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A MULTIPLICAÇÃO DOS CORPOS NA COMUNICAÇÃO ARTÍSTICA: Representação e Antropologia Nízia Villaça* “Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo! Dai-me como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas. Ou levai-me deste mundo, que estou exausto. Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança. Amém!” Ismael Nery Quero romper com meu corpo, quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência, mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto”. Carlos Drummond de Andrade “Pessoas remendadas são experimentos pós-evolutivos” Stelarc A pluralidade das vozes em epígrafe sugere o que está em questão: os limites do corpo, sua escolha e redefinição no campo das artes. Obviamente, encontraremos momentos de maior ou menor acordo com o que nos é simultaneamente presente e estranho, idêntico e diferente: o corpo, este complexo conglomerado bio-psico-sociológico. Usaremos como vetor de nossa reflexão a dinâmica identidade/alteridade e a oposição natureza/cultura. A propósito, cabe lembrar o pensamento de Henri-Pierre Jeudy 1 sobre as operações da percepção. Segundo ele, operamos na arte ou no cotidiano uma reestruturação estética das imagens do corpo que surgem como num sonho. Buscamos uma espécie de elaboração secundária, uma reconstrução do sonho em narrativa, reprimindo o estranho e a alteridade. * Nízia Villaça é Professora Titular da ECO/UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo Ethos: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais, Autora, entre outros, dos livros: Impresso ou eletrônico? – um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad, 143 páginas, 2002; Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco. Co-autor: Fred Góes, 224 páginas, 1998 e Paradoxos do pós-moderno; sujeito & ficção. Rio de Janeiro: UFRJ, 225 páginas, 1996. 1 JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte; tradução Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

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  • A MULTIPLICAO DOS CORPOS NA COMUNICAO ARTSTICA: Representao e Antropologia

    Nzia Villaa*

    Deus estranho e misterioso, que s agora compreendo! Dai-me como vs tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas. Ou levai-me deste mundo, que j estou exausto. Eu que fui feito vossa imagem e semelhana. Amm! Ismael Nery

    Quero romper com meu corpo, quero enfrent-lo, acus-lo, por abolir minha essncia, mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto. Carlos Drummond de Andrade

    Pessoas remendadas so experimentos ps-evolutivos

    Stelarc

    A pluralidade das vozes em epgrafe sugere o que est em questo: os limites do

    corpo, sua escolha e redefinio no campo das artes. Obviamente, encontraremos momentos

    de maior ou menor acordo com o que nos simultaneamente presente e estranho, idntico e

    diferente: o corpo, este complexo conglomerado bio-psico-sociolgico. Usaremos como vetor

    de nossa reflexo a dinmica identidade/alteridade e a oposio natureza/cultura. A propsito,

    cabe lembrar o pensamento de Henri-Pierre Jeudy1 sobre as operaes da percepo. Segundo

    ele, operamos na arte ou no cotidiano uma reestruturao esttica das imagens do corpo que

    surgem como num sonho. Buscamos uma espcie de elaborao secundria, uma reconstruo

    do sonho em narrativa, reprimindo o estranho e a alteridade.

    * Nzia Villaa Professora Titular da ECO/UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo Ethos: Comunicao, Comportamento e Estratgias Corporais, Autora, entre outros, dos livros: Impresso ou eletrnico? um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad, 143 pginas, 2002; Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco. Co-autor: Fred Ges, 224 pginas, 1998 e Paradoxos do ps-moderno; sujeito & fico. Rio de Janeiro: UFRJ, 225 pginas, 1996.

    1 JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte; traduo Tereza Loureno. So Paulo: Estao Liberdade, 2002.

  • 2

    1- Corpo e cultura um trajeto antropolgico

    O corpo constitui um subsistema cultural atravs do qual o indivduo cria valores,

    coeso e interage com o mundo e com o outro. Os processos de subjetivao/dessubjetivao

    na contemporaneidade tm nele encontrado um locus onde as discusses se sucedem, seja

    num vis naturalista, colocando-o como baluarte da resistncia aos processos de

    desmaterializao e metamorfose propiciados pela cincia e pela tcnica, seja atravs de

    novos investimentos simblicos que privilegiem sua desconstruo em campos de fora, sua

    perda de organicidade. Em ambas as correntes, os limites so discutveis, pois podem ir do

    neo-ludismo reacionrio a um neo-iluminismo tecnolgico, com apostas no retorno natureza

    e corporeidade propriamente dita ou no acesso progressiva perfeio de um metacorpo

    ps-orgnico e ps-humano.

    A emancipao cultural do corpo recente, embora este possua a idade de sua

    realidade biolgica. O Ocidente, de um modo geral, avaliou-o a partir de pr-conceitos

    morais, estticos, ideolgicos e filosficos, comprometendo o enunciado de sua natureza

    inapreensvel. Para tal, contriburam a condenao judaico-crist da carne, a permanncia do

    idealismo platnico e a rejeio da sensibilidade, em proveito das coisas do esprito. Sua

    emancipao decorrncia, segundo Paul Ardenne2, de trs fatores: a investigao cientfica

    do corpo orgnico; o desvelamento psicolgico da complexidade do pensamento sensvel; a

    ateno sobre a mecnica dos afetos e a dessacralizao da cultura a partir do Renascimento e,

    sobretudo, do Iluminismo. A arte, de alguma forma, indexou, na figura, a mutao dos saberes

    e dos pontos de vista. A liberao da forma acompanhou como um duplo simblico a da

    matria corporal.

    A partir dos finais do sculo XIX, o corpo comea a assumir sua complexidade:

    sujeito e objeto; suporte do eu, mas tambm do outro; encarnao e tambm representao;

    carne e imagem. Nas palavras de Maria Rita Kehl, um corpo um corpo e seu automvel,

    um corpo e suas roupas, um corpo e seus remdios. E o Outro, e os outros que o rodeiam

    vivos ou mortos (...) Um corpo inclui o sentido e o sem sentido da vida e a dura noo da

    2 ARDENE, Paul. Limage corps: figures de lhumain dans lart du 20e sicle. Paris: Regard, 2001.

  • 3

    morte, que o acompanha deste a origem at ao final certeiro3. Por tudo isso, nossos corpos

    nos pertencem menos do que acreditamos.

    Michel Thevoz4 escreve belo livro de inspirao psicanaltica em que chama ateno

    para o fato de que o homem sempre teve relao problemtica com a prpria imagem,

    retocando o corpo de mltiplas maneiras: deformaes, mutilaes, tatuagens, escarificaes,

    maquiagem, vesturio, cirurgia esttica. Nascendo nu e desprotegido, exposto s intempries e

    aos olhares, teve que se proteger de sua insignificncia biolgica e marcar a sua pertena

    cultura e comunidade. Assinala o autor a importncia do corpo como suporte das marcas

    simblicas na sociedade primitiva, anteriormente ao surgimento do Estado e do aparelho

    coercitivo exterior. Em tais sociedades, os indivduos, atravs de pinturas corporais,

    fantasmavam os perigos inerentes ao mundo do informe para control-los. Da as pinturas

    apelarem para o heterogneo, para a alteridade. O primitivo inclua em sua pintura corporal

    aquilo que o ameaava. Da os traos fragmentados de suas representaes que tanto nos

    angustiam. O homem no era concebido imagem e semelhana de Deus. A pintura corporal

    contribua para estabelecer ritualmente a comunicao com o alm, facilitando a viagem

    inicitica, chamanstica, ou seja o devir inumano, animal etc. Esta necessidade era estrutural

    para a manuteno das comunidades.

    O advento da escritura est ligado construo dos Estados e Imprios e

    hierarquizao social. A lei do grupo cessa de ser figurada nos corpos, transcrita sobre a

    pele annima dos pergaminhos e tem a sua produo elitizada. A lei remete a um processo de

    desindividualizao e universalizao. Agora, marca-se o corpo para exclu-lo.

    O quadro renascentista em suas diversas verses, como acentua Carlos Antnio Leite

    Brando5, procurou definir o homem no mundo de forma diversa do perodo medieval, onde o

    corpo como ndice do imutvel se adaptava a grades e propores figurativas e simblicas,

    alegoria do divino e caminho da ordem terrena ordem celeste. Com o Renascimento, inicia-

    se propriamente o espao da representao do corpo individual e humano em verses que

    3 KEHL, Maria Rita. Orelha do livro Corpos de passagem; ensaios sobre a subjetividade contempornea de Denise Bernuzzi de SantAnna. So Paulo: Estao Liberdade, 2001. 4 THEVOZ, Michel. Le corps peint. Paris: Skira, 1984. 5 LEITE BRANDO, Carlos Antnio. O corpo do Renascimento. In: O homem-mquina: a cincia manipula o corpo. Org. Adauto Novaes. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

  • 4

    variam de autor para autor: Alberti e a metfora do organismo, o homem inserido na histria;

    Leonardo da Vinci, a fenomenologia do mundo e o homem natural; Michelangelo e o corpo

    complexo e relacional; o corpo da medicina de Veslio. Com este ltimo comea a se forjar

    projeto de um corpo binico. A analogia com a mquina vai permitir ao nosso esprito

    conviver com o corpo da representao e efetivar no mais a descrio escolstica ou a

    observao renascentista, mas um insacivel e moderno af de domnio e artificializao.

    esta viso cartesiana do corpo, expressa na perspectiva, que se dissemina a partir de ento. o

    corpo da lio de anatomia do dr. Tulp (1632) de Rembrandt. O espao da perspectiva, como

    o espao cartesiano, constituram redues de nossa complexa experincia espacial. Esta

    abstrao s foi possvel pela transformao do espao como dimenso corporalmente

    significativa, espao fenomenolgico, em espao matemtico estandartizado, possibilitando o

    surgimento de uma concepo mecnica do corpo. A esta tcnica correspondeu uma abstrao

    do corpo e uma nfase de cunho racional na construo de seu sentido.

    A reviso desta situao, dominante at o sculo XIX, marcada pelo reconhecimento

    da corporalidade do sujeito. Perceber que nossa fisiologia, nossa experincia e nossa presena

    so cruciais, em relao ao conhecimento, tm como conseqncia a toro do espao

    cognitivo. Rompe-se a perspectiva linear que o mantinha exterior e imvel. Deste ponto de

    vista, o conhecimento implica interao, relao, transformao concomitante do sujeito e do

    objeto e questionamento da percepo.

    A incluso do corpo no processo artstico passa por vrios estgios como a

    sensibilizao do suporte, que perde a transparncia, a preocupao com as marcas dos

    artistas que se deixam ver sob diversas formas, com a perda da terceira dimenso e outros

    processos que implicam a discusso da representao corporal.

    O corpo e suas fronteiras com a matria, a animalidade, o artifcio, so extensamente

    trabalhados numa crise da viso antropocntrica. Gestos, falas e imagens interrogam a

    unidade corporal, sua estabilidade, sua identidade atravs de analogias com o reino animal,

    fragmentaes e deslocamentos inusitados. A prtica da desconfiana contra a representao

    clssica da figura humana sublinhada a partir do romantismo, com a temtica do duplo, da

    sombra e do espectro para acessar progressivamente cenrios de agressividade contra a

    representao do corpo belo, glorioso, sublimado.

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    2- O corpo em dvida, feito em pedaos

    O mal-estar da civilizao esboado por Freud encontra seu equivalente num desajuste

    do indivduo consigo mesmo. Os heris so agora vencidos e errantes. Sartrianos, como

    Roquentin em A nusea ou Mateus em Caminhos da liberdade, demonstram indeciso; em

    Camus, o desespero. Embora haja uma multiplicao de tipos podemos dizer que o sculo XX

    preferiu os anti-heris. Picabia, dadasta, em 1920, pinta um auto-retrato intitulado Francis o

    fracassado; Egon Schiele pinta Nu masculino sentado: o corpo descarnado e o pintor,

    esticado como um pano, no tem ps e os braos dissimulam a maior parte de seu rosto. Cresce

    a conscincia assinalada por Deleuze e Guattari de que alguma coisa foge sempre. O

    impossvel surge como desajuste entre o que o corpo deseja e aquilo que ele no pode (o

    entrave do princpio da realidade) com a entronizao quase mecnica da frustrao e do

    inacabamento existencial. O percurso da desfigurao das figuras humanas j era recorrente nas

    sombras fugidias da imaginao romntica expressando a inquietao em torno da questo da

    identidade. A apario do duplo vem denunciar a iluso das aparncias e revelar o absurdo da

    suposta integridade do homem. O duplo principia o fim da esttica da imitao6. Sugestivo a

    este respeito o conto de Hoffmann, O homem de areia, com a indistino entre o humano e o

    autmato que parecem obedecer a um mesmo regime.

    O passo seguinte a aproximao do homem das formas animalescas. Os surrealistas

    vero na animalidade um estado original a ser reconquistado. Bataille, segundo Eliane Robert

    Moraes7, sugere que sob a tica selvagem o ser humano um animal fechado numa priso. A

    metamorfose representa, para o autor, uma condio atvica do homem, que, no limite, o

    impede de identificar-se ao ideal humano, lanando-o s necessidades animais. Michel Leiris,

    no artigo Metamorfose afirma deplorar os homens que no sonharam, pelo menos uma vez na

    vida, em se transformar em qualquer um dos objetos que o rodeiam: mesa, cadeira, animal,

    tronco de rvore, folha de papel...8. Um recurso usado a mscara que destri a normalidade

    humana. O antropomorfismo lanado no jogo das metamorfoses e a figura humana

    reduzida ao estado de coisa. A obra de Hans Bellmer, com suas bonecas desarticuladas sugere

    6 MORAES, Eliane Robert. O corpo impossvel. So Paulo: Iluminuras, 2002. p. 127. 7 Ibidem. 8 LEIRIS, Michel. Metamorphose Hors de soi, Documents n. 4, Paris: Jean Michel Place, 1991, edio fac-similar.

  • 6

    a violncia nazista. As mquinas celibatrias de Duchamp decompem a anatomia humana

    em vapores, fascas ou ondas magnticas, em mecanismos delirantes: La marie mise nu par

    ses clibataires, mme. A leitura de tal mecanizao e objetivao do corpo, segundo Eliane

    Robert Moraes, tanto pode ser vista numa linha frankfurtiana como a morte do corpo pela

    mquina, como pelo contrrio, um canto em louvor da inutilidade, da improdutividade e do

    ldico.

    As tendncias vanguardistas do incio do sculo vo sublinhar diversas vertentes que

    marcam a desconstruo da figura humana. O corpo se torna estranho para si mesmo, como na

    pintura de Giorgio de Chirico (pintura metafsica), que, de alguma forma, introduz o

    Surrealismo. O homem triunfante substitudo pela silhueta incerta, perdida na paisagem

    grande e incompreensvel. Diz Breton no manifesto surrealista de 1924: a imagem uma

    criao pura do esprito, ela no pode nascer de uma comparao, mas da aproximao de

    duas realidades mais ou menos afastadas. interessante introduzir a a leitura que Jos Gil9

    faz do corpo como significante flutuante, aquele que, no pertencendo a nenhum cdigo

    simblico, permite as correspondncias, as metforas e as metonmias das figuraes na arte:

    O significante flutuante designa esta fora primria que, no mundo primitivo, circula por

    toda a parte entre os diversos mundos, atravessando os cdigos, enchendo os seres e as coisas

    de poderes, de sorte e de vida10. O corpo como experincia total, assunto de outro livro deste

    autor, enfatiza esta conscincia corporal que de certa forma uma conscincia inconsciente e

    invade o pensamento racional, permitindo a percepo da alteridade que este normalmente

    procura censurar11.

    Uma das maneiras artsticas de criar a dvida sobre o homem torcer sua aparncia: o

    dadasmo reivindica a banalizao da feira com as mscaras de Marcel Janco e a

    sistematizao da foto-montagem com Hausmann que recorta sem piedade a unidade das

    figuras; os futuristas proclamam a violncia como motor da representao; os expressionistas

    e os cubistas se servem de mscaras negras e polinsias para desintegrar a ordem repressiva.

    A morte da mmesis, que a deformao consagra, entre muitos exemplos pode ser vista em as

    9 GIL, Jos. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relgio dgua, 1997. 10 Idem, ibidem. p. 25. 11 GIL, Jos. Movimento total: o corpo e a dana; traduo Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relgio dgua, 2001.

  • 7

    Demoiselles d'Avignon (1907). O lento e paciente trabalho de desfigurao trata de forma

    africanizada as demoiselles do bordel de Barcelona, Calle de Avignon. Interessante, em

    contrapartida, a propsito da evoluo da representao da figura humana na cultura africana

    do sculo XX, em exposio no CCBB, so exemplos de formalizao abstrata com

    tendncias cubistas. A verso antropolgica de uma arte primitiva sem evoluo

    problematizada12. Vale a palavra do Ministro Gil sobre o jeito da arte africana: no

    contemplativa, nem uma realizao narcisista. Ela nunca foi apenas uma representao do

    mundo. Ela , em todas as fricas, e tambm nas fricas de exlio, um instrumento de

    construo do mundo, um instrumento mgico13. O corpo aparece a como matria de

    experincia, registro ldico, uma das linhas da arte no sculo XX, paralela ao

    desconstrutivismo agressivo.

    3- A ressurreio da carne

    A representao corporal ocidental sofreu uma desagregao da instncia unificada da

    pessoa humana com o retorno dos fantasmas do corpo fragmentado anterior constituio do

    eu. Impulsos primitivos e selvagens sempre ameaaram o projeto antropocntrico, criando

    descentramentos de nossa sensibilidade, notadamente, como tentamos apontar, a partir das

    vanguardas.

    Posteriormente passa-se da representao do corpo ao questionamento de nossa

    prpria percepo. Uma das linhas assinaladas por Thevoz o que ele chama de ressurreio

    da carne que implica a quebra da moldura e de seu efeito de realidade, a introduo da marca

    do autor, a sensibilizao do suporte. O quadro ortogonal marcava a represso da

    corporeidade do suporte e, correspondentemente, a do espectador. O funcionamento especular

    da imagem pressupunha a desencarnao do sujeito que a fundava. A cincia moderna,

    colocando em causa a objetividade e o determinismo dos processos naturais, desalojou o

    observador que passa a fazer parte do sistema observado. Os artistas como os cientistas

    tomam conscincia de sua inerncia corporal e mental. Esta evoluo sensvel na pintura,

    12 JUNGE, Peter. (Org.). Arte da frica: obras-primas do Museu Etnolgico de Berlim. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003. 13 Idem, ibidem. p. 7.

  • 8

    em particular a partir dos romnticos, impressionistas e simbolistas que reativam os

    constituintes materiais do quadro: a tela, o gro, a camada pigmentar, o trao, o toque, so

    sensibilizados e solicitam uma apreenso epidrmica com o curto-circuito da distncia

    descritiva. As imagens de David ou Ingres perdem em profundidade para coincidir com o

    plano do suporte, restituindo-lhe de certa forma, seu valor ttil.

    Thevoz fala do ressurgimento da pintura corporal no sculo XX como a volta do

    reprimido e, refere-se a Viena como o lugar onde, sugestivamente, torna-se dramtica a luta

    entre um formalismo tornado rgido e uma sensualidade verdadeiramente desordenada. Na

    arte, na literatura, como na psicanlise, sente-se o estremecimento vindo dos corpos, de suas

    pulses, que deformam e deslocam as superestruturas. Hugo von Hofmannsthal fala de

    movimentos internos de suas entranhas, Gustav Klint, Egon Schiele e Paul Klee oferecem

    outros exemplos em que o corpo se mistura com a superfcie do papel, ressaltando a

    sensibilizao epidrmica do suporte como o homem, o quadro tambm o esqueleto,

    msculo e pele14. como se houvesse uma anatomia do quadro, como se o suporte

    readquirisse suas qualidades carnais que a tradio representativa secular havia subtrado. A

    imagem readquire o poder mgico depois de anos de despossesso antropocntrica.

    Yves Klein, em suas Antropometrias, decalca corpos sobre papis e telas (1960). Aps

    os pincis vivos deste autor, a pintura pop denuncia um corpo vampirizado por sua imagem.

    a perda da identidade na estratificao da representao. A imagem precede o referente.

    Apesar de seu retorno aparente e, mesmo espetacular, figurao, a pop art est em

    oposio a concepo do retrato glorioso dos pintores clssicos. Wilson Coutinho, entretanto,

    discorda da perda da aura da pop art americana e coloca em confronto Rubens Gerchman

    em cuja obra, as imagens urbanas kitsch so completamente diferentes das aurticas

    Marilyn Monroe de Andy Warhol nas quais o sistema hollywoodiano no consegue ser

    reduzido. Gerchman o nosso pop da cidade moderna, alucinada e catica, das misses

    patticas em tempos da ditadura15.

    A evoluo da representao, de agora em diante, efetua uma espcie de reatualizao

    14 KLEE, Paul. Apud, THEVOZ, Michel. Op. cit. p. 103. 15 COUTINHO, Wilson. In: Rubens Gerchaman. Produo e coordenao de Paulo Fernandes. Rio de Janeiro: Salamandra, 1989. p. 10-11.

  • 9

    dramtica do estgio do espelho. Arnulf Rainer, vienense, fotografa suas prprias

    gesticulaes, caretas e contores e intervm, em seguida, sobre a pelcula, estabelecendo

    um jogo entre o corpo expressivo e a imagem de papel manchado. H uma espcie de raiva

    impotente e secreta jubilao masoquista nesta aspirao de coincidncia especular consigo

    mesmo. Uma tal ambigidade caracteriza a body art. Piero Manzoni, em 1961, expe na

    Galeria de Artes Moderna em Roma, as esculturas vivas, modelos nus trazendo nos rins a

    assinatura do artista e apresentados sobre bases. Depois de sculos de mmesis, os ready

    mades humains. A body art, numa de suas verses interpretativas, radicaliza o esprito do

    happening, abolindo a distino entre produtores e consumidores da arte. Os cerimoniais

    performticos repetem os cerimoniais primitivos como farsa. A relao com o corpo

    invertida: a marca que era aplicada ao corpo nu primitivo visava a arranc-lo da natureza da

    animalidade e da insignificncia para inseri-lo na ordem simblica; no body art, ao

    contrrio, a marca se aplica ao corpo glorioso do humanismo ocidental para profan-lo. Gina

    Pane, por exemplo, nos anos 70, marca aes prximas da nusea como comer quilos de carne

    picada, ferir-se etc., misturando o sangue com o leite. A arte da performance nos anos 60

    restitui o corpo a si mesmo, a arte como apropriao da carne, se conhecer como

    conscincia de ser carne, segundo o artista Michel Journiac. No universo da experincia

    corporal, sem dvida alguma, Ligia Clark e Hlio Oiticica ocupam um lugar exponencial que

    vem sendo sempre mais explorado pela nova crtica como referncia da arte na sensibilizao

    e vibrao corporal.

    O travestismo, por outro lado, acentua o lado mscara da pessoa e aponta para o

    desenvolvimento da arte ocidental a partir dos anos 70 no sentido da discusso corpo/imagem,

    utilizando, para tanto, a explorao e mistura de diferentes suportes (vdeo, fotografia,

    recortes etc.) A arte conceitual dos anos 70 sublinha a abertura da representao, indo do

    pensamento puro fisicalidade. Arte processo e a desmaterializao busca novas formas de

    expresso, subvertendo os sentidos humanos e derrubando valores que isolavam a experincia

    da vida. A produo artstica da dcada de 1970, de carter eminentemente transgressivo,

  • 10

    experimental e marginal, tem seu incio no Salo da Bssola, em 1969, no MAM do Rio, e em

    Do corpo terra (1970), Belo Horizonte, organizada por Frederico Morais16.

    4- O corpo como projeto - uma heterognese ou um neo-iluminismo tecnolgico?

    Nietzsche, Freud e Deleuze, seqencialmente e de formas diferentes, redescreveram o

    corpo como uma superfcie que reflete as caractersticas peculiares da vida moderna, o corpo

    tornado idntico a sua imagem vivida. Constri-se uma esttica da existncia, um corpo

    comunicativo na linha de Foucault. Se a coisa em si banida como iluso metafsica, ento

    no se pode falar de aparncias versus essncia. Ambas so abandonadas em favor da vida

    como fenmeno em constante devir. As energias da vida atravessam o corpo humano

    deixando rastros enigmticos. Para Paul Schilder17, a solidez do corpo depende da contnua

    construo e reconstruo de sua imagem e de uma multiplicidade de perspectivas. Ele v a

    fragmentao do clssico ego burgus como pr-condio para uma experincia mais

    substancial do corpo. A dissoluo do ego no resulta na perda do corpo, mas numa

    reapropriao. De certa forma ele remete a aspectos do corpo sem rgos de Deleuze e

    Guattari. Para estes autores, o CsO o que resta quando nos desligamos dos fantasmas,

    significncias e subjetivaes. Contra as estratificaes, eles traam um plano de consistncia

    do desejo por agenciamentos diversos: perversos, artsticos, cientficos, msticos, polticos,

    que forosamente se cruzam. O inimigo do CsO no o rgo, mas o organismo como um

    extrato sobre o CsO, quer dizer, um fenmeno de acumulao e coagulao, sedimentao

    que lhe impe formas, funes, ligaes, organizaes dominantes e hierarquizadas, para

    extrair o trabalho til18. Neste sentido, Deleuze e grandes gurus do imaginrio do corpo

    maqunico como Pierre Lvy e Jol de Rosnay pensam as novas experincias tecnolgicas

    como enriquecimento dos processos de subjetivao e linhas de fuga. O corpo ressignificado

    como intensidade e sua percepo complexificada.

    16 Ver o catlogo da exposio sobre a dcada de 70. Situaes arte brasileira anos 70. Rio de Janeiro: Fundao Casa Frana-Brasil, 2000 e Arte contempornea brasileira; texturas, dices, fices, estratgias. Ricardo Basbaum (org.) - Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. 17 SCHILDER, Paul. Apud FERGUSON, Harvie. Me and My Shadows: On the Accumulation of Body-Images in Western Society Part Two The Corporeal Forms of Modernity. In: Body & Society. v. 3, n. 4, december 1997. pp. 01-29. 18 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil plats; capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. pp. 25-26.

  • 11

    O limite entre a desconstruo como apropriao e a desconstruo como ttica de

    alienao uma preocupao atual da tica. O foco da reflexo so as estratgias do

    capitalismo financeiro globalizado e do complexo biotecnolgico produtor e manipulador da

    vida no planeta buscando explorar os valores conquistados pelos movimentos sociais:

    liberdade corporal, flexibilidade, fluidez, ousadia, ultrapassagem de fronteiras culturais e

    biolgicas e superao de limites. O retorno das filosofias morais e a preocupao com a

    tica, segundo Denise Benuzzi de SantAna, busca discernir os momentos em que no lugar

    da diferena valorizada a variao, em que, em vez da expresso corporal, adota-se o

    imperativo da boa forma e em que, no lugar da manifestao do desejo nmade, so

    legitimados os prazeres polivalentes e mutveis19.

    As intenes de quebra do especular, nas performances e instalaes do

    contemporneo, para a afirmao de um corpo primrio, no resistem leitura crtica de

    Henri-Pierre Jeudy. A aventura de quebrar o espelho e passar para o outro lado seria o grande

    esteretipo da exibio do corpo nestes eventos. Se a ideologia da liberao do corpo dos anos

    60 e 70 significativa da revolta contra a autoridade das representaes e suas referncias

    morais, hoje passa-se da dinmica da liberao presso da liberao e o esttico subsiste

    na forma de intelectualizao que precede a prpria performance, retirando-lhe a tenso entre

    representao e realidade.

    Para o autor, a aventura do corpo exibido na performance a da exacerbao dos

    esteretipos da representao corporal, ao passo que ela queria ser um aprofundamento do

    prprio processo de representao. Os discursos dos crticos de arte, apoiando-se nos sistemas

    tericos das cincias sociais, nas construes filosficas, utilizando a aparelhagem conceitual

    da psicanlise, ofereceriam uma variedade de pontos de vista. Em meio ao exibicionismo das

    metalinguagens cria-se a feira de esteretipos. Deixa de haver a tenso entre imagem e

    representao e impe-se um enquadramento de conceituao anterior s imagens do corpo. A

    arte torna-se verdadeira mquina de produzir a estereotipia cultural como um viveiro que

    engendra equivalncia e banalidade. No esse aspecto de soberania que um bom nmero de

    artistas tenta alardear? - pergunta o autor. conquista desenfreada da singularidade, que foi a

    19 SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de passagem; ensaios sobre a subjetividade contempornea. So Paulo: Estao Liberdade, 2001. p. 90.

  • 12

    finalidade implcita da criao artstica no sculo XX, sucede o jogo doravante obrigatrio

    com os esteretipos da singularidade. O corpo, mantendo-se a fonte sagrada de todas as

    iluses, garante o futuro dos esteretipos. O corpo enigma permanece o grande esteretipo.

    Na dramatizao dos embates deste corpo que v e visto, que sujeito e que

    objeto, chegamos cena do corpo virtual. O corpo torna-se incorporal? Torna-se autnomo e

    imortal nas imagens digitais para alm das distines entre o existente e o inexistente?

    Segundo ainda Henri-Pierre, o corpo puro do mundo virtual o espelho do corpo perfeito em

    um mundo orgnico. A viso esttica do mundo, apoiada no idealismo da corporeidade, acaba

    por integrar tudo que lhe resiste. O materialismo radical, utilizado por Henri-Pierre, funciona

    como excitao intelectual e ameaa ao idealismo esttico. Questiona a revoluo

    tecnolgica, cuja aventura permitir, talvez, a democratizao da idealizao do corpo e a

    circulao das imagens corporais.

    A arte, efetivamente, seguiu, no que concerne ao corpo, um caminho bastante

    complexo, impossvel de se resumir. Tentamos apenas tematizar alguns aspectos que apontam

    para um projeto antropolgico de cunho iluminista e, por outro lado, para a liberao de uma

    cultura instintual e ainda uma leitura que contemple o corpo como parte integrante do

    processo comunicativo, como acentua Andr Lemos20 em seus comentrios sobre arte e novas

    tecnologias, onde passamos da representao simulao. Com a digitalizao do mundo a

    imagem age como modelo dinmico de construo de conhecimento sobre o real, como

    simulacros concebidos sob a forma numrica.

    A arte eletrnica fruto, tambm, do processo de desconstruo dos meta-discursos

    que legitimaram a modernidade. Ela coerente com a desconstruo, a virtualizao e a

    desmaterializao do mundo pela qual estamos passando com o desenvolvimento da

    cibercultura, incluindo a a figura do cyborg, a fuso do corpo biolgico com as

    nanotecnologias inteligentes e implantes os mais diversos21.

    No se trata mais da arte do suporte, ligada materialidade, mas de criaes que

    privilegiam o processo, como um evento a ser vivido. So modalidades de arte marcadas pela

    idia de fluxo e de acontecimentos para o corpo conectado a ambientes virtuais. Toda arte

    20 LEMOS, Andr. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contempornea. Porto Alegre: Sulina, 2002. 21 Ibidem. p. 198.

  • 13

    interativa regida por computadores que, na qualidade de tecnologia numrica, abrem o

    acesso aos dados guardados nas memrias invisveis de redes de silcio. Por outro lado, so as

    interfaces que nos conectam e permitem enviar os dados, ou seja, so os dispositivos de

    hardware que levam os inputs, colocando os dados para dentro do computador. A partir

    das conexes, os processos de captura, processamento e comunicao de sinais propiciam

    experincias estticas expandidas pelas tecnologias22.

    A questo complexa da relao arte/tecnologia muito discutida por autores

    contemporneos entre os quais citaramos Diana Domingues e a discusso radical da

    humanizao das artes no sculo XXI; Lcia Santaella com a anlise semiolgica e crtica da

    ltima produo na arte eletrnica; Arlindo Machado, com descries tcnicas e discusses

    polticas sobre a revoluo bioltica em que as tarefas sero o domnio de nosso prprio corpo

    e dos organismos vivos em geral23. O artista contemporneo deve efetivamente mexer com a

    caixa-preta do computador para produzir arte? Virou um produtor de efeitos especiais, ou

    cabe-lhe um papel crtico e negativo usando a prpria tcnica? Como fica o futuro do corpo

    humano entre a biosfera e a tecnosfera? A realidade ciborg constitui uma nova antropologia?

    Entre a crena na superao da rede semntica dos esteretipos e o risco constante do

    risvel, o corpo permanece o lugar onde infinitas apostas continuaro a se realizar. Pensar o

    corpo como matria ou pens-lo como virtual so apenas alguns dos desafios contemporneos

    diante dos quais a estratgia mais adequada parece ser o jogo, a abertura, a aposta no risco, a

    experimentao, a composio que integre a alteridade e a semelhana com o outro e com o

    mundo. Esta viso, um tanto polimorfa, em oposio ao projeto de representao da unidade,

    no ps-humana como sugerem alguns, mas apenas um passo na inveno da mesma

    humanidade que, no sendo senhora do tempo ou do espao, busca no perder-se de si. Crise

    da f na representao, mas gosto pela representao na produo em cadeia de imagens do

    corpo que se multiplica.

    22 DOMINGUES, Diana. Desafios da ciberarte: corpo acoplado e sentir ampliado. In: BARROS, Anna; SANTAELLA, Lcia, (Orgs.). Mdias e artes: os desafios da arte no incio do sculo XXI. So Paulo: Unimarco, 2002. p. 60. 23 DOMINGUES, Diana. (Org.) A arte no sculo XXI: a humanizao das tecnologias. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1997. SANTAELLA, Lcia; NTH, Winfried. Imagem: cognio, semitica, mdia. So Paulo: Iluminuras, 2001. MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

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    Termino com uma lembrana de Guimares Rosa comentando que, a espcie humana

    peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lgica mas algo ou algum de tudo

    faz zombaria. E ento?