peculiares como conta Francidélia, “Nessa fase [Realismo] ele se revela mais maduro e começa a se utilizar de ironia e um certo humor oculto”.

Há quem diga que as obras macha-dianas são para todos os gostos e públicos, no entanto, o primeiro “contato” com o autor pode não ser fácil. “Li meu primeiro texto de Machado de Assis quando tinha 15 anos, foi o conto A Cartoman-te. Li, mas não entendi nada, tinha uma escrita diferente com palavras que não estão mais no nosso vo-cabulário, foi só pra impressionar uma namoradinha. Só depois de adulto voltei a ler as obras dele, comecei com Dom Casmurro e, aí sim, me apaixonei”, disse Marcel Almeida, servidor público. Kelly Araújo, também servidora pública, diz ser fã incondicional dos contos do autor desde adolescente, “Não lembro bem qual foi o primeiro que li, mas lembro que foi na escola. Acho os contos mais interessan-tes por conta do tamanho, como não são tão extensos quanto os livros, aproveito para ler o mesmo várias vezes. Cada vez que leio noto alguma coisa a mais como uma ironia disfarçada contida num determinado parágrafo”. Já para Carlos Roberto Vazconcelos, mestrado em letras pela Universi-dade Federal do Ceará, “Machado era um artista da palavra. Mensa-gens implícitas não sei se há, afinal ele não era afeito, que eu saiba, a mensagens subliminares. Mas há na obra o mistério poético e esti-lístico que toda boa arte propõe, ou seja, sempre se ressignifica e não se esgota na primeira leitura. Um exemplo clássico é a eterna in-terrogação que ele legou em Dom Casmurro, sobre um hipotético adultério”.

Embora considerado um dos melhores escritores literários, existem críticos ferrenhos do autor quanto as suas obras. Alguns dizem que Machado de Assis era

racista por retratar em suas obras a vida burguesa dos salões da época da escravidão. “Machado sofria na pele o preconceito arraigado a sua época. Acusam-no também de não ter retratado em seus livros a cor do Brasil. Não será isso um pre-conceito, achar que por ser mulato Machado deveria falar das coisas do povo, apenas. Mas se observar-mos com mais acuidade, descobri-mos que Machado tratava em seus livros das verdades que conside-rava superiores, a alma humana, por exemplo. Para compreender o crítico cotidiano, minucioso, sugiro a quem possa interessar a leitura de suas crônicas”, diz Carlos Va-zconcelos.

Francidélia lembra que o conto Mariana foi publicado uma única vez no Jornal das Famílias, no Rio de janeiro em 1871, menos de vinte anos da abolição da escravatura no Brasil, mas o país já vivia um forte movimento abolicionista e isso leva alguns estudiosos a questionarem se o conto seria uma tentativa de conscientização. “Isso com certeza não vamos descobrir nunca, vai muito da interpretação de cada um”, completa Francidélia.

O suicídio de Mariana é o ápice da história que se desenrola para um final talvez mais trágico, “A banali-zação do fato talvez seja o que de pior se percebe na história. Não bastasse todo o sofrimento emo-cional da escrava, o amor dela não tem relevância para os amigos de Coutinho. É uma crítica velada se não expressa de Machado, com certeza”, finaliza Francidélia.

A escravidão na literatura machadianaCULTIVARTE

TEXTO: MARISA BESERRA

Machado de Assis.

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REALIDADE SOCIAL

Minha vida é andar Por este país, Prá ver se um dia Descanso

feliz, Guardando a recordação, Das terras onde passei, Andando pelos sertões, Dos amigos que lá deixei... Chuva e sol, Poeira e carvão, Longe de casa Sigo o roteiro Mais uma estação. (Luiz Gonzaga) Sofrimentos, alegrias, lágrimas,

sorrisos. É bem verdade que nessa busca pela paz, pela melhoria, as lágrimas muitas vezes superam as alegrias. Muitas são as histórias de pessoas que saem do interior do estado do Ceará em busca de algo novo na selva de pedras chamada Fortaleza. Mãe, eu estou com fome! Essa era a frase mais comum na boca daquele menino, de baixa estatura, magrinho, moreno, calção listrado, pés descalços, e com os olhos que sempre pareciam viver cheios de lágrimas. Para tentar acalmar o seu pequeno a mãe dizia sempre a mesma frase, deixa seu pai voltar do roçado pode ser que ele traga alguma coisa. E depois de ouvir essa amarga frase, o menino olhava para o lado, tentando esconder a dor de não ter o que comer, buscando um local tranquilo, que pudesse chorar como criança, chorar por não ter o que comer e o que vestir, chorar por não ter mais esperanças, simplesmente chorar e colocar todas as angustias que sentia para fora, mas nem isso ele tinha, não havia espaço, a casa era pequena para os dez irmãos.

Apesar de menino, Francisco já pensava como adulto e agia como tal, não suportava mais ver a dor de sua mãe e seus irmãos, já não mais suportava os maus tratos de seu pai e daquela terra que na maior parte do ano era seca e sem vida. Em busca por me-lhorias com apenas sete anos, o

garoto acordava às três da manhã e chamava o irmão que dormia ao seu lado, afinal já era hora de seguir, as lavouras os esperavam.

No interior do estado do Ceará é comum lidar com carnaúbas, uma planta que chega a atingir até quinze metros de altura, ela é re-sistente e consegue viver em meio à caatinga. E era graças a essa planta que o menino Francisco conseguia levar para casa o feijão ou a farinha. Mesmo pequenino recolhia as palhas que os maiores derrubavam no chão e levava para o local exato da secagem da planta. Quando os trabalhadores adultos faltavam, ele subia aquela imensi-dão com um facão afiado e realiza-va o trabalho de gente grande.

O grande problema é que em Santa Rita, município de Santana do Acaraú, que fica a 189 km de Fortaleza, não se trabalhava com o canavial o ano inteiro, então Francisco tinha que ir a busca de novos empregos, por que a fome não esperava.

E cansado daquela terra que nada

A Fuga

tinha a oferecer, o menino de nove anos toma uma decisão de gente grande. Acorda bem cedo, vai até onde sua mãe está deitada, ela ainda dorme, o garoto olha fixa-mente em seu rosto, ele não pode se despedir como gostaria, pois seus planos são audaciosos, afinal ele nunca quis estar ali e se contar para ela de seu plano, com certeza o impedirá de seguir. Uma lágrima desce do seu rosto e o menino foge correndo pelo chão seco daquela terra que tanto lhe fez sofrer. Por não ter dinheiro suficien-te, pega uma carona até determi-nado ponto, em seguida orgulhoso da fuga pega um ônibus, dá todo o seu dinheiro naquela passagem, que para ele significava um troféu. Passada algumas horas o menino Francisco chega à grande selva de pedras, Fortaleza.

Enquanto isso, Quase no mesmo período, na localidade de Riachão, município de Choró Limão, próximo a Quixadá, vivia uma menina chamada Marta, ajudava sua mãe na lida da casa, enquanto seu pai e irmãos mais velhos traziam o que comer. A alimentação era pouca e escassa, ela sonhava com o dia em que pudesse comer um pedaço de pão com fartura. Os momentos mais felizes para a pequena Marta era quando seu pai lhe chamava para ir até a cidade, ali talvez fosse à grande chance de ganhar uma boneca, sonho de consumo daquela menina.

“Marta! Se vista, vamos ao Choró”, a menina saiu correndo, seu coração acelerava, vestiu o seu único vestido, e seguiu com seu pai. O sol era quente, seus pés pequeninos já não aguentavam, a sede era extrema, aquela terra seca feria seu pequeno corpo, mas tudo valia a pena. Quando chegou ela olhou dentro dos olhos de seu pai, com o rosto soado, respiração ofegante e pediu uma boneca. Ele delicadamente disse que, não tinha dinheiro para luxo, só para o essen-cial. “Precisamos comer filha, se eu gastar com a boneca o que colo-caremos no fogo hoje?” Aquelas palavras eram como facadas no coração da menina, para consolá-

-la o pai lhe ofertou um pãozinho

doce, ela comeu com a certeza de que ali não era o seu lugar. Marta com 12 anos recebeu a proposta de trabalhar na fazenda Guarani, localizada em Pacajus, Ceará. Sem muito pensar ela disse sim, seu real sonho era morar na grande capital, Fortaleza, todos falavam que lá tinham os melhores empregos, mas ela aceitou ir para Pacajus, afinal era a chance de sair daquela terra seca. Trabalhou seis meses na fazendo, depois foi tra-balhar em uma casa de um casal de empresários, em Fortaleza. Marta não se aguentava de tanta alegria, finalmente ia chegar na grande metrópole.

Francisco e Marta acreditavam que Fortaleza seria o refúgio, o local onde eles cresceriam e todos os seus problemas seriam resolvidos. Sonhavam em não mais passar fome e ter melhores condições de vida. Mesmo sendo crianças preci-sariam agir como adultos, estavam só, mas libertos daquela seca.

Eram muitos sonhos, apesar de fortaleza na década de 70 estar passando por um grande cresci-mento industrial, Francisco não conseguiu emprego na indústria, devido sua idade, então começou a trabalhar em vacarias e na construção civil. Marta trabalhou durante muitos anos como, empre-gada doméstica e só na fase adulta conseguiu emprego na Indústria. Francisco depois de algum tempo iniciou suas atividades trabalhistas em uma empresa de grande porte, o único estaleiro naval do Ceará. Apesar da grande luta pela sobre-vivência sempre tinham no coração que fizeram a melhor escolha. Em meio a grande cidade os dois encontraram-se, uniram forças, casaram-se, e passaram a lutar com o mesmo objetivo, vencer na vida. Atualmente os dois são em-presários de médio porte, cons-truíram uma família e fugiram do sertão que tanto lhe fizeram sofrer. Francisco é um homem realizado, e diz que, “ não tenho a menor vontade de voltar ao interior. Se fosse hoje eu não sairia de lá, pois aqui em Fortaleza é difícil entrar no mercado sem estudo”. Francisco com 49 anos diz que

Marta e Francisco, em Santana do Acaraú.

TEXTO: RAFAELA FERREIRA FOTO: RAFAELA FERREIRA

Neste ano de 2014, 96% dos 184 municípios cearenses decretaram emergência, é considerada a pior seca dos últimos 55 anos.

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a melhor atitude da sua vida foi ter saído daquela terra. Revelou-nos isto com um imenso sorriso no rosto, ao lado de sua fiel esposa Marta. “Foi a melhor decisão que tomei na minha vida, ter saído daquela seca, se não até hoje estaria lá”. Essa foi declaração final de Marta, com 52 anos. Francisco e Marta são dois exemplos de cearenses que fugiram da seca e tiveram um final feliz, no entanto existe uma parte da população que sai das suas localidades de origem em busca

de uma vida melhor e acabam se marginalizando. Sem formação ou condições de emprego e moradia, acabam optando por qualquer meio de sobrevivência. Podería-mos voltar ao período da revolução industrial, onde muitos foram em busca de algo melhor e acabaram superlotando os grandes centros e acarretando maiores proble-mas. A grande diferença é que se passaram anos, e o intuito é progredir, porém ainda existe uma parcela que sai do interior para a capital e acabam não conseguindo

o almejado. Ainda é comum a prática de sair do interior em busca de melhoria de vida, afinal o Estado do Ceará ainda não conseguiu superar o problema da seca em alguns inte-riores. Neste ano de 2014, 96% dos 184 municípios cearenses decreta-ram emergência, é considerada a pior seca dos últimos 55 anos. O professor da Faculdade Nordeste (Fanor), e economista, Osvaldo Araújo, nos contou que é possível ter desenvolvimento no interior, mesmo com seca, “O desenvol-

vimento do interior pode ocorrer através da produção de algodão, que mesmo com seca e sem irri-gação é possível produzi-lo com alta qualidade”, e acrescentou, “A interiorização do desenvolvimento é possível, é uma decisão política”. Enquanto a situação da seca não é resolvida, as pessoas ainda con-tinuarão buscando algo melhor, fa-vorável e digno.

Chuva e sol Poeira e carvão, Longe de casa Sigo o roteiro, Mais uma estação...

Walter Benjamim formulou a seguinte equação em 1933:

Cinema = fotografia + movimento. O pesquisador Antônio Fatorelli, em sua discussão que abrange a foto-grafia, o cinema e as novas mídias desmistifica essa fórmula.

Com a evolução digital, câmeras como Nikon D90, 5D Mark II e outras, que seguiram a elas, inovam, com impacto, o processo de produção de imagens. E essas transformações, embora não tão recentes, ainda não foram bem compreendidas, principalmente pelo fotojornalismo.

À medida que cresce o número de imagens na rede, mais discussões são levantadas a respeito dessa produção desenfreada das foto-grafias e vídeos. Uma pesquisa feita em 2013 e divulgada no site O Globo revelou que, por ano, Facebook, instagram e Flickr com-partilham juntos 125 bilhões de imagens. O advento da internet faz com que a fotografia digital mude

a forma de como vemos o mundo, não só no cotidiano da socieda-de, mas também nas redações dos jornais, revistas e agências de notícias. Hoje, com a evolução dos meios midiáticos, a velocidade com que se faz a foto de um aconteci-mento com uma câmera DLSR e a

envia para a redação de um jornal, por exemplo, pode ser muito inferior a mesma foto feita por um celular smartphone.

A imagem fixa contemporânea

Os profissionais da fotografia já não estão mais sozinhos. O foto-jornalismo, muitas vezes amador, está na prática do usuário da internet. Demitri Túlio é um desses usuários, mas no caso dele a foto-grafia é tratada como informação e é feita através de um olhar bem crítico. Demitri é jornalista e tem um projeto paralelo à profissão que leva a maneira de se pensar imagens muito a sério. Ele ressalta que antes a comenda de fotógrafos era para poucos, mas agora, com a era

Fotojornalismo e a foto em movimentodigital, uma dona de casa passou a informar o seu cotidiano, através de registros fotográficos. “A pessoa ‘comum’, o não-fotógrafo passou a produzir informação no caminho do trabalho, no ônibus, no estádio, na repartição, na rua.”

Essas fotografias exibiram, e exibem, multiplicidades de tempos e de espaços, de um antes e um depois, um passado e um futuro, um atual e um virtual de histórias interessantes que se narram e se laçam naturalmente num verdadeiro modismo da fotografia como meio processador das outras formas visuais que confirma a sua radical modernidade.

Fotografia em movimento

O cinema em foco e o vídeo cada vez mais se aproximando das redações. E o fotojornalismo ainda resiste a essa nova tendência, mas até quando? De um lado o fotógrafo e sua câmera, do outro o espectador e a sua tela digital. Em se tratando do modo de existência das imagens, e das imagens tecno-lógicas em especial, tal indagação se desdobra em outra inquieta-ção, a de inferir até que ponto as inovações tecnológicas originam modelos de percepção da aproxi-mação do olhar crítico sobre o que se ver e do que é visto.

Apesar de o vídeo, com o pensa-mento voltado para o cinema, ser denominado fotografia em movi-mento, os dois (fotografia fixa e fotografia em movimento) têm suas particularidades que nem o tempo, nem as experiências de novas mídias darão fim. Sara Maia, que é jornalista, fotógrafa e coordena uma equipe de fotógrafos no Jornal O Povo, observa que o vídeo está,

cada vez mais, se tornando uma fer-ramenta poderosa na produção de informação. “Agora, quando saímos em pauta, não nos concentramos somente em trazer a melhor foto-grafia possível, temos que reservar espaço criativo também para o vídeo, mesmo ele sendo curto”.

As tecnologias digitais instauram uma nova noção de realidade, e essa realidade faz com que o mercado midiático exija cada vez mais do fotógrafo, ao ponto de engrenar mais por esse lado multi-mídia.

A evolução dos meios midiáticos e de equipamentos para captação de imagens é constante na atualidade e para acompanhar tal evolução é preciso estar sempre buscando in-formações. O fotojornalismo é uma das práticas que vem se inserindo nesse meio para se adaptar as novas mídias. Independente que seja foto ou vídeo, a diferença mais importante está na abordagem pro-fissional e no critério do que está sendo abordado, seja na notícia ou na reportagem, o passado, o presente e o futuro se completam na mente e no olho de quem vive histórias.

Neste cenário de desenvolvimento tecnológico rápido, a fórmula de Walter Benjamim (cinema= fotogra-fia + movimento), que deriva de sua concepção de meios de comunica-ção de massas, na era da reprodu-tibilidade, as coisas ficam obsole-tas em um espaço de tempo muito curto e precisamos estar sempre preparados, antenados, sem nunca perder a vista de que fotojornalis-ta, hoje, noticia com câmeras que não só fotografam, mas também, filmam.

TEXTO: ANDRÉ SILVESTRE FOTO: ANDRÉ SILVESTRE

TECNOLOGIA

Evilazio Bezerra, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará (Sindjorce), repórter fotográfico da Câmera Municipal de Fortaleza e do jonal O Povo.

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REALIDADE SOCIAL.

Migração: o retrato da fé brasileira

TEXTO: ELVES RABELO

Administradora, mãe de três filhos e viúva. É

assim que Kelly Braga (33) é conhecida por muitos. Mas o que apenas alguns sabem é que ela faz parte das es-tatísticas de pessoas que mudaram de religião nos últimos anos no Brasil. Há dez, Kelly deixou o catolicis-mo e foi para a Igreja Evan-gélica.

“Sofro discriminação em casa pelo meu pai. Ele não acredita, diz que lá só tem quem não presta: ex-prosti-tutas, ex-bandidos etc. Ele mal fala comigo sobre esses temas.”, comenta Kelly.

Os dogmas evangéli-cos chegaram à vida de Kelly através de sua ex- -sogra, dona Vera Lúcia, que frequentava a Igreja Batista. O único argumento utilizado foi o de que ‘somente Jesus salva’. “Na verdade ela [a sogra] não me chamou para ir a nenhum culto. Eu que resolvi ir, por já não me iden-tificar, há muito tempo, com a Igreja Católica.”, afirma Kelly, franzindo a testa e com tom de firmeza.

Antes de chegar à sua atual congregação (como são denominadas as diversas igrejas evangélicas), Kelly passou por outras três. Sua primeira experiência foi com a Assembleia de Deus. Não gostou por conta dos costumes. “Há o grupo das senhoras, dos homens, dos jovens... Todos sepa-rados. Você não pode pôr um brinco, passar maquia-gem e nem usar calças. Os costumes são muito tradicio-nais”. A segunda tentativa foi na Igreja Universal. Também não se identificou. Então resolveu ir à igreja de sua ex-sogra, a Batista. Compa-receu a alguns cultos, mas percebeu que lá também não era “seu lugar”. Daí resolveu ir à Comunidade das Nações.

Por ser próxima de sua casa, cerca de dois quarteirões, o primeiro contacto não tardou. “Fui visitar, gostei e fiquei”. Desde então Kelly congrega e já se vão dez anos de ‘con-vertida’ (pessoa batizada na Igreja Evangélica).

Ao ser perguntada se por algum momento pensou em ir para outra religião que não fosse a evangélica, Kelly, sorridente, diz: “não fui para a Umbanda porque tenho medo, não fui para o Espiritis-mo porque não acredito que quem vá, volte. Eu acredito que o único caminho para chegar a Deus é através de Jesus Cristo. E eu só encon-trei isso na Igreja Evangéli-ca”.

Ao ser perguntada se por algum momento pensou em ir para outra religião que não fosse a evangélica, Kelly, sorridente, diz: “não fui para a Umbanda porque tenho medo, não fui para o Espiritis-mo porque não acredito que quem vá, volte. Eu acredito que o único caminho para chegar a Deus é através de Jesus Cristo. E eu só encon-trei isso na Igreja Evangéli-ca”.

O que os números revelam

De acordo com o último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística), em 2010, a Igreja Católica perdeu cerca de 1,7 milhão de fiéis na última década. Entretanto o Brasil segue como a maior nação católica do mundo. Já os evangéli-cos, nos últimos quarenta anos, saltaram de 5,2% da população para 22,2%. Um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões).

“O impacto dessa mudança é grande para a Igreja Católica. A Rússia teve revolução e

permaneceu ortodoxa. Os Estados Unidos, mesmo com a Guerra Civil, se manti-veram protestantes. Entre os países grandes, mudanças assim só ocorreram em con-sequência de guerras e re-voluções. No Brasil, a revo-lução é silenciosa”, diz José Eustáquio Diniz, demógrafo

da Escola Nacional de Esta-tísticas.

Se em 1970 os brasileiros que se consideravam ca-tólicos somavam 91,8% da população, em 2010 esse número baixou para 64,6%. Dentre os evangélicos, 60% eram de origem pentecos-tal, 18,5%, evangélicos de missão e 21,8%, evangélicos não determinados.

A ex-candomblé

57 anos, fabricante e reven-dedora de trufas, moradora do bairro Lagoa Redonda e obreira da Igreja. Lenilda Santos hoje é da igreja Uni-versal. Nascida em uma família evangélica, afastou--se da Igreja e passou a frequentar encontros de Candomblé por 15 anos. Conheceu a religião após mudar-se para o bairro Jardim Iracema. “Eles [membros do Candomblé]

colocam o nome de Deus, rezam Pai Nosso e tudo. Mas não é Deus. Eles adoram aos encostos, a outros deuses”.

No período em que era membro do Candomblé, Lenilda também ia à Igreja Católica. “Às vezes eu ia à missa, mas era mesmo

que nada. Sentia um vazio dentro de mim. Ninguém nunca chegou pra conver-sar comigo”, comenta com o olhar distante.

Ao ser perguntada o porquê de ter retornado à Igreja Evan-gélica depois de tanto tempo, Lenilda inquieta afirma, sem vacilar, que sentia um vazio muito grande. Fazia de tudo, mas não conseguia melhorar, “sem contar que quando as entidades apare-ciam, a gente tinha que fazer

Fonte: Diretoria Geral de Estatística, recenseamento do Brasil 1872/1890, IBGE Censo Demográfico 1940/1991

“O ESpíRITO SANTO TIROU AS COISAS RUINS DE mIm, mE LImpOU. HOjE SOU UmA NOVA CRIATURA. SEm pRObLEmAS.”

De acordo com o último censo realizado pelo IBGE, os evangélicos, nos últimos quarenta anos, saltaram de 5,2% da população para 22,2%. Um aumento de mais de 16 milhões de pessoas.

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os rituais na hora. Eu não tinha paz de espírito”.

Foi sua mãe quem a levou de volta para o protestantis-mo. Insistiu muito para que a acompanhasse a um culto, pois tinha de levar um visi-tante. “Na Igreja Universal era tudo diferente. Comecei a chorar bastante. O Pastor me acolheu e no final, eu já me sentia mais leve”.

Os primeiros meses não foram fáceis. Lenilda conta que chorava muito. Quase todos os dias tinha de ir ver o Pastor porque não se sentia segura. Na mesma época seu namorado a abandonou e a solidão a fazia, às vezes, pensar em desistir. Hoje, ela está bem, cuida da limpeza do templo, sai às ruas para pregar e participa do grupo de senhoras da Universal na sede em Lagoa Redonda, bem próximo à sua casa.

Apesar de sofrer precon-ceito por parte de parentes, Lenilda diz que se sente bem, conhece Deus e que não pertence a nenhuma religião, mas sim, à família de Cristo na Terra. “O Espírito Santo tirou as coisas ruins de mim, me limpou. Hoje sou uma nova criatura. Sem problemas”. O sorriso estam-pado no rosto e o brilho no olhar não a deixam mentir.

A reação: Renovação Ca-rismática Católica

Não se perde aquilo que não tem. Esse é o discurso de alguns membros da Igreja Católica. Para eles, aqueles que hoje saem só o fazem porque não eram católi-cos de fato. “O fiel é aquele que busca se comprometer em anunciar a Boa Nova, que segue as exigências do Evangelho. Infelizmente, existem muitos irmãos que dificilmente iam para Santa Missa, exceto em casamen-tos, batizados etc.”, afirma contundente, Jonathan Monteiro (32), Coordena-dor do Centro de Formação Shalom. Segundo ele, aqueles que se dizem ex--católicos não tinham com-promisso com os dogmas da Igreja. Procuravam um lugar que se adaptasse ao

seu modo de vida, aos seus pensamentos e suas lógicas humanas. “Dessa forma realmente é mais cômodo sair, pois não tem raízes e qualquer vento o arranca”.

Aqueles que vão para a Igreja Evangélica são os que “buscam vida fácil. A Igreja Evangélica permite a Teologia da Prosperidade. Venha pra nós porque Deus vai te dar tantos carros, vai te dar tanto em dinheiro a casa mais desejada. E não é isso que a Bíblia nos fala. Ela diz que temos que dar tudo pelo tudo. Dar tudo pra Deus e Ele nos dará tudo. Temos que ofertar nossa vida assim como um cordeiro levado ao

matadouro, como foi Jesus Cristo”, afirma Yuri Ornellas (18), Mestre de Cerimônias e Coordenador de Coroinhas na Paróquia de Caucaia

Em meio ao atual cenário reli-gioso do Brasil, a Renovação Carismática Católica (RCC) destaca-se como sendo a ‘reação’ frente ao avanço evangélico. Movimento cujas origens se deve a um retiro realizado em 1967 por alguns estudantes da Uni-versidade de Duquense em Pittsburg (USA). Por volta de 1990, 23 anos após seu início, já contava com cerca de 72 milhões de seguidores no mundo inteiro e organiza-ções oficiais em mais de 120 países. Mesmo sendo con-siderada por muitos como um abandono de práticas e

crenças genuinamente cató-licas, a RCC é hoje a princi-pal pilastra católica diante da “concorrência” forte.

Existem hoje no Brasil cerca de 11.248 mil grupos ca-dastrados na RCC que têm a fidelidade à Instituição combinada com a vibração pentecostal como princi-pais armas do movimen-to. Nascida por inspiração evangélica, a RCC não nega uma certa identidade com os pentecostais. “Foi o bispo Edir Macedo quem nos des-pertou. Ele nos acendeu”, afirmou o padre Marcelo Rossi em entrevista à revista Veja em 1998. O padre Marcelo é considerado uma das estrelas midiáticas do movimento no Brasil.

O investimento em mídias como o Rádio e a Televisão também é grande. A RCC, por exemplo, tem seu próprio canal, a TV Canção Nova, com sede em Cachoeira Paulista - SP. As emissoras católicas multiplicam-se pelo País. Existe também a Rede Vida, que leva conteúdo católico a todo o Brasil.

Através de ações e algumas mudanças, a Igreja Católica mostra uma face mais dinâmica e atuante. É o chamado marketing católico. O objetivo é fazer frente ao avanço evangélico, sobretu-do pentecostal, e reduzir a ‘perca’ de fiéis.

Aos olhos do pastor

Chamaremos aqui de JR o pastor de um dos templos da igreja Assembleia de Deus, Ministério Templo Central, que pediu para ter sua iden-tidade preservada.

JR (48) é casado e pai de três filhos. Nascido em uma família católica, foi pratican-te fervoroso do catolicismo, mas ao perceber que o que era tido como verdade na Igreja Católica era “conde-nado pela palavra”, migrou para o protestantismo. Con-vertido há 17 anos, visitou congregações como a Ad-ventista, Batista e Universal. Hoje é pastor da Assembleia de Deus e ao comentar o porquê de algumas pessoas

saírem de suas religiões de nascença rumo à Igreja Evangélica, é categórico e preciso ao afirmar que “quem vem pra cá [Igreja Evangélica] busca a Deus. São aqueles que tinham vida em guerra e agora buscam a paz”. Para ele a Bíblia é clara ao dizer que todos que praticam feitiçaria, idolatria e espiritismo estão de fora do reino dos céus. Ou seja, con-denados ao submundo.

A igreja Assembleia de Deus tem como característica principal a pregação de um “céu em Jesus Cristo”, dife-rentemente de outras religi-ões, que, ainda segundo JR, pregam um céu aqui na terra. “Somos uma igreja séria e comprometida com a palavra da Bíblia. Nós não fazemos apologia ao ódio a nenhuma outra religião, pelo contrário, respeitamos todas”.

A fé em números

O número de cristãos mante-ve-se estável nos últimos 10 anos. Fato que indica tanto uma migração de católicos para as correntes evangé-licas como para outras reli-giões. Outro segmento que também apontou crescimen-to foi o dos sem religião. Chegou a 8% da população em 2010. O contingente de católicos foi reduzido em todas as regiões mantendo--se mais elevado no Nordeste (de 79,9% para 72,2% entre

2000 e 2010) e no Sul (de 77,4% para 70,1%). O Norte foi onde houve a maior redução relativa dos católi-cos, de 71,3% para 60,6%, ao passo que os evangéli-cos, nessa região, aumenta-ram sua representatividade de 19,8% para 28,5%.

O Rio de Janeiro destaca-se como sendo o estado com o menor percentual de cató-licos, 45,8% em 2010. Já o maior percentual é no Piauí, 85,1%. Em relação aos evan-gélicos, a maior concentra-ção estava em Rondônia (33,8%), e a menor no Piauí (9,7%).

A questão é que A Ação dA renovAção cArismáticA tem minimizAdo o esvAziAmento dA igrejA cAtólicA. trAzendo o jovem às AtividAdes dA igrejA.

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Intervenções urbanas aproximam diferentes linguagens artísticas,

transformando as ruas em galerias de arte e despertando a curiosida-de dos fortalezenses.

Grupos de artistas vêm se des-tacando por interromper a rotina desvairada de Fortaleza, expondo nas ruas fotografias, desenhos, projeções que contrastam com o mau-humor que as obrigações

diárias nos causam. Eles praticam intervenções urbanas, movimentos artísticos relacionados às artes visuais que não aconteciam com tanta frequência ou ao menos não eram valorizados e nem praticados aqui em Fortaleza, como atualmen-te.

Poetizar o cotidiano, fugir do banal, provocar uma reflexão e olhares incomuns sobre a cidade é a intenção dos artistas que realizam as intervenções urbanas e que também despertam o interesse de pessoas a praticar arte.

Isabel Rodrigues, 20, estudante de publicidade, contou já ter pensado em fazer algo do tipo. “Das pou-quíssimas vezes que me deparei, foi um encanto. Me amarro nessas coisas e é uma pena a galera não valorizar e ter tão pouco disso pelas ruas ou onde quer que seja”.

Um grupo que vem surpreendendo

CULTIVARTE

Intervenções artísticas urbanas que acontecem em Fortaleza.TEXTO: PRISCILLA RAMOS

As intenções do Descoletivo com as intervenções urbanas é desviar o olhar das pessoas para obser-varem a cidade e seus lugares, como espaços possíveis de serem ocupados. “Que a arte possa atra-vessar a rotina da cidade, inter-ceptando o público e o instigando a refletir, em meio ao caos do dia a dia”, afirmam. Foto: Beto Skeff. Ação ‘Corpo Urbano’, Praça do Ferreira, 16/08/2014. Performer: Michele Tajra.

É arte contemporânea ou uma coisa estranha?

O grande público expressa duas reações padrões quando é surpre-endido por intervenções, perfor-mances e outras produções con-temporâneas, a surpresa, susto por uma ação inesperada, e um ques-tionamento subconsciente, “Que coisa é essa?”.

É difícil definir e entender o universo que cabe na arte, e prin-cipalmente na vertente contempo-rânea. Giorgio Agamben, filósofo italiano, afirma em sua obra ‘O que é contemporâneo? E outros ensaios’, que a contemporaneida-de é uma singular relação com o próprio tempo. Ela se adere a este e ao mesmo tempo toma distância.

Em outras palavras, a arte contem-porânea é um diálogo com a atua-lidade. E o que são as relações e condições do mundo atual, senão uma grande confusão?

O cearense Filipe Acácio, fotógra-fo, designer gráfico e diretor de fotografia, defende que não há o que determine uma obra como con-temporânea ou estranha. E ele vai além, questionando esse “contem-porâneo ‘ou’ estranho”. Para Filipi, os dois termos estão intimamente relacionados. “Justamente por não ser familiar e causar um desconfor-to é que a arte contemporânea se faz presente. O que já foi exposto, muito bem explicado, o capitalismo já capturou”, conclui.

Sobre essa vertente contemporâ-nea o diretor de fotografia diz que é “um arcabouço que está cabendo um monte de coisa que não se sabe ainda o que é. Os especta-dores querem entender o que às vezes está explicado nas lacunas”. Não é preciso compreender com-pletamente uma obra, por muitas vezes as composições artísticas são propositalmente estranhas e questionadoras.

As interrogações, a ausência de explicações e um certo incomodo são intencionais e propositais na arte contemporânea, justamente para ‘desfuncionalizar’ conceitos e causar estranheza.

Foto: Tiago Lemos. Intervenções fotográficas de Vanessa Andion e Tiago Santana na ação ‘Ensaios para Demolição’.

e destacando-se na cena artística cearense é o Descoletivo, formado pelos fotógrafos Beto Skeff, Marília Oliveira e Régis Amora. O grupo de artistas explica de onde partiu o interesse em realizar as inter-venções culturais pela cidade - da própria vivência e experiências deles com o Descoletivo, “Perce-bemos que para chegar ao público a arte precisa de aprovações. Sendo assim, resolvemos por nós

mesmos levar nossa linguagem e nosso trabalho ao público onde ele está, na rua e não nas galerias”.

O grupo une nas intervenções di-ferentes linguagens artísticas, que conversam entre si, como o au-diovisual, a fotografia, música e teatro. “O Descoletivo se preocupa em, além de levar a arte para a rua transformando-a em galerias não institucionalizadas, agregar a classe artística e outras linguagens ocupando a cidade e transforman-do sua rotina”.

Recentemente as ações do grupo, como ‘Ensaios para Demolição’ e ‘Corpo Urbano’, ganharam re-percussão entre os fortalezenses. Nessa aproximação, em propor um valor e significado poético ao que é degradado e ignorado, são alcançadas também a valorização cultural e a ampliação da curiosida-de pela arte entre a população.

Foto: Beto Skeff. Terceira Edição da Ação ‘Ensaios para Demolição’

Galerias urbanas

“jUSTAmENTE pOR NãO SER fAmILIAR E CAUSAR Um DESCONfORTO é qUE A ARTE CONTEmpORâNEA SE fAz pRESENTE.

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Galerias urbanasIMAGINÁRIO INFANTIL

A Arte da Contação de Histórias atravessando gerações.TEXTO: HELIANA QUERINO FOTO: ALEX HERMES

Era uma vez os donos da palavra

Primeiro andar, Chicão Oliveira, o catador contador está sentado

num tapete colorido desenhado em círculos de verde, amarelo, laranja e vermelho, um pouco desbotado, no centro do salão, aproximadamente 09h30m da manhã de uma quinta feira na Biblioteca Dolor Barreira. Ele, Chicão aponta em várias direções fazendo impostações com a voz para chamar a atenção das 19 crianças presentes, escutando sua história. Observando a cena, estão quatro professoras respon-sáveis pelos pequenos estudantes, onde uma delas permanece todo o tempo com a atenção voltada para o celular. Chicão mostra as ilustra-ções do livro Raulzito, o Jacaré e na outra mão ele segura o pau de chuva (instrumento de percussão), “Raulzito era um jacaré legal que vivia de mudança, no rio nadava e na terra se arrastava, feliz desse

modo, não se importava em viver de malas prontas”. O dono da palavra termina a história e começa a contar A Fada Feiticeira, “A Fada Rosa Maria vivia com a mãe num castelo de torres douradas em cima de nuvens gigantes” ...

Essa historinha dura mais ou menos vinte ou trinta minutos. Estimulando os pequenos, o catador pergunta: - quem foi convidado para a grande floresta? – O macaco, a galinha, o cachorro, a bruxaaa, o gato. Não foi qualquer gato, foi O Gato, não foi qualquer bruxa, foi A Bruxaaa. Cada resposta é do tamanho da imaginação. Com ajuda do contador, as crianças incluem na história trechos e personagens que

não fazem parte do original, e até eu sou envolvida no conto, quando ele diz que vai me transformar na bruxa. Faço cara de espanto e os pequeninos dão risadas. Mas a moça do celular continua imóvel, ela só enxerga a tela do smartpho-ne.

Nas paredes da Gibiteca, figuras de nossa literatura e muitos co-nhecidos das HQS. Do outro lado da divisória, recheadas estantes que parecem dizer “vem cá”. E eu vou! Com os ouvidos atentos nas palavras de Chicão e os olhos buscando informações, tento fotografar tudo – as paredes, os desenhos nas paredes, as estantes, as crianças, o contador, o livro na mão do contador...

Os curiosos ouvintes estão con-centrados de tal forma que agora

mal notam a minha presença. Retorno e dou um sorrisinho sem graça para as acompanhantes. De mansinho, sento num banco e obesrvo uma das meninas – ela está tão à vontade que deita no tapete, e outra criança e mais outra imitam o seu gesto.

A fantasia rola solta e o tapete começa a voar!

Mas de repente, quase despenca com a interrupção de uma das pro-fessoras:

- “Ei, psiu, levante-se, levante agora, comporte-se”.

Sem pausar a contação, Chicão lançou o olhar por cima dos óculos em direção à educadora e prosse-guiu. Mais tarde ele confessaria: “Você viu? As crianças estavam à vontade, deitadas, de boa, em silêncio, e quem estava atrapalhan-do minha história hoje era uma das acompanhantes”. Empolgado ele dispara:

- “A mulher queria uma disciplina de sala de aula. Não existe disci-plina de sala de aula, é uma outra coisa, uma outra temática, outro campo paralelo. A contação de his-tórias não é para ensinar a criança a ler e escrever, o objetivo é fazer a criança descobrir outras identida-des, aprender a dizer sim e não - dizer “eu não gostei da bruxa, ou, eu gostei porque ela aprendeu voar de vassoura” ... Ela vai descobrir outros valores, fantasias, busca da memória, o lúdico e o despertar do imaginário”.

“A arte não é para ensinar, a lite-ratura infantil muito menos, mas acaba formando de uma maneira bem mais complexa”. Esse é o pensamento da escritora infantil Aline Bussons, que se encaixa nas ideias de Chicão.

Sobre a importância da literatura na formação da criança, a escrito-ra acredita que o desenvolvimento não acontece em uma só direção, “mas em várias”!

“Se uma criança tem acesso a livros desde pequena ler ou escuta as histórias, esta tem mais chances de se tornar um leitor mais crítico no futuro, mais curioso, mais pers-picaz. Fora que, quando lida em ambiente familiar, aproxima as pessoas da família na afetividade envolta na contação de histórias. Também, aproxima o professor do aluno em afetividade”.

E é o professor de língua portu-guesa, Ivo dos Santos Xavier, 33, que fala dessa relação: - “Podemos dizer que de todas as tipologias textuais, narrar é a primeira e mais intensa forma de comunica-ção, pois é contando histórias ou estórias que as crianças vão cres-cendo e com facilidade compreen-dendo a complexidade da vida”.

Chicão Oliveira contando história na biblioteca Dolor Barreir

Chicão Oliveira se deu conta que a presença da criança encantava as pessoas nas contações de histó-rias, sua filha Estrela participa com ele desde os seis anos de idade: “Eu percebi que não podia ser um contador de histórias cindido, minha filha hoje tem 10 anos e assim como ela, outras crianças também podem contar”. “Quando a gente viaja para contar histórias, ela conhece outros lugares além dos imaginados nos contos - é um estimulo para as apresentações, mas vai depender dela se tornar uma contadora de histórias, na verdade Estrela já é, eu não posso impor”.

Nas viagens, Chicão vai com a filha e com a companheira, que segundo ele, cuida de toda a produção. “Eu tenho uma filha que conta as histó-rias comigo e a mãe que ajuda na produção” ...

Eu costumo ganhar muitos livros porque às vezes vou para uma contação e a pessoa me fala, “Chicão eu não tenho dinheiro mas tenho livro” e as vezes esses livros são mais caros do que o cachê que eu recebo. Isso é ótimo porque eu estou partilhando com as crianças da comunidade. Um dia eu ganhei um jerimum como cachê...

Agora, bem mais à vontade depois de um tempo de conversa, Chicão cruza as pernas, apoia as costas na cadeira e o cotovelo sob o pau de chuva, põe sobre a mesa o livro da autora Aline Bussons, o qual ele acabou de contar para as crianças, e fixa seu olhar em direção à porta:

O maior prazer para um contador de histórias é quando a criança dorme na sua contação, porque aí ela tem a possibilidade de ter outros sonhos que não é a sua realidade. Muitas vezes é uma re-alidade dura, elas apanham em casa, sofrem bullying na escola, é um mundo de vez em quando, mar-ginalizado. Quando ela vem para esse ambiente, eu tento fazer com que a criança se distancie cada vez mais do espaço físico em que

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todos os dias ela está, que é a sala de aula.

Uma vez ou outra, Chicão se nega a ir até às escolas porque acredita que é mais interessante as crianças virem até a Casa dos livros. Ele lamenta às prefeituras, tanto da capital quanto do interior, não disponibilizarem transporte suficiente para as escolas levarem seus estudantes até as bibliotecas.

Com um tom melancólico confessa que “lugares como esses não podem ser vistos só como depósito de livros e sempre ser tratados pelo poder público como o primo pobre da cultura”.

Contar histórias é uma Arte-profis-são porque as pessoas sobrevivem das suas contações, sejam elas contadas por quem são propria-mente donos das histórias, que criam e escrevem livros, ou não.

Antes, o contador tradicional era quase exclusivo, pouquíssi-mas pessoas tinham acesso aos livros e no caso, por exemplo, da África, onde nós tínhamos os Griôs contando suas histórias debaixo dos Baobás, nas tribos, passadas de pai para filho, era a grande figura que mantinha viva a tradição de seu povo, todo seu passado e trajetória, sua lenda, e universo cultural através da palavra contada.

Os gritinhos afinados dos pequenos no primeiro piso do prédio, servem de trilha sonora para as confissões do catador. As crianças ainda se encontram na biblioteca e Chicão continua seu contar.

Hoje é um grande desafio, porque cada vez mais vêm surgindo con-tadores de histórias em várias escolas, vários grupos, figuras que já saem do teatro sabendo que querem brincar de contação. Posso citar, por exemplo, a atriz e conta-dora Paula Yemanjá, ela é fantás-tica... Eu percebo também que na atualidade a grande batalha é que não temos um público certo como se tinha antigamente - um ambiente já próprio com um público cativo: Mansão, sala de teatro, salão de evento onde as pessoas já ficavam aguardando a próxima história. O contador falava de suas aventuras de viagens, aventuras de um novo mundo, de expedições marítimas ou então lia um romance. O Simbá (claro que é uma fantasia, criação das mil e uma noites) mas que é um exemplo disso e não deixa de ser uma história contada. Simbá reunia

os amigos e contava suas peripé-cias de viagens. Não existiam livros e as histórias partiam somente da oratória.

Aqui em Fortaleza têm contador de histórias de todas as maneiras, alguns grupos muito mais consis-tentes. Eu já citei a pouco, a Paula Yemanjá, que conta com uma doçura maravilhosa, para mim ela é fantástica.

O Conto de Yemanjá

“O ato de contar história existe desde que existe o homem: o ato de partilhar suas experiências, de compartilhar histórias durante a execução de um trabalho, ao fim do dia, durante uma refeição faz parte da natureza humana. Contar histó-rias faz parte de nosso processo de formação, de individuação, quando conhecemos “nossa história”, refor-çamos nossa identidade e nos em-poderamos, podendo até mudá-la caso desejamos.

Contar histórias existe antes da escrita, antes da literatura. Nas co-munidades tradicionais, o contador de histórias é um guardião da memória viva de seu povo. Trans-mite os ensinamentos ancestrais: lendas, mitos, músicas, histórias de seus antepassados, suas vitórias e derrotas; medos, angustias e alegrias. Essas histórias além de encantar e divertir, tem uma função educativa: ensina lições para vida, ou melhor preparam para os mais diversos momentos. Criam laços entre as pessoas e reforçam o espírito da comunidade.

Por isso, o material primordial do contador é a história e a literatu-ra oral, a história que passou de boca em boca... “Histórias que hoje podemos encontrar em estudos de diversos pesquisadores”. (Paula Yemanjá, 37, atriz e contadora de histórias).

Curiosa em saber da doçura citada por Chicão Oliveira, não pude resistir, tratei de defender as palavras do contador e busquei a moça das contações. Paula Yemanjá costuma contar histó-rias tanto para adulto quanto para criança e várias histórias de seu repertório funcionam para plateias infantis ou predominantemente de adultos – “ambos costumam se divertir. Às vezes transformo adultos em crianças”.

Os contadores urbanos são a grande maioria que atuam nos

centros de médio e grande porte. Muitos estudaram na área de humanas ou artes. Desvincu-lados dessa função tradicional de guardião de memória de um povo, atuam dentro de escolas, projetos sociais e de leitura, livra-rias, centros culturais. Me identifico bastante com este grupo.

Minha relação com a contação surge com minha mãe que contava histórias para mim e meus irmãos. Comecei ouvindo as histórias dela, depois escolhendo-as nos livros que lia. Um dia, depois de tanto ouvir, comecei a contar e não parei mais.

Trabalho bastante autores de li-teratura infanto-juvenil, mas não costumo decorar as histórias: es-tudo-as e depois reconto-as com minhas palavras. Procuro entender por que aquele material me tocou, para assim transportar através de meu corpo, voz e emoção o que me cativou naquele conto. Pesquiso material literário de qua-lidade, um texto bem escrito nos desafia no reconto: a buscar em nossas palavras a excelência do

texto escrito pelo autor e que essas palavras repercutam em quem as escute. Porque para que se realize a contação, é necessário o contato com o outro. Nisso não há diferen-ça entre contadores tradicionais e urbanos, toda contação é um ato de compartilhar.

O Catador contador

Depois de falar de magia, histó-rias e fantasias, nosso persona-gem central, Chicão Oliveira, 45, contador de histórias da bibliote-ca Municipal Dolor Barreira e das praças e ruas e de onde mais for convidado a contar, faz uma inusi-tada confissão - ele não é contrata-do oficialmente como contador de histórias, “Na verdade, eu não sou

contador de histórias da biblioteca por contrato, o meu contrato é de gari, eu sou um gari da prefeitura de Fortaleza, que a bem pouco tempo quiseram fazer com que eu voltasse a varrer rua, porque eu expressei minha solidariedade aos garis, numa manifestação. Não que ser gari, seja um desmérito, pelo contrário, o que acontece é um desvio de função. No órgão em que eu trabalho são umas 350 pessoas à disposição e eu consegui minha transferência para a biblioteca. Já tinha feito o curso de arte dra-mática da UFC (Universidade Federal do Ceará), onde hoje é o ICA, foram três anos e meio, eu fiz também os princípios básicos de teatro com Joca Andrade. Chegando aqui encontrei outros artistas, atores e reunimos a fome com a vontade de comer. Então veja, talvez eu seja o único gari de Fortaleza com esse “desvio” - um cara que tem um contrato de gari e que é um contador de história e se por acaso eu for obrigado a voltar a assumir as funções de gari, como diz o Ricardo Guilherme (dramatur-go, diretor teatral, ator, etc, etc), eu vou ser um CATADOR de histórias.

Mas isso não ia me enfraquecer, agora está tudo resolvido, inclusive eu estou aqui lhe dando essa en-trevista.

A biblioteca pública municipal Dolor Barreira foi fundada em 1971 na gestão do prefeito José Walter Cavalcante, em 2009 a então prefeita Luizianne Lins reinaugurou a biblioteca nesse espaço, que foi comprado na gestão do prefeito Juracy Magalhães, na Avenida da Universidade, onde foi fundada, mas agora, em outro número. O funcionamento da biblioteca é de segunda a sexta das 8h até 20hs.

Paula Yemanjá, atriz e contadora de história.

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