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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE – UFAC
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E EDUCAÇÃO
O ACRE E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA,
INTERCULTURAL, DIFERENCIADA E BILÍNGÜE
RIO BRANCO – ACRE, 2009.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE – UFAC
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E EDUCAÇÃO
O ACRE E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA,
INTERCULTURAL, DIFERENCIADA E BILÍNGÜE
RIO BRANCO – ACRE, 2009.
MANOEL ESTÉBIO CAVALCANTE DA CUNHA
O ACRE E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA,
INTERCULTURAL, DIFERENCIADA E BILÍNGÜE
Dissertação apresentada à Universidade Federal do Acre –
UFAC, para obtenção do título de Mestre em Letras, junto
ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e
Identidade, área de concentração: Linguagem e Educação.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Francisco Dalmolin
Rio Branco – Acre, 2009.
© CUNHA, M. E. C. 2009.
Ficha catalográfica preparada pela Biblioteca Central da Universidade Federal do Acre
C972a
CUNHA, Manoel Estébio Cavalcante da. O Acre e a
educação escolar indígena, intercultural, diferenciada e
bilíngüe. 2009. 170f. Dissertação (Mestrado em Letras –
Linguagem e Identidade) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-
Graduação, Universidade Federal do Acre, Rio Branco – Acre,
2009.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Francisco Dalmolin
1. Educação escolar indígena, 2. Etnias, 3. Movimento
indígena, 4. Indigenista, 5. Discurso – Acre, I. Título
CDU 39 (=1-82)
O ACRE E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA,
INTERCULTURAL, DIFERENCIADA E BILÍNGÜE
Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de mestre em
letras e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras, nível de mestrado da Universidade Federal do Acre – UFAC, em 25/11/2009.
Apresentada á Comissão Examinadora, integrada pelos professores
_______________________________________________________________ Professor Doutor Gilberto Francisco Dalmolin (UFAC)
_______________________________________________________________ Professor Doutor Helder Andrade de Paula (UFAC)
_______________________________________________________________ Professor Doutor Milton Chamarelli Filho (UFAC-Floresta)
Rio Branco, 25 de novembro de 2009.
Dedico este trabalho às minhas filhas Thainá e Madija, ao meu filho Amon e às minhas
filhas sobrinhas Sami, Adilena e Luna Samara pelas alegrias e felicidades que me dão;
aos meus pais Manuel Cunha e Ester Cavalcante, pela dádiva da vida; e a todos os
irmãos e irmãs e seus filhos e filhas pelo apoio e carinho a mim dedicados.
E, sobretudo, ofereço este trabalho a todos os povos indígenas do Acre e, em especial,
aos Yaminawa e aos Madija, com os quais eu tenho aprendido muito.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador prof. dr. Gilberto Francisco Dalmolin, que me auxiliou em todas as
etapas deste trabalho.
Ao prof. dr. Helder Andrade de Paula e a profa. dra. Verônica Elias Maria Kamel pelas
valiosas sugestões dadas por ocasião da qualificação e, no caso da professora
Verônica, agradeço ainda pela leitura crítica da introdução deste trabalho.
Aos professores doutores Milton Chamarelli Filho e Helder Andrade de Paula por
aceitarem participar da banca de defesa desta dissertação.
Aos professores do mestrado que nos proporcionaram novos e fundamentais
aprendizados.
Aos colegas da turma do mestrado pela amizade.
Aos colegas da Secretaria de Estado de Educação – SEE, sobretudo aos companheiros
da Gerência de Educação Escolar Indígena na pessoa da professora Maria do Socorro
de Oliveira, pelo apoio.
À minha companheira Alcinélia Moreira de Sousa, pelo carinho, amor, e a leitura crítica
da primeira versão desta dissertação.
À professora dra. Maria do Socorro Calixto, ex-coordenadora do mestrado, pela força
para participarmos do intercâmbio na UNESP de Araraquara.
Ao professor dr. Cleudemar Fernandes e às professoras dras. Marisa khail e Rosário
Gregolin por terem despertado em mim o interesse pela AD francesa.
RESUMO
.
Este trabalho é uma reflexão acerca da Educação Escolar Indígena, Intercultural,
Diferenciada e Bilíngüe – EEIID e B, um modelo de educação voltado para a realidade
sócio-histórica e antropológica dos povos indígenas brasileiros, que nasce da luta do
movimento indigenista e indígena do Estado do Acre no final da década de 1970. A luta
naquela década pautava-se pela reconquista dos territórios indígenas expropriados ao
longo da implantação e vigência do modelo econômico baseado no extrativismo
gumífero, que passou a vigorar a partir de meados do século XIX na Amazônia Sul
Ocidental. Este trabalho consiste em investigar o discurso sobre este modelo de
educação que é tido como indígena, em oposição a indigenista, significando este termo
o trabalho desenvolvido por sujeitos não indígena em benefício dos índios. Baseamo-
nos na hipótese de que a EEIID e B, apesar de seu título pomposo, é um modelo
predominantemente indigenista e que a influência dos indígenas é bem inferior ao que
se propala no discurso oficial. O corpus de análise deste trabalho consta de dois
documentos oficiais de caráter nacional: o Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas, Brasília: MEC, 1998; e o Programa Parâmetro em Ação – Educação
Escolar Indígena, Brasília: MEC, 2002. Além desses documentos do MEC também
analisaremos quatro Projetos Políticos Pedagógicos - PPP‘s, produzidos pela Comissão
Pró-Índio do Acre – CPI/AC, para as escolas indígenas João de Souza Carioca,
Francisco Lessa e Tũĩkuru, da etnia Yawanawa; Samuel Pyanko, da etnia Ashaninka e
Alto do Bode e Belo Monte, da etnia Kaxinawa/Huni Kuĩ. A perspectiva teórica que
embasa nossa análise pauta-se nos postulados teóricos da Análise do Discurso – AD,
de linha francesa, sendo que neste trabalho aportamos, sobretudo as contribuições de
Pêcheux, Foulcault, Orlandi, Gregolin e Possenti.
Palavras- chave: Educação Escolar Indígena, Etnias, Movimento Indígena e Indigenista, Discurso, Acre.
ABSTRACT
This work is a reflection of the Indigenous Education, Intercultural and Bilingual Diff - EEIID and B, a model of education focused on the socio-historical and anthropological to the native Brazilian, born of the struggle of the indigenous and native state Acre in the late 1970s. The fight that decade guided by conquest of indigenous territories expropriated during the deployment and duration of the economic model based on the extraction gumífero, which took effect from mid-nineteenth century in the southwestern Amazon. This work is to investigate the discourse on this type of education that is considered as indigenous, as opposed to indigenous, which covered the work of non-taxable benefit of indigenous Indians. We rely on the assumption that the EEIID and B, despite its lofty title, is a predominantly indigenous model and that the influence of the Indians is well below that noises in the official discourse. The corpus of analysis of this work consists of two official documents of the national character: the National Curricular Reference for Indigenous Schools, Brasília: MEC, 1998, and the program parameter in Action - Indigenous Education, Brasília: MEC, 2002. In addition to these documents will also analyze four MEC Projects Political Projects - PPP, produced by Pro-Indian Commission of Acre - CPI / AC, for indigenous schools João de Souza Carioca, Francisco Lessa, both ethnic Yawanawa; Samuel Pyanko, ethnicity Ashaninka and Belo Monte, ethnicity Kaxinawa / Huni Kui. The theoretical perspective that underlies our analysis is the theoretical principles of discourse analysis - AD, the French line, and this work contributed, especially the contributions of Pêcheux, Foucault, Orlandi, Gregolin and Possenti. Keywords: Indigenous Education, Ethnic, Indigenous and Indigenous Movement, Speech, Acre.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1. I CAPÍTULO – O OUTRO NEGATIVO 29
1.1. O ÁRABE: O OUTRO NEGATIVO EXTERNO DO EUROPEU 29
1.2. O EUROPEU ENCARA O OUTRO NEGATIVO NO NOVO MUNDO:
OS ÍNDIOS. 39
1.3. O OUTRO NEGATIVO AMERICANO COMO OBJETO DA
CATEQUIZAÇÃO EUROPÉIA 54
2. CAPÍTULO II – ENFRENTANDO O OUTRO NEGATIVO NA AMAZÔNIA
SUL OCIDENTAL 70
2.1. NÃO HAVIA ACRE PERTURBANDO OS ÍNDIOS NAS TERRAS SUL-
AMAZÔNICAS 70
2.2. A QUESTÃO DO ACRE 79
2.3. NÃO HÁ ÍNDIOS NO ACRE 95
3. CAPÍTULO III – EDUCAÇÃO ESCOLAR IINDÍGENA,
INTERCULTURAL, DIFERENCIADA E BILÍNGUE NO ACRE 109
3.1. ALGUMAS PALAVRAS PARA INICIO DE CONVERSA 109
3.2. O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS
INDÍGENAS – RCNEI 114
3.3. OS PARÂMETROS NACIONAIS PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS –
PCN‘S
123
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 141
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 149
6. ANEXOS 150
LISTA DE ABREVIATURAS
AD – Análise do Discurso
BB – Banco do Brasil
BANACRE – Banco do Estado do Acre
BASA – Banco da Amazônia
CEB – Câmara de Educação Básica
CEB‘s – Comunidades Eclesiais de Base
CEDI – Centro Ecumênico de Documentação
CEE – Conselho Estadual de Educação
CEEI – Coordenação de Educação escolar Indígena
CFDI – Curso de Formação para Docentes Indígenas
CFR – Casa Familiar Rural
CIMI – Conselho indigenista Missionário
COMIN – Conselho de Missão Entre Índios
CNE – Conselho Nacional de Educação
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPI – Comissão Pró-Índio
CESE – Coordenação Ecumênica de Serviços
CTA – Centro dos Trabalhadores da Amazônia
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
EEIID e B – Educação Escolar Indígena, Intercultural Diferenciada e Bilíngüe
DF – Discurso Fundador
EEIID e B – Educação Escolar Indígena, Intercultural Diferenciada e Bilíngüe
FD – Formação Discursiva
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MEC – Ministério da Educação e Cultura
ONG – Organizações Não Governamental
OPAN1 – Operação Amazônia Nativa
OREALC – Oficina Regional de Educação para a América Latina e o Caribe
OXFAN – Família de Oxford
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PPP – Projeto Político Pedagógico
PS – Projeto Seringueiro
RCNEI – Referencial Curricular Nacional
RESEX – Reserva Extrativista
SEC/AC – Secretaria de Educação do Acre do SEC
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SEE/AC – Secretaria de Estado de Educação do Acre
CGAEI – Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
TI – Terra Indígena
UFAC – Universidade Federal do Acre
UNB – Universidade de Brasília
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
1 Na década de 1970 a sigla significava Operação Padre Anchieta.
INTRODUÇÃO
O ACRE E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, INTERCULTURAL,
DIFERENCIADA E BILÍNGÜE
Iniciaremos este texto expondo as razões que despertaram o nosso interesse
para desenvolver este trabalho enfocando a Educação Escolar Indígena, Intercultural
Diferenciada e Bilíngüe – doravante EEIID e B. Nosso interesse pelo tema se deve ao
engajamento de dez anos como educador indigenista à frente da Gerência de
Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação do Acre – SEE/AC.
No Acre, apesar de todos os percalços, 15 (quinze) etnias pertencentes a três
famílias lingüísticas: Pano, Arawak e Arawa2, conseguiram sobreviver mantendo
diferentes estágios de conservação da cultura autóctone, aí incluída a língua de seus
ancestrais. O percurso histórico de duas dessas etnias nos interessou de forma mais
particular: o dos Madija e o dos Yaminawa.
Ao participar da seleção do mestrado nosso desejo era pesquisar a relação dos
Madija com a EEIID e B, dada a maneira peculiar como eles lidam com esta novidade
ocidental. Nosso orientador foi nos mostrando ao longo da orientação que um trabalho
daquele porte tinha que ser desenvolvido num doutorado, pois neste haveria mais
tempo, haja vista que a tarefa a que nos propúnhamos demandava pesquisa de campo,
e no mestrado esta possibilidade era bastante minimizada. Concordamos, e
resolvemos, então, realizar este trabalho acerca de como nasce e se estrutura a
chamada EEIID e B, a partir da análise do caso do Acre.
No Estado, em meados da década de 1970, quando o sistema do extrativismo da
borracha estava em seus estertores de decadência e passava por um momento de
transição dando lugar à pecuarização, apenas nove etnias assumiam identidades
2 Vê relação das etnias no anexo um.
indígenas: Yaminawa, Kulina/Madija, Yine/Manxineri, Kaxinawa/Huni Kuĩ, Katukina,
Kampa/Ashaninka, Puyanawa, Nukini e Arara3.
Foi naquele contexto que surgiu o movimento sindical de trabalhadores rurais
que incluía a participação de indígenas, como o grande líder Alfredo Sueiro dos Huni
Kuĩ/Kaxinawa do rio Jordão, inseridos no cotidiano sócio-econômico regional, segundo
Aquino (1982, p. 35), ‖viviam à maneira de seringueiros e barranqueiros na frente
extrativista da borracha e mais recentemente, parte do grupo vende sua força de
trabalho à nova frente agropecuária‖.
Este nascente movimento social de base sindicalista questionava tanto o antigo
sistema com base no aviamento via patrão/seringalista, quanto o que se prenunciava, e
que tinha como mote a pecuarização do Estado.
Os líderes do movimento percebiam que tanto o seringalismo quanto o regime
pecuário desconsideravam os direitos mais elementares das populações tradicionais
amazônicas, sendo o direito fundiário o mais desrespeitado e o que gerava os maiores
e mais sangrentos conflitos.
Ao longo destes pouco mais de 30 (trinta) anos, os indígenas ora se distanciaram
ora se aproximaram do movimento sindical, como em 1989, por ocasião do II Encontro
Nacional de Seringueiros, quando foi celebrada a União dos Povos da Floresta, que
resultou em lutas comuns de índios e seringueiros, sobretudo no enfrentamento contra
o Estado.
Mas o certo é que os índios criaram um movimento independente do sindicalismo
dos trabalhadores rurais, sobretudo após a ascensão do auto-intitulado Governo da
Floresta, que desde então tem investido na cooptação de antigas lideranças populares,
o que levou ao enfraquecimento e a quase exaustão do movimento social que fora
bastante forte antes da ascensão deste governo, restando na atualidade alguns
bastiões de resistência, constituídos sobretudo pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais
de Xapuri, tendo à frente a presidente Dercy Teles, e pela voz dissonante na orquestra
3 Huni Kuĩ, Madija e Yine são autodenominações. Os etnôminos Kaxinawa, Kulina e Manxineri foram atribuídos por grupos rivais. No caso Kaxinawa significa
povo morcego, Kulina é uma palavra desconhecida tanto pelos Madija quanto por pesquisadores que o estudam. Já a palavra Manxineri significa comedor de
inharé, uma fruta silvestre que serve de alimento aos animais da floresta. O nome foi dado porque os Yine comiam esta fruta e a idéia era compará-los a animais
selvagens.
da Floresta do militante Osmarino Amâncio, em Brasiléia. Há também outras vozes que
os agentes do Governo da Floresta tentam desclassificar.
No atual estágio, cuja gênese se deu em meados dos anos de 1990, os
indígenas desenvolvem lutas específicas, em menor intensidade, diga-se de passagem,
pela reconquista dos territórios expropriados ao longo da instalação da frente
extrativista da borracha, intensificando, a partir de 1999, uma batalha no âmbito da
institucionalidade, sobretudo junto à SEE do Governo, pela universalização da
educação escolar, e, junto à Fundação Estadual de Cultura Elias Mansour, pelo
reavivamento de elementos da cultura material e imaterial autóctones, com a
apresentação de projetos culturais para financiamento por meio de uma Lei de Incentivo
à Cultura.
A partir do início da década de 1980, tanto o movimento de seringueiros do
município de Xapuri quanto alguns grupos indígenas inseridos na frente extrativista
gumífera, sobretudo os Huni Kuĩ/Kaxinawa, organizados em torno da Comissão Pró-
Índio do Acre – CPI/AC, e os Madija/Kulina, oganizados em torno das Igrejas Católica e
Evangélica de Confissão Luterana do Brasil – IECLB, passaram a desenvolver
estratégias de comercialização da borracha sem a interveniência do marreteiro4 ou do
patrão/seringalista, via pequenas cooperativas de compra e venda direta.
Este incipiente movimento cooperativo gerou demanda por competências em
leitura e escrita, o que faz surgir as primeiras escolas de caráter comunitário no
contexto das aldeias e seringais.
Este caráter comunitário era expresso tanto pela independência curricular, que
não contemporizava com as exigências oficiais, quanto pelo caráter voluntário dos
professores, que recebiam ajuda de custo das pessoas das aldeias na forma de
trabalhos compensatórios das horas ausentes dos afazeres cotidianos em roçados ou
outras atividades essenciais para a subsistência, ou ainda por meio de bolsas
compensatórias que eram oferecidas por meio de recursos advindos de projetos
financiados por agências humanitárias bilaterais, como a OXFAN, agência de
cooperação inglesa, a Coordenação Ecumênica de Serviços – CESE, agência que
4 A expressão designa o atravessador que regateava mercadorias em troca da borracha. Na época dos seringalistas esta atividade era realizada às escondidas,
pois era proibida pelos patrões que monopolizavam o comércio. Com a decadência destes, era, em muitos, a única forma de garantir mercadorias para os
seringueiros.
reúne igrejas evangélicas brasileiras, e que está radicada no Estado da Bahia, dentre
outras.
Estas escolinhas se organizavam tendo por base os pressupostos teórico-
metodológicos desenvolvidos pelo educador Paulo Freire e receberam consultoria para
desenvolver seus Projetos Políticos Pedagógicos – PPP‘s e a produção dos materiais
didáticos, do Centro Ecumênico de Documentação – CEDI, que desenvolvia ações de
educação popular junto a movimentos sociais de trabalhadores rurais, urbanos e
indígenas.
Nestes pouco mais de 20 (vinte) anos, a educação escolar indígena passou a ser
uma das bandeiras que mais tem mobilizado o movimento indígena no Acre, tendo
extrapolado as fronteiras do Estado.
Não é nenhum exagero dizer que o atual estágio em que se encontra a educação
escolar para indígena no Brasil, com o forte viés indigenista que ela se apresenta, deve
muito, principalmente, aos encaminhamentos dados pelo movimento indígena e
indigenista do Acre ao longo destes anos, encabeçado pela CPI/AC.
A experiência desta ONG, já a partir dos primeiros anos de sua existência, foi
sendo atrelada ao Estado, mais precisamente ao Ministério da Educação e Cultura –
MEC, que a auxiliou financeiramente, de forma que se pôde aperfeiçoar um modelo de
educação escolar indigenista palatável ao Estado, dando origem à chamada EEIID e B,
que o MEC adotou como política escolar indigenista oficial universalizando-a para todas
as etnias existentes no país, a partir dos anos de 1990.
A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD,
órgão do MEC responsável pela gestão da Educação Escolar Indígena, registrou no
ano letivo de 2008 a existência de 225 (duzentas e vinte e cinco) etnias indígenas no
Brasil, das quais 180 ainda mantêm o uso da língua de seus ancestrais. Estas etnias
registraram uma matrícula de 180.000 (cento e oitenta mil) alunos, que foram atendidos
em 2517 (duas mil, quinhentas e dezessete) escolas, em que atuam cerca 10.200 (dez
mil e duzentos) professores, sendo 90% deles indígenas.
Estas etnias encontram-se nos mais diferentes estágios de contato e aculturação
em relação à sociedade ocidental, apresentando variadas situações sociolingüísticas
que vão do monolingüísmo em português, como é o caso das etnias do Nordeste, com
exceção apenas dos Fulniô de Pernambuco, ao plurilingüísmo, em que alguns
indivíduos, sobretudo aqueles pertencentes a etnias estabelecidas na Amazônia,
apresentam o domínio de duas ou três línguas indígenas e duas ocidentais, o português
e o espanhol, como algumas etnias que vivem em fronteiras, e que podemos
exemplificar com os casos dos Huni Kuĩ/5Kaxinawa, Yaminawa, Madija/Kulina e
Yine/Manxineri, no Acre.
Nossa análise faz um questionamento à idéia mistificadora contida na glosa
EEIID e B, que a identifica como sendo uma educação escolar indígena. Em tempo:
Indígena nessa glosa se opõe a indigenista, aquela designação significando as ações
desenvolvidas por índios, e esta designa as ações desenvolvidas por não-índios em
favor de indígenas.
O indigenismo, segundo Darcy Ribeiro, apud Lima veio do México e dos países
hispanos pan-americanos em que a palavra designava pessoas que se dedicavam à
proteção do índio. No Brasil o indigenismo oficial foi inaugurado pela ação do Marechal
Rondon6, criador do Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Embora os agentes desta
instituição não conhecessem a palavra indigenista, havia uma ação de proteção aos
índios, uma ação positivista, haja vista que Rondon, seguindo as tradições da maioria
dos militares de sua época, era um ferrenho adepto da corrente filosófica denominada
de Positivismo7.
5 Huni Kuĩ, Madija e Yine são autodenominações. Os etnôminos Kaxinawa, Kulina e Manxineri foram atribuídos por grupos rivais. No caso Kaxinawa significa
povo morcego, Kulina é uma palavra desconhecida tanto pelos Madija quanto por pesquisadores que os
estudam. Já a palavra Manxineri significa comedor de
inharé, uma fruta silvestre que serve de alimento p
ara
animais da fauna silvestre
. O nome foi dado porque os Yine comiam esta fruta e a idéia era
compará-los a animais selvagens.
6 Cândido Mariano da Silva Rondon, índio mestiço das etnias Bororo e Pareci, foi militar do exército da arma de engenharia. É considerado um grande herói da
nacionalidade, talvez o mais importante do século XX. Foi o responsável, nas primeiras décadas daquele século pela exploração e mapeamento de áreas até
então desconhecidas da Amazônia, especialmente no Vale do Guaporé, no atual Estado de Mato Grosso, no Estado batizado em sua homenagem com o nome
de Rondônia, e no Estado do Amazonas, abrindo-os, assim, para a exploração econômica, e a colonização por nacionais brasileiros e o controle pelo Estado. No
desenvolvimento destas ações teve contato com populações indígenas vivendo em estado primitivo, o que levou à criação do antigo ―Serviço de Proteção aos
Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais‖, mais tarde, apenas ―Serviço de Proteção aos Índios‖. O relacionamento dos representantes dessa agência de
governo com os índios eram orientados pelo famoso motto ―Morrer Se Preciso For, Matar Nunca‖. Informações baseadas em pesquisa realizada no site
http://www.georgezarur.com.br/artigos O heroi e o sentimento: Rondon e a identidade brasileira. Acesso em
27/09/2009 às 10h23 mim.
7 Doutrina filosófica cujo maior expoente foi o francês Augusto Comte (1798-1857). Esta corrente era hostil à metafísica e admitia como fonte única de
conhecimento e critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis, fazendo um ato de fé ao grande progresso das ciências naturais,
particularmente das biológicas e fisiológicas do século XIX. Este positivismo formulado por Augusto Comte visava instaurar uma nova ordem adaptada à "idade
industrial".
O indigenismo foi, portanto, marcado por este pensamento filosófico, tendo
nascido numa tentativa de resolver um dilema que era dos indigenista e não dos índios.
Com o avanço das frentes pioneiras sobre as terras dos índios, estes homens,
inicialmente militares, engenheiros cartógrafos, médicos sanitaristas, advogados e
antropólogos, queriam preservar a vida dos índios, daí a máxima de Rondon: morrer se
preciso for matar jamais! Mas ao lado desta preocupação com a preservação da vida
dos índios, estes primeiros indigenistas tinham outra que era melhorar o índio enquanto
ser humano.
A tese que defendemos é a de que a EEIID e B já nasce indigenista, embora
com forte participação e colaboração indígena, mas vai gradativamente se
transformando numa proposta puramente indigenista, primeiro sob a hegemonia dos
quadros militantes das ONG‘s, que inauguraram o indigenismo alternativo, das Igrejas e
de professores universitários, até ser totalmente absorvida pelo Estado que, a partir do
Governo Federal via MEC, delega para os sistemas regulares de ensino dos Estados e
Municípios a responsabilidade pela implementação e gestão desta educação, cabendo
aos índios um papel secundário e de pouca relevância no desenvolvimento da EEIID e
B.
Neste contexto, a participação dos indígenas, sobretudo dos professores
indígenas do Acre, cujo discurso permeia toda a documentação oficial emanada do
MEC, não altera o caráter marcadamente indigenista, tutelar e dependente do Estado e,
de alguma forma, a proposta é tributária de outras que vigoraram ao longo da história
do contato dos indígenas com o elemento ocidental que veio para o ―Novo Mundo‖ a
partir do movimento que ficou conhecido no discurso da história oficial como a era das
descobertas.
Nosso contato com a gestão oficial da educação escolar indígena nos ajudou no
sentido da escolha e seleção dos documentos que julgamos pertinentes para efeito de
verificação de nossa hipótese, razão pela qual constituímos o corpus para a análise
desta problemática com uma pequena parte da documentação oficial produzida pelo
MEC e pela CPI.
Do MEC analisaremos alguns aspectos de dois documentos:
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI (BRASIL,
MEC, 1998) e o Programa Parâmetro Curriculares Nacionais – PCN e, Ação da
Educação Escolar Indígena (BRASIL, MEC, 2002).
Além destes dois documentos emanados do órgão máximo de gestão da EEIID e
B, analisaremos alguns aspectos de seis documentos de PPP‘s, organizados e
enviados pela CPI/AC para a apreciação e aprovação no Conselho Estadual de
Educação – CEE.
Vale reforçar aqui que a CPI é uma ONG acriana que se tornou ao longo dos
últimos 20 (vinte) anos, uma extensão para-governamental vinculada ao MEC, sendo a
principal responsável pela proposta de EEIID e B, quando passa, ainda nos anos de
1980, a assessorar escolas indígenas noutros Estados brasileiros.
Os documentos produzidos pela CPI/AC e que serão analisados nesta
dissertação serão os seis PPP‘s abaixo discriminados:
1) O da escola João de Souza Carioca8;
2) Da Escola Francisco Lessa9;
3) Da escola Tũĩkuru as três da etnia Yawanawa;
4) Da Escola Samuel Pyanko, da etnia Ashaninka e;
5) Da Escola Alto do Bode;
6) Da Escola Belo Monte, estas duas da etnia Kaxinawa.
Para efeito da escrita desta dissertação ela estará assim organizada:
No primeiro capítulo faremos uma análise crítica de como foi se criando na
Europa, durante a Idade Média, uma Formação Discursiva – FD10 em torno do outro
não-europeu que, mais tarde, com a ―descoberta do Novo Mundo‖ e o contato do
homem ocidental com seus ―estranhos‖ habitantes, os indígenas, vão ser encaixados
nesta FD.
8 Esta escola existia deste a época dos seringalistas e este nome homenageava o antigo patrão seringalista, mas como os Yawanawa estão num processo de
revalorização da cultura autóctone, rebatizaram a escola com o nome Ivã Sttiho.
9 Pela mesma razão os Yawanawa rebatizaram esta escola com o nome indígena de Nixi Wwaka.
10 Formação Discursiva é uma categoria da Análise do Discurso – AD, de linha francesa, que será a referência teórica em nossa análise. Nesta introdução
faremos um sumário acerca da AD francesa e suas principais categorias.
Veremos que quando o europeu resolve colonizar a América, inclusive o Brasil, a
educação escolar desempenhou papel fundamental na mistificação em torno da
superioridade do elemento europeu em detrimento do habitante autóctone da América.
Ainda no primeiro capítulo demonstraremos que a FD iniciada na Europa antes
do europeu conhecer o habitante do ―Novo Mundo‖, e ao conhecê-lo criá-lo via discurso
como índio colocará este sujeito índio numa posição de assujeitamento11, na qual é
descrito como negativo e que necessita, segundo Dalmolin (2004 p. 62), ser positivado
pela ação civilizatória do homem ocidental.
Também no primeiro capítulo descreveremos o contato dos portugueses com os
indígenas da Amazônia, a partir do Estado do Maranhão e Grão-Pará, no século XVII.
Este Estado contava com uma gestão independente tendo ligação direta com a coroa
portuguesa em Lisboa sem a interveniência com a administração colonial brasileira.
No segundo capítulo, adotaremos o mesmo procedimento, só que em relação ao
contato com os indígenas da Amazônia Sul Ocidental onde, a partir da segunda metade
do século XIX, se iniciará um processo de migração de populações não-indígenas
oriundas do Nordeste brasileiro, estimulado pelo governo do Amazonas e os
representantes de Casas Aviadoras12 de Belém e de Manaus, com o intuito de obrigar a
tomada do território que hoje constitui o Estado do Acre e que então pertencia à Bolívia.
Ainda neste segundo capítulo, focaremos o movimento indigenista e indígena
que embasará, nos anos de 1990, a criação da EEIID e B.
Pelo registro histórico que tivemos acesso em nossa pesquisa se percebe muito
claramente que este movimento nasce como uma alternativa questionadora do status
quo político-econômico-fundiário vigente à época.
O indigenismo de então combatia as estruturas político-econômico-fundiárias que
colocavam de forma muito explícita o índio numa posição de subalternidade, não lhe
reconhecendo quaisquer direitos, cassando-lhes, em primeiro lugar, os direitos pela luta
11
Este conceito também é uma categoria da AD francesa e trataremos dela nesta introdução.
12 Eram assim denominados os estabelecimentos comerciais instalados nas duas metrópoles amazônicas da época. Elas eram responsáveis pelo abastecimento
dos seringais com os víveres essenciais aos trabalhos da exploração gumífera a captação e exportação da produção para os centros consumidores fora do Brasil.
O sistema de exploração da borracha se processava por meio de uma teia hierarquizada que tinha na ponta o seringueiro, era o elo mais frágil e explorado, a
seguir os patrões que exploravam diretamente os seringueiros, depois destes os donos dessas casas aviadoras que eram majoritariamente portugueses ou
árabes, e, no topo da cadeia, os
bancos ingleses representantes do grande capital que financiavam as atividades extrativistas nos seringais.
em favor da reconquista dos territórios, que eram e são fundamentais para a
recuperação e a manutenção da identidade autóctone, e que haviam sido expropriados
com o estabelecimento do contato com os brasileiros para a implantação do
extrativismo gumífero.
Isto não quer dizer que tenha havido um progresso muito grande nesta postura
em relação aos indígenas, mas é que hoje as coisas ocorrem de maneira mais velada,
mais dissimulada.
Percebe-se pelos relatos consultados, que, no Estado do Grão-Pará, durante o
século XVII, a escola foi uma imposição do Estado colonial.
A instalação do Estado do Grão-Pará visava à exploração das chamadas drogas
do sertão para efeito de ocupação da Amazônia e para garantir sua posse pela coroa
portuguesa, haja vista que em razão do Tratado de Tordesilhas, caso Portugal não a
ocupasse corria o risco de perder sua posse para a Espanha e, naquele momento, o
sistema econômico já globalizado com a implantação do mercantilismo abria mercados
para a exportação das especiarias que se extraiam na Amazônia.
Dada a dificuldade de importar força de trabalho para a região, os trabalhos de
exploração das drogas do sertão, eram realizados com a utilização da força de trabalho
escravizada dos indígenas.
Naquele contexto a educação escolar foi a estratégia utilizada pela catequização
religiosa para alcançar o intento da substituição das línguas indígenas locais pelo
Nheengatu, que passou a ser a língua franca utilizada tanto pelos índios das mais
diversas etnias presentes na região, quanto pelos poucos escravos africanos que foi
possível importar, e pelos colonos e os funcionários brancos da coroa portuguesa.
No Acre, ao contrário, a educação escolar foi negada aos indígenas, tanto ao
longo do período do boom do extrativismo, quanto em sua decadência e substituição
pela pecuarização, salvo em alguns locais e momentos, a depender das pretensões e
conveniências de algum patrão que fosse também chefe político.
A educação escolar no Acre só será acessada pelas populações indígenas,
como já nos referimos, no final dos anos de 1970, mas como conquista do próprio
movimento indígena e indigenista, no momento em que o extrativismo encontrava-se
em crise, e que o poder público tentava operar uma transição para o modelo econômico
de base pecuária.
Neste modelo econômico a opção que sobrava aos indígenas era serem
agregados ao subemprego nas fazendas, como peões, como se pode constatar no
relato de Aquino (ibdem, p. 6): ―Alegaram os Katukina que já tinham retornado da
fazenda, que a diária de R$ 20,00 (vinte cruzeiros) paga aos peões era extremamente
baixa‖.
Se houvesse ocorrido a adesão maciça dos indígenas à frente agropecuária, a
perda de elementos autóctones da cultura indígena que foram conservados durante o
período do extrativismo gumífero teria sido irreversível.
Ao longo dos dois primeiros capítulos discorreremos sobre o papel e o
significado da presença, ou ausência, da educação escolar na estratégia do contato
entre o elemento ocidental e o índio, o nativo do Novo Mundo Americano, detendo-nos,
no terceiro capítulo, na análise do corpus já descrito nesta introdução.
A opção por realizarmos esta investigação justifica-se, principalmente, por ser o
tema relevante e pouco estudado, estando eivado de lugares comuns, sendo o
principal, em nossa avaliação, este que nos propomos investigar: A idéia de um
protagonismo indígena no modelo de EEIID e B.
Esta pesquisa também se justifica pela necessidade de se verificar as mudanças
que ocorreram na formação do sujeito-professor indígena e do processo mesmo de
formalização da Educação Escolar Indígena como categoria vinculada ao sistema
nacional da educação brasileira.
A ANÁLISE DO DISCURSO – AD DE LINHA FRANCESA: O REFERENCIAL
TEÓRICO
O referencial teórico que dará suporte ao nosso trabalho de análise, como já
referido na nota três, será a AD de linha francesa.
Faremos aqui um breve sumário das principais categorias advindas deste
referencial e que serão utilizadas neste trabalho, qual seja a de linguagem, discurso,
sujeito, formação discursiva, intradiscurso e interdiscurso, e outras noções, que
julgamos pertinentes para situar o leitor não iniciado em AD.
Esta corrente de pensamento nasce de uma crítica à lingüística imanente de
corte saussuriana, pois segundo Pêcheux, considerado o fundador da AD, Saussure ao
estabelecer a dicotomia langue/parole elege como objeto da ciência lingüística a
langue, o sistema, isolando a larole, que Pêcheux considera o objeto por excelência do
estudo da linguagem, dentre outras razões, por focar ―as instituições não semiológicas
no escopo da ciência‖, (FLORES, 1997, p. 43), portanto a constituição da AD enquanto
ciência nasce do inconformismo com o predomínio da tradição estruturalista na
lingüística, que privilegiava a langue para efeito de análise em detrimento da parole.
Os autores que dão início à AD o fazem com base numa tradição da cultura
francesa de unir texto com reflexão histórica. A AD nasce, então a partir da confluência
entre lingüística, marxismo e psicanálise.
Do marxismo a AD aporta contribuições de Althusser, filósofo e teórico que
operou uma releitura da obra de Marx, sendo sua grande contribuição para a AD, as
discussões acerca dos aparelhos ideológicos de Estado e a idéia de assujeitamento ou
de sujeito assujeitado.
Esta é, portanto uma categoria importante para a AD francesa; a de sujeito.
Inicialmente ela foi definida a partir da teoria althusseriana de aparelhos ideológicos.
Esta teoria partia de uma crítica do sujeito na tradição marxista, negando-o enquanto o
enunciador primeiro do discurso. Ela também refutava a lingüística imanente, por seu
caráter estruturalista que, para efeito de análise, colocava centralidade no código.
Para a AD o sujeito ―faz o sentido na história, por meio do trabalho da memória, a
incessante retomada do já-dito, o encontro do ―impensado de seu pensamento‖
(MAZIÈRE, 2007, p. 63).
Foucault escreve em A ordem do discurso: ―Gostaria de perceber que no
momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo‖ (FOUCAULT, 2000,
p. 5). O autor, sobretudo nesta obra, insistirá na idéia que a produção do discurso na
sociedade é controlada, organizada, selecionada e redistribuída por alguns
procedimentos, demonstrando ainda que os sujeitos entram na ordem dos discursos,
mas ―não se tem o direito de dizer tudo, (...) não se pode falar tudo em qualquer
circunstância, (...) qualquer um não pode falar qualquer coisa.‖ (Ibidem, p.9).
Por outro lado, Pêcheux (1997, p. 71), em sua crítica à lingüística imanente,
observava que a visão centrada no código induz Saussure, mesmo que explicitamente
ele não o tenha desejado, a promover
a reaparição triunfal do sujeito falante como subjetividade em ato, unidade
ativa e intenções que se realizam pelos meios colocados a sua disposição; em
outros termos, tudo se passa como se a lingüística científica (tendo por objeto
a língua) liberasse um resíduo. Que é o conceito filosófico de sujeito livre,
pensado como o avesso indispensável, o correlato necessário do sistema.
Esta crítica a um sujeito falante, unidade ativa, senhor de seu dizer levará
Pêcheux a desenvolver na primeira parte da AD ou como ele mesmo define na AD-1, a
idéia de sujeito assujeitado, significando e existência de uma maquinaria discursiva, um
―sujeito-estrutura que determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os
sujeitos acreditam que utilizam seus discursos quando na verdade são seus ―servos‖
assujeitados, seus suportes‖. (PÊCHEUX ibidem, p. 311).
Na segunda fase, ou na AD-2 Pêcheux toma de empréstimo de Foucault a noção
de Formação Discursiva sendo esta assim definida por este autor, (FOUCAULT, 1997,
p. 43):
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos por convenção, que se trata de uma formação
discursiva.
Mas o próprio Pêcheux, (ibidem, p. 314), não se satisfaz com esta idéia porque
segundo ele ―resulta que o sujeito do discurso continua sendo concebido como puro
efeito de assujeitamento à maquinaria de FD com a qual ele se identifica‖.
Na terceira fase da AD ou AD-3, Pêcheux propõe a desconstrução da idéia de
maquinaria discursiva.
Voltando ainda um pouco para Althusser, acerca de suas considerações sobre o
sujeito, ele dirá que este é moldado pela interpelação, sendo esta uma identificação, um
apagamento do sujeito em relação à determinada formação ideológica (GALO, 1995, p.
23), porque este sujeito fala a partir das representações de um tempo histórico e de um
espaço social. Isto quer dizer que o sujeito ao ser interpelado assume uma forma
sujeito que configura seu lugar social, atribuído pela instituição que o interpela. Vale aqui descrevermos o conceito do termo forma sujeito, expressão introduzida
por Althusser e, segundo este autor‘, apud Pêcheux (1997, p. 183), a expressão
designa ―a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas
sociais‖.
Para efeito de exemplificação, o caso do indígena é bem ilustrativo, pois esta
categoria até o contato com o homem ocidental não existia, era uma forma sujeito
inexistente, que se inaugura por meio de atos discursivos proferidos pelos europeus
quando estes pisaram pela primeira vez nestes territórios desconhecidos e interpelaram
esses habitantes como índios, dando-lhes esta forma histórica de existência.
Na atual fase da AD a categoria de sujeito assujeitado, que nasce como já
exposto, sobretudo da contribuição de Althusser acerca dos estudos sobre os
Aparelhos Ideológicos de Estado, é bem questionada.
Possenti defende a idéia de um sujeito que não sendo livre, também não é
assujeitado. Para a construção desta idéia nova de sujeito ele aporta contribuições de
de Certeau, sobre o conceito de usuário, e de competência discursiva de
Maingueneau. (POSSENTI, 2002, p. 79).
Segundo Possenti (ibidem, p. 79) o conceito de usuário não restaura o primado
do sujeito uno da tradição ocidental, pois a idéia é dar conta de um sujeito que participa,
―ou seja, embora sendo ―efeito das estruturas‖ que o condicionam, ele é, mesmo assim,
um usuário dos produtos ( e dos discursos), não apenas seu consumidor‖.
Já a noção de competência discursiva de Maingueneau é inspirada na noção de
competência que Chomsky propõe, e está associada à idéia de que o discurso é
processo e não produto e que o processo exige processadores. Este autor tem em
mente também ―entre outras coisas, não reduzir o discurso às coisas já ditas, mas
entendê-lo como máquina produtora de enunciados e textos‖ (ibidem, p. 79).
Possenti (ibidem p. 83) reconhece ―que evidentemente, há regras (estruturas?);
que, portanto, os sujeitos não são livres. Mas, se os sujeitos não inventam o jogo, não
significa que não joguem‖.
Outros teóricos cujas reflexões contribuíram para a criação da AD foram Lacan,
com uma releitura da psicanálise freudiana e, ainda que tardiamente, Mikail Bakthin,
filósofo russo da linguagem cuja obra Marxismo e filosofia da linguagem foi descoberta
pelo grupo de Pêcheux na década de 1970, quando Authier-Revuz leva para a AD as
noções bakhtiniana de dialogismo e heterogeneidade.
Para a AD, a definição de Discurso pode ser traduzida como a manifestação da
materialidade da ideologia pela língua (MAZIÈRE, 2007, p. 30); um sistema de
significações ideológicas que configura o lugar da cristalização das motivações
históricas (OSAKABE, 1979, p. 21); o efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI,
2007, p. 210); ou:
a materialização do processo enunciativo, cuja materialidade exibe a
articulação da língua com a História. Como conseqüência, ela propõe uma
teoria não-subjetiva, em que o sujeito não é tido como responsável pelo
engendramento dos fenômenos discursivos e o sentido é construído pela
interação entre os interlocutores. (GREGOLIM, 2000, p. 19)
Outra categoria muito significativa para a AD é a de subjetividade. Esta se opõe
à noção prevalente na lingüística da imanência da langue. Para esta a subjetividade é a
capacidade de o locutor se propor como sujeito do próprio discurso. Para a AD a
subjetividade é um processo histórico que apresenta determinações exteriores ao
indivíduo.
Para efeito de ênfase, voltamos a afirmar que o referencial da AD será
ferramenta fundamental para a análise e entendimento dos processos de subjetivação13
13
―O termo ―subjetivação‖ designa para Foucault, um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou mais exatamente, de uma subjetividade‖ (REVEL, 2005. p.82). Noutras palavras são os modos pelos quais se operam as transformações dos seres humanos em sujeitos.
– outra categoria importante da AD – que se constrói acerca do indígena e que dará
base aos processos de interpelação a que vem sendo objeto desde os descobrimentos
europeus, perdurando na atualidade quando parte significativa deles é interpelada
como professor indígena e passa a assumir esta forma sujeito a partir de meados da
década de 1980, pois anteriormente ela não existia, uma vez que as aldeias que
conseguiam acessar a educação escolar tinham como professores sujeitos não-
indígenas, ligados ao círculo familiar dos patrões/seringalistas ou de credores de seus
favores, à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, ou dos sistemas regulares de
educação formal do Estado ou dos Municípios.
Outras categorias da AD que nos serão de grande utilidade para a análise e
compreensão da EEIID e B são as de interdiscurso e intradiscurso.
A definição de interdiscurso segundo Pêcheux, (1997, p. 162), considera o
seguinte: ―Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela
se constitui sua dependência com respeito ao ―todo complexo com dominante‖ das
formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas‖.
Podemos, pois de acordo com Pêcheux (1997), considerar que o interdiscurso é
o pré-construído. São as formulações que se articulam em formas lingüísticas
determinadas, como a citação, a repetição, a paráfrase, a oposição, a antítese. Ele se
constrói no domínio da memória, na exterioridade constitutiva dos enunciados. O
interdiscurso, portanto, é parte constitutiva do discurso do sujeito.
A outra categoria que explicitaremos aqui é a de intradiscurso, que Pêcheux
sugere como sendo a matéria lingüística, ideológica, literária, simbólica, pré-existente,
uma espécie de imagem já conhecida de uma realização lingüística que qualquer
sujeito pode reconhecer.
No caso de nosso trabalho, os materiais que constituem o corpus de análise é
um intradiscurso acerca da temática da EEIID e B.
Para encerramos este tópico acerca de nosso referencial teórico, faremos uma
rápida consideração acerca da concepção de linguagem presente na proposta da EEIID
e B.
Como a EEIID e B foi moldada no calor das lutas sociais e nos embates políticos
com o Estado autoritário da época da ditadura militar, enfrentando também os patrões
seringalistas e os latifundiários que se apresentavam no Estado como continuadores da
dominação do homem sobre o homem, a concepção de linguagem presente na
proposta pedagógica considera os aspectos social, cultural e histórico.
A EEIID e B não prescinde da reflexão acerca das condições sociais de
produção do conhecimento nem das condições sociais de quem produz e a quem se
destina estes conhecimentos produzidos.
Além desta concepção social de linguagem presente na EEIID e B, há também o
predomínio de uma concepção de cultura, pois se considera os aspectos culturais dos
sujeitos presentes nos atos educativos, além de uma concepção histórica, haja vista
que o ato educativo escolar se processa levando em conta as determinações históricas
que engendraram a conquista da EEIID e B e sua pertinência para o alargamento das
conquistas no campo das lutas indígenas.
Outros tópicos sobre referencial teórico aparecerão ao longo do trabalho, quando
julgarmos pertinente.
O OUTRO NEGATIVO.
O discurso torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive.
(ORLANDI, 2007, p. 15).
1.1. O ÁRABE: O OUTRO NEGATIVO EXTERNO DO EUROPEU
O título acima parece destoar do objetivo do trabalho aqui proposto que é
analisar o processo de implantação da educação escolar entre os indígenas no Brasil.
Como um acontecimento localizado no Brasil poderá ter relação com a Europa
do século XI, um tempo em que este país sequer existia? A ponte é a FD que, em
ambos os casos, embasaram um Discurso Fundador (doravante DF) comum e que irá
preparar as condições para que a EEIID e B se desenvolvesse com as características
que se apresentam na atualidade.
Cristóvão Colombo, julgando ter chegado à Índia, foi o primeiro europeu a pisar
nas terras americanas, que o italiano Pietro de Martire batizou de Novo Mundo. Isto
correu em 1492, portanto há mais de 500 anos. Todavia, a FD que coloca os habitantes
deste Novo Mundo como o outro que deve ser modificado até adquirir as semelhanças
culturais do colonizador foi forjada na Europa muito antes que os primeiros europeus
chegassem à América – Colombo no Caribe e, Cabral, em 1500, em Porto Seguro,
onde hoje está situado o Estado da Bahia – e teve como base as narrativas
maravilhosas que pululavam no Velho Mundo acerca de lugares então desconhecidos
dos europeus.
Segundo Delumeau (1983, p. 50) circulavam relatos fantásticos sobre a Índia,
nos quais se descreviam o país como sendo um lugar onde ―pigmeus lutavam contra
grous e gigantes contra grifos. Ali viviam homens com cabeça de cão, com apenas um
olho na cara, e a boca no ventre―, e outras lendas que alimentavam a imaginação
desses estrangeiros que passaram a aportar pela América a partir do século XVI,
alguns achando que estavam na Índia.
Colombo, aliás, num de seus contatos com os índios entendeu, por uma
confusão gerada em razão das diferenças lingüísticas, que os aborígenes estivessem
se referindo aos personagens e eventos narrados por Marco Pólo. Ele faz a confusão a
partir da palavra Caraíba, designando os habitantes (antropófagos) do Caribe,
entendendo que estivessem querendo dizer Can. Eis o registro no diário do Almirante
em 26/11/1492:
Toda a agente que encontrou até hoje diz que sente o maior medo dos
―caniba‖ ou ―canima‖ que vivem nessa ilha de ―Bohio‖. Não queriam falar, por
receio de serem comidos, e não podia tirar-lhes o medo, pois diziam que só
tinham um olho e cara de cachorro. O Almirante achava que era mentira, tendo
a impressão que deviam ser do domínio do Grande Can, que os reduzia ao
cativeiro (COLOMBO, 1998, p. 70).
Além desta confusão, de achar que os índios estavam se referindo ao Grande
Can, imperador da Tartária, que, segundo a narrativa de Marco Pólo ao papa da época,
este imperador havia solicitado o envio de 100 (cem) teólogos para iniciar a conversão
dos mongóis, Colombo também escreveu em seu diário que vira três sereias, e
comenta que elas ―não se dedicam a nenhum exercício feminino, mas sim aos do arco
e da flecha‖ (TODOROV, 1999, p. 19). Posteriormente, em 24 de junho de 1541, frei
Gaspar de Carvajal, assegurará ter avistado as Amazonas na foz do rio Jamundá,
fazendo guerra de forma tão valente quanto dez índios.
Afora estas narrativas referindo-se a seres imaginários, havia também narrativas
sobre as riquezas sem fim que as terras desconhecidas guardavam. As mais difundidas
eram as de Marco Pólo. Elas se referiam à ilha de Sete Cidades, onde a areia era ouro
puro, e os telhados das casas também eram de ouro; falava acerca de milhares de ilhas
de Cipango, onde abundavam árvores que exalavam o mais adorável odor.
Colombo, que, contraditoriamente, sendo poliglota não considerava a língua dos
índios como um idioma diferente do espanhol, e julgava que eles falavam errado a
língua de Castela, comete mais uma confusão ao deduzir que os aborígenes faziam
referência a Cipango, como se estivera perto desse lugar imaginário. Ele escreve o
seguinte em seu diário do dia 22 de dezembro de 1492:
Este trouxe outro companheiro ou parente consigo, e os dois, entre os demais
lugares que indicavam onde colhia ouro, mencionavam Cipango, a que chamam
de ―Civao‖, afirmando que lá existe em grande quantidade (COLOMBO, ibidem
p. 85).
As narrativas de Marco Pólo falavam ainda do império de Prestes João, onde se
dizia que corria um dos rios do paraíso terrestre; a cidade de Cibola e o lendário
Eldorado, que motivou buscas pelos espanhóis desde as montanhas do México e dos
Andes boliviano e peruano, até a Amazônia brasileira.
Era este clima de delírio que predominava na Europa da Idade Média, quando
ainda se desconheciam outros continentes, ou cujo acesso a estes era restrito a
poucos, como os Genoveses e Venesianos, que ―tinham a seu favor um considerável
adiantamento técnico, extensivo às práticas navais, como o demonstrava o domínio
incontestado da cartografia científica‖. (MARQUES, 1998, p.30).
Marco Pólo mesmo era filho do comerciante veneziano de Constantinopla Maffeo
Pólo, com quem realizou uma longa viajem para a China que durou de 1271 a 1295, e
foi ele, como já referimos acima, o responsável pelas mais célebres narrativas,
carregadas deste sentido de fantástico e de maravilhoso.
Mas, as condições que preparam o espírito do europeu para as grandes
navegações a partir do século XV, e que darão início a Idade Moderna, serão
consolidadas ainda na Idade Média, no final do século XI quando a Igreja Romana
construirá o ideário do Império Universal Ocidental sob domínio eclesiástico. A Igreja de
Roma assume para si a ―supremacia sobre as coisas do mundo, gestando uma teologia
racional e indicando como o indivíduo cristão estaria a partir de então comprometido
com a vida terrena num grau antes inexistente‖ (ROJO, 1998, p. 20).
Para alcançar este intento e igreja irá operar em seu interior profundas
mudanças de caráter institucional, doutrinário e administrativo, como o rompimento
cultural com o patriarcado de Bizâncio, a imposição da obrigatoriedade do celibato aos
clérigos, a purgação doutrinária interna para impedir interpretações teológicas
divergentes das que emanavam do alto clero, e a escolha dos papas por um restrito
colégio cardinalício, dentre outras.
Estas mudanças propiciaram o acúmulo e concentração de riquezas e de
poderes, permitindo, assim, o financiamento do intento da construção do Império
Ocidental Universal que, diga-se de passagem, tinha muito de mundano. Papas e
clérigos, seus ideólogos, apregoavam que era preciso concentrar o poder espiritual e
temporal, o primeiro por lhe pertencer, e o segundo porque deveria atuar em seu
proveito.
Naquele momento histórico se operava uma transição na forma de relato, de um
relato (narração distanciada), para o discurso (fala implicada), (MAZÌERE, 2007, p. 25).
Sim, porque é isto que a igreja faz, ela tem uma fala implicada com um projeto político e
histórico, no qual envolve/implica outros atores, visando o alcance do intento
pretendido. Marco Pólo, ao contrário, fazia seus relatos, suas narrativas, sem que
tivesse por trás destes um projeto implicado, a não ser, talvez, o de inflar seu próprio
ego.
Em Roio (ibidem p. 21) lemos que ―para efetivar seu propósito de imperium
mundial, a igreja procurou canalizar a violência intrínseca da ordem feudal para alguns
objetos – vistos como o outro negativo – a fim de evitar o risco e a desagregação social‖
(o grifo é nosso). O clérigo cisterciense Bernard de Clairvaux dizia que qualquer
obstáculo ao domínio universal da igreja de Roma era coisa do diabo e, naquele
momento criou-se, por meio deste discurso, a figura do Oriente em oposição ao
Ocidente, e aquele passa a ser designado como a terra do diabo por ser o lugar onde
se praticava a religião islâmica.
Este discurso do outro negativo é muito bem forjado, bem articulado e melhor
ainda implementado. Enquanto o Oriente era o outro negativo externo da Europa, criou-
se também o outro negativo interno, que tanto podia ser os dissidentes da igreja
romana, os leprosos, os loucos, as mulheres da religião druida, que detinham o poder
na cerimônia do sabaht na qual se celebrava o caráter maternal da terra.
No entanto, no mesmo discurso acerca do Oriente como espaço externo do outro
negativo, admitia-se que ultrapassando os confins orientais poder-se-ia alcançar o
paraíso. Este aspecto do discurso é interessante para este trabalho porque com o fim
do Feudalismo e o início da Idade Moderna, quando se darão as viagens ultramarinas,
a América e, particularmente o Brasil e seus habitantes, serão descritos a partir do
Discurso que veicula a ideologia construída numa FD em que aparecem o inferno e o
paraíso, o diabo e suas forças, o homem adâmico, porém necessitado de conversão.
No discurso forjado pela igreja durante a Idade Média, para que ela fosse o
centro em torno do qual tudo gravitasse, construiu-se a tese de que a terra era uma
ilha, cujo centro seria Jerusalém e, caso houvesse outras ilhas, estas deveriam ser
habitadas por seres não humanos. No entanto, séculos depois, quando se dão as
descobertas científicas acerca da forma esférica da terra, a Igreja re-significa seu
discurso, admite que a terra seja redonda, e muda também a opinião sobre os
habitantes dos lugares desconhecidos, argumentando que, embora não sejam
monstros, são, no entanto carentes da religião católica, condição para alcançar o
estágio de civilização, razão pela qual ela outorgará, a partir do século XV, o
reconhecimento legal dos direitos de propriedade das novas terras descobertas aos reis
que financiavam as viagens de descobertas, desde que estes se obrigassem a
trabalhar pela conversão dos infiéis que as habitassem.
Neste ato da igreja católica vemos em operação uma FD sendo alimentada por
um interdiscurso que irá gerar outro discurso, este melhor adaptado à nova conjuntura.
Essa será uma marca dos discursos acerca das terras e das gentes do Novo
Mundo, quer dizer, à FD básica moldada pelo DF serão mobilizados os interdiscursos
da hora, de acordo com a conjuntura e os planos que os europeus traçarem para as
terras descobertas. No caso de Portugal, segundo documento da Comissão Nacional
para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, (1999, p.18), havia duas
estratégias, no que eles chamavam de ―Pluralidade Civilizacional em relação às
colônias: i) a intercomunicação, que foi praticada na África e na Ásia, e ii) a criação
espacial, que ocorreu no Brasil‖.
Desde antes do século XI que os europeus exerciam intenso comércio para a
compra de produtos orientais, no entanto, este comércio era comandado pelos
venezianos, haja vista que já dominavam a geografia náutica e conheciam os caminhos
para as índias, detendo, portanto, o monopólio do comércio das especiarias que
compravam em Alexandria e Beirute (MOUSINHO, 1990), portanto países muçulmanos.
Quando se forja o discurso do outro negativo, os orientais passam a ser
hostilizados e são instituídas as Cruzadas que estabelecem um estado de guerra santa
contra os mulçumanos. No discurso dos papas em incentivo às Cruzadas, eles diziam
que estas se constituíam para os que a ela aderissem, em atos penitenciais armados,
pois os fieis da igreja eram devedores de vassalagem a Deus e, que, portanto, tinham a
obrigação de lutar para libertar a Terra Santa, mais precisamente Jerusalém e alguns
locais sagrados em seu entorno, do domínio dos infiéis, dos vassalos do Diabo, sendo
que este, por sua vez, era tido pela Igreja como ―um vassalo de Deus que quebrara o
compromisso vassálico‖. (JÚNIOR, 2002, p. 23).
No entanto, ao contrário do que os papas pregavam em seus discursos de
estímulo às Cruzadas, que estas deveriam ser realizadas sem o intento de conquistar
dinheiro ou honra, o que irá ocorrer de fato serão matanças e saques, que atingem
indistintamente, tudo e todos. Ninguém escapa à sanha assassina dos cruzados, sejam
judeus, cristãos ou mulçumanos.
Estes atos praticados pelos cruzados no século XI corroboram a tese
foucaultiana construída nas décadas de 1960-1970, de que há formas diferentes de
exercício de poder, descentralizadas do Estado, embora estejam a ele articuladas. Se
considerarmos o poder dos papas como equivalente ao poder do Estado, e de fato o
era, veremos que a desobediência dos Cruzados em sua violência indiscriminada, e na
pilhagem dos bens materiais praticadas no Oriente, constituía uma forma variada de
exercício de poder, exercida por uma fração dos agentes que constituíam a sociedade
feudal, que operavam à revelia do Estado, mas que, no entanto, estava a ele articulado,
pois contribuía para o objetivo estratégico defendido e almejado pela Igreja/Estado, que
era a expansão da fé católica e dos ideais da cultura ocidental, tida como superior.
Júnior (ibidem p.30), escreve que ―a Cidade Santa estava em mãos dos
mulçumanos desde 638, sem que isso tivesse causado problemas maiores, pois os
árabes permitiam que cristãos peregrinassem até lá‖, logo a deflagração das Cruzadas
por este motivo parece um pouco descabida, mas elas foram instituídas e ocorreram
várias. A depender do historiador, elas podem variar entre o número de oito e chegar
até 23, e eram sempre precedidas de um discurso papal exortando os guerreiros
feudais e os detentores do poder econômico para que organizassem e financiassem
essas incursões bélicas à Terra Santa.
Vê-se, portanto, a culminância do Discurso da igreja em favor da expansão da fé,
em interseção com os interdiscursos dos poderes não eclesiásticos, sedentos por
expandir seus domínios à cata de bens materiais que deveriam ser alcançados a
qualquer preço.
A primeira Cruzada ocorreu de 1096 a 1099, após discurso de exortação feito
pelo papa Urbano II, no Concílio de Clermont-Ferrand, em 1095.
A segunda Cruzada ocorreu entre 1147 e 1149, e foi exortada por um discurso
de São Bernardo. Esta Cruzada reuniu três contingentes de exércitos, um dos quais se
deslocou por mar e, ao passar pela Península Ibérica, ajudou o exército de Portugal na
luta contra os Mouros, como eram conhecidos os muçulmanos na Península.
Com a reconquista da Península e a expulsão dos mouros, Portugal e Castela
começam a se fortalecer e a despontarem como potências marítimas, devido ao
enfraquecimento dos demais países pelas guerras, peste, fome e outras desventuras; a
elevação desses dois reinados às condições de Estados Nação; a incorporação de
conhecimentos náuticos dos quais os mouros eram detentores, dentre outros.
Uma FD também se constrói pelos silenciamentos e, no caso das Cruzadas, a
vertente da história oficial os promoveu, pois, se por um lado a igreja tinha um Discurso
de que as Cruzadas deviam libertar a Terra Santa e ampliar a base de seus fiéis
seguidores, avançando sobre o mundo islâmico, por outro, os agentes leigos da
sociedade feudal ansiavam pela pilhagem dos bens dos vencidos e, sobretudo, pelo
domínio do comércio das especiarias que eram consumidas na Europa, além de
conquistarem os conhecimentos acerca do planeta, que à época eram muito poucos,
mas estavam concentrados, exatamente, na civilização islâmica. Nada disso consta nos
compêndios oficiais da história como motivação às Cruzadas. E isto dá para se inferir
muito facilmente, pois embora os europeus tivessem conhecimento da existência da
África, da Índia e da China, eles não sabiam como chegar nestes locais, pois entre eles
prevalecia a teoria ptolomaica de que no fim do oceano havia um abismo e que navegar
para o Oeste significava cair no vazio e não mais poder retornar para a Europa.
Colombo, o primeiro ocidental que ousou fazer uma viagem rumo ao Oeste
desconhecido, a fez antes de ter a certeza definitiva de que aquela teoria estava
equivocada e, apesar de toda a indisciplina de seus marinheiros, das tentativas e
ameaças de motins e de o jogarem ao mar, ele continuava firme e bastante otimista
sobre a possibilidade de sucesso na empreitada de descobrir um novo caminho para as
Índias. Esta certeza e otimismo do almirante eram alimentados pelas palavras do sábio
cartógrafo florentino Toscanelli, que lhe dissera que ―os do oriente esperavam a
unidade com o Ocidente; o mundo se uniria pela cruz‖ (FAERMAN In: COLOMBO,
1998, p. 14-15).
Mas o apogeu das viagens marítimas ocorrerá somente com o declínio da Idade
Média, a partir do século XIV, que vai apresentar-se de forma avassaladora para a
Europa, provocando profundas mudanças na configuração sócio-econômico-político-
cultural do Velho Continente. A catástrofe que se abateu sobre o Velho Mundo,
travestida de Peste Negra, dizimou milhões de pessoas, somadas estas perdas com as
causadas pelas Cruzadas e a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, se tem
um quadro de esvaziamento do campo e, que, por sua vez, se agrava ainda mais com a
fuga de muitos sobreviventes dessas catástrofes para as cidades.
Com o declínio populacional no campo, ocorrerá a fome pela escassez de
alimentos, e a perda de poder econômico dos nobres que, para compensar os ganhos
perdidos e a sua insolvência enquanto categoria social detentora do poder político-
econômico, aumentam os impostos, gerando revoltas e guerras civis.
Por seu turno, a Igreja Católica também começa a perder o poder sócio-cultural
que detinha como única instituição agenciadora de subjetividades durante a vigência do
Regime Feudal. Isto ocorre por alguns motivos, dentre os quais três podem ser citados
como principais: o primeiro é a própria perda de poder econômico que ela sofre, uma
vez que era das maiores proprietárias de terras; o segundo é a eclosão da Reforma
Protestante estimulada pela predominância de uma atitude intelectual voltada para o
humanismo, que colocava o homem no centro das atenções espirituais e dos estudos e;
o terceiro é que esta atmosfera intelectual humanista vai facilitar o nascimento de uma
ciência racional de base matemática, e que passa a desempenhar o papel antes
atribuído à Igreja e exercido por ela, até então, como monopólio.
Antes do período humanista prevalecia o poder dos teólogos, que davam ênfase
às questões da alma e de Deus, aos fatos transcendentes, espirituais e imateriais.
Estas práticas eram disseminadas por meio de um discurso que fazia do homem um ser
submisso em primeiro lugar a Deus, e em segundo ao clero católico.
Os humanistas não aceitavam este discurso teológico, questionavam este
pensamento centrado na divindade, e colocavam como já referimos acima, o homem no
centro das preocupações espirituais e de estudos.
É neste contexto de transição sócio-cultural, que começa a despontar a ciência
racional de base matemática que passa a ser o parâmetro dos registros da
contabilidade, mas que avança rapidamente para outros ramos da atividade humana,
como fica muito claro no texto abaixo de Sevcenko (1987, p. 12). Ele escreve que
O instrumental-chave para o domínio da natureza e de seus mananciais,
através do qual se poderia condensar sua vastidão e variedade numa
linguagem abstrata, rigorosa e homogênea, era a matemática. Nesse campo, os
progressos caminhavam rápido, desde a assimilação e difusão dos algarismos
arábicos e das técnicas algébricas tomadas à civilização islâmica. O
instrumental matemático era indispensável para efetuar a contabilidade
complexa das empresas mercantis e financeiras, ou seja, os cálculos cambiais
e os diversos sistemas de juros, empréstimos, investimentos e bonificações.
Também fica patente na citação acima, que o trabalho de conquista e submissão
dos muçulmanos pelo europeu, ainda na Idade Média, e concluído na Península
Ibérica, no início da Idade Moderna, reforçará o poder que Portugal e Castela
concentrarão no novo regime que ascende, por permitir a incorporação dos bens
materiais, dos conhecimentos técnicos, culturais e científicos de domínio dos árabes.
Com o enfraquecimento do poder dos nobres da Velha Europa, que ocorre pela
perda da importância econômica dos feudos e o crescimento das atividades comerciais
exercidas pelos homens de negócios que se deslocavam do campo para o ambiente
urbano, e o surgimento de artífices, que também exerciam funções e ofícios nas
cidades, ou burgos, estes crescem em importância sócio-econômica, acontecendo,
então, a ascensão da burguesia urbana, ao mesmo tempo em que ocorria o
fortalecimento das Monarquias. Estas são fundamentais para dar estabilidade aos
negócios da nova classe, pois elas defendiam os interesses desta, tanto da
arbitrariedade da nobreza, quanto protegia os mercados dos burgueses da
concorrência estrangeira.
Neste novo contexto, a igreja se alia aos detentores dos poderes em ascensão,
no caso os reis de Portugal e Castela. Há, portanto, uma nova clivagem amparada na
conjuntura que então despontava. A igreja suspende ou transfere a idéia de concretizar
o Império Universal Ocidental, baseado em conquistas no Oriente islâmico,
conseguindo, assim, justificar com a sua ideologia, as ações que estes dois impérios
irão desenvolver a partir do século XVI no Novo Mundo, atuando como confirmadora
―dos direitos políticos e econômicos da Coroa, sob a alegação do caráter religioso dos
empreendimentos portugueses‖ (AZZI, 1987, p. 19).
As transformações de ordem sócio-econômica operadas no final do período
feudal eram facilitadas a Portugal por fatores naturais, pois o país está localizado num
ponto estratégico na geopolítica da Europa, estando plantado num entroncamento entre
Europa e África, no encontro entre o Atlântico e o Mediterrâneo, onde se cruzavam as
civilizações cristã, islâmica e judaica.
A este fator natural, somou-se uma conjuntura sócio-cultural favorável, no caso a
eclosão da contra-reforma, que permitiu a este pequeno país ibérico desempenhar a
função de incentivador, junto com a Espanha, de homens que estavam dispostos a se
aventurarem pelo mundo desconhecido à cata de novas terras, que na verdade era
uma busca por novos mercados e novos espaços para pilhagem, ocupação e captura
de homens para trabalharem como escravos, haja vista que os mercados conhecidos,
já eram de domínio de países que impunham condições e tarifas alfandegárias que
encareciam os preços dos produtos, num momento em que estes eram cada vez mais
demandados no Velho Continente.
Outro fator importante, este de ordem técnico-científico, era que Portugal estava
vivendo um grande progresso na área náutica, com avanços como estes que
transcrevemos abaixo:
A associação da agulha magnética com a carta de marear; o aperfeiçoamento
do cálculo da latitude; a construção (cerca de 1420) da caravela, que podia
navegar contra ventos contrários; a descoberta – especialmente pelos
portugueses – dos alíseos e dos ventos que permitiam contornar a África.
(DELUMEAU, 1983, p. 54).
Ainda segundo Delumeau, estes progressos coincidiram com um momento em
que a Europa apresentava uma crescente necessidade de metais preciosos, perfumes,
drogas e especiarias. Para Corvesier (1976, p. 16) a necessidade da provisão desses
produtos constitui ―um dos aguilhões das Grandes Descobertas‖.
1.2. O EUROPEU ENCARA O OUTRO NEGATIVO NO NOVO MUNDO: OS ÍNDIOS.
Julgamos pertinente, para entender a EEIID e B, desvendar primeiro os
significados ideológicos que configuraram as motivações históricas que embasaram o
DF, que situa o indígena numa forma sujeito, isto é, a percepção histórica do índio que
se constrói a partir do século XVI, quando aportaram os primeiros europeus no Novo
Continente, pois foram estes que lançaram as referências básicas que constituíram um
imaginário que foi estabilizado ao longo da história, e que apresenta o índio como outro
negativo. É isto que iremos realizar neste capítulo.
Antes convêm algumas palavras sobre o que consideramos para efeito deste
trabalho o DF. Temos por base a definição de Orlandi (2003), segundo a qual o DF é a
referência básica no imaginário constitutivo de uma coletividade. Chauí (2000),
referindo-se ao mito fundador, também dá uma pista que reforça a idéia de DF que
norteará este trabalho de análise da EIID e B. Para esta autora, o mito, no sentido
antropológico, é uma narrativa que funciona para resolver os conflitos, tensões e
contradições; caminhos para que estes sejam enfrentados com base em elementos
concretos da realidade.
O que veremos, no caso do DF acerca dos habitantes autóctones do Novo
Mundo, com o qual os europeus se depararam a partir do século XVI, é a
constatação que por parte destes as terras descobertas já eram ocupadas por gentes
nativas. Como, então, legitimar a exploração e ocupação européia, neste que era para
eles, um espaço novo? A solução é reconstruir este espaço via discurso. E, para isto, a
imagem do homem habitante deste espaço e, o próprio espaço, serão associados à
idéia de outro negativo, que necessita de uma intervenção positivadora do colonizador
para definir um sentido aceitável para esta nova situação de expansão e de
relacionamento com o diferente.
Este DF instaurou uma FD definida segundo Orlandi (2007, p. 43), como ―aquilo
que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma
conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito‖.
Pois esta FD atravessada por interdiscursos ao sabor das conjunturas históricas,
servirá, até os dias atuais, de balizas a nortearem as políticas e intervenções
indigenistas oficiais e extra-oficiais que se aplicam às etnias indígenas brasileiras, pelo
Estado, pela Igreja e, desde o final da década de 1970, pelas ONG‘s. Abordaremos
este aspecto ao longo deste capítulo, mas ele será central nos demais capítulos que
constituem esta dissertação.
Foucault, segundo Grangeiro (2007, p. 37), embora não admitisse que a análise
do poder fosse o fulcro de suas pesquisas, que estas tinham por centro o sujeito, ainda
assim sua produção inovadora acerca do poder será também de grande valia,
sobretudo as conclusões a que chegou de que o poder não é um objeto, uma coisa,
mas uma relação, e, sobretudo que o poder não é um monopólio do Estado.
Machado na introdução da obra Microfísica do poder, (FOUCAULT, 1979, p. XI)
escreve que Foucault obtém evidências em seus materiais de pesquisa que não há
sinonímia entre Estado e poder.
O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício do poder
diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são
indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação eficaz.
Esta tese foucaultiana terá muito valor nesta pesquisa, pois ajudará a
entendermos que o poder pode ser exercido em forma descentralizada do Estado, mas
a ele articulado, e esta forma de exercer o poder foi operada tanto no passado que
criou a FD vigente acerca do índio, quanto no presente, quando se institucionalizam e
se implementam políticas e ações de assistência a ele destinadas, como veremos, tanto
neste, quanto no segundo capítulos desta dissertação.
Por outro lado, a tese de descentralização do poder trás em seu bojo a idéia de
que onde há poder há resistência, e isto também aparecerá de forma muito nítida neste
trabalho.
Desde o primeiro momento do contato com os europeus que os índios serão
considerados pelos descobridores como seres dóceis e afeitos à escravização, sem que
eles oferecessem resistência, mas há conflitos e lutas para repelir as investidas de
portugueses e espanhóis e, no caso do Acre, a dos brasileiros.
A idéia de poder como uma coisa que não é centrada nem de única
administração por parte do Estado, invalida a idéia de poder como sendo permitido para
organizar uma sociedade, e que este poder se exerce por contrato, e que se regula pela
legalidade. Machado escreve que esta teoria teve origem nos filósofos do século XVIII,
mas, no caso das descobertas, de alguma forma, ele está presente nos atos que,
sobretudo Colombo e Cabral praticam ao tomarem posse das terras em nome dos Reis
de Castela e Portugal. Eles faziam isto na presença dos índios, ocupantes primeiros
das terras do Novo Mundo, como se estes fossem vassalos dos reis europeus, a quem
deveriam, por este suposto contrato social instaurado com o ato da descoberta,
obedecer e renunciar às suas formas tradicionais de organização social, política e
religiosa.
O Almirante chamou os dois comandantes e demais acompanhantes, e Rodrigo
e Escovedo, escrivão de toda a armada, e Rodrigo de Sanches de Segovia, e
pediu que lhe dessem por fé e testemunho como ele, diante de todos, tomava,
como de fato tomou, posse da dita ilha em nome de El-Rei e da Rainha, seus
soberanos, fazendo os protestos que se requeriam, como mais extensamente
se descreve nos testemunhos que ali se procederam por escrito. (COLOMBO,
1998, p. 46).
No exemplo acima fica patente que Colombo considerava o ato de posse das
terras americanas – ato puramente lingüístico/discursivo – como um contrato entre os
Reis católicos de Espanha e os indígenas. Daí a sua preocupação em realizar o ato de
maneira solene e formal, com testemunhas e por escritos. Noutra parte do diário ele
escreverá que não foi contradito. Talvez quisesse com isto garantir ao Rei que os índios
seriam governados pelos estatutos regimentais impostos por aquela nação européia
sem oposição nem resistência. Outros exemplos que traremos ao longo deste trabalho
reforçarão como era este o entendimento que os europeus tinham acerca do exercício
do poder, como um contrato para organizar aquele novo estatuto social, que surgia com
a anexação dos novos territórios ao patrimônio material dos países no Velho Mundo.
Se os avanços tecnológicos permitiram a navegação de longo curso e com isto a
dispersão do europeu para além das paragens do Velho Mundo, do ponto de vista ético
e intelectual, não obstante os ventos liberalizantes que corriam na Europa por conta do
humanismo, ainda predominava na época dos descobrimentos, nos dois países ibéricos
que capitanearam as viagens ultramarinas, o pensamento obscurantista com base na
doutrina da Igreja de Roma, sendo eles os bastiões da contra-reforma.
Não havendo nestes países número expressivo de hereges, luteranos ou
calvinistas, as coroas de Portugal e Espanha transformaram o movimento num
instrumento contra os cristãos novos, ―bem como estimulou uma atitude negativa com
relação às posições libertárias, científicas e filosóficas do Humanismo‖ (AZZI, ibidem, p.
38).
Com a descoberta e a fixação de europeus em território americano, sempre ao
sabor dos interesses da exploração das riquezas materiais do Continente, a América se
tornará objeto de teses depreciativas, tendo sempre por parâmetro de comparação o
Velho Mundo e, por inspiração, os relatos fantasiosos correntes na Europa desde a
Idade Média. É que os séculos de contatos indiretos com as outras culturas, por meio
destes relatos maravilhosos de quem dizia ter testemunhado coisas fantásticas,
impediam o europeu de ter uma percepção clara da radical alteridade dos povos com
quem eles estavam iniciando o contato.
Algumas dessas teses diziam que a América era aquele lado imaturo da terra ou
um Ocidente ainda informe. Mas, as maiores manifestações de preconceitos que se
darão contra os habitantes das Américas virão já no primeiro momento do contato e
serão protagonizados pelos próprios descobridores, a começar por Colombo, que
manifesta estranhamento muito forte em relação ao modo de ser deste outro até então
desconhecido, e que será julgado sempre como o negativo do europeu, como aquele
que deve se converter, se transformar culturalmente para adquirir estatutos de
verdadeira humanidade.
Na verdade Colombo terá uma impressão dúbia sobre os indígenas. Primeiro os
julgará pela ótica do bom selvagem, isto ao avistá-los de longe, quando ainda não tem
o contato tete a tete com eles.
Todorov (1999, p. 42) analisa alguns exemplos desses procedimentos avaliativos
que Colombo registrou em seus diários, como os já descritos e os que descreveremos
daqui para frente.
Devem ser bons serviçais e habilidosos, pois noto que repetem logo o que a
gente diz e creio que depressa se fariam cristãos; me pareceu que não tinham
nenhuma religião; Andavam nus como a mãe lhes deu à luz; inclusive as
mulheres. E todos que vi eram jovens, nenhum com mais de 30 anos de idade:
muito bem feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa. (COLOMBO,
ibidem, p. 47).
Todorov escreve que Colombo ―conclui com surpresa, que apesar de nus os
índios parecem mais próximos dos homens do que dos animais‖. Este estranhamento
de Colombo talvez se desse em razão de, por achar que houvera aportado na Índia e
esta, segundo os relatos fantasiosos de Marco Pólo, seria habitada por antípodas,
homens com cabeças de cão, de pássaro ou de boi e pés de quadrúpedes.
Avaliação semelhante a esta de Colombo será feita em 1500 por Pero Vaz de
Caminha, escrivão da frota de Cabral, sobre os índios com quem se encontra na costa
brasileira.
Mas Colombo não se restringe a esta avaliação do outro, este desconhecido que
ele apenas visualiza. Ele faz conjecturas a partir do que vê. E conclui que por estarem
nus, os índios eram desprovidos de cultura, não praticando qualquer rito, religião e não
tendo nenhuma seita, portanto estavam propensos à conversão ao Evangelho de
Nosso Senhor Jesus Cristo, como escreve ao Rei: ―Tenho certeza, sereníssima
Majestade que sabendo a língua e orientados com boa disposição por pessoas devotas
e religiosas, logo todos se converteriam em cristãos‖ (COLOMBO, ibidem, p. 64).
Neste primeiro contato, os descobridores exaltam os aspectos físicos e a beleza
dos índios, sobretudo das índias, de quem enaltecem as formas e a sensualidade. Há
uma descrição do uso violento das mulheres indígenas como objeto sexual dos
europeus já entre a tripulação de Colombo, portanto no primeiro contato destes com os
índios. Leiamos o relato do fidalgo Michele de Cuneo, apud Todorov (ibidem p. 57-58).
Quando estava na barca, capturei uma mulher caribe belíssima, que me foi
dada pelo dito senhor almirante e com quem, tendo-a trazido à cabina, e
estando ela nua, como é costume deles, concebi o desejo de ter prazer. Queria
pôr meu desejo em execução, mas ela não quis, e tratou-me com unhas de tal
modo que eu teria preferido nunca ter começado. Porém, vendo isto, (para
contar-te tudo, até o fim), peguei uma corda e amarrei-a bem, o que a fez lançar
gritos inauditos, tu não terias acreditado em teus ouvidos. Finalmente,
chegamos a um tal acordo que posso dizer-te que ela parecia ter sido educada
numa escola de prostitutas.
Na citação acima está plasmada uma opinião e uma prática que servirão aos
europeus, quando estes decidem colonizar, ou como diz o documento português, criar o
espaço na terra descoberta, como escape para a falta de mulheres européias na
Colônia, uma vez que a criação do espaço americano pelo europeu se dará em etapas,
como veremos mais detalhadamente no caso dos portugueses no Brasil. Uma dessas
etapas será o degredo de criminosos, que com Cabral já se efetiva em 1500, com o
intuito de que as gentes da terra se adaptem ao convívio com o europeu. Há também
as incursões de exploradores de Pau Brasil, sempre homens solteiros que terão
condutas semelhantes à do fidalgo Cuneo.
Na carta de Caminha a mulher nativa também é descrita como objeto sexual. E
de forma bem indiscreta, como se pode ler no trecho abaixo, em que o escriba se
excede na descrição da beleza de uma índia, e não resiste a uma comparação entre a
anatomia íntima desta e a da mulher européia.
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e
certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão
graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela. (CAMINHA In: PEREIRA (org.), 1999
p. 40-41).
Estas descrições que o europeu faz dos índios têm um caráter naturalista, pois
os índios por encontrarem-se nus, são tidos como desprovidos de cultura, são tábulas
rasas prontas para que se imprimissem neles o selo da cultura e da religião ocidental,
esta sim a verdadeira a que dava ao homem a possibilidade de ser digno de
comparação com a imagem e semelhança a Deus. Portanto o nativo é a natureza, o
que deve ser transformado pela cultura, e o europeu era a própria cultura, o que deveria
operar a transformação no homem natural, o homem ainda informe e incompleto.
Mas ao estabelecer contato real com o índio, ao conversar com ele, desvanece a
imagem do bom selvagem, de ser inocente e incapaz de tibieza, (embora permaneça a
concepção naturalista acerca do aborígine), pois aí os silvícolas vão percebendo aos
poucos as intenções daqueles desconhecidos e alguns vão se opondo a elas: onde há
poder há resistência.
Na primeira viagem de Colombo já ocorre o primeiro conflito entre europeus e
índios. E em 1493, um ano após Colombo aportar ao Novo Mundo os índios massacram
39 colonos que ficaram na América. Mas é interessante o relato/versão de Colombo
sobre o primeiro conflito. Ele escreve o seguinte em seu diário de 13 de janeiro de
1493:
O índio mal-encarado desembarcou e fez com que os outros largassem arcos e
flechas, e um pedaço de pau que parece um (...)14
, bem pesado, que utilizam no
lugar de espada. Depois aproximaram-se do barco e a tripulação saltou em
terra e começou a comprar-lhe os arcos e flechas e as outras armas, tal como o
Almirante tinha recomendado. Vendidos dois arcos, não quiseram trocar mais
nada; em vez disso, se preparam para investir contra os cristãos e prendê-los.
Foram correndo pegar seus arcos e flechas onde os tinham guardados e
voltaram com cordas nas mãos para, segundo parece, amarrar os cristãos.
Vindo que vinham em sua direção, estando os cristãos já prevenidos, porque o
Almirante sempre alertava sobre este risco, investiram contra eles, desfechando
uma grande punhalada nas nádegas de um índio, e abrindo no peito de outro
14
Há uma nota explicando que esta parte está em branco no original.
um espécie de flechada, quando os agressores que tinham poucas
possibilidades de sair vencedores, embora os cristãos fossem apenas sete e
eles cinqüenta e tantos, saíram fugindo até não restar nenhum, deixando os
arcos e as flechas caídos por tudo quanto era lado. (COLOMBO, ibidem, p.
96-97).
Os atos de resistência ao poder opressor vai se configurar em variados exemplos
na história da ocupação da América e, no caso do Brasil registra-se numerosas
estratégias dos indígenas em resistência à ocupação de seus territórios. Algumas
podem parecer capitulações ao invasor, ou covardia dos indígenas, sobretudo quando
estes colaboram com os portugueses em lutas contra outras etnias, ou contra invasores
estrangeiros; em episódios de abandono de práticas de rituais étnicos ou de
sincretismos destes com elementos dos rituais cristãos, mas estas são estratégias de
resistência que os indígenas empregam visando à garantia de suas sobrevivências
físicas. Afora, evidentemente, as estratégias de enfrentamento em combates bélicos,
como essa transcrita acima registrada no diário de Colombo.
Todorov escreve que Colombo após a primeira impressão sobre o índio como
bom selvagem, passa a assumir uma postura em que o índio se metamorfoseia em ―cão
imundo‖, escravo em potencial. Todorov conclui que as duas posturas de Colombo são
naturalmente equivocadas, porque ―ambos têm uma base comum, que é o
desconhecimento dos índios, a recusa em admitir que sejam sujeitos com os mesmos
direitos que ele, mas diferentes‖ (TODOROV, ibidem, p. 58).
O estranhamento e o tratamento ao índio como inferior, no caso do Brasil, não
será diferente do que ocorreu com a América espanhola. Caminha que redige carta ao
Rei de Portugal informando o ―achamento‖ da nova terra escreverá quase nos mesmos
termos que Colombo escrevera em seu diário. Em ambos o europeu se apresenta como
ego, o eu, o sujeito de conhecimento, e o índio, o ele, o objeto do conhecimento.
Leiamos abaixo trecho da carta de Caminha e constatemos o quão ela se
assemelha aos escritos dos diários do almirante Colombo, no que diz respeito às
considerações dos aspectos físicos e ao fato cultural dos índios andarem nus. ―A feição
deles é serem pardos, maneira de ser avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura‖ (CAMINHA, ibidem, p. 35).
No trecho a seguir o mesmo julgamento que os índios são desprovidos de
cultura, tal qual o manifestou Colombo em seu diário e, portanto, aptos a serem
impingidos com a marca da cultura e da religião européias.
Parece-me gente de tal inocência que se, homem os entendessem e eles a nós,
seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em
nenhuma crença. E, portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a
intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crê em nossa santa fé, à
qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo esta gente é boa e de
boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar. E, pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos,
como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
(CAMINHA, ibidem, p. 54).
Noutro trecho da carta, Caminha escreve: ―Se vossa alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande /.../ Não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque
já terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles
ficam‖ (CAMINHA ibidem, p. 56).
Os índios são categorizados como gente portadora de faltas culturais, e a
primeira e mais importante que os europeus consideravam, era a falta da religião
verdadeira, por isto só podiam ser tratados como inferiores, como objeto da caridade do
invasor, que propunha uma permuta que, de seu ponto de vista era muito vantajosa e
eles se questionavam muito seriamente porque os índios não se contentavam com
aquela oferta tão maravilhosa de dar-lhes suas vidas e seus territórios pela salvação de
suas almas, só sendo mesmo muito hereges e infiéis para não compreenderem e não
se regozijarem com tão vantajosa troca. Leiamos as palavras do historiador Rocha
Pombo referindo-se à missão evangelizadora dos jesuítas. Suas palavras contribuem
para a estabilização do DF, acerca do índio como portador de uma grande falta moral.
É realmente para admirar-se aquela grandeza moral com que uns quantos
homens, num momento de aflições para a consciência do mundo, vinham
assumir com tanta coragem a função de resgatar à barbaria toda uma família
humana que andava perdida. (POMBO, 1964, p. 84).
Acerca da terra brasileira Caminha se expressa classificando-a como
paradisíaca.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo
que é tanto, tamanho, tão basto e tantas prumagens,15
que homem as não pode
contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
(CAMINHA ibidem, p. 53).
Já sobre os índios, as informações prestadas ao rei, são de bases bem
depreciativas. Eles são o outro negativo, portadores de uma cultura de faltas e lacunas,
e é somente pelo fato da terra ser dadivosa, que os aborígines têm boas feições e boa
saúde.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui nem boi, nem vaca, nem cabra, nem
ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que acostumada seja ao
viver dos homens. Nem comem senão esse inhame, que aqui há muito, e dessa
semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isso andam tais
e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes
comemos. (CAMINHA ibidem, p. 54).
Esta descrição das terras descobertas como paradisíacas, presentes tanto nos
relatos de Colombo, quanto no de Caminha, remonta a uma tradição que vem da
literatura Greco-romana, demoninada locus amoenus, que se caracteriza, segundo
Fiorin, por apresentar a ―primavera eterna, pela amabilidade da natureza, em que se
encontram regatos, fontes, árvores, relvas macias, tapetes de flores, canto de pássaros,
sopro de vento e pela existência de bosques de árvores mistas‖ (FIORIN, In: BARROS,
2000, p. 28).
Não esqueçamos que os descobridores estavam motivados pela idéia
construída, ainda durante o feudalismo, de que ao navegarem para o Oeste e
atravessarem o Oriente, se chegaria ao paraíso terreal, e Portugal vivia a contradição
de capitanear os maiores avanços tecnológicos na área náutica daquele período, e, ao
15 Ferreira, organizador da obra explica que de tantas prumagens significa de tantas variedades.
mesmo tempo, era o condestável europeu da Contra-reforma e um bastião no combate
às idéias humanistas, seguindo firme uma legislação baseada nos pressupostos
teológicos da igreja romana.
Se do ponto de vista da cultura, Caminha descreve os índios como portadores de
faltas, do ponto de vista biológico ele os descreve como contemplados pelas benesses
da natureza, à moda dos animais silvestres.
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca
mais apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão
esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E
naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às
quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos
seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não podem mais ser.
(CAMINHA ibidem, p. 47).
Esta descrição metafórica aproximando os índios dos animais silvestres e
alimárias é parte do DF que justificará o projeto civilizador que mais tarde a coroa
portuguesa implantará no Brasil, no qual os missionários irão desempenhar papel
preponderante como catequizadores, e tendo na educação escolar uma estratégia
fundamental, como se verá mais à frente neste trabalho.
Mas a função primeira das viagens era a descoberta de matérias preciosas,
sobretudo minérios e, dentre estes, o ouro. Daí a insistência, tanto dos portugueses no
achamento do Brasil, quanto dos espanhóis na descoberta da América, para que os
aborígenes lhes revelassem a existência e localização das jazidas destes minérios.
Colombo queria encontrar ouro porque, segundo Todorov, ele era obcecado pela
vitória e expansão universal do cristianismo, como já vimos acima era o projeto da
igreja católica formulado durante o feudalismo, sendo, portanto, o almirante uma
espécie de Cruzado atrasado em alguns séculos, querendo libertar Jerusalém do
domínio árabe. Numa de suas cartas ao rei e à rainha de Castela ele diz que ―dentro de
sete anos disporia de cinqüenta mil homens a pé e cinco mil cavaleiros, para a
conquista da Terra Santa‖ (TODOROV, ibidem, p. 10).
Com o intento de fazer fortuna para financiar esta Cruzada, Colombo navega de
ilha em ilha observando se os índios usam peças confeccionadas em ouro e também os
interroga sobre a localização de minas.
Ele escreve em seu diário do dia primeiro de novembro de 1492 que chegando a
uma aldeia todos os índios fugiram e, aos poucos, eles vão retornando. O Almirante
ordena a seus marinheiros que não ―se tomasse nada, para que soubessem que ele só
procurava ouro, que chamam de ―nuacay‖ (COLOMBO, ibidem, p. 61). Em três de
dezembro o Almirante escreve que estando explorando um local muito aprazível, nas
cercanias de uma grande aldeia, de repente aparece um grupo de índios que a princípio
lhe mete medo. Mas nativos que viajavam com ele o tranqüilizam e dizem que o grupo é
pacífico, ao que Colombo ordena que ―lhes dessem guizos, anéis de latão e miçangas
verdes e amarelas, e eles se mostraram satisfeitíssimos, visto que não tinham ouro nem
qualquer pedra preciosa e que bastava deixá-los em paz‖ (COLOMBO, ibidem, p. 73).
Estas citações põem às claras que Colombo estava disposto a qualquer ato para obter
ouro. Parece que não ostentar adornos confeccionados com o minério era um salvo
conduto para os indígenas que se encontrassem com a expedição do Almirante.
A busca por minérios preciosos não é diferente em relação à expedição de
Cabral, conforme descreve Caminha em sua carta ao rei de Portugal.
Porém um deles pôs o olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a
mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia
ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a
terra e novamente para o castiçal como se também houvesse prata. /.../ Isso
tomávamos nós assim por o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as
contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho
havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera. (PEREIRA,
ibidem, p. 36-37).
Portugal e Espanha lançaram as bases do capitalismo moderno a partir da
pilhagem dos minérios levados da América e da exploração de outras riquezas de
origem mineral, além das vegetais e animais, sem contar a exportação e a utilização da
força de trabalho escrava dos índios nas lavouras, mineração, extração de Pau Brasil e
até na guerra contra invasores de outras nações européias que queriam disputar a
pilhagem e saqueio das riquezas brasileiras. Aliás, foi a ―colaboração‖ dos índios em um
episódio destes, a guerra contra os holandeses, que ensejou a criação do mito da
democracia racial brasileira. Mas antes da guerra contra os holandeses, em 1587, uma
invasão de piratas ingleses ao Recôncavo baiano, foi repelida por colonos comandados
por ―Cristóvão Cardoso de Barros e o jesuíta Cristóvão de Gouveia que mobilizou os
índios mansos, dos quais cuidava‖ (MACEDO, 1963, p. 10).
Parece que Portugal não se dera conta da importância da terra descoberta, por
Cabral que, seguindo a tradição católica de dar nomes aos lugares por eles
desconhecidos, como se estes já não os tivessem, mas o faziam porque era um ato, ao
mesmo tempo lingüístico e religioso, haja vista que a nominação configurava um
batismo, e este legitimava a posse, pois quem batiza é o pai, portanto este ato tinha o
simbolismo de determinar quem era senhor do lugar a partir do contato.
Assim é que Cabral dá o nome de ilha da Vera Cruz à nova terra descoberta,
mas talvez porque os portugueses já se encontravam há muito tempo explorando ouro,
escravos e tinham o monopólio do comércio de especiarias que importavam da Ásia e
África, não ligaram importância para aquele lugar que, devido o esquecimento, nem o
nome de Ilha da Vera Cruz pegara, predominando o nome Brasil, dado pelos
comerciantes.
Vera Cruz era uma lenda! A lenda dizia que, perdido em algum lugar, havia três
cruzes e, si se tocasse com elas num cadáver, a que ressuscitasse o morto seria a Vera
Cruz, quer dizer, a verdadeira cruz de nosso senhor Jesus Cristo.
O nome Brasil também carregava sentido transcendente, pois ele vem de uma
lenda céltica. Brasil é uma palavra irlandesa proveniente ―da antiguíssima raiz BRESS
que implica a idéia de BENÇAM e significa BOA SORTE ou PROSPERIDADE‖
(BARROSO, 2000, p.122). E o nome vem daí, pois os antigos cartógrafos, inclusive
Toscanelli, o preferido de Colombo, descreviam uma ilha – que ora localizavam ou
confundiam com ―a ANTILLIA, ora com a MONTORIO, ora com a ilha de SÃO
BRANDÃO, ora com a própria AMÉRICA‖ (BARROSO, ibidem, p.119) – que era
afortunada, uma ilha feliz, localizada em mares desconhecidos.
Por outro lado, buscando a etimologia da palavra Brasil no sânscrito, encontrar-
se-á o verbo Bhras, significando luzir, logo se atribuiu o nome Brasil à madeira tão
valiosa e cobiçada naquele momento pós-descoberta. E, como a atividade de extração
do Pau-Brasil tinha importância econômica, o nome com conotação comercial e lendário
ligado a fortuna e alegria que aquele produto propiciava aos comerciantes, prevaleceu
sobre o nome Ilha de Vera Cruz, de conotação religiosa e de base doutrinal católica.
Com a Espanha, ao contrário do que ocorreu com Portugal, que negligenciou a
colonização imediata do Brasil, o próprio Colombo alertou aos reis de Castela sobre a
importância de proteger a América16 da cobiça e invasão estrangeiras.
E digo que Vossas Majestades não devem consentir que aqui venha ou ponha
nenhum pé estrangeiro, salvo se for católicos cristãos, pois esse foi o objetivo e
origem do propósito, que esta viagem servisse para engrandecer e glorificar a
religião cristã, não se permitindo a vinda a estas paragens a ninguém que não
seja bom cristão. (COLOMBO, ibidem, p. 71)
Transcorreram-se 34 anos da descoberta, e sucedia à coroa enviar apenas
alguns degredados, bem como estimular as viagens de exploradores de Pau Brasil. E
foram estes que alertaram o perigo que Portugal corria de perder as terras para outras
nações que começavam a explorar as costas brasileiras.
Neste contexto de pouco fluxo de portugueses ao Brasil, não havia clima de
hostilidades contra os índios, isto só vai ocorrer no momento em que a coroa
portuguesa, temendo perder o controle sobre a terra descoberta, institui as capitanias
hereditárias em 1534, para promover a colonização do Brasil.
Nas cartas de doação constava, dentre os privilégios dos donatários das
capitanias, ―cativar gentios para seu serviço e de seus navios e o de mandar deles a
vender a Lisboa até trinta e nove (a uns mais que outros) cada ano, livres da sisa que
pagavam todos os que entravam‖. (BEOZZO, 1983, p. 13).
Sobre esta mudança é interessante o relato de quem a testemunhou do lado dos
índios, o ancião Momboré-uaçu, tupinambá da ilha de São Luís. Seu relato dramático
foi colhido pelo francês Claude d‘Abbeville e reproduzimos abaixo.
16 Cabral ao batizar o Brasil com o nome de Ilha da Vera Cruz seguia uma tradição que já fora adotada antes por Colombo que também batizou a nova terra por
ele descoberta com um nome religioso da tradição católica: São Salvador. Todavia, como o nome religioso dado pelos portugueses não vingou, ocorreu o mesmo
com São Salvador, que virou América em homenagem ao navegador Américo Vespúcio.
Vi a chegada dos portugueses em Pernambuco e Potiú (...). De início, os
portugueses não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa
época, dormiam livremente com as raparigas, o que os nossos companheiros
de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que
nós devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se
defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. E assim parecia que
desejavam que constituíssemos uma só nação. Depois, começaram a dizer que
não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus somente lhes
permitia possuí-las por meio do casamento e que eles não podiam casar sem
que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários paí [isto é, padres].
Mandaram vir os padres; e estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os
nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os paí podiam
viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. E, assim, se viram
constrangidos os nossos a fornecer-lhos. Mas não satisfeitos com os escravos
capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram
escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram que os que
ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região (ABBEVILLE, 1975
[1614], 115, apud MONTEIRO, Campinas 2001).
A convivência harmoniosa e a mistura étnica são características e, ao mesmo
tempo estratégias comuns às culturas indígenas, por isto o velho Momboré-uaçu diz
que o fato dos portugueses dormirem livremente com as moças índias, diferentemente
de se constituir em afronta, resultava honroso.
Este fato é diferente do caso relatado pelo fidalgo Michele de Cuneo que captura
e força uma relação sexual com uma indígena.
Estudos de etnólogos contemporâneos constatam que as trocas simbólicas são
características intrínsecas às culturas indígenas, como de resto o é em qualquer
cultura, como se observa na atualidade entre orientais japoneses, chineses e coreanos,
que chegam ao extremo de realizarem cirurgias plásticas para ficarem com olhos
semelhantes aos dos ocidentais.
Ocorre, conforme abordaremos mais à frente neste trabalho, que aos indígenas,
dada a condição de sujeito assujeitado que se lhes impõem, são obrigados a
assumirem uma condição de purismo cultural, que é impossível a qualquer grupo social,
sobretudo neste momento de globalização e, no caso do índio cujo projeto civilizatório
do europeu visava exatamente o apagamento e a conversão de suas culturas, é quase
impossível.
O etnólogo Peter Gow escreve sobre este tema, em relação às pesquisas que
realiza com os Piro, índios do Peru com aldeias no departamento de Iñapary, na
fronteira com Assis Brasil, no Acre. Esta etnia pertence à família lingüística Arawak, a
mesma a que pertencia os Taino, os primeiros índios que mantiveram contato com
Colombo, em 1492. Gow escreve o seguinte:
o estado ‗aculturado‘ dos Piro era uma transformação histórica e estrutural dos
regimes nativos ‗tradicionais‘, e mais que isso, que a transformação, enquanto
tal, era um processo inerente ao funcionamento destes regimes — regimes que
sempre tiveram a ‗aculturação‘ por origem e fundamento da ‗cultura‘, e a
exterioridade social por pólo em perpétuo movimento de interiorização (GOW,
2003, p. 14).
1.3. O OUTRO NEGATIVO AMERICANO COMO OBJETO DA CATEQUIZAÇÃO
EUROPÉIA
Nos séculos XVII e XVIII, com a colonização já estabilizada e a igreja mantendo
intensas atividades de catequese e educação escolar dos índios no Brasil, era ainda
forte a circulação dos mitos que embalaram os europeus, dando conta de animais
fantásticos. Só que os cronistas que difundiam a existência dessa fauna extraordinária
no país, atribuíam aos próprios índios a divulgação das informações. Simão de
Vasconcelos, missionário Jesuíta, biógrafo do padre José de Anchieta, registra o
seguinte:
Diziam que entre as nações sobreditas moravam algumas monstruosas. Uma é
de anões, de estatura tão pequena, que parecem afronta dos homens,
chamados guayazis.
Outra é de casta de gente que nasce de pés às avessas /.../ Chamam-se estes
mutuyus. Outra nação é de gigantes, de dezesseis palmos de alto,
valentíssimos, adornados de pedaços de ouro por beiços e narizes, aos quais
todos os outros pagam respeito: têm nome de coruqueans.
Finalmente que há outra nação de mulheres também monstruosas no modo de
que vivem (são as que chamamos ―amazonas‖, semelhantes às da Antiguidade,
e de que tomou o nome o rio) porque são mulheres guerreiras, que vivem por si
sós, sem o comércio de homens: habitam grandes povoações de uma província
inteira, cultivando as terras, sustentando-se de seus próprios trabalhos (SIMÃO
DE VASCONCELOS, APUD TAUNAY, 1998, p. 122-123).
Em notas sobre este texto, Taunay esclarece que todos esses mitos são de
ampla difusão pela Europa desde o século XVI, sendo que alguns remontam a Idade
Média e até a bíblia, de onde já referimos que procede a maioria das idéias que irão
constituir a FD que, para os europeus justificaria o Novo Mundo como um espaço
diferente, mas de estatuto inferior, o lugar do outro negativo e que deve ser
transformado para assumir a semelhança positiva do colonizador.
Além dos animais e dos homens americanos serem tratados como débeis, o
espaço americano também é tratado como inferior ao do Velho Mundo. E esta tese
ganha força com Buffon no século XVIII. Segundo Gerbi (1996) a importância deste
naturalista se desponta em relação a outros que o antecederam, e que admitiam pontos
de vistas que ele corrobora, porque suas proposições rivalizavam com as idéias
teológicas, e apresentavam argumento amparado em bases científicas e históricas.
Leiamos abaixo uma citação de Buffon acerca da natureza e do homem americanos.
Existe, portanto, a combinação dos elementos e demais causas físicas,
qualquer coisa oposta ao engrandecimento da natureza viva neste novo mundo:
há obstáculos ao desenvolvimento e talvez à formação dos grandes germes; os
mesmos que, sob a doce influência de um outro clima, receberam sua plena
forma e sua completa extensão, se restringem, se amesquinham, sob este céu
avaro e sobre esta terra desolada, onde o homem, em pequeno número, era
esparso, errante; onde, longe de usar este território como um mestre a seu
domínio, ele não possui qualquer império; onde, não tendo jamais submetido os
animais nem os elementos, não tendo domado os mares nem direcionado os
rios, nem trabalhado a terra, ele era, em si, somente um animal de primeira
classe e existia para a natureza apenas como um ser em conseqüência, uma
espécie de autômato impotente, incapaz de reformá-la ou auxiliá-la: ela o tinha
tratado menos como mãe que como madrasta recusando-lhe o sentimento de
amor e o vivo desejo de multiplicar-se; pois, ainda que o selvagem do Novo
Mundo possua a mesma estatura do homem de nosso mundo, isso não é
suficiente para que ele constitua uma exceção ao fato geral do apequenamento
da natureza viva em todo este continente. O selvagem é débil e pequeno nos
órgãos de reprodução; não tem pêlos nem barba, nem qualquer ardor por sua
fêmea: embora mais ligeiro que o europeu, pois possui o hábito de correr, é
muito menos forte de corpo; é igualmente bem menos sensível e, no entanto,
mais crédulo e covarde; não demonstra qualquer vivacidade, qualquer atividade
d‘alma; quanto à do corpo, é menos um exercício, um movimento voluntário,
que uma necessidade de ação imposta pela necessidade: prive-o da fome e da
sede e terá destruído simultaneamente o princípio ativo de todos os seus
movimentos; ele permanecerá num estúpido repouso sobre suas pernas ou
deitado durante dias inteiros (BUFFON, Apud GERBI, 1996, p. 20-21).
Um argumento desta natureza, defendido com esta ênfase, só poderia
apequenar o homem americano frente ao poderio de base imperial com que os
europeus tratavam os nativos e o espaço americanos. Poucas vozes, apenas para
confirmar a regra, houve que se opuseram a este discurso. E mesmo quando estas
vozes se levantaram contra a ordem colonial, foram caladas ou tiveram como era de se
esperar, pouca repercussão ou ainda terminaram convertidas, fazendo coro ao discurso
oficial.
Mas o interessante é que com todo o preconceito que salta aos olhos neste
argumento emitido pelo eminente cientista do século XVIII, na atualidade ele encontrará
ecos na tese defendida pela cientista americana Bety Meggers, e que teve bastante
difusão e influência nos meios acadêmicos nos anos de 1970 e 1980. Segundo esta
eminente antropóloga e arqueóloga, a Amazônia é um inferno verde, cujas limitações
de recursos naturais, incapacitaram aos contingentes humanos que a habitam, o
desenvolvimento técnico e sócio-cultural que outros espaços americanos propiciaram
às suas populações. Sua tese ampara-se na oposição entre a Amazônia e as zonas
temperadas, mostrando como estes ecossistemas são superiores ao ecossistema
amazônico.
A idade geológica aliada à temperatura quente e às chuvas pesadas são
responsáveis pela extraordinária infertilidade do solo amazônico. Em contraste
com as zonas temperadas, onde o intemperismo físico é o processo primário na
formação dos solos, o intemperismo químico predomina nos trópicos. A água
quente de chuva se infiltra no solo dissolve os minerais solúveis e os carrega
através do subsolo e, por fim, para dentro dos rios. Quanto mais longo é o
processo, tanto mais empobrece a camada superior do solo, até que nada mais
resta, a não ser os elementos insolúveis. (MAGGERS, 1987, p. 36).
Pode até ser que do ponto de vista físico-químico acerca da composição do solo
amazônico e do regime pluvial e fluvial, as suposições da Dra. Maggers estejam
corretas, mas ao transpor esta teoria para a aplicação antropológica e concluir que
estas condições contribuíram para inviabilizar o desenvolvimento de uma cultura
superior na Amazônia, faz aproximar seu argumento ao de Buffon, sendo que o deste
foi formulado num momento em que a ciência ainda engatinhava, num momento de pré-
ciência.
O que sucede com a Amazônia, e que a Dra. Maggers mesma constatará em
sua pesquisa, é que os contingentes humanos que nela habitam deste tempos muito
remotos, desenvolveram formas adaptadas para sobreviverem na região, e
sobreviverem sem passarem grandes necessidades e sem sofrerem catástrofes sociais
advindas da suposta inferioridade das condições ecológicas do meio-ambiente
amazônico.
Um dos argumentos que a Dra. Maggers e outros seguidores de sua tese
defendem é o de quê esta inferioridade amazônica é responsável pelo não
desenvolvimento de sociedades complexas, como ocorreu com os Incas uma civilização
que floresceu próximo da Amazônia. A professora Berta Ribeiro (1995, p. 205), diz que
estratégias como
manutenção de pequenos estabelecimentos que minimizam o impacto da
exploração humana sobre peixes, mamíferos aquáticos, quelônios, caça
terrestre e arborícola; dispersão da comunidade ao invés do seu
amontoamento; pequena taxa de incremento populacional através da contenção
de natalidade
dentre outras fazem parte de uma opção consciente dos índios para não saturarem e
exaurirem o meio ambiente.
O discurso oficial neste início de século XXI, proferidos por políticos, pela grande
imprensa e por empresários do campo, sobre a expansão do agronegócio na região
Amazônica se baseia em argumento perigosamente semelhante ao de Buffon,
sobretudo no que diz respeito à capacidade do habitante autóctone da região, o índio,
que é descrito por estes agentes sociais como seres incapazes de fazer desenvolver o
potencial produtivo amazônico, e que o governo deveria flexibilizar as formas de
expropriação das terras sob controle indígena. Aliás, o argumento de Buffon que
transcrevemos abaixo, parece tirado de um documento de fazendeiros ou de uma
reportagem da imprensa simpática ao agro business.
Tudo parece coincidir em provar igualmente que a maior parte dos continentes
da América era terra nova, ainda fora do alcance de mão humana e na qual a
natureza não teve tempo de estabelecer todos os seus planos, nem de se
desenvolver em toda a sua extensão; que os homens são frios e os animais
pequenos porque o ardor de uns e a estatura de outros depende da salubridade
e do calor do ar; e que dentro de alguns séculos, quando tiverem arroteado as
terras, abatido as florestas, regularizado os rios e contido as águas, esta
mesma terra passará a ser a mais fecunda, a mais sã, a mais rica de todas,
como já parece sê-lo em todas as partes onde o homem a trabalhou. (BUFFON,
ibidem, p. 27).
Como se pode inferir facilmente pelas citações acima, há uma FD na qual os
interdiscursos da atualidade se nutrem, para justificar as agressões aos indígenas, com
o intuito quase sempre velado de lhes expropriar as terras e, feito isto, ficam feridos de
morte, pois a terra é fundamental para a sobrevivência física e cultural destas
populações remanescentes.
Os Discursos de base desta FD serão reforçados pela implantação da educação
escolar a partir do estabelecimento da colonização, tanto na porção portuguesa da
América, quanto na parte sob domínio espanhol, que a utilizarão como agência de
transição cultural contra os indígenas.
A igreja portuguesa que irá operacionalizar a educação escolar para os
indígenas a partir da implantação da colonização do Brasil, será dominada por um
sentimento de Cristandade, que, como escreve Azzi (ibidem p. 227), ―tratava-se da
revivescência de uma concepção de igreja que perdurou durante a Idade Média na
Europa ocidental‖. Esta concepção guardava estreitas relações com a história de
Portugal, história marcada por uma ocupação árabe que remontava ao século VII, da
qual só conseguirá a independência e reunificação a partir do século XI, quando o
príncipe Afonso Henriques assume o condado de portucalence em 1128.
Com a independência portuguesa, o país emerge a partir do século XV como
potência econômica, pois é ele que domina o monopólio do comércio de especiarias,
além de participação significativa nos lucrativos negócios com a exploração do ouro e
do tráfico de escravos da África. A ascensão portuguesa ao topo do comércio só foi
possível em razão dos investimentos e da proteção da coroa, e da bênção da igreja,
aliás, naquele período uma e outra se confundiam.
Um fator interessante que irá facilitar os trabalhos de evangelização no Brasil é a
instituição do Padroado. Este consistia em transferir para a coroa portuguesa poderes
plenipotenciários, mas que, ao mesmo tempo a obrigavam a arcar com todas as
despesas dos trabalhos de evangelização, bem como a escolha de bispos e párocos, a
remuneração dos missionários e a manutenção dos templos. Esta aparente capitulação
da igreja romana ao poder temporal dos monarcas era uma estratégia para garantir que
nas novas terras descobertas haveria o monopólio da fé católica, uma vez que na
Europa fervilhava a reforma e com ela perdia-se fies a mancheias para o
protestantismo. Era, no fundo, a operacionalização do velho ditado que diz: vão-se os
anéis, mas se conservarem os dedos.
Esta aliança entre a cruz e espada não constrangia em nada a alta hierarquia da
igreja, cuja atividade pastoral, como estamos vendo, era totalmente subserviente à
coroa portuguesa. Para a igreja, a coroa, era na verdade a condutora do novo povo de
Deus, pois se acreditava que Portugal era um novo Israel, portanto acompanhar os
descobridores para além dos estreitos limites que era a Europa naquele momento
significava expandir o reino de Cristo e impô-lo a novas gentes por todos os meios,
inclusive pela espada, uma vez que prevalecia uma concepção maniqueísta cujo
pressuposto principal era a idéia que se estava vivendo uma batalha entre o bem e o
mal, entre Deus e o Diabo, portanto o soldado, assim como o missionário, eram ambos
combatentes de uma causa justa, ambos concorriam para a implantação do reino de
Cristo na terra. Discurso muito semelhante ao que sustentou as Cruzadas, pois que
amparado na mesma FD, conforme já referimos acima.
Pela prevalência desta visão maniqueísta, os missionários consideravam os
índios como praticantes de cultos diabólicos aos quais deveriam conjurar, juntamente
com a proclamação de que suas crenças eram falsas. Isto tinha que ser feito para
poderem adentrar ao reino de Cristo. Muito ilustrativo deste pensamento maniqueísta é
o comentário do Frei André Thevet (apud AZZI, ibidem, p. 126):
Esta região era e ainda é habitada por estranhíssimos povos selvagens, sem fé,
sem lei, religião e civilização alguma, vivendo antes como animais irracionais,
assim como os fez a natureza, alimentando-se de raízes, andando nus tanto os
homens como as mulheres, à espera do dia em que o contato com os cristãos
lhes extirpe esta brutalidade, para que passem a vestir-se, adotando um
procedimento mais civilizado e humano.
Este ponto de vista do indígena como inocente, sem religião à espera do contato
com os cristãos, já está presente em Colombo, conforme está expresso neste
pensamento extraído de seu diário: ―Estas gentes não são de nenhuma seita, nem
idólatras, sim muito mansos e ignorantes do que é o mal, não sabem matar-se uns aos
outros‖ (TODOROV, ibidem, p. 42). No entanto, esta apreciação pretensamente
benevolente de Colombo, não impediu a intransigência de Bartolomeu, seu irmão,
contra alguns índios que são por ele julgados como hereges. Leiamos abaixo o relato:
Depois de terem deixado a capela, esses homens jogaram as imagens ao solo,
cobriram-nas com um punhado de terra e urinaram sobre elas, vendo isto
Bartolomeu, irmão de Colombo, decide puni-los como cristão: Como lugar-
tenente do vice-rei e governador das ilhas, levou aqueles homens maus à
justiça, e, uma vez definido o crime, fez com que fossem queimados em público.
(TODOROV, ibidem, p. 42).
Por sua vez, os primeiros missionários a chegarem ao Brasil adotaram uma
atitude de simpatia e acolhimento de alguns aspectos da cultura indígena, embora
nesta atitude estivesse presente uma tática cuja estratégia era a transição cultural pela
conversão do índio à fé católica, mas ela ainda não era uma tática de negação cabal da
cultura indígena, nem de hostilização. O padre Manuel da Nóbrega vai com dois padres
recém chegados ao Brasil para Pernambuco e, como estes não sabiam falar a língua
dos nativos usa a estratégia de selecionar 100 (cem) jovens índios aos quais com ajuda
de intérpretes se ensinou a doutrina e estes à repassaram para aos demais.
Ao chegar ao Brasil em 1553, o padre José de Anchieta, ainda muito jovem e
estudante de teologia, inicia a pesquisa para aquisição da língua tupi e passa a compor
hinos e canções sagradas para doutrinar os meninos indígenas, bem como compõe
historietas e cantos bíblicos, com a mesma motivação doutrinária.
Um século após estes episódios, o padre Antônio Vieira, que é sabidamente um
protetor dos índios contra a sanha violenta dos colonos que os desejavam escravizarem
a todo o custo, por ocasião de sua passagem pela região Norte, entre 1658 e 1660,
quando era visitador apostólico do Maranhão, sugere a seus súditos, o seguinte, acerca
da educação dos índios, que implica a negação da cultura indígena e sua transição
para a cultura ocidental:
/ ... / a escola depois da doutrina da manhã, aonde aos mais hábeis se
ensinarão a ler e escrever‖; havendo muitos estudantes se instruirá a ―cantar e
a tanger instrumentos‖, para os ofícios divinos, e, havendo poucos, ―se ensinará
a todos a doutrina cristã.‖ Essa instrução seria feita pelo padre ou pelo seu
companheiro, ou até mesmo um ―moço dos mais práticos na doutrina e bem
acostumado‖. À tarde, ―antes do por do sol‖, haveria novamente doutrina,
―sendo obrigados a vir os meninos e meninas, como (era) de costume‖.Após a
doutrina, os meninos sairiam em ordem‖e dariam ―a volta a toda a praça da
aldeia, cantando o credo e mandamentos‖. No caso de haver ―alguns mais
rudes‖, deveriam os padres listá-los ―para que (fossem) particularmente
ensinados‖ na doutrina. (CHAMBOULEYRON, 2007, p. 78).
A esta prática de aprender a língua indígena, que guarda alguma semelhança
com o bilingüismo praticado atualmente pela EEIID e B, somava-se uma atitude de
tolerância para com alguns aspectos da cultura indígena.
Continuavam os meninos órfãos do colégio da Bahia e os índios da casa, para
mais facilmente captar os corações dos índios juntar às suas canções à moda
de Portugal cantigas indígenas, enterrar os mortos com música, e cortar o
cabelo à moda da terra... Na verdade, entre a vida americana e o cristianismo
que principiava, era mister uma ponte. Nóbrega e seus padres lançaram-na
destramente. Era a adaptação ao meio em que exerciam a sua atividade.
Adaptação ao secundário e ao externo, para a conquista do essencial do
espírito. (SERAFIM LEITE, apud AZZI, ibidem, p. 90).
Esta atitude aparentemente tolerante, na verdade estava carregada de intenções
não confessadas, como muito bem o revela o próprio texto. Mesmo assim esta prática
pedagógica durou muito pouco. Se analisarmos bem, e é o que faremos nos outros
capítulos desta dissertação, esta prática inicial dos jesuítas é muito parecida com a
idéia de interculturalidade, presente na atual EIID e B, mas reconhecemos que nesta
não há a intenção (explícita) de conversão cultural.
A experiência pedagógica de interculturalidade jesuíta é interrompida com a
vinda de dom Pedro Fernandes Sardinha que era, pelo instituto do Padroado,
representante da coroa portuguesa, e não aceitava que a conversão fosse só da fé; era
preciso que esta estivesse casada à adesão aos costumes da cultura portuguesa. Para
este prelado defensor da ortodoxia católica, segundo Azzi (ibidem, p. 92), ―a conversão
só podia ser feita nos moldes do luso-cristianismo‖. O bispo era mesmo intransigente, e,
para ele, tinha que ficar muito bem demarcada não somente a superioridade da fé
católica e da cultura lusitana, como também a oposição destas em relação às
manifestações bárbaras dos índios. Ele então faz uma dura repreenda ao padre Manoel
da Nóbrega, por este colocar os órfãos portugueses para conviverem com os índios,
dizendo que veio ao Brasil não para fazer dos cristãos gentios, mas para tornar os
gentios cristãos, e que não admitiria que os portugueses casados com índias não as
ensinassem o idioma português, porque enquanto elas falassem aquela língua bárbara
não deixariam de ser gentis.
A integração dos padres aos aborígenes, como já nos referimos acima, embora
fosse uma tática para alcançar o objetivo estratégico da conversão das almas dos
índios, encolerizava o bispo.
Esta atitude em relação à catequese dos indígenas colocava em impasse, de um
lado a alta hierarquia católica e os administradores leigos da coroa e, de outro, os
missionários responsáveis pela catequese dos índios.
Mas o impasse se resolveu a favor da hierarquia e dos administradores da coroa,
e não podia ser de outra forma, haja vista que a catequese era a vanguarda do projeto
de colonização, isto é, cada tribo convertida significava mais terras ao dispor da
exploração agrícola lusitana, ou para o extrativismo das drogas do sertão, se a empresa
ocorresse na Amazônia. Já para a igreja o avanço da catequese significava a expansão
da fé católica, portanto os missionários não tinham mesmo alternativas que não fosse
concordar com seus superiores, tanto os clérigos quanto os leigos. Era este o clima
cultural predominante: o da submissão da igreja à coroa, ainda mais que ela era a
responsável pela aplicação de penalidades contra os dissidentes dos preceitos da
doutrina católica. Por intermédio da Santa Inquisição, ela concentrava poderes que lhe
assegura o direito de aplicar punições severas, prescrevendo castigos que iam da
tortura à pena de morte na fogueira. Tanto missionários clérigos ou leigos que fossem
recalcitrantes em aceitar os ditames da doutrina e da fé católicas, poderiam ser julgados
incrédulos e condenados a estes castigos.
De 1534 a 1755 haverá alternância de liberdade e cativeiro impostos aos índios
bem como a predominância dos missionários na função civilizacional dos nativos
americanos, que se efetivava por meio da educação escolar.
O primeiro decreto, como já foi referido neste trabalho, foi a Lei de concessão
das Capitanias Hereditárias, que dava aos donatários direito para aprisionar os índios e
até exportá-los para Europa como escravos.
O padre Manuel da Nóbrega, em 1557 se escandalizou e faz duras e severas
críticas a colonos, autoridades civis e eclesiásticas, e até a outros clérigos que
praticavam, ou que eram coniventes com a prática de escravização dos índios. Mas ele
também se rende a esta lógica e vai mais além, escrevendo ao Rei sugerindo um
tratamento mais radical no processo de subjugação dos índios. Eis abaixo seus
argumentos:
Este gentio é de qualidade que não se quer por bem se não por temor e
sujeição, como se tem experimentado, e por isso, se S.A., os quer ver todos
convertidos, mande-os sujeitar /.../ e não sei como se sofre a geração
portuguesa, que entre todas as nações é a mais temida e obedecida, estar por
toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do
mundo. (SERAFIM LEITE, ibidem, p. 14).
Uma lei do Rei dom Sebastião de 20 de março de 1570, proibia a escravização
de índios salvo: i)―os que fossem aprisionados em guerra justa autorizada pelo Rei ou
pelo Governador e; ii)os que assaltavam colonos e outros índios para os comerem‖
(AZZI, ibidem, p. 16-17).
No entanto, estes preceitos legais nunca serão obedecidos à risca pelos colonos
que, à revelia e apesar dos jesuítas continuarão aprisionando os índios. Neste contexto
criam-se as Bandeiras que são expedições organizadas com a finalidade de aprisionar
índios. Os bandeirantes invadem as missões jesuíticas e levam à força e à revelia dos
protestos dos padres, todos os índios que nelas viviam e os vendem como escravos
para suprir as necessidades e demanda por força de trabalho nos centros de produção
mais desenvolvidos da colônia.
Com a criação da Província do Maranhão e Grão-Pará diretamente sob controle
de Lisboa, se estabelece um clima de conflitos entre os colonos e os jesuítas na
Amazônia, pois estes se tornaram, além de missionários, grandes empreendedores,
responsáveis por negócios não religiosos, acumulando grandes fortunas, que seus
concorrentes atribuíam ao fato deles possuírem o monopólio da força de trabalho dos
indígenas, e impedirem seu acesso aos leigos, missionários de outras ordens religiosas
e aos clérigos.
Quem comandava a capitânia era Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão
do marques de Pombal, grande mandatário de Portugal, que autoriza o irmão a redigir o
diretório dos índios, o qual é lavrado em 1757.
O diretório além de caçar os direitos dos Jesuítas de manterem missões
indígenas, os expulsava do Brasil e pregava, dentre outras, as seguintes instruções a
cerca de como deveria ser o procedimento em relação à educação dos índios a partir
de então:
Art. 6.º Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que
conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu
próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes
para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e
ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso
da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a
veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando, pois todas as
nações polidas do mundo este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se
praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores
estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção
verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os Índios de todos
aqueles meios, que podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara
sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar este perniciossímo
abuso, será hum dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas
respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo
algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos
aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da Língua
própria de suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa
na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas Ordens, que até
agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.
Art. 7.º E como esta determinação é a base fundamental da Civilidade, que se
pretende, haverá em todas as Povoações duas Escolas públicas, uma para
Meninos, na qual se lhes ensine a Doutrina Católica, a ler, escrever, e contar na
forma, que se pratica em todas as Escolas das Nações civilizadas; e outra para
as Meninas, na qual, além de serem instruídas na Doutrina Cristã, se lhes
ensinará a ler, escrever, fiar, fazer renda, costura, e todos os mais ministérios
próprios daquele sexo.
Art. 8.º Para a subsistência das sobreditas Escolas, e de um Mestre, e uma
Mestra, que devem ser Pessoas dotadas de bons costumes, prudência, e
capacidade, de sorte que possam desempenhar as importantes obrigações de
seus empregos, se destinarão ordenados suficientes, pagos pelos Pais dos
mesmos Índios, ou pelas Pessoas, em cujo poder eles viverem, concorrendo
cada um deles com a porção, que se lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em
efeitos, que será sempre com atenção à grande miséria, e pobreza, a que eles
preferentemente se acham reduzidos. No caso porém, de não haver nas
Povoações Pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderão estas
até a idade de dez anos serem instruídas na Escola de Meninos, onde
aprenderão a Doutrina Cristã, a ler, escrever, para juntamente com as infalíveis
verdades da nossa Sagrada Religião adquiriam com maior facilidade o uso da
Língua Portuguesa. (Diretório dos Índios de 1757, In: BEOZZO, ibidem, p 3-4.)
Esta é sem dúvida a primeira lei que estabelece a laicização do ensino indígena,
antes mesmo que isto seja concedido aos não-índios. Todavia se percebe o mesmo
objetivo estratégico de permitir a transição cultural indígena, e a expropriação de suas
terras, com a sua conseqüente escravização. Salvo este caráter laicizante da lei, quase
tudo parece igual ao que os jesuítas até então desenvolviam na
evangelização/educação dos índios. Mas o Diretório, dentre outras trouxe uma
agravante em relação à legislação anterior, que foi a privatização da educação
indígena. Se com os jesuítas o pagamento pela escola se fazia de maneira indireta,
pelo repasse de dinheiro por parte da coroa e pela concessão de outros privilégios,
como a autorização para que os índios prestassem serviços nas missões, com a
instituição do Diretório eles continuariam trabalhando, com certeza muito mais que com
os jesuítas, e ainda teriam que pagar pela educação que iria propiciar o apagamento de
suas culturas e a transição para uma cultura mestiça, ou cultura cabocla, como esta é
denominada na Amazônia.
O Diretório é explicitamente uma lei anti-indígena, que tripudiava e depreciava a
cultura dos índios para além do que os missionários houveram ousado fazer até então.
Nas determinações do Diretório está expressa a máxima de que só quem tem
escrita tem história. E esta escrita tinha que ser numa língua civilizada, não se
consentia o uso da língua própria das nações indígenas, ou da chamada língua geral.
Somente na Língua Portuguesa era permitido se cumprir o intento civilizacional. É que
Deus fala a seu povo pela escrita de sua palavra na Bíblia, então quem não tem escrita
e nem história, também não tem religião e nem Deus. E o discurso dos que redigiram e
implementaram o Diretório era o da salvação destes gentios. Tarefa que no início da
colonização, quando ainda não era tão grande a disputa pela força de trabalho dos
indígenas, os jesuítas realizaram de maneira exemplar, como se pode deduzir nesta
consideração de Pombo acerca do padre Anchieta: ―E dali em diante, até 1597, quando
falece, não teve mais um dia de descanso este homem extraordinário, vivendo de
aldeia em aldeia a amparar o bárbaro, e acudindo a toda parte a proteger os colonos e
a defender a terra‖ (POMBO, ibidem, p. 85).
Percebe-se uma clara inversão na posição de quem é agressor e quem é
agredido. O colono que expropriou o indígena é tido como merecedor de defesa por
parte do missionário. Já o índio é objeto da compaixão do mesmo missionário porque é
um bárbaro, um carente de civilização.
Com o fim da colonização e a instituição da monarquia, as políticas indigenistas
e, sobretudo a política de aldeamento missionário, continuará a ser praticado por outras
ordens religiosas, como os franciscanos que atuavam no Nordeste Brasileiro, mais
precisamente no Estado de Sergipe, cujo trabalho missionário/educativo proporcionou
aos latifundiários, com o auxílio dos representantes do poder político local,
expropriarem as terras dos índios Xocó no século XIX. Esta etnia até hoje, quase 200
anos após aquele processo, continua lutando para reaver e restabelecer os direitos
sobre as terras de seus ancestrais.
Este caso, por seu caráter ilustrativo, merece uma menção.
No século XIX a política indigenista do Estado monárquico consistia em aldear os
índios em missões, onde os padres e professores leigos faziam um trabalho de
proselitismo. Esses agentes, periodicamente, enviavam para o presidente da província,
relatórios dando conta dos acontecimentos nas aldeias/missões. Esses relatórios eram,
na verdade, censos em que se registravam nominalmente os habitantes das
aldeias/missões por idade, sexo e cor, sendo que neste item distinguiam-se brancos,
pardos, negros e índios.
A partir da análise desses relatórios, o poder público construiu a tese da mistura
racial, pela qual, ao cabo de algum tempo concluiu que não havia mais índios na
província de Sergipe. A igreja que trabalhava pela evangelização dos Xocó protestou
contra esta posição do Estado e argumentou a favor da continuidade da existência de
índios na província. Esta contestação por parte da igreja gerou um conflito que
culminou na expulsão dos padres das aldeias/missões.
O argumento defendido pelo Estado monárquico para justificar o decreto que
dava como veredicto da inexistência de índios na província, era que as populações
dessas aldeias/missões falavam português, liam e escreviam nesta língua, estavam
convertidas ao catolicismo e não tinham mais os costumes dos ancestrais em práticas
de produção agrícola, caça, pesca, etc.
Esta forma na maneira de perceber o índio como portador de uma cultura que
deve ser suprimida e que ao sê-lo, priva-o de direitos territoriais, foi moldada, como
discorremos neste capítulo, a partir de uma FD que se criou com as narrativas dos
mitos fantásticos correntes na Europa desde a Idade Média, e que davam conta de
lugares desconhecidos, ora apavorantes, ora paradisíacos, habitados por seres
monstruosos e disformes. Ao chegar à América, o europeu se depara com uma
natureza e homens deslumbrantes. Mas era preciso recriar aquele espaço que era novo
para ele, mas que já era habitado por alguém que o antecedeu. A solução encontrada
foi a re-criação espacial via ato discursivo.
A primeira providência foi a re-nomeação desse espaço com nomes que
refletissem a cultura do colonizador. Complementando este ato, funda-se um discurso
depreciativo sobre o novo espaço e seus habitantes, que terá por base aquela FD
gestada pela igreja católica em plena maturação da Idade Média, no século XI, quando
esta institui a idéia da criação de um Império Ocidental Universal, a partir da oposição
entre Ocidente e Oriente, sendo este o negativo daquele.
Esta FD será a base do DF que se criará sobre a América como lugar a ser
positivado pela civilização ocidental e, por ocasião dos descobrimentos operar-se-á a
permuta do outro negativo externo da Europa, que deixará de ser o muçulmano e
passará a ser o índio das Américas. Nos dias atuais esta FD perdura e continua sendo
norteadora – complementada pelos interdiscursos mais conveniente para a ocasião e
para o agente interpelador do sujeito indígena, este quase sempre tido como uma
coletividade homogênea – de muitas políticas que se aplicam às etnias remanescentes,
nos dias atuais.
Este será o fulcro de nossa análise nos próximos capítulos desta dissertação,
examinando em que extensão esta FD alimentou ou alimenta aspectos da EEIID e B,
que é oferecida aos indígenas brasileiros pelo Estado em parceria com segmentos da
chamada sociedade civil ou ONG‘s.
ENFRENTANDO O OUTRO NEGATIVO NA AMAZÔNIA SUL
OCIDENTAL
O Amazonas é uma esperança; deixando as vizinhanças do Pará penetra-se no
deserto. (TAVARES BASTOS, apud CUNHA, 2003).
2.1. NÃO HAVIA ACRE PERTURBANDO OS ÍNDIOS NAS TERRAS SUL-
AMAZÔNICAS
Como tratado no capítulo anterior, a exploração da Amazônia pelos portugueses
só chegara ao Pará e seu entorno, atingindo uma pequena parte do Amazonas a partir
de 1621 quando foi instituído pela Coroa portuguesa o Estado do Maranhão e Grão-
Pará ―como unidade administrativa separada do Brasil e ligada diretamente a Lisboa‖.
(FARAGE, 1991, p. 23).
Desta forma até a segunda metade do século XIX, não havia nas terras do Sul
amazônico, sobretudo no território em que se formou o Estado do Acre, uma ocupação
permanente por parte de populações não-indígenas, quer fossem brasileiras, peruanas
ou bolivianas.
A fixação de populações não-índias naquele local só ocorrerá a partir do dia três
de março de 1878, quando o cearense João Gabriel de Carvalho chega à região com
sua extensa família e vários agregados subindo de canoa à remo e varejão17 desde um
ponto já conhecido do rio Purus por brasileiros. Daquele ponto, até onde o emigrante
criou o primeiro núcleo povoado em terras hoje acreanas, com a denominação de
Anajás, era até aquela época um local considerado como terra de índios (TOCANTINS,
2001 p.180).
17
O varejão é uma vara comprida que os moradores ribeirinhos da Amazônia utilizam para auxiliar na navegação por ocasião dos períodos de seca dos rios. O
varejador fica em pé na popa da canoa, mergulha esta vara na água e faz força impulsionando-a para frente.
Como vimos tratando neste trabalho há uma FD cuja base é a negação ou a
negativação do índio. Mesmo autores que descreveram, até com certa injúria, as
mazelas praticadas contra os indígenas, não deixam de expressar em seus discursos,
ou a negação ou a negativização de certos atos ou modos de ser dos indígenas. Isto é
observável no exemplo que transcrevemos abaixo, extraído de Cunha (1998, p.124) e
que demonstra como o discurso se impõe ao sujeito, como este não é livre para fazer
as escolhas, como bem o demonstra o pensamento de Foucault na obra Ordem do
discurso, já referido no capítulo anterior.
Vamo-nos ao exemplo de Cunha.
Os Cashibos18
têm no próprio nome a legenda de sua ferocidade. Cashi,
morcegos; bo, semelhante. Figuradamente: sugadores de sangue. Ainda nos
seus raros momentos de jovialidade aqueles bárbaros assustam, quando o riso
lhes descobre os dentes retintos do sumo negro da palmeira chonta, ou
estiram-se de bruços, acocorados com o chão, as bocas junto à terra, ululando
longamente as notas demoradas de uma melopéia selvagem. Atravessaram
indenes na bruteza, 300 anos de catequese; e são ainda a tribo mais bravia do
Vale do Ucaiale.
Os etnônimos dos grupos indígenas com termos pejorativos, geralmente não são
autodenominações, eles podem ter sido atribuídos pelo próprio europeu, ou por um
grupo indígena rival, como no caso desta etnia e também dos chamados grupos
Tapuias, denominação atribuída pelos Tupi aos grupos rivais e cuja tradução seria ‗os
bárbaros‘. Estes etnônimos pejorativos têm por função depreciar ou disseminar o
preconceito contra o grupo assim denominado. No caso dos Casshibos, se junta ao
nome costumes de uma cultura autóctone que o ―civilizado‖ desconhece desaprova,
então estes estranhos costumes só poderiam ser taxados de ―melopéia selvagem‖. Esta
atitude é típica de uma mentalidade etnocêntrica, pois avalia a cultura do outro tendo
como centro, como certa e como superior a sua própria.
18 Não confundir os Cashibos com os Kaxinawa, a etnia mais numerosa atualmente presente no Acre, com uma população de mais de 4000 indivíduos. O nome
Kaxinawa foi dado pelos regionais, e é uma palavra pejorativa. Kaxi significa morcego, e Nawa, povo, portanto povo morcego. A etnia se autodenomina pelo
etnônimo Huni Kuĩ, que quer dizer povo verdadeiro. Os Cashibos atualmente não têm aldeias no Brasil.
Esta mentalidade foi adequada para justificar a ocupação de um território que
embora densamente povoado por numerosas etnias indígenas fosse considerado como
deserto, e objeto de intensa disputa litigiosa envolvendo três nações: a brasileira, a
boliviana e a peruana. Nenhuma delas considerava qualquer possibilidade de
reconhecimento de direitos às dezenas de etnias já presentes no território, e que
constituíam uma população estimada, segundo Calixto et all, (1985 p.16), em cerca de
60.000 (sessenta) mil habitantes.
Das três nações que disputavam a hegemonia sobre o território é sabido que a
primeira não tinha qualquer direito legal na disputa, pois conforme chancela
estabelecida por meio de Tratados Hispano-Portugueses, como o de Madrid de 1750, o
de Santo Ildefonso de 1777 e o de Badajoz de 1801, os signatários destes tratados do
lado brasileiro reconheciam como pertencente à pátria boliviana os direitos sobre o
território em litígio.
O acerto mais recente à época fora o Tratado de Ayacucho firmado em 1867,
mas que os governantes do Amazonas questionavam, argumentando que ele não era
claro em relação ao estabelecimento das fronteiras físicas entre Brasil e Bolívia. Na
verdade esta fronteira continuava sendo quase a mesma desde o tratado de Madri, ou
seja, uma paralela entre os rios Javari e o Madeira.
No entanto, dada à esperteza dos sucessivos governadores do Amazonas que,
segundo Coelho (1982, p. 41), a partir de 1852, portanto bem antes da assinatura do
tratado de Ayacucho, já havia incorporado a área anexando-a como parte de sua
província, integrando a antiga comarca do Rio Negro, quando somente mais tarde a
área passaria à jurisdição brasileira como Território Federal do Acre.
Somando-se a esta esperteza dos governantes do Amazonas, o interesse
econômico das casas aviadoras de Belém e Manaus e a habilidade da diplomacia
brasileira, notadamente a do Barão do Rio Branco, o resultado foi a vitória do Brasil na
contenda, pondo termo a uma disputa que, no final do século XIX e início do XX,
passou à história como ―A Questão do Acre‖.
A partir de 1903, com a celebração do Tratado de Petrópolis, a área passou
definitivamente ao domínio brasileiro.
Os índios desta porção amazônica serão hostilizados sistematicamente primeiro
com a implantação da exploração do caucho (castiloa elástica) por caucheiros
bolivianos e peruanos. Este processo foi de uma crueldade extrema contra os índios, e
esta crueldade tem uma reedição quando a partir da década de 1870 a atividade de
extração do caucho entra em declínio e se inicia a ascensão da exploração da seringa
(hevea brasiliensis) por parte dos brasileiros.
Cunha (ibidem, p.99) registra no relato que transcreveremos abaixo, o horror que
passa a vigorar com a entrada dos seringalistas brasileiros em cena, intensificando
ainda mais a violência contra os indígenas. É que exauridos os cauchais de Ucayali e
Madre de Deus, os seringalistas estabelecem uma aliança com os caucheiros peruanos
e bolivianos, na qual cedem à exploração os cauchos ainda existentes nos seringais do
Juruá e do Purus em troca da pistolagem contra os índios.
A civilização, barbaramente armada de rifles fulminantes, assedia
completamente ali a barbaria encantoada; os peruanos pelo ocidente e pelo sul;
os brasileiros em todo o quadrante de NE; no de SE, trancando o vale do
Madre-de-Dios, os bolivianos.
O território considerado como deserto – pois como estamos abordando há uma
FD que desconsidera o índio como elemento dotado de direitos, uma vez que ele é o
outro negativo, a quem cabe o homem ocidental positivar – é sabidamente um território
plenamente povoado por várias nações indígenas19.
Os brasileiros, peruanos e bolivianos convertidos a idéia de Estado nação tinham
outras referências sobre territorialidade e estavam, como já nos referimos, disputando
um espaço que então era marcado pela contestação dos limites firmados e legalizados
com base em acordos internacionais bilaterais.
A região, desde meados do século XVIII, era destino de viagens realizadas por
brasileiros, peruanos e europeus, com as mais diversas finalidades, como as
empreendidas por missionários radicados no Peru que desciam os rios Purus e o Juruá
em busca de almas indígenas para a conversão; a de seus colegas radicados no Brasil
19 Nação no sentido de coletividades que tinham uma noção geográfico-territorial, sentimento de união, identidade de língua e modos culturais próprios de lidar
com o mundo material e imaterial.
que subiam os mesmos rios com as mesmas finalidades; as que tinham por objetivo o
reconhecimento do território; a de coletores de drogas do sertão e as viagens de cunho
científico, como as do francês Charles Marie de La Condamine.
Costa (2003, p. 56-57) escreve que foi este cientista especializado em
astronomia que, mandado à América em 1736 pela Academia de Ciências de Paris,
para estudar a forma da Terra e seu achatamento nos pólos, que deu ao Ocidente o
conhecimento acerca da borracha natural, ou seringa.
Segundo Tocantins (ibidem, p.115), os índios do Equador davam o nome de
Hhevé à árvore que sangrada vertia o leite que se transformava em borracha. La
Condamine soube que esta árvore ocorria também na selva amazônica e que lá os
índios Maia a chamavam da cautchuc.
No Brasil também havia notícias acerca da existência da seringa. Estas notícias
foram dadas pelos índios Omagua e Cambeba, aldeados em missões dos padres
carmelitas portugueses no rio Solimões desde o final do século XVII. O responsável
pela comunicação ao mundo não indigna brasileiro sobre a existência da borracha foi
do missionário Frei Manoel da Esperança em missiva a outro religioso carmelita.
Em Mendonça (1989, p. 211), encontramos o relato da correspondência entre os
dois religiosos datada de 1738. Este relato apresenta informações in litteris, em relação
às que La Conadamine colheu com os índios do Equador e enviou à Europa, conforme
podemos atestar neste trecho: ―Os índios omaguas chamavam cahuchu à resina tirada
da árvore hyeve, o que deu logar ao nome vulgar cautcgu para a resina e scientifico
hevia guianensis para a árvore.‖ (Os grifos e a grafia estão conforme o original).
Mas o correto é que a difusão da notícia acerca da existência da seringa para o
continente europeu foi de responsabilidade do cientista La Condamine, que informou a
descoberta à Academia de Sciencias de Paris em 1745.
Chamou-lhe a atenção, a versatilidade daquela goma elástica que tanto podia
ser utilizada na confecção de utensílios domésticos, como a seringa, objeto fabricado
com a Hhevé para recolher e guardar a água, e que veio a dar o nome popular pelo
qual o látex da hévea ficou conhecido, estendendo aos seus extratores o nome de
seringueiros.
Afora estes usos, a Hhevé se prestava à confecção de calçados e vestuários, e
também a utilizavam na iluminação noturna, num processo que sobrevive até os dias
atuais entre índios e seringueiros amazônicos, e que consiste em colocar um pedaço
desidratado de seringa na ponta de uma vara e queimá-lo, transformando este
instrumento num lampião de luz ―muito viva‖, conforme informou o cientista a seus
pares franceses.
Todavia, a viagem científica que mais contribuiu para estabelecer conhecimento
sobre a região que viria a se tornar Território Federal anexado ao Brasil em 1903, foi a
do geógrafo inglês William Chandlles que, em missão da Royal Geographical Society de
Londres, subiu, em 1865, desde a cidade de Manaus, primeiro até as cabeceiras do
Purus e, posteriormente, ao Juruá, até o chamado Estirão dos Nawa, com a finalidade
de dirimir dúvidas acerca do que se chamava à época o problema do Madre de Dios e
Purus, pois circulava a crença de que havia ―um liame aquático entre os dois grandes
rios‖. (TOCANTINS, ibidem, p.131).
A decifração desse enigma tinha por finalidade encontrar uma passagem por
terra que fosse possível ligar as duas bacias e assim facilitar o transporte e
comercialização do caucho e outros produtos extraídos da floresta, evitando a
navegação pelo Beni e o Madeira, que constituía um caminho muito mais longo e
perigoso, devido às muitas cachoeiras presentes no curso desses rios.
A viagem do inglês foi cumulada de sucesso e Cunha (ibidem, p.173) escreve
que durante longos anos a geografia do Purus ficou inscrita nas linhas traçadas por
William Chandlles em 1867.
Quem guiou o cientista inglês nesta empreitada ao Purus foi o sertanista Manuel
Urbano da Encarnação, encarregado de índios e profundo conhecedor do território, já
que o percorria desde 1857, tendo-o feito pela última vez cinco anos antes, numa
expedição financiada pelo governo do Amazonas que desejava ter detalhes sobre o
potencial da região para a exploração de látex. Nesta viagem Manuel Urbano mapeou
os principais afluentes do Purus, dentre eles os rios Acre e o Yaco, além de ter
inventariado as tribos indígenas ali presentes. Esta viagem de Manuel Urbano, bem
como a do geógrafo inglês, facilitou a penetração e o estabelecimento do povoamento
do Acre a partir de 1878.
Além de Manuel Urbano da Encarnação que percorreu o Purus, seu colega João
da Cunha Corrêa, também encarregado de índios, percorreu o Juruá entre os anos de
1857 e 1858, ocasião em que passou deste rio a seu afluente Tarauacá e deste ao
Envira, atravessando depois a pé para o Purus com a finalidade de se encontrar com
Manuel Urbano, só não o conseguindo porque naquele momento o desbravador do
Purus encontrava-se no Alto deste rio.
Concluímos, portanto, em concordância com Rancy (1992, p.15), que os
encarregados de índios foram os primeiros exploradores, e os responsáveis em dar
conhecimento ao resto do Brasil, sobre esta porção territorial inexplorada por
populações não indígenas e que após o litígio com a Bolívia foi definitivamente anexado
à federação brasileira.
As atividades de exploração científicas e de reconhecimento geográfico da
região ocorriam concomitantemente ao boom da exploração do caucho pelas frentes
extrativistas constituídas pelos caucheiros peruanos.
Cunha (ibidem, p. 55) descreve estes personagens como o resultado de um
hibridismo moral no qual se juntou ―a bravura aparatosa do espanhol difundida na
ferocidade mórbida do quíchua‖. Isto porque o caucheiro exercia uma atividade
extenuante de caráter nômade e predatória, da qual se exigia muito sangue frio para
enfrentar e, na maioria das vezes eliminar vidas humanas de incontáveis tribos
indígenas que pereciam ―sacrificadas a um tempo pelas armas grosseiras e pela
afoiteza no arremeterem com as descargas das carabinas‖ (idem).
Os encontros entre índios e caucheiros quase sempre resultavam em chacinas.
O índio era caçado na selva como se caça um bicho silvestre. Ao ser encontrado se
tentava pelo convencimento sua colaboração na exploração da castiloa, havendo
recusa, o que ocorria na maioria das vezes, a solução vinha imediata, na forma da
eliminação física do grupo que se opusesse, como se exemplifica neste relato do
encontro de um grupo da etnia Masho, com o caucheiro Fitz-Carral, que passou à
história como Fitzcarrald: ―De fato, meia hora depois, cerca de 100 (cem) mashos,
inclusive o chefe recalcitrante e ingênuo, jaziam trucidados.‖ (CUNHA, ibidem p.102).
Era insustentável aos representantes das classes que dominaram a exploração
do látex, um discurso negando a existência de indígenas no território dominado para a
implantação desta atividade extrativista, como os governantes o farão na segunda
metade do século XX, quando o extrativismo da seringa perder importância como
atividade econômica.
De fato os poderosos comerciantes de Belém e de Manaus, os governantes do
Amazonas e os seringalistas que irão se estabelecer na região, não negarão a
existência dos índios no território, ao contrário, admitem-no. Dizem que é uma presença
superlativa, em grande profusão, e era exatamente esta diversidade de população
indígena que compunha um obstáculo à implantação da civilização, daí a necessidade
de sua eliminação física, uma vez que os índios amazônicos, a exemplo de seus irmãos
do Nordeste – conforme relato de Capistrano de Abreu (1963, p.146) transcrito abaixo –
não compreendiam que estavam obstruindo o processo civilizatório. Leiamos o relato e
reflitamos acerca do quê nos vimos referindo neste trabalho, que o discurso é a
manifestação de uma posição ideológica colocada em jogo ―num processo sócio-
histórico em que as palavras são produzidas‖ (ibidem, ORLANDI p.42).
Por esta margem do São Francisco existiam numerosas tribos indígenas, a
maioria pertencente ao tronco cariri, algumas caribas como os Pimenteiras, e
até tupis como os Amoipiras. Com eles houve guerras, ou por não quererem
ceder pacificamente as suas terras, ou por pretenderem desfrutar os gados
contra a vontade dos donos. (Grifo nosso).
Em Barros (1993 p.124) encontramos relato com o mesmo teor acerca dos índios
acrianos que reagiam à expropriação de seus territórios ―O índio constituiu um sério
problema para os donos dos seringais, com sorrateiras incursões e por vezes flechando
os seringueiros‖.
Este autor opera uma radical mudança discursiva, haja vista que alguns
parágrafos atrás, na página 122, escrevera o seguinte: ―Nos primórdios da ocupação da
Amazônia, esses legítimos brasileiros, só gradualmente e em pequenos grupos, se
aproximavam das terras dos colonizadores, do qual, com razão, temiam a violência e o
tolhimento da liberdade‖.
Estes discursos que descrevem com todas as letras, no Nordeste como na
Amazônia, o extermínio físico dos índios encontravam validade pela existência da FD
que atribuía ao indígena valores negativos.
Mas voltando ao episódio da exploração do caucho, conclui-se, portanto que ela
traumatizou, comprometeu a ocupação demográfica do espaço pelo homem autóctone,
ou do homem já adaptado às plagas amazônicas, haja vista que as etnias presentes,
eram oriundas, em casos como as que pertenciam à família lingüística Arawak, de
regiões muito distantes da Amazônia, como a Costa do Pacífico, na América Central, de
onde iniciaram um processo migratório para o Peru Central provavelmente a partir do
quarto milênio, conforme Fonseca, in Queixalós, et al (2000, p.348).
Así, la distribución actual de las lenguas en esta región, sobre todo si la
consideramos en términos de grandes familias o troncos lingüísticos, parece
válida para hasta una profundidad temporal de 3 a 5.000 años‖.
Além dos indícios que a lingüística apresenta, a arqueologia também oferece
pistas que corroboram as teses da antiguidade da ocupação da Amazônia por
indígenas, conforme se pode conferir no texto de Loureiro (1982, p.22), segundo o qual
a
A Amazônia está revelando uma pré-histórica antiguíssima. Nas cavernas do
Lauricocha, nas nascentes do Amazonas, a camada arqueológica mais
profunda evidenciando a presença do homem, alcançou a recuada data de
7.565 a.C, seguida de outra, com utensílios, de 6.000 a.C e de uma terceira,
pré-cerâmica, correspondente a 3000 a.C. Estes restos arqueológicos
permitem afirmar, de maneira incontestável, que a nossa região natal já é
habitada há mais de 10.000 anos, ininterruptamente.
Este povoamento tão antigo por parte dos índios, devido à sanha genocida dos
caucheiros foi perturbada e levou ao extermínio físico de muitos grupos indígenas que
se opuseram à ocupação predatória de seus territórios, conforme podemos atestar
neste texto de Cunha (ibidem, p. 99): ―E os caucheiros aparecem como os mais
aventurados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando
naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos‖.
Sob esta perseguição e baixo ao fogo cerrado dos rifles Winchester, os temidos
papos amarelos, dos caucheiros e seringalistas, restava às etnias sobreviventes três
estratégias:
a) a fuga para viver em liberdade em áreas isoladas e inóspitas;
b) a aculturação, que era um estágio inicial da servidão e que levava à
c) colaboração com os caucheiros peruanos, no primeiro momento da ocupação
e, no segundo, com os seringalistas brasileiros.
Foi o ocorreu, segundo Casevitz (2002, p.198) ―com alguns Piro e Kampa, que
se tornaram mercenários armados de Fitzcarrald‖. Os que optaram pela aculturação
terminaram vítimas de outra violência: o etnocídio.
O boom da exploração da seringa no Brasil dar-se-á entre 1895 e 1903 e foi
também uma atividade marcada por um contexto de violência e extermínio de grupos
indígenas, tanto dos que já se encontravam no território há pelos menos 300 anos,
quanto os grupos que haviam descido os rios Juruá, Purus e seus afluentes em fuga
das correrias promovidas pelos caucheiros desde as primeiras décadas do século XIX.
Portanto aos grupos étnicos que escaparam a sanha dos caucheiros peruanos
adotando a opção estratégica da fuga para áreas isoladas e inóspitas, a história
reservava uma traumática surpresa, pois estava por vir o povoamento do Acre por
populações brasileiras e com o povoamento se dará a eclosão da Questão do Acre que
trouxe a sanha não menos genocida dos seringalistas para perturbar os índios.
2.2. A QUESTÃO DO ACRE
A Questão do Acre é como ficou conhecida a disputa entre Brasil e Bolívia pelo
território que hoje constitui o Estado do Acre. Como já foi referido neste trabalho, o
Brasil não tinha – do ponto de vista da legislação internacional de que era signatário –
qualquer direito legal sobre o território que disputava, haja vista que reconhecia por
meio destes tratados, os direitos da Bolívia sobre o território em litígio. Mas o governo
do Amazonas e os comerciantes de Belém e Manaus ambicionavam a posse do
espaço, pois o sabiam rico em árvores de seringueiras.
A concretização desta ambição era facilitada pela impossibilidade da Bolívia em
povoar a região, inclusive em seus mapas, na parte em que estava situado o Acre,
havia uma inscrição que declarava: TIERRAS NO DESCUBIERTAS.
O Estado brasileiro – por meio dos governantes do Amazonas e com o incentivo
de representantes de Casas Aviadoras estabelecidas em Belém e Manaus –
desenvolvem uma campanha sistemática de estímulo e financiamento da viagem de
nordestinos fugidos das secas que castigaram aquela região, notadamente o Estado do
Ceará, desde o ano de 1877. Esses fugitivos da seca serão desviados da rota de
migração para os cafezais do Sudeste e aportarão na Amazônia no palco do litígio.
Esta migração que no discurso histórico oficial é descrito como um movimento
natural dos nordestinos em busca de melhorias em plagas distantes de onde se dava o
drama da seca é – segundo outras versões – um processo em que se incentivavam os
retirantes a mudarem a rota migratória.
A mudança ocorria portando devido a uma forte propaganda que lhes prometia o
paraíso. Cunha (ibidem páginas 74 e 75) escreve estupefato como se operava o
processo de endividamento do seringueiro desde que este deixava seu Estado de
origem.
O relato é o seguinte: ―De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão
opulento, senão o freguês jungido à gleba das ―estradas‖, o seringueiro realiza uma
tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se‖.
E a seguir, de forma muito didática exemplifica como ocorre este processo de
auto-escravização, descrevendo um caso que se inicia com o aliciamento do futuro
seringueiro ainda no Ceará.
No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a
passagem de proa até ao Pará (35$000) e o dinheiro que recebeu para
preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte, num gaiola
qualquer de Belém ao barracão longínquo a que se destina e que é, na média,
de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios
invariáveis: um boião de furo uma bacia, ml tigelinhas, uma machadinha de
ferro, um machado, um terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas
balas, dous pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira,
dous carretéis de linha e um agulheiro. Aí temos o nosso homem no barracão
senhorial, antes de seguir para a barraca no centro, que o patrão o designará.
Ainda é um brabo, isto é, ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve
1:135$000 Segue para o posto solitário encalçado de um comboio levando-lhe
a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para três
meses: 3 paneiros de farinha-d‘água, 1 saco de feijão , outro pequeno de sal,
20 quilos de arroz, 30 de charque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8
libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa cerca de 750$000
Ainda não deu um talho de machadinha ainda é o brabo canhestro, de quem
chasqueia o manso experimentado, e já tem o compromisso de 2:090$000.
Com a consumação da ocupação do território em litígio por brasileiros, o governo
do Amazonas e os seringalistas irão defender a tese do direito pela posse. Neste
particular são interessantes os argumentos utilizados para justificar o desrespeito às
Leis internacionais.
Numa tentativa de ocupação do território, os bolivianos instalam uma aduana no
Rio Acre na localidade de Puerto Alonso onde iniciam uma reforma administrativa que
inclui mudanças no regime fiscal e policial. Para tanto contam com uma guarnição de
militares para dar proteção no cumprimento desta missão. Este fato tem o
conhecimento e o apoio do governo brasileiro, inclusive do governador do Amazonas,
que, no entanto não se conforma com a instalação da aduana boliviana num território
que considerava uma extensão do Estado amazonense, haja vista que a cobrança de
impostos por parte dos bolivianos significava a evasão de divisas que seriam creditadas
no tesouro do Amazonas.
Em pouco tempo, 111 (cento e onze) dias que os bolivianos estavam instalados
em Puerto Alonso são hostilizados e expulsos por seringalistas no dia 1.º de maio de
1899, tendo à frente deste movimento um advogado de casas aviadoras de Belém. Este
advogado, José Carvalho, escreve um opúsculo intitulado ―A primeira insurreição
acriana‖, no qual usa e abusa de um discurso que atribui seu ato a uma demonstração
de zelo patriótico dos seringueiros, logo destes que chegavam ao território na condição
de escravos, nela permanecendo pelo resto de suas vidas e ainda legavam-na esta
condição às suas futuras gerações.
O interessante neste episódio é que a insurreição de José Carvalho não recebeu
apoio oficial nem do governo do Amazonas e menos ainda das casas aviadoras,
mesmo sendo ele um representante destas.
No citado opúsculo (2003 p.17) faz um desabafo de caráter patriótico,
escrevendo o seguinte:
Ninguém, por exemplo, saberia da existência do Acre, das suas riquezas
natuares, dos seus habitantes e da monstruosa violação de nosso direito, si o
Acre não se tivesse levantado, fazendo-se conhecer e reagindo com uma
coragem e com uma constância tal, apezar de infinitos dissabores, que seu
exemplo deve ficar perpetuado como um padrão de glória nacional e como uma
consoladora esperança, sinão como robusta prova dos grandes destinos futuros
de nossa raça. (O grifo é nosso, mas a grafia está mantida como no original).
Além de financiar sucessivas subidas de seringueiros para criar um fato, o da
ocupação do território em litígio por brasileiros, o governo do Amazonas e as casas
aviadoras de Belém e Manaus, também incentivavam a incursão de mercenários para
confrontar os bolivianos. Não foi o caso de José Carvalho, como já referimos. Este até
estranha o apoio negado ao seu ato, estranhando mais ainda, não só o apoio, mas o
incentivo pecuniário dado ao mercenário espanhol dom Luis Galvez de Arias, que
chega a Puerto Alonso e, em 14 de julho do mesmo ano de 1899, quando proclama a
sua República Independente do Acre.
No que pese a empresa extrativista da seringa se diferenciar da exploração do
caucho, no sentido de que esta era uma atividade nômade, e aquela sedentária, mas
ambas prescindiam de trabalhadores escolarizados.
O próprio Carvalho que relata sua insurreição como um exemplo de patriotismo
dos seringueiros em favor do interesse maior da nação, diga-se interesse dos
seringalistas, escreve acerca da forma como se processava a exploração do
seringalista contra os seringueiros, demonstrando como isto se fazia possível devido,
sobretudo, a não escolaridade dos seringueiros.
Leiamos o relato de Carvalho (ibidem p. 43):
Só, alli, – como em todo o interior da Amazônia – quem não tem pressa porque
não tem direito é o pobre seringueiro, escravizado eterno, eternamente
sonhando o saldo, que todos annos lhe foge mysteriosamente, sem que elle o
possa explicar, porque não sabe ler a factura pelo patrão fornecida (há, como
em todas as cousas, nobres excepções) e nem ler na balança romana o
número indicador dos kilos que lhe custaram o suor20
.
No seringal somente os guarda-livros, gerentes responsáveis pela contabilidade
dos movimentos de entrega de mercadorias aos seringueiros e recebimento da
borracha produzida, sabiam ler e escrever. Os demais empregados do seringal:
seringueiros, comboieiros, zeladores de campos, caçadores, pescadores, trabalhadores
dos roçados, remadores e outros que faziam o sistema do barracão funcionar a
contento não o sabiam e, se algum seringueiro fosse escolarizado, era visto com muita
desconfiança pelos patrões.
Ao decretar o Estado Independente do Acre dentre as iniciativas de Galvez está
a publicação do decreto de n.º 10, de 20 de julho de 1889. Este decreto dispõe sobre o
regulamento geral da instrução pública. É bom que se diga que não havia instrução
pública no território, nem privada uma vez que o Acre era um local tão somente para
extração de látex. Os filhos dos patrões que podiam ser instruídos iam estudar fora da
região, geralmente no Rio de Janeiro que à época era a capital federal ou até mesmo
para países da Europa, geralmente Portugal ou França.
A leitura do decreto revela a intenção de implantar o modelo elitista de educação
vigente na época nos centros urbanos de qualquer cidade do mundo. Essa citação
procede de Barros (ibidem p.44). O decreto é por demais interessante, por isto o
citaremos em sua íntegra.
Art. 1.º – O ensino primário será ministrado nas escolas primárias e auxiliares,
isoladas em Grupos Escolares; o secundário no Ginásio Nacional, o profissional
e técnico nos Cursos Normal e Comercial, anexos ao Ginásio e ao Instituto de
Artes e Ofícios.
Art. 2.º – Qualquer dos ramos de ensino público, reger-se-á de acordo com o
seu respectivo Regulamento.
20 Os grifos são nossos. Mantivemos a grafia utilizada pelo autor no original.
Art. 3.º – É livre no Estado o ensino particular.
Qualquer pessoa brasileira ou estrangeira poderá ministrá-lo, sujeitando-se às
condições de moralidade, higiene, estatísticas definidas nas Leis do Estado.
Os diretores de internatos e de externatos terão a obrigação de:
1) franquear o estabelecimento ao Diretor da Instrução Pública todas as
vezes que ele entender de visitá-lo;
2) apresentar documento afirmativo das boas condições de higiene do
edifício passado pelas autoridades sanitárias;
3) remeter, ao Diretor-Geral, os estatutos dos seus estabelecimento;
4) apresentar no princípio do ano letivo o programa das disciplinas, uma
relação dos livros adotados e um quadro do pessoal docente;
5) apresentar trimestralmente ou quando for solicitado pela autoridade
competente, mapas das matérias em que se acham discriminados os nomes,
naturalidade, filiação, idade e classe dos alunos.
Como se pode constatar pela leitura do decreto, não há alusão ao público
destinatário da ação educativa que a República de Galvez pretendia implantar, como no
caso da decretação do Estado do Grão-Pará em que se regulamentou, via Diretório dos
Índios como deveria se organizar as escolas destinadas aos indígenas.
Mas no caso da República de Galvez um detalhamento daquela natureza era
dispensável, porque era tão somente um ato de efeito discursivo, pois como vimos
mostrando neste trabalho, a atividade extrativista prescindia de instrução escolar.
Para que se tenha uma idéia do quão era dispensável saber ler e escrever no
contexto do seringal, Cunha (2007, p.1), diz que se atribui o nome Acre com esta grafia,
como tendo sido o resultado da escrita corrompida da palavra de origem indígena
uwakürü, que pertence ao vocabulário da língua Apurinã, e que foi distorcida
pelo seringalista João Gabriel que não entendeu sua pronúncia pelos nativos
falantes daquela língua, e nem acertou a grafia de sua escrita ao fazer
encomendas de mercadorias para seu patrão, o visconde de Santo Elias, um
português abastado dono de uma das maiores Casas Aviadoras da Praça de
Belém que abastecia de gêneros vários seringais do interior amazônico além
de exportar para o exterior a borracha que seus fregueses seringalistas lhes
enviavam desses seringais.
Diz a lenda que até chegar à escrita atual do nome Acre, a palavra uwakürü foi
grafada de outras formas, como: uakiri, depois aquiri, aqri até que finalmente os
empregados de Santo Elias acharam mais conforme escrevê-la como a conhecemos,
ficando assim consagrado o nome do território que era à época um verdadeiro
Eldorado, pois era pródigo na produção da borracha, considerada como o ouro negro, o
produto de exportação de maior valor da balança comercial brasileira no período de
1891 a 1913.
O historiador Leandro Tocantins refuta esta tese, diz que ela de fato está no
âmbito das lendas, pois segundo suas pesquisas o nome Acre já era conhecido e
escrito desta forma antes que João Gabriel se estabelecesse na região e fosse aviado
pelo Visconde do Santo Elias. Todavia fica registrado como fato que demonstra que
não era preciso ser letrado para ser um barão da borracha, e menos ainda para ser
seringueiro, ou outro trabalhador, com exceção do guarda-livros, profissão que nenhum
indígena conseguiu exercer.
A Questão do Acre só se resolve com a auto-proclamada Revolução Acriana,
movimento incentivado pelos patrões já estabelecidos no Acre com o patrocínio de
casas aviadoras de Manaus e Belém e do governo do Amazonas.
O motim vitorioso contra os bolivianos contou com o concurso da experiência
militar de outro mercenário, desta feita o agrimensor gaúcho José Plácido de Castro,
que inicia por Xapuri seu movimento, depondo o chefe de uma guarnição militar
boliviana no dia 6 de agosto de 1902. Por aquela ocasião os bolivianos faziam nova
tentativa de marcarem seu domínio sobre o território que de direito lhes pertencia e,
haviam conseguido estabelecer guarnições militares em vários pontos ao longo do
curso do rio Acre.
Mas esta empresa demandava um esforço hercúleo que o pequeno, pobre e
pouco povoado país andino cumpria a muito duras penas, conforme se pode
testemunhar por meio do conteúdo desta carta, transcrita de Meira, 2003 p.127/128. É
um desabafo ao presidente boliviano, general José M. Pando, escrita pelo delegado
nacional da Bolívia do território do Acre e Alto Purus, Lino Roberto, sitiado no posto
militar de Puerto Alonso, em 25 de outubro de 1902 à espera da última batalha contra
Plácido de Castro e seu exército de seringueiros.
Sr. José M. Pando. La Paz.
Mi querido General: Nos encontramos em plena lucha, y talvez antes de dos
dias seremos atacados em este puerto. La pequeña coluna que vino a cargo del
Coronel Rojas, foe destruida en Vuelta de Empreza, después de Haber luchado
heroicamente once días. Eses valientes merecen los más justos aplausos e
honores, porque han sabido cumplir su deber como héroes. Los que aun
quedamos en el Acre, estamos dispuestos a ofrecer iguales sacrificios a esa
divinidad simbólica que se llama la Patria: y nos es deber en estos momentos
hablar con entera sinceridad, sin que nuestras opiniones sean tachadas como
una muestra de cobardía: queremos evitar nuevos e estériles sacrificios a
nuestro desgraciado país. El Acre nominalmente es de Bolivia; pero
materialmente es del Brazil, todo contribuye à eles; inmensas distancias y
obstáculos que lo separan del resto del país, la población dentro del mismo, la
población extraña que lo puebla, la falta de vías de comunicación dentro del
mismo territorio y finalmente la imposible adaptación de nuestra raza à este
clima mortífero. Los bolivianos en esta región nos sentimos tan extraños, como
nos sentiríamos en las mas apartadas colonias del Asia, además nos son aquí
adversos la naturaleza y los hombres. ! Cada una de nuestras campañas
representa el sacrificio de más de una centena de víctimas! ¿Que vantagens
reporta Bolivia en cambio de todo esto? Ninguna: las ingentes erogaciones de
nuestro Tesoro Nacional y el gasto de energías y fuerzas sociales, son estériles
y lo serán en el futuro, si nos fuese dable conservar este territorio por mucho
tiempo. Pueblos poderosos no han podido manejar bajo sus dominios a seres
de otra raza y otros costumbres, y nosotros que somos un pueblo débil y
embrionario, no podemos contrariar una ley histórica comprobada a cada paso,
y mucho más si se tiene en cuenta que son catorce millones de almas que
tenemos, al frente de nosotros, y las cuales por medios directos o indirectos
procuran expulsarnos de este territorio regado con sangre y cubierto de luto.
Os seringalistas apoiados pelas casas aviadoras e pelo governo do Amazonas
contratam os serviços de Plácido de Castro para desbancar os bolivianos do território
do Acre, pois tinham consciência desta situação que o comandante Lino Roberto
relatava a seu presidente a partir do front de batalha. Sabiam que os brasileiros
estavam em vantagem técnica, numérica e psicológica. As hostilidades foram
desencadeadas porque estes senhores brasileiros poderosos, os coronéis de barranco
e seus aliados de fora do Acre, souberam que o governo boliviano pretendia arrendar a
área em litígio para uma corporação internacional, o Bolivian Syndicate of New York.
O discurso que justificou a reação brasileira baseava-se na refutação desse
arrendamento, pois segundo o governo do Amazonas e os seringalistas já instalados no
Acre, a concretização de tal acordo significaria a internacionalização da região.
Este argumento não tinha consistência, pois era fato notório que a região já se
encontrava internacionalizada, uma vez que as atividades da extração da borracha só
se fazia possível dado ao interesse comercial do capital financeiro inglês que estava,
como já nos referimos, no topo da exploração gumífera na Amazônia.
Muito interessante sobre este tema é a abordagem de Coelho (1982, p. 23),
sobre o ciclo da borracha entre os anos de 1908 e 1945. Segundo esta autora
Não seria despropositado, portanto, considerar esse período21
um ―Período de
Consolidação do Capital Estrangeiro‖, onde o capital bancário se funde ao
industrial. Como conseqüência, o poder do grande capital e de sua política
imperialista se consolida dentro da economia da borracha no Brasil.
O certo é que mesmo com o absurdo da alegação que justificou a afronta e a
tomada daquela porção territorial que os bolivianos ingenuamente identificavam em
seus mapas como TIERRAS NO DESCUBIERTAS, o conflito só terminou após a vitória
brasileira e a conseqüente anexação ao território nacional no ano de 1903.
O fim das batalhas que desbancaram os bolivianos do território acreano e o
anexaram ao Brasil não trouxe mudanças na relação com os índios. Há um relato em
Loureiro (ibidem, p. 55/56), escrito pela Comissão Examinadora designada pelo
governador Silvério Nery em 1902 para apurar os conflitos em Sena Madureira entre os
coronéis de barranco em disputa pela extensão de seus domínios, que apurou o
seguinte:
Cerca de trinta e tantos celerados, fregueses e aviados do seringal Nova linda,
dirigiram-se à maloca desses desgraçados indígenas e depois de devastarem,
21 O período a que ela está se referindo é o período do final do século XIX e início do XX.
durante um dia inteiro, um extenso milharal por eles plantados, caíram de
sorpresa sobre a referida maloca e assassinaram barbaramente a tiros de rifle,
a vinte e cinco indefesos ―Catianas‖, apossando-se das mulheres, para o pasto
de suas concupiscência, e das crianças para escravos.
Em seguida, não satisfeitos de tanto sangue derramado, vieram matando e
roubando os que já serviam nas barrancas, com os civilizados.
Conclui-se por este relato que a perseguição e assassinato de índios não
ocorriam somente com os que se encontrassem arredios e que resistiam à invasão de
seus territórios. O fato de estarem em colaboração com os seringalistas não
representava garantia para a manutenção de suas vidas. E os índios Catianas – que,
diga-se de passagem, foram extintos enquanto etnia – eram tidos como ―mansos,
prestáveis e em via de civilização‖ idem Loureiro.
Mas enquanto os seringalistas exterminavam etnias indígenas, da parte do
governo do Brasil se preparava um encaminhamento jurídico para que a nova porção
territorial anexada à federação brasileira se tornasse uma unidade autônoma e não um
apêndice do território do Estado do Amazonas, como era do interesse de seus
governantes. Foi este objetivo que alimentou por mais de seis décadas o interesse
desses governantes que financiaram a fixação de populações nordestinas e a incursão
de mercenários para afrontar os bolivianos sempre que estes manifestavam interesse
em tomarem posse da região.
Com a assinatura do Tratado de Petrópolis, o Acre foi anexado ao Brasil como
Território Federal e pelo Decreto n.º 5.188, de 7 de abril de 1904 dividido em três
departamentos autônomos: Alto Juruá, Alto Acre e Alto Purus administrados por
militares escolhidos pelo governo federal, os primeiros prefeitos departamentais foram,
respectivamente o general Taumaturgo de Azevedo, o coronel Rafael Augusto da
Cunha Matos e o também general José Siqueira de Menezes (LOUREIRO, 1981, p. 67).
Segundo Barros (1993, p.67),
os Prefeitos dos Departamentos tinham as mais variadas tarefas naquelas
incipientes sociedades acreanas /.../ que iam desde a instrução, saúde pública,
policiamento, justiça, defesa da área, navegação, catequese dos índios (O grifo
é nosso).
Sobre a educação naquele contexto, seus objetivos e a eficácia, é muito
interessante o discurso do jornalista Craveiro Costa, secretário geral e inspetor de
ensino da prefeitura departamental do Alto Juruá, numa solenidade que contava com a
participação de professores, estudantes e pais. Leiamos abaixo o relato que também se
encontra em Barros (ibidem p. 1):
Para onde irão amanhã estas crianças quando saírem das escolas prefeiturais?
Sem profissão, como assegurar o palmilhar com firmeza a estrada que as
espera? Não poderão ser homens verdadeiramente úteis à nação. Umas
aspirarão o viver vegetativo das repartições, outras se perderão consumidas por
vícios, vencidas nas lutas da existência. De pouco lhes valerá o saber ler e
escrever.
Ora, se para uma população que estava se estabelecendo num centro urbano, o
inspetor de ensino questionava a validade da educação escolar, que dizer de uma
educação escolar devotada às etnias indígenas naquele momento?
É bem verdade que noutros contextos brasileiros de contato entre índios e
europeus, abordados no capítulo anterior desta dissertação, a escola cumpria um papel
estratégico na ação missionária e foi largamente utilizada com fins de conversão
evangélica e transição cultural. Mas ali, ainda que a função de catequizar os índios
fosse uma atribuição da prefeitura, deixava-se esta tarefa por conta de cada patrão e
estes, como já vimos referindo neste trabalho, não tinham interesse em usar a instrução
escolar como estratégia catequética, pois a atividade de extrativismo do látex prescindia
de instrução escolar.
As notícias que se têm sobre missões religiosas ao estilo que se praticou noutras
paragens brasileiras, é que elas não chegaram nesta parte Ocidental da Amazônia,
salvo exceções, mas ficaram restritas a regiões muito distante do território do Acre, na
parte de cima no rio Madre-de-Diós em território peruano e, abaixo, no rio Solimões,
nas cercanias de Manaus. Estas missões foram implantadas sob responsabilidade de
padres franciscanos, no caso do Peru entre os índios Ashaninka e, no caso do rio
Solimões, entre os Omagua e Cambeba, pelos padres carmelitas
No caso do Acre, enfatizamos ainda, a escola não se apresentava como um
instrumento significativo na estratégia de contato, uma vez que os patrões seringalistas
utilizando-se da força bruta conseguiam, segundo Aquino e Iglesias in Cunha (2002,
p.149), submeter os índios a várias atividades demandadas na rotina do extrativismo da
borracha, como
abertura e zelo das estradas de seringa, no cultivo de roçados e canaviais de
seus patrões, na limpeza de campos de pastagens para gado, no transporte de
borracha e mercadorias, na retirada de madeira de lei, no comércio de peles de
animais silvestres e na realização de caçadas e pescarias para o abastecimento
dos barracões de seus patrões.
No Acre somente no ano de 1914 é que se têm notícias de implantação de uma
escola destinada a indígenas, foi junto à etnia Puyanawa em Cruzeiro do Sul, mas fazia
parte de uma estratégia pontual que tinha por finalidade elevar o número de eleitores
para eleger o coronel Mâncio Lima, um poderoso patrão seringalista, prefeito
departamental do Alto Juruá. (ACRE. Secretaria de Estado de Educação. Projeto
Político Pedagógico Puyanawa. ...).
Mas em que a educação escolar poderia de fato interessar aos indígenas? Eles
não têm sistemas educativos próprios?
Segundo o antropólogo espanhol Bartomeu Meliá (1979, p.10), estudioso da
questão indígena e profundo conhecedor dos Guarani, os índios guardaram um rico
conhecimento herdado de seus ancestrais – apesar de toda a violência do contato para
que eles conjurassem esse conhecimento – porque mantiveram um modelo de
educação que se apresenta como um processo total, quer dizer ―a cultura indígena é
ensinada e aprendida em termos de socialização integrante‖. Bartomeu escreve ainda
que este sistema de educação pelo fato de não contar com profissionais
especializados, como é o caso da educação ocidental, não quer dizer que ela é
desenvolvida por uma coletividade abstrata, que os índios têm seus momentos e
instrumentos próprios de aprendizagem.
Ocorre que a partir do século XX, com uma nova visão sobre a educação, e,
sobretudo devido à idéia de universalização da educação escolar, e com o plano
governamental de integração dos espaços brasileiros considerados desertos, passam-
se, no caso dos indígenas, a pensar a educação escolar com objetivos da ―integração
do índio à comunhão nacional‖, glosa amplamente utilizada pelo indigenismo positivista
inaugurado com a entrada em cena do marechal Rondon, militar responsável pela
criação da agência estatal de indigenismo, Serviço de Proteção ao Índio – SPI em 1910
e que foi substituída pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI em 1967.
Todavia, do ponto de vista dos indígenas que foram obrigados a trabalhar como
seringueiros, sobretudo a partir da década de 1960, quando a economia com base no
extrativismo da borracha está no ápice do declínio, alguns viam na educação escolar a
possibilidade de libertação pela ascensão à condição de gerente de seringal ou outras
profissões que eles percebiam como detentoras de status. O interessante é que
naquele momento a implantação da escola nos seringais se constituía em estratégia do
poder oficial visando à distribuição de empregos públicos para o círculo familiar dos
patrões ou de seus prepostos. O magistério naquele momento era uma tarefa confiada
às esposas, filhas ou outro parente do círculo familiar dos seringalistas. Era o
cumprimento daquilo que Craveiro Costa falara em 1905 ―uns aspirarão o viver
vegetativo das repartições‖.
Isto ocorria porque o mercado do látex brasileiro em ruína não apresentava mais
nem a expressão econômica e o brilho que teve até o início do século XX nem no
pequeno hiato entre 1938 a 1945, durante a II Guerra Mundial, momento em que os
seringais asiáticos foram tomados pelo Japão – o terceiro país que formava com
Alemanha e Itália o Eixo – e os aliados ficaram sem a borracha, que era considerada
matéria-prima estratégica para o chamado esforço de guerra.
Desta forma os seringalistas que detinham força política em razão de manterem
os seringueiros em currais eleitorais recebiam, dentre outros, estes tipos de benesses,
o que reforçava ainda mais o poder que eles detinham.
Alguns seringueiros – índios e não-índios – sobretudo aqueles que se
encontravam mais próximos do barracão22, alimentavam a vã esperança que poderiam
ascender a posições sociais mais vantajosas e sonhavam com a possibilidade de saída
22 Barracão era a sede da empresa seringalista. Ali se situava a residência do seringalista, os armazéns de mercadorias, o escritório da contabilidade, o campo
de repouso dos animais de carga, a residências dos agregados, os roçados e campos de criação de animais domésticos destinados à subsistência do patrão e de
seus agregados. Guardava estreitas semelhanças com a casa grande dos engenhos nordestinos.
daquele estado de escravismo por intermédio de um filho que estudasse e se tornasse
patrão, ou gerente do seringal, padre ou médico. Os casos de alguns poucos que
alcançavam estes estágios, aqueles da exceção para confirmarem a regra,
alimentavam o imaginário de outros seringueiros, poucos é verdade.
Acerca desta aspiração o antropólogo Gilberto Velho apud Verani (1994, p.102),
faz a seguinte consideração:
o afastamento, o rompimento com um mundo que se torna ―opressivo e
indesejável‖ é uma das alternativas para os indivíduos que não conseguem
alcançar sucesso ou satisfação dentro de um campo de possibilidades histórica
e socialmente delimitado‖.
Leiamos um exemplo de tentativa de afastamento do mundo opressivo do
seringal, nas declarações de um índio Huni Kuĩ23, senhor Reginaldo pai de um professor
da Terra Indígena Praia do Carapanã, extraídas do documentário Manã Bai, da série
Cineastas Indígenas, do cineasta Zezinho Yube, sobre a vida deste professor, aliás,
seu próprio pai Joaquim Maná. Perguntando a seu avô porque ele quis que seu pai
estudasse eis a resposta:
O seu pai também não falava na língua. Ele brincava com os filhos do branco.
Os amigos dele era Vânia, Irineu e uma outra menina, filhos do patrão Chico
Isaias. Eles iam juntos para a escola. / .../ Eu queria ver a capacidade dele virar
patrão. Patrão, padre ou doutor (médico). Ou alguma coisa no futuro dele. Por
isto eu queria que ele estudasse. Ele virou professor. Eu errei no chute. Pensei
que ele seria doutor (médico) ou padre ou teria outros conhecimentos. Em todo
canto as pessoas já sabiam ler e escrever, mas onde eu trabalhava ninguém
sabia. Eu queria que ele fosse gerente ou contador do patrão. Queria ver ele
ganhando o seu dinheiro.
23 Por ocasião da 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em 1953, adotou-se uma convenção para uniformizar a maneira de escrever
os nomes das sociedades indígenas nos textos em língua portuguesa. Esta convenção dispõe que os nomes tribais devem ser escritos com inicial maiúscula,
sendo facultativo o uso dela quando tomados como adjetivos, mas, mesmo que usados como substantivos ou como adjetivos, não terão flexão de gênero ou de
número, a não ser que os nomes sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados.
Portanto fica claramente expresso nas declarações do senhor Reginaldo
Kaxinawa que a educação já era, pelo menos 30 anos antes da implantação da escola
EEIID e B, uma fonte de subjetividade no sentido que se enxergava nela uma
possibilidade de saída e superação de um mundo opressivo. No entanto, dada a
conjuntura daquele momento, não se pensava na possibilidade de ascensão social via
ingresso no magistério. Aliás, Aquino, (ibdem, p. 3), diz que ao visitar os Katukina em
1975, ―Havia uma escola ao lado da ―rua dos caboclos‖ e o professor do Mobral posto à
disposição pela Prefeitura local, ensinava a esse grupo Katukina a ―desenhar o nome‖.
No mesmo relato, Aquino (ibdem, p. 4) escreve que ―Os Katukina tinham o Prefeito em
grande estima, pois, diziam eles, lhes havia visitado em Morada Nova e prometido
professor para ensinar as crianças e adultos do grupo‖.
Analisaremos no terceiro capítulo como vai se operar um movimento pelo qual a
escola, ao inaugurar-se a categoria EEIID e B, irá tornar-se mais nitidamente um
elemento de subjetividade, e o ingresso de indígenas no magistério passa a ser um
forte elemento motivador da expansão e introdução de escolas em todas as Terras
Indígenas - TI‘s do Acre.
Não há controvérsias quanto ao fato de que as populações indígenas presentes
na América não são autóctones. Para Marconi e Presotto (2006, p. 214/5), a teoria mais
aceita é a do pesquisador francês Paul Rivet, segundo a qual as populações
americanas pré-colombianas chegaram ao continente em levas migratórias sucessivas
por três vias de acesso:
a) o estreito de Behring (grupos asiáticos);
b) a Antártida e a Terra do Fogo (grupos australianos);
c) o Oceano Pacífico (grupos polinésios).
Assim como há controvérsias no fato de que essas populações não são
autóctones, é pacífico que a cultura por elas desenvolvida o é, pois esta cultura é o
resultado de uma ocupação que tem em torno de 40 mil anos.
No caso brasileiro, e particularmente amazônico, estudos arqueológicos e
paleontológicos revelam, como nos referimos acima, uma estimativa da presença
humana na região desde cerca de 10.000 anos, tendo o processo de povoamento se
iniciado pelo Peru Central por hordas que estavam no estágio cultural de caçadores.
Para as necessidades de manejo do ambiente em que vivem, os indígenas por
meio de seus sistemas de educação e pesquisa desenvolveram sofisticados modelos
de classificação que dá conta da fauna, flora, solos e dos recursos hídricos. O mesmo
ocorre no que diz respeito aos modos de organização político social e as explicações
cosmológicas.
Os remanescentes que sobreviveram a toda esta sorte de agressões que aqui
estamos analisando, mesmo depois de terem sido obrigados a um convívio por quase
oito décadas agregados ao sistema de aviamento do seringal, ainda são capazes de
inventariar com muita precisão milhares de espécies de plantas e animais,
descrevendo-lhes propriedades e as várias aplicações que estas podem ter, numa
demonstração impressionante de um longo e laborioso trabalho de pesquisa para
obtenção destes conhecimentos.
Utilizam um sistema classificatório que parte da ordenação dos seres. Este
sistema, segundo Lévi-Stauss (1989, p. 25), é a base de todo pensamento, ―pois é sob
o ângulo das propriedades comuns que chegamos mais facilmente às formas de
pensamento que nos parecem muito estranho‖.
A professora Berta Ribeiro já citada e que pesquisa o saber etnobotânico dos
índios brasileiros em Silva et all (1995, p. 205) diz que por seus conhecimentos ―os
índios também contribuíram para a adoção de plantas estimulantes, que se espalharam
pela terra e fizeram a fortuna da indústria dos países do primeiro mundo‖. Ela cita como
exemplo a erva-mate, o tabaco e o guaraná.
Reportando-nos aos índios do Acre segundo Aquino (in: CUNHA, ibidem, p.
431/432), os Kaxinawa estabelecem conhecimento sobre um variado número de
espécies de animais pequenos – Yuinaka ewa pama mishtin, ordenando-os como:
―daniwã (embiara de cabelo) e dividindo estes daniwã, em embiara de cabelo que anda
no chão.
Depois classificam as embiaras de pena como pëia e a subdividem em pëia
ewapabu, quer dizer embiaras graúdas de penas e pëia mishtin, embiaras miúdas de
pena. Por esta classificação eles identificam mais de 50 (cinqüenta) animais pequenos.
Do mesmo modo os Ashaninka, para ficar nos exemplos de duas etnias, uma da
família lingüística Pano e outra Arawak, também têm um sofisticado sistema
classificatório que, para efeito ilustrativo damos o exemplo a seguir.
Esta etnia divide os animais em Witsintsi: animais de cabelo; Shiwãkitsinkari:
animais de pena; Meshinatsinkari: animais de pele e Hinyawere: os animais da água.
Sobre o grau de detalhismo que esta categorização resulta, escreveremos a
seguir a subdivisão dos Witsintsi: animais de cabelo.
Kashekari, reunindo a família dos gatos (mathõtori) e das onças (kashekari); a
categoria otsitsiniro, reúne as famílias das iraras (waatsi), que se subdividem em duas
espécies que são relacionadas pelo tipo de dieta; em seguida vêm os quatis (kapeshi),
as raposas (otsitsiniro) e por último os cachorros do mato (otsitsi); para os macacos a
classificação se subdivide em duas categorias, as thowero e tsiyereriki.
Este critério classificatório permite aos Ashaninka um cabedal de conhecimentos
que cobre todos os animais de cabelo existentes na floresta. E não se trata de
conhecimento somente no sentido de nomeá-los, mas de nomeá-los e descrever seus
hábitos, sistema reprodutivo, a utilização que deles se fazem na culinária, na
terapêutica, para extração de peles para confecção de adornos e utensílios utilizados
na vida diária, a participação do animal no mundo mágico/ritual do grupo etc.
2.3. NÃO HÁ ÍNDIOS NO ACRE
Se fora possível a Tavares Bastos lançar em 1866 a assertiva na qual dizia que
na Amazônia, nas vizinhanças do Pará, por não ser ocupado por civilizados, era tudo
deserto, embora fosse densamente povoada por mais de uma centena de etnias
indígenas, somando uma população estimada em 60.000 (sessenta mil) indivíduos
onde atualmente se constituiu o Estado do Acre, em 1975 o então governador do
Estado professor Geraldo Mesquita escreve ao presidente da Fundação Nacional do
Índio – FUNAI pedindo proteção para os indos, um levantamento das etnias e da
população, pois ao contrário do governador, que era uma nota dissonante no concerto
da ditadura, as demais autoridades do Estado e os representantes dos grupos
econômicos que mandavam no Acre, negavam a existência de indígenas no Estado.
Além de pedir estas providências em favor dos índios o referido governador foi ainda
mais longe e denunciou que as terras acreanas estavam sendo vendidas para grupos
do centro-sul do país e pedia que se demarcasse um território para os índios Katukina e
Kaxinawa que viviam no município de Feijó, próximo à sede municipal.
Trabalhos de pesquisadores como os de Calixto et all, já citados, comprovavam
que naquele momento existiam nove etnias24 que sobreviveram ao contato com os
seringalistas, vivendo em quatro municípios, num momento em que o Estado tinha uma
divisão política em oito, vivendo em diferentes estágios culturais. Para a maioria dos
governantes e dos detentores do poder econômico da época, o que havia, como se
referia o senso comum formado nas escolas do preconceito, era ―uns caboclos25 que
cortavam umas gírias, mas índios mesmos não havia mais. Esta era a versão oficial
corrente.
Estes poderosos falavam a partir de uma posição na qual se legitima um
discurso que atribui a um terceiro a determinação da identidade do outro. O que é
irônico, quando é o índio a quem se tem que atribuir a identidade, é que este modelo
identitário com base no multiculturalismo26 não leva em conta que desde o momento em
que o primeiro padre jesuíta pisou em solo deste Novo Mundo, tudo foi feito para
apagar os vestígios da ―cultura‖ que se exigia que os remanescentes indígenas exibam
24 Yaminawa, Manxineri, Kaxinawa/Huni Kuĩ, Kulina/Madija, Katukina, Kampa/Ashaninka, Puyanawa, Nukini, Arara.
25 Do ponto de vista semântico esta palavra, segundo Sampaio 1995, pode designar o habitante do mato de um modo geral, se
se considerar seu étimo como
cá‘aguy (bosque) e oikova (habitante). Mas segundo este mesmo autor pode também deslizar para outra significação se tomarmos como étimo ca‘a (mato) e b
(elemento de ligação), mais óc (arrancar). Aí caboclo designaria a gente arrancada do mato. Do ponto de vista histórico era o índio dos descimentos missionários.
Mas Cunha 1998 escreve que o étimo da palavra pode admitir também a forma kari‘uoka > cariboca, significando o morador da casa do branco: kara‘iua (o
homem branco) + oka (casa). Na verdade é por este étimo que a palavra é utilizada para designar o gentil que se acostumou ao convívio do civilizado, portanto
desprovido de direitos territoriais e tido em oposição ao que permanece na selva.
26 Estamos nos referindo a multiculturalismo como ponto de vista que atribui um tratamento diferencial para efeito da construção e formação da identidade de um
coletivo humano. Este ponto de vista pode ter um efeito deformador na maneira de se encarar as diferenças, provocando confusão na visão sobre este coletivo ou
do coletivo consigo mesmo, como ocorre com os índios brasileiros, cujo reconhecimento das diferenças se baseia em categorias que são construídas de fora, por
quem está no poder, no caso pelo Estado e um conjunto de instituições da sociedade, que exige, para efeito de validade da identidade indígena, a exteriorização
de traços que em muitos casos não fazem mais sentido para esses coletivos. Este essencialismo cultural é
que é negativo porque condiciona a identidade
indígena a estes traços exteriores. Esta exigência multiculturalista é inclusive incompatível com a natureza inter-relacional das culturas, uma vez que não existe
cultura isolada, que não receba e que não exerça influência sobre outras culturas.
para serem reconhecidos como tais e possam usufruir direitos, sobretudo direitos
territoriais.
Leiamos relato do padre João Daniel (apud FREIRE, 2004, p. 113), sobre os
métodos praticados pela igreja na região do Estado do Grão-Pará para apagar as
línguas indígenas. No exemplo específico trata-se de uma índia nheengaíba da ilha do
Marajó, cujos maridos proibiam-nas o uso de língua que não fosse a materna.
Como porém as confissões das tapuias por intérprete trazem consigo muitos
inconvenientes, tem-se empenhado muitos missionários a desterrar este abuso,
já com práticas, e já com castigos: e posto que já vai em muita diminuição,
contudo ainda há algumas, que nem a pau querem largar este abuso, tanto que
já houve algumas às quaes o seu missionário mandou dar palmatoadas até elas
dizerem basta ao menos pela língua geral.
No caso do Acre, de contato mais recente entre índios e brasileiros, há uma
profusão de relatos dos índios da geração acima dos 50 (cinqüenta) anos de idade em
que se descreve como eles eram proibidos de falarem na língua indígena. O próprio
senhor Reginaldo pai do professor Joaquim Maná diz que eles falavam escondidos ou
quando se encontravam sozinhos, mas assim que pressentiam a presença de nawá27
falavam somente em português.
Havia também casos em que os patrões não despachavam as mercadorias
essenciais ao trabalho de extrativismo se caso os pedidos não fossem feitos em
português. Os índios com pouca ou nenhuma proficiência em português sofriam muitas
privações, pois mesmo sem ter as mercadorias essenciais para a extração de látex,
eram obrigados a prestarem contas ao final do mês e apresentarem sempre uma
produção X exigida pelo patrão, sob o risco de, em não o fazendo, serem expulsos do
seringal com a pecha de vadios e preguiçosos.
Mas a estratégia não consistia apenas na indução à perda lingüística, era
também extensiva à perda de qualquer outro traço da cultura dos ancestrais. O
professor Mana relata que quando os índios iam visitar os parentes e realizar suas
27
Nawá
com variação para dawa, nas línguas indígenas da família Pano designa o outro, o estrangeiro, podendo este outro ser um agente humano ou uma
entidade sobre-humano.
festas tradicionais, os patrões diziam que eles eram preguiçosos e os expulsavam dos
seringais para colocar seringueiros nawá.
Este contexto de estímulo à perda cultural e até mesmo as práticas mais
sistemáticas do etnocídio explícito, fizeram parte da estratégia do contato em todo o
território brasileiro em todos os momentos desta história. E, não obstante toda a
documentação que comprova esta prática etnocida até o presente, mesmo com as
mudanças sugeridas a partir da Constituição de 1988, na relação dos índios com a
sociedade e o Estado brasileiros, ainda se utiliza a métrica do multiculturalismo para
reconhecer direitos aos índios.
Foi para provar que havia índios no Acre que o então governador Geraldo
Mesquita solicitou um representante da FUNAI no Estado. Seu desejo era ter um
diagnóstico, que seria utilizado como selo para comprovar a existência de índios, pois
era voz corrente, segundo seringalistas remanescentes, seus prepostos e as
autoridades oficiais representantes do Estado, que no Acre só havia caboclos e que
estes não eram portadores de quaisquer direitos.
É bastante significativa a observação do antropólogo Roberto Cardoso de
Oliveira sobre o adjetivo caboclo atribuído aos índios Tükúna do alto Solimões em
contato prolongado com as populações não-índias. Percebe-se que de fato a atribuição
deste adjetivo além de depreciar as condições étnicas dos indígenas se presta para
justificar a expropriação territorial dessas populações. Ela expressa uma situação limite
em que os grupos nestas condições são portadores de uma identidade cindida.
O texto de Oliveira (1996, p.117), diz que o caboclo é um ser
transfigurado pelo branco /.../ porquanto se constitui para o branco numa
população indígena pacífica, ―desmoralizada‖ atada às formas de trabalho
impostas pela civilização, e extremamente dependente do comércio regional.
Em suma, é o índio integrado (a seu modo) na periferia da sociedade nacional,
oposto ao índio ―selvagem‖... ―
Mas os índios colocados nestas condições vivem um dilema, pois têm sua
consciência divida em duas, prossegue Oliveira: ―uma voltada para os seus ancestrais,
outra para, os poderosos homens brancos, homens que os circundam‖. Logo se
percebe que há uma luta dos índios para saírem dessa posição cindida e recuperar
uma identidade que tenha referências no repertório cultural de seus ancestrais.
Os poderosos brancos, no dizer de Oliveira, sabem desta reação dos índios, por
isto insistem no discurso que atribui o adjetivo caboclo como identidade negativa e
irreversível. Por isto a insistência, tanto dos representantes do Estado quanto dos
seringalistas, no discurso de que os caboclos não têm direitos e se constituíam em
óbices ao desenvolvimento regional, no caso os indígenas dificultavam a implantação
do projeto de pecuarização que o poder público federal e estadual tinha para a região
do Sul amazônico.
Os seringalistas estavam ansiosos em vender os seringais para os pecuaristas
que chegavam ao Estado em profusão, atraídos pela propaganda oficial e pelos fartos
subsídios oficiais fornecidos pelos bancos de fomento: Banco da Amazônia – BASA,
Banco do Estado do Acre – BANACRE e o Banco do Brasil – BB.
Hoje é possível se confirmar o que já se sabia no momento em que se implantou
o plano para a venda dos seringais: a maioria deles não era legalmente de propriedade
dos seringalistas, mas como detinham força política foi possível vendê-los causando
mais transtornos aos remanescentes indígenas e aos seringueiros, sendo que se
instalaram na região havia pelo menos oito décadas.
Ao se realizarem as investigações para o estabelecimento da cadeia dominial
das terras do Acre, se constata que a presença mais longa e constante é a dos
indígenas, que os seringalistas, como vimos expondo neste trabalho são de ocupação
recente, resultando com isto que a maior parte do território é constituída por terras
devolutas, isto é, terras pertencentes ao Estado, sobretudo a União Federal.
A partir da solicitação do governador Mesquita a FUNAI designou para a missão
no Acre o experiente indigenista José Porfírio de Carvalho, e o diagnóstico contrariou o
que esperava a maioria das autoridades e os seringalistas do Acre: no Estado, de fato,
sobreviveram etnias indígenas e mesmo com todo o tipo de discriminação e imposições
impeditivas para que estes não manifestassem sua cultura autóctone, eles mantinham
elementos muito significativos desta cultura, como constatou surpreso o antropólogo
Aquino ao realizar sua pesquisa para o mestrado em antropologia social na
Universidade de Brasília – UNB, no ano de 1975;
Nesse sentido, Sueiro foi o único informante Kaxinawa que fazia comentários
sobre esta vida que todos pareciam negar, num esforço supremo de se
identificarem com os mesmos hábitos e costumes dos seringueiros regionais.
Através de nossas longas conversas pudemos perceber que ainda existe entre
eles um par de metades, com designações diferentes para cada sexo: a metade
A onde os homens são classificados de ―dua‖ e as mulheres ―banu‖; e a metade
B em que os homens são denominados ―inu‖ e as mulheres ―inani‖. Sueiro
chamava a metade A de ―duabakebú‖ e a B de ―inubakebú‖, privilegiando assim
a parte masculina dos membros. (AQUINO, ibidem, p. 16)
Com a instalação da FUNAI no Estado e o vínculo que Aquino estabelece com
os Huni Kuĩ/Kaxinawa tem início um movimento indigenista e indígena no Acre, que
ocorre em paralelo ao movimento sindical de trabalhadores rurais já em curso
mobilizando, sobretudo os seringueiros não-índios. Este movimento é estimulado pela
Igreja Católica, via Comunidades Eclesiais de Base – CEB‘s e pela recém instalada
delegacia regional da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura –
CONTAG. Acerca do movimento desta época consulte a obra Trajetórias da Luta
Camponesa na Amazônia-acreana, organizada por Paula e Silva.
O movimento indígena é desenvolvido e estimulado por duas vertentes do
indigenismo: uma eclesial, tendo à frente a igreja católica e a IECLB, também sob
influência do movimento das CEB‘s, junto às etnias Kulina/Madija dos rios Envira e
Purus, Kaxinawa e Shanenawa também do Envira e Purus, Katukina e Arara de
Cruzeiro do Sul e Porto Walter e Jamamadi de Boca do Acre no Amazonas. Os
trabalhos indigenistas da igreja são desenvolvidos por missionários da Operação
Anchieta – OPAN, atualmente Operação Amazônia Nativa, e do CIMI.
A outra vertente do indigenismo acreano é capitaneada pelo antropólogo Aquino,
com um trabalho inicialmente de base no interior dos seringais, visando o
reconhecimento e reconquista territorial junto aos Kaxinawa do rio Jordão. Este trabalho
terá como resultado a fundação da Comissão Pró-Índio do Acre – CPI/AC no início da
década de 1980.
Este proto-movimento indigenista tem um caráter organizatório dos índios
visando criar um movimento indígena que fosse protagonista das lutas reivindicatórias
para a reconquista dos direitos territoriais perdidos ao longo do processo do
extrativismo da borracha.
Do ponto de vista da abrangência, em termos das etnias em sua fase inicial, a
luta indigenista, tanto da parte da CPI quanto da Igreja estava restrita a poucas etnias:
Kaxinawa, Madija, Katukina, Arara, Shanenawa e Jamamadi. Mas já no início dos anos
de 1980, a CPI alargará o espectro de sua atuação abraçando o trabalho com outras
etnias do Acre, além de duas situadas fora do Estado: os Kaxarari do Sudoeste de
Rondônia e os Apurinã do Sul do Amazonas.
A atuação da igreja ganhará um reforço com a entrada em cena do padre
Paulino Baldassari28, que incluirá serviços de educação e cooperativismo para os
Manxineri e Jaminawa dos rios Acre e Yaco e também para os Madija e Kaxinawa do
Purus.
Apesar de sua decadência, a borracha ainda era um item importante na
economia acriana e, sobretudo na manutenção de populações tradicionais na floresta –
tanto índios quanto não-índios – sendo que havia um exército de indígenas que se
mantinha vinculado a ela, vivendo em situação de exploração semi-escrava sob
domínio dos seringalistas. Este fato levou os militantes indigenistas ligados à CPI e à
igreja católica, a colocar em suas pautas de atuação a busca de formas alternativas
para driblar esta exploração dos índios seringueiros pelos patrões e seus prepostos.
Com isto conseguem-se recursos para a implantação de cooperativas entre os
Kaxinawa da então Vila Jordão e os Madija da então Vila Manuel Urbano no rio Purus.
Este trabalho de cooperativismo da parte da CPI foi acompanhado de uma
experiência de alfabetização em língua portuguesa, desenvolvido por duas voluntárias,
as professoras Concita Maia e Keila Diniz, visando a preparação dos índios
responsáveis pela gestão dos negócios da cooperativa.
28 Sacerdote católico italiano que vive há mais de cinco décadas na Amazônia. Sua figura carismática, sempre de batina, pode levar a interpretações distorcidas
sobre seu compromisso com as causas populares. O antropólogo Darcy Ribeiro quando o viu num curso de iniciação à antropologia promovido em Manaus no
final da década de 1970 pelo CIMI, teve esta impressão, que logo foi desfeita ao ouvir os relatos de sua atuação em favor de índios e seringueiros do Acre, num
momento em que imperava o poder dos fazendeiros, que contavam com o apoio ostensivo do Estado e de milícias particulares constituídas por jagunços. Nos
anos de 1960 padre Paulino já desenvolvia atividades progressistas que somente em meados dos anos de 1970 foram assumidas pela igreja católica do Acre,
quando esta aderiu à Teologia da Libertação, tendo à frente o bispo dom Giocondo Maria Grotti. Atualmente a igreja sofreu um retrocesso, aderindo ao modismo
da Renovação Carismática, mas o padre Paulino continua fiel a uma linha pastoral de compromisso histórico com os oprimidos da sociedade acriana.
O professor Ibã Kaxinawa da TI Jordão tem a seguinte memória sobre este
acontecimento:
―Com a continuidade chegou com mais duas mulheres na nossa comunidade
para alfabetização do povo Huni Kuĩ, passando três meses iniciando as
disciplinas de matemática e língua portuguesa. O nome das professoras era
Concita Maia e Keila Diniz‖. (Trabalho apresentado na disciplina História da
Educação Escolar Indígena no Brasil, no Curso de Formação para Docentes
Indígenas da UFAC Campus Cruzeiro do Sul, 2009).
Da parte da igreja se desenvolviam duas vertentes de atuação na educação
escolar. Numa, a experiência de missionários morando nas aldeias, foi reforçada com o
ingresso de missionários da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB,
indo morar também entre os Madija do rio Purus.
A outra vertente tinha por protagonista o padre Paulino Baldasari, vigário da
paróquia de Sena Madureira. Ele passou a implantar escolas em aldeias das etnias
Jaminawa e Manxineri dos rios Yaco e Acre, dos Kaxinawa e Madija do rio Purus.
O professor Manuel Monteiro Chipre da etnia Manxineri localizada em Sena
Madureira tem uma memória deste momento que ele expressa da seguinte maneira:
―Aqui no Acre, na maioria das comunidades indígenas, a educação escolar começou
com os missionários e os padres que pregavam o evangelho‖. (Trabalho apresentado
na disciplina História da Educação Escolar Indígena no Brasil, no Curso de Formação
para Docentes Indígenas da UFAC Campus Cruzeiro do Sul, 2009).
O trabalho do padre Paulino consistia basicamente na construção de pequenos
prédios escolares em madeira, e a contratação dos professores com recursos que ele
conseguia entre seus familiares e devotos da igreja católica da Itália.
No caso dessas escolas do padre Paulino, como elas eram conhecidas à época,
não havia filiação a um modelo pedagógico diferenciado, como no caso das
experiências da CPI e dos missionários da OPAN e os luteranos que iam residir nas
aldeias, e que organizavam a escola com base nos pressupostos da chamada
metodologia de Paulo Freire, pautada numa pedagogia crítica e problematizadora.
O objetivo do padre Paulino era preparar os índios para a vida comunitária das
CEB‘s e também para se defenderem nas negociações com os patrões e
atravessadores, conforme fosse a conjuntura do grupo em que a escola estivesse
localizada.
Os materiais didáticos utilizados nessas escolas eram os que o Estado ou a
prefeitura forneciam, com o reforço de materiais críticos produzidos pela igreja no
âmbito do referencial da Teologia da Libertação para uso dos agentes de pastoral
católicos.
Os professores também não tinham uma formação pedagógica específica, mas
os que eram monitores da igreja, como eram chamados os agentes de pastoral que
atuavam nas CEB‘s, e a maioria o era, passavam por formação para o exercício desta
monitoria, e esta formação priorizava o desenvolvimento do senso crítico desses
agentes com base no materialismo histórico29.
No âmbito da política indigenista oficial, à época estava em vigor a idéia da
―integração do índio à comunhão nacional‖. Esta política corroborava a posição dos
latifundiários que tinham interesse em se apropriarem das poucas terras que os
indígenas haviam conseguido manter sob seus domínios. A Lei 6.001 de 19 de abril de
1973, mais conhecida como Estatuto do Índio, apregoava com todas as letras que era
dever do Estado e da Sociedade Nacional envidar todos os esforços para trazer os
indígenas à comunhão nacional. Para tanto se prescrevia a educação escolar como
uma das estratégias para alcançar este objetivo, conforme podemos constatar no
trecho que transcrevemos abaixo.
Art. 50.º A educação do índio será orientada para a integração na comunhão
nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e
valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões
individuais
29 Materialismo histórico é um método desenvolvido por Karl Marx que explica as mudanças importantes ocorridas na história da humanidade através do tempo.
O método estuda os fatos históricos investigando os elementos contraditórios que dão continuidade ao processo histórico. No feudalismo este processo se dava
pela oposição entre o senhor e o servo da gleba, no capitalismo a contradição se dá entre o capitalista e o proletário. Por este método Marx constatou que o modo
pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o fator determinante da organização política e das representações morais, espirituais e
intelectuais de uma época, por isto é que ele considerava a base material ou econômica da sociedade como infra-estrutura da sociedade, pois é ela que exerce
influência direta na superestrutura, ou seja, nas instituições jurídicas, políticas (as leis, o Estado) e ideológicas (as artes, a religião, a escola, a família, a moral) em
cada época.
Para viabilizar esta estratégia da Lei, por esta época estava em voga a
implantação de escolas nos Postos Indígenas, assim se chamavam então as unidades
administrativas mantidas pela FUNAI dentro das TI‘s, que incentivava a organização de
uma escola, geralmente sob a responsabilidade de um professor não-índio, na maioria
dos casos um indigenista de seus quadros que, às vezes era apoiado por um falante da
língua, que exercia a função de monitor bilíngüe. Atualmente ainda existem três
indígenas que têm este vínculo com a FUNAI, dois Kaxinawa e um Shanenawa, mas
como a entidade não mantêm mais este tipo de serviço, eles foram remanejados e
exercem funções administrativas no órgão indigenista oficial do Estado.
A idéia era ensinar o português ao índio como estratégia para que este se
estimulasse a ir morar na cidade, liberando a terra para a implantação de
empreendimentos produtivos, conforme a linguagem da época. Mas ocorria também do
ofício de escolarizar recair sobre um líder ou um familiar de seu círculo próximo, como
um filho do cacique, e este grupo ter reforçado o seu poder político via a escolarização.
Este fenômeno foi estudado por Ingrid Weber, 2006, no caso dos Kaxinawa/Huni
Kuĩ do rio Humaitá. Ela constata um reforço do poderio da família do cacique Vicente
Sabóia que aprende rudimentos de leitura, escrita em português, além de cálculos
matemáticos numa viagem de tratamento de saúde na Casa do Índio em Rio Branco.
Sua experiência escolar durou apenas 28 dias, o tempo de sua permanência em
tratamento, mas foi suficiente para lhe ampliar os poderes de líder, fortalecendo-o
perante seus pares Huni Kuĩ no embate com os seringalistas, uma vez que ele somava
a força por ser índio com o domínio de um conhecimento até então restrito aos brancos.
Este aspecto é interessante porque veremos que com a criação da EEIID e B os
professores serão investidos de um poder muito grande advindo tão somente dos
conhecimentos escolares, sem que eles necessitem assumir atribuições do mundo
indígena ou responsabilidades específicas com a tradição ante o grupo. O poder de
professor compete com o de liderança tradicional e muitas vezes contribui para a
implosão, subtração ou apagamento do poder tradicional do cacique ou do pajé.
Outra forma de difusão do ensino escolar nas aldeias se dava pelo estímulo do
Estado, via agência indigenista oficial, no licenciamento para que missionários
evangélicos, geralmente estrangeiros, se instalassem nas TI‘s, sendo que estes tinham
uma preocupação muito maior com a conversão dos índios. Para tanto eles aprendiam
a língua com o intuído de traduzir a bíblia e lecionavam em língua indígena, pois a
experiência histórica desde o início do povoamento das Américas pelo homem europeu
e a implantação das primeiras escolas católicas no Brasil, demonstrava que ensinar na
língua leva a uma conversão mais rápida e eficaz. Depois do índio convertido tornava-
se mais fácil aprender o português e desaprender todo o repertório guardado da cultura
moldada por sua tradição étnica.
No final da década de 1970 – conforme já nos referimos mais acima – os
missionários da OPAN ligada ao CIMI, passam a desenvolver trabalhos de educação
voltados para a recuperação, valorização e preservação do patrimônio cultural dos
povos indígenas, com ênfase na produção de materiais didáticos, dicionário e gramática
na língua Madija, em benefício de grupos desta etnia localizados nos rios Envira e
Purus, no município de Feijó e na então Vila Manuel Urbano.
No início da década de 1980 entram em cena os missionários luteranos, no rio
Purus, só que na então vila Santa Rosa do Purus, desenvolvendo trabalhos da mesma
matriz pedagógica desenvolvida pelos missionários católicos.
Era claramente uma reação ao modelo educacional oficial em vigor, cuja base
era uma educação escolar com finalidades de conversão religiosa e de transição
cultural para integrar o índio à comunhão nacional.
Os trabalhos desenvolvidos por esses missionários tinham apenas alcance local
no âmbito daquela etnia, pois a idéia era não estandardizar um modelo que ao fim
trabalhasse com a idéia de índio genérico, em que o que fosse válido para os Madija
fosse válido também para os Manxineri, os Katukina, embora aqueles pertencessem à
família lingüística Arawa e estes à Arawak e Pano, respectivamente.
Em 1983 a Comissão Pró-Índio do Acre – CPI/AC, com base na experiência
realizada pelas voluntárias nas aldeias Kaxinawa da então Vila Jordão, inicia o trabalho
denominado Uma Experiência de Autoria, no qual a ênfase é a formação de
professores indígenas e a elaboração de materiais didáticos específicos produzidos em
língua indígena ou adaptados à aquisição do português, numa perspectiva de
valorização das línguas indígenas, da variante do português falado pelos índios, bem
como os costumes e tradições herdados dos ancestrais.
Este modelo também é de negação do modelo oficial com base na conversão
étnico/religiosa com objetivo de transição à condição de não-índio.
A escola indígena surge no Acre numa conjuntura histórica polarizada. De um
lado os defensores de uma FD que atribui aos índios uma negatividade, portanto como
sujeitos assujeitados, não portadores de direitos e passíveis de ocupar apenas
posições subalternas no contexto da sociedade nacional assumindo a identidade de
caboclos.
Mas esta nova conjuntura apresentava a possibilidades da emergência de outra
formação ideológica, possibilitando um novo quadro de referências e, portanto uma
nova FD, que comportava a positivação do sujeito indígena a partir dos valores
autóctones que foram desconsiderados desde que o primeiro europeu pisou as terras
americanas.
Este novo paradigma não poderia incorrer nos equívocos do modelo do bom
selvagem que inspirou, sobretudo a literatura romântica, pois esta idealizava o índio do
século XVI, que os autores românticos do século XIX não conheceram.
Contraditoriamente, no entanto, os autores românticos tratavam o índio seu
contemporâneo com base numa ideologia tributária da FD que negativava o índio real,
aquele que lhes era possível conviver e observar.
A idealização de um índio despido de seus atributos autóctones era tão gritante
que chegava às raias do absurdo, como podemos constatar neste fato narrado pelo
historiador Sérgio Buarque de Holanda, apud (SAEZ, 1995, p.255), em que o poeta
Basílio da Gama escreve uma carta a seu colega, o poeta romano Metastasio, dizendo
que cena digna de ver era ―a das nossas índias a chorar, tendo às mãos vossos livros,
e a fazer um ponto de honra em não ir ao teatro sempre que o espetáculo apresentado
não seja o de Metastasio‖.
O indigenismo inaugurado pelas Organizações Não Governamentais – ONGs, no
final da década de 1970 e início da de 1980, tinha que atuar à margem desses modelos
de visão sobre os índios, dessas duas F D‗s já dadas historicamente e ambas
desvantajosas para entender e representar o índio real sobrevivente dos massacres
perpetrados ao longo do tempo em que a atividade gumífera foi hegemônica e mesmo
na fase em que ela não era economicamente tão forte, mas conseguia sobreviver
graças aos incentivos, primeiro do Banco da Borracha e depois do BASA.
Este será o fulcro da atuação indigenista acreana, tanto na vertente desenvolvida
pela CPI quando pela igreja. Mas enquanto esta opta por um trabalho denominado de
inculturação, no qual seus missionários vão conviver com os índios numa troca cultural
em que o missionário é, além de educador, aprendiz das práticas culturais do outro,
dentre elas a língua do povo, a CPI opta por um trabalho de outra natureza, mais
abrangente selecionando voluntários indígenas para serem preparados para o
magistério nas aldeias onde iriam lecionar aulas num contexto de bilingüismo e
interculturalidade.
A CPI desde o início de sua atuação em 1983 trabalha no sentido de criar um
modelo de educação escolar indígena que possa assumir caráter universal, primeiro
para a maioria das etnias presentes no território acreano e no Sul do Estado do
Amazonas e Noroeste de Rondônia, razão pela qual trabalha na formação
concomitante de professores de diversas etnias tendo, em tese, o cuidado de conservar
as diferenças no que diz respeito à construção dos Projetos Políticos Pedagógicos –
PPP‘s, e na elaboração de materiais didáticos diferenciados.
Outra característica da atuação da CPI é sua vinculação ao Ministério da
Educação e Cultura – MEC desde o início quando este ainda estava sob domínio da
ditadura militar. Esta vinculação da CPI ao MEC facilitará o trânsito de seus agentes em
diferentes Estados do Brasil para onde levam a idéia do projeto Uma Experiência de
Autoria.
Com esta facilidade de trânsito na entidade maior da gestão da educação
brasileira, os agentes da CPI tornar-se-ão consultores do MEC, ou partícipes dos
círculos de decisão que são criados no ministério para deliberar sobre educação
escolar indígena no Brasil, abrindo espaços também para alguns quadros do magistério
indígena acriano atuar como consultores na expansão da experiência de educação
escolar indígena do Acre para outros Estados brasileiros.
Neste contexto o projeto Uma Experiência de Autoria torna-se referência de
educação escolar indígena para o Brasil, de forma que em quase todos os documentos
oficiais que circulam no país sobre o tema – há poucas exceções – haverá a chancela
de um consultor da CPI ou alguma referência a experiências desenvolvidas por
professores ligados a esta ONG.
Este será o assunto de nosso próximo capítulo.
A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, INTERCULTURAL,
DIFERENCIADA E BILÍNGUE NO ACRE
Eu vejo hoje esse grande número de acadêmicos. Quando comecei a luta não
tinha praticamente nenhum. E nós conquistamos mais de 15 tekoha Kaiowá
Guarani. E hoje, com todos esses estudantes, não estamos conseguindo mais
conquistar nenhum pedaço de terra. (Hamilton Lopes – liderança Guarani
Kaiowá).
3.1. PARA INÍCIO DE CONVERSA
Até este capítulo vimos apresentando um quadro geral da questão indígena em
nosso país, focado na educação escolar, destacando no capítulo anterior o caso do
Acre que deu origem ao modelo de EEIID e B, atualmente aplicado como política
pública nas escolas indígenas de todas as etnias brasileiras.
Neste capítulo analisaremos a EEIID e B que foi criada e desenvolvida no Acre,
enfocando, como já mencionado, documentos oficiais produzidos pelo MEC e pela CPI.
Mas para efeito de situar a questão no âmbito do marco legal, vale iniciar a
escrita deste capítulo considerando que até 1988, data da promulgação da Constituição
ora em vigor, não havia na legislação específica da educação, no caso a Lei 5692/71 –
Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, vigente até 1996, qualquer referência à
educação escolar orientada para os indígenas. As referências sobre esta questão eram
dadas pela Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973, o chamado Estatuto do Índio. No
titulo V, no artigo 50 desta Lei está escrito que:
A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional
mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores
da sociedade nacional, bem como do aproveitamento de suas aptidões
individuais.
Como se vê, a referência a uma educação para indígenas estava orientada para
a integração do índio à sociedade nacional, à ocidentalização. É que à época da
Ditadura Militar vigorava a idéia que o índio era uma categoria em transição.
Mas não eram só os representantes da ditadura militar que ousavam
prognosticar uma data para o fim da existência de índios no Brasil, o sociólogo Hélio
Jaguaribe em 1995, portanto às vésperas da Promulgação da nova LDB, Lei Nº
9394/1996 que assegurou o reconhecimento de vários direitos aos indígenas, como o
direito territorial e a uma educação específica e diferenciada, ocupou os meios de
comunicação para decretar que no Brasil não haverá mais índios até o final do século
XXI.
Este sociólogo segundo palavras do professor Bessa Freire, é um intelectual
orgânico30, em oposição à idéia de intelectual tradicional, que tenta aparentar relativa
autonomia e independência. Por isto, apesar de uma formação sociológica sólida e
erudita, Jaguaribe concebe os índios como seres atrasados, como ele mesmo escreve,
seres em estágio neolítico, porque isto favorece o pensamento que predomina na
classe dominante que tem interesses nos territórios sob domínio dos índios.
Para os portadores deste pensamento, só são índios os seres que estejam neste
estágio, os que usam celular, que falam português ou que estudam, não são mais
índios. Portanto, não são merecedores de direitos territoriais.
O contraditório é que ao menos do ponto de vista dos marcos legais, esta
tendência deixou de vigorar a partir da promulgação da Nova Constituição. Em seu
Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto, na Seção I – ―Da Educação‖, no
Artigo 210, § 2º se lê o seguinte:
30 Para Gramsci todos os membros de uma agremiação devem ser considerados intelectuais, não pelo seu nível de erudição, mas pelas funções que exercem. O
"intelectual orgânico" é aquele que, em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e
consciência a essa classe, também nos planos político e social. (Moraes)
O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem.
Do ponto de vista da legislação anterior, referindo-nos ao Estatuto do Índio, o
avanço está na novidade referente à permissão para que seja assegurada às
comunidades indígenas a utilização de processos próprios de aprendizagem em suas
escolas, já que no art. 49 da Lei 6.001 está escrito que ―A alfabetização dos índios far-
se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português, salvaguardando o uso da
primeira‖.
Mas a Nova Constituição, promulgada sob uma forte pressão dos movimentos
sociais, sindicais e populares, registrará outros avanços nas questões pertinentes aos
direitos educacionais indígenas, remetendo muitas coisas para regulamentação em
legislação complementar, como a Lei Nº 9.394, promulgada em 1996, sob o título de Lei
Darcy Ribeiro, por ter sido este intelectual, à época senador da república, autor do
substitutivo que deu base ao texto aprovado da Lei.
Afora a LDB há uma série de portarias do Ministério da Educação e resoluções
do CNE que irão beneficiar as comunidades indígenas em seus direitos a uma
educação escolar diferenciada.
Como já nos referimos nos capítulos anteriores, o modelo denominado EEIID e B
tem uma forte contribuição do movimento indígena acriano, notadamente daquele que
foi desenvolvido pela CPI/AC.
Atualmente, segundo dados da CEEI da SEE, há no Estado do Acre 161 (cento e
sessenta e uma) escolas indígenas funcionando sob esta modalidade, sendo que 111
(cento e onze) são geridas pelo sistema estadual de ensino e 50 (cinquenta) pelos
sistemas municipais. Vê tabela no anexo dois.
No ano letivo de 2008 estas escolas registraram um total de matrículas de 5.654
(cinco mil, seiscentos e cinqüenta e quatro) alunos, sendo 3.809 (três mil, oitocentos e
nove) no sistema estadual e 1.845 (mil, oitocentos e quarenta e cinco) nos sistemas
municipais. Idem tabela no anexo dois.
O quadro de magistério indígena está assim distribuído: 258 (duzentos e
cinquenta e oito) professores pertencem à rede estadual de ensino e 42 (quarenta e
dois) às redes municipais. Idem tabela no anexo dois.
Do ponto de vista da formação destes professores, segundo dados da CEEI da
SEE, ver anexo três, registra-se o seguinte quadro: 205 (duzentos e cinco) estão sendo
atendidos em cursos de nível fundamental, na modalidade de formação em serviço.
Esta formação consiste em oferta de cursos e estes atentam para as características
específicas e diferenciadas, que a EEIID e B prescreve. Outros 99 (noventa e nove)
professores já foram beneficiados com cursos da mesma natureza em nível médio.
Estes dois segmentos de formação são oferecidos pela Secretaria de Estado de
Educação do Acre – SEE/AC, por meio da Coordenação de Educação escolar Indígena
– CEEI.
Os 99 (noventa e nove) que já terminaram a formação em nível médio estão
fazendo cursos em nível superior, em várias modalidades, como pedagogia, Formação
para Docentes Indígenas ou licenciaturas. Uma parte destes 99 (noventa e nove)
professores indígenas está matriculada em cursos oferecidos pela SEE/CEEI e que são
ministrados pela UFAC. Estes cursos ocorrem diretamente nos municípios em que se
localizam os professores, haja vista que eles são destinados a docentes leigos de áreas
rurais, num programa que visa cumprir uma disposição transitória da LDB que pretendia
capacitar em nível superior todos os professores leigos até o ano de 2007, a chamada
década da educação. Outra parte destes professores está fazendo o Curso de
Formação para Docentes Indígenas, oferecido pela Universidade Federal do Acre –
UFAC, no Campus Floresta em Cruzeiro do Sul. Este curso é uma licenciatura
específica para a modalidade EEIID e B e visa beneficiar os quadros que estão
exercendo a docência indígena.
Dos cinco professores que já têm a formação superior, um está fazendo
mestrado em lingüística na Universidade de Brasília – UNB.
Finalizamos esta pequena apresentação acerca do marco legal que dá amparo a
EEIID e B, colocando alguns pontos acerca da Resolução 003 CEB/CNE. Esta
resolução foi aprovada na Câmara de Educação Básica – CEB, do Conselho Nacional
de Educação – CNE, no dia 10 de novembro de 1999 e publicada no Diário Oficial da
União e sete dias depois. Ela fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das
escolas indígenas e dá outras providências, e foi assinada pelo professor Ulysses de
Oliveira Panisset, Presidente da CEB do CNE.
O Artigo 1.º da resolução 003/99 é muito importante, pois ele aponta para as
condições de criação da categoria EEIID e B, estabelecendo,
no âmbito da Educação Básica, a estrutura e o funcionamento das escolas
indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e
ordenamento jurídico próprios e fixando as diretrizes curriculares do ensino
intercultural e bilíngüe, visando à valorização plena das culturas dos povos
indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica. (Disponível
em Programa Parâmetros em Ação - Educação Escolar Indígena: As Leis E A
Educação Escolar Indígena, MEC, 2002, p. 69).
Esta resolução define outros pontos essenciais para o estabelecimento da EEIID
e B como segmento autônomo no âmbito da estrutura do Sistema de Ensino brasileiro,
como em seu Artigo 8º que fixa as bases para a criação da profissão de docente
indígena, assegurando que esta ―será exercida prioritariamente por professores
indígenas oriundos da respectiva etnia‖ (Ibidem, p. 70).
Todos os artigos desta resolução contribuem para a constituição da EEIID e B,
mas estes dois artigos que transcrevemos são suficientes para a análise que nos
propomos, pois eles são a base que criam as condições para o nascimento deste novo
sujeito indígena, ou o lugar sujeito professor indígena. Na conjuntura anterior à
resolução 003/99 este lugar sujeito existia parcialmente pela atuação dos chamados
monitores indígenas bilíngües, mas eles eram coadjuvantes de docentes não indígenas
na tarefa de ensinar na própria língua, que o professor contratado pela FUNAI não
dominava. Outro aspecto que assinala o caráter parcial deste lugar sujeito era que a
função de monitor bilíngüe era desprovida de base legal.
Este aspecto é importante para nossa análise, porque como colocado na
epígrafe deste capítulo pelo líder Guarani Kaiowá, Hamilton Lopes, haverá uma
arrefecimento da luta em prol da conquista de novos territórios. A mobilização das
comunidades indígenas a partir da década de 1990 será muito maior em favor da
escola indígena e dentro desta luta a maior energia será desprendida em favor da
subjetividade do professor indígena, ressalvando-se que as outras lutas se darão pela
emergência de casos conjunturais bem específicas, como a luta pela demarcação da
Terra Indígena Raposa Terra do Sol em Roraima.
Os indígenas, sobretudo os das gerações abaixo dos 30 anos de idade,
direcionarão todas as suas energias em favor da escolarização em suas aldeias. No
entanto esta luta será pautada por demandas que o MEC e os sistemas estaduais e
municipais de educação irão gerar, sobretudo pela falta de atendimento destas
demandas por parte destes sistemas.
No Acre, salvo o caso dos Apolima Arara31, a partir da década de 1990 não se
registraram mais nenhuma luta que fugisse às reivindicações em favor do respeito ao
marco legal colocado em torno da educação escolar, na busca para assegurar o que já
está inscrito na legislação: formação do professor, merenda escolar, salário, verbas
para a manutenção das escolas, construção, mobiliário e equipamentos para as
escolas. Todas estas mobilizações se dão no âmbito da legalidade, geralmente
acionando o ministério público ou em diálogos diretos com os representantes dos
sistemas. Em alguns casos, como os das etnias que têm TI‘s, às margens da BR 364,
têm-se registrado alguns atos de obstrução da estrada como forma de pressão.
Quase sempre estas lutas resultam em atendimento parcial das reivindicações e
a acomodação e satisfação da comunidade com estes resultados parciais.
3.2. O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS -
RCNEI
Pode-se identificar ainda hoje, em vários casos em que a escola esteja presente
no interior de muitas aldeias indígenas, que esta se apresenta muito mais como 31 Grupo étnico emergente que até 1999 não assumia a condição étnica indígena. A etnia tem um único grupo com cerca de 300 indivíduos, dizem pertencer a
um conjunto de grupos remanescentes da família lingüística Pano, e que existem falantes de seis línguas das prováveis etnias que formam o grupo. O grupo está
localizado no Município de Marechal Thamaturgo de Azevedo no Vale do Juruá e disputa território com os Ashaninca do rio Amônea e com os seringueiros da
Reserva Extrativista – RESEX, do Alto Juruá. Dada esta conjuntura a etnia mantém uma permanente mobilização em favor da conquista territorial, mas ao mesmo
tempo também luta por conquistas no âmbito da EEIID e B, já contando com escola em sua aldeia.
aparelho ideológico do Estado, cumprindo papel de transição cultural, haja vista que
apesar das prescrições da legislação, segmentos do Estado brasileiro e da sociedade
civil, continuam agindo de forma excludente em relação aos grupos cujos universos
culturais não correspondem aos dos grupos que têm prestígio sócio-econômico e
político na sociedade.
O RCNEI é um intradiscurso que apresenta uma parte das prescrições legais
sobre a organização da escola indígena para que ela se enquadre no modelo da EEIID
e B. Este documento foi lançado em 1998 pelo MEC, para viabilizar a regulamentação
dos atos da LDB.
Corroborando nossa tese de que a EEIID e B é um modelo indigenista e que,
portanto vai embasar uma educação escolar indigenista, pode-se observar pela ficha
técnica, que seus idealizadores são majoritariamente indigenistas. Esta afirmação não
tem um caráter apriorístico ou purista, no sentido de achar que por ter sido escrito
majoritariamente por técnicos não-indígenas o resultado seja indigenista, mas é que
neste caso o documento apresenta forma e conteúdo indigenista. Entre os 35 (trinta e
cinco) nomes que aparecem como autores, apenas quatro são nomes de indígenas,
sendo que sete destes nomes são de técnicos da CPI ou que com ela contribuem
regularmente (ver anexo 4).
Ao longo do documento, aparecem em destaque frações de discursos de
professores indígenas, que ao final do documento são arrolados, juntamente com
algumas instituições, dentre as quais a CPI, num agradecimento por suas contribuições
para a fundamentação das idéias do RCNEI (ver anexo 5).
Esta estratégia é interessante, pois ao mesmo tempo em que estes discursos
dos professores dão legitimidade à idéia de que a proposta em questão trata-se de um
modelo de educação escolar indígena, por outro justifica e dá legitimidade a estes
professores que em sua maioria atua como consultores do MEC ou na hierarquia que
dá sustentação à EEIID e B, como titulares ou suplentes do chamado Comitê Nacional
de Professores Indígenas, que se tornou Conselho Nacional de Professores Indígenas
com supostos poderes para deliberar sobre a política e educação escolar indígena.
Na apresentação que o então ministro da educação Paulo Renato faz, percebe-
se um interdiscurso que antes era impossível ser proferido por um agente do Estado.
Na verdade este interdiscurso marca a transição, ou talvez possamos escrever a
estabilização de uma situação em que a EEIID e B se inaugura como modelo
indigenista. Eis abaixo o que o ministro Paulo Renato Souza (RCNEI 1998, p. 3)
escreve:
Este documento surge dentro de um marco histórico, com conteúdo de caráter
geral e abrangente. Aponta questões comuns a todos os professores e escolas,
esclarecendo e incentivando a pluralidade e a diversidade das múltiplas
programações curriculares dos projetos históricos e étnicos específicos.
Até a emergência da Nova LDB não se admitia, nem tampouco se incentivava ―a
pluralidade e a diversidade das múltiplas programações curriculares dos projetos
históricos e étnicos específicos‖, porque predominava a idéia, amplamente divulgada,
inclusive na tradição das ciências sociais que, embora a formação brasileira seja o
resultado de uma mistura, um verdadeiro pirão étnico, o predomínio cultural é ocidental
e, sobretudo vive-se ainda hoje no Brasil a ilusória convicção de que somos uma
sociedade homogênea e integrada dentro de um único Estado que a representa, e
tendo a língua portuguesa como amálgama da unidade cultural.
Mas se isto pode ser inscrito num intradiscurso e ensejar um interdiscurso em
torno da concepção do índio como bom selvagem32, ao mesmo tempo a existência de
um documento oficial regulatório com caráter geral e abrangente, apontando questões
comuns a todos os professores e escolas, leva à idéia de índio genérico, o que, se não
impede, dificulta a emergência de uma escola verdadeiramente indígena, uma escola
Katukina, Kaxinawa, Madija, Ashaninca etc.
Mesmo com a garantia de que as várias etnias indígenas nacionais podem
utilizar nas escolas as suas línguas como línguas de instrução, o RCNEI vai incentivar
um uso mecânico que, muitos lingüistas avaliam não deixar muito a desejar ao uso que
historicamente os missionários e o Estado faziam anteriormente à promulgação da
32 Como vimos no primeiro capítulo, a FD em torno do habitante do Novo Mundo foi criada ainda na Europa muito antes dos europeus pisarem no novo
continente. O conceito de bom selvagem foi desenvolvido a partir da idéia de que sendo o homem criado a imagem e semelhança de DEUS, portanto com uma
índole boa e sem pecado, ao longo da história este homem decai e passa a viver na condição de pecador. Este homem decaído era o europeu, vivendo na era do
ferro ou do bronze. Em seu contato com o selvagem americano, este vivendo na inocência, ainda na idade neolítica, seria o protótipo do homem puro anterior a
queda pelo pecado, portanto o bom selvagem.
Constituição, por meio da atuação dos monitores bilíngües da FUNAI. Aliás, este nome
foi utilizado para designar os primeiros professores indígenas no Acre ligados à CPI.
Este uso histórico que se faz das línguas indígenas, a que se referem os lingüistas, é o
uso que leva à transição para o domínio da língua portuguesa.
O RCNEI tem uma estrutura que o divide em duas partes, sendo a primeira
voltada para os técnicos envolvidos na EEIID e B nos sistemas de educação e nas
ONG´s, com o título de Para começo de conversa, reunindo os fundamentos políticos,
históricos, legais e antropológicos.
O apresentador do RCNEI (Ibidem, p. 14), adverte que: ―Ao apontar para
questões comuns a todos os professores e escolas, entretanto, reconhece-se e
incentiva-se a construção de programações curriculares distintas, feitas a partir de
projetos históricos e étnicos específicos‖.
Apesar desta advertência, tanto os técnicos dos sistemas de ensino, quanto os
das ONG´s, como é o caso da CPI que analisaremos aqui, não resistem à tentação de
transformar o RCNEI em receita, isto quando, no caso dos técnicos dos sistemas, ele
não é totalmente ignorado e, a exemplo do que ocorre com a educação não-indígena,
se organizam as escolas em moldes tradicionais anteriores à LDB de 1996. Aqui
concordamos com outra crítica feita pelos especialistas em EEIID e B, qual seja a de
que ela, como os modelos que a antecederam, também não resistem à tentação de
tratar o índio como um ser genérico, daí a tendência para se criarem programas
estandardizados de escolarização, o que é amplamente favorecido pelo RCNEI.
A segunda parte do RCNEI, sob o título Ajudando a construir os currículos das
escolas indígenas, está voltada, segundo escreve o seu apresentador, para os
professores, com a pretensão de oferecer para aqueles que estão na ponta do Sistema
de Ensino, subsídios para atuarem em suas salas de aula. O apresentador do
documento adverte para o seguinte:
É importante, no entanto, deixar claro que, enquanto o referencial para um país
com sociedades indígenas tão diversos, e tendo como fundamento e meta o
respeito à pluralidade e à diversidade, o RCNEI/Indígena não é um contexto,
nem pretende estar dando receitas de aulas: este Referencial se propõe,
apenas, a subsidiar e apoiar os professores na tarefa de invenção e re-invenção
continua de suas práticas escolares.
A análise que fazemos sob este tópico é semelhante a que fizemos no anterior,
isto é, muitas vezes, tanto o professor indígena, o não-indígena, quanto os agentes
indigenistas que atuam nos sistemas estaduais e municipais só dispõem do RCNEI,
estando desprovidos de recursos para a formação específica dos professores ou para o
acompanhamento às escolas, então o processo de estandardização se opera nas
escolas com a valiosa contribuição do RCNEI.
Esta segunda parte é dedicada aos conteúdos curriculares, dando sugestões de
trabalho para o ensino desses conteúdos nas disciplinas de línguas (portuguesa e
indígena), Matemática, Geografia, História, Ciências, Arte e Educação Física ao longo
do Ensino Fundamental.
O formato, portanto, é compatível com os modelos desenvolvidos pela educação
tradicional, apresentando uma divisão no qual se apresenta primeiro os fundamentos e
a seguir a parte dos conteúdos pertinentes ao modelo proposto.
Se observarmos qualquer manual dos muitos que os sistemas de ensino
brasileiro já organizaram e distribuíram para as escolas, veremos que a diferença será
mínima, e que esta só se verifica no que diz respeito ao discurso em relação ao índio
que passa a ter um tratamento menos preconceituoso, um tratamento ao índio como o
bom selvagem. Mas vale ressaltar que isto também é relativo, pois, se os agentes que
estão diretamente lidando com a educação escolar indígena têm uma visão livre de
preconceitos, seus colegas da burocracia nas secretarias de educação, responsáveis
pela gestão de programas que são extensivos às escolas indígenas, dificilmente têm o
mesmo pensamento sobre os índios e alguns não têm o menor cuidado em manifestar
este pensamento no momento de atender às demandas para organizar e efetivar as
escolas indígenas em sua versão intercultural e diferenciada.
Portanto, o RCNEI é compatível com outros documentos que tratam da
educação tradicional; ele apresenta uma divisão em conteúdos o que facilita a
formatação de Projetos Políticos Pedagógicos - PPP´s conservadores, muito
semelhante aos que servem como base para a organização de currículos de escolas
não-indígenas, aliás de um modo geral as escolas indígenas do Acre apresentam
menos inovações em termos políticos pedagógicos do que as chamadas Escolas-
Ativas33 que são mantidas pela coordenação de educação rural da SEE/AC. E esta
tendência a uma baixa diferenciação em termos de inovação é ainda maior se
compararmos as escolas indígenas com as chamadas Escolas Famílias Rurais –
CFR‘s,34 que funcionam em alguns Estados brasileiros, dentre os quais nosso vizinho
Rondônia e que já se ensaiam a criação de algumas no Acre.
Dada a diversidade da situação de contato das etnias presentes no Acre, pode-
se dividir a forma como as etnias organizam suas escolas em três tipologias. A primeira
tipologia é aquela em que as etnias organizam suas escolas à semelhança das escolas
não-indígenas. Nesta tipologia podemos elencar as etnias ou grupos de etnias que
apresentam maior grau de assimilação em relação à cultura ocidental e que
apresentam perdas lingüísticas totais ou quase totais.
No geral as etnias que organizam suas escolas com base nesta tipologia não
seguem orientações pedagógicas nem da CPI nem da CEEI/SEE, embora estas
instituições possam oferecer-lhes algum tipo de serviço pedagógico, seus responsáveis
as organizem do modo que julgam mais apropriado.
A segunda tipologia diz respeito àquelas cujas etnias organizam suas escolas
apresentando algumas inovações de forma e conteúdo, sendo que na forma elas
tendem a organizar as aulas em dois ou três dias letivos e, do ponto de vista do
conteúdo tendem a considerar como dias letivos as atividades de caça, pesca e outras
tidas como inerentes a cultua dessas etnias.
33 A Escola Ativa nasce da proposta metodológica do educador francês Celestin Freinet (1896-1966), crítico da escola tradicional e cujas bases eram a instrução
individualizada, aprendizagem ativa, uso de guias, escola primária completa, ensino multisseriado e promoção automática. O caso aqui referido trata do Programa
Escuela Nueva promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura – UNESCO, por meio da Oficina Regional de Educação
para a América Latina e o Caribe – ORAALC na década de 1960 e adotado pela Colômbia e outros países latinos americanos. A proposta chega ao Brasil em
1993 por meio do Programa de Educação Básica para o Nordeste – Projeto Nordeste. Este projeto recebeu aval financeiro de empréstimos contraídos pelo
governo federal junto ao Banco Mundial. Em 1994 foi expandido para as regiões Centro-Oeste e Norte em 2000 chega ao Acre. Na Escola Ativa o professor
cumpre um papel essencial, pois além das tarefas em sala de aula ele deve estimular a participação dos pais e da comunidade nas atividades escolares e
organizar junto aos alunos atividades que incluam a comunidade. Por exemplo, a busca de informações para subsidiar a preparação de mapas da escola, a
articulação de projetos comunitários e pesquisa de materiais acerca da cultura local, como ditados populares, mitos e lendas.
34 A Casa Familiar Rural – CFR foi criada em Lauzun, na França no ano de 1937. Por este modelo a escola se transforma numa unidade de educação e
orientação para a vida. Em função das situações locais e do calendário agrícola a CFR elabora o plano de formação dos jovens e das famílias baseado na
realidade do campo. O período letivo desenvolve-se por meio de aulas que funcionam com base na Pedagogia da Alternância, quer dizer, o aluno permanece um
tempo na CFR e outro na propriedade. Este modelo junta teoria e prática, apresentando poucas características dos modelos escolares tradicionais.
Esta tipologia parte de uma idéia multiculturalista, e considera a escola como
espaço de conservação e transmissão da cultura indígena para as novas gerações
daquele grupo étnico. Muitas comunidades que organizam assim as suas escolas têm
reivindicado que os sistemas de educação a que suas escolas estão subordinadas
contratem os anciãos como professores de língua e de cultura, ficando o professor
convencional com a docência das disciplinas ocidentais.
Em várias reuniões de que participamos para debater este assunto, pudemos
constatar que há questionamentos a este tipo de organização escolar por parte de
alguns professores indígenas. Estes docentes argumentam que é difícil aferir as
horas/aulas extraclasses que podem ser consideradas no currículo, assim como é
complicado definir que tipo de atividade pode ser computado como aula, além de um
problema de gênero que é muito sério e que diz respeito a como definir as atividades
culturais que podem ser contadas como aulas para o conjunto dos alunos, pois há
atividades que são interditadas aos meninos e outras que o são para as meninas, então
como fazer com os alunos meninos, quando a comunidade promover uma atividade que
só seja acessível às meninas, ou vice-versa?
A incidência desta tipologia geralmente é verificada nas escolas que recebiam
assessoria da CPI, e pode-se aferir esta tendência quando analisarmos os PPP´s que
esta ONG produziu e remeteu para o CEE, mas pode-se verificar escolas que são
orientadas pela CEEI/SEE que se organizam sob esta tipologia, embora a CEEI/SEE
não incentive este tipo de organização escolar.
Sobre este modelo escolar há uma crítica bastante severa e muito pertinente de
D´Angelis (1999, p. 3), que escreve o seguinte:
Se o conhecimento existe – e, com certeza, há centenas de anos – em uma
comunidade indígena, e antes de haver escola esse conhecimento pôde ser
transmitido, reelaborado, melhorado, geração após geração, é óbvio que esse
tipo de conhecimento não precisa da escola ou, dito de outro modo, que a
comunidade não precisa da escola para conservar, construir e transmitir esse
tipo de conhecimento. Parece, pois, que nos propomos a fugir de um
preconceito (o de que o conhecimento construído pelos povos indígenas não é
conhecimento) alimentando outro (o de que o conhecimento indígena será
conhecimento verdadeiro se for ensinado na – ou avalizado pela – escola). A
comunidade indígena tem suas formas próprias de ensinar e não está provado
(nem faria sentido que alguém tentasse provar) que a escola (ou o ensino
escolar) é a forma mais adequada, mais eficiente, mais segura para se garantir
a continuidade e o aprofundamento de toda e qualquer forma de conhecimento.
Este fato do modelo escolar ocidental ser utilizado para validar os conhecimentos
indígenas é por demais preocupante, sobretudo se levarmos em consideração que está
escrito na legislação pertinente que às comunidades indígenas é permitido a utilização
de processos próprios de aprendizagem. Isto é, aos indígenas a legislação permite
muitas inovações e, no entanto suas escolas tendem a se organizar como réplica dos
modelos escolares ocidentais tradicionais. E D ‗Angelis (ibidem, p. 2), imputa às
instituições indigenistas e seus assessores, parte da responsabilidade por este tipo de
atitude. Ele escreve o seguinte:
os ―assessorados‖ identificam o valor de suas práticas intuitivas na fala de
assessores que têm, a diferenciar-se deles, uma capacidade razoavelmente
superior de articulação (como se fossem ―camelôs pedagógicos‖) ou um espaço
de poder que lhes confere o direito do ―discurso competente‖.
O que agrava ainda mais este tipo de atitude é que, como já demonstramos no
capítulo anterior, os índios do Acre conservam formas tradicionais de manutenção e
transmissão de conhecimentos e, no entanto a escola indigenista não valoriza, nem
incentiva sua prática num modelo escolar verdadeiramente indígena e esta capacidade
e habilidade é suficiente para a manutenção da cultura autóctone, sem a necessidade
de validação pela educação ocidental, como podemos comprovar na citação abaixo
extraída de Meliá (1999, p. 11), para quem
Os povos indígenas sustentaram sua alteridade graças a estratégias próprias,
das quais uma foi precisamente a ação pedagógica. Em outros termos, continua
havendo nesses povos uma educação indígena que permite que o modo de ser
e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas também que
essas sociedades encarem com relativo sucesso situações novas.
A terceira tipologia pela qual se organizam as escolas indígenas do Acre é a que
pode ser identificada na prática pedagógica da etnia Madija, e que, portanto
chamaremos tipologia Madija.
Por esta tipologia a escola não segue nenhuma orientação oficial. O RECNEI e
outros documentos passam ao largo das preocupações e prescrições deste modelo. Os
Madija elegeram a lecto-escritura como novidade ocidental digna de ser apropriada por
eles. Mas não a lecto-escritura em português. Eles aprendem lêem e escrevem em
língua Madija. Daí que em seu ritmo próprio, elegem alguém mais velho da comunidade
como responsável pela educação escolar das novas gerações, sem a existência de um
sistema que defina locais, dias ou horários fixos para a transmissão dos conhecimentos,
conseqüentemente não há reprovação ou seleção. Esta tipologia não considera a
escola como o único lugar de aprendizado, por isto, em função da grande mobilidade
que caracteriza esta etnia, as aulas tanto podem acontecer nos prédios existentes nas
aldeias para esta finalidade, como podem acontecer num tapiri35 numa praia nas
proximidades da aldeia para onde se mudam durante o verão, ou num barranco
próximo das cidades de Manuel Urbano, Santa Rosa ou Sena Madureira, para onde se
deslocam e armam seus tapiris com muita freqüência.
É digna de registro a reação que esta tipologia causa nos sistemas estadual e
municipais de ensino, nas etnias que se organizam com base nas outras duas
tipologias e até em alguns indigenistas. Esta reação é de absoluta reprovação. Salvo
exceção dos membros da CEEI/SEE, que compreendem e incentivam esta forma dos
Madija organizarem sua educação escolar.
Pelo exposto pode-se concluir que o RCNEI não cumpre o papel a que seus
organizadores se propuseram no nível do discurso, pois, ao contrário deste, ele facilita
a estandardização da educação escolar indígena. E isto é agravado pelo fato do MEC e
os sistemas estaduais e municipais de ensino não disponibilizarem recursos suficientes
para a realização de um efetivo e eficiente trabalho de assessoria às escolas indígenas,
de forma que modelos escolares autenticamente diferenciados pudessem ser
organizados: modelos Kaxinawa, que deveria ser diferente do Jaminawa, que deveria
35 Barracos construídos com materiais disponíveis nas praias. Geralmente os índios, tanto os Madija quanto
os de outras etnias que têm o hábito de se
deslocarem ao longo dos rios, utilizam a canarana, sendo a haste para armação e as folhas para a cobertura dessas m
oradas improvisadas.
diferir do Madija, do Yawanawa e assim por diante, garantindo a existência de uma
educação escolar indígena no plural e não a educação escolar indígena do índio
genérico.
Aliás, a falta de recursos para organizar uma educação escolar indígena que
fugisse de modelos estandardizados, não deveria ocorrer, caso a legislação, em vez de
ser apenas um discurso que não carece de concretização, fosse seguido como
determina o Parecer 14/99 do Conselho Nacional de Educação, no título IV sobre as
Ações Concretas Visando à Implementação da Educação Escolar Indígena, que, ao
tratar das competências dos entes federados propala que à União cabe ―apoiar técnica
e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às
comunidades indígenas no desenvolvimento de programas integrados de ensino e
pesquisa‖ e que aos Estados compete ―criar um programa específico para a Educação
Escolar Indígena, com previsão de dotação orçamentária e financeira‖.
Não vamos atribuir os insucessos da EEIID e B, unicamente à falta de recursos
financeiros, mas este fator, somado a outros, irá aportar uma contribuição bastante
marcante para este insucesso.
3.3. OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA – PCN
Os PCN, a exemplo do RCNEI também vêm com uma apresentação solene do
então ministro da educação Paulo Renato, que escreve sobre os objetivos do
documento e refere-se ao regime de colaboração que deve imperar na oferta da EEIID
e B. Leiamos a citação abaixo do Guia do Formador: Programa Parâmetros em Ação de
Educação Escolar Indígena, (2002 p. 4):
É com satisfação que entregamos às nossas escolas, por meio das secretarias
estaduais e municipais de educação, o material referente ao Programa
Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena. Esse Programa tem como
propósito apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional de professores e
especialistas em educação, de forma articulada com a implementação dos
Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental,
para a Educação Escolar Indígena e para a Educação Infantil; e com a
implementação, também, da Proposta Curricular para a Educação de Jovens e
Adultos. A idéia central deste Programa é favorecer a leitura compartilhada, o
trabalho conjunto, a reflexão solidária, a aprendizagem em parceria. O
Programa está organizado em módulos de estudo, compostos por atividades
diferenciadas, que procuram levar à reflexão sobre as experiências que vêm
sendo desenvolvidas nas escolas e acrescentar elementos que possam
aprimorá-las. Para tanto, utiliza textos e programas em vídeo que podem, além
de ampliar o universo de conhecimento dos participantes, ajudar a elaborar
propostas de trabalho com os colegas de grupo e a realizá-las com seus
alunos. A proposta do Programa Parâmetros em Ação de Educação Escolar
Indígena tem a intenção de propiciar momentos agradáveis de aprendizagem
coletiva e a expectativa de que seja útil para aprofundar o estudo dos
Referenciais Curriculares, entre os quais o Referencial Curricular Nacional para
as Escolas Indígenas, elaborados pelo MEC, intensificando o gosto pela
construção coletiva do conhecimento pedagógico, favorecendo o
desenvolvimento pessoal e profissional dos participantes e, principalmente,
criando novas possibilidades de trabalho com os alunos para melhorar a
qualidade de sua aprendizagem. Esperamos que este Programa colabore com
o processo de institucionalização da educação escolar indígena em nosso país,
garantindo uma formação diferenciada e respeitosa da diversidade sociocultural
para os professores índios e uma educação de qualidade para as crianças
indígenas.
Este discurso do ministro apresentando um caráter solene esconde uma
característica bem tecnicista de corte tradicional que será a marca deste documento,
até mais que no RCNEI.
Para o ministro, em seu discurso, nos PCN‘s está contida como “idéia central
favorecer a leitura compartilhada, o trabalho conjunto, a reflexão solidária, a
aprendizagem em parceria”. No entanto, pela forma como o MEC organizou a
―socialização‖ deste documento, se pode assegurar com propriedade que houve uma
impostura e que os PCN‘s se prestaram mais ao ―processo de institucionalização da
educação escolar indígena em nosso país‖, numa forma verticalizada e standard,
focando num índio genérico, haja vista que, dentre outros motivos, sua proposta de
execução, os conteúdos, a metodologia e até o tempo de cada tema e aula foram
determinados a priori, de uma forma bem tradicional, como se pode verificar no
exemplo abaixo extraído da página 18.
Módulo 1 – Para começo de conversa: fundamentos gerais da educação
escolar indígena (23 horas).
Módulo 2 – Currículo e intencionalidade: o que ensinar e para que ensinar (10
horas).
Módulo 3 – Línguas: ouvir, falar, ler, escrever... para quê? Como? (24 horas).
Módulo 4 – A matemática nas escolas indígenas (28 horas).
Módulo 5 – Cotidiano e história: hoje e ontem (30 horas).
Módulo 6 – A geografia nas escolas indígenas (29 horas).
Módulo 7 – As ciências naturais nas escolas indígenas (27 horas).
Módulo 8 – As artes nas escolas indígenas (24 horas).
Módulo 9 – As escolas indígenas e a educação física (22 horas).
Módulo 10 – Elaborando o currículo da escola (19 horas).
Módulo 11 – Aprendizagem na escola (12 horas).
Módulo 12 – Currículo, planejamento e atividades (17 horas).
Esta cronometragem dos temas do PCN que, ressalvando-se algum exagero
poderia ser considerada normal, é levada ao extremo na delimitação do tempo a ser
empregado no estudo dos temas/conteúdos. Para efeito de análise apresentaremos
abaixo um exemplo com um resumo livre do Módulo 1, que está dividido em sete
atividades. (PCN, p.35 a 41)
MÓDULO 1 – PARA COMEÇO DE CONVERSA: FUNDAMENTOS GERAIS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA PARA COMEÇO DE CONVERSA: FUNDAMENTOS GERAIS TEMPO PREVISTO: 23 horas ATIVIDADE 1 – APRESENTAÇÃO DOS PARTICIPANTES OBJETIVO:
Esta atividade visa a que os professores se apresentem aos colegas do grupo e
se conheçam melhor.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 1 HORA)
ATIVIDADE 2 – SER DIFERENTE E SER SEMELHANTE
OBJETIVO:
Debater com os professores as diferenças e as semelhanças entre as pessoas
e entre as culturas, evidenciando a multietnicidade, a pluralidade e a
diversidade dos povos indígenas no Brasil.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 4 HORAS)
ATIVIDADE 3 – ―MUITOS JEITOS DE SER ÍNDIO‖
OBJETIVO:
Propiciar um momento de reflexão sobre o que significa ser índio hoje no Brasil,
reconhecendo as facilidades e as dificuldades de comunicação com outros
setores da sociedade.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (3 HORAS)
ATIVIDADE 4 – DEBATE DE COMO A CULTURA NOS APROXIMA E NOS
DIFERENCIA
OBJETIVO:
Debater com os professores como a cultura (conhecimentos, costumes, modos
de convivência, visões de mundo...) está presente na vida de todos os grupos
humanos e como são essas construções culturais que os diferenciam uns dos
outros.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 4 HORAS)
ATIVIDADE 5 – DIREITA DOS POVOS INDÍGENAS
OBJETIVO:
Debater os direitos dos povos indígenas, em especial o direito a uma educação
escolar diferenciada.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 4 HORAS)
ATIVIDADE 6 – ESCOLA INDÍGENA: POR UMA EDUCAÇÃO DIFERENCIADA
OBJETIVO:
Debater os fundamentos da Educação Escolar Indígena diferenciada.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 6 HORAS)
ATIVIDADE 7 – AVALIAÇÃO DO TRABALHO
OBJETIVO:
Avaliar o trabalho de reflexão e discussão realizado no módulo, possibilitando
que o professor identifique e avalie o seu percurso de aprendizagem.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO (± 1 HORA)
Nossa insistência em analisar criticamente a estratégia do MEC em estabelecer
a priori o tempo a ser empregado em cada atividade, se dá em razão de sabermos que
uma das características que diferencia o universo dos indígenas em relação ao não-
indígena é o modo como aqueles se relacionam com o tempo. O que agrava o caráter
negativo deste procedimento, no caso específico dos PCN, é que há uma orientação
para que os grupos sejam organizados com uma composição de professores indígenas,
que poderá ser de uma
única terra ou povo indígena, ou reunindo professores de várias terras e povos
indígenas. As experiências de formação anteriores, a distância das escolas
indígenas, o local de realização dos módulos e o número de professores no
município ou no estado são alguns dos fatores que influenciarão o tipo de
composição dos grupos de professores em cada secretaria.
Estas sugestões pressupõem a composição de grupos muito heterogêneos. Mas
isto ainda não é tudo em termos de agravante, pois mesmo transferindo para os
sistemas que aplicarão os cursos o critério para a definição do número de participantes
por grupo, há a sugestão de que o número ideal não deve exceder a quarenta pessoas.
Mas o MEC também teve a preocupação de escrever como realizar a
apresentação sugerindo uma dinâmica que é a seguinte:
Os professores devem organizar um grande círculo, no centro do qual se deve
colocar um cesto ou uma caixa com diversos objetos,
incluindo-se aqueles que representem aspectos culturais ou das paisagens às
quais os professores pertencem – objetos (enfeites, instrumentos, potes,
cestos, bonecos...); alimentos (beiju, mandioca, banana...); plantas (folhas de
buriti, de babaçu...); fotos, cartões-postais (festas, comidas típicas, cerimônias,
animais...); jornais, revistas, livros...(PCN p. 35)
Nesta dinâmica o MEC sugere que em seguida se peça para cada professor
escolher um objeto com o qual ele se identifique e explique porque o escolheu. O
professor deve apresentar o objeto, falar seu nome em português e em língua indígena,
a aldeia e a TI em que mora, o tempo que está atuando no magistério. Ao final desta
apresentação, o MEC sugere também que os participantes realizem uma avaliação da
atividade e, por fim, anotem num ―Caderno de Registro uma reflexão sobre a atividade
que realizou, pensando se poderia utilizar esta atividade com seus alunos, se seria
interessante ou não, se seus alunos gostariam ou não‖. (Ibidem).
Se os organizadores dos cursos nos sistemas estaduais e municipais de ensino
seguirem à risca a sugestão do MEC para que se utilize mais ou menos uma hora para
a apresentação dos participantes, compostos em grupos de 40 (quarenta) professores,
isto daria menos de um minuto e meio para cada professor.
Os educadores que trabalham com atividades de formação conhecem a
importância da apresentação para o sucesso da socialização, integração e interação
dos participantes entre si e com os orientadores da atividade.
Em razão de se reconhecer esta importância, mesmo numa atividade que conte
com um número menor de participantes, a apresentação nunca é realizada num tempo
tão exíguo como este que o MEC sugere para os cursos do PCN.
No caso dos professores indígenas da maioria dos Estados, como é o que se
verifica no Acre, há uma diversidade muito grande de situações étnicas e sócio-
lingüísticas, o que implica em diferentes formas de competência e proficiência
lingüística. Todos estes fatores terão implicações no ritmo em que os participantes dos
cursos desempenharão as atividades propostas.
Esta idéia de delimitar o tempo é ainda mais preocupante quando se trata das
atividades específicas com as disciplinas.
Nossa análise, embora esteja centrada no aspecto temporal dedicado às
atividades nos PCN‘s, não se encerra neste aspecto, muito embora, como já foi
colocado acima, ele seja importante quando se trata de atividades desenvolvidas com
indígenas, que têm formas diferentes de se relacionarem com o tempo.
Os PCN‘s induzem também a uma organização escolar com base em disciplinas
e conteúdos estanques, o que é contrário aos processos próprios de aprendizagem dos
indígenas que desconhecem a segmentação dos objetos como estratégia para adquirir
conhecimentos.
O conhecimento que um índio tem acerca de um bicho silvestre, de um jabuti,
por exemplo, foi adquirido ao longo do tempo e foi formado pela soma de informações
que ele foi obtendo ao longo da vida. Na soma das informações que ele tem acerca do
jabuti, há conhecimentos que dizem respeito a ecologia e biologia do animal, como os
locais de ocorrência, o tipo de alimento, sua forma de reprodução; informações acerca
de sua utilização ou não na alimentação humana, como deve ser preparado, que partes
são comestíveis, quem pode comê-lo; informações de caráter sagrado, artístico ou
religioso, como se ele é doador de alguma benesse aos humanos se alguma parte do
corpo do bicho se presta ao preparo de algum artefato etc.
Porém, como centramos nossa análise no aspecto temporal da organização
didática dos PCN‘s, queremos concluir que definir tempos semelhantes para atividades
de formação docente voltadas para professores não-índios e indígenas, é uma clara
negação ao direito à diferença que, em tese, a legislação assegura a estes povos, e ao
que o próprio PCN diz reconhecer. É, portanto, uma atitude que permite a implantação
de um modelo de educação indigenista, que contraria o desejo e o interesse dos
professores e suas comunidades por uma educação indígena, uma educação dos
Kaxinawa, dos Katukina, dos Madija, dos Ashaninka, dos Manxineri etc.
3.3. QUATRO PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE ESCOLAS INDÍGENAS
DO ACRE ORGANIZADOS PELA COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE – CPI/AC
Como já escrevemos na introdução desta dissertação, estes quatro PPP‘S que
iremos analisar foram escritos pela CPI – conforme documento que tivemos acesso –
por ocasião do XXI Curso de Formação de Professores índios, no ano de 2002, e foram
apresentados no ano seguinte ao CEE.
A escolha desses documentos se justifica pelo fato deles fornecerem elementos
que julgamos que contribuem para corroborar a nossa hipótese de que a EEIID e B é
um modelo indigenista, e que organiza as escolas indígenas, do ponto de vista da
burocracia legal, em moldes tradicionais.
Antes de iniciarmos a análise dos PPP‘s faremos um breve relato acerca da
CPI/AC.
Como já foi referido neste trabalho, a CPI é uma das organizações responsáveis
pelo surgimento e estabelecimento de movimentos indigenista e indígena no Acre. A
outra é a Igreja católica, por meio do CIMI e da OPAN, que atuaram e ainda atuam em
parceria com o Conselho de Missão Entre Índios – COMIN, ligado à IECLB.
A gênese dessa entidade remonta à atuação do antropólogo Terri Vale de
Aquino que, em meados dos anos de 1970, realizou um trabalho de pesquisa visando à
escrita de sua dissertação de mestrado. Ela foi defendida no curso de Pós-graduação
em antropologia social da UNB, em dezembro de 1977, sob o título de ―Índios
Caxinawá: de seringueiro caboclo a peão acreano‖, e tinha como foco a população
Kaxinawa do rio Jordão, que àquela época já contava com uma área delimitada pela
FUNAI. Por esta razão a CPI terá um trabalho muito mais centrado nesta etnia.
No ano de 1978, conforme já escrevemos noutra parte desta dissertação, as
professoras Concita Maia e Keila Diniz irão passar seis meses entre os rios Humaitá,
onde também havia uma área delimitada, e Jordão, com a finalidade de implantar um
Projeto de Desenvolvimento Comunitário que fora reivindicado pelos líderes Kaxinawa
Alfredo Sueiro e Getúlio Sales do Jordão e Vicente Sabóia, do Humaitá.
Assim tiveram início as primeiras experiências educacionais com escolas sob
controle indígena, haja vista que até aquela data as escolas em seringais ou aldeias
seguiam orientações dos sistemas oficiais de educação, e estes não atentavam para a
realidade sócio-histórica específicas das populações a que se destinavam.
No caso em foco, o objetivo da escola era a preparação dos índios para
gerenciarem pequenas cooperativas que estavam se organizando sob a orientação do
antropólogo Terri Aquino, que havia conseguido – durante viagem que realizara pelas
cidades de São Paulo, Rio Branco e Tarauacá, por ocasião da Semana do Índio no ano
de 1978 em companhia dos líderes Kaxinawa acima citados – a doação de recursos
financeiros e materiais junto a órgãos oficiais, como a Secretaria de Agricultura do
Estado do Acre, entidades indigenistas, como o Centro de Trabalho Indigenista de São
Paulo – CTI, entidades filantrópicas internacionais, como o Fundo Samuel ligado às
igrejas reformadas da Holanda, comerciantes do município de Tarauacá,
personalidades do cenário político acriano e intelectuais, como Abrahin Farrat,
Francisco Rego e Élson Martins da Silveira.
Estas doações e apoios propiciaram as condições para o nascimento dos
trabalhos indigenista e indígena no Estado do Acre.
Segundo Gomes, (1988, p. 198/199), a manifestação de preocupações com as
populações indígenas por parte de segmentos não-índios da sociedade brasileira, e o
conseqüente desencadear de ações pró-indígenas, ressalvando-se as diferenças,
intenções e intensidade, é recorrente na história do país, sempre que há uma
sobrelevação das preocupações com as questões indígenas.
Este autor escreve que se pode identificar o início dessas manifestações no
século XIX, mais precisamente em 1850, com a preocupação dos escritores e
historiadores indianistas, que pretendiam marcar na sociedade daquela época uma
mentalidade pró-indigenista.
Outro desses momentos, nós até nos reportamos nesta dissertação, ocorreu no
início do século XX, quando em 1907 foram feitas denúncias de massacres contra
índios brasileiros, no Congresso de Americanistas.
A partir daquele momento houve uma comoção de parte de intelectuais
brasileiros, culminando com a adesão de cientistas, filósofos, jornalistas, advogados,
militares médicos e antropólogos à causa indígena, e a criação do SPI em 1910, esta
que foi a primeira entidade indigenista oficial brasileira.
Outro momento de sobrelevação da questão indígena ocorreu entre meados da
década de 1970 e o final da década de 1980, tendo como ápice a Constituinte e a
promulgação da nova Constituição de 1988. Foi neste contexto que nasceu a CPI.
Como vimos aqui nos reportando, a CPI surge num contexto de luta dos índios
acrianos pela reconquista territorial. Naquele momento, mesmo sendo proposta e até
desenvolvida por sujeitos indigenistas, a proposta de educação escolar tinha um
marcante caráter indígena. Sua característica era o diálogo inter-étnico na busca da
construção de uma educação Kaxinawa.
Este processo começa a sofrer alterações com a institucionalização da CPI, com
a sua criação enquanto entidade da sociedade civil. Quando ela se propõe a criar uma
política geral de educação para os índios do Acre. Isto ocorre, segundo Monte (1996, p.
5), em fevereiro de 1983, quando acontece o I Curso de Formação de Professores e
Agentes de Saúde Indígenas, com a participação de cerca de 25 jovens bilíngües das
etnias Kaxinawa, Katukina, Manxineri, Apurinã, Yawanawa e Yaminawa. Este é,
segundo Monte, a primeira tarefa da ―então nascente equipe de educação da CPI/AC‖.
A partir desta institucionalização da CPI ela buscará institucionalizar também a
experiência que está em gestação. E isto ocorre muito rapidamente, conforme escreve
Monte (ibidem, p. 7):
Em 1985, buscando dar solução a estas questões institucionais, a CPI/AC
conseguiu assinar um convênio pioneiro com a FUNAI e Secretaria de
Educação do Acre, SEC36
/AC, pelo qual ficou garantida a inclusão dos então 21
professores índios e suas escolas no sistema estadual de ensino fundamental,
com inicial apoio financeiro federal.
Com a institucionalização dessas escolas indígenas a CPI consegue também
assegurar uma autonomia curricular e administrativa e garantir para sua equipe de
educação a orientação e assessoria destas escolas.
36 Era assim que se denominava então a atual SEE.
A partir deste momento já não se pode mais falar em uma escola no sentido da
expectativa das lideranças índias, uma escola indígena que tivesse uma cara
Kaxinawa, Katukina, Manxineri, Yawanawa, Ashaninka, Yaminawa, etc. As escolas
serão a partir destes convênios e acordos que a CPI irá estabelecer com o Estado, com
seus entes federal, estadual e municipal, escolas indígenas no sentido genérico, daí a
necessidade de estabelecer parâmetros, PPP‘s e referenciais gerais.
Cremos que o discurso de Monte que transcreveremos abaixo nos ajudará a
perceber o caráter indigenista das escolas orientadas pela CPI, quando ela explica
sobre o porquê da escolha para corpus de sua pesquisa de mestrado, os diários de
classe de três professores Kaxinawa do rio Jordão, Monte, (ibidem, p. 31):
Penso ainda, ter escolhido este conjunto de professores índios Kaxinawa e não
outros, por considerá-los excelentes alunos-professores dos cursos de
formação, exemplos paradigmáticos de um projeto de educação diferenciada,
misto de sonho e tensão.
O paradigma de EEIID e B é dado de fora, pelo agente indigenista. E este
paradigma está personificado na ação pedagógica destes três professores Kaxinawa do
Rio Jordão. Não são quaisquer Kaxinawa. Não são os Kaxinawa da TI Praia do
Carapanã, nem os da TI Humaitá, nem os da TI Alto Purus e nem os da TI do rio Breu.
Isto significa que mesmos estes outros professores Kaxinawa, para atingirem a
condição de paradigmáticos, para se tornarem modelos ideais de professor da EEIID e
B, eles terão que atingir a forma modelar destes professores Kaxinawa do rio Jordão.
Sáez (2006, p.192) faz uma observação crítica que também corrobora nossa
hipótese, quando escreve o seguinte:
Isto é, aquilo que todo mundo sabe, reunindo numa coletânea sincrética, que
obtém a partir de um mundo indígena muito preocupado em gerar diferenças,
um denominador comum aos diversos povos, embora tutelado pelo modelo
Kaxinawa.
Este ponto de vista de Sáez vai ao encontro de nossa hipótese. Ele percebe e
escreve noutro trecho, referindo-se também à CPI, que o indigenismo alternativo não-
governamental, que ele considera não muito excludente em relação ao indigenismo
governamental, exerce mais poder que este, e nós pudemos observar que este
indigenismo alternativo é que pauta as demandas em educação escolar indígena,
coordena as negociações e realiza os encaminhamentos dessas demandas. Isto pode
ser verificado pesquisando os expedientes da CEEI/SEE.
Deste ponto de vista indigenista a escola construída é genérica, e mira para um
índio abstrato, muito parecido com índio da ficção literária ou da ficção histórica que se
criou na tradição do discurso oficial sobre este sujeito.
Nos documentos de PPP‘s analisados das três etnias: Kaxinawa, Yawanawa e
Ashaninca, que pertencem a duas famílias lingüísticas distintas (consultar o anexo 1),
não se vê refletido neles os projetos destas etnias, pois são PPP‘s estandardes e se
prestariam até mesmo a qualquer escola não-indígena, por terem por base o formato e
o conteúdo da escola ocidental que, no discurso, a CPI nega.
O formato do documento apresenta padrão no qual na primeira parte contem
informações como o nome da comunidade, o número de habitantes, o nome da escola
e um histórico dela. A seguir apresenta uma pequena biografia dos professores dessas
escolas, as séries que a escola oferece, indicando o professor que leciona em cada
série, como se organiza o ano letivo, os períodos de recesso e as horas aulas diárias,
as disciplinas que são lecionadas de forma presencial e as que são classificadas como
atividades culturais e tradicionais, considerando a participação dos alunos nessas
atividades para efeito de créditos extraclasse.
Na segunda parte é apresentado como a escola realiza o planejamento e que
tipos de planejamento são realizados, o objetivo geral da escola, as disciplinas que são
ministradas em cada série, em que a escola indígena se aproxima ou se distancia da
não indígena, em que ela se aproxima ou se distancia da educação tradicional,
pensado o tradicional como a educação dos anciãos, quais os principais materiais
didáticos utilizados, que relações institucionais a escola mantém e quais conquistas e
resultados a escola conseguiu para a comunidade.
O documento da CPI faz uma apresentação mais detalhada das três escolas
Yawanawa embora a apresentação acerca das outras escolas, duas Kaxinawa e uma
Ashaninka, apresentam detalhes que revelam o caráter indigenista que norteiam as
propostas dessas escolas.
O documento apresenta detalhes que dão, por vezes, a estas escolas caráter
mais conservador do que o que se verifica em muitas escolas não-indígenas, como por
exemplo, o estudo de cinco disciplinas na alfabetização: Língua Portuguesa, Língua
Indígena, Matemática, Educação Física e Artes.
A partir da primeira série são acrescidas as disciplinas de geografia, história e
ciências, totalizando oito, e a partir da quinta série há o acréscimo de língua inglesa,
quer dizer as escolas Yawanawa apresentam o mesmo perfil das escolas não-
indígenas de caráter tradicional, com centralidade nas disciplinas.
No que diz respeito à descrição do calendário de aulas, se observa o seguinte na
escola Ivã Sttiho: as aulas presenciais serão distribuídas em 16 dias letivos mensais,
totalizando 64 horas/aula - h/a, o que resulta em 520 h/a anuais, num ano letivo de
nove meses iniciando em abril e encerrando em dezembro. O resultado verdadeiro seria
576 h/a, mais o documento avisa que devem ser subtraídas 56 h/a que são dedicadas
às férias escolares.
Para esta e as demais escola Yawanawa está colocado que haverá 16 h/a não
presenciais ao mês, totalizando 144 h/a anuais. No PPP da Escola Ivã Sttiho, página 9,
assim como nos das demais escolas, está escrito que estas 16 h/a mensais são o
resultado da soma de ―4 horas semanais para prática de atividades culturais e
tradicionais: caçadas, pescarias, danças, contação de histórias, práticas ritualísticas,
etc, com acompanhamento da escola/professor‖.
Para esta e as demais escolas está também escrito que haverá um recesso
escolar de 56 horas, o que dá segundo o documento em torno de cinco semanas
anuais. Outra característica das escolas Yawanawa é que todas apresentam um
calendário semanal com quatro dias de aulas sendo o mais comum o seguinte:
segunda, terça, quinta e sexta-feira, com exceção da escola Tũĩkuro que coloca cinco
dias semanais de aulas com a inclusão da quarta-feira no calendário escolar.
Não repetiremos aqui o que já observamos noutra parte desta dissertação,
acerca das críticas formuladas por técnicos não-índios, e até por professores indígenas,
duvidando da possibilidade de se computar, com a naturalidade que aparece no
documento da CPI, as atividades culturais consideradas para efeito de aulas
extraclasse.
Nós também não queremos criticar se o tempo que a CPI dedica ao ano letivo
das escolas Yawanawa é compatível ou não com o que a LDB preceitua que são 800
horas/aulas anuais. Não é isto. Nossa observação é que a CPI fica presa nesta questão
do tempo, tentando justificar um ano letivo compatível com o ano letivo não indígena,
sem importar-se de criar ou seguir alternativas que a própria LDB sugere e que são
mais compatíveis com o ritmo temporal dos povos indígenas que, conforme já referido
aqui, é muito diferente do ritmo temporal do não indígena.
Ainda sobre a organização curricular das escolas Yawanawa, o que se vai
observar é que a Ivã Sttiho apresentará uma organização em séries e há um
detalhamento da alfabetização à 6.ª série, ao passo que tanto para a Nixi Waka quanto
para a Tũĩkuro, a organização aparece em dois blocos de 1.ª e 2.ª e 3.ª e 4.ª séries,
sendo que o currículo apresentado para a 1.ª e 2.ª séries destas escolas é o mesmo
apresentado na alfabetização da escola Ivã Sttiho. E o mais curioso é que a proposta
de 1.ª série desta escola apresenta três disciplinas a mais do que as que a CPI propõe
para o bloco de 1.ª e 2.ª séries das escolas Nixi Waka e Tũĩkuro.
Tanto nestas escolas como na Ivã Sttiho e nas Kaxinawa e Ashaninca, haverá
esta organização em ciclo sem que se expliquem o que seria este ciclo, razão que
deduzimos tratar-se do primeiro ciclo da junção da 1.ª e 2.ª séries e o segundo, a
junção da 3.ª e 4.ª séries.
Se o critério para a definição dos ciclos forem estes mesmo, e há fortes indícios
para deduzirmos que sim, há confusão nas expectativas ou, no mínimo um excesso de
otimismo por parte dos indigenistas da CPI que assessoraram a construção destes
PPP‘s. Está escrito o seguinte acerca dos objetivos da escrita no 1.º Ciclo para todas as
escolas Yawanawa (ANEXO 3 – Projeto Político Pedagógico das Escolas Yawanawa, p.
25): ―Escrever notícias para o Yuimaki37; Escrever sobre algum assunto, mesmo
faltando ou trocando algumas letras; Utilizar em seu texto algumas marcas da
linguagem escrita (como são sinais de pontuação, os acentos...)‖:
37 É um jornal editado pela CPI
com tiragem semestral, considerado indígena e multilíngüe, caracteriza-se por ser um jornal de notícias indígenas produzido
diretamente por escritores índios. A palavra Yuimaki pertence à família lingüística Pano, mais especificamente ao léxico da língua Kaxinawa, pode ser traduzida
livremente pela expressão enviar notícias ou noticiar.
Para matemática as expectativas são ainda mais otimistas (idem, p. 26):
―Aprender calcular pequenas quantidades de objetos usando soma, subtração,
multiplicação e divisão; Resolver problemas ligados as atividades cotidianas que
necessitem das quatro operações‖.
A apresentação do PPP da escola Samuel Piyanko não tem a riqueza descritiva
que encontramos nos PPP‘s das escolas Yawanawa. Não sabemos quantas horas
diárias, nem semanais, mensais e anuais se estudam. Também não estão colocados os
meses letivos e nem o critério de férias, como ocorre na descrição das escolas
Yawanawa, porém há a descrição das disciplinas lecionadas e que são quase as
mesmas, com exceção de Língua Inglesa que os Ashaninka não estudam.
No que diz respeito à divisão por grau de estudos, este será dividido em ciclos
em vez das séries. Esta escola apresenta três ciclos. O documento não é muito
explícito no que diz respeito a como se organizam estes ciclos, porém como a escola
apresenta três ciclos, pode-se deduzir que seja a seguinte organização: alfabetização e
primeira série correspondem ao primeiro ciclo; segunda e terceira série corresponde ao
segundo e a quarta e quinta séries, ao terceiro ciclo.
Mesmo apresentando-se estas pequenas diferenças de forma e conteúdo, os
objetivos esperados serão os mesmos. Descreveremos quais são eles em Línguas e
Matemática no primeiro ciclo, PPP Escola Samuel Piyanko (p. 4): ―Escrever pequenas
histórias; Escrever sobre algum assunto, mesmo faltando ou trocando algumas letras‖.
Para Matemática no mesmo ciclo os objetivos são os seguintes (idem, p. 5): ‗Ler
e escrever números; ―Aprender calcular pequenas quantidades de objetos usando
soma, subtração, multiplicação e divisão‖.
No que diz respeito às duas escolas Kaxinawa, se verificará um detalhamento do
período escolar. Este se dividirá em quatro aulas semanais, mas o período letivo será
de apenas sete meses, abril, maio, junho, julho, outubro, novembro e dezembro, em
vez dos nove meses, de abril a dezembro, das escolas Yawanawa. Porém,
inexplicavelmente, na soma das aulas, mesmo contando os mesmos 16 dias mensais
que se verificam nas escolas Yawanawa, as h/a saltam de 64 h/a para 112, somando
784 h/a anuais.
As atividades culturais também serão ampliadas em termos de horas/aulas,
saltando de 16 h/a verificadas nas escolas Yawanawa para 32 h/a mensais nas escolas
Kaxinawa. Por ano serão 256 h/a, que somadas às 784 h/a anuais presenciais, darão
um total anual de 1.040 horas/aulas.
Se se registram estas pequenas diferenças entre estes PPP‘s Kaxinawa,
Yawanawa e Ashaninka, quando se tratar dos objetivos de Línguas e Matemática para
o primeiro ciclo, se verificará que foram colocados os mesmos que se colocaram para
as demais escolas.
Vejamos o exemplo em Línguas da Escola Alto do Bode, PPP da escola Alto do
Bode (p. 4): ―Escrever notícias para o Yuimaki; Escrever sobre algum assunto, mesmo
faltando ou trocando algumas letras, utilizar em seu texto algumas marcas da
linguagem escrita (como são sinais de pontuação, os acentos...)‖.
Para matemática também verificaremos os mesmos objetivos. Vejamos os
exemplos (idem, p.5) ―Aprender calcular pequenas quantidades de objetos usando
soma, subtração, multiplicação e divisão; e Resolver problemas ligados as atividades
cotidianas que necessitem das quatro operações‖.
A outra escola Kaxinawa que a CPI apresentará PPP para efeito de aprovação
no CEE é o da escola Belo Monte. Esta escola não apresenta detalhamento sobre sua
organização letiva, porém, está escrito que os alunos estudarão durante sete meses,
abril, maio, junho, julho, outubro, novembro e dezembro. Também está escrito que
estudarão oito disciplinas: Língua Indígena e Portuguesa, Matemática, Ciências,
Geografia, História, Educação Artística e Educação física. Escrevem que a escola se
organizará em séries, porém ao descrever os objetivos, estes estão colocados para
serem alcançados em ciclos.
Eis a seguir o exemplo de objetivos para línguas no primeiro ciclo da Escola Belo
Monte (p. 5) ―Escrever pequenas histórias; Escrever sobre algum assunto, mesmo
faltando ou trocando algumas letras; Escrever notícias para o Yuimaki‖. No que diz
respeito à Matemática verificaremos os mesmos objetivos, conforme o referido plano (p.
6): ―Resolver problemas ligados as atividades cotidianas que necessitem das quatro
operações; Aprender calcular pequenas quantidades de objetos usando soma,
subtração, multiplicação e divisão‖.
Como já escrevemos estas três etnias pertencem a famílias lingüísticas distintas
e, do ponto de vista do contato elas apresentam experiências e expectativas diferentes
em relação às novidades ocidentais, inclusive à escola. No entanto, nos Documentos
de PPP apresentados pela CPI ao CEE, se percebe a homogeneização da forma,
conteúdo e objetivos da escola para as três etnias. Conseqüentemente, concordando
com a tese de Althusser de Aparelhos Ideológicos de Estado, o modelo escolar descrito
está cumprindo este papel e está interpelando sujeitos professores indígenas, sujeitos
alunos indígenas e demais sujeitos indígenas demandados para a manutenção
burocrática deste aparelho, sem que se criem alternativas de educação que levem em
conta os processos próprios de aprendizagem, ajudando a fazer parar este processo de
distanciamento dos modos próprios de ser índio.
Queremos advertir que não somos adeptos da vertente multiculturalista
essencialista, que vê a identidade indígena apenas pelo viés cultural e dado pelo outro
não-índio, mas concordamos com Santos (apud CANDAU e KOFF, in CANDAU e KOFF
2006, p. 4): ―As pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a
diferença os inferioriza, e o direito de ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza‖.
É neste contexto definido por Santos que as diferenças, mesmo que foram re-
significadas pelos sujeitos indígenas, devem ser respeitadas e tomadas em conta nas
ações que se desenvolvam em favor desses sujeitos.
Sáez (ibidem, p. 192), referindo-se ao efeito que as ações de educação exercem
sobre os Yaminawa escreve o seguinte:
Os projetos de educação indígena entre os Yaminawa, no que diz respeito a
seus métodos e à parte mais convencional de seus conteúdos, constituem um
agente ―aculturador‖ que facilita aos alunos mais dispostos a abordagem do
mundo dos brancos – um saber muitas vezes necessários e em geral
necessário.
Desejamos concluir esta análise fazendo coro a este ponto de vista e afirmar que
estes efeitos dos projetos de educação observados entre os Yaminawa são extensivos
a todas as etnias presentes no Acre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos esta dissertação reconhecendo, do ponto de vista da AD, a
inadequação do título deste tópico: Considerações Finais.
Parafraseando FOUCAULT (2006), temos consciência que antes de iniciarmos
esta escrita/discurso, outras vozes sem nome nos precediam há muito tempo, portanto,
não somos a origem e nem seremos o fim do discurso sobre EEIID e B, pois é ―preciso
continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há‖.
Este nosso discurso se deu no âmbito do sistema de educação, e Foucault
(ibidem p. 44) diz que ―Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou
de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes, que eles trazem
consigo‖, então é acertado dizer que este discurso terá continuidade, comigo mesmo,
ou com outros sujeitos que entrem em sua ordem para o manterem ou o modificarem.
Feitas estas considerações, esclarecemos que a expressão Considerações
Finais escrita no título, tem por finalidade tecer considerações e realizar algumas
amarrações acerca da nossa escrita/discurso sobre a EEIID e B no Acre.
A primeira amarração que consideramos pertinente, é que mesmo tendo
defendido nesta dissertação que a EEIID e B é atualmente uma proposta indigenista,
que se situa no âmbito dos Aparelhos Ideológicos do Estado, interpelando sujeitos
professores indígenas e os enredando nas malhas da burocracia estatal, em sua
gênese ela teve uma grande proximidade com a perspectiva indígena e nasceu – ao
contrário do que ocorreu com a educação para indígenas, que foi utilizada como
estratégia de transição cultural e expropriação territorial, desde que o primeiro jesuíta
pisou em solo brasileiro – questionando o status quo dos grupos que, desde a
constituição da sociedade brasileira como sociedade dividida em classes, domina e
pratica desmandos contra os grupos de menor prestígio social, como é o caso dos
indígenas.
A CPI, que propiciou o nascimento dos movimentos indigenista e indígena no
Acre, em sua gênese foi fiel a uma proposta de construção de um modelo escolar
indígena respeitando as características sócio-antropológicas da etnia Kaxinawa. Ocorre
que ao se institucionalizar esta ONG passa a desenvolver atividades com um coletivo
maior de povos indígena, constituído pelas etnias Kaxinawa, Katukina, Manxineri,
Apurinã, Yawanawa e Yaminawa. Foi a partir deste fato, que ocorreu, como já nos
referimos neste trabalho, no ano de 1983, que a CPI passa a estreitar seus laços com o
Estado e investe numa proposta que segundo Sáez, resulta num modelo genérico
tutelado pela forma Kaxinawa de ser índio, prestando-se mais a um projeto de dotar o
Estado do Acre de uma identidade indígena manipulada.
Isto significa um índio de identidade difusa, que não é nem Kaxinawa, nem
Manxineri, nem Yawanawa, nem Katukina e nem outra qualquer das identidades
étnicas específicas dos povos indígenas presentes no Acre.
No entanto, do ponto de vista do discurso, a CPI é, por excelência, a responsável
pela FD que dá sustentação a EEIID e B, que é assumida pelo Estado como modelo
efetivamente indígena. Foi a CPI que inaugurou a formação discursiva acerca deste
modelo estandarde de educação para indígena.
Outra amarração pertinente diz respeito ao fato de que é necessário admitir não
ser tarefa fácil definir objetivos para a educação escolar indígena. Isto porque, dentre
outras razões, há no Brasil uma grande diversidade de situações sócio-histórica e
sociolingüística vivenciadas pelas etnias indígenas.
O material a que tivemos acesso nesta pesquisa sugere que o mais acertado em
se tratando de educação escolar indígena seria deixar os grupos indígenas livres e,
para aqueles que demandarem educação escolar, que seja facultada a possibilidade de
construção de PPP‘s específicos, respeitando estas situações diversificadas das etnias.
Mas isto não quer dizer que os sistemas devem delimitar um tempo para que isto
ocorra, pois como já escrevemos neste trabalho, a maneira como os índios lidam com o
tempo é diversa da forma como se faz na tradição ocidental. Os parâmetros temporais
dos indígenas são bem mais expandidos. Para eles conta os ciclos da natureza, o
tempo das chuvas, o tempo da piracema dos peixes, o tempo da desova dos tracajás
nas praias. E estes tempos são bem maiores que os nossos cronometrados em
minutos: 45 mim para uma aula de língua portuguesa; uma hora e 15 mim para
matemática; 25 minutos de recreio, etc.
Também podemos concluir que a construção de Parâmetros Nacionais para
organizar um modelo estandarde de Educação Escolar Indígena é, senão um erro, no
mínimo uma atitude temerária.
Vários autores, como Monte ibidem e Dalmolin ibidem, reconhecem que a escola
como instituição não indígena cumpre um papel relevante no fortalecimento da
autonomia indígena. Todavia esta não pode ser uma imposição do Estado ou de
instituições para-estatais que se sobrepõem às lideranças dos povos indígenas e
decidem qual o modelo escolar adequado para estes povos, indo de encontro às
expectativas do movimento que defende a construção de escolas Kaxinawa, Katukina,
Madija, Yaminawa etc.
Outra amarração que se faz necessária, até porque no texto demos um
tratamento en passant, diz respeito ao fato do Governo Federal, os Estados e os
municípios, não terem construído efetivamente sistemas de ensino como preceitua a
legislação, e dotado estes sistemas de financiamento, dando-lhes autonomia financeira,
pedagógica e administrativa, de forma que os índios possam decidir e implantar os
modelos pedagógicos que julguem melhores e mais adequados para servir suas
comunidades.
É urgente a necessidade de superação deste estágio, pois ele tem permitido o
jogo de empurra que ocorre no âmbito dos entes federados do Estado brasileiro. Os
professores e líderes indígenas ficam sem saber a quem recorrer quando o assunto é o
atendimento das demandas pertinentes à construção e manutenção da educação
escolar indígena.
Pelo arremedo de sistema que ora vigora, em tese o atendimento deveria ser
efetuado mediante a cooperação dos três entes federados e, segundo a Resolução
CNE/CEB n.º 3, caberia ao Governo Federal e aos Estaduais, dentre outras obrigações
as que transcreveremos abaixo:
Ao Governo Federal – Apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino
na formação de professores indígenas e do pessoal técnico especializado; criar
ou redefinir programas de auxílio ao desenvolvimento da educação, de modo
que atenda às necessidades escolares indígenas. Aos Estados –
Responsabilizar-se pela oferta e pela execução da Educação Escolar Indígena,
diretamente ou por meio de regime de colaboração com seus municípios. (As
leis e a educação escolar indígena: Programa Parâmetros em Ação de
Educação Escolar Indígena, 2001)
Estas recomendações da Resolução CNE/CEB n.º 3 são atendidas apenas
parcialmente e de forma distorcida.
Ate 1999 o MEC destinava poucos recursos para a manutenção da Educação
Escolar Indígena, condicionando cerca de 80% do orçamento para aplicação em
projetos desenvolvidos por umas três ou quatros ONG‘s, e mais ou menos o mesmo
número de universidades, consideradas responsáveis pela sistematização e
manutenção do modelo de EEIID e B junto ao ministério38.
Após 1999 o governou dotou a educação escolar indígena com aporte maior de
recursos e inverteu as prioridades dos investimentos, destinando mais recursos aos
sistemas oficiais de educação, responsáveis legais pela oferta do ensino, destinando
menor percentual às ONG‘s e universidades.
Porém a visibilidade de que o governo federal estava aportando mais recursos,
só foi possível por se ter como parâmetro a situação anterior. Passado aquele primeiro
momento, se percebe que estes recursos estão defasados em pelo menos 60% do que
seria necessário e ideal para a manutenção adequada39 do funcionamento do sistema.
Por outro lado, uma atribuição que não está na resolução, mas tanto a atual
gestão do governo federal quanto a anterior tem assumido, é a de desempenhar papéis
que seriam das ONG‘s ou do Ministério Público, adotando posição de arbítrio em
conflitos envolvendo os sistemas estaduais e municipais de ensino, e o movimento
indígena, ou o movimento indigenista, tomando sempre o partido destes, em detrimento
daqueles, e se eximindo de quaisquer faltas para com as responsabilidades que o
sistema lhe impõe, como ocorreu no Acre, numa ocasião em que uma técnica da
Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas do MEC – CGAEI/MEC,
participando de uma atividade promovida pela CPI, confronta e constrange o
coordenador da CEEI perante os indígenas e indigenistas da CPI, acusando o governo
38 Consultar expedientes na CEEI da SEE.
39 Estes cálculos foram feitos tendo por base as demandas do sistema estadual do Acre. Estes números poderão ser maiores ou menores a depender do
sistema que se compare.
do Estado de não aplicar os recursos destinados às escolas indígenas e, mais grave
afirmando que o MEC destinava para o Estado e os municípios os recursos suficientes
para a adequada manutenção do sistema de educação escolar indígena, atendendo
todas as demandas, da construção das escolas à formação dos professores.
Por esta mesma razão, vale uma amarração acerca da disputa que se
estabelece entre a SEE/CEEI e as entidades da sociedade civil, podendo, ou não, a
realidade a seguir descrita, ser extensiva e pertinente a realidades vivenciadas em
outros Estados da federação.
Como já foi referido neste trabalho, o indigenismo acreano alternativo
desenvolveu-se no âmbito da chamada sociedade civil durante a vigência da ditadura
militar, numa conjuntura em que o Estado era o grande inimigo. Esta conjuntura levou
este indigenismo alternativo a incorporar certa ojeriza contra determinados agentes do
Estado, embora esta ojeriza não fosse extensiva a todos os agentes do Estado e nem
ao Estado como tal, haja vista que desde o ano de 1983 esta sociedade civil
desenvolvia parcerias e convênios com o Estado, nas suas três vertentes federativas.
Na verdade, segundo a leitura que fizemos de Sáez, em referência à atuação da
CPI junto à etnia Yaminawa, foi possível deduzir que se operava uma simbiose entre o
Estado e o indigenismo alternativo, de forma que este desfrutava de uma posição
cômoda, pois o resultado desta simbiose lhe permitia assumir uma situação privilegiada,
porque por desfrutar de
maior dinamismo dos órgãos privados e de pequeno porte, se dedica
essencialmente à criação de elites indígenas: é ele o responsável pelos salários
de professores indígenas e enfermeiros, e, sobretudo, pelos cursos de
formação e pela participação dos jovens Yaminawa em congressos ou reuniões
de indígenas em escala nacional e internacional.
Este processo que Sáez está analisando ocorria antes da conquista do governo
do Estado do Acre por um grupo de oposição, que chegou ao poder em 1999
defendendo uma plataforma política de esquerda e que, uma vez no poder, se auto
intitulou Governo da Floresta.
Mas isto não quer dizer que a CPI deixe de cumprir esta função, o que vai
ocorrer é uma mudança estratégica guiada pela decisão deste grupo político em
assumir a responsabilidade pela gestão da educação escolar indígena, que passa a ser
um serviço público oferecido no âmbito do aparelho do Estado, por meio de uma
coordenação criada para esta finalidade, a CEEI, na SEE.
Em relação à política de educação escolar indigenista do Estado do Acre se
fizermos um paralelo com a política do governo federal, mutatis mutandis o Governo da
Floresta também assume esta política num momento em que há muitas demandas
reprimidas, razão pela qual consegue realizar algumas coisas, que, à luz da situação
anterior de atendimento quase zero, promove uma grande visibilidade, desencadeando
um processo de disputa com a CPI, pois, na nova conjuntura ela já não desempenhará
os mesmos papéis que desempenhava antes da ascensão do chamado Governo da
Floresta.
Mas este governo não quer perder o apoio da sociedade civil, por isto seus
dirigentes ampliam o Estado incorporando a maioria das entidades que compõem esta
sociedade civil numa nova dinâmica, como são claramente os casos do CTA e da CPI,
que passam a assumir funções para-estatais, atuando no interior do governo por meio
da participação em conselhos, como o de Meio Ambiente, Educação, de Florestas e
outros, ou realizando consultorias, celebrando convênios para prestação de serviços,
ou ainda fornecendo seus quadros para atuarem no aparelho estatal.
Com a entrada do Estado num cenário que antes não atuava, queremos
considerar que, do ponto de vista da competência técnico-pedagógica e do
compromisso político com a causa indígena, no geral não se observam diferenças
significativas entre os técnicos da CPI e os da CEEI. Fazemos esta observação porque
parte da crítica que a CPI fazia ao Estado quando este passa a assumir os serviços de
assistência e manutenção da EEIID e B, dizia respeito a este tópico. No entanto, por
incrível que possa parecer os técnicos da CEEI, inclusive, se empenham na tarefa de
formatar – junto ao conjunto dos representantes de cada etnia – PPP‘s que fogem dos
modelos estandardes, e só não o conseguirão porque não há interesse e nem
compromisso do governo com este projeto político, haja vista que isto pressupõe
conceber autonomia aos povos indígenas, autonomia fundiária, política, financeira,
cultural etc, e isto é impensável e, sobretudo, impraticável para o governo, pois este
apenas reciclou, sem erradicar e nem abdicar das formas de tratamento autoritárias e
preconceituosas contra os indígenas, presentes nos governos que o antecederam.
As ações do governo no âmbito da educação escolar indígena ficarão restritas ao
que já foi executado, como a construção e manutenção de prédios escolares, a
ampliação da rede de escolas e do número de professores, e a capacitação dos
docentes, não se esperem mais nada inovador ou revolucionário. Não há como avançar
mais, porque avançar, como escrevemos acima, significaria assumir uma postura
política pró-indígena, e o governo, por não ter identidade política com a causa,
dificilmente a assumirá. O que se pode esperar daqui para frente será a
superlativização e a reificação, por meio da divulgação nas mídias, do que já foi
realizado até agora.
Esta postura do governo enquanto gestor das contradições da sociedade dividida
em classes, não interferirá no compromisso que a equipe técnica da CEEI tem com a
causa indígena. No entanto ela se encontra num nível hierárquico que não lhe permite
avançar, então sua atuação será no sentido de cumprir as tarefas mínimas que o
Estado é obrigado a assumir, mas nada que signifique uma transformação qualitativa
nas condições adversas que as populações indígenas acreanas atravessam, não só no
que tange à EEIID e B, até mesmo porque esta não é uma ação que esteja isolada de
um conjunto de outras demandas que são essenciais para resguardar, tanto o sucesso
da EEIID e B, quanto a manutenção da cultura material e imaterial e a vida dos índios.
Para concluir estas considerações finais, queremos esclarecer que o matiz
aparentemente pessimista desta parte da dissertação, não significa que acreditemos
que a EEIID e B seja algo negativo e que não tenha contribuições para o movimento de
autonomia dos povos indígenas. Não é esta a nossa visão. O que tentamos demonstrar
é que há uma FD na qual a forma sujeito pela qual o sujeito indígena é interpelado, é a
forma do assujeitamento, todavia, concordando com Possenti (ibidem), acreditamos que
este sujeito não é passivo, não aceita o assujeitamento, e a educação escolar pode vir
a ser um elemento na estratégia de combate contra a intenção de se impor a ele esta
forma sujeito assujeitada.
Dito isto, reafirmamos que entramos na ordem do discurso da EEIID e B, e
assumimos uma postura discursiva que é partilhada por outros sujeitos, uma postura
que refuta a idéia apriorística e reificante de que a EEIID e B seja uma educação
indígena na acepção do significado que esta expressão traduz. Esperamos ter
cumprido a tarefa a que nos propusemos nesta dissertação.
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Anexo n.º 01 - Etnias indígenas acreanas sobreviventes a um século de genocídio e
etnocídio.
Famílias Lingüísticas
Etnias sobreviventes
Proficiência lingüística Municípios em que se encontram grupos dessas etnias
Pano
HuniKuĩ/ Kaxinawa
Há grupos cujos homens adultos são bilíngües, e as mulheres e crianças são monolíngües em Hantxa Kuĩ - língua indígena; outros grupos são monolíngües em língua portuguesa e há grupos multilíngües, além do Hantxa Kuĩ, apresentam proficiência noutra língua indígena, além do Português e Espanhol.
Marechal Thaumaturgo no rio Breu; Jordão nos rios Jordão e Tarauacá; Tarauacá, rios Tarauacá, Muru, Humaitá e na BR 364; Feijó, no baixo e Alto rio Envira; Santa Rosa do Purus, no rio Purus.
Yaminawa
Os grupos do Acre e Purus são bilíngües, com excelente preservação da língua indígena, os grupos do Juruá são monolíngües em língua portuguesa. Nos grupos do Acre e Purus há indivíduos que apresentam proficiência em Português e Espanhol, além de outra língua indígena.
Rodrigues Alves no Igarapé Preto; Sena Madureira, nos rios Purus, Caeté e Iaco; Assis Brasil, no rio Acre, Santa Rosa do Purus, no rio Purus e na sede municipal está se formando uma aldeia urbana.
Katukina
Os homens são bilíngües, e as mulheres e crianças são monolíngües em língua indígena. O grupo localizado às margens da BR 364 está sob risco de deslocamento lingüístico dado o extenso contato com falantes de português.
Tarauacá, no rio Gregório e na BR 364 próximo aos municípios de Cruzeiro do Sul e Rodrigues Alves.
Yawanawa
Apenas as gerações acima dos 40 anos são falantes da língua Yawanawa, o grupo está no limite entre o bilingüismo e o monolingüísmo em língua portuguesa.
Tarauacá, no rio Gregório.
Shanenawa
Apenas as gerações acima dos 40 anos são falantes da língua Shanenawá, o grupo está no limite entre o bilingüismo e o monolingüísmo em língua portuguesa.
Feijó, no baixo rio Envira.
Nukini Monolíngües em língua portuguesa Mâncio Lima, no rio Moa.
Shawãdawa Monolíngües em língua portuguesa Porto Walter, no rio Bagé.
Nawa Monolíngües em língua portuguesa Mâncio Lima, no igarapé Novo Recreio.
Apolina Arara Monolíngües em língua portuguesa Marechal Thaumaturgo no rio Amônea.
Jaminawa Arara
Monolíngües em língua portuguesa Marechal Thaumaturgo no rio Bagé.
Poyanawa Monolíngües em língua portuguesa Mâncio Lima, na Terra Indígena Barão.
Kontanawa Monolíngües em língua portuguesa Marechal Thaumaturgo no rio Amônea.
Aruak
Ashaninka/ Kampa
Os homens adultos são bilíngües, e as mulheres e crianças são monolíngües em língua indígena. Há indivíduos que apresentam proficiência em Português e Espanhol.
Marechal Thaumaturgo no rio Amônea; Feijó no rio Envira e em Tarauacá no Igarapé Primavera.
Manxineri Bilíngüe, com boa preservação da língua indígena. Sena Madureira, no rio Iaco uma família mista com Jaminawa em Assis Brasil no rio Acre.
Arawá Madija/ Kulina
Os homens adultos são bilíngües, e as mulheres e crianças são monolíngües em língua indígena. Há indivíduos que apresentam proficiência em Português e Espanhol.
Santa Rosa do Purus, no rio Purus; Manuel Urbano, no rio Purus; Feijó no rio Envira.
Anexo n.º 2 – Escolas, Professores e Alunos na Educação Escolar Indígena por
Município no Acre
Total de Escolas, Professores e Alunos na Educação Escolar Indígena por Município e Rede
Município Escolas Professores Alunos
Assis Brasil 20 28 485
Cruzeiro do Sul 5 11 175
Feijó 20 51 808
Jordão 27 37 838
Mâncio Lima 6 29 455
Manoel Urbano 5 7 239
Marechal Thaumaturgo 12 18 518
Porto Walter 7 8 112
Rodrigues Alves 4 5 81
Santa Rosa 28 39 944
Sena Madureira 6 6 71
Tarauacá 21 61 928
Total Geral 161 300 5654
Fonte: Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação/SEE
Total Rede Estadual
Escolas Professores Alunos
111 258 3809
Fonte: Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação/SEE
Total Rede Municipal
Escolas Professores Alunos
50 42 1845
Fonte: Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação/SEE
Total Geral de escolas e professores indígenas do Acre
Escolas Professores Alunos
161 300 5654
Fonte: Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação/SEE
Anexo n.º 3 – A Escolaridade dos Professores Indígenas do Acre
RESUMO DO QUADRO DEMONSTRATIVO DOS PROFESSORES POR ESCOLARIDADE
MUNICÍPIO ESCOLARIDADE QUANTIDADE Total
Assis Brasil
Fundamental Incompleto 20
29
Fundamental Completo 3
Ensino Médio 5
Ensino Superior 1
Cruzeiro do Sul
Fundamental Incompleto 6
11
Fundamental Completo 2
Ensino médio 3
Feijó
Fundamental Incompleto 10
51
Fundamental Completo 12
Ensino Médio 29
Jordão
Fundamental Incompleto 8
37
Fundamental Completo 23
Ensino Médio 6
Mancio Lima
Fundamental Completo 6
36
Ensino Médio 27
Superior Completo 3
Manoel Urbano
Fundamental Incompleto 1
7
Fundamental Completo 1
Ensino Médio 5
Marechal Thaumaturgo
Fundamental Incompleto 1
18
Fundamental Completo 4
Ensino Médio 13
Porto Walter Fundamental Incompleto 5
8 Fundamental Completo 3
Rodrigues Alves
Fundamental Incompleto 2
5 Fundamental Completo 3
Santa Rosa
Magistério Inconpleto 1
30
Magistério Completo 20
Ensino Médio 18
Sena Madureira Fundamental Incompleto 5
6 Fundamental Completo 1
Tarauacá Fundamental Incompleto 13
62
Fundamental Completo 28
Ensino Médio 20
Ensino Superior 1 Total Geral 300 Fonte: Coord. de Educação Escolar Indígena - SEE/2009
Anexo n.º 4 – Ficha Técnica do RCNEI
Coordenação Geral Nietta Lindenberg Monte Equipe de Coordenação Darlene Yaminalo Taukane, Júlio Wiggers, Terezinha Machado Maher, Valmir Jesi Cipriano Consultoria e Redação Para começo de conversa Nietta Lindenberg Monte e Aracy Lopes da Silva (coordenadoras), Darlene Yaminalo Taukane, Deuscreide Gonçalves Pereira, Gersen José dos Santos Luciano, Júlio Wiggers, Luis Donisete Benzi Grupioni, Marta Maria Azevedo, Suzana M. Grillo Guimarães Temas Transversais Fausto da Silva Mandulão e Valmir Jesi Cipriano Línguas Terezinha Machado Maher (coordenadora), Bruna Franchetto, Lydia Poleck, Maria Bernadete Abaurre, Ruth Fonini Monserrat, Sílvia Lúcia Bingonjal Braggio Matemática Jackeline Mendes e Mariana Kawall Leal Ferreira História Antonia Terra de Calazans Fernandes Geografia Márcia Spyer Rezende Ciências Isabelle Vidal Giannini e Kléber Gesteira Matos Arte Jussara Gomes Gruber e Lúcia Hussak van Velthem Educação Física Fernando Luis Vianna Edição Mara Vanessa Dutra, Nietta Lindenberg Monte e Marina Kahn Revisão Viviane Veras, Ana Freire e Maristela de Lima
Programação Visual Luis Daré
Anexo n.º 5 – Lista de Agradecimentos do RCNEI
Aos professores indígenas que mandaram suas contribuições para fundamentar
as idéias deste Referencial:
Afonso Manuel Maurício, Cristóvão, Marcolino Rabelo, Damião Carvalho Neto, Darcy
Duarte Marubo, Edilson Arara, Gilberto Alves, Hermelinda Aline Coelho, José Adjailson
Porto Vieira, José Erivaldo Cordeiro de Oliveira, Justino Miguel Alexandre, Higino
Tuyuka, Lucimar Tertuliano, Manuel Sande João, Maria das Montanhas Bento, Maria
Helena Barbosa da Silva, Missionário Miguel, Moacir Madical, Onildo Manuel, Ozino
Benedito Pedro, Pedrisia Damasio Oliveira, Robertinho da Silva, Sebastião
Duarte/Tucano, Silvio Sebastião Carvalho, Waldir Carvalho, Wilson dos Santos Manoel,
Comunidade Auretê/AM; Professores Indígenas de Minas Gerais, Professores
Indígenas de Passo Fundo/RS, Professores Indígenas de São Valerio do Sul/RS,
Professores Indígenas Kampa, Professores Indígenas Krikati, Professores Indígenas
Tiriyó e Kaxuyana;
Professores do Acre e Sudoeste do Amazonas:
Chico Yawanawá, Isaac Ashinika, Jaime Manchineri, Julio Isudawa Jaminawa
Professores Kaxinawá: Aldenor Rodrigues da Silva, Anastácio Maia Bane, Isaias,
Joaquim Maná, Josimar Tui, Manoel Francisco Dario, Edson, Manoel Saboia, Nicolau,
Norberto, Paulo Lopes Siã, Virgolino, Tene, Waldemar Pinheiro Ibã; Professores
Apurinã: Aiwá, Aldereci da S. Anã;
Professores Guajajara:
José Lodis, Luciene, Lauro, Milton de Souza, Moisés;
Professores Kaimbé:
Joselene Macedo, Maria Luiza, Genisse Cruz;
Professores Karajá:
Adão Ureha, Antônio Ferreira, Célio Kawina, Cláudio Idyare, Edi Mato Hori, Hariana,
Ismael Xuttanama, Joel Wahuri, José Hani, José Uriama, Judson, Wadjureno, Jurandir
Malruleme, Manuel Tuila, Marcos Wyra, Moisés Belehiru, Paulinho Chalue, Roberto
Beinaré, Sinvaldo Oliveira, Tereza Mahike, Wadi, Woubeder;
Professores Katukina:
Bejamin, Francisco;
Professores Kiriri:
Adenilza dos Santos Macedo, América Jesuina da Cruz Batista, Edenice Jesus da
Flora, Ivanilde de Jesus, José Valdo dos Santos, Marlinda de Jesus, Maria de Fátima
Santos da Silva, Monica Jesus de Souza, Onalvo de Jesus Santos, Solange Jesus
Santos, Carlos Luis, Rejane, Valdeci, Erenilda, Rozália, Maria José;
Professores Pankararé:
Claudiane Araújo Ferreira, Maria Clarice Cruz dos Santos, Antonia Cruz;
Professores Pataxó:
Adelson Oliveira Conceição, Ademanio Braz Ferreira, Alzira Santana Ferreira, Anari
Braz Bonfim, Aurenilson da Conceição Braz, Birai, Diana Conceição Bomfim, Dinai
Pires, Edenildo Lopes Santana, Edvaldo de Jesus Santos, Geane Vieira Braz, Genival
Conceição do Santos, Iraildes Sena Braz Conceição dos Santos, José Roberto Silva,
Jovino de Jesus Ponçada, Kelli Cristina Ferreira dos Santos, Macari Alves Ferreira,
Maria Aparecida Martins S. C. Toledo, Maria da Silva Souza, Marilene, Paulo Rosa
Titiar Vieira, Siara Braz Corrêa, Velson Santana Braz, Vera Lucia;
Professores Pataxó Hã Hã Hãe:
Alessandra Lima Santos, Aluísio Costa Vieira, Edilson Jesus de Souza, Erhon Santos
de Souza, Gildinai Gualberto Gomes, Ivonete Pereira dos Santos, José Renilton Muniz
Lima, Luciene Muniz de Andrade, Luzeneth Muniz, Margarida Pataxó R. de Oliveira,
Maria de Fátima, Noemi Leite Moraes Guimarães, Silvani Santos de Souza, Wilman
Rocha de Oliveira;
Professores Tuxá:
Rosineide Vieira Cruz, Aldenora Vieira, Rizalva dos Santos Torres;
Professores Xucuru:
Maria José Lima, Aparecida, Rosinete, Irene Elizângela, Clarice Aparecida, Jucineide
Maria Simplício Freire, Giselma de Brito;
Cursistas do Projeto Tucum:
Alexandre Azomaré, Alinor Alves Zezonai, Alvair Monzilar, Angelo Kezomae, Ariovaldo
Alves Reginaldo, Aristides Onezokemae, Arlindo Pudata, Armindo Zokezomeyece,
Atanasio Jolasi, Cecília Lalapwetalu, Cristina Leite, Daniel Matenho Cabixi, Donato
Bibitaca, Ester Lúcia Irantxe, Geraldina Peresi, Ivanio Zekezokemae, Ivo Zonaikaikta,
João Euclides Pareéis, João Isaputai, Arlindo Jokmaba, João Quirino Fazokemae,
Joãozinho Akonoizocae, José Maria Crixi, Jovanil Amajunepá, Laurinda Nambikwara,
Luizinho Ariabo Quezo, Maria Alice Souza Cupudunepá, Maria Devanildes do Carmo,
Maria Suzana do Carmo, Maria Tereza C. de Jesus Kojoãjuwi, Marino Borum
Munduruku, Mário Ilhamão, Mário Moreno Onizokãe, Miriam Kazaizokairo, Nilce Zonizo
Kemairô, Odivaldo Aluizomae, Osmarina Morimã, Paulo Henrique Martinho Skirip,
Pedro Kezowe, Angela Kezonazokero, Pedro Nazokemai, Raimundo Irantxe, Sandra
Aparecida Azemaizokero, Silo Onozokemai, Solomão Nezokemazokae, Terezinha
Amazikairo; Abraão Tsibupa, Adalberto Omnhorowe, Alberto Pariwaw Tserebuwa,
Adalberto Tserebutuwê, Adelino Ernestino, Alexandre Tsitomowá'a, Alfredo Parapsé
Xavante, Aquiles Abdzuwe, Arim Tamassu, Boaventura T. Tserewá'wá, Bonifácio
Tseretsira, Carlos Wa'utomoro, Tsitedzé, Donato Tsimrihu Tsahobo, Eliseu Rua'wê,
Eliseu Wadupi Tsipré, Espèrio Warowedewe, Ely Serewaibe, Fabiano Abutuwê Madu,
Floriano Matsa Tserenho'e, Frederico Ruwabzu Tseretomodzatsé, Gaspar Waradzéré
Tsiwari, Gedeão Diomar Râiro Ó Diwaue, Gilma Ró otsí utóri'o Paratse, Heitor Wawéru,
Hilário Pariperê Parirânxê, Inácio Al'rero Ruprewe, Isaias Prowê Fseredzawe, João
Batista Tsi'omowê Tsoropré, João Bosco Xavante, Jonas Tsiredi Tseredzawe, Jonatas
Teihipa, José Gonçalves Bewê, Josué Duptuwe Twapé, Leandro Aptsi'ré, Leonardo
Urébété, Manuel Divino Tsere'onorate, Marcelo Rupowé Xavante, Marcos Antônio
Tseredzadzur'a Tsedza'é, Marcos Tsi'robo Paridzane, Maria Carla Penhõwe
Tseretonodzatsé, Mateus Tserewadzi, Mateus Tserenhowatsihu Tseredze, Mateus
Tseretopo Re ré édi, Máximo Uratsé tsi Omowé, Mazzarelo W. Xavante, Maurício
Tsawewpte, Modesto Tserewawã'rã, Nicolau Wadzá, Paulo Ubuhu, Paulo Teserãwe,
Pedro Uiwedewê, Profirió Trutep, Rogério Wahoné, Rute Rewãtsu, Tito Abdzu, Tito
Seretatê, Tobias Õmohi, Valdibnez Tserehoro, Valdemir Howaewa, Valmir Adzowé
Xavante, Vicente Tsimrihu Rãi'rãté, Vitorio Buruwewawe Wa'ahe, Xisto Tserenhi'nu
Tserenhimi, Walter Tsipe Xavante; Araci Borobó, Arnaldo Vicuna Ocuguebou, Áurea
Maria Cunha, Benedito Pereira Junior. Bakorokaro, Bruno Tavie, Evaristo Kiga, Cláudio
dos Santos Bakaroé Kia, Daniel Koriga, Dario Brame, Edinho Uaigaroreu, Elizabeth das
Dores Rodrigues Arogeareudo, Felix Rondón Adugoenaw, Gerson Mário Enogureu,
Gilberto Kia, Helinho Kurugugoe Eiga, Hilário Rondon Adugonareu, Iolanda Silva
Bokorokurireudo, Iraci Borobó, José Aniceto Xavier de Melo Iorobaro, Laura Maria
Vicunã Imexebado, Luiz Carlos Okoeréo, Maria Divina de Arruda, Maria Divina
Ituraredo, Maria Palmira Boturo Ewago, Maria Trindade Tuboreguiri, Maurício
Kurugugoe Emaguda, Neide Jereguinha, Orlando Kuira, Sebastião Marques
Aquiricudureu, Osvaldo Hélio Iwodo Akaire, Rosângela Burue Ekureudo, Sandra Florice
Aroe Poiwo, Silvio Mário Oikare, Teodoro dementino Marege Kadogeba, Valdeci
Poxiréo, Virgílio Kidemugureu, Waldemar Borobó, Monitoras Rita Natalia, Cidinha,
Dulce Lene, Euzeario; Ana Maria Melka Xerente, André dos Santos Kawaka, Antônio
Leocadio Kawaco, Apolônio Apiaga, Arlindo Rondón Kogapi, Cleuzinete Magaro
Pedroso, Dairce Cutazega Kaipanago, Dorothy, Durcilene de Oliveira Rodrigues Apygô,
Durval Alacuiwa, Edinho Kamâni, Edivaldo Aparecido dos Santos, Edmundo Piniru,
Edna Sales Apayegã, Edson Itamabe, Edson Kulewâra, Edson Oliveira dos Santos,
Eduardo Maiawai Koni Tawanre, Evalnice Caiamalo Bakairi, Everaldo Wedetsire,
Genivaldo Geronimo Poiure, Gilberto Sapenague Paroka, Gilmar Paique Paroca,
Gilberto Tserehoniora, Ivelise Pedroso Iamynalo, Jackson Iacamylda Kukure, Jeremias
Poiure, Luiz Apacano Kapeguara, Maísa Cúteme Taukane, Márcio Alua Madikai,
Marilene Sanaca Matuawa, Maurício Xerente, Moacir Madicai, Moisés Ipetsadi Tsirobo,
Otaviano Tserenõ Wadawé, Paulo Kavopi, Queridinha Egueco Apacano, Reginaldo
Ikaura Xerente, Selma Ekuida Kutiaca, Suzeli Aiguta, Waldomir Ianu, Valdenor Aigure,
Vanda Kurico Seigalo, Vânia Ataiwalo Kuiwire, Zenilde Makialo.
As Escolas Indígenas que contribuíram enormemente com o documento:
Escola 1° Grau Indígena José de Alencar/Kaingang, Escola Estadual Io Grau
Incompleto Toldo Guarani, Escola Indígena Io Grau Faustino/Kaingang, Escola
Indígena José de Anchieta/Kaingang, Escola Indígena Maria da Silva/ Posto Indígena
Votouro/Guarani, Escola Indígena Rosalino Claudino/Guarita- RS/Kaingang, Escola Iorü
Reparaü/Aldeia Filadélfia-Tikuna, Escola Marechal Cândido Rondon/São Valerio do Sul/
RS-Kaingang, Escola Municipal Io Grau Indígena Estelito Malaquias-Kaingang, Escola
Municipal do OrorubáV Xucuru, Escola Polo Municipal de 1o Grau MboTìroy
Guarani/Kaiowá, Escola Indígena Procurador Geraldo Rolim Mota Filho, Escola
Indígena Olavo Bilac/Xukuru.
Aos participantes dos Encontros e Seminários nacionais e regionais onde
foram discutidos os RCNE-Indígenas:
I Encontro de Coordenadores de Projetos na Área de Educação Indígena, realizado no
MEC; Primeira Conferência Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira/AM;
Conferência Ameríndia - MT; II Curso de Formação de Professores Indígenas da Bahia;
XVIII Curso de Formação de Professores Indígenas do Acre e Sudoeste do Amazonas;
VI Curso de Formação de Professores Indígenas de Minas Gerais; IV Etapa do Curso
de Magistério Indígena de Mato Grosso; Curso Magistério
Indígena Tikuna-AM.
Aos pareceristas que analisaram e enriqueceram a versão inicial com suas
opiniões e experiências e aos que reescreveram partes do texto:
Adir Casaro Nascimento, Adriane Costa da Silva, Aldir Santos de Paula, Alice dos Reis
Rosa, Aloma Fernandes de Carvalho, Ana Rosa Abreu, Angel Corbera Mori, Antonia
Terra de Calazans Fernandes, Antônio Brandt, Bartomeu Melià, Beatriz Perroné
Moisés, Betty Mindlin, Bruno Ferreira, Circe Maria Fernandes Bittencourt, Cláudia
Rosemberg Aratangy, Edir Pina de Barros, Edivanda Migrabi, Eliene Amorim de
Almeida, Elizabeth Maria Bezerra Coelho, Enilton André da Silva, Stela Würker,
Francisco de Borja Lopes de Prado, Gilvan Müller de Oliveira, Irani Miguel Kaingang,
Ivo Borges Brito, Jaime Manchineri, John Manuel Monteiro, José Ribamar Bessa Freire,
Juliana Santilli, Lilavate Romanelli, Lucas Ruriõ Xavante, Lúcia Helena Afonso Alvarez
Leite, Lucy Secki, Marcelo Pedrafitas Iglesias, Marilda do Couto Cavalcante, Lux Boelitz
Vidal, Marcos Pelegrini, Maria Beatriz Ferreira, Maria Cecilia Guedes Condeixa, Maria
Cristina Troncarelli, Maria de Lurdes Nelson, Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz,
Maria Inés Freitas, Maria Inês Laranjeira, Marília Lopes da Costa Facó Soares, Marina
Kahn, Marina Marcos Valadão, Mariza Carvalho Soares, Neide Mariza Rodrigues
Nogueira, Osvaldo Luiz Ferraz, Pedro Franco, Raimundo Leopardo Ferreira, Renato
Gavazzi, Rosana Soligo, Roseli de Alvarenga Corrêa, Roseli de Souza Lacerda, Sélia
Juvêncio, Silvio Coelho dos Santos, Sueli Ângelo Furlan, Terezinha Fróes Burhan,
Ubiratan D'Ambròsio, Vera Olinda Sena, Wilmar da Rocha D'Angelis, Yara Sayão, Yone
de Freitas Leite, Yves de La Taille, Zineide Pereira Sarmento.
Às Instituições que se manifestaram com críticas e sugestões valiosas ao
aprimoramento do texto final:
Centro de Estudos Paraguayos "Antônio Guash", Centro de Trabalho Indigenista-CTI,
MARI-Grupo de Educação Indígena/ USP, Comissão Pró-índio do Acre-CPI/AC,
Conselho Indigenista Missionário-CIMI, Delegacia do MEC em Rondônia-DEMEC-RO,
Delegacia do MEC no Acre-DEMEC-AC, Delegacia do MEC no Ceará-DEMECCE,
Instituto de Antropologia e Meio Ambiente-IAMA, Instituto para o Desenvolvimento e
Educação de Adultos-IDEA, Secretaria de Estado da Educação da Bahia, Secretaria de
Estado da Educação de Mato Grosso, Secretaria de Estado da Educação do Mato
Grosso do Sul, Secretaria de Estado da Educação de Pernambuco, Secretaria de
Estado da Educação de Rondônia, Secretaria de Estado da Educação do Paraná,
Secretaria de Estado da Educação do Rio Grande do Sul, Secretaria de Estado da
Educação do Tocantins, Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, Universidade
Católica Dom Bosco - UCDB, NEPEC-Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em
Currículo, Ciência e Tecnologia/UFBA, NEI-Núcleo de Educação Indígena/UFPE,
Universidade Federal de Rondônia-UNIR, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-
UFMS, Universidade Federal do Pará-UFPA.
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