O Algarve e as Guerras Liberais

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O ALGARVE E AS GUERRAS LIBERAISCoordenao e prefcio do COR INF Nuno Pereira da Silva

Maio de 2011

Ilustrao da Capa: Quadro As Guerras Liberais de Mestre Mrio Silva Edio: Regimento de Infantaria N. 1 Autores: Nuno Miguel Pascoal Dias Pereira da Silva, Coronel de Infantaria Comandante do Regimento de Infantaria n. 1; COR Amrico Henriques; Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva; Dr. Lus Bvar de Azevedo; Dr. Pedro Nunes; Prof. Dr. Antnio Rosa Mendes; GEN Alexandre Sousa Pinto; Dr. Joaquim Nunes; CAP Arnaldo Anica; Prof. Dr. Jos Vilhena Mesquita; ALF Vera Oliveira Rodrigues; ALF Pedro Rafael. Paginao, impresso e acabamento: Regimento de Infantaria n. 1 Depsito Legal: 326850/11 ISBN: 978-989-20-2393-9

NDICEPREFCIO .................................................................................................................... CONFERNCIAS PROFERIDAS: CONFERNCIA 1: AS LUTAS LIBERAIS ... CONFERNCIA 2: AS CONSTITUIES LIBERAIS PORTUGUESAS ................. TRICAS ......... CONFERNCIA 4: O REMECHIDO . 9 29 7

CONFERNCIA 3: AS GUERRAS LIBERAIS E O ALGARVE. ALGUMAS NOTAS HIS47 67

CONFERNCIA 5: A PARTICIPAO DO SUL DO PAS NAS GUERRAS LIBERAIS ... 137 CONFERNCIA 6: O LIBERALISMO E A IGREJA ...... CONFERNCIA 7: A CAMPANHA DO REMEXIDO ... CONFERNCIA 8: O ALGARVE E AS LUTAS LIBERAIS SNTESE CURRICULAR DOS CONFERENCISTAS .......................................... POSFCIO . 149 161 167 181 187

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PREFCIOEste novo livro editado pelo Regimento de Infantaria n. 1 o 2. volume duma trilogia sobre a histria do Algarve, que se iniciou com as invases francesas e terminar com a 1. Repblica. Esta nossa iniciativa pretende desta forma contribuir para o conhecimento mais aprofundado do papel desta provncia na Histria de Portugal. Foi nesta nossa provncia que desembarcaram as tropas liberais comandadas pelo Duque da Terceira com destino a Lisboa, onde desembarcaram a 24 de Julho. Os conferencistas que participaram nos trs painis de conferncias organizados pelo RI1 so oriundos do meio acadmico, eclesisticos e militar sendo personalidades de relevante prestgio dado o seu conhecimento aprofundado da Histria da poca. Assim, os discursos dos referidos conferencistas so da sua prpria responsabilidade. Parece-nos relevante realar a extraordinria disponibilidade de todos os conferencistas em colaborar nesta iniciativa, pois fizeram-no a ttulo gracioso. O presente livro editado em DVD constitudo pelos textos dos conferencistas, pelo registo udio das suas conferncias, tendo tambm disponveis algumas fotografias do evento. No dia 19 de Maio data do lanamento do livro os textos constantes neste livro e no anterior O Algarve e as Invases Francesas sero colocados online, para consulta aberta no blog Histria do Algarve.

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de realar a disponibilidade da empresa Delta Cafs e do Instituto Superior Dom Afonso III em patrocinarem esta iniciativa facto que permitiu o lanamento do presente livro.

Nuno Miguel Pascoal Dias Pereira da Silva Coronel de Infantaria Comandante do Regimento de Infantaria 1

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CONFERNCIA 1: AS LUTAS LIBERAISTodo o drama das chamadas Lutas Liberais pode considerar-se como tendo tido origem numa fria madrugada de finais de 1807, aps a Famlia Real e a corte terem embarcado para o Brasil na sequncia da entrada em Portugal dos exrcitos franco-espanhis do general Jean Andoche Junot. Considerada por muitos historiadores como uma brilhante retirada estratgica, e por outros como uma pura e simples fuga, a sada do topo da hierarquia portuguesa para a nossa colnia de alm-Atlntico foi talvez, na sua verdade histrica, um misto das duas coisas, mas um misto que teve o indubitvel mrito de salvar a Independncia da Ptria Portuguesa, garantindo Coroa a capacidade de dilogo com todos os inimigos do Imprio Napolenico. Podemos dizer at, e creio que com toda a propriedade, que o mal no esteve na ida.esteve, isso sim, no tardio da volta. A essncia de todo o problema que se viveu em Portugal aps a hecatombe terrvel das Invases Francesas prendeu-se pois, e em grande medida, com a permanncia da Famlia Real no Brasil durante o perodo de 1807 a 1821, que foi na realidade o perodo capital da tentativa de desmembramento, fsico e ideolgico, de uma certa Europa ps-revolucionria. Assinalado pelas decises do Congresso de Viena, pelo estabelecimento da Santa Aliana e pela assumpo, por parte da Gr-Bretanha, do papel primordial de fiel da balana de um equilbrio de poder europeu em tudo dependente da sua vontade poltica, o perodo em causa corresponde tambm, como reaco aos retrocessos aplaudidos em Viena, ao incio das lutas liberais na Europa. 9

Parte importantssima dos problemas que ento afligiram Portugal, a Gr-Bretanha, verdadeira vencedora das guerras da Revoluo e do Imprio, foi, na altura, o exemplo acabado da mxima diplomtica que diz: As Naes no tm amigos, tm interesses. Por fora dos Tratados de 1807, o secreto de Agosto, e de 1808 e 1810, a Gr-Bretanha assenhoreouse do comrcio do Brasil, transferiu para Londres o centro desse mesmo comrcio, e abriu nossa Jia da Coroa os caminhos de uma independncia h muito sonhada. Materializando, igualmente de forma exemplar, aquela mxima diplomtica, a Gr-Bretanha, pese embora o sacrifcio extremo de muitos dos seus filhos, defendeu aqui os seus interesses vitais, ao transformar Portugal no santurio da sua estratgia para vencer Napoleo na Pennsula Ibrica, santurio traduzido num formidvel campo de batalha defendido a todo o custo, e sem que o preo a pagar lhe casse directamente em cima. Vencedora da guerra, senhora dos mares, fiel da balana de uma Europa perigosamente reaccionria, a Gr-Bretanha o nosso suposto grande defensor - capitalizando porventura da situao desesperada em que nos encontrvamos, ia colocar-nos agora o p no pescoo de duas formas distintas: Recuperando tudo quanto o Marqus de Pombal lhe havia tirado ao minimizar as consequncias do Tratado de Methuen; e dominando a sociedade portuguesa ao dominar o seu Exrcito, superiormente enquadrado por oficiais britnicos num Portugal que, por fora da Guerra Peninsular, havia sido transformado num grande quartel. Agravando ainda mais o desesperado da nossa situao, o governo portugus, uma regncia que o povo alcunhava de os Reis do Rossio (porque habitavam o Palcio da Inquisio, situado no local onde hoje est o Teatro Nacional D. a Maria II.) era completamente controlado pelo Marechal Beresford, o Comandante do Exrcito, que aqui punha e dispunha, amparado por um estatuto de verdadeiro residente e certo da lealdade dos oficiais britnicos que lhe comandavam as tropas. Como facilmente se pode compreender, toda esta situao de subalternidade superiormente assumida, ganhava mais e mais foros de intolerabilidade no corao das elites portuguesas e, sobretudo, no dos oficiais portugueses do Exrcito Portugus, to vencedores da Guerra Peninsular quanto os britnicos o haviam sido, e que se viam sistematicamente preteridos nas suas carreiras e nas suas promoes. O incio de todo este drama comea pois por uma questo meramente corporativa, ou seja, os oficiais do Exrcito Portugus no queriam o comando britnico, pelo que muitos deles organizaram uma revolta.

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Ora, tal revolta estava mascarada com uma certa ideia de liberalismo, embora nem todos os seus intervenientes compartilhassem essa ideia. Segundo consta, a revolta era dirigida contra o governo britnico, ou seja, contra o comando britnico que, na realidade, existia em Portugal. Tudo isto viria a conduzir famosa conspirao de Gomes Freire de Andrade, tristemente ocorrida em 1817. Os homens que fizeram a conspirao de Freire de Andrade (se que esta foi dirigida por Gomes Freire de Andrade, porque, na realidade, nunca se provou tal facto), pertenciam s vrias lojas manicas, entradas definitivamente na vida dos portugueses durante todo o perodo da Guerra Peninsular. Em Portugal existiam maons, (sem dvida alguma!), vindos das tropas portuguesas que haviam combatido com Napoleo ou que tinham estado junto do Exrcito britnico, tal como havia ainda um importante grupo de maons oriundos do prprio Exrcito britnico. A maonaria era, de facto, uma realidade, uma moda da poca, e uma moda com a qual o Portugal que ento sabia ler e escrever se tinha profundamente envolvido. Assim, pode dizer-se com alguma certeza histrica que o problema de 1817 nasceu em duas lojas manicas: a Filantropia e a Virtude. Sabe-se hoje, que membros da loja Virtude quiseram atrair para a maonaria a Condessa de Juromenha, Dona Maria da Luz (que era amante de Beresford), para por ela estarem ao corrente das intenes e pensamentos do comando britnico. Parece pois no restarem grandes dvidas quanto ntima ligao manica, e forte tonalidade anti-britnica, de todo o movimento corporativo que esteve na origem remota do levantamento liberal portugus. Denunciado Regncia (ou seja, aos reis do Rocio e ao Marechal Beresford) por dois oficiais do Exrcito Portugus, Andrade Corvo e Morais Sarmento (eles prprios maons) este movimento conduziu tragdia do Campo de Santana, ou dos Mrtires da Ptria, e ainda execuo, por enforcamento de Gomes Freire de Andrade, no stio do Almarjo, em frente do Forte de S. Julio da Barra, num local no lado oposto da marginal, hoje assinalado por um cruzeiro rodeado por uma cerca. Entretanto no Brasil, e em 1815, D. Joo VI proclamava o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, dando assim nossa imensa colnia de alm-Atlntico o estatuto de reino, numa altura em que a Amrica do Sul Espanhola comeava a sentir o terramoto poltico que a iria dividir em pequenas e grandes repblicas independentes. Admitimos hoje que tal conjunto de movimentos independentistas nunca poderiam suceder no Brasil, uma vez que o Brasil 11

tinha um cimento unitrio de reino, muito embora este raciocnio parea ser desmentido pelas revoltas republicanas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, muito na linha do que sucedeu no reinado de D.a Maria I com a revolta do Tiradentes, o que aponta para um certo sentimento de independncia, e de partio do grande Brasil em vrios mosaicos republicanos. Ora, se tal no sucedeu, foi porque D. Joo VI, para alm da criao do Reino Unido, teve a sorte extraordinria de, dentro do prprio Brasil, existir um movimento de homens de ideias avanadas, chefiado por Jos Bonifcio de Andrade Silva, movimento que foi, sem dvida, o grande farol que iluminou o caminho do Brasil para a independncia assente na grandeza da sua unidade. D. Joo VI estava pois assentado no Brasil e separado de Portugal, muito embora estivesse frente de um Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Porm, no entender dos portugueses que sabiam ler e que viviam em Portugal, tal situao significava como que um virar dos plos desta esfera imperial, ao tornar Portugal praticamente numa colnia de um Brasil que, pelo seu tamanho, riqueza e potncia, passaria a ser o grande motor desse mesmo imprio, tudo sob o olho sagaz da Inglaterra que assim esperava continuar a controlar todo o seu comrcio. Como se pode compreender, esta situao levou a que uma certa elite portuguesa e que vivia na Metrpole, e qual pertenciam muitos dos apoiantes do que sucedera em 1817, comeasse a ter um sentimento profundo de revolta, no s contra o predomnio ingls na vida nacional, mas tambm contra a ausncia, to longamente inexplicvel, da Famlia Real. Quanto Gr-Bretanha, era sabido nos meios mais chegados Regncia que o seu governo, por intermdio de Lord Strangford e de Charles Stuart, pressionava D. Joo VI para regressar a Portugal, uma vez que, se tal acontecesse, teriam o Brasil isolado sob a sua esfera de influncia, coisa que de certa forma j acontecia. Porm D. Joo VI recusava-se a regressar a Portugal, o que, segundo opinies hoje expressadas em vrias obras, se devia sua forte convico quanto s ambies britnicas de completo assenhoreamento do comrcio brasileiro. (No nos podemos contudo esquecer de outras opinies sobre esta matria.e devidas a contemporneos dos acontecimentos). Fosse como fosse, tudo isto e toda a confuso em que se vivia ento na nossa Metrpole, levou criao de um movimento no Norte, mais precisamente centrado na cidade do Porto, que englobava em grande parte maons reunidos num clube de ideias liberais chamado Sindrio, o qual tinha na sua chefia um advogado muito famoso na praa da Invicta 12

Manuel Fernandes Toms um natural da Figueira da Foz a quem Rocha Martins chamou o mais probo dos cidados do seu tempo. Ainda segundo Rocha Martins, Fernandes Toms estava apoiado por dois vultos ilustres da cultura portuguesa da poca, dois homens que, tal como ele, estavam prontos para tudo sacrificar na luta pela implantao do liberalismo esclarecido em Portugal: Silva Carvalho e Ferreira Borges (que por curiosidade, tm ainda hoje ruas com os seus nomes, na que chamada a Lisboa liberal). Ora sucede que o Sindrio do Porto arregimentou, entre 1818 e 1820, um importante grupo de intelectuais, de militares, de comerciantes e de juristas, que comungavam de uma mesma grande ideia para mudar os destinos do Portugal de ento: necessrio libertar a Ptria do domnio britnico, tornando-se igualmente imperativo que a soberania passe a residir na Nao. Quer isto dizer, meus queridos amigos, que ideias to modernas como sejam o Rei soberano absoluto j no tem razo de ser, ou o Rei reina mas no governa, esto subjacentes ao movimento militar que em 24 de Agosto de 1820 rebentou no Porto, no Campo de Santo Ovdeo, e ao qual se juntou, no ms de Setembro daquele mesmo ano, o levantamento de Lisboa. A unio entre as foras revoltadas de Lisboa e as foras do Porto, estabeleceu uma Junta Suprema de Governao do Reino que reunia os homens que tinham feito o levantamento, na sua maioria movidos mais por uma ideia profundamente anti-britnica do que por um ideal liberal, e entre eles muitos militares como Gaspar Teixeira, Antnio da Silveira, Magessi, Teles de Jordo e outros, que, curiosamente, iriam depois participar na Guerra Civil, mas do lado absolutista. Obviamente que na Junta Suprema participava tambm a grande intelectualidade da chamada Nobreza de Toga, figuras da talha de um Borges Carneiro, de um Ferreira Borges ou de um Manuel Fernandes Toms, isto para no falar do ainda jovem Vila Flor o futuro duque da Terceira - ou do conde da Taipa, homens estes que, sendo militares, tinham uma grande influencia junto daquela intelectualidade, com quem iriam constituir o grande bastio do grupo liberal. No entanto, este bastio do grupo liberal encontrou-se, desde o triunfo da Revoluo, dividido em duas grandes faces: De um lado, aqueles que diziam que a soberania reside na Nao, e que o Rei reina mas no governa, ou seja, os chamados vintistas puros; E do outro lado, aqueles que afirmavam que a soberania reside na Nao, residindo por isso tam13

bm na prpria Pessoa do Rei, os chamados liberais monrquicos, aqueles que, sem qualquer tonalidade de republicanismo, iro ser mais tarde, na projeco do drama, os grandes apoiantes da Carta Constitucional. Mas, partida e logo aps o triunfo da Revoluo vintista, aquilo a que os revolucionrios imediatamente se propuseram, foi elaborao de uma Constituio, elaborao essa que originou o aparecimento de duas linhas de pensamento, como primeira ciso entre eles: De um lado uma linha militar, de bota cardada do poder pelo poder, englobando aqueles que no fundo queriam fundamentalmente expulsar os britnicos; E do outro lado a linha dos intelectuais vintistas, que queriam uma Constituio feita com base na Constituio que melhor conheciam, a Constituio espanhola de 1812, conhecida como Constituio de Cdiz, e que era chamada a Pepa, por ter sido promulgada no dia 18 de Maro, o dia de So Jos. Foi a luta entre estes grupos de apoiantes das duas formas de Constituio, se que se pode chamar Constituio a uma delas, que originou, no dia 11 de Novembro de 1820, as primeiras gritarias e as primeiras pancadarias nas ruas de Lisboa (verdadeiro intrito de todo o drama que depois veio) num movimento logo chamado de Martinhada. Curiosamente, a Martinhada foi dirigida pelo General Gaspar Teixeira, saindo deste movimento a Constituio de Cdiz como base inspiradora da futura Constituio Portuguesa, e tambm dos procedimentos para a eleio da Assembleia que recebeu o nome de Cortes Constituintes. Lanava-se assim o trabalho de elaborao da Constituio, comeando pela preparao das eleies para a Constituinte, e levando de imediato ao Palcio das Necessidades, a sede das Cortes, o delrio da discusso poltica em nome da liberdade do povo. Mas se o Portugal que sabia ler estava profundamente empenhado em todo este processo, a maioria esmagadora dos portugueses, o Portugal que no sabia ler, o Portugal amante apaixonado do trono e do altar, o Portugal que se identificava mais profundamente com o Povo Portugus vencedor da Guerra Peninsular, no percebia, nem queria perceber, absolutamente nada do que se estava a discutir. E o que era ainda mais evidente, que esse Portugal assistia embasbacado a todo aquele arraial de discursos e gritarias em nome da sua liberdade, sendo que, na verdade mais pura, no entendia patavina do jogo liberal, e estava a anos-luz de poder perceber, ou sequer aceitar, a Democracia. E foi assim, com toda esta confuso e todo este alheamento, que Portugal viu nascer a sua primeira Constituio. E muito embora tal Constituio comeasse com as palavras Em nome da Santssima Trindade (), e tivesse como principal patrocinador, e grande presiden14

te de todo aquele arepago, Frei Francisco de S. Lus, a verdade que o que mais evidncia saa do texto constitucional, era o ataque declarado ao altar, a destituio pura e dura do poder do trono (o Rei reina mas no governa) e o cercear de privilgios daquela que tinha sido a grande fora motora e de comando do Povo Portugus na Guerra Peninsular, a Nobreza Rural de um Portugal eminentemente rural. Por tudo isto, no de estranhar que uma vaga de fundo se levantasse, vinda dos solares de provncia e dos altares da Igreja, espiritualmente liderada por dois homens desta mesma Igreja, Frei Fortunato de So Boa Ventura e Jos Agostinho de Macedo, que numa luta tremenda contra tudo o que se identificasse com o ideal liberal, o faziam confundir, aos olhos da Nao, com as invases francesas, e com tudo o que de mau nos tinha chegado nas pontas das baionetas dos exrcitos franceses. E para dar mais nfase sua retrica anti-liberal, Fortunato e Jos Agostinho escreviam e diziam que aquilo que os liberais queriam, tal como os franceses antes deles, era uma destruio das grandes tradies, das grandes ncoras, das grandes amarras, em que assentara sempre a vivncia e a liberdade do Povo Portugus: O paternalismo monrquico ligado ao altar, e a Santa Madre Igreja em ntima comunho com o trono. Piorando ainda mais este quadro, e colocando-o no caminho da tragdia, logo que a ideia do liberalismo e a certeza da Revoluo chegaram ao Brasil, os brasileiros imediatamente reclamaram o mesmo para eles, ou seja, queriam tambm o liberalismo para o Brasil, tal e como estava institudo em Portugal. Assim comeou no Brasil um movimento que, com base nos ideais liberais, iria conduzir, por fora de circunstncias comuns ao Reino Unido, no s ao regresso da Famlia Real a Portugal, mas presena no Brasil, representante Ptrio em nome do Imperador, do filho mais velho de D. Joo VI, o Prncipe Real, D. Pedro, entregue direco espiritual de Jos Bonifcio Andrade da Silva, e de todo um grupo de intelectuais brasileiros que j sonhavam com qualquer coisa mais, para alm desse mesmo liberalismo. Quando os portugueses, na Metrpole, cometeram uma das asneiras mais tremendas do liberalismo, ao pedirem nas Cortes o regresso do Brasil ao estatuto de colnia, retirandolhe os Tribunais Supremos, para ali enviando tropas, e praticamente exigindo o regresso a Portugal do Prncipe Real D. Pedro, a reaco brasileira foi tremenda, materializada numa autentica em direco independncia, independncia essa que j havia sido prevista por D. Joo VI quem, aquando do seu regresso a Portugal, teria dito ao filho: Tu ficas, mas no te esqueas, se o Brasil se tornar independente, guarda a coroa para ti, que sempre me hs de ter respeito, e no a deixes cair na mo de qualquer um destes aventureiros.. 15

Estava assim dado o mote para aquilo que depois viria a suceder, quando de Lisboa se exigiu o regresso de D. Pedro Metrpole, imagem definida da nova Ptria que comeava a nascer com a resposta do seu prximo fundador: Fico e sou o defensor perptuo do Brasil! Mandaram-se ento tropas para o Brasil e ordenou-se ao Brigadeiro Madeira para resistir pelas armas, enquanto esquadra se mandava bloquear os portos. E finalmente, aquando do levantamento republicano do Rio Grande do Sul, numa altura em que D. Pedro foi a S. Paulo com a sua cavalaria da Guarda Paulista para o debelar, a ordem imperiosa para o regresso imediato do Prncipe a Lisboa, pondo fim a toda a agitao independentista, chegou. Estava-se a 7 de Setembro de 1822, e foi nas margens do Ypiranga que D. Pedro recebeu, das mos de um dos seus Ajudantes, a ordem expressa das Cortes para regressar a Lisboa, perdendo assim o Brasil o seu estatuto de membro de Reino Unido. Subido nos estribos e desembainhando a espada, o Prncipe arrancou as cores azul e encarnado do seu chapu armado e gritou: Independncia ou morte, estamos separados de Portugal!. Acabara de se fechar a primeira pgina do drama que to profundamente iria enlutar a nossa Terra. A independncia do Brasil conduziu ao desmoronamento do Imprio Portugus do outro lado do Atlntico, j que tudo o que tinha sido um verdadeiro motor de Portugal, materializado pela Companhia de Jesus e pelas campanhas dos Guararapes, pela epopeia de D. Joo V e pelos sonhos do Marqus de Pombal com a sua Companhia do Gro Par e Maranho, todo o domnio soberano daquele manancial extraordinrio que era o Brasil, acabara de se perder. Mas por outro lado, para aqueles que em Portugal lutavam contra o nascente regime liberal, a independncia do Brasil tomava a forma de pecado mortal do liberalismo manico, garrote vil passado no pescoo do nosso comrcio, traio infame e verdadeiro dobre de finados anunciando a runa inevitvel da Ptria. Quanto a D. Joo VI, que sua chegada a Lisboa havia jurado a Constituio, ao contrrio da sua mulher, a espanhola D. Carlota Joaquina, que se recusara a faz-lo, via-se agora confrontado com o problema da independncia do Brasil, independncia que ele, como imperador do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, imediatamente condenou com uma completa rejeio. Porm, o facto de ter jurado a Constituio liberal, agora mais do que nunca identificada com a desgraa da Ptria, afastou o Rei dos favores do Portugal profundo, tradicionalista e fanaticamente catlico, e que acabava de encontrar na Rainha Dona Carlota Joaquina, ento exilada entre Queluz e o Ramalho, como represlia pela recusa da Constituio, o lder 16

imediato dos inimigos do novo sistema. E tal era o dio que a Rainha votava Constituio e aos seus apoiantes, que os liberais lhe chamavam a megera de Queluz. D. Carlota Joaquina tornava-se assim no chefe espiritual daqueles que combatiam o regime liberal, e que eram cada vez mais. E eram-no porque os portugueses, de uma forma geral e na sua esmagadora maioria, continuavam a no perceber o jogo democrtico, a no entender as ideias liberais, a ver na Maonaria o motor malvado dos ataques ao altar e ao trono, para alm de comearem agora a ouvir, da boca do Clero e da Nobreza Rural, tudo o que significava, em runa e em desgraa nacional, a independncia do Brasil Como temos vindo a constatar, reinava ento em Portugal uma confuso tremenda, agravada de forma alarmante por um crescente sentimento de revolta popular, e tudo aquilo combinado com o estado verdadeiramente desgraado em que o Reino se encontrava como reflexo directo da destruio causada pela Guerra Peninsular. Assim sendo, facilmente se compreende que Manuel da Silveira, 2. Conde de Amarante, logo no incio de 1823, se tenha revoltado em Trs-os-Montes, recusando o regime liberal, e aclamando a Monarquia absoluta, tradicional e de direito divino, tal e qual como todos os seus antepassados, e desde que Portugal era Portugal, a tinham entendido, aceitado e defendido. Esta revolta levou ao primeiro choque armado entre as faces liberais e absolutistas, num combate que aconteceu na Serra de Santa Brbara, e que terminou com a vitria absolutista. Porm, metidos de seguida em Amarante pelo General Lus de Rgo, que era sogro de Rodrigo da Fonseca Magalhes (outro dos grandes vultos deste perodo do liberalismo) as tropas absolutistas acabaram vencidas, e o conde de Amarante e as suas tropas foram obrigados a refugiar-se em Espanha. Acontece que, devido a este levantamento, foram mandadas tropas para o Norte do Reino a fim de debelarem a corrente de revoltas que se estavam a verificar nas populaes. Como muito bem sabemos, a Norte do Tejo Portugal ainda hoje profundamente tradicionalista, e era precisamente contra o expressar indignado desse mesmo tradicionalismo que essas tropas, constitudas pelos filhos desse mesmo Portugal tradicionalista, foram enviadas. Assim, perfeitamente compreensvel luz do pensamento dos dias de hoje, que os soldados dos Regimentos de Infantaria 16, 18 e 23, que seguiram para o Norte a combater as revoltas populares, se tenham revoltado ao chegar a Vila Franca de Xira, soltando vivas Monarquia absoluta e negando, de armas na mo, o constitucionalismo liberal.

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Abaixo a Constituio, viva o Rei absoluto!. E foi ao reboar deste grito de revolta popular, que a Rainha Dona Carlota Joaquina, que era m como as cobras mas extraordinariamente esperta, mandou o seu filho mais novo, o Senhor Infante D. Miguel, para chefiar aquele levantamento. Smbolo acabado do portugus de ento, marialva, cavaleiro, toureiro, brigo, mulherengo e praticamente analfabeto, D. Miguel, acompanhado pelos seus ajudantes de campo e entre eles o conde de Vila Flor, foi recebido em Vila Franca num ambiente de verdadeiro delrio, tendo ali recebido o apoio do Exrcito e de individualidades das mais diferentes origens sociais da vida portuguesa. E curioso recordar que, entre aqueles que em Vila Franca apoiaram D. Miguel, para alm do conde de Vila Flor, estava Joo Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, os dois militares que, num futuro bem prximo, iriam ser, com toda a honra e glria, os mais importantes comandantes liberais. Por aqui podemos constatar at que ponto a sociedade portuguesa estava aterrorizada com tudo aquilo que sucedia, com a incerteza do futuro imediato, com a alterao permanente da ordem pblica, com a incapacidade demonstrada pelo poder politico liberal, e via em D. Miguel qualquer coisa que, na realidade histrica, ele no era nem podia ser. E, momento marcante deste movimento, recordamos aqui o encontro de D. Joo VI com o seu filho em Vila Franca, e a entrada absolutamente triunfal que os dois tiveram em Lisboa, com o povo rendido a atrelar-se aos varais da carruagem, e o Rei a nomear D. Miguel como Generalssimo do Exrcito. Este movimento de Vila Franca, ocorrido em Maio de 1823 e a que se chamou Vilafrancada, conduziu ao fim da Constituio de 1822, e representou o encerramento do primeiro captulo da histria do liberalismo em Portugal. No entanto, e como evidncia histrica de capital importncia, ele viria a originar a ascenso de D. Miguel como grande vedeta e grande chefe da causa absolutista, dando a todos aqueles que defendiam o tradicionalismo monrquico de direito divino um lder perfeitamente identificado com a causa, e com a me que na vida, para alm de uma ambio desmedida, s o via a ele. Mal rodeado e pior aconselhado desde o inicio da sua vida politica, D. Miguel seria o homem que iria assumir a chefia de uma tentativa de golpe de Estado, quando os liberais, rasgada a Constituio, pediram a D. Joo VI que, imagem do que D. Lus XVIII fizera em Frana, desse a Portugal uma Carta Constitucional. Porm, D. Joo VI, (um homem que a Histria hoje quer lavar, dizendo-o um monarca de extraordinrio bom senso) mais uma vez iria deixar Portugal agarrado s cuecas, perdoem-me a expresso mas no encontro outra 18

(!!), ao no dar qualquer Carta Constitucional, e ao rodear-se de homens incapazes de lidar, com a fora que s o prestigio garante, com toda a problemtica da luta directa entre as clientelas rivais de liberais e absolutistas. E para piorar ainda mais as coisas, o nico homem de autentico valor que se encontrava prximo do Rei, para o apoiar e aconselhar, o marqus de Loul, esse acabou cobardemente assassinado em Salvaterra de Magos, s mos do nascente caceteirismo absolutista. Inevitavelmente, a luta directa entre as faces, agravada pela permanente indeciso do Rei, acabou por redundar, em 30 de Abril de 1824, numa tentativa de golpe de Estado, a chamada Abrilada, o qual s no redundou numa grande vitria absolutista, muito possivelmente com a abdicao do Rei, porque o corpo diplomtico, tendo frente o Embaixador de Frana, Hyde de Neuville, no o permitiu. Protegido pelos diplomatas estrangeiros, mais do que por portugueses, D. Joo VI procurou o seguro refgio da nau inglesa Windsor Castle, e da, com as costas quentes, ajustou as contas com o filho, demitindo-o de Generalssimo, e enviando-o pura e simplesmente para Viena, para a ustria, para junto de Metternich (outra asneira brutal de D. Joo VI) onde o Infante, como peixe na gua, aprendeu na perfeio todos os malabarismos da reaco vencedora de Waterloo. Lanou-se assim Portugal numa tentativa de recuperao do sistema liberal, tentativa que, ponta abaixo e ponta acima, aqui caio alm me levanto, l se foi aguentando at morte de D. Joo VI, em 10 de Maro de 1826. Acontece porm que em 1825, aquando do reconhecimento da independncia do Brasil, D. Joo VI promulgou dois documentos, historicamente importantssimos e, ainda hoje, motivo de acesa discusso entre as diferentes correntes monrquicas. Resumidamente, num desses documentos, Sua Majestade reconhece, de facto, a independncia do Brasil, tendo como Imperador o seu filho D. Pedro, sucessor destes reinos de Portugal e do Brasil, enquanto que num outro documento, assinado em data posterior, Sua Majestade o Senhor D. Joo VI, reconhece e confirma a independncia do Brasil, mas no se refere a D. Pedro como o sucessor da coroa portuguesa. Parece hoje facto aceite o assassinato de D. Joo VI. Diz-se at que Sua Majestade ter sido envenenado com uma laranja, disso se acusando mutuamente liberais e absolutistas. Talvez que esta situao possa justificar o facto de D. Joo VI no ter indicado, hora da sua morte, o nome do sucessor, coisa que era pouco habitual na prtica dos monarcas portugueses. No entanto D. Joo VI, ou algum por ele (as opinies variam) indicou quem iria ser a cabea

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da Regncia: a sua filha Dona Isabel Maria, apoiada pelo Duque de Cadaval, pelo Duque de Lafes, e por uma pliade de pessoas da mxima confiana de D. Joo VI. Mas fosse como fosse, a verdade que Portugal caminhava a passos de gigante no sentido de uma catstrofe, governado como estava por uma fraqueza poltica perigosamente incapaz, sem Carta Constitucional ou Constituio que o regesse, econmica e socialmente destroado, e vendo-se agora a caminho de ter, sentado no trono, o homem que lhe levara o Brasil. Dentro da imposio tradicional do funcionamento sucessrio, o Duque de Lafes foi enviado ao Brasil com o intuito de aclamar D. Pedro IV como rei de Portugal, na esperana que o Imperador brasileiro abdicasse da Coroa Portuguesa em nome de D. Miguel. No entanto, antes que o Duque de Lafes chegasse ao Brasil, chegaram ali as notcias da morte de D. Joo VI, e D. Pedro, interiorizando a sua condio de herdeiro da Coroa, resolveu dar imediatamente a Portugal uma Carta Constitucional, a Carta Constitucional de 1826. Documento do mximo interesse politico e Histrico, a Carta tem, como lei fundamental, uma particularidade que d Coroa fora interventora na deciso politica: que na Carta o Rei detm o poder moderador entre o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial. E esta particularidade torna, partida, a Carta diferente da Constituio de 1822, onde imperava, sem peias, a ideia de que o Rei reina mas no governa. Mas a essncia da Carta Constitucional, outorgada mas no votada, levava a divises dentro do prprio movimento liberal, onde aqueles que apoiavam a Constituio de 1822, nas suas bases de votao democrtica e limitao do poder real, iriam agora, por fora do quadro geral da situao j descrita, apoiar a Carta Constitucional como amarra de unio entre as correntes liberais. E muito embora, inicialmente, todos se tenham reunido em torno da Carta Constitucional, mormente os vintistas e os cartistas, a verdade que esta unio se desfez imediatamente aps a Guerra Civil. Quando a Carta Constitucional chegou a Portugal, a Infanta Regente Dona Isabel Maria no a fez jurar imediatamente, sempre na esperana de guardar a possibilidade de no reunir cortes para a proclamar. No entanto, o General Saldanha, condecorado com a medalha da poeira evocadora da Vilafrancada e agora Governador das Armas do Porto, ameaou a Regncia com a interveno militar, forando assim a proclamao da Carta e o seu juramento. Reflexo imediato desta atitude de fora, o convite formulado pela Regente ao General Saldanha para formar governo, ainda hoje no espanta ningum. 20

Gostaria aqui de dizer que o General Joo Carlos de Saldanha de Oliveira Daun foi um homem extraordinrio, um romntico, e um soldado de fantstica bravura. Mas obriga a verdade Histrica a dizer tambm, que ele foi um golpista e um revolucionrio ambicioso faminto de poder. H quem diga at que teria algo de louco, sendo inclusivamente violento, iberista, e maon com ideias de prtica poltica de imposio pela fora. Sinteticamente, um dos grandes chefes da causa liberal, Cndido Jos Xavier, tinha para ele uma definio curiosssima: O Saldanha frente da canalha muito mais perigoso do que D. Miguel frente dos Silveiras. Por tudo isto, a Gr-Bretanha no queria, nem podia, admitir para Portugal um governo do qual fizesse parte o General Saldanha, com todos os perigos de violncias e confrontos que da certamente adviriam. E assim, pretextando impedir uma mais do que anunciada Guerra Civil, a velha aliada imps-nos a presena da diviso do General Clinton e, para cmulo da nossa vergonha e coroar da interveno militar estrangeira nos negcios do Reino, acabou por forar a demisso de Saldanha. A que misria tinha chegado Portugal!!! Entrava-se assim no perodo crucial que antecedeu a Guerra Civil, perodo fundamentalmente caracterizado por uma srie de levantamentos absolutistas, arregimentando a esmagadora maioria do Portugal profundo enquadrado pela Igreja e pela Nobreza Rural, de brao dado com a Grande Aristocracia de faco miguelista. Afirmavam estes defensores apaixonados da tradio, do trono e do altar, a culpa manica da desordem social agravada pela grosseira impraticabilidade dos princpios expressados na Carta Constitucional e na Constituio, superiormente maquinada pelo brasileiro D. Pedro, traidor Ptria por mor da independncia do Brasil. Ou seja, juntavam-se no mesmo saco os dios pedreirada (como insultante ao trono e ao altar) e o ataque determinado realeza de D. Pedro IV, impossibilitado de ser Rei de Portugal pela sua condio de estrangeiro (chamavam-lhe at o imperador dos macacos) impossibilidade constante das antigas leis fundamentais do Reino, que remontavam aos tempos de D. Afonso Henriques e s cortes de Lamego. Assim, para estes defensores da causa identificada com a tradio monrquica ancestral, o Rei era Rei por direito divino e, como tal, soberano absoluto de Portugal. Porm, para o ser de pleno direito, tinha de ser portugus, pelo que, e para evitar a repetio dos Felipes, o brasileiro no podia ser Rei de Portugal, cabendo assim a legitimidade sucessria ao Senhor Infante D. Miguel. Acontece porm que - pressionado por um lado pela Inglaterra (que nunca aceitaria as Coroas de Portugal e do Brasil novamente juntas), por outro pelos brasileiros que temiam um 21

retrocesso no seu processo de independncia, e ainda por outro pela sua prpria postura face a Portugal - logo aps ter sido aclamado rei de Portugal no Rio de Janeiro, e aps ter dado ao Reino a Carta Constitucional, D. Pedro IV realizou um acto de abdicao em nome da sua filha D. Maria da Glria, Princesa do Gro-Par e futura D. Maria II de Portugal. Estava-se no dia 2 de Maio de 1826 e, na sua essncia, o acto de abdicao de D. Pedro IV podia resumir-se da seguinte forma: Eu abdico na minha filha, com duas condies: D. Miguel dever casar com a minha filha D. Maria da Glria, e dever ainda jurar a Carta Constitucional. Perante o cumprimento de tais condies, ser D. Miguel, em meu lugar, Regente at maioridade da minha filha. Esta deciso do, agora, Rei D. Pedro IV, foi apoiada por quase todas as Cortes da Europa, sendo porm categoricamente recusada pela esmagadora maioria do povo portugus, na sua teima de considerar que D. Pedro no podia abdicar de um trono a que no tinha direito. No entanto, em Viena de ustria e aconselhado por Metternich, o Senhor Infante, como ento chamavam a D. Miguel, aceitou os termos da proposta do Rei seu irmo e, depois de cumprir o acordado (com o casamento resumido ao papel, claro est!) regressou a Portugal. Estava-se no principio da Primavera de 1828, e a esmagadora demonstrao de apoio, amor, delrio apaixonado, que constituiu a chegada de D. Miguel a Lisboa, com um povo inteiro a cantar o Rei chegou!!!, no s alarmou todos os liberais, como convenceu, de vez, os absolutistas, de que a realeza de D. Miguel, muito embora violando todos os acordos que tinham permitido o regresso do Infante a Portugal, era o nico caminho, politica e patrioticamente, correcto. Porm, a par do fervor popular de o Rei chegou, o regresso de D. Miguel e as medidas de carcter administrativo por ele imediatamente tomadas, correram paredes meias com a maior onda de perseguies, de prises arbitrrias, e com o pior caceteirismo, numa abertura imperdovel aos actos de maior torpeza, maior vingana pessoal, maior vandalismo, que se possa imaginar. Na mo de sicrios da baixeza do General Telles Jordo e mais do filho, do sota Leonardo, do Sedvem toureiro, do Z Verssimo da policia, ou do Preto dos palitos, a ordem pblica imposta a cacete pelo partido de D. Miguel, instigada pela megera de Queluz (finalmente triunfante) e escrupulosamente dirigida por Jos Antnio de Oliveira Leite, o sinistro conde de Basto, levou o terror a campear nas ruas, a ferocidade mais primria a expulsar o que de melhor existia nos quadros da Nao, uma camarilha boal de analfabetos aos degraus do poder, e o descrdito internacional prpria Monarquia. 22

Na aclamao, como Rei absoluto, de D. Miguel I, em Cortes Gerais da Nao, este, que havia jurado a Carta Constitucional, tudo desdisse e tudo anulou, arrastando assim para o seu partido um odioso to evidente, que o reconhecimento internacional da sua Coroa se tornou mais do que problemtico. A ttulo de curiosidade, lembro-vos que os miguelistas dizem, ainda hoje, que D. Miguel no jurou a Carta Constitucional, tendo jurado sobre um livro escrito por Jos Agostinho de Macedo, intitulado Os burros, razo pela qual, os liberais apelidavam os absolutistas de burros. Igualmente, e quanto ao seu casamento, tambm voltou com a palavra atrs, ao afirmar no poder casar com a sobrinha, uma vez que esta tinha apenas 7 anos e ele, D. Miguel, 24, sendo portanto tal casamento inconcebvel. Fugiam os liberais para Inglaterra e para Frana, e enchiam-se as enxovias de So Julio da Barra, onde imperava o Telles Jordo. Esvaziava-se o Portugal que sabia ler, mas era tambm significativo o nmero dos que ficavam, dispostos a lutar pelo seu ideal e por aquilo que consideravam ser a legitimidade da Senhora Dona Maria II. E foram esses fiis que se revoltaram em Aveiro, ainda antes da aclamao de D. Miguel. Mal dirigidos e pior enquadrados, animados de todo o ideal do mundo mas incapazes de enfrentar quem quer que fosse, os revoltosos de Aveiro e de outras localidades do Norte e Centro do Reino marcharam sobre o Porto, e a foram recebidos em triunfo. Porm, o comandante da revolta, o General Sousa Refios, no era um chefe militar altura dos acontecimentos, e assim no foi de estranhar a derrota esmagadora que o Exrcito governamental, sob o comando do General Antnio Coutinho e Povoas, lhe imps na Cruz de Marossos, perto de Coimbra. Debandaram, este o termo, os liberais de escantilho para o Porto, e a encontraram aqueles que tinham regressado da Gr-Bretanha, a bordo do Belfast, para apoiar a revolta. Ali estavam, pois, o conde Vila Flor e o General Saldanha, o conde da Taipa e Cndido Jos Xavier, todos sob a superior liderana, imposta alis pelos ingleses, do marqus de Palmela, como chefe de expedio e futuro chefe de Governo. Mas tomando conhecimento da catstrofe da Cruz de Marossos, e da proximidade do Exrcito de Povoas, os liberais apavoraram-se, e rapidamente partiram, outra vez a bordo do dito Belfast de volta a Inglaterra e ao exlio. Ficou este movimento conhecido como a Belfastada, e dele saram os liberais interna e externamente enxovalhados. Salvou-se daquela vergonha a personalidade fascinante de Bernardo de S Nogueira de Figueiredo, o futuro marqus de S da Bandeira, que retirou 23

sobre a Galiza com o que restava das pobres tropas liberais, levando-as da para a Inglaterra, e para o sofrimento nos barraces de Plymouth. Tentava a diplomacia miguelista que o governo do Rei absoluto fosse internacionalmente reconhecido, mas a barreiras a tal reconhecimento levantavam-se por todos os lados. Na Gr-Bretanha, onde governava de Wellington que pessoalmente apoiava D. Miguel, o governo no tinha fora, nem vontade, suficiente para reconhecer o governo miguelista. Na Frana, onde o governo de Polignac era o que de mais reaccionrio havia na Europa e muito embora estivesse sentado no trono D. Carlos X, tambm no havia fora bastante para conseguir reconhecer o governo de D. Miguel. Assim, o governo miguelista foi apenas reconhecido pela Santa S (tendo em conta que a luta dos liberais era contra o altar), e pela Espanha (uma Espanha absolutista, que havia sido invadida pelo Exrcito Francs do duque dAngoulme. A ttulo de curiosidade, existe em Paris uma praa muito famosa, com o nome Trocadro, celebrando a batalha de Trocadro, onde os absolutistas, com o auxilio do duque dAngoulme, venceram os liberais, impondo o regime apostlico de Fernando VII). Mas tambm a Rssia e os Estados Unidos da Amrica reconheceram o governo de D. Miguel, sendo relevante o reconhecimento dos americanos, presos aos interesses que eles tinham no Brasil e na Amrica do Sul, incompatveis com uma nova unio de Portugal com o Brasil. Com os liberais perseguidos, presos ou enforcados e, na sua maioria exilados na Frana e Inglaterra, foi no meio do Atlntico, no arquiplago dos Aores, e especialmente na ilha Terceira, que se instalou o grande bastio da causa liberal. Para ali convergiram, pois, todos os esforos, todos os seguidores, todos os voluntrios, da causa da Liberdade, identificada agora com a Rainha a Senhora Dona Maria II. Bateram-se os liberais na Terceira, e ali se cobriram de glria no Pico do Celeiro e na Praia da Vitria. Ali ganhou fama o conde de Vila Flor, e dali partiu para conquistar para a causa todo o arquiplago, e com ele a credibilidade internacional. E foi ali que se assentou a fora do chamado Exrcito Libertador, constitudo em boa parte por tropas estrangeiras, financiadas por dinheiros estrangeiros, e superiormente dirigidas por D. Pedro, que entretanto abdicara da Coroa no Brasil em nome do seu filho, D. Pedro de Alcntara. Foi este o modo encontrado, e internacionalmente aceite, para que, e como simples duque de Bragana, D. Pedro pudesse apoiar a causa da sua filha, a Senhora Dona Maria II, e dirigir, como Regente e em seu nome, a luta contra o absolutismo.

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E do outro lado? Do outro lado estava Portugal em peso, porque essa a verdade Histrica e indesmentvel, idolatrando uma causa e um homem, um homem que foi, talvez juntamente com Sidnio Pais, o Chefe de Estado mais amado de toda a nossa Histria. verdade que estavam milhares de pessoas presas, torturadas e muitas enforcadas. igualmente verdade que, simples suspeita de malhado ou pedreiro livre, qualquer cidado podia sofrer a represso mais tremenda, e tambm verdade que o governo absolutista carregava com o odioso de toda a Europa civilizada. Mas verdade superior a todas estas, verdade que era crida como dogma no corao da maioria esmagadora dos portugueses, a Coroa de Sua Majestade o Senhor D. Miguel I, Rei absoluto por vontade do seu Povo expressa em Cortes Gerais, e Rei Portugus em toda a dimenso, valia ao Portugal profundo o sacrifcio da prpria vida dos seus filhos. E essa, doa a quem doer, era a verdade! Quando, em Frana, Carlos X caiu devido revoluo de 1830, e na Gr-Bretanha, o duque de Wellington perdeu o lugar de Primeiro-Ministro a favor de George HamiltonGordon, 4. Conde de Aberdeen, tudo isto complicado pelo estalar da Guerra Civil em Espanha enfrentando Carlistas com Isabelinos, no quadro do conflito portugus o apoio causa liberal viria a mudar completamente. Agora, toda a legitimidade estava do lado da Rainha, e D. Miguel representava a usurpao. causa liberal abriram-se crditos e facilidades de recrutamento, enquanto que causa miguelista, e muito por culpa das asneiras clamorosas dos seus dirigentes, at a esquadra lhe levaram!!! Cabe aqui relembrar que, apesar do tempo que j passou, hoje ainda vulgar ouvir dizer que a causa liberal era apoiada pelo estrangeiro, e que era uma causa mercenria, como se os dinheiros de Outrequin & Jouge fossem portugueses, e os Bourmont, Eliot, Alm, Brevielle, Larochejaquelin e tantos outros, fossem nascidos em Mafra ou na Costa da Caparica. Junho de 1832. De Ponta Delgada, e sob o comando do ingls Rose Sartorius, vai sair para o Continente a grande esquadra liberal, na realidade a fora naval mais heterognea que imaginar se possa. Nela vo embarcados cerca de 7.500 homens que, sob o comando supremo do Imperador (como lhe chamavam os seus homens, numa aproximao clarssima ao seu heri inspirador Napoleo Bonaparte) constituem o Exrcito Libertador. Para se lhe opor, o governo de D. Miguel no tinha, praticamente nada. E radica aqui uma das principais razes militares do desfecho da Guerra Civil. Como consequncia da estpida

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represso miguelista e do seu desvairado caceteirismo, os esbirros do conde de Basto chegaram ao exagero de perseguir sbditos estrangeiros radicados em Portugal. Ora foi precisamente por causa da agresso e priso de dois sbditos franceses que a Frana orleanista e liberal, apoiante de D. Maria II, enviou ao Tejo a esquadra do Almirante Roussin, para exigir a libertao dos seus sbditos e uma indemnizao. Bem tentaram o visconde de Santarm e o duque de Cadaval que o conde de Basto libertasse os presos, mas qual qu!.... Nem ele, nem o Rei queriam arrear bandeira, e o Almirante Roussin levou a Esquadra portuguesa para Toulon, arreando-lhe as bandeiras e internando-a. Assim, foi sem qualquer oposio significativa que, no incio do ms de Julho de 1832, a esquadra liberal fundeou em frente praia dos Ladres, em Arnosa de Pampelido, junto a Vila do Conde, e as tropas da Rainha desembarcaram, levando a Guerra Civil ao Continente. Iniciada muito antes de 1832, a chamada Guerra Civil de 1832-34 lanou Portugal numa luta dramtica, de consequncias desastrosas (e, no fundo, ainda hoje sentidas) que iria enlutar a Ptria at 1850, at ao movimento da Regenerao. Ora essa luta, que se retratou no Setembrismo, no golpe dos arsenalistas, na revolta dos marechais, na ditadura de Costa Cabral e na revoluo herica da Maria da Fonte, nem com a Guerra da Patuleia se conseguiu esclarecer, e conduziu vergonha de uma interveno militar estrangeira que levaria Conveno de Gramido. Luta fratricida e impiedosa, marcando geraes de portugueses e libertando foras incontrolveis, a Guerra Civil e tudo o que a originou, mais talvez do que as desgraas a que deu origem, pode, e deve, ser considerada como o bero da Republica e de tudo o que se lhe seguiu. Foi, pois, um esboo dos antecedentes imediatos de todo o drama que se viveu em Portugal e que dividiu os portugueses, assentado na sua impreparao para compreender a finalidade e a execuo do jogo democrtico, na criminosa manuteno da sua ignorncia para proveito das foras polticas, e na pssima situao financeira, comercial, industrial e social, em que o Reino se encontrava devido Guerra Peninsular e independncia do Brasil, que eu

vos quis transmitir de uma forma muito simples e, espero bem, que clara.

Muito obrigado.

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Tavira, 11 de Janeiro de 2011 Coronel Henriques

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CONFERNCIA 2: AS CONSTITUIES LIBERAIS PORTUGUESAS1Vasco Pereira da Silva2

Enquanto simples jurista, venho aqui falar-vos de leis, o que na realidade pouco emocionante, comparativamente anlise dos factos histricos. Muito embora, na realidade, tais factos histricos, se traduzam em normas, e tais normas possuam uma carga histrica. Ora, a minha uma viso relativamente ao Direito constitucional, uma viso cultural e aberta, sendo que no considero que o Direito se possa fechar numa redoma, num domnio inteiramente fechado. A minha perspectiva a de jurista, ou seja, parto das normas e interpreto-as, integrando-as na realidade cultural. Isto , integro esses factos jurdicos e introduzo-lhes a dimenso jurdica, que utiliza uma metodologia diferente da histria. Ora, como jurista, tenho como base as normas, sendo que parto destas para anlise dos factos. Assim, falar-vos-ei das constituies liberais portuguesas. Na verdade, curioso, terem existido trs constituies liberais portuguesas, em sentido literal, ou seja, a constituio de 1822, a Carta Constitucional e a constituio de 1838. Porm, acrescento ainda, a constituio de 1911, porque em rigor, na altura, o que se traduzia por Repblica em Portugal, era, na verdade, um liberalismo serdio, ou seja, tardio, do ponto de vista constitucional, que consumou o que as constituies liberais do sculo XIX no foram capazes de fazer.

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O presente texto resulta da transcrio de uma conferncia feita oralmente. Doutor e Agregado em Direito. Professor das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Catlica Portuguesa.

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As constituies liberais portuguesas de 1822, 1826 e 1838, definem, apesar das relaes difceis entre a Igreja e o poder poltico, como religio oficial do Estado: a catlica. Portanto, ao contrrio do que se passou em Frana, Espanha e Itlia, o laicismo no era inteiramente assumido no quadro constitucional. De facto, esse passo laico foi dado pela constituio de 1911 uma tpica constituio liberal que introduz a dimenso republicana e a dimenso laica, que na realidade, j estavam em embrio nas constituies liberais, mas que as condies do pas no permitiram que se realizasse. Alis, as constituies, enquanto factos culturais, servem para fazer coisas, isto , tm uma realidade que utilitria. Ora, Montesquieu, no seu clebre Lesprit des lois, quem pela primeira vez vem afirmar que as constituies tm de ser interpretadas sociologicamente, e que inclusivamente, servem para representar as classes sociais. De facto, as constituies so to ou mais eficazes, completas, acabadas, quando so capazes de representar essas ditas classes sociais, porque tm uma dimenso sociolgica, isto , servem para algo, e quando no servem, de alguma forma sintomtico de algum fracasso. Assim, tendo em conta as constituies portuguesas liberais, pode afirmar-se que a que resistiu, foi a constituio de 1826, uma vez que as constituies de 1822 e a de 1836 foram constituies relativamente falhadas, as quais apenas conseguiram ter perodos de regncia muito curtos, isto , no tendo por isso, marcado verdadeiramente o sculo XIX portugus. A constituio de 1826 a constituio menos liberal, sendo teoricamente menos liberal que a constituio de 1822. Pode afirmar-se que a constituio de 1826, a constituio mais adequada ao sculo XIX portugus, uma vez que, no sculo XIX portugus, o liberalismo foi uma realidade que veio do estrangeiro, ou seja, de incio no existiam condies sociais, pois no havia burguesia, no havia mercado, todas essas coisas iriam apenas surgir na segunda metade do sculo XIX, e foi por essa razo que sucederam todas estas guerras anteriormente mencionadas. Foi necessrio esperar pela constituio menos liberal de todas, que em termos tericos, foi a que acabou por dar origem ao perodo mais longo do liberalismo portugus, que corresponde segunda metade do sculo XIX, e portanto, essa , na ptica de um jurista, a constituio mais adequada realidade portuguesa. Na verdade, as constituies, para serem bem sucedidas, devero resolver problemas polticos e integrar as classes sociais. Quando tal no acontece, as constituies dir-se-o falhadas, isto , destinar-se-o ao caixote do lixo da histria, como dizia uma certa linguagem marxista, mas que, enfim, tambm pode ser utilizada de forma irnica, sem qualquer conotao marxista, mas que tem a ver com a dimenso histrica das constituies. 30

Ora bem, existe tambm um fenmeno muito comum em Portugal: que as constituies so todas revolucionrias, sendo que a nica que aparentemente no o , a constituio de 1826. Assim, a revolta de 1820, encontra-se na origem da constituio de 1822, e consequentemente, da constituio de 1826; a revoluo de 1836 encontra-se na origem da constituio de 1838; a revoluo de 1910 encontra-se na gnese da constituio de 1911; a revoluo de 1926 est na origem da constituio de 1933; a revoluo de 1974, est na origem da constituio de 1976. Portanto, todas as constituies resultaram de rupturas, e consequentemente de um fenmeno revolucionrio, e todas elas tinham como objectivo construir uma nova ordem, ou seja, todas se propunham como objectivo resolver todos os problemas. A ideia de transio, de sedimentao constitucional, foi uma ideia britnica e no uma realidade portuguesa. Posteriormente, umas constituies sobreviviam e outras no, ou seja, trata-se de uma lgica tipicamente francesa, em que as constituies resultavam de revolues, e pretendiam impor uma nova ordem. Ora, essa nova ordem, resultava no quadro da realidade de um determinado pas. Para alm disso, tambm existe outra coisa que no deixa de ser curiosa, que as revolues so de facto todas muito parecidas, uma vez que, na origem das revolues, encontram-se fenmenos corporativos e, a dirigi-las, encontra-se o Exrcito. Existem ainda outras causas, alm das dimenses corporativas, relativamente ao surgimento da primeira constituio (de 1822), o facto de existir uma pequena burguesia em Lisboa e no Porto, a qual liderou a Revoluo. Assim, quando olhamos para a realidade histrica, ou quando se fala de dimenses da democracia em sentido usual nos dias de hoje, trata-se de convenes que os juristas utilizam. Efectivamente porm, estas revolues eram feitas com uma populao muito reduzida, uma vez que so executadas na sequncia de um pequeno golpe, que associado a uma ideia maior, que se encontra na origem deste golpe, e que ir em posteriormente, impor-se na sociedade e estabelecer um esquema de organizao poltica. Ora bem, a constituio de 1822, foi a que instaurou o constitucionalismo em Portugal, e consequentemente, o liberalismo poltico em Portugal. Alm disso, o que estava em causa, do ponto de vista constitucional, era a instaurao de um Reino Unido - o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve -, e esta era uma realidade que surgiria em todas as constituies liberais. Mas, curiosamente, nunca existiu qualquer Reino Unido no Algarve, sendo o Algarve o libi para se retirar o poder ao Brasil, inicialmente em 1822, razo pela qual se recorreu ao Algarve. O objectivo da constituio de 1822, era que o Brasil se mantivesse ligado a Portugal.

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A revoluo de 1820 sucedera, com o objectivo de fazer com que o Rei retornasse a Portugal, ou seja, metrpole, uma vez que Portugal tinha ento o seu centro, isto , a sua capital, no Rio de Janeiro, e para os portugueses (residentes na metrpole), era essencial que a capital de Portugal, retornasse para a metrpole, isto , para Lisboa. Ora, a razo da revoluo de 1820, era precisamente a insatisfao dos portugueses mais instrudos, residentes em Portugal (na metrpole), relativamente alterao da capital de Portugal, para o Rio de Janeiro. Na verdade, todos se encontravam insatisfeitos por exemplo, a nobreza encontrava-se longe do reino, portanto no poderia influenciar o Rei, e alm disso, no possua vida de Corte. Ora, a nobreza que se encontrava no Brasil, era na verdade, considerada a verdadeira Corte. De facto, em Portugal no havia Corte, uma vez que a burguesia no tinha o poder de influenciar ningum, por estar longe do Rei. No entanto, depois de o Rei retornar a Portugal ( metrpole), colocava-se ainda outro problema: o Brasil era o centro, isto , possua a capital do Reino de Portugal. Assim, era necessrio contentar o Brasil, uma vez que era preciso evitar que o Brasil se tornasse independente, pois o retorno da capital do Reino de Portugal para Lisboa, no iria certamente agradar aos brasileiros. Ora, tal como os portugueses no gostaram de ver a capital de Portugal transitar para o Rio de Janeiro, evidentemente que, tambm os brasileiros no iriam gostar que o Brasil fosse transformado numa provncia. Assim, a ideia do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, destinava-se, por um lado, a garantir que o Brasil continuasse a pertencer ao Reino de Portugal, mas ao mesmo tempo, destinava-se a diminuir o papel do Brasil no reinado, colocando a seu lado o Algarve Reino de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, pode afirmar-se que o Algarve surge como um libi das constituies liberais, porque em rigor, no existia Reino Unido algum. Isto porque o Brasil ficaria sem qualquer poder, uma vez que aquilo que a constituio previa era apenas que ali houvesse uma deputao permanente do poder executivo. Assim, no Brasil, no existia Cmara legislativa, nem Supremo Tribunal, e nem rgos prprios do Governo, sendo que, nem na Europa nem em Portugal existiam organismos representativos do Brasil, nem havia uma segunda Cmara, de tipo federal, como era normal em Estados mistos. Portanto, a ideia de que existia um Estado misto, era, na realidade uma fico, e assim, sendo fico, tanto o era para o Brasil como para o Algarve. Ora, existia aqui, por um lado, uma tentativa de resolver o problema do Brasil e, simultaneamente, dar uma compensao, isto , criar um libi para que os brasileiros no ficassem demasiado ufanos com tal situao. No entanto, tal situao falhou ainda antes de a constituio entrar em vigor, aps o grito de Ipiranga. Os revolucionrios queriam evitar o grito de Ipiranga, alis, em consequncia disso, a 32

prpria forma da constituio era muito curiosa, pois, seguiu uma tcnica legislativa original, que no se fez em mais nenhuma constituio portuguesa. As Cortes constituintes eleitas Portugal, Brasil, frica e sia -, comearam por aprovar umas bases da constituio, precisamente as bases que foram aprovadas para tentar acalmar o Brasil, ou seja, para tentar que o Brasil no se tornasse independente. Aps a situao anteriormente referida, criou-se a constituio em 1822, precisamente nesse acto entre 1820 e 1822, quando estava em causa, uma soluo a dar aos brasileiros. Assim, era necessrio dizer que se tratava de um Estado misto, ou seja, um Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, no entanto, tal construo falhou. Assim, por essa razo, a constituio de 1822 historicamente foi uma constituio falhada, pois, a partir do momento em que entrou em vigor, no conseguiu resolver o seu principal problema poltico evitar a independncia do Brasil -, tal como era o seu propsito. As fontes da constituio de 1822 so vrias, desde a constituio espanhola de 1812 - a constituio de Cdiz - e as constituies francesas (1791-1785). Ora, a constituio de 1822 era uma constituio tipicamente liberal e poltica, de acordo com a lgica do Estado liberal do sculo XIX, sendo que, de acordo com o dogma do liberalismo poltico, tem como matrias apenas a organizao e a separao dos poderes e a defesa dos direitos individuais. Do ponto de vista sociolgico, porm, a constituio de 1822 no foi to efectiva como a constituio de 1826, o que estava relacionado com a forma como a sociedade estava representada no quadro do poder poltico de ento. Nos termos do artigo 29. da constituio de 1822, o Governo da nao portuguesa era uma monarquia constitucional hereditria que regulava o exerccio dos trs poderes, sendo que, nos termos do artigo 30. da mesma constituio, constava o princpio da separao de poderes: o poder legislativo, executivo e judicial. Isto significava, do ponto de vista sociolgico, que o poder mais importante do Estado, o legislativo, que residia nas Cortes, era atribudo classe burguesa, embora com dependncia da sano do Rei (aqui, denota-se uma tentativa de agradar o Rei, com um poder de sano, mas que no era efectivo, pois, na prtica, no correspondia a um verdadeiro poder de colaborao entre os rgos, mas sim a um simples poder de veto suspensivo); o poder executivo encontrava-se no Rei, que o exercitava com a colaborao da nobreza, que indirectamente estava representada sob a autoridade do mesmo Rei; e o poder judicial encontrava-se na mo dos juzes. Alm disso, cada um dos poderes era autnomo e independente, sendo que nenhum deles podia influenciar o outro. Tal lgica era tpica do liberalismo poltico, ou seja, a separao de poderes e garantia dos direitos individuais que, do ponto de vista terico, correspondia 33

criao de um modelo de Estado liberal, o qual pode ser metaforicamente considerado como tendo dois pais e duas mes. Assim, por um lado, na base do Estado encontrava-se a ideia democrtica de Hobbes e de Rousseau. Porm, a democracia de Hobbes e Rousseau era apenas uma ligeira reminiscncia, que s existia no momento inicial, uma vez que, para Hobbes, ela dava origem ao Leviat um monstro todo-poderoso -, enquanto que, em Rousseau, ela dava origem criao da vontade geral, que se impunha totalitariamente vontade particular. H ainda que ter em conta que, quando se fala em democracia, a democracia do sculo XIX, e no a actual que est em causa. A noo de democracia est relacionada com a origem do poder, sendo que o poder tinha uma origem democrtica e baseava-se num pacto, algo diferente do que existia at a, ou seja, a ideia que se encontra actualmente na base das democracias, em que a legitimidade do poder no a monarquia, no o poder divino, incutido a uma pessoa, o poder resulta de um contrato. No entanto, os pais deste Estado democrtico e liberal Hobbes e Rousseau -, tambm faziam com que a democracia desaparecesse, por efeito do pacto social, ela era uma espcie de pecado original do Estado. Alm disso, havia o contedo dado, pelos autores a quem denomino de as mes do Estado, porque o seu pensamento, de alguma maneira, possui um lado mais afectivo, mais terno, que so Locke e Montesquieu - so estes dois autores que iro dizer que o Estado precisa de ter um contedo, que o da separao de poderes e da garantia dos direitos individuais. De tudo isto resulta uma ideia de constituio, que exclusivamente poltica. Uma constituio que no se ocupa da economia, da sociedade - tudo isso alheio constituio, tudo isso resolvido pela sociedade, pela lgica da mo invisvel, que conduz as coisas pelo melhor caminho. Portanto, o Estado no tem a ver com a economia, ocupa-se apenas da poltica, e o contedo da constituio a separao de poderes e a garantia dos direitos individuais, e isto que corresponde realidade do sculo XIX. Enfim, existe um terico socialista do sculo XIX que brinca, dizendo que este Estado liberal uma espcie de co de guarda da propriedade, alimentado a impostos, uma vez que a funo principal do Estado era ser o guardio da propriedade e a interveno do Estado limitava-se aos impostos. Neste modelo, a Administrao no devia sequer intervir na sociedade. O Estado era por natureza, um Estado minimalista, portanto um Estado muito diferente daquele que conhecemos actualmente. por isso que a constituio de 1822, como tpico das constituies liberais, abre com um ttulo, que corresponde aos direitos e deveres individuais dos portugueses, e h aqui um grande tratamento da questo dos direitos, como questo essencial da liberdade. Surge 34

aqui uma trilogia, que ir aparecer depois nas outras constituies liberais portuguesas, logo no artigo 1., onde se explica que a funo da constituio manter a liberdade, a segurana e a propriedade de todos os portugueses. Ora, esta trilogia liberdade, segurana e propriedade, que est na origem da constituio. Na constituio de 1822, define-se liberdade de uma forma negativa, que tambm uma ideia muito liberal, estabelecendo-se no artigo 2. , que liberdade os portugueses no serem obrigados a fazer o que a lei no manda, nem deixar de fazer o que ela no probe. , portanto, uma ideia que corresponde a esta lgica, de um Estado mnimo. O Estado define os limites da liberdade, que uma ideia muito enraizada, mesmo nos dias de hoje, mas uma ideia do sculo XIX. Quando as pessoas definem liberdade, em termos de linguagem do senso comum, normalmente utilizam uma frase bastante popular: a minha liberdade termina onde acaba a liberdade dos outros. Mas, a verdade que a liberdade no termina nem comea, sendo que esta ideia do terminar e do comear uma ideia liberal, era ver a liberdade como propriedade, tal como dizia o saudoso Prof. Lucas Pires, correspondia a uma espcie de direito real da liberdade. Nestes termos, a liberdade tem limites, confina a Norte, a Sul, a Este e a Oeste, e esses limites so definidos pela lei. Na verdade, nos nossos dias, a questo deveria ser colocada de forma diferente, pois a minha liberdade que condio da dos outros, no termina nem acaba. O problema no do meio nem do fim, a ideia do meio e do fim, a ideia liberal, a ideia do sculo XIX, da definio dos limites da liberdade, a tal lgica negativa, que era a lgica do Estado liberal. E portanto, as leis que definiam estas balizas, eram extremamente importantes na lgica da constituio, e mesmo quando no artigo 6. se estabelece o direito sagrado da propriedade privada, direito sagrado inviolvel - a expresso do legislador -, mesmo aqui se estabelece uma limitao, dizendo que podia haver expropriao por utilidade pblica, e que essas implicariam indemnizao. Tambm o artigo 9., da constituio de 1822, define a igualdade dos cidados perante a lei, luz do sculo XIX e no luz do sculo XX. A igualdade era entendida como a igualdade perante a lei, a libertao dos vnculos, a lgica do acabar com a estratificao da nobreza, isto , tratava-se de fazer com que, independentemente do nascimento, todos pudessem ter condies de acesso a todos os cargos, no estava ainda relacionada com a dimenso social, uma vez que essa questo s ir surgir no sculo XX, a ideia de que as pessoas devem ter condies econmicas equilibradas, e isso no uma noo liberal. A noo liberal a de uma liberdade jurdica, todos nascem iguais, a nica excepo a esta lgica a da fonte de legitimidade da monarquia, da a noo de compromisso destas constituies (compromisso 35

este que s desaparece em 1911). Da tambm a possibilidade de entender que a constituio de 1911 a ltima constituio liberal, ela , portanto, em sentido metafrico, a ltima constituio do sculo XIX e no a primeira do sculo XX. Enquanto, nos outros pases, por essa altura, tinham comeado a surgir as constituies do Estado social, a nossa constituio de 1911 era ainda uma constituio liberal, do sculo XIX, portanto. Depois, surgem-nos as garantias da lei penal, a abolio das penas cruis e infamantes, e a finalizar esta parte da constituio, no artigo 19., estabelecem-se deveres do Estado, e entre estes deveres do Estado, o primeiro o venerar a religio. Isto mostra bem a j referida especificidade do liberalismo portugus, que no era laico, ou melhor, no tinha a coragem de se assumir como laico, mesmo que gostasse de o ser. Mesmo se alguns liberais gostariam de introduzir essa dimenso do laicismo, nenhuma das constituies portuguesas era laica, todas elas consagravam a religio catlica como religio oficial do Estado. E o primeiro dever pblico era o de venerar a religio, s em seguida deveriam amar a ptria, obedecer constituio e s leis, e contribuir para as despesas do Estado (a tal lgica do imposto, que era importante). Tambm, se por um lado, desaparecem as penas infamantes (a abolio da escravatura no surge ainda, pois ainda era muito cedo para ela surgir em Portugal, embora tenhamos sido os pioneiros nesta realidade). Enfim, a escravatura no estava sequer includa na ideia da igualdade liberal, jurdica, dos cidados perante a lei, aspecto que s surgir mais tarde, durante a consolidao do liberalismo portugus. H uma outra coisa curiosa na constituio de 1822, que era a mais liberal de todas, que as restries ao sufrgio so quase todas restries capacitrias. Ora bem, h que esclarecer, na lgica da representao social, que as constituies liberais so constituies burguesas, elas foram feitas para que o burgus esteja representado no Parlamento e, consequentemente, para que o burgus mande. A funo legislativa a principal do Estado, e a nova classe, a classe ascendente, a burguesia, que surge com o liberalismo poltico, que est representada no Parlamento. Assim, as constituies liberais dos demais pases europeus so quase todas censitrias, isto , estabelecem restries de renda para se poder votar. O voto tambm no universal (isso uma realidade do sculo XX), o voto restrito e censitrio, ou seja, quem vota quem tem um determinado nmero de rendimentos, e quem pode ser eleito, tem rendimentos ainda superiores. Curiosamente, a constituio de 1822 - a constituio mais liberal de todas -, tem como restrio principal, a capacitria, ou seja, deve-se saber ler e escrever, chegando idade de 25 anos completos para se poder votar. No entanto, esta restrio capacitria, no fundo, 36

tambm uma restrio censitria, porque s sabia ler e escrever quem tinha condies monetrias, e, portanto, por detrs desta restrio capacitria tambm est encoberta uma restrio de natureza censitria. Portanto, aqui, curiosamente, as regras censitrias, surgem na condio de ser eleito, no na condio de votar, mas na condio de ser eleito. A constituio estabelece um sistema estratificado de vrios rgos eleitorais, vrios colgios eleitorais com regras de elegibilidade progressivamente mais exigentes, em que se excluem os vadios, os falidos (quem no sabe tomar conta do seu patrimnio, no pode tomar conta do patrimnio do Estado o que se calhar um princpio muito sbio, a recuperar actualmente das antigas constituies liberais); em que se exige um mnimo de renda para poder ser eleito, ou seja, no qualquer um que pode ser eleito. Como ironizava o saudoso Prof. Lucas Pires, havia aqui uma inverso de algo que corresponde realidade de hoje, ou seja, actualmente, ascende-se ao poder para ficar rico, enquanto que, na poca liberal, era preciso ser rico para ascender ao poder. Assim, quem iria para o Parlamento seria a burguesia, o que corresponde realidade do sculo XIX. Quanto forma do Estado, tnhamos um Estado misto. Mas era um Estado misto aparente, no havendo em rigor nada tpico de um Estado composto. A constituio usa uma linguagem algo flutuante, pois fala no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sendo que o Algarve s aparece nesta enumerao como Reino, embora depois, acabe por ser tratado como qualquer provncia, alm de haver uma outra referncia, no artigo 38., ao Reino de Angola, embora no fosse acrescentado o nome de Angola ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Por outro lado, a unio real era aparente, porque em primeiro lugar no havia, nem nos rgos nacionais, representantes do Estado brasileiro, eleitos enquanto tal. Ora, o que normal, que num Estado misto, exista uma segunda Cmara para representao dos Estados, que integram esse Estado misto. Portanto, deveria existir representao do Brasil ao nvel do poder legislativo, o que, na verdade, no havia em Portugal. A nica coisa que se fez como sucedneo disto, foi permitir que, no Conselho de Estado, houvesse representao do Brasil, mas tambm dos Algarves e todas as outras provncias, mas, em rigor, o Conselho de Estado no tinha importncia nenhuma, pois apenas desempenhava uma funo de consulta do chefe de Estado. Alm disso, tambm no havia rgos de poder prprios no Brasil, pois no estava previsto na constituio que houvesse uma Cmara legislativa, nem que houvesse um poder executivo, nem um poder judicial no Brasil, prevendo-se apenas no texto constitucional que houvesse apenas uma deputao do executivo do Brasil.

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Tudo isto explica porque que a constituio de 1822 no funcionou. O Brasil, que at ento possua a capital do Reino de Portugal e do Brasil - o Rio de Janeiro -, que era a capital do imprio na Europa e Alm-mar, de um momento para o outro, ficaria sem qualquer poder. O Brasil perderia a Corte e ficaria consequentemente sem nada, ficaria com uma Delegao do poder executivo do Continente. Assim sendo, como bvio, esta constituio acabou por falhar, apesar da votao das bases da constituio, que tentou refrear os nimos autonomistas brasileiros. Tal no foi, no entanto, conseguido e, por essa razo, a constituio no foi capaz de resolver os problemas que se colocavam. Entre as diferentes instituies polticas, na lgica da separao de poderes, as Cortes eram descritas no artigo 102.. As Cortes serviam, como se viu, para a representao da burguesia, elas tinham o monoplio do poder legislativo e a prpria iniciativa legislativa era exclusiva dos Deputados, outra coisa que no corresponde realidade de hoje. Existia, a propsito do processo legislativo, uma norma muito curiosa (o artigo 106.), sobretudo para os dias de hoje, em que vivemos numa altura em que existem leis a mais e existem leis por tudo, o que algo bastante diferente do que acontecia em 1822. De facto, no mbito da constituio de 1822, existiam muito poucas leis, precisamente porque o Estado devia interferir o mnimo na vida pblica e, portanto, o processo legislativo era um processo muito curioso, onde se comeava por ler uma proposta, e depois, esperava-se que houvesse 15 dias para as pessoas reflectirem sobre a proposta, e posteriormente, comeava-se a discutir a proposta, e em caso de urgncia, poderia haver uma proposta provisria. Portanto, as leis demoravam meses, ou at anos a serem feitas, uma vez que as leis deveriam ser reflectidas, pensadas. As Cortes tinham ainda poder constituinte, tomavam juramento ao Rei, legislavam em matria de imposto, entre outras coisas. No que respeita ao Rei, que era a cabea do executivo, tinha um poder importante de impedir, para usar a expresso de Montesquieu (le pouvoir dempcher), ou seja, de impedir a actuao do Parlamento, na lgica dos freios e contra-pesos que o mecanismo de separao de poderes. O Parlamento criava as leis, mas estas podiam ser impedidas pelo Chefe de Estado, o que actualmente corresponde s figuras da promulgao e do veto. Ora bem, na lgica do sculo XIX, falava-se antes em poder de sano, sendo esta vista como uma forma de colaborao entre o Rei e as Cortes, e nas constituies liberais esta sano gozava de uma eficcia absoluta. Deste modo, o Rei concorda ou no com o decreto do parlamento e, caso no concorde, aquele no entraria em vigor.

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Curiosamente, na constituio de 1822, este poder do Rei era to enfraquecido, que havia apenas um mero veto suspensivo, que era superado at pelo silncio do Rei. Pois, o artigo 114., expressa que, caso o Rei no se pronunciasse num prazo de 1 ms, era como se tivesse sancionado a lei, o que corresponderia quando muito a uma ideia de colaborao subordinada, onde, na verdade, o Rei no tinha qualquer poder efectivo. O Rei, de facto, na constituio de 1822, no gozava de poder de sano, do qual ir, no entanto, gozar nas constituies de 1826 e de 1838 e, tambm por isso, que essas constituies so mais adequadas realidade do sculo XIX portugus. De facto, na constituio de 1822, o predomnio era do Parlamento, onde estava representada a burguesia. O Rei, para alm disso, nomeava e demitia os Secretrios de Estado, nomeava para os cargos pblicos, tinha interferncia nas relaes internacionais, mas no detinha porm qualquer poder efectivo. Duas notas ainda. Uma para referir uma realidade muito curiosa do sculo XIX portugus, que depois no transitou para o sculo XX, que a de haver juzes electivos, para alm de juzes de facto. Outra, para acentuar o carcter rgido da constituio de 1822, o que contraria uma ideia feita dos nossos dias, da rigidez das constituies actuais por contraponto flexibilidade das do passado. A constituio de 1822 tinha requisitos temporais de reviso, pois s podia ser revista de 4 em 4 anos, alm de que exigia ainda uma maioria qualificada quanto necessidade de reviso; determinava a necessidade de mandato especfico de reviso e de uma maioria qualificada para a sua aprovao, ou seja, era muito mais rgida que a actual constituio de 1976. Em termos de apreciao final, como j foi referido, a constituio falhou, do ponto de vista das relaes com o Brasil, e na lgica do Estado misto, mas tambm falhada, porque no foi capaz de contentar de forma eficaz todas as classes sociais. Assim, na lgica de Montesquieu, a diviso do bolo do poder, pelas diferentes classes sociais, no correspondia lgica da constituio de 1822. A lgica da constituio de 1822, dava todo o poder Burguesia, sendo esta a classe que se encontrava no parlamento, e o prprio Rei, indirectamente, representava a classe senhorial. Ora, na verdade, o Rei tinha uma funo subordinada, porque a sano no existia. Uma constituio que dava todo o poder burguesia s poderia funcionar num pas que tivesse uma classe burguesa forte, que tivesse uma estrutura capitalista, o que no existia em Portugal, em 1822. Por todas essas razes, a constituio falhou. Na segunda metade do sculo XIX, iro surgir os esteios para o liberalismo poltico, com o surgimento de um verdadeiro mercado nacional, que far surgir uma classe burguesa mais forte. Mas tudo isso vai surgir demasiado tarde, do ponto de vista da constituio de 39

1822, pois j tinha passado o seu tempo. Assim, no que respeita representao das classes sociais, a constituio de 1822 estava fora do seu tempo, porque dava todo o poder burguesia e a burguesia em Portugal era inexistente, na altura. Era uma classe fraca, que no tinha fora para se impor sozinha, embora tivesse alguma importncia em Lisboa e no Porto, e mesmo assim reduzida. De facto, a burguesia tinha ajudado a fazer a revoluo, mas no era ainda capaz de sustentar um modelo de Estado (to) liberal, e por isso que esta constituio viria a ter perodos de vigncia muito limitados (de Setembro de 1822 a Junho de 1823, e depois de 1836 a 1838, e aps a revoluo Setembrista at surgir a constituio de 1838). Embora, a constituio de 1822 tenha sido muito importante do ponto de vista doutrinrio e tenha marcado uma ruptura com a ordem do passado, ela seria tambm uma constituio falhada, podendo-se acrescentar ironicamente que esta constituio estava reservada ao caixote do lixo da histria. Posteriormente, temos a constituio de 1826, a qual, independentemente de juzos ideolgicos, vai ser a mais adequada e apropriada para a realidade do sculo XIX portugus. Esta constituio, na realidade, chamava-se Carta Constitucional, e foi outorgada pelo monarca D. Pedro, pela graa de Deus, outorga a seguinte constituio. Portanto, logo na feitura da constituio, existe uma legitimidade do poder constituinte, que monrquico, enquanto que, a constituio de 1822 era democrtica, elaborada pelas Cortes. A ideia do poder moderador era de Benjamin Constant, cuja influncia na elaborao da constituio era assumida por D. Pedro IV, e correspondia prtica do orleanismo francs, de Louis Philippe. S que o poder moderador, tal como caracterizado por Constant e aplicado em Frana, era diferente do portugus, dando-se aqui algo que, com excesso de ironia, mas com alguma razoabilidade, Vasco Pulido Valente costuma chamar de uma traduo do francs em calo. O quarto poder ou o poder moderador, que cabia ao monarca, no um poder de interveno directa no jogo poltico, pois o Rei era apenas um rbitro, e no um jogador. Em termos simplificados, pode-se afirmar que o que correspondia ao poder moderador, era basicamente o que corresponde actualmente aos poderes do Presidente, num sistema semi-presencial, como o nosso. Tratava-se de uma espcie de reunio das faculdades de impedir (facults dempecher), que Montesquieu havia concebido como dispersas entre os diferentes poderes polticos, e concentr-las num nico rgo, atribuindo a esse rgo um poder de arbitragem. Ora, na constituio de 1826, aquilo a que se chama poder moderador, no era apenas o poder de arbitrar, era o poder de actuar. Existe aqui, portanto, uma realidade que faz do Chefe de Estado a chave do poder poltico, pois o Governo depende quase exclu40

sivamente do Rei, tal como o Rei que nomeia Deputados para uma das Cmaras a Cmara dos Pares -, interferindo assim tanto no poder executivo como no legislativo. Isso explica o fenmeno do rotativismo portuguesa, na segunda metade do sculo XIX, que consiste numa manifestao de concentrao do poder real, em que o Rei decidia, a seu bel-prazer, quando era altura de mudar de governo. Assim, enquanto que, em Inglaterra, havendo uma crise poltica, o chefe de Estado dissolvia o parlamento e convocava eleies, nomeando depois, para formar governo o lder do partido vencedor, em Portugal, perante uma crise poltica, o Rei convocava igualmente eleies, s que antes convidava o lder do partido da oposio a formar Governo, que a seguir ganhava as eleies. Assim, as eleies eram sempre ganhas pelo partido do poder (e h quem diga que o mesmo sucede ainda hoje...), o qual, a seguir, ratificava a sua actuao anterior, em ditadura (com o parlamento dissolvido). Assim, o Rei no era apenas um rbitro do sistema, mas tambm um jogador com um poder muito importante, pois detinha o poder de interferncia no poder legislativo e executivo, e at no poder judicial. Ora tal resultava da realidade portuguesa, no tinha nada a ver com Benjamin Constant, nem com a respectiva ideia de poder moderador. Em termos de representao social, a constituio de 1926 completamente diferente da constituio de 1822, porque aqui, a classe velha, a classe do antigo regime, ou seja, a classe senhorial, sentia-se representada pelo Rei, que tinha poder, e portanto, havia um equilbrio entre o poder da burguesia na Cmara Baixa do Parlamento com o poder da aristocracia, que estava na Cmara Alta, e que era representada pela Rei. Assim, havia aqui uma nova lgica que funcionou bem, no incio do sculo XIX, mas que ir funcionar ainda melhor na segunda metade do sculo XIX. Pois, por essa altura, ir ser criada uma nova estratificao social, em que ir surgir uma nova nobreza e uma nova burguesia, criadas pela lgica liberal. Ora na realidade, esta nova nobreza liberal vem da burguesia (so os tempos do foge co, que te fazem baro, para onde, que me fazem visconde) e tal ir contribuir para que a constituio de 1826 consiga ter um perodo de vigncia mais amplo do que o sucedido anteriormente. Do ponto de vista dos direitos fundamentais, temos aqui uma realidade, que sendo curiosamente de arrumao das matrias, no deixa de ter a sua importncia. O Professor Jorge Miranda est sempre preocupado com a questo da arrumao da constituio, e essa preocupao tem alguma razo de ser, pois ela tem subjacente uma determinada valorao das matrias. Assim, a Carta Constitucional, em vez de comear como a de 1822 e a de 1838, com 41

os direitos fundamentais, remete os direitos fundamentais para o fim, o que pode significar uma certa desvalorizao da sua importncia relativa. Assim, ser o ltimo artigo da constituio que ir falar dos direitos fundamentais, sendo este o artigo mais longo da constituio, embora o nico. Este artigo encontra-se, alis, muito bem escrito, dele constando realidades novas: a proibio da retroactividade das leis; a liberdade de deslocao e emigrao; a liberdade de trabalho e emprego; a propriedade intelectual; a proibio das perseguies por razes religiosas (embora continue a existir a religio oficial, nos termos do artigo 6.); os prenncios dos direitos de tipo cultural (no quadro da instruo); a garantia da nobreza hereditria. Uma tal consagrao, nos direitos fundamentais, da garantia da nobreza hereditria, significa uma lgica de continuidade entre o liberalismo e o antigo regime, sendo certo que a constituio de 1826 conseguiu contentar ambos os lados, tendo sido, por isso, a mais adequada para a realidade do sculo XIX portugus. Contudo, se do ponto de vista sistemtico, a relevncia dos direitos fundamentais menor na Carta Constitucional do que em 1822 e em 1838, tal no significa que a Carta Constitucional seja menos liberal do que as demais portuguesas constituies. Alis, foi no quadro desta constituio, que mais tarde se aboliu a pena de morte: primeiro, no Acto Adicional de 1852, para os crimes polticos; depois, para os crimes civis, pela Carta de Lei de 1 de Junho de 1867. Do ponto de vista do sistema poltico, existiam quatro funes do Estado, dando origem a um sistema monrquico, hereditrio e representativo (artigo 4.). Esta enumerao muito curiosa, pois o Regime comea por ser monrquico, sendo a constituio dada pelo monarca, e em que o Rei detm um grande poder, podendo mesmo interferir com os demais; depois hereditrio, estando aqui includa a preservao da aristocracia liberal; e a seguir, representativo, ou seja, d poder aos burgueses, no mbito do Parlamento. Temos aqui uma lgica de compromisso, que a lgica, no fundo, de todas as constituies, que so tambm compromissos sociais. Neste caso, tratava-se de um compromisso que era o mais adequado realidade portuguesa, tendo em conta que a classe burguesa, na primeira metade do sculo XIX, tinha ainda um peso reduzido. Havia, desde logo, o poder moderador, que era a chave de toda a organizao poltica. Atravs dele, o Rei interferia nos demais poderes estaduais, nomeadamente no legislativo, elegendo os membros de uma das Cmaras (a Cmara dos Pares). Este foi, de resto, o problema mais discutido nos finais do sculo XIX portugus, uma vez que os sucessivos actos constitucionais, consoante eram mais liberais ou mais monrquicos, estabeleciam a lgi42

ca totalmente representativa das duas Cmaras, ou atribuam ao monarca o poder de nomear os membros de uma das Cmaras. Alm disso, o monarca tinha poderes de sano, ou seja, o diploma no entrava em vigor enquanto no tivesse a concordncia do rei. Alm destes poderes relativamente ao executivo, o monarca possua tambm poderes em relao ao executivo, designadamente de nomeao e demisso livre de todos os ministros. A lgica era de responsabilidade exclusiva do Governo, perante o Chefe de Estado, num quadro de concentrao de poderes. Mas o monarca era tambm dotado de poderes relativos ao poder judicial, incluindo o de suspender magistrados, de perdoar e moderar penas. Conforme se disse antes, em rigor, o que correspondia ao poder moderador portugus no era tanto a reunio dos poderes de impedir num nico poder do Estado, mas antes a atribuio de poderes de controlo do Chefe de Estado, em relao a todos os demais poderes pblicos. Da que, os actos de poder moderador eram os nicos que no eram sujeitos a referenda ministerial, ou seja, eram actos livres, em que nem sequer a assinatura dos ministros era necessria, como acontecia em relao a todos os actos do poder legislativo. Mas o rei era tambm o chefe do poder executivo. De resto, pode-se falar de um sistema de concentrao de poderes no rei, que no correspondia ideia do liberalismo poltico, mesmo se temperado com os poderes do legislativo e com a autonomizao do Chefe do executivo, que era uma prtica, que iria surgir no quadro portugus, tambm por influncia francesa. Esta realidade, de alguma maneira, fornece uma fatia importante do bolo do poder burguesia, mantendo, porm, a representao da nobreza hereditria, numa frmula poltica mais equilibrada, entre a nova e a velha classe preponderante. Posteriormente, porm, tudo se viria a transformar na segunda metade do sculo XX, com o surgimento de uma nova aristocracia liberal, que vinha reforar o poder da burguesia. Na segunda metade do sculo XIX, existia o j referido fenmeno de rotativismo portuguesa, que era inspirado no britnico, embora completamente diferente no caso portugus. Assim, existiam dois grandes partidos (surgidos na fase dos melhoramentos materiais do Fontismo), que alternavam entre si o poder. O Governo, de resto, no dependia do Parlamento, mas sim do rei, sendo que, no incio, dependia apenas dele, mas posteriormente passou a haver a lgica de dupla responsabilidade poltica. Ora, ocorrendo uma crise poltica, o rei demitia o governo e dissolvia o parlamento, mas convidava o partido da oposio a formar governo, antes das eleies. Seguidamente, o partido da oposio ganhava as eleies e legitimava tudo o que tinha sido feito at ento - o chamado bill de indemnidade. Entre o momento em que foi nomeado um novo Governo e entre o momento em que haveria eleies, 43

havia a prtica dos actos ilegais, totalmente ilegais e inconstitucionais, porque quem actuava era o Governo que elaborava leis, e quem podia elaborar as leis era o Parlamento, e o Parlamento no existia. Da que, aps as eleies, o primeiro acto do Parlamento recm-eleito era conceder um bill de indemnidade, ou seja, convalidar tudo o que tinha sido feito at ento. Na realidade, estava-se perante uma situao de inconstitucionalidade orgnica, mas como as eleies haviam sido ganhas pelo governo, a coisa resolvia-se a contento. Embora a constituio de 1826 fosse a de mais longa vigncia no sculo XIX portugus, h ainda que contar com a constituio de 1838. A constituio de 1838 era um compromisso entre a constituio de 1822 e a constituio de 1826, isto , representava um compromisso entre Vintistas e Cartistas, embora estivesse mais prxima da constituio de 1822, sendo assim, mais Vintista do que Cartista. Tal compromisso detectava-se l