O ambiente construído e a politização do cotidiano nas favelas cariocas

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    O ambiente construdoe a politizao do cotidiano

    nas favelas cariocas

    Mariana Cavalcanti*

    CADERNOS METRPOLE, N. 12, pp. 65-93, 2 sem. 2004

    Resumo

    Este artigo parte de uma discusso em torno da emergncia do termo

    underclassna sociologia norte-americana, para avaliar como sua crtica tem

    aberto um campo problemtico que enfoca a agencyde atores polticos

    situados em contextos estruturais e culturais considerados marginais. Em

    seguida, apresento alguns resultados de uma pesquisa etnogrfica ora em

    curso sobre as relaes entre o ambiente construdo das favelas cariocas e aconstitutio de seus moradores como sujeitos polticos no plano cotidiano.

    Argumento que, historicamente, a luta pelo direito permanncia na favela

    constituiu um lugar privilegiado de politizao das favelas e tento dar conta

    de como o esvaziamento do imaginrio da remoo como soluo para o

    problema das favelas, aliado ao aumento da criminalidade violenta, tem

    transformado as condies de possibilidade dessa politizao do cotidiano.

    Palavras-chave: ambiente construdo; poltica; Rio de Janeiro; favelas; localidade.

    Abstract

    This article begins by discussing the emergence of the term underclass in

    North-American Sociology, in order to assess how its critique has opened a

    field of inquiry that emphasizes the agency of political actors situated instructurally and culturally marginal contexts. I then present some

    * Mariana Cavalcanti doutoranda em Antropologia Sociocultural pela Universi-dade de Chicago. A autora agradece Fundao Capes pela concesso da bolsade doutorado pleno no exterior, que vem permitindo o desenvolvimento dapresente pesquisa. E-mail: [email protected]

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    preliminary results of my ongoing ethnographic research on the relations

    between the constructed environment of Rio de Janeirosfavelas (slums) and

    the constitution of their residents as political subjects on a daily level. I argue

    that, historically, the struggle for the right to remain in the favela has

    constituted a privileged site for the politicization of the favelas, and attempt

    to account for how the demise of favela removal programs in conjunction

    with the rise in violent criminality has transformed the conditions of possibility

    of this politicization of daily life.

    Key-words: built environment; politics; Rio de Janeiro; favelas; locality.

    Introduo

    Na cada vez mais vasta literatura especializada sobre as favelascariocas, uma ausncia se faz notvel: a escassez quase absoluta detextos que tratem de seu ambiente construdo a partir de uma pers-pectiva qualitativa.1 Tal ausncia torna-se ainda mais surpreendentese levarmos em conta que, historicamente, a forma fsica da faveladesempenhou um papel fundamental em sua construo social comoum espao singular, geralmente definido de modo negativo em rela-o cidade formal. Especialmente nas primeiras dcadas do sculo

    XX, a forma construda da favela aquela qual Alfred Agache sereferiu como a lepra da esttica (Agache 1930) figurava como seuprincipal trao, ao qual corresponderiam, na viso de mdicos,planejadores urbanos e outros tcnicos influenciados pelo funcionalis-mo e pelo positivismo, formas de sociabilidade marcadas pela anomia,em descries que as configuravam como a materializao do concei-to das classes perigosas, to caro medicina higienista do sculo XIX.

    Em suma, e como j foi notado por diversos autores, a prpriaforma construda das favelas delimitava suas fronteiras e as definiacomo um antro de doenas e de criminalidade, definio esta quese estendia aos seus moradores. Esses temas perduraram ao longo do

    1 Excees so os trabalhos de arquitetos como Jacques (2001) e Cas (1996).Contudo, ambos trabalham em uma perspectiva urbanstica em um sentido maisestrito, sem maiores incurses pelas cincias sociais. Aspectos quantitativos sotrabalhados em diversos textos para dar conta das condies de saneamento edo grau de urbanizao das favelas, e, mais recentemente, figuram em estudoscomo o de Abramo (2003) sobre o mercado imobilirio das mesmas.

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    sculo passado, engendrando e justificando o imaginrio recorrenteda remoo, e persistem at os dias de hoje, sobretudo no espaopblico, sob a forma da denncia sobre riscos ecolgicos, s vezesarticulando-se criminalidade violenta, que, por sua vez, vem seconfigurando como a questo poltica central da cidade do Rio de

    Janeiro.O presente artigo visa mobilizar alguns elementos histricos,

    analticos e etnogrficos no sentido de contribuir para preencher ainda que de modo exploratrio e preliminar essa lacuna de estu-

    dos qualitativos sobre o ambiente construdo das favelas cariocas,desde a perspectiva daqueles que o habitam. Seu recorte analticoprivilegiar a anlise do ambiente construdo para retrabalhar ques-tes j consagradas no estudo das favelas cariocas, a saber, os modosde formao de identidades de seus moradores e da constituio dosmesmos como sujeitos polticos.

    Os elementos-chave para a constituio desse objeto de estudoh muito figuram na produo das cincias sociais sobre a sociedadebrasileira em geral e sobre as favelas especificamente. Em primeirolugar, parece haver um aparente consenso de que a formaparadigmtica da sociabilidade no Rio de Janeiro melhor descrita

    em termos de uma proximidade fsica e distncia social (Lessa, 2000,p. 181; Oliveira, 1996, p. 75, entre outros). As divergncias em tornodesse tema giram em torno de como melhor explicar essa diferena,ou a singularidade da favela, uma vez que essa constatao corre orisco de engendrar teorias de isolamento cultural de seus moradores,como atesta a longa discusso em torno do mito da marginalidadee as peridicas reedies de argumentos que reproduzem, de modomais ou menos sofisticado, a surrada idia de uma cultura da pobreza(Lewis [1955] 1965). Na prxima seo, portanto, discutirei como umatendncia recente na sociologia norte-americana, de explicar a dife-

    rena cultural do gueto atravs de uma leitura que atente simul-taneamente para os aspectos estruturais e culturais, pode ser til paraum estudo dos sentidos e relaes sociais que se estabelecem dentroe atravs da construo do espao fsico da favela.

    Em segundo lugar, este texto se apia em uma tendncia emvigor desde ao menos os anos 80 na literatura especializada sobre asfavelas cariocas, que, na esteira dos estudos sobre os movimentos

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    sociais no perodo da abertura poltica, vem enfatizando a centralidadeda vizinhana ou da comunidade, para usar o termo nativo como locusfundamental de socializao e para a formao de identi-dades sociais. O argumento geral embasando essas hipteses o deque, devido instabilidade ocupacional que define grande parte dastrajetrias de vida de moradores das favelas, a partir de redes desolidariedade locais e nos lugares de moradia que se experimenta aformao de coletividades. Ou, nas palavras de Alba Zaluar, na

    vizinhana e no com os colegas de trabalho, que vivenciam formas

    de solidariedade, de construo de identidades comuns e do senti-mento, ainda que fragmentrio e frgil, de pertencer a um ns dis-tintivo (1985, p. 62n).

    O argumento central deste artigo que uma anlise da constru-o e dos usos dos espaos das favelas torna legvel algumas dimen-ses fundamentais da constituio desse ns. Assim, o primeiroaspecto do espao construdo das favelas cariocas que pede umareflexo mais detida o fato, j assinalado por Marcos Alvito, porexemplo, de que as favelas so, em grande medida, construdas pelaspessoas que as habitam. Alvito afirma que esse fato histrico tende aestabelecer entre os moradores e sua comunidade uma relao de

    conquistadores (Alvito, 2001, p. 69). Creio que essa afirmativa deveser problematizada, s podendo ser considerada como vlida emalgumas circunstncias e em determinados momentos; o mais co-mum que esta seja uma relao repleta de conflitos e nuances,marcada por diversas temporalidades, que s podem ser apreendidascom referncia ao contexto e ao lugar de fala dos moradores. Assim,a terceira parte deste texto ir se debruar sobre alguns episdios efalas coletadas no trabalho de campo ora em andamento, de modo adelimitar analtica e historicamente o objeto de estudo.

    Tais episdios e falas introduzem o terceiro grande tema ao

    qual esta pesquisa se enderea, a saber, o crescente corpo de literatu-ra voltado para a teorizao do espao como dimenso constitutivada vida social. Grande parte dessa produo voltada para processosmacrossociais (Harvey 1989; Lefebvre 1991; Soja 1989), mas uma ver-tente desses estudos tem elaborado, a partir de estudos de casosespecficos (Gupta e Ferguson 1992; Hayden 1995; Low 1999), asrelaes entre a produo social do espao, isto , a anlise histrica

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    e poltico-econmica da formao do espao urbano e a construosocial do espao, que abrange os aspectos fenomenolgico e simb-licos da experincia desse espao, ou seja, os modos como os usosde determinados espaos os transformam, atravs de trocas, da cons-truo social da memria e de conflitos em torno da prpriamaterialidade do espao (Low, 1999, p. 112).

    A aposta terica a de que a articulao entre esses dois nveisde leitura da vida social fornea as bases para um exame mais detidodo processo, acima mencionado, de construo de identidades sociais

    e polticas. Aqui, a noo de produo de localidade, tal comoproposta por Appadurai, faz-se relevante. Definindo localidade umaspecto fenomenolgico da vida social, constitudo simultaneamentepor prticas materiais e por uma estrutura de sentimento que dsentido a prticas sociais situadas e cotidianas, Appadurai afirma quea localidade deve ser compreendida como o resultado dos processosde construo e reproduo tanto material quanto subjetiva desentidos e contextos locais.2 Assim, representaes e vivncias espe-cficas de localidade tais como as comunidades a que se referemmoradores de favelas devem ser concebidas como simultaneamen-te determinadas por contextos na medida em que formaes sociais

    concretas so, em grande medida determinadas por processos polti-cos, sociais e econmicos mais amplos, tais como a globalizao nasltimas dcadas e produtoras de contexto, pois no processo mes-mo de reproduo da comunidade que contingncias e a imagina-o potencializam a mudana histrica e, neste movimento, a produ-o de novos contextos, sejam materiais, sociais ou imaginados(Appadurai, 1996; Gupta e Ferguson, 1992, p. 8).

    Dessa perspectiva, possvel repensar as favelas do ponto devista dos investimentos materiais naquele espao, levando em contaas restries e limites impostos por configuraes de poder mais

    2 Impossvel no notar a similaridade com a noo de habitusde Bourdieu histria tornada natureza, e, portanto, negada como tal nesta definio(cf. Bourdieu, 1977, p. 78). Baseio-me ainda, no argumento de Bourdieu de queo livro do qual crianas aprendem sua viso do mundo lido com o corpo, nointerior e atravs dos movimentos e deslocamentos que produzem o espaono qual so encenados tanto quanto so produzidos por ele (ibid., p. 90).

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    amplas, e daqueles que investem e negociam sua transformao nonvel cotidiano. Se considerarmos que a entrada na cena pblica dosmoradores de favelas como atores polticos deu-se em meados dosanos 40, com a formao de comisses de moradores forjando umaresistncia contra um suposto plano da prefeitura de remoo emlarga escala de diversas favelas (Burgos, 1998; Lima, 1989), vislum-bramos como a histria da luta pela permanncia no espao de mo-radia implica necessariamente pensar tambm a dimenso cotidianadessa politizao da reivindicao pela legitimidade dessa forma de

    habitar. Em outras palavras, faz-se necessrio pensar o espao urba-no como produo e construo social. Essa perspectiva engendrauma imagem muito distinta da mera precariedade ou de um espaodefinido pela falta e em comparao cidade formal. Levando-seem considerao os esforos cotidianos investimentos financeiros edo trabalho material de construo da favela para sua permanncia,a favela emerge no como espao da falta, mas como espao produ-tivo de valor, tanto material quanto simblico. A disputa entre ossentidos do prprio espao como construo social e como produ-o social emerge, assim, como eixo interpretativo que abre um cam-po problemtico de indagao sobre as condies de possibilidade

    dessa politizao do cotidiano.Ao tomar emprestadas tais noes, espero argumentar e for-

    necer uma concluso preliminar sobre a importncia de se pensar aproduo da localidade como esta se d no cenrio contemporneodas favelas cariocas. Mais especificamente, a inteno a de chamara ateno para como a articulao entre espao e agencyvem deter-minando, em grande medida, os modos como os moradores de fave-las se constituem como sujeitos polticos.

    Marginalidade,underclass

    e a perspectiva etnogrfica:sobre o reposicionamento da cidadaniaem tempos de globalizao

    O socilogo Loc Wacquant, em artigo publicado em 1994, re-pleto de crticas noo demi-savantde underclass, conclui suasreflexes em torno do que conceitua como o hipergueto do perodo

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    ps-fordista com uma comparao discusso em torno do mito damarginalidade na Amrica Latina (Wacquant, 1994). Citando um tex-to dos anos 70, de Alejandro Portes, sobre as favelas latino-america-nas, Wacquant conclui que o erro das teorias do gueto ou da favela

    tem sido o de transformar condies sociolgicas em traos psico-lgicos e de imputar s vtimas as caractersticas distorcidas de seus

    vitimizadores (ibid., p. 264). Como Janice Perlman3 (1976) e outrosj haviam feito nos anos 70, em relao noo de marginalidade naAmrica Latina, Wacquant acusa os defensores da noo de underclass

    de essencializar os pobres e de confundir um artefato estatstico comum grupo social realmente existente.

    Nas pginas que seguem, procurarei problematizar a compara-o de Wacquant, no por consider-las invlidas pois certamenteno o so , mas para extrair da comparao histrica e conceitualuma problemtica que creio ter repercusses para o tema centraldeste artigo. Para tanto, faz-se necessrio um breve histrico da traje-tria terica do termo underclass4.

    A idia de uma underclass surge a partir do momento em quedados quantitativos referentes aos indicativos sociais dos guetos norte-americanos passam a acusar os efeitos da reestruturao econmica

    iniciada nos anos 70 e do conseqente retraimento de polticas quegarantiam um funcionamento mnimo de um Estado de Bem-Estar So-cial nos Estados Unidos.5 O termo ganha visibilidade a partir de grandes

    3 Janice Perlman, como se sabe, conclura que a idia de marginalidade eraempiricamente falsa, analiticamente enganosa e insidiosa em suas implicaespara a poltica (1976).

    4 No farei o mesmo em relao marginalidade, pois outros, presentes nestefrum, j o fizeram de modo mais rigoroso e relevante do que eu seria capaz.Para uma historicizao da problemtica da marginalidade, ver Machado daSilva (1983). Para uma anlise mais detalhada da underclassdo que a expostaaqui, ver Marks (1991) e tambm Wilson (1978, 1987).

    5 Trs transformaes sociais nos guetos podem ser destacadas: em primeiro lu-gar, surge um padro de sada de famlias com empregos estveis dos bairrosnegros, muitas das quais se mudaram para os subrbios, a partir do levantamen-to de restries de moradia que garantiam a segregao espacial entre negros ebrancos. Este movimento foi paralelo construo de conjuntos habitacionaispara indivduos de baixa renda em reas j guetoizadas. Juntos, estes dois

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    reportagens jornalsticas6 sobre as condies sociais patolgicas nos guetos,sobretudo o aumento de ndices de criminalidade, uso de drogas e gravi-dez precoce. Acadmicos e polticos conservadores logo utilizaram osdados e as reportagens para acusar a rede de seguridade social pelasmazelas do gueto, argumentando que toda uma gerao de negrosteria se tornado dependente dos benefcios do Estado de Bem-Estar.

    Ao longo dos anos 80 coincidindo com o perodo Reagan ,o debate continuou entrincheirado entre duas posies polticas e/ouideolgicas. De um lado, pensadores e polticos conservadores insis-

    tiam em uma leitura marcada pelo determinismo cultural, segundo aqual fatores estruturais relacionados s profundas transformaes eco-nmicas dos anos 80 eram escamoteadas enquanto se privilegiava aargumentao calcada em falhas individuais e dependncia dos pro-gramas de bem-estar em argumentos do estilo cultura da pobreza.De outro lado, pensadores liberais no estranho sentido norte-americano do termo no elaboraram um contradiscurso efetivo,argumentando que as falhas culturais dos guetos eram determina-das por situaes macro-estruturais e, portanto, as patologias dogueto constituam sintoma da desigualdade social. Tudo seria efetiva-mente muito parecido com o debate em torno do mito da

    marginalidade, travado nos anos 60 e 70 na Amrica Latina,7 se noentrasse em cena a defesa do termo por William Julius Wilson.

    processos contriburam para a concentrao da pobreza em reas antes segregadasem funo da etnia de seus moradores, o que garantia maior heterogeneidadesocial de seus moradores. Finalmente, a reestruturao econmica implicou, deum lado, uma polarizao da oferta de emprego nas metrpoles, de modo que ademanda aumentou para empregos altamente especializados de alta qualificaoe a demanda por trabalhadores com baixa qualificao para empregos de baixaremunerao no setor de servios. Os empregos de mdia remunerao foramdeslocados das metrpoles para zonas perifricas, atrs de incentivos fiscais eda diminuio de custos. Assim, os moradores do gueto teriam sido expulsos do

    mercado de trabalho assalariado e perdido o respaldo institucional que tinham noperodo em que programas de bem-estar vigoravam e havia uma classe mdiaque lhes garantia algum poder de barganha poltica. Cf. Wacquant (1994).

    6 Creio que uma semelhana com o chavo da cidade partida no Rio de Janeiropossa ser traado aqui.

    7 Guardadas as devidas diferenas entre uma discusso em torno do capitalismomonopolista, que constitua o contexto da discusso da marginalidade, e a pro-blemtica da reestruturao macroeconmica das ltimas dcadas.

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    Wilson fora o primeiro a problematizar a noo corrente deunderclass, sem no entanto descart-la, j em 1978, ao incluir nadefinio do termo, alm dos negros moradores dos guetos j estabe-lecidos, uma crescente quantidade de imigrantes e brancos pobres,[n]aquela massiva populao na parte mais baixa da estrutura social,assolada por educao deficiente e por trabalho instvel e de baixarenda (Wilson, 1978, p. 1). Em trabalho subseqente, Wilson (1987)procura explicar as razes pelas quais leituras estruturais teriam per-dido fora no discurso pblico ao longo dos anos 80, e encontra uma

    explicao bastante razovel na controvrsia gerada pelo chamadorelatrio Moynihan, na ocasio de sua publicao em 1965.

    O relatrio fora elaborado por Daniel Patrick Moynihan, entoSecretrio Assistente de Trabalho responsvel pelo Escritrio de Pes-quisa e Planejamento de polticas pblicas do governo Lyndon Johnson.

    A pesquisa foi realizada ao final da conturbada dcada entre a deci-so da Suprema Corte, em 1954, de dar fim segregao racial emescolas e a Lei dos Direitos Civis de 1964, isto , no perodo em queas dificuldades de se estabelecer a igualdade de fato, e no apenas dedireito, se colocava tanto para o governo quanto para representantesde movimentos negros e de direitos civis. De modo muitssimo resu-

    mido, o relatrio, constatava que: 1. dados estatsticos demonstravamque os nmeros de dissoluo de casamentos, nascimentos de filhosilegtimos, famlias chefiadas por mulheres e dependncia em relaoa polticas de bem-estar vinham aumentando nas ltimas dcadas;2. as razes de tais dados poderiam ser encontradas na escravido, esuas conseqncias eram evidenciadas no modo como se deu a urba-nizao, nos altos ndices de desemprego e pobreza, e na alta fertili-dade dos negros; e 3. que todos esses problemas, juntos, davamorigem a um embarao de patologias cujas causas histricas torna-

    vam necessrias polticas afirmativas para que os negros tivessem a

    oportunidade de sair deste crculo vicioso (Rainwater e Yancey 1967,pp. 5-6).A reao s concluses do relatrio no tardou. Ainda que inte-

    grantes de movimentos de direitos civis e do movimento negro notenham reagido do mesmo modo, e devido ao fato de muitos doscrticos do relatrio concordarem que o mesmo era bem-intenciona-do, a acusao mais comum era a de etnocentrismo, que seria evidente

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    no fato de os dados serem interpretados de acordo com o ponto devisto de uma classe mdia branca. Essa comparao, por sua vez,fornece o combustvel para um novo racismo, nas palavras de JamesFarmer, que seguia afirmando que estamos [os negros] cansados desermos analisados, mesmerizados, comprados, vendidos [...] enquan-to os malefcios mesmos que constituem os ingredientes de nossaopresso permanecem sem ateno (Farmer, 1967, p. 410).

    Wilson (1987) retoma a questo do relatrio Moynihan paracriticar no s os argumentos de direita por seu determinismo cultu-

    ral, mas tambm a recusa de acadmicos de esquerda de encarar defrente uma srie de dados quantitativos que indicam problemas se-melhantes aos apontados pelo relatrio, j no contexto dos anos 80,por temor de serem tachados de racistas. Segundo ele, a recusa deutilizar o termo ou outro semelhante acarretava a incapacidade deconceituar os efeitos da reestruturao econmica sobre as popula-es dos guetos. Apesar de o prprio Wilson ter em seguida abando-nado o uso da noo de underclass, a importncia de sua defesainicial do termo, para os meus propsitos neste texto, reside no fatode sua crtica aos que o haviam rejeitado tornar legvel o fato de quenem as leituras estruturalistas da esquerda e tampouco as leituras

    culturalistas da direita atentarem para o problema da agency essapalavra de difcil traduo das populaes estudadas.

    Como resultado do debate suscitado por Wilson, ao longo dosanos 90, vemos uma srie de estudos que mesclam elementos deleituras das condies estruturais que inevitavelmente atuam no sen-tido de restringir possibilidades de ascenso social, e as escolhas deindivduos localizados dentro dos campos de possibilidade geradospor tais condies. Wacquant (1994), por exemplo, usa o termo hiper-gueto para nomear as novas condies estruturais determinando aspossibilidade de vida dos moradores de guetos, afirmando, no entan-

    to, que seu trabalho d conta apenas da nova configurao estruturalque articula politicamente as relaes entre raa, classe e o espaourbano, mas no de como essa reconfigurao experimentada, isto, de como constitui a experincia vivida dos moradores dos guetos. esse campo que vem sendo crescentemente explorado a partir deuma perspectiva etnogrfica, que visa articular conjunturas macro-sociais a estudos de casos localizados, presente em trabalhos como

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    os de Bourgois (1995), Anderson (1990), Caldeira (2000), Hayden(1995) ou Venkatesh (2000), que muito tm contribudo para umadiscusso menos polarizada do que a dos anos 80.

    Na Amrica Latina em geral, e no Brasil, especificamente, umadicotomia de posies polticas e/ou ideolgicas to marcante quan-to a dos Estados Unidos dos anos 80 no parece fazer parte da tradi-o acadmica, at porque difcil falar-se em qualquer Estado deBem-Estar que poderia causar dependncia. A diferena de contextoshistricos tambm marcante. Enquanto os americanos se debatiam

    em torno da oposio estrutura versuscultura, no Brasil dos anos 80,toda uma tradio etnogrfica vinha se desenvolvendo na esteira daabertura poltica e dos novos movimentos sociais que esta desenca-deou. Assim, por mais que a posio por um debate estrutural tenhapermanecido como pano de fundo, na dcada de 80 vemos uma sriede trabalhos que valorizavam microestudos de casos e a perspectivaetnogrfica (Cardoso 1986, p. 13) em uma tentativa de compreenderos significados locais e localizados das novas demandas polticas.

    Por esses motivos, toda a discusso em torno da underclasspode parecer muito distante do caso brasileiro e pouco proveitosapara um estudo do momento contemporneo.8 Contudo, no caso das

    favelas cariocas, a valorizao da perspectiva etnogrfica tem perdi-do espao para anlises que privilegiam os deslocamentos no proces-so social gerados pelo aumento da criminalidade violenta ao longodos anos 80 e 90, e, sobretudo, suas conseqncias na esfera dapoltica institucional e dos movimentos de base ou de bairro. A pre-eminncia do trfico nestes estudos, obviamente, no gratuita, uma

    vez que se trata de uma problemtica que vem se configurando comoa questo poltica e social central da cidade. Alm disso, as conseqn-cias do trfico de drogas sem dvida perpassam todos os aspectos da

    vida na favela, inclusive os modos de uso, ordenao, ocupao e

    transformao de seu espao fsico.

    8 Creio que esta discusso importante, ainda por motivos que no posso traba-lhar neste texto, a saber, a questo da entrada do discurso do identity politicsnorte-americano na esfera pblica no Brasil. A inteno original deste texto eraa de incorporar esta discusso, mas no foi possvel devido aos limites de espao.

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    Insisto, contudo, que se corre o risco, sob esse prisma, de repe-tir o erro dos liberais norte-americanos dos anos 80 e no prestar adevida ateno ao modo como processos sociais mais amplos taiscomo os efeitos do trfico internacional de drogas afetam e confi-guram a agency desses atores polticos que so os moradores defavelas. A insistncia na palavra agency e a sua no traduo aolongo deste texto devem-se minha hesitao em fechar o sentidodessa capacidade de agir, de crer-se agente do processo social ou deoperar em um registro poltico, ainda que tais formulaes no se

    enderecem poltica institucional ou institucionalizada. Pelo contr-rio, a nfase no fazer dirio requer que o sentido se mantenha aberto.Minha inteno, ao abordar esta problemtica, sugerir que se faznecessria uma problematizao constante dos modos como identi-dades sociais e coletivas se constroem no plano cotidiano. Implcitanesta insistncia em caracterizar prticas cotidianas de construo etransformao do espao a concepo da cidade como obra(ouevre) coletiva, no dizer de Henri Lefebvre (Lefebvre, Kofman, eLebas 1996, p. 101). Sob essa perspectiva, a cidade no poderia serreduzida nem ordem longnqua dos arranjos institucionais do Esta-do-Nao nem ordem prxima das prticas cotidianas e de uso do

    espao, mas materializaria o encontro dessas duas instncias, consti-tuindo uma mediao entre essas duas ordens, e, portanto, noredutvel a uma ou a outra, justamente por ser a agency de atoresindividuais e coletivos que torna essa mediao possvel.

    Segue que o esvaziamento do imaginrio da remoo e a inten-sificao dos efeitos do trfico de drogas sobre a sociabilidade urba-na no Rio de Janeiro operam o que Saskia Sassen chama dereposicionamento da cidadania (2002) dos moradores de favelas,que acabam por ocupar malgrado eles mesmos, em muitos casos uma posio estratgica que os insere em um campo propriamente

    poltico, pois suas demandas se colocam em termos de ter direitos ater direitos, em suma, de pertencer cidade na condio de cidados.O argumento relativamente simples: partindo da idia de Lefebvre,da cidade como oeuvre, Sassen afirma que a reestruturao econmi-ca global das ltimas dcadas vem transformando as esferas depoder que organizam o prprio espao urbano, na forma de umatransferncia de poder do Estado-Nao para o capital internacional.

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    Isso no significa diagnosticar o colapso da importncia do poderestatal, mas sim que sua atuao reposicionada no jogo mais amplode foras polticas. Neste movimento, so tambm reposicionadas asinstncias de demandas em torno do direito cidade e os prprioscontedos da cidadania que se reivindica. Nessa reconfigurao, ato-res em posio de desvantagem adquirem presena no processopoltico mais amplo, que escapa s fronteiras da poltica formal(ibid., p. 22). Esta presena, por sua vez, nomeia a agencyde atorespolticos que se constituem como tal mesmo no tendo poder efetivo

    sobre a poltica formal.No caso das favelas cariocas, possvel argumentar que a

    reconfigurao dos esforos do Estado da remoo para a regulariza-o fundiria, para a integrao ou consolidao das favelas, atra-

    vs de programas como o Favela-Bairro, evidenciam que a perma-nncia das favelas faz parte do cenrio atravs das quais as disputasem torno da cidadania se desenrolam, ainda que se trate de atorespolticos cuja agency extremamente limitada e cuja cidadania per-manece precria. Suas condiesde vida e suas trajetrias individuaisencontram-se localizados no campo de possibilidades que se esboaatravs da reproduo social da pobreza, do preconceito dirio expe-

    rimentado pelo prprio fato de se viver em favela e das dificuldadesmateriais e existenciais que experimentam devido sua localizaona cidade. Deste modo, espero capturar, atravs de um estudoetnogrfico inicial, a constituio de moradores das favelas como su-

    jeitos polticos por meio de um estudo sobre as prticas materiais esuas dimenses subjetivas que condicionam essa presena, aindaque fragmentada em suas demandas no nvel da poltica institucional.

    Fragmentos de um dirio de campo:

    a favela como espao produtivo

    A questo da disparidade entre uma igualdade de direito e umaigualdade de fato para populaes espacialmente segregadas, que

    veio tona na discusso anterior em relao ao relatrio Moynihan,coloca-se, no Brasil, de modo distinto em relao aos Estados Uni-dos. Para alm da questo que central da articulao poltica

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    entre raa e segregao social nos dois pases, parte da conceituaodo hipergueto de Wacquant se apia na constatao da deterioraofsica e no retraimento de investimentos estatais em espaos segrega-dos norte-americanos, seja nos conjuntos habitacionais, seja na pro-priedade privada dos guetos. Nas favelas, ao contrrio, desde a aber-tura poltica, com o esvaziamento do imaginrio remocionista, temosassistido a um boomde construo privada e informal dos morado-res, evidentes no fenmeno da verticalizao, bem como a um au-mento em investimentos pblicos em saneamento, meio ambiente e

    outros programas sociais que, ainda que deficitrios e insuficientes,vm transformando radicalmente a feio fsica das mesmas, sem noentanto garantir a observncia dos direitos de cidadania de seus mo-radores (Machado da Silva e Leite, 2004).

    Essa temtica vem sendo explorada sobretudo por estudos quan-titativos, que tm demonstrado a crescente heterogeneidade das po-pulaes residentes em favelas, o possvel esgotamento de uma certadefinio da favela seu tipo ideal, segundo Preteceille e Valladares(2000) e tambm do ponto de vista das transformaes sobretudoa crescente fragmentao dos modos de associativismo dentro dasmesmas (cf., por ex., Ibase, 2004). Minha inteno aqui a de com-

    plementar essas perspectivas, atravs de uma anlise etnogrficaexploratria sobre os modos como as transformaes recentes acimamencionadas tm sido vivenciadas e interpretadas por alguns atoreslocais residentes em um complexo de favelas localizado na regio daTijuca. Para tanto, partirei de duas imagens pinadas do meu dirio decampo da pesquisa ora em andamento. Essas imagens esto necessriae inextricavelmente conectadas a trajetrias de vida, e no objetivamuma viso totalizante, mas sim o levantamento de alguns elementospara a discusso dos contextos em que a construo de identidadesse interconecta com o espao social da favela e com a agency de

    indivduos localizados.

    Primeira imagem: a viso do alto a construo da comunidade

    A casa emboada por fora, sem pintura, mas aparentementebem-acabada, sem grandes distines em relao s vizinhas, que,

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    nesta parte alta do morro, so mais espaadas, a maioria contandocom quintais e plantas. Seu acesso se d atravs de uma escadaconstruda como parte da obra do Favela-Bairro, que passou pelacomunidade em 1998, e j apresenta alguns sinais de desgaste. Quan-do entramos, no entanto, vemos o estado de deteriorao da constru-o: rachaduras atravessam todas as paredes, a pintura est descas-cando, o cho afundando, e h marcas de infiltrao por toda parte.

    A casa tem quarto, um espao que faz as vezes de sala e cozinha, eum pequeno banheiro, alm de uma porta que d para o quintal.

    Daqui, a vista impressionante v-se, em primeiro plano, os bair-ros do Andara e de Vila Isabel. Mais ao fundo, a Baa de Guanabara,onde se destaca a monumentalesca ponte Rio-Niteri, e, distncia,so visveis os contornos dos morros da Zonal Sul.

    O dono da casa estava nossa espera, fazendo seu almoo.A televiso ligada no quarto ao lado passava o jornal local da tarde. Aentrevista triste e contrasta com meu primeiro contato com esse se-nhor. Naquela ocasio, durante uma oficina para a construo da me-mria da comunidade,9 ele agia mesmo como o conquistador a que

    Alvito se referiu em seu livro sobre Acari. Na oficina, ele falava repeti-das vezes sobre as conquistas mutires para o encanamento da

    gua, calamento inicial das ruas e assim por diante Fui eu!. Agitado,contava das homenagens e do reconhecimento que recebera de polti-cos e de outros moradores, falava em velhos companheiros de lutaque queria que fossem lembrados pelos moradores jovens presentes.

    Agora, no. Meu informante olha em volta e fala de sua vida deum modo saturado de amargura. Nascido em 1921, na Paraba, ondelevava vida de escravo praqueles fazendeiros latifundirios at noagentei mais, nos anos 50 veio pra cidade grande pra ver se... semelhorava mais, e no dei sorte. Mudou-se para a comunidade onde

    vive hoje depois de quinze anos em Nova Iguau. Alm de ter colabo-

    9 A oficina foi realizada como parte do projeto Condutores de Memria (AgendaSocial Rio/Ibase/Gesto Comunitria), no qual trabalhei como supervisora tc-nica entre julho de 2000 e agosto de 2001. Essa fala desse morador repetiu-seem trs ocasies distintas: em uma conversa preliminar sobre uma entrevista aser realizada em vdeo, na prpria entrevista gravada em vdeo e na ocasio quedescrevo aqui, em junho de 2004.

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    rado com diversos presidentes da associao de moradores, participoude uma srie de mutires que trouxeram gua encanada para a comuni-

    dade, e trabalhava como operrio da construo civil. Olhando a vista

    de seu quintal, ele reflete sobre sua trajetria de vida:

    Trabalhei muito para fazer apartamento bonito pra essa gente morar.Daqui da Tijuca at Leblon, eu fiz muito, muito apartamento bonito,Copacabana, Ipanema. E a vida essa. E se tivesse, hoje eu me considera-va rico se tivesse uma casinha mais ou menos pra viver dentro, debaixo.Vocs to vendo a. Ta o estado. E no porque eu no quero no,

    porque eu no pude fazer pra mim uma casa boa. No tem chance.

    Esse fragmento etnogrfico abre vrias possibilidades de inter-pretao. Gostaria de deter-me, no entanto, na disparidade entre aimagem do conquistador e a do injustiado, tendo como fio condu-tor a questo do trabalho material e dos investimentos cotidianos. Atriste ironia do operrio da construo civil que vive em condiesprecrias pode ser ouvida em diversas favelas do Rio de Janeiro.Neste caso, ainda mais aguda pelo seu histrico de envolvimentona prpria construo material da comunidade. A casa figura aquicomo direito bsico de cidadania.

    Michel de Certeau falava que a viso do alto da torre do jextinto World Trade Center assemelhava-se ao olhar onisciente deDeus (1984, p. 92). Meu informante, ao contrrio, olha a cidade for-mal de cima e v os frutos de seu trabalho ao longo da vida.10 Nesseolhar, e em seus arredores, sente a imensa distncia social e a desi-gualdade que marcou sua vida e que continua a definir sua situaosocial de aposentado que recebe um salrio mnimo e uma cestabsica por ms; a distncia lhe confere uma viso do todo e lheempresta a clareza de ver seu lugar nessa vastido.

    10 A formulao do jovem Marx de trabalho alienado parece aplicar-se aqui. Se-gundo Marx, o trabalho de transformao da natureza seria universal, na medida emque o mesmo satisfaz necessidades humanas. Sob o capitalismo, no entanto, estetrabalho torna-se um meio de satisfazer as necessidades humanas atravs da vendada fora do trabalho o que implica necessariamente a alienao em relao aosfrutos de seu trabalho e a inverso da relao original entre homem e natureza. Cf.Marx, 1964, pp. 123-125. No caso descrito, efetivamente a sensao da alienaodos frutos do trabalho de meu informante o que est em jogo.

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    Em outro trabalho (Cavalcanti 2003), argumentei que o traomais marcante da narrativa histrica dos moradores mais antigos des-sa comunidade que ela quase sempre apresenta dois grandes mar-cos: as lutas pela posse da terra nos anos 50 e as mudanas decorren-tes da ascenso do trfico de drogas no final dos anos 70. O tempodas lutas termo usado por inmeros moradores para descrever osatos de resistncia ao despejo que culminaram na fundao da Uniodos Trabalhadores Favelados, evocado, em geral, como um anteslongnquo e idealizado, em relao a um depois, constitudo pelo

    tempo atual, hoje, definido pela violncia. A entrada do trfico nacomunidade figura como um divisor de guas em um certo modo de

    vida,11 impondo outros limites s possibilidades de ao poltica deseus moradores.

    evidente que esses cortes se articulam a processos sociaismais amplos, sobretudo o programa de remoes iniciado no gover-no Carlos Lacerda e continuado ao longo do regime militar. A siste-mtica interveno nas associaes de moradores e a incapacidadedos movimentos dos favelados em conter a maioria das tentativas deremoo, seguidas do perodo chaguista, marcado pelo clientelismoe pela ausncia de polticas mais amplas voltadas para a favela, como

    j assinalaram Burgos (1998) e Machado da Silva (2002), tiveram oefeito de desarticular a demanda pelo direito de permanecer na fave-la de um projeto de insero social ou democrtica mais amplas. Essadesarticulao, por sua vez, aliada emergncia da criminalidade

    violenta e ao subseqente investimento pblico maior nas favelas doperodo Brizola, teve o efeito de transformar radicalmente as relaesentre a construo material da comunidade como um espao socialcompartilhado e a produo de identidades sociais baseadas na lo-calidade.

    11 O outro corte decisivo observado aquele que estabelece a distino entre otrfico antes e o trfico hoje. Antigamente , nesses casos, definido peloperodo anterior ao dos tiroteios constantes, em que os armamentos eram me-nos sofisticados e o trfico funcionava em um esquema mais precrio, quandohavia respeito da parte dos traficantes. Hoje, nesta distino, o tempo pre-sente, o medo cotidiano, que coloca em cena com alguma freqncia umanarrativa de decadncia.

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    Se seguimos esse esquema mais amplo na trajetria desse mora-dor em particular, o tempo das lutas indissocivel de seu trabalhomaterial e da construo dos espaos fsicos da comunidade. Trazer agua encanada e pavimentar ruas, ao invs de assinalar suamarginalidade pelo menos desse ponto de vista do presente pro-

    vava a capacidade de mobilizao e de realizao coletiva. Uma lutapoltica que se deu atravs do cotidiano e tendo como objetivo principalmudar esse cotidiano, em um processo de construo mesmo de suacidadania. Idealizaes aposteriori parte, inegvel que esse traba-

    lho material e subjetivo de luta desempenhou um papel fundamen-tal na viso de mundo deste senhor de 83 anos, que afirma que:

    Eu me considero fundador dessa rea. Com 32 ano [sic] que moroaqui. E a vida essa. , no tinha nada aqui. Hoje j tem algumacoisa porque o povo lutaram, n? Eu at agora t lutando. E continuoa lutar pela melhoria daqui. O povo ajudaram, agora j se parececom um canto de gente morar. T se parecendo, ainda no t certono, mas t se parecendo com lugar de ser humano viver.

    O trabalho material de construo da comunidade dava-se, so-bretudo, como a construo de um futuro melhor para uma coleti-

    vidade. Um lugar de ser humano viver ou de gente morar implicauma imaginao de se ter direito cidade que ele ajudou a construir.Uma temporalidade vivida e imaginada em um sentido de melhoria,atravs da luta, que gerava uma certa espacialidade na qual oinacabado revela a distncia mesma entre a situao atual e umacidadania a ser atingida.

    A casa decadente, por sua vez, assinala justamente a precarie-dade de sua cidadania, que percebida no apenas no mbito dapoltica formal, mas nas dificuldades cotidianas que atribui falta dereconhecimento de sua prpria trajetria de vida, de sua capacidade

    de realizao, de sua agency, em suma. Assim, vislumbramos como odia-a-dia lugar de elaborao simblica que define uma esfera po-ltica da qual se sente excludo.

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    Segunda imagem: a viso do cho a casa como processo

    Na mesa, aps o almoo, sento com uma me e sua filha de 8anos, com fotos de famlia espalhadas pela mesa. As imagens datamdos anos 80, so coloridas em sua maioria, e h poucos registrosanteriores a esse perodo. Separo uma seqncia de fotografias quechamam a ateno: na primeira, a me e seu marido se beijam, emuma pose tpica de recm-casados. O cenrio so as obras de cons-truo da vila que hoje dividem com duas outras irms, duas tias e

    dois primos, em um total de sete casas. Foi a primeira verso emalvenaria da casa da famlia, construda no perodo aps a interven-o do programa Cada Famlia, um Lote, do governo Brizola. Essaprimeira verso da casa era pequena um minsculo cmodo utiliza-do como sala e cozinha, e dois pequenos quartos. Algumas marcasdessa verso inicial ainda se fazem visveis, sobretudo pela diferenano piso em relao a ampliaes posteriores. A me ainda no sabia,mas, no momento em que a primeira fotografia foi tirada, ela estavagrvida de sua filha mais velha, hoje com 17 anos. Na segunda foto-grafia, a filha mais velha aparece, no colo, sobre o pano de fundo daparte exterior da laje onde seriam construdos mais dois quartos. A

    parte de fora da casa permanece com os tijolos mostra. J na tercei-ra fotografia, o beb no colo a filha mais nova, presente em nossaconversa, e o cenrio a parte da varanda que hoje j se encontracoberta, exceto na parte da escada que conduz laje onde se secamroupas e, no vero, fazem-se churrascos e montada uma piscina deplstico para as crianas. Na ltima fotografia, a filha velha posa naparede externa que d para a vila, antes desta ser emboada. A me

    vai narrando as transformaes e ampliaes pelas quais a casa pas-sou e me apontando, na disposio atual da casa, j emboada epintada por fora e por dentro, como se deu a expanso.

    A casa, hoje, das mais bem-equipadas que conheo na comu-nidade: tem um aparelho de televiso em cada quarto (no total detrs), um computador, aparelho de som, videocassete, fogo moder-no, mquina de lavar roupas, e bem mobiliada. Os pais ocupam oquarto na parte mais ao fundo da casa, pois de l que vm os tirosdos traficantes da comunidade vizinha, e so eles quem dormem nasala quando os tiroteios ficam muito intensos. A janela da sala

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    gradeada, para evitar que as crianas saiam ou que outras pessoasentrem, j que o acesso seria muito fcil do beco prximo, ou mesmoda laje do vizinho, onde sempre h crianas soltando pipas, e ela mediz que ainda faltam grades nas outras janelas que do para a mes-ma regio externa. O prximo projeto cobrir parcialmente a laje decima, para criar uma rea de lazer mais protegida e evitar ter quecorrer para cima para retirar as roupas do varal toda vez que chove.

    Esse investimento em uma rea de lazer fundamental para paisque trabalham e no podem estar sempre de olho nas andanas dos

    filhos, como o caso dessa famlia e de outras com quem venho conver-sando. A me tem dois empregos como auxiliar de enfermagem, e opai vendedor de seguros-sade, apesar da prpria famlia viver semessa cobertura. Nas ltimas frias escolares, os filhos mais novos recla-maram muito de no ter o que fazer. Para o menino, de 11 anos, oproblema no era to grave, j que, no andar de baixo, na casa de sua tiapaterna, h um videogame, em torno do qual vrios meninos e al-guns adultos, desempregados no momento passavam o dia jogandofutebol na tela. A lei da vila dessa famlia extensa de brincar apenasdentro dos seus limites, onde seguro. Ir para a quadra, s pelamanh, e de preferncia com algum adulto por perto. Para a menina,

    restava desenhar no computador, acompanhar a antroploga em suasandanas pelo morro e assistir a reapresentaes de novelas at a chega-da dos pais. Ambos me disseram estar com muita saudade da escola.

    A seqncia de fotografias parecia confirmar o que a observa-o j havia sugerido e que foi mais bem sintetizado por outro infor-mante morador de outro verdadeiro complexo familiar, que tam-bm resultou da subdiviso do loteamento que lhe foi concedido nogoverno Brizola. A casa uma das mais slidas e bem acabadasque vi na comunidade, cada parte com uma fachada de decoraodistinta tijolinhos na casa de uma filha, cujo acesso se d por um

    beco, azulejos na fachada que d para a rua. Quando comentei mi-nha impresso sobre sua casa e perguntei quando ficaria pronta, elesorriu e disse: Casa na favela nunca fica pronta.

    Continuemos com a referncia a Michel de Certeau. Ocontraponto da imagem do alto da cidade, a viso totalizante, deDeus ou do planejador, seria a viso do cho, aquela mope e repletade contingncias que constituem o mbito dos usos da cidade ou das

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    prticas cotidianas. Nessas prticas, de Certeau busca localizar umaproduo, um fazer dirio e disperso, que escapa s relaes de po-der do regime de produo de uma dada sociedade, sendo ao mes-mo tempo diretamente relacionado e possibilitado por este regime depoder. Nessas prticas, sentido e agencyse intersectam, constituindomundos de significados simblicos e concretude material. Da a nfa-se, nesta seo, na casa, e no na habitao, esse termo mais abstra-to que tende a perder de vista o significado mais bsico de morarcomo atividade cotidiana, que, como qualquer outra, pode ser lugar

    de conflitos e disputas que no se colocam necessariamente no planoda poltica institucional, ainda que sejam vivenciados e sentidos comoevidncia de uma cidadania restrita e problemtica.

    Ainda outra informante me diz: passei a vida toda correndoatrs de uma casa. Morei de aluguel, de favor, a consegui um

    barraquinho. No se pode afirmar que isso constitui uma particula-ridade da favela ou de pessoas de baixa renda em geral. Muito pelocontrrio, a centralidade da importncia de uma casa prpria para amoradia da famlia nuclear prpria de sociedades capitalistas oci-dentais. Mas podemos, sim, afirmar que na favela a casa como umprocesso, como um projeto de vida, ganha contornos prprios, e,

    nesse sentido, torna-se uma lente atravs da qual possvel vislum-brar tanto as transformaes fsicas nas favelas quanto as relaesentre as condies de possibilidade dadas por processos sociais maisamplos que tornam possveis tais transformaes. Contudo, como

    venho argumentando, a leitura que privilegia apenas as transforma-es nas favelas a partir da emergncia de uma sociabilidade violentafaz perder de vista as negociaes dirias entre instncias distintas depoder incluindo a a dos traficantes dentro do espao da favela.No se trata, aqui, de uma leitura meramente funcionalista do proces-so, la Escola de Chicago, mas de compreender a dimenso de cons-

    truo da casa como um processo, como produo de valor, e, sobre-tudo, como lugar de imaginao e construo do futuro.De acordo com o censo de 1950, cerca de metade das 35 mil

    habitaes tidas como localizadas em favelas eram feitas de paredesde madeira, cobertura de zinco, e cho de terra (Monteiro 2003). Aproibio pelo cdigo de obras de 1937, aliada ao espectro da remo-o, no possibilitava o dispndio dos recursos escassos dos moradores

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    em habitaes provisrias tanto no sentido jurdico quanto nosentido fenomenolgico, pois essas condies materiais tornavam ashabitaes efetivamente provisrias. So comuns as narrativas de mo-radores que tiveram de reconstruir suas casas total ou parcialmentediversas vezes, devido a desabamentos, sobretudo em perodos dechuva. Uma rpida pesquisa na seo de iconografia do Arquivo Geralda Cidade ou mesmo uma visita ao site Favela Tem Memria podematestar a mudana drstica na forma fsica das favelas a partir da segun-da metade dos anos 70. Hoje, de acordo com os dados do censo de

    2000, 95% das casas so de alvenaria, e podemos mesmo observar,nessa trajetria, perodos em que so visveis muitos hbridos partedas casas de madeira, barro e outros materiais provisrios e parte detijolos, com telhas. A passagem do Favela-Bairro por certas comunida-des, segundo alguns moradores, tambm favoreceu a construo emalvenaria, uma vez que a pavimentao das ruas de acesso facilitou otransporte e a entrega de materiais de construo, barateando o pro-cesso de construo e expanso. A permanncia conquistada ao longodas ltimas dcadas inaugura essa temporalidade de investimentosmateriais sobre o espao privado da casa que nunca fica pronta,temporalidade essa que anloga de uma cidadania sempre restrita

    e insuficiente, como objetivo a ser atingido.Dessa transformao derivam outras. Conversas com morado-

    res mais velhos revelam que mutires para bater uma laje foram atos anos 80 o modo mais comum de construo. Esse processo que

    James Holston (1991) chamou de autoconstruo em trabalho sobreas periferias de So Paulo e Braslia tem sido cada vez maissubstitudo pela contratao de servios de terceiros, muitos residentesnas prprias comunidades, sem qualquer formao. Dois desses pe-dreiros com quem conversei cobram uma diria de R$40 por seusservios, e esto constantemente engajados em trabalhos; a demanda

    supera em muito suas capacidades de atend-la. Essa terceirizaoda construo, contudo, no reflete um desinvestimento material ouafetivo da casa. Como argumenta o prprio Holston, o trabalho deconstruo, paradoxalmente, reproduz a ordem dominante e a peri-feria em si. Mas, ao tornar essa reproduo possvel, aproxima ocentro e sua promessa de um futuro melhor para o construtor individual(Holston, 1991, p. 450).

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    De outro lado, esse declnio da autoconstruo como modo deerguer habitaes, e que constitua implicitamente um dos elementosdo ideal tipo da favela, reflete a expanso do mercado imobilirio defavelas a que se tem assistido desde o esvaziamento do programa deremoes e de toda a aparelhagem institucional que o acompanhou(cf., por ex., Abramo, 2003). Se o aluguel em si no representa neces-sariamente uma novidade, em parte por remontar ao tempo em quea ocupao dos morros era mediada por grileiros (Gomes, 1980, p. 22),nos dias de hoje, a sua prpria escala, alm do aluguel de cmodos ou

    a construo de imveis com este fim por moradores mais estabeleci-dos, so mudanas que, por sua vez, assinalam transformaes tam-bm nas relaes sociais dentro da favela, que, acredito, pode serlida em termos de uma crescente privatizao da vida social, quetorna mais visveis as diferenciaes e estratificaes sociais dentroda mesma (cf. Niemeyer, 1979). No cabe aqui um estudo detalhadodas conseqncias dessas mudanas, que terei de deixar para outraocasio, mas essa uma dimenso da prpria fragmentao dos mo-

    vimentos sociais dos moradores das favelas que merece ser mais bemexplorada.

    Concluso

    Uma casa no se resume sua pura materialidade. Alm daconstante redefinio das fronteiras entre privado e pblico que essaestrutura fsica opera, a casa e a esfera privada so lugares fundamen-tais da reproduo social de uma sociedade ou de um grupo social,tanto no nvel dos cdigos explcitos de uma cultura quanto lugar deinternalizao e reproduo de seu habitus, como j observou Bourdieu(1977, 1979). No caso de moradores de favelas, como vimos, a casa ,

    antes de mais nada, em si um objetivo a ser alcanado, que condensauma srie de significados sociais noes de respeito e respeitabili-dade, a observao do direito moradia, o estigma atrelado sualocalizao e o cuidado dirio requerido pela reproduo social.

    Nesse sentido, um dos dados gerados pela observao que maistem chamado a minha ateno o constante investimento de muitasfamlias na casa como um lugar seguro. Como notei no fragmento

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    acima, , sobretudo nessa separao entre o dentro e o fora quemais se fazem sentir os efeitos da criminalidade violenta sobre ocotidiano dos moradores de favelas cariocas. O videogame, a televi-so e o computador emergem, nesse contexto, como bens tidos comoimprescindveis para muitas famlias, que buscam mecanismos decontrole das andanas de seus filhos pela comunidade. a esse tipode espacialidade que me refiro quando falo em privatizao da vidasocial, uma espacialidade que tende a fortalecer redes sociais j exis-tentes, que podem passar pela Igreja e outras associaes religiosas,

    grupos de jovens, ou por laos de famlia e afinidade daqueles quetm acesso a espaos privados que se tornam compartilhados porgrupos distintos que se identificam entre si, muitas vezes em oposio aoutros grupos da prpria comunidade.12 Assim, as condies nas quais alocalidade como uma estrutura de sentimento de pertencimento seproduz e reproduz encontram-se profundamente modificadas com rela-o ao contexto vigente no perodo das remoes.

    Essa fragmentao das condies em que demandas coletivaspoderiam ser encaminhadas no mbito da poltica institucional noimplica, contudo, um desinvestimento de esforos dirios pelamelhoria da comunidade, mas sim seu reposicionamento tanto

    externo quanto interno a partir de outros determinantes estruturaise outras conjunturas culturais. A revolta ou o ressentimento, ter-mos utilizados respectivamente por Zaluar (1985) e Burgos (1998)para nomear o modo como essa distncia da esfera poltica formal sereveste de sentidos locais, tm seu contraponto nesses esforos coti-dianos de construir uma casa digna e segura. O sentido dessasaes permanece o de construo cotidiana de uma cidadania quepermanece to inacabada quanto as casas. Essa agency, hojedirecionada a uma melhoria individual ou de grupos restritos, con-tudo, permanece impregnada de sentidos polticos, sendo cada tijolo

    ou cmodo adicionado s estruturas j existentes vivido como maisum passo no sentido de superar os limites impostos pela ordem social

    12 Esta diferenciao fragmenta ainda mais as oposies notadas por Zaluar (1985)entre trabalhadores e bandidos, e calcada em estilos de vida que no necessa-riamente so da ordem da vida pblica e sim de escolhas privadas.

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    dominante. Essa busca da superao evidenciada pela freqnciacom que se ouve que preciso correr atrs da melhoria (parausos semelhantes do termo, ver Borges 2003).

    Essa nova espacialidade da agency na favela que pode serdefinida em termos de investimentos materiais em espaos privados

    permanece entrelaada a processos sociais mais amplos. A precriainsero no mercado de trabalho e os altos ndices de desemprego

    tambm tem tido seus efeitos sobre os usos dos espaos privados eas relaes de gnero. Surpreendeu-me, na primeira semana da pes-

    quisa de campo, que a esmagadora maioria dos responsveis queiam buscar crianas nas creches eram homens indo buscar seus fi-lhos. Conversas e entrevistas subseqentes revelaram um padro re-corrente de, nos ltimos anos, homens e mulheres terem perdidoempregos, mas homens terem maior dificuldade em encontrar outrotrabalho. Um nmero considervel de mulheres, nessas condies,acaba por encontrar trabalho como empregada domstica.13

    Esse apanhado geral de dados etnogrficos parece confirmar oconsenso com o qual comecei o texto, de que nas relaes de

    vizinhana que os moradores de favelas encontram espao para aconstruo de identidades sociais e de um sentimento de agency.

    Contudo, tambm aponta para o fato de que essa articulao entreespao e agencyvem sofrendo alteraes nas ltimas dcadas, de umlado, devido conquista do direito permanncia na favela, e, deoutro, da sociabilidade marcada pela criminalidade violenta. Juntos,estes dois processos inauguram novas temporalidades e espacialidadesatravs das quais o pertencimento comunidade vivido, e, porextenso, novas vises de uma cidadania a ser atingida, e outrasestratgias de correr atrs dela.

    13 Esta uma hiptese exploratria, pois requer uma confirmao atravs da an-lise de dados quantitativos.

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