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O ACESSO À JUSTIÇA POR EXCEÇÃO AO JUDICIÁRIO: DOS SERTANEJOS DE CANUDOS AOS EXCLUÍDOS DO SÉCULO XXI, PERSONAGENS REAIS NA TEORIA DE JOHN RAWLS THE JUSTICE ACCESS FOR EXCEPTION TO THE JUDICIARY SYSTEM: FROM WILDERNESS OF CANUDOS TO THE EXCLUDEDS IN THE XXI CENTURY, REAL PERSONAGES ON THE JOHN RAWLS THEORY Rogério José da Silva RESUMO Este artigo procurou tratar da questão do acesso à justiça por via não-judiciária, demonstrando a partir da obra literária “Os Sertões” (de Euclides da Cunha) a costumeira maneira de se almejar e acreditar ter alcançado a necessária justiça num conceito razoável para se bem viver em sociedade. Para isso, valeu-se de uma alegoria que foi a de situar o contexto histórico-literário da obra euclidiana na “Teoria da Justiça” de John Rawls, atualizando o quadro do início do século XIX daquela para o tempo presente desta obra, referendando a obra de Rawls para a aplicação numa sociedade de fato, comprovando sua aplicabilidade como uma forma de oferecer a todos, em especial àqueles de menos oportunidades em nossa sociedade, uma oportunidade de acesso à justiça, uma oportunidade de terem vida digna, vida justa. Ainda, também foi objeto de análise para comparação e conclusões a respeito da eficácia e facilitação do acesso à justiça na contemporaneidade o projeto “Justiça Comunitária”, um projeto do TJDFT, formulado e coordenado pela Juíza Gláucia Falsarella Foley, para oferecer o alcance do Poder Judiciário a populações distantes geograficamente e culturalmente, os também englobados pelo conceito de hipossuficientes culturais. Por fim, aponta considerações e hipóteses a serem pesquisadas em busca de um eficaz acesso à justiça, um acesso livre de quaisquer óbices, verdadeiramente democrático. PALAVRAS-CHAVES: ACESSO À JUSTIÇA. JUSTIÇA COMUNITÁRIA. HIPOSSUFICIENTE CULTURAL. ABSTRACT This article ran upon an outside way of justice access aproach on a judiciary, showing from the brazilian Euclides da Cunha literary work "Os Sertões" the usual form to aim and believe to reach a necessary justice in a reasonable well living society concept. For this, purpose an alegory was taken situating the historic-literaly context of Euclides work in "A Justice Theory" by Jonh Rawls, updating the earlier 19's century scenary to the present time as describe in his book, confirming the aplying work of Rawls theory in a real society such as a way to offer people, specially for those without oportunities in our society, the oportunity to have access to justice and a dignifing and fair life. Yet, 3540

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O ACESSO À JUSTIÇA POR EXCEÇÃO AO JUDICIÁRIO: DOS SERTANEJOS DE CANUDOS AOS EXCLUÍDOS DO SÉCULO XXI,

PERSONAGENS REAIS NA TEORIA DE JOHN RAWLS

THE JUSTICE ACCESS FOR EXCEPTION TO THE JUDICIARY SYSTEM: FROM WILDERNESS OF CANUDOS TO THE EXCLUDEDS IN THE XXI

CENTURY, REAL PERSONAGES ON THE JOHN RAWLS THEORY

Rogério José da Silva

RESUMO

Este artigo procurou tratar da questão do acesso à justiça por via não-judiciária, demonstrando a partir da obra literária “Os Sertões” (de Euclides da Cunha) a costumeira maneira de se almejar e acreditar ter alcançado a necessária justiça num conceito razoável para se bem viver em sociedade. Para isso, valeu-se de uma alegoria que foi a de situar o contexto histórico-literário da obra euclidiana na “Teoria da Justiça” de John Rawls, atualizando o quadro do início do século XIX daquela para o tempo presente desta obra, referendando a obra de Rawls para a aplicação numa sociedade de fato, comprovando sua aplicabilidade como uma forma de oferecer a todos, em especial àqueles de menos oportunidades em nossa sociedade, uma oportunidade de acesso à justiça, uma oportunidade de terem vida digna, vida justa. Ainda, também foi objeto de análise para comparação e conclusões a respeito da eficácia e facilitação do acesso à justiça na contemporaneidade o projeto “Justiça Comunitária”, um projeto do TJDFT, formulado e coordenado pela Juíza Gláucia Falsarella Foley, para oferecer o alcance do Poder Judiciário a populações distantes geograficamente e culturalmente, os também englobados pelo conceito de hipossuficientes culturais. Por fim, aponta considerações e hipóteses a serem pesquisadas em busca de um eficaz acesso à justiça, um acesso livre de quaisquer óbices, verdadeiramente democrático.

PALAVRAS-CHAVES: ACESSO À JUSTIÇA. JUSTIÇA COMUNITÁRIA. HIPOSSUFICIENTE CULTURAL.

ABSTRACT

This article ran upon an outside way of justice access aproach on a judiciary, showing from the brazilian Euclides da Cunha literary work "Os Sertões" the usual form to aim and believe to reach a necessary justice in a reasonable well living society concept. For this, purpose an alegory was taken situating the historic-literaly context of Euclides work in "A Justice Theory" by Jonh Rawls, updating the earlier 19's century scenary to the present time as describe in his book, confirming the aplying work of Rawls theory in a real society such as a way to offer people, specially for those without oportunities in our society, the oportunity to have access to justice and a dignifing and fair life. Yet,

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also was an analisis object, for comparation and conclusions intentions about contemporany facility and eficiency of justice access, the project "Justiça Comunitária", organized by the state brazil's court TJDFT, formulated and coordenated by the judge Gláucia Falsarella Foley, to bring Judiciary reach for geography and culturaly isolated populations, the also called culturals underpriviledge. Finally, this text aim to researchs considerations and possibilities seeking for an efective justice access, free of any obstaculization and trully democratic.

KEYWORDS: JUSTICE ACCESS. COMMUNITARIAN JUSTICE. CULTURAL UNDERPRIVILEDGE.

1. INTRODUÇÃO

O acesso à justiça parece-nos ser algo indissociável da condição de se bem viver em sociedade. A pessoa que se enxerga em situação de injustiça tende a querer buscar uma solução para o impasse, de modo a querer alcançar uma solução eficaz o mais rapidamente possível, haja vista ser a condição de injustiçado um óbice para a vivência harmoniosa em sociedade.

Às injustiças todos os indivíduos que formam uma sociedade estão sujeitos. No entanto, é perceptível situações mais bizarras relacionadas às pessoas de baixa formação cultural, de parcos recursos econômicos, em síntese, os hipossuficientes culturais[i]: que diz-se de ou pessoa de parcos recursos culturais e/ou educacionais, que não é auto-suficiente, de formação cultural precária, falível numa sociedade altamente consumista como a atual, sobre o qual ainda acrescentam-se os ditos:

Em termos mais objetivos, o hipossuficiente cultural seria aquele que não conhece seus próprios direitos, tampouco como valer-se da ajuda necessária para torná-los efetivos; muitas vezes os analfabetos funcionais — mas não só —, inúmeros no Brasil.

Estes brasileiros — e por que não “cidadãos do mundo”? Já que vivemos a era da globalização... — surgem, principalmente, como conseqüência da educação defasada a que têm acesso e pelo convívio com pessoas que ignoram seus próprios direitos, o que é muito triste, pois desistir de lutar por uma questão de estratégia é o que marca a biografia de grandes personalidades de nossa história, mas desistir de lutar por ignorância os condena ao anonimato estatístico da história de nosso país. (SILVA, R. J. e GITAHY, Raquel R. C.)

A respeito da condição de se bem viver em sociedade, é fato que a história brasileira ainda caminha para uma situação real em que possamos reconhecer vivermos de fato numa sociedade justa e de oportunidades a todos os cidadãos. Alguns momentos de nossa história, ainda que controversos na ótica de modernos estudiosos, são

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notadamente marcados como divisores de época. Entre estes, optamos por fazer uma abordagem tendo como pano de fundo a obra literária que retrata um fato trágico real da história nacional: a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha. A esta obra, relacionamos a obra de John Rawls, Uma Teoria da Justiça, para a qual tentamos demonstrar sua efetiva aplicabilidade numa sociedade de fato, ainda que esta seja a do contexto literário-histórico da obra de Cunha.

Além desta alegoria, fomos buscar na literatura específica jurídica situações práticas que procuram atender às necessidades de todos os cidadãos no quesito acesso à justiça e encontramos um exemplo inovador na prática do Tribunal de Justiça do Distrito Federal quando da criação do projeto Justiça Comunitária, também já aplicado desde o ano de 2006 no Estado de Mato Grosso do Sul, que supera em grande parte os chamados JICs (Juizados Informais Cíveis), prática comum em alguns Juizados Especiais Cíveis para a resolução de conflitos “aparentemente” sem solução.

Apontados os temas que nortearão este artigo, realçada a busca da necessidade de se efetivar o direito básico e incondicional de acesso à justiça, passemos a expor a fundamentação necessária.

2. METODOLOGIA:

Este artigo utilizou como metodologia o levantamento bibliográfico, leitura e análise para produção do corpus A abordagem essencial foi o uso do método dedutivo, pelo qual se buscou analisar informações obtidas por meio de pesquisa doutrinária e revisão literária que objetivou, essencialmente, demonstrar os óbices reais para um eficaz acesso à justiça e, então, sugerir alternativas à efetivação deste direito comum a todos e apontar caminhos futuros para a continuidade da pesquisa.

Os métodos de procedimento a serem utilizados foram o histórico, o comparativo e o tipológico.. A técnica de coleta de dados adotada foi a da documentação indireta, ou seja, a pesquisa documental e a pesquisa bibliográfica, além da observação e análise crítica de fatos reais.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES: DOS SERTANEJOS DE CANUDOS AOS EXCLUÍDOS DO SÉCULO XXI.

3.1 A obra euclidiana.

A obra aqui usada como alegoria é fruto da experiência de seu autor — Euclides da Cunha —como repórter na cobertura da revolta de Canudos, no interior da Bahia, para onde foi enviado em 1897, a serviço do jornal A Província de S. Paulo, que, mais tarde, viria a se tornar O Estado de S. Paulo.

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A revolta foi comandada por Antônio Conselheiro, um fanático e não revolucionário — diga-se de passagem — que liderou um significativo grupo de pessoas cujos interesses se assemelhavam aos seus: queriam melhores condições de vida, justiça — ainda que muitos deles fossem verdadeiros foras da lei —, iguais oportunidades a todos, em suma, queriam vida digna.

No clássico Os Sertões, o autor “juntou à narração da campanha dois largos e profundos estudos sobre a terra e o homem do sertão. O autor fez da campanha de Canudos uma pintura vigorosa e um estudo fundamental como técnico, historiador e escritor. Para ele a campanha foi um crime e um erro imperdoável da República, que transformou um fanático num mártir” (LISBOA, p. 38, 2001).

Na primeira parte, A Terra, o autor trata de descrever o sertão de Canudos de forma primorosa, apresentado sua formação geológica, delimitando minuciosamente sua flora, procurando até interpretar sua evolução geológica, estudando a hidrografia e a conformação orográfica. Considerando o clima, expõe uma teoria sobre as secas e também descreve as caatingas, com toda sua flora específica e a influência que sofrem dos climas. O autor chega até a apontar maneiras de combater o deserto, dando-se ao cabo de com sua descrição preliminar apresentar peculiarmente o sertão nordestino a quem quiser conhecê-lo sem lá ter de pisar.

Na segunda parte, O Homem, o autor dá conta de descrever o ser que ali habita, procurando apontar a impossibilidade da formação de uma identidade nacional no quesito caracteres biológicos, dada a mestiçagem a qual se submeteu nosso país em sua formação, desde sua colonização e também as dimensões continentais do país, o que possibilitou (e possibilita) a existência de um povo único tão diferente entre si dado o distanciamento literal por vontade própria ou por falta de interesse daqueles que deveriam cuidar de sua integração, ao menos no que fosse necessário à sua perenidade. Dessa análise, conclui ser o sertanejo do norte um tipo fanático religioso. “Daquela complexidade étnica e sob aquelas influências ecológicas e sociológicas era inevitável o aparecimento de um Antônio Conselheiro. Fizeram-no santo devido ao seu misticismo estranho, quase um feiticeiro. Ele não deslizou para a loucura, porque o ambiente o amparou, respeitando-o.” (GALOTTI).

Conselheiro — um aparente monarquista por seus ideais e fanático inquestionável —e seus seguidores pregavam contra a república, queriam ali instaurar um novo regime, uma nova forma de viver em sociedade, uma forma em que não fossem explorados para o demasiado enriquecimento do outro sem lhes dar a justa contrapartida. Houve tentativas de persuadi-los a desistirem do conflito com a sociedade tradicional e, por conseqüência, com a força da lei. Em vão, pois acreditavam em seu propósito e nada tinham a perder, já que até ali, por seu fanatismo, é que reconheciam ter perdido a vida terrena. A luta traria a todos eles a glória de se não aqui puderem desfrutar das benesses de seus ideais, ao menos no plano religioso da nova vida após a velha seriam recompensados.

Assim, então, passemos ao capítulo A Luta. Tudo começa por uma desavença com um Juiz de Direito de Joazeiro. Por este não querer entregar a madeira adquirida nessa cidade para o término da construção da igreja de nova Canudos. Em outubro de 1896, uma ameaça de assalto à cidade foi determinada por Conselheiro e então, por solicitação do Juiz, é enviado por ordem do Governo do Estado da Bahia uma força composta por

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100 praças. O resultado já é sabido de todos. A Luta prossegue com um contingente cada vez maior de soldados com a incumbência de conter a insurgência daqueles de Canudos. Inúmeras vidas se perderam até a vitória da 4ª expedição militar, a mando do Governo da República. No entanto, é necessário frisar que Canudos não se rendeu, resistiu bravamente até ser totalmente dizimada.

3.2 A obra rawlsiana e sua aplicabilidade na sociedade de Os Sertões

Relatada a síntese da obra-alegoria de Euclides da Cunha, passemos a analisar a obra de Rawls, Uma teoria da Justiça procurando demonstrá-la como uma possibilidade real para se alcançar aquilo a que podemos considerar um eficaz acesso à justiça.

Uma teoria da Justiça de John Rawls, pode ser assim sintetizada, valendo-se de parte de um artigo de André Luiz Souza Coelho, intitulado Críticas de Jürgen Habermas à ‘justiça como eqüidade’, de John Rawls, adaptando-o ao foco deste presente trabalho, acrescentando-lhe as relações alegóricas estabelecidas junto à obra de Euclides da Cunha.

Trata-se de um verdadeiro clássico, apesar das críticas recebidas ao longo dos tempos. Em sua obra, Rawls propõe uma concepção não utilitarista da justiça, fundada numa nova versão da tese do contrato social e voltada para a integração de um amplo sistema de liberdades individuais com garantias de igualdade de oportunidades e de maior benefício aos menos favorecidos.

Já a partir deste ponto, podemos começar a traçar alguns paralelos entre as obras rawlsiana e euclidiana. A opção ainda que não racional e de pouca fundamentação de Antônio Conselheiro para a monarquia, leva-nos a crer que tratava-se de uma opção em detrimento da república-coronelista vivida no sertão por ele e por toda sua gente. Um sistema de liberdades individuais com garantias de igualdade de oportunidade e de maior benefício aos menos favorecidos era, sem dúvida, tudo o de que precisavam! Pois não conheciam o valor da liberdade, trabalhando e vivendo num regime de quase escravidão, não se sentiam e nem eram levados a acreditar serem iguais aos seus próximos, justamente por conta da hierarquia e da desigualdade nas oportunidades e tratamento. Eles, os menos favorecidos da cadeia, ansiavam por uma vida melhor. Na crença fanática de que esta vida chegaria, motivados pelas muitas lendas espalhadas em torno da figura emblemática, misteriosa e cativante de Antônio Conselheiro, tomaram-no como líder e o elevaram à condição de salvador.

Voltando à obra de Rawls, percebemos que este define a sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação e os indivíduos dessa sociedade como sendo livres e iguais. Cada um deles é racional, no sentido de que pode perseguir sua própria concepção de bem, e razoável, no sentido de que está disposto a aceitar condições eqüitativas de cooperação. Nessa sociedade poderá haver conflitos para se determinar a melhor distribuição dos benefícios e encargos da cooperação, de modo que uma concepção de

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justiça é necessária para solucionar satisfatoriamente esses conflitos. Define uma sociedade como bem-ordenada quando os indivíduos que a integram compartilham da mesma concepção de justiça e as principais instituições da sociedade realmente atuam em conformidade com ela.

Eis, portanto, na alegoria o modelo de sociedade estabelecido em Canudos como o modelo rawlsiano, embora as instituições formais ainda estivessem por ser formadas naquela sociedade de pouco mais de 5.000 casas que abrigavam algo em torno de 20.000 pessoas. Naquele lugar, todos livres e iguais e, na medida do conceito rawlsiano, também todos racionais e razoáveis. No entanto, apenas entre si. Uma grande controvérsia, já que a não-aceitação destes pela sociedade que os rodeava, levou-os pelo fanatismo — e não pela racionalidade —, de forma lamentável, a se insurgirem contra a ordem posta. Logicamente, não é esta a essência do pensamento rawlsiano, que toma a sociedade como algo comum a todos os indivíduos. Um ideal impossível, talvez, mas um ideal. Certamente, apesar de reconhecidamente terem morrido pelo fanatismo e pela crença numa (nova) vida nova, não era de se esperar que a república tão defendida por Euclides da Cunha cometesse uma barbárie em nome da ordem estabelecida e que deveria ser mantida.

“O escritor do início da obra, positivista que acreditava na república, é o mesmo que denuncia a dor, a forma e a barbárie. Canudos foi um crime cometido para e pela reiteração da república. O cancro monarquista nunca existiu naquela terra esquecida pelos seus governantes e o Estado só chegara tão longe para trazer a injustiça e a morte. Essa não era a república reclamada pelo autor”. (Revista eletrônica Klepsidra, Ed. 3, Ago.-Set. de 2000)

A obra de Rawls ainda aponta diferenças entre conceito e concepção de justiça. A idéia racional básica de justiça reside na máxima de que se deve dar a cada um o que é seu, o que revela um conceito de justiça, mas não necessariamente um acordo, pois para este existir, fatores outros deveriam ser determinados, tais como o que é de cada um?, por exemplo; ou ainda, segundo qual critério isso seria determinado?, fatores estes, portanto, que demonstram não haver acordo sobre o que implica a justiça.

Daí a necessidade de se estabelecer princípios que funcionem como critério de e para a justiça em cada caso. No entanto, é exatamente aí que reside um profundo desacordo, já que os indivíduos defendem diferentes concepções de justiça, sendo necessário um procedimento para produzir entre eles um acordo válido.

Esse procedimento, de acordo com Rawls, chama-se posição original, o qual consiste numa situação hipotética em que alguns representantes da sociedade, colocados em condições de igualdade uns em relação aos outros, escolheriam os princípios de justiça segundo os quais gostariam de que a sociedade fosse regida. Para assegurar a necessária imparcialidade, Rawls defende colocá-los sob um véu de ignorância em relação à sua particular situação social, bem como a suas convicções políticas, morais, religiosas e metafísicas. Com este desenho, Rawls acredita que a posição original poderia garantir a correção do seu resultado.

Eis ai, outro ponto para relacionarmos à alegoria: teria sido Canudos um exemplo de “posição original” natural? A cidade não figurativamente coberto pelo “véu da ignorância”, e sim literalmente, tendo em comum aqueles cidadãos as mesmas vontades,

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os mesmos infortúnios, muitos com graves falhas morais, mas sobretudo, o fanatismo. Não só o fanatismo lhes era comum, o que, portanto, não os diferenciava, comum também era a eles o fato de ignorarem a estrutura e a necessidade das instituições e suas leis, podemos interpretá-los como exemplos do acaso na “posição original”, unidos por um desejo em comum, mortos pela ignorância daqueles que os tinham como ignorantes?

Rawls defende que, na posição original, os representantes escolheriam dois princípios de justiça: o princípio da liberdade, o qual garantiria aos cidadãos o máximo sistema de liberdades e o princípio da diferença, que legitimaria desigualdades à medida que elas resultassem de cargos abertos a todos e garantissem a melhor situação possível para os menos favorecidos. Para justificar por que seriam escolhidos esses princípios, Rawls atrela a ação dos representantes na posição original à teoria da escolha racional que, em poucas palavras, pode ser caracterizada na hipótese de quando faltarem informações à devida escolha, a melhor estratégia a seguir é uma repartição igualitária. Eis aí, mais um elemento que fundamenta a relação com a obra euclidiana: se aos que optam pela teoria racional é possível faltarem elementos para a melhor escolha, aos fanáticos ignorantes certamente tudo faltava, mas não lhes faltava o senso da repartição igualitária, da luta de todos em nome de um bem comum.

É também a teoria da decisão racional que justificaria ser a justiça como eqüidade – a concepção informada pelos dois princípios acima – preferida ao princípio utilitarista de utilidade máxima ou média. Como esse último princípio permite que, em nome da utilidade máxima ou média, sejam sacrificados direitos de uma minoria e como nenhum dos representantes está certo de que não pertencerá a essa minoria, não se trata da melhor opção. É essa a conclusão na teoria de Rawls. Certamente também podemos relacionar que, sob a ótica dos republicanos da obra euclidiana, o princípio utilitarista de utilidade máxima ou média foi fator preponderante para o extermínio daqueles que ousaram insurgir contra a ordem estabelecida. Hoje, talvez a revolta fosse vista apenas como uma “desobediência civil”, não nos moldes arendtianos, pois à prática de fanáticos não seria razoável presumir a existência de critérios previamente definidos que se assemelhassem à desobediência civil pensada e defendida por Hannah Arendt, ainda que na realidade a revolta fosse apenas uma justa e necessária resistência à opressão dos poderosos que, ainda hoje, mais de um século depois, sabemos imperar em determinadas áreas do Norte e Nordeste.

A exposição das principais idéias de Rawls não estaria completa sem uma referência ao equilíbrio reflexivo e ao consenso sobreposto, idéias particulares mais bem explicitadas em suas obras posteriores, tais como Liberalismo Político e Justiça como Equidade, uma reformulação. Tais conceitos se prestam como dois testes de validação dos princípios de justiça escolhidos na posição original.

O equilíbrio reflexivo exige que aqueles princípios possam ajustar-se às convicções morais privilegiadas de nossa cultura, bem como que, em caso de desacordo, possam contribuir para esclarecê-las ou corrigi-las. Por essa via, é possível deduzirmos que Rawls se previne dos resultados contra-intuitivos que derivavam, por exemplo, da aplicação da máxima utilitarista. Para ele, uma vez que uma cultura aberta e democrática supostamente promove uma discussão racional de que se pode esperar, pelo menos a longo prazo, resultados corretos, toda teoria que propuser orientações que contrariem as convicções morais mais bem estabelecidas de nossa cultura deverá ser capaz de apresentar o ônus da prova. O utilitarismo, por exemplo, não era capaz de

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fornecer nenhum argumento contra a escravidão ou contra o genocídio. É uma razão em favor da justiça como eqüidade que ela seja capaz de fornecer esses argumentos.

Já o consenso sobreposto exige que os mesmos princípios de justiça possam ser aprovados por cada uma das diversas concepções de bem existentes na sociedade, sendo que cada uma delas os aprovaria como bons segundo o seu próprio ponto de vista. Rawls diz que, embora cada uma dessas concepções pudesse considerar a justiça como eqüidade uma teoria verdadeira, ele pretende para ela apenas o status mais modesto de razoável. Por último, é preciso dizer que Rawls também se esforça para argumentar em favor da coincidência entre justiça e bem. Segundo ele, numa sociedade bem-ordenada a conduta justa é também a melhor estratégia de realização da concepção de bem de cada um, uma vez que a estrutura justa coordenaria os fins dos vários atores de modo que a satisfação de um não fosse obstáculo à satisfação do outro. Dessa forma, Rawls aposta numa estratégia argumentativa que, depois de mostrar que certos princípios são justos, tenta motivar os atores a abraçá-los em nome da melhor realização de seus próprios fins.

3.3 Hipotéticas considerações acerca das obras de John Rawls e Euclides da Cunha

Às partes Terra, Homem e Luta de Euclides da Cunha, Rawls apresentou-nos de forma arquetípica, mais de um século depois, em sua obra, as partes Teoria, Instituições e Objetivos.

A pesquisa até então realizada ainda é superficial para que possibilite apontar precisamente os fatores que possam ter levado Rawls a assim dividir sua obra. Mas é fato que a divisão interna da obra de Euclides da Cunha deu-se por influência do historiador francês Taine, “o qual formulou em seu livro ‘Histoire de la Littérature Anglaise (1863)’, a concepção naturalista da história – teoria que defendia que a história é determinada por três fatores: meio, raça e momento”. Tal concepção naturalista foi seguida por Euclides ao dividir ‘Os Sertões’ em três partes correspondentes aos fatores de Taine: ‘A Terra’, ‘O Homem’ e ‘A Luta’ . É também do historiador francês a citação que consta na nota preliminar do livro a qual traz a idéia que o ‘narrador sincero’ deveria ser capaz de se sentir um bárbaro entre os bárbaros, como um antigo entre os antigos.

Precisão, como já mencionado, não temos quanto à divisão da obra de Rawls, mas relações alegóricas, que é o que temos feito ao longo deste trabalho, é possível apontarmos: tal como em Euclides, é possível que Rawls tenha optado primeiro pela Teoria por esta derivar-se do meio, um dos fatores determinantes na história, segundo Taine. Do meio, de sua vivência em sociedade, e de sua concepção de uma sociedade justa, teria então Rawls formulado o capítulo Teoria. Esse capítulo se divide em “Justiça como eqüidade” — uma maneira de considerar os princípios da justiça que, segundo o próprio Rawls, tal como outras visões contratualistas, consiste em duas partes: (1) uma interpretação de uma situação inicial e do problema da escolha colocada naquele momento, e (2), um conjunto de princípios que, segundo se procura demonstrar, seriam aceitos consensualmente; “Princípios da Justiça” — os da liberdade e da diferença; e a “Posição Original”, algo que modestamente tentamos relacionar ao episódio narrado na

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obra euclidiana quando se deu a formação de Canudos, sob a liderança de Antônio Conselheiro.

À raça de Taine, e ao Homem de Euclides, proporíamos que Rawls teria tomado o próprio indivíduo como base para suas Instituições, capítulo este que se divide em Liberdade igual, As parcelas distributivas e Dever e obrigação. Metaforicamente, é possível tomarmos o homem como sinônimo de instituição, por ser ele a personalidade marcante sobre a qual teorizamos e buscamos melhores formas de conosco mesmos bem vivermos. As Instituições de Rawls teriam, então, o condão de prestarem-se à única instituição a que lhes interessa em primordialmente: o ser humano.

Já ao momento de Taine, e à Luta euclidiana, Rawls propôs seus Objetivos, capítulo este dividido em A virtude como racionalidade, O senso de justiça e O bem da justiça. Seriam talvez objetivos momentâneos, já que uma vez estipulados numa “posição original” não mais seriam objeto de discussão, pois estes objetivos seriam justificados pelos princípios tidos como norteadores para uma sociedade tida como justa. Objetivos certamente resultantes de uma luta de ideais, do confronto racional para, enfim, decidirem o que melhor se apresentaria a uma nova sociedade.

As hipóteses acima servem simplesmente para apresentar a obra de Rawls tendo como pano de fundo a relação com uma modesta alegoria sugerida na obra de Euclides da Cunha. As interpretações aqui apresentadas certamente não encerram a relação entre tais obras e estudos mais aprofundados poderiam, quem sabe, até apontar elementos outros que aqui ainda não foram apontados.

Mas fato é que, hoje, no atual estágio de estudos, foi possível visualizar, na obra de Euclides da Cunha, nas pessoas de seus reais personagens e na percepção da inquietude do autor diante das injustiças praticadas por um Estado intransigente, uma abstração que, muito provavelmente, poderia ser terreno fértil para a aplicação da Teoria da Justiça de John Rawls, ainda que seja uma teoria assaz criticada dada a sua reconhecida limitação de aplicabilidade prática a uma universalidade de pessoas, mas que num espaço delimitado, tal como era o de Canudos, pudesse talvez servir de modelo a toda uma sociedade universal, formada por indivíduos que continuam agindo de forma indiferente a seus semelhantes, que continuam incapazes de se reconhecerem parte de um todo em que as divisões geográficas, sociais e elementares são apenas reflexos, muitas vezes, das distorções históricas alimentadas por eles próprios, de maneira irracional.

4. A Justiça Comunitária do TJDFT e o Acesso à Justiça no século XXI

O programa Justiça Comunitária surge como uma alternativa de acesso à justiça àqueles que sequer podem sonhar existir justiça num país como o nosso. É claro que, para estes, o conceito de justiça não é sinônimo de poder judiciário, de atuação estatal. A justiça, de fato, na qual acreditam, é algo semelhante à justiça divina, aquela que carece do surgimento de um Messias que os liberte e que os possibilite uma vida melhor.

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O projeto, bem como todo o aparato do Poder Judiciário, revela-se naturalmente incapaz de poder proporcionar aos cidadãos que dele venham se valer uma vida melhor de fato, haja vista a própria expressão “vida melhor” ser algo extremamente difícil de se formular, pois como aferir o que é vida melhor num universo de pessoas com pensamentos, crenças, estilos de vida e aspirações completamente distintos uns dos outros muitas vezes?

Mas o projeto pôde oferecer a seus postulantes um agente comunitário, uma espécie de mediador que, longe de ser um Messias, um salvador, revela-se como a pessoa capaz de ajudar-lhes na resolução de seus diversos conflitos, em especial os de natureza simples, os que não demandam sua apresentação formalmente à apreciação do Poder Judiciário, pois podem ser resolvidos pelas próprias partes, por meio do diálogo, com participação da própria comunidade. Este servidor vocacional da justiça comunitária, o agente comunitário, revela-se como o facilitador para uma real democratização do acesso à justiça de forma irrestrita a todos os que dela queiram e necessitem valer-se.

A esse respeito, ressalte-se a inovação do projeto. Porém há de se lamentar a falta de exemplos práticos de casos resolvidos e/ou encaminhados para a resolução no plano formal da Justiça Comum ou Especial Cível que versem da relação entre pessoas físicas versus pessoas jurídicas.

Os casos relatados na cartilha impressa no ano de 2006, intitulada “Justiça Comunitária – uma experiência”[ii], de autoria do Ministério da Justiça, são exemplos significativos de casos entre pessoa física versus pessoa física, que foram resolvidos segundo os princípios do programa, o que o comprova ser eficiente na resolução de conflitos. Mas certamente seus propósitos não podem restringir-se à resolução de casos entre particulares como tais. Insistimos: os conflitos originados essencialmente das relações de consumo entre pessoas físicas versus pessoas jurídicas continuam a ser ignorados pelo Poder Judiciário, em especial nos JECs e, absurdamente, pela prática inadmissível da prevaricação.

Sim, chamamos de prevaricação à prática do servidor público que se nega a prestar a orientação e a providência legal necessária ao cidadão que muitas vezes ao JEC recorre para requerer orientações e soluções relativamente simples, como a solicitação da revisão de um compromisso de pagamento por ato de compra e venda junto à loja do comércio local, seja esta de grande, médio ou pequeno porte. Ou ainda, um mero distrato, com intenção de devolução de mercadoria e indenização por tal ato para compensação do credor. Para quaisquer destes hipotéticos casos — e outros tantos não aqui mencionados, para os quais recomendamos a leitura do trabalho “Da ineficácia do acesso à justiça aos hipossuficientes culturais”, publicado na Revista Intertemas, Vol. 11, nº 11, 2006, sob o nº ISSN de 1677-1281, disponível eletronicamente em http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/index/search/results, acessado pela última vez em 24/Ago./2008 — é fato que a prestação comum deste importante órgão da justiça, o JEC, percebida ao longo dos anos é quase unânime: “Não há o que fazer!”.

Uma afronta à norma constitucional prevista no art. 5º, XXXV, a qual veta a possibilidade de exclusão de apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer situação de lesão ou ameaça a direito; afronta também ao teor do art. 478, do Código Civil, combinado ao art. 6º do Código de Defesa do Consumidor.

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O resultado desta quase unanimidade omissa e prevaricadora é que a pessoa física fica a mercê das decisões automatizadas e mecanicistas comuns nas pessoas jurídicas, reflexos da modernidade: encaminhamento do nome do devedor aos órgãos de informação — leia-se ‘restrição’ — de crédito, cumprimento do prazo contratual à espera de um possível pagamento (12, 18, 24, 36 meses às vezes) e, em caso de não pagamento, aguardar ainda pelo prazo legal de 5 anos para possível retirada da informação que restringe a vida e a reorganização econômica do devedor. As conseqüências desta postura inflexível, por força de mercado e de um órgão judiciário omisso, são devastadoras na vida de milhares de brasileiros, os hipossuficientes culturais.

Entretanto, é bom ressaltar a respeito das conseqüências com as quais não nos conformamos por força da falta de atuação daqueles que deveriam zelar pelo equilíbrio econômico-social prestando o devido serviço aos que a ele recorressem, citando o trabalho há pouco mencionado:

(...) isso não significa inviabilizar ao credor o direito de valer-se de medidas judiciais para reaver seus bens. De forma alguma! Mas possível é reconhecer serem possíveis outras medidas, tomadas de maneira a propiciar uma melhor solução para ambas as partes, o que coadunaria objetivos comuns e manteria o equilíbrio da relação contratual até mesmo diante de um fato imprevisto. (SILVA, R. J., 2005, p. 35)

Ainda que o programa “Justiça Comunitária” seja uma realidade na ampliação do alcance do Poder Judiciário junto às demandas dos mais distantes da lei, é fato que situações entre pessoa física versus pessoa jurídica não se revelaram como uma realidade renovadora e tão eficaz quanto nos casos relatados na revista do projeto.

Esta constatação da ineficácia do acesso à justiça é coerente ainda com a realidade de algo apontado há 30 anos na obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, traduzida para o português do Brasil e publicada em 1988, da qual extraímos trecho significativo e ilustrativo para a exposição:

“Um exame dessas barreiras ao acesso, como se vê, revelou um padrão: os obstáculos criados por nossos sistemas jurídicos são mais pronunciados para as pequenas causas e para os autores individuais, especialmente os pobres; ao mesmo tempo, as vantagens pertencem de modo especial aos litigantes organizacionais, adeptos do uso do sistema judicial para obterem seus próprios interesses.

Refletindo sobre essa situação, é de se esperar que os indivíduos tenham maiores problemas para afirmar seus direitos quando a reivindicação deles envolva ações judiciais por danos relativamente pequenos contra grandes organizações (...)”

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Em quase uma década de século XXI, obstáculos ao acesso à justiça reconhecidos já há 30 anos continuam a ser óbices ao convívio harmonioso de oportunidades a todos os conviventes em sociedade.

5. Conclusão:

Com base no levantamento de dados e nas pesquisas já realizadas, concluímos que as classes menos favorecidas de nossa sociedade pouco evoluíram se comparadas aos personagens reais da obra de Euclides da Cunha.

Nas grandes cidades, os moradores sob os viadutos, os sem-escola, os famintos, os trombadinhas são os descendentes dos personagens de Os Sertões. Em comum, a pobreza, a falta de oportunidades, a exploração, os desvios de conduta para a criminalidade, a crença de que um dia poderão ter vida melhor: seja no plano terrestre com a passiva espera por ajuda divina ou, mais comumente na atualidade, seja na a ativa atuação por caminhos escusos na prática dos mais diversos tipos de delito visando à ascensão econômica.

Essa manutenção dos estratos sociais é o mecanismo gerador de distorções desumanas, as quais certamente motivaram John Rawls a elaborar sua Teoria de Justiça, teoria esta que visava a um recomeço, uma reavaliação da atuação do homem para com seus semelhante e uma necessária mudança nos paradigmas até então adotados.

É este repensar, este reavaliar, este desejo de mudar para melhor que justificam idéias brilhantes — ainda que pouco práticas a toda uma sociedade — como a posição original, o véu da ignorância, e os posteriores equilíbrio reflexivo e consenso sobreposto. Tudo para que possamos entender e vivenciar uma sociedade na qual a satisfação de um indivíduo não seja obstáculo à satisfação do outro: eis a estratégia argumentativa do autor o qual procura demonstrar que, em sendo justos certos princípios, o que se tem a fazer é motivar os homens a tomá-los como meio para a melhor realização de seus próprios fins.

A aplicação da teoria de Rawls no contexto da obra de Euclides da Cunha pode esbarrar num aparente conflito: como aplicar uma teoria racional em meio a uma sociedade de fanáticos? Para sustentar a intertextualidade aqui apresentada, é preciso reconhecer que ao homem só é possível adotar uma posição ideológica que a ele venha a ser apresentada. Ora, se em pleno Sertão o conhecimento racional não era levado, tampouco buscado pelos de lá, como poderiam os personagens reais não serem fanáticos religiosos se esta era a única ideologia por eles conhecida? Ideologia que, diga-se de passagem, era fortemente disseminada especialmente pela igreja católica como forma de controle social e manutenção da ordem.

Assim, à questão primeira — como aplicar uma teoria racional em meio a uma sociedade de fanáticos? — respondemos que, independentemente de a teoria ser racional ou metafísica, o fato é que se fosse para o bem, para a libertação e para a oferta de vida digna àqueles cidadãos, em nada se oporiam aqueles homens. E mais, tal como mencionado no capítulo 2.2, a título de questão retórica, quando apontamos serem aqueles personagens típicos exemplos de líderes numa posição original natural, pois não

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abriam mão de seus valores e status alcançados, mas abriam mão da condição de explorados; o véu da ignorância só os encobria das questões de estudos e teorias racionalistas, pois eram conhecedores práticos da vida indigna a qual eram submetidos pelos senhores de engenho, pelos políticos, pelos coronéis, pelo Estado.

Em síntese, atualizando a alegoria da obra literária clássica e sua relação com a obra do pensador moderno, por influência decisiva de um poder judiciário colaborador para o conflito de outrora, conivente com este capítulo pudoroso de nossa história, atrevemo-nos a afirmar, mais ainda, a desafiar o Estado-juiz a não só conhecer, mas provar o contrário se possível for, de que reconhecer e aplicar a Teoria da Justiça de John Rawls a suas motivadas decisões no atual estado democrático de direito é dever de um Estado que possui eterna dívida histórica com seus concidadãos privados de direitos e de privilégios legais.

Segundo Alessandra Gotti Bontempo (2007/2008b),

“(...) há um grande campo a ser explorado pelos operadores do Direito para uma proteção judicial dos direitos sociais mais exitosa e, para desvendar esses novos caminhos jurídicos, é imprescindível que o Poder Judiciário enfrente os desafios que terá diante de si não apenas reproduzindo, mas, sobretudo – utilizando as palavras do Ministro Eros Roberto Grau – “produzindo direito”

Ao programa Justiça Comunitária, esperamos poder aprofundar estudos sobre sua estrutura, descobrir e, se possível, colaborar para a reorientação de fluxos para novas atuações, de modo a atender outra parcela significativa de nossa sociedade, os hipossuficientes culturais ainda não alcançados pela atuação do projeto, nem por qualquer órgão de nosso Poder Judiciário, aos quais precisamos oportunizar a vivência e o desfrute de ver os resultados daquilo a que reconhecemos como, e que nossa Carta Magna assim denomina, Direitos Fundamentais. Quando enfim chegarem a este ponto, certamente haverão de saber o sabor das palavras do prof. Gilberto Giacoia (2002), para quem, em versos, “Justiça é ainda dignidade / É capacidade de comover-se / Com a dor, com a fome, com a grande temeridade / Da opressão, da exclusão e da dominação. / É ter coragem de converter-se / Enfim, justiça é libertação / É ser do mundo cidadão / Viver sem medo de ser feliz.” (p. 30)

— REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio A. da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais — Eficácia e Acionabilidade à Luz da Constituição de 1988. 1ª. ed. (2005), 4ª tir. Curitiba: Juruá, 2008.

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_________________________ . Direitos sociais em Juízo: perspectivas e possibilidades. Artigo publicado na Revista da Associação Juízes para a Democracia, Ano 12, nº. 44 – Dezembro-2007 / Fevereiro-2008, p. 12.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução e Revisão: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

COELHO, André Luiz Souza. Críticas de Jürgen Habermas à ‘justiça como eqüidade’, de John Rawls. artigo científico publicado em 2005, no XIV Congresso Nacional do CONPEDI, acessado eletronicamente em 20/Jul./2008.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: (campanha de Canudos); edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci. – 2ª. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. (Clássicos Comentados I)

GALOTTI, Oswaldo. Síntese da obra Os sertões, extraído do site Casa de Cultura Euclides da Cunha, disponível no endereço eletrônico http://www.casaeuclidiana.org.br/texto/sertoes.asp, Acessado em 20/07/2008.

GIACOIA, Gilberto. Justiça e Dignidade. In Argumenta, Revista Jurídica; revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da FUNDINOPI, / Centro de Pesquisa, Extensão e Pós Graduação (CPEPG). Conselho de Pesquisa e Pós Graduação (CONPESQ), Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, n. 2. – Jacarezinho, 2002

Klepsidra, Revista eletrônica, Ed. nº. 3, Agosto e Setembro de 2000, disponível em http://www.klepsidra.net/novaklepsidra.html, acessada em 20/Jul./2008. Artigo coletivo, estudantes de História da USP, Trabalho intitulado “Euclides da Cunha, Os Sertões e Canudos”. SILVA, Ana Cristina Venâncio da; SCHWARCZ, Júlia; LANDULFO, Maíra; WINTER, Maria Cecília; PINTO, Tila Corazza T.; SANTOS, Inaê Lopes dos.

LISBOA, Luiz Carlos. Tudo que você precisa ler sem ser um rato de biblioteca: guia do melhor da literatura brasileira. São Paulo: Editora Papagaio, 2001.

MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. O conceito de constituição no pensamento de John Rawls. Série “Estudos de Direito Constitucional”, coordenação de Maria Garcia. São Paulo: Thomsom IOB, 2006.

PILON, Almir José. Liberdade e Justiça – Uma Introdução à Filosofia do Direito em Kant e Rawls. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002

RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução por Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção Ensino Superior).

SILVA, Rogério José da. Da ineficácia do Acesso à Justiça aos Hipossuficientes Culturais. (Monografia) In Revista Intertemas, nr. 11, Vol. 11, 2006. (Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/ index.php/index/search/results)

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WARAT, Luis A. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis, Fundação Boiteux, v. 2, 2004.

[i] Conceito elaborado no artigo científico intitulado “A ineficácia do acesso à justiça aos hipossuficientes culturais — uma abordagem sob a ótica do Direito Alternativo”, de autoria de SILVA, Rogério José da e GITAHY, Raquel Rosan Christino, apresentado no I Congresso de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente/SP, em Maio de 2005.

[ii] Disponível em http://www.tjdft.jus.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/comunitaria.htm,, de onde também se pode extrair um vídeo também intitulado “Justiça Comunitária”, o qual retrata algumas das experiências relatadas na revista. Acessado em 12/08/2008.

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