O Ato Fotográfico Memoria Prospecção e Produção Na Velhice

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Psicologia

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  • O ATO FOTOGRFICOMEMRIA, PROSPECO E PRODUO DE SENTIDOS NA VELHICEJOANA SANCHES-JUSTO

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  • O ATO FOTOGRFICO

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  • Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Dr. Fernando Silva Teixeira Filho (Coordenador)

    Prof. Dr. Jos Sterza Justo

    Dr. Leonardo Lemos de Souza

    Dr. Silvio Yasui

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  • JOANA SANCHES-JUSTO

    O ATO FOTOGRFICOMEMRIA, PROSPECO

    E PRODUO DE SENTIDOS NA VELHICE

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  • 2013 Editora UNESPCultura AcadmicaPraa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S19a

    Sanches-Justo, JoanaO ato fotogrfico [recurso eletrnico] : memria, prospeco e

    produo de sentidos na velhice / Joana Sanches-Justo. [1. ed.] So Paulo : Cultura Acadmica, 2013. recurso digital : il.

    Formato: ePDFRequisitos do sistema: Adobe Acrobat ReaderModo de acesso: World Wide WebInclui bibliografiaISBN 978-85-7983-434-9 (recurso eletrnico)

    1. Fotografia. 2. Memria. 3. Idosos. 4. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    13-06414 CDD: 792.8 CDU: 792.8

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria dePs-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

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  • SUMRIO

    Prefcio 7

    Apresentao 11

    A fotografia e suas interseces com a memria 19

    O tempo e seus desdobramentos 29

    O ato fotogrfico e o construcionismo social: o sujeito e seu mundo 47

    Fotografias e narrativas com a terceira idade 59

    Produes de sentido nas oficinas 101

    O ato fotogrfico e a ressignificao da velhice 125

    Referncias bibliogrficas 135

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  • PREFCIO

    A abordagem proposta por Joana Sanches-Justo, corajosa, diga-se de passagem, revigora a discusso construcionista, no con-texto da Psicologia Social, quando coloca em pauta o dilogo que emerge das relaes decorrentes de atitudes, comportamentos e condutas de um grupo de idosos com a fotografia. Tal dilogo se manifesta por meio da anlise das imagens e da linguagem/narra-tiva que eles articulam a partir delas. Considerando que os pressu-postos da cincia tradicional no abarcam esse tipo de aproximao, esse um dos aspectos que mais valorizam o trabalho da autora.

    Em seu processo de anlise instaura um dilogo, s vezes dicot-mico, no qual as imagens fotogrficas dos participantes os con-frontam com o passado (da memria e das reminiscncias) em relao ao presente que vivenciam na atualidade de seu cotidiano. Ao mesmo tempo, essas imagens possibilitam-lhes a projeo de futuro, evo-cado pelo potencial imaginativo que revelado por meio das discus-ses decorrentes desse processo. Confronta, outrossim, a relao entre o idoso e o aparato fotogrfico digital, um meio de registro disponvel na contemporaneidade entendido, nesse momento, como um mediador social capaz de promover a interao memria-tec-nologia, como um elemento estimulante e promissor para ocupar o lugar da expresso do pensamento e da imaginao, transfor-

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    mando-se no instrumento de reflexo dos sujeitos, de seus anseios e, sobretudo, de suas memrias.

    Os desdobramentos do trabalho a partir da aproximao com a fotografia enquanto registro evocando o efeito da passagem do tempo e a construo da memria, as reflexes tericas que ser-viram de base para os estudos empreendidos, o desenvolvimento das oficinas tcnicas e os encontros para discusso, tudo isso se consolidou como um percurso metodolgico no qual cada etapa cor-responde aos anseios da pesquisadora e tambm s questes cru-ciais decorrentes da necessidade de identificar as relaes entre os idosos e as imagens construdas tcnica e socialmente como regis-tros de um momento ou da memria pregressa, quer seja de algum enquanto sujeito ou de uma pessoa isolada ou mesmo do grupo no qual se insere ou ao qual pertence, transformando-o no lugar das experincias socializadas e da instaurao das vivncias e projetos no seu cotidiano.

    Constata, ao final, que os idosos, apesar de operarem e ampa-rarem suas narrativas kairticas momentneas por meio da fotografia, tambm usam as imagens fotogrficas para projetar suas expectativas e interagir com o seu prprio tempo e lugar, tor-nando-os atores e gestores de suas vidas e suas vontades. Em suma, no h limites definidos pela maior/melhor idade na organizao de seu contexto vivencial e social. As narrativas, como manifesta-es coadjuvantes das imagens, do conta de suas projees, expec-tativas e anseios, independente de se encontrarem em idades mais avanadas. Nesse sentido, a questo da idade no um fator que promova a negao ou a limitao dos sujeitos; o que se percebe que a projeo de futuro est presente nesse fazer e, como tal, no diferente dos anseios e vontades que emanam dos mais jovens.

    Ao contrrio, a idade mais avanada atua como um referencial para pontuar as ocorrncias e acontecimentos, ora kairticas ora kronticas, embora possam ser coincidentes ou dissidentes nas narrativas, dadas as caractersticas das prprias narrativas, ao ope-rarem ora no contexto do acontecimento (da histria, do vivido), ora no contexto da imaginao e da criao (do expressivo), d-lhes

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    a oportunidade de exercitar o fazer que a vida exige no cumpri-mento de seu dia a dia, independente da idade, no ato constitutivo e emergente de suas experincias atuais como processo de cons-truo de sentido para suas prprias vidas.

    Prof. Dr. Isaac Antonio Camargo Doutor em Comunicao e Semitica, PUC/SP

    Professor da Universidade Federal de Santa Catarina

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  • APRESENTAO

    Na atualidade, fcil notar o vnculo dos mais jovens com a fotografia, talvez porque a fotografia digital e, mais recentemente, a mquina fotogrfica acoplada ao celular faam da fotografia uma parte da cultura e da identidade juvenil (Justo, 2009). Nada novo e surpreendente para uma gerao nascida na era da imagem e da instantaneidade. Nada mais familiar e trivial, para aqueles que vivem o imediatismo do presente, fotografar e prontamente ver no visor da cmera ou do celular a imagem da cena ou do acontecimento que esto compartilhando.

    A fotografia, nesse caso, simplesmente mais uma imagem a ser consumida no mesmo instante em que produzida e observada. Ela no intervm no sentimento de passagem do tempo, ao con-trrio, contribui para a vivncia de um tempo breve, acelerado e passageiro, que fortalece a sensao de um eterno presente (Gum-brecht, 1998).

    possvel tambm pensar a conexo entre o idoso e a foto-grafia, sobretudo pelo nexo, j sedimentado, do retrato fotogrfico com o passado. O idoso, ao ver-se nas fotografias, revive sua his-tria e reaviva a memria. Entretanto, como se pretende explorar nesta pesquisa, a fotografia pode se converter num potente recurso de planejamento e prospeco do futuro.

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    Ao aplicar um golpe no tempo e fazer um recorte na realidade, a fotografia se torna um suporte material para a memria. Se, por um lado, olhar fotografias em lbuns nos traz a nostalgia da reme-morao, por outro, ao tornar-se autor, a fotografia trazida para o presente.

    O ato fotogrfico permite o contato com a dimenso temporal da imagem e, consequentemente, da vida. Segundo alguns autores (Amerikaner et al., 1980; Neiva-Silva & Koller, 2002), a produo de fotografias gera imagens que se relacionam com o momento da vida da pessoa, seja passado, presente ou futuro. Na vivncia do ato fotogrfico surge, portanto, a possibilidade de pensar a fotografia no como um resgate do vivido, mas um planejamento, uma ex-presso dos desejos e sonhos a respeito das miragens que se co-locam adiante.

    Assim pode ser pensada a produo de imagens na terceira idade: um olhar fotogrfico que se lana no para a reiterao de um passado petrificado, mas para uma movimentao temporal da percepo e da cognio rumo a buscas prospectivas do futuro.

    A fotografia pode ser tomada, ainda, como um ato prospectivo ou como um gesto de vitalidade que se ope morte, diferente-mente das fotografias que se consagram como ato de morte quando mumificam o objeto ou cena, arrancando-a da realidade e petrifi-cando-a numa imagem congelada transformada em artefato cole-cionvel.

    As fotos so, claro, artefatos. Mas seu apelo reside em tambm parecerem, num mundo atulhado de relquias fotogrficas, ter o status de objetos encontrados lascas fortuitas do mundo (Sontag, 2004, p.84)

    Alm da materialidade da fotografia como objeto, existe o pro-cesso de produo da imagem: o ato fotogrfico e as produes que surgem desse exerccio de pensamento e do olhar para o mundo. Como ao sobre o tempo, a fotografia pode reviver o passado: faz viver novamente, ressuscitar aquilo que se esvaiu no tempo, re-

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    tomar o que estava perdido. O passado fotografado mantido vivo. Pode ser revivido, ressignificado e ganhar nova vida, portanto, agir sobre o futuro. O foco aqui no a fotografia como um mero objeto de consumo, mas como um instrumento de captao e interpre-tao do mundo e de si mesmo que tem como principal efeito o des-locamento das coisas no tempo.

    Embora no sejam tantos, possvel localizar alguns trabalhos de pesquisa que tm como foco o binmio: idosos e fotografia ou idosos e memria. No campo da interveno, as chamadas ofi-cinas de fotografia so encontradas em nmero maior, em projetos de ateno a idosos ou terceira idade.

    No trabalho de Bruno & Samain (2007), da rea de comuni-cao, a construo da memria na velhice abordada atravs de entrevistas e de fotografias trazidas pelos participantes, que con-taram a histria de cada registro. Posteriormente, os pesquisadores organizaram as fotografias de forma a explicitar, a partir de diversas configuraes espaciais, a vida dos participantes.

    Na rea da Psicologia, podemos encontrar oficinas de foto-grafia com idosos, tais como as realizadas pelo Grupo Imagem Ncleo de Fotografia e Vdeo de Sorocaba e pelo Ncleo de Comu-nicao Social da Universidade Federal Fluminense.1 So projetos que visam estimular a percepo do idoso no como um sujeito ina-tivo, mas criativo e detentor de uma vasta experincia adquirida com a idade. A proposta dessas oficinas , atravs de dinmicas de grupo, produzir fotografias sobre as profisses e detalhes coti-dianos, estimulando uma nova percepo da vida e a luta pelo seu prprio espao na sociedade.

    Alm das oficinas, outra forma de a Psicologia inserir a foto-grafia em pesquisas qualitativas tom-la como resgate da me-mria, tal como nos apresentou Ecla Bosi (1983), em seu trabalho Memria e sociedade: lembranas de velhos, quando transcreveu os

    1. As descries das oficinas podem ser consultadas em e .

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    depoimentos de oito pessoas com mais de 70 anos e os convidou a mostrarem suas fotografias guardadas e a contar suas lembranas mais antigas.

    Brando (2005), baseada em Halbwachs (2004), destaca a im-portncia do trabalho com grupos de idosos e com a memria. Acentua, em sua argumentao, que o grupo cria um espao de en-contro, uma comunidade afetiva, capaz de fazer frente ao isola-mento e de recriar uma perspectiva de futuro a partir da construo de um tempo coletivo que se forma com o compartilhamento dos tempos individuais.

    Para essa autora, o resgate de documentos, dentre os quais a fotografia, uma ferramenta valiosssima para a evocao de lem-branas e afetos que possibilitaro o compartilhamento das expe-rincias e a prospeco de um futuro realizada coletivamente.

    Nas palavras da prpria autora:

    Podemos notar, no decorrer dos encontros, um fio que percorre as histrias individuais, ligando-as a um contexto social passado/presente e que se projeta para o futuro. Assim, os grupos, for-mados aleatoriamente, tecem uma nova trama de (re)significados. Essa perspectiva de futuro surge com a realizao do trabalho documental os livros de memria brochuras que contm re-latos escritos, fotos, receitas, canes etc. que transforma os par-ticipantes em narradores e produtores culturais trazendo para a comunidade essa histria vista de dentro. (Brando, 2005, p.161-2)

    Ainda que a fotografia seja utilizada no campo de atuao e in-terveno da Psicologia, so poucas as publicaes cientficas sobre o assunto, talvez porque a incluso da fotografia nas pesquisas dessa rea no tenha sido consolidada. Parecem ainda mais raros os estudos que relacionam a fotografia expresso e produo de sub-jetividade, em vez de tom-la simplesmente como ilustrao de um texto ou como uma fonte documental para pesquisas.

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    O uso da autoria e releitura da fotografia, como um recurso de resgate e construo da memria, abre tanto a possibilidade de res-significao da prpria histria, quanto a da percepo de um tempo mais imediato, o presente. Os pequenos detalhes do coti-diano, que muitas vezes passam despercebidos, podem ser notados e ganhar sentido, ampliando e tornando mais refinado o processo de descrio e de conhecimento do mundo (Pinheiro, 2000).

    Neste livro, a fotografia foi tomada como ferramenta do sujeito enquanto agente de transformao, como mediao entre o homem e seu mundo, como instrumento de construo de percepes e de imagens, de produo e veiculao de sentidos, de vislumbramento e prospeco, de mobilizao de sentimentos e de inscrio do indi-vduo no espao e no tempo.

    Mediada pela fotografia colocamos em evidncia a relao do idoso com o tempo, porm, enfocamos o tempo que se coloca adiante, que desponta no horizonte da vida. A fotografia aqui foi explorada como suporte, no de uma memria retroativa, produtora de um tempo passado, mas como sustentculo de construo do presente voltado, prospectivamente, para o futuro.

    Tal propsito soa como paradoxal ou at contraditrio, uma vez que prope a reverso dos sensos estabelecidos e bem sedimentados sobre a velhice e a fotografia. comum se entender a fotografia como registro ou congelamento de uma cena, portanto, produzindo uma sensao bsica de algo que pertence ao passado, como salienta Barthes (1984).

    Da mesma forma, comum associar o idoso ao passado, com uma vida sustentada, sobretudo, por recordaes de um tempo j vivido, ainda que o passado no seja visto como algo petrificado, mas em constante reconstruo quando reapropriado no presente (Bosi, 1983).

    exatamente a ruptura com o lugar-comum construdo para a velhice que queremos enfocar nesta pesquisa, investigando possibili-dades pouco exploradas: Como os mais velhos utilizam a fotografia? Como a gerao que no nasceu com uma mquina fotogrfica ou um celular na mo se apropria da fotografia? Que uso faz dela?

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    Como a fotografia, nas mos dos mais velhos, intervm no tempo e, especialmente, na prospeco da vida? Talvez resida na terceira idade o campo mais rico para se explorar a fotografia como disposi-tivo de produo criativa da subjetividade.

    Partindo dessas consideraes, nos propusemos a investigar os sentidos produzidos na relao do idoso com a fotografia e com o tempo, em especial o tempo prospectivo, aquele que da memria se projeta para o futuro.

    Como embasamento para as discusses aqui propostas utili-zamos os fundamentos epistemolgicos do construcionismo social, que norteou tanto as oficinas de fotografia com os idosos quanto as reflexes sobre narrativa, construo do sujeito e produo de sen-tidos atravs das imagens fotogrficas.

    Assim, sob a forma de uma apresentao do assunto, discor-remos sobre como a fotografia tem sido utilizada no trabalho com idosos, dentro da Psicologia. Apresentamos os trabalhos de alguns grupos que trabalham com idosos e fotografias, ainda que tais tra-balhos estejam voltados para um mbito mais prtico do que aca-dmico.

    Ainda, abordamos a fotografia como instrumento de recorte da realidade, registro de lembranas e, tambm, de prospeco. Refle-timos, ento, sobre a capacidade de revisitao e prospeco que a fotografia produz quando algum retorna aos seus lbuns e reme-mora as histrias disparadas pelas fotografias.

    Tecemos tambm algumas consideraes sobre o tempo e o es-pao relacionados aos elementos-base desta investigao: a foto-grafia, a memria, a narrativa e a velhice; e nos aprofundamos nos conceitos de studium e punctum elaborados por Barthes (1984).

    No captulo dedicado ao construcionismo social, apontamos as origens desta linha de pensamento e suas principais bases episte-molgicas. Discorremos tambm sobre o conceito de produo de sentido para, finalmente, dialogarmos sobre o papel da fotografia nesta produo.

    Algumas propostas de oficinas de fotografia com idosos so apresentadas em seguida, ressaltando as produes de sentido que

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    se desdobram a partir do contato dos participantes com a foto-grafia. As produes de sentido sobre o tempo e os atravessamentos que o tempo e o espao produziram durante as oficinas so discu-tidas mais detalhadamente do que as outras produes de sentido.

    O ltimo captulo diz respeito s consideraes finais do tra-balho, momento em que refletimos sobre os dilogos possveis da fotografia com a velhice: o movimento, a viagem, elementos que pungem, que mobilizam e algumas inverses de esteretipos. Bus-camos uma nova forma de olhar a relao do idoso com a fotografia e com o ato fotogrfico que rompa com esteretipos sobre a foto-grafia, comumente tomada como um recurso evocador do passado e da esttica, mas que possibilita vivacidade, juventude e pros-peco quando trabalhada em oficinas temticas sobre o cotidiano e a prospeco.

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  • A FOTOGRAFIA E SUAS INTERSECES COM A MEMRIA

    Vivemos em um mundo cheio de cores, texturas, sons e aromas que constantemente nos trazem informaes enquanto cami-nhamos pela cidade. Infelizmente, tal como nos adverte Ackerman (1992), nem sempre nos damos o tempo necessrio para apre-ciarmos todos os estmulos que nos chegam aos sentidos.

    Estamos to atarefados com nossos compromissos e afazeres que s prestamos ateno a estmulos que, de to exagerados, no podem ser ignorados. O homem, sem tempo ou interesse para perceber o mundo, tem como nica alternativa o silncio, o falar consigo mesmo, com os prprios botes. Entretanto, fora de re-domas, o mundo se apresenta como infinitas possibilidades de dilogo.

    Para que haja comunicao, preciso que uma mensagem seja transmitida e, conseguintemente, seja compreendida. A comuni-cao carece do grupo, do social, de ao menos dois: um transmissor e um receptor da mensagem. De acordo com Blikstein (1983), os signos presentes no processo comunicativo so sempre construdos por uma comunidade lingustica e um contexto sociocultural.

    A forma de comunicao que a sociedade atual preza, alm da fala e da escrita, a visualidade. Dentre todos os sentidos, o mais estimulado a viso. Quando diminumos, por algum motivo, o

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    ritmo da nossa rotina frentica, para ver algo que nos chama a ateno. Estamos fartos de ouvir o barulho da cidade e sentir os maus cheiros da poluio, mas ainda nos damos ao luxo da viso e, assim, somos seduzidos pelas imagens.

    Alm da disseminao da imagem na sociedade contempo-rnea, existem, ainda, traos evolutivos fortes que tornam a viso um sentido especial para o ser humano. Ackerman (1992) nos re-lembra que o homem possui os olhos na parte frontal do rosto e, assim como outros mamferos, essa configurao delata o homem como predador.

    O predador se beneficia de olhos que, por sua posio frontal, lhe do a percepo exata de profundidade para focalizar a caa e determinar sua distncia. A presa, com melhor enfoque lateral, pode analisar o ambiente e escolher sua rota de fuga. Esse alto valor para a sobrevivncia, que a viso provia aos nossos ancestrais, se mantm hoje nas visadas das novas presas, ou melhor, das sereias que nos encantam visualmente no mundo do consumo. Diferente-mente do Ulisses antigo, que se encantava pelo som, os Ulisses da atualidade se encantam pela imagem.

    A plasticidade impregnada nas vitrines, nas fachadas dos pr-dios, nos cartazes, nos brinquedos cada vez mais luminosos e colo-ridos, nas estampas das roupas, enfim, no dia a dia dos cidados, nos acostuma a uma constncia de imagens que nos transmitem possibilidades de consumo. Virilio (1996) e Debord (1997) des-tacam, na sociedade contempornea, as cineses e a espetaculari-zao da realidade, nas quais a imagem deixa de ser a representao de algo para ganhar autonomia e uma eficcia capaz de sobrepujar a razo reflexiva.

    Debord (1997) assinala que a sociedade se abstraiu de tal forma que, atualmente, se prefere a imagem coisa, a cpia ao original. Nessa linha de raciocnio, podemos dizer que mais seguro lutar a guerra no videogame, encenando a vida, do que se arriscar na reali-dade. Estamos na era digital em que temos a vantagem de atra-vessar fronteiras sem sair da frente do computador, ter amigos no Facebook, criar um avatar e explorar uma vida paralela no Second

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    Life. No cerne da era digital est a imagem, possibilitando novas formas de virtualizao e transgresso da realidade.

    A virtualizao de si, mediante a projeo da prpria imagem, no to recente quanto parece. A pintura de imagens humanas pode ser tomada como forma primeva de virtualizao. Os reflexos do corpo em espelhos tambm podem ser tomados como experin-cias inaugurais de descolamentos da imagem. Alis, para alguns povos, tais virtualizaes do corpo causavam certo temor, porque eram entendidas como aprisionamento da alma ou como usurpao da essncia do sujeito (Sontag, 2004).

    O surgimento da fotografia trouxe tona, com todo o vigor, a preocupao com a experincia da desencarnao, ou seja, com o descolamento da imagem, do corpo. A semelhana da fotografia com o objeto fotografado causava certo incmodo, porque era per-cebida como um ato de sequestro. Para minimizar esse sentimento de expropriao, causado pelo realismo da fotografia, ela passou a ser associada pintura, portanto vista como uma representao e no como um decalque da realidade (idem, 2004).

    Aos poucos, o deslumbramento pela veracidade da represen-tao na fotografia foi sendo acompanhado pela sensao de perda, o que fez surgir um sentimento oposto ao do sequestro: o de eterni-zao. A imagem fotogrfica passou a ser vista como algo que po-deria preservar o objeto mesmo aps seu desaparecimento.

    A maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem fotografados, um toque de pthos. [...] Enquanto uma quantidade incalculvel de formas de vida biolgicas e sociais destruda em curto espao de tempo, um aparelho se torna aces-svel para registrar aquilo que est desaparecendo. (Ibidem, p.26)

    Desvencilhando-se dos temores iniciais, a fotografia foi, aos poucos, ganhando mais espaos e funes at ser celebrada como uma das grandes maravilhas da humanidade, sobretudo, por se constituir como um artefato valiosssimo na luta do homem para dominar o tempo e o espao, para avanar na produo da realidade

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    virtual. A foto transporta a imagem de um lugar a outro, vencendo distncias, da mesma forma que permite o deslocamento da imagem no tempo. Como tecnologia de virtualizao do real, a mquina fo-togrfica pode tornar-se o instrumento de autoria da criao de rea-lidades imagticas.

    Atualmente, a fotografia e a mquina fotogrfica so elementos muito comuns no cotidiano. Com uma grande variao de modelos e recursos tcnicos, hoje podemos encontrar mquinas adequadas s pretenses e demandas de qualquer consumidor. Com a m-quina fotogrfica em mos, esta pode tornar-se um instrumento importante de interveno do homem no tempo e no espao (Gum-brecht, 1998).

    Atravs das cmeras, as experincias se tornam mais palp-veis, ganham forma. Apresentar as fotografias de uma viagem, por exemplo, trazer aos outros algo que lhes est a boa distncia; contar uma verso nica dos lugares e pessoas encontradas, das ex-perincias vividas e, inclusive, pensar nas viagens que esto por vir. Fotografar guardar para si um momento e sempre poder revisit--lo. tambm olhar, prestar ateno nos detalhes, procurar ele-mentos esteticamente interessantes, selecionar, experimentar, testar o olhar em vrios planos.

    Todas as peculiaridades inerentes ao ato fotogrfico fazem com que o autor se aproxime do ambiente ou do objeto fotografado, diri gindo-lhe um olhar diferenciado, interpretativo, subjetivo e emotivo. No existe neutralidade no olhar daquele que procura um alvo para o seu clique e, da mesma forma, no h como passar inal-terado pela tomada de uma fotografia (Justo & Yazlle, 2008). Tal como na pesquisa qualitativa, ao mesmo tempo em que o fotgrafo interfere no objeto fotografado, o objeto modifica algo no autor.

    Atualmente no conseguimos prescindir dessa traduo da vida em imagens, talvez porque apenas viver no basta. Da vida precisamos ter muitos registros e, para tanto, temos que recorrer a suportes materiais de auxlio memria que surgem a partir do sentimento de que no h memria espontnea, por isso preciso criar arquivos, manter aniversrios, organizar celebraes (Lopes,

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    2008, p.85). A vida capturada pela fotografia torna-se uma coleo de retratos.

    Apesar de a fotografia poder se transformar em colees em-poeiradas no ba, existem outras possibilidades a serem exploradas no contato com tais imagens. s fotografias damos sentidos e por elas somos mobilizados. Quando, casualmente, nos deparamos com a caixinha de fotografias dentro do guarda-roupa, o tempo congela e, em seguida, retrocede. Voltamos infncia, casa dos pais, s brin-cadeiras, comida da av, ao primeiro namorado. A fotografia, nos resgatando do esquecimento, incita memrias e sentimentos (Justo, 2009).

    Se, por um lado, a imagem veicula a mercadoria (Bucci, 2005), pois a embalagem pode ser mais atraente do que o produto, por outro, h autores insistindo na necessidade de a vida ir alm do es-petculo e das aparncias. Kehl (2005) explica que o poder das ima-gens est tanto na espetacularizao quanto na mobilizao dos sentimentos.

    A imagem faz a magia do aparecimento e desaparecimento (Justo, 2008) e os propagandistas e polticos a utilizam para moldar opinies. Com a fotografia estampada na matria, um poltico, por exemplo, pode ser beneficiado ou no. Ele pode aparecer despen-teado, com a barba por fazer, curvado e retrado ou, pelo contrrio, banhado por uma luz clara, majestoso, olhando para a frente e exi-bindo um belo sorriso.

    Alm das opinies pblicas formadas pela veiculao de certas imagens, o aparecimento/desaparecimento tambm existe em es-calas menores e mais cotidianas, quando escolhemos as imagens para o lbum de casamento, por exemplo. Nesse momento, sele-cionado o que ficou bom e deve aparecer e o que deve ser descar-tado.

    O ato de selecionar ou descartar imagens para os lbuns no se refere apenas visibilidade que queremos dar a uma ou outra pessoa, mas tambm aos sentimentos que elas despertam. Fazer um lbum do casamento, do batizado do primeiro filho, das via-gens praia afirmar que esses momentos so importantes e signi-

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    ficativos (Justo, 2008). A mobilizao afetiva o outro elemento que confere poder imagem:

    As imagens so capazes de suscitar aos poucos quase todas as emoes e paixes humanas, positivas e negativas, todas as emo-es e paixes que as coisas ou pessoas reais que elas representam poderiam suscitar: amor, dio, desejo, crena, prazer, dor, alegria, tristeza, esperana, nostalgia etc. (Wolff, 2005, p.20)

    As representaes nas fotografias, to reais, nos incitam a rasg-las em momentos de raiva ou beij-las com saudade, da mesma forma que os peregrinos cultuam as imagens de santos como se fossem a prpria entidade religiosa.

    Se quisermos tocar, emocionar, provocar uma reao imediata, no controlada, de admirao, de identificao, de atrao, ou, ao contrrio, de medo, de compaixo, de repulsa, nada vale tanto quanto uma imagem. Um artigo sobre a fome que tenha causado cem mil mortos na frica uma informao, uma estatstica, inte-ressa pessoa, mas no a deixa indignada. Uma foto de uma nica criana africana morrendo de fome no informa, no diz nada, no explica nada, mas pode provocar piedade, indignao, revolta. (Idem, p.26)

    Existe certa incompletude na fotografia que nos permite nela projetar sentimentos. Wolff (2005) aponta que essas lacunas da fo-tografia aparecem atravs de algumas caractersticas que lhes so inerentes, tais como a irracionalidade, a afirmao, a imperativi-dade e a presentificao do tempo.

    Segundo esse mesmo autor, a fotografia consegue evidenciar o concreto e o bvio. Qualquer conceito ou abstrao mais difcil ser claramente representado pela fotografia. Seguindo essa linha de pensamento, podemos afirmar que mais fcil apontarmos em uma fotografia uma pessoa ou um objeto do que um conceito. Por exemplo, ao tentarmos mostrar, a partir de uma nica fotografia, a

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    dor, a morte, a intolerncia, a guerra ou a humanidade, as leituras podem ser muito mais diversificadas e ambguas do que se fosse a imagem de uma pessoa famosa. Tais conceitos poderiam ser mais bem explicitados a partir de conjuntos de fotografias, como exposi-es temticas, mas o principal efeito da fotografia colocado pelo autor apresentar a concretude.

    Outra caracterstica da fotografia a obrigatoriedade da afir-mao. Wolff (2005) assinala que podemos afirmar que o que est fotografado um cachimbo, mas nunca que no um cachimbo, como fez Magritte em um de seus famosos quadros, ao colocar a frase Ceci nest pas une pipe, como legenda de um cachimbo pintado na tela. Se o autor da fotografia quiser explicitar que um cachimbo no est ali, deve diz-lo com palavras, como fez Ma-gritte em seu quadro, porque a fotografia apenas afirma o que nela est representado. Alm de afirmao, a fotografia indicativo: no existe se ou talvez, apenas .

    A ltima lacuna deixada pela fotografia concerne ao tempo. Primeiro, a fotografia s mostra o passado, algo que aconteceu e foi registrado, um fragmento do tempo e da realidade. No podemos fotografar o futuro. A fotografia geralmente representa um retorno, nos incita rememorao e ao passado. Paradoxalmente, no po-demos fotografar o futuro, mas tampouco o passado. A fotografia, mesmo atada ao passado, inevitavelmente tem o poder de presenti-ficar. Olhar fotografias reavivar o passado tornando-o presente. buscar na lembrana as pessoas queridas, os momentos marcantes e novamente traz-los nossa presena, podendo inclusive nos im-pelir a pensar prospectivamente.

    Contudo, para que acontea essa sensibilizao, necessrio um olhar diferenciado da simples busca pela visibilidade, preciso contemplao. A fotografia revisitada ou a cena a ser fotografada precisam de certo tempo para serem decifradas. Segundo Novaes (2005), o tempo da vidncia que revela a evidncia nas entrelinhas da imagem. Apenas com a contemplao, com o desprendimento de um tempo que no estamos acostumados a ceder para a apreciao das coisas, que as ideias contidas na fotografia so desveladas.

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    Sem uma apreciao prolongada, a fotografia no ganha sentido e nada mobiliza, pois a imagem apartada da reflexo torna-se apenas decalque do mundo.

    O esforo do pensamento consiste, pois, em decifrar imagens, en-tender o mundo a partir delas. Traduzir o enigma das imagens uma forma de reconciliao do esprito com os sentidos. Nesse processo, cada imagem quer tornar-se palavra, logos; e cada pa-lavra, imagem. (Novaes, 2005, p.12-3)

    Com a devida contemplao, a fotografia pode expandir-se de sua materialidade e das significaes explcitas e tornar-se um dis-positivo eliciador da memria e da fala.

    Diante de uma fotografia, a imagem se transforma em palavra: gostamos de contar a histria dos momentos nela registrados, dizer como foi a experincia de autoria no recorte daquela imagem. Uma fotografia sempre carrega consigo uma histria a ser contada. eli-ciadora da palavra que, por sua vez, tambm impulsiona a memria, pois se temos o que dizer sobre a imagem porque nos lembramos da situao retratada ou de algo a ela relacionado (Justo, 2009).

    Por meio da lembrana, nos situamos no mundo e sabemos quem somos. A memria funda a identidade, pois o que somos e o que o outro reconhece em ns dado por aquilo que lembramos, pelas vivncias em conjunto, pelas escolhas ao longo da vida e, ainda, sabemos quem somos porque lembramos nossa origem, nosso nome. A memria, portanto, no existe fora de um grupo que a reafirme, que sirva de apoio para as lembranas.

    Para que nossa memria se auxilie com a dos outros, no basta que eles nos tragam seus depoimentos: necessrio ainda que ela no tenha cessado de concordar com suas memrias e que haja bas-tante pontos de contato entre uma e as outras para que a lem-brana que nos recordam possa ser reconstruda sobre um fundamento comum. (Halbwachs, 2004, p.38)

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    Ilustrando esse pensamento existe o ditado: recordar viver e eu mesmo estou vivo porque me recordo de voc. A memria um processo to dinmico e coletivo que algumas lembranas podem se confundir com as lembranas dos outros, previamente narradas. Existem momentos para ns esquecidos, mas ainda vivos na memria de outros. Nossos interlocutores nos lembram de epi-sdios que esquecemos, como acontece quando um adulto relata para uma criana cenas de seu nascimento ou de sua infncia.

    A fotografia atua na construo da memria, fixando uma imagem como sua extenso e suporte. Organizar e fotografar eventos em nossas vidas so uma maneira de assegurar uma memria cole-tiva, salvando a experincia do esquecimento. A memria vida, sempre carregada por grupos vivos, em permanente evoluo, aberta dialtica lembrana/esquecimento (Nora, 1993, apud Lopes, 2008, p.85).

    Este , portanto, um instrumento interessante para a criao de registros, tanto individuais como coletivos. Quando nos propomos a fotografar os momentos que sero eternizados no ato fotogrfico, revisitamos os detalhes do dia a dia que, sob novo foco, nos sensibi-lizam e ganham sentido. O ato fotogrfico nos impele contem-plao e reflexo sobre o sentido do mundo ao nosso redor, rompe com a velocidade cotidiana e abre possibilidades de descrev-lo por meio de imagens.

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  • O TEMPO E SEUS DESDOBRAMENTOS

    Kronos e Kairs: apontamentos sobre o tempo e a velhice

    A vivncia humana est fortemente marcada pelo tempo. Ora tentamos mold-lo, captur-lo, eterniz-lo e outras vezes nos em-penhamos em dissolver sua influncia, contorn-lo.

    A mitologia e a filosofia gregas criaram duas figuras para dife-renciar a presena do tempo entre os humanos: Kronos e Kairs. O primeiro diz respeito ao tempo cclico demarcado pelas estaes do ano, pelos dias e noites, por horas, minutos e segundos. Kronos representado como o tempo que transcorre independentemente do que est acontecendo (Foley, 2010).

    Um tempo que pode ser capturado, cronometrado, fragmen-tado em unidades mnimas. Um tempo objetivo que almejamos incessantemente moldar, seja capturando e eternizando lembranas, recuperando o tempo perdido, desejando que passe mais devagar ou mais rpido.

    Ao ser vivido, o tempo objetivo se revela, subjetiviza, expande, intensifica ou at mesmo se dilui (Garca, 2006) e passa a ser irre-gular, fazendo emergir Kairs. Kairs o tempo apreendido atravs dos momentos e que, diferentemente de Kronos, no flui indepen-

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    dentemente do sujeito (Foley, 2010). Est atado memria, lem-brana, narrativa e a tudo que diz respeito s circunstncias significativas de cada indivduo.

    Kairs como termo ou conceito foi utilizado primeiramente pela medicina e pela retrica. Na retrica relacionava-se ao discurso im-provisado e imprevisibilidade da reao da plateia. Na medicina, dizia respeito a adaptar-se s condies de cada paciente, excluindo a universalidade dos tratamentos e medicamentos. O papel do m-dico era o de retomar o equilbrio e, para tanto, deveria conhecer a natureza humana, a compleio de cada um, a doena, a atmosfera, as particularidades do cu e de cada regio, os hbitos do doente, seu gnero de vida, seus sonhos, a insnia, o movimento das mos, os suores, lgrimas, tosses, respirao, o pulso (Santos, 2001, p.251).

    Interpretando todos esses aspectos, o mdico seria ento capaz de saber o momento oportuno ou favorvel para sua interveno. Desse ponto de vista, no havia um modo de agir ou remdio abso-luto, o momento para agir era fugaz, a ao no deveria ser tomada antes nem depois, mas no momento oportuno, Kairs. O mdico deveria aprender a captar o momento oportuno para realizar a tera-putica (Santos, 2001).

    Podemos dizer que o cerne da subjetivao processar a trans-formao de Kronos em Kairs, ou seja, agir sobre o tempo, fazer a passagem do tempo objetivo para o tempo vivido. A prpria vida pode ser entendida como uma constante ao de Kairs, na qual o sujeito procura construir espacialidades, habit-las e, com isso, operar na sua trajetria de vida, edificar sua histria, enfim, agir no tempo.

    Assim como a infncia, a velhice no uma fase da vida biolo-gicamente determinada, mas sim construda socialmente. De acordo com Ttora (2008), existe um modelo universal para a velhice que coloca o velho como um ser decrpito, assujeitado, desvalorizado. No toa que os idosos so vistos como grandes representantes do tempo e do espao, j que aos idosos se imputam as chamadas tradies, hbitos e costumes locais que lhes so atribudos como coisas bastante arraigadas.

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    Indubitavelmente, nossa cultura elege os idosos como smbolo maior do tempo. Se percorrermos as imagens alusivas ao tempo, se-guramente vamos encontrar muitas figuras de pessoas idosas, pro-vavelmente com rugas profundas e outros sinais convencionados na nossa cultura como marcas inevitveis do tempo.

    No Ocidente, as representaes da velhice se transformaram ao longo da histria, partindo das imagens e ideias que retratavam os idosos como seres decadentes e inteis para depois represent--los como sujeitos ativos na sociedade de consumo (Correa, 2007).

    Uma das faces da velhice, apontada por Beauvoir (1990), era a do silncio, do abandono e do descaso da sociedade para com o idoso. O apelo dessa autora era em prol da quebra do silncio para dar voz e visibilidade velhice. Mas a velhice, hoje, no exata-mente a mesma da qual falava Beauvoir em 1970.

    Com o envelhecimento da populao, em ritmo acentuado na Europa e tambm no Brasil nas ltimas dcadas, novas nomencla-turas e espaos sociais se abriram aos velhos. Hoje uma parcela sig-nificativa daqueles que antes eram tidos como velhos decrpitos definida como sendo de atores sociais, participantes e ativos, e cha-mada de melhor idade, terceira idade, maturidade, tendo ao seu dispor grupos, clubes, projetos e, claro, um mercado de con-sumo exclusivo de roupas, de transporte, com pagamentos e em-prstimos facilitados.

    Outrora o velho no recebia emprstimos porque acreditava-se que no poderia pagar as prestaes a perder de vista, mas atual-mente, com esse novo mercado emergente, tem o emprstimo ga-rantido. A inveno da terceira idade foi possvel graas forte incitao econmica gerada no mercado capitalista frente ao poten-cial de consumo dessa populao (Correa, 2007, p.34).

    O aumento da proporo de idosos na pirmide populacional e as mudanas econmicas com relao a essa faixa etria trouxeram tambm transformaes sociais significativas. A velhice, especial-mente essa recortada como terceira idade, vista de forma dife-renciada, no mais como um segmento de excludos da sociedade, mas como uma classe ativa de consumidores que podem movi-

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    mentar o capital, por exemplo, no perodo de baixa temporada do turismo.

    So os aposentados que tm tempo livre para viajar quando a maioria das pessoas est atada s obrigaes relativas ao trabalho. A velhice tornada a fase destinada realizao dos sonhos, ao apro-veitamento pleno do lazer. nesse momento de sensvel aumento da proporo de sexagenrios e de acirramento da competitividade do mercado, com tentativas de abertura de novas frentes de consumo, que surge a chamada terceira idade.

    Assim como a criao da adolescncia, como fase intermediria entre a infncia e o mundo adulto, no sculo XIX, os conceitos de meia-idade, terceira idade e aposentadoria ativa emergem inter-postos etapa adulta e ao envelhecimento, em meados do sculo XX. (Correa, 2007, p.33)

    Atualmente, a passagem da fase adulta para a ancianidade no a aposentadoria, mas a terceira idade. Com essa nomenclatura busca-se construir uma imagem revitalizadora da velhice, como fase de realizaes e de satisfao pessoal, mas tambm construir a imagem de pessoas ainda teis sociedade. Os atributos da ter-ceira idade, [...] esto inscritos no esprito jovem, na feliz idade, na busca pela auto-realizao, no corpo saudvel, produtivo e ativo (idem, p.136), marcando uma diferenciao e oposio em relao ao termo velho, definido como decrepitude, degenerao, doena, proximidade morte, asilamento e isolamento tanto familiar quanto social.

    Neste trabalho tomamos o idoso como um ser ativo capaz de agir sobre o tempo e o espao, de produzir vida, de gerar sentidos, de construir novas leituras do mundo em que vive, mas, conforme lembra Ttora (2008), no excluindo da vida a morte ou a doena.

    Pretendemos operar com uma concepo de velhice que com-porte diferentes possibilidades para o envelhecer. Por isso, no fi-zemos distino para o uso das palavras velho, idoso, terceira idade. Segundo ainda Ttora (2008), no se trata de seguir um

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    modelo ou algo que est previamente estabelecido, mas de ir alm da crtica ao que est posto e pensar tal como um artista, aquele que est em um processo contnuo de criao de leituras do mundo.

    Envelhecer pode ser entendido como prticas artsticas de imprimir um estilo a si e ao mundo (Ttora, 2008, p.35). No h apenas um envelhecer, seja ele o da invalidez e decrepitude ou o da eterna juventude e vitalidade tal como se pretende retratar a ter-ceira idade ou a melhor idade.

    Reafirmamos que, para ns, o essencial da velhice, ainda que seja objeto de depreciao, so as marcas do tempo, a forte inscrio do idoso no tempo e, mais ainda, a possibilidade de se explorar temporalidades esmaecidas, como a do futuro, cujo choque com as foras do passado, no presente, essencial para a apario da linha diagonal no tempo que somente pode ser criada pelo sujeito com o pensamento e a linguagem (Arendt, 1972, p.36-40).

    A seguir discorreremos sobre o desdobramento da vivncia subjetiva do tempo relacionado narrativa e fotografia. As dis-cusses sobre o tempo pertinentes presente investigao no se encerram neste captulo. Mais adiante analisamos a maneira como o tempo atravessou as oficinas para, finalmente, esboarmos al-gumas consideraes a respeito da memria desdobrando-se no apenas ao passado, mas ao futuro e prospeco.

    O tempo humano da narrativa

    No tomo II de Tiempo y narracin, Ricoeur (1987b) discorre sobre a diferena entre o tempo da narrativa e o tempo narrado.

    O ato de narrar implica uma sucesso de momentos significa-tivos que se destacam naquele momento, naquela ocasio (Kairs). O tempo narrado remete-se Kairs, temporalidade da existncia humana, sequncia de acontecimentos que constituem a histria de uma vida. E acrescenta que a vida em si no uma narrativa, mas algo que se vive. Isto quer dizer que a narrativa nunca a coisa em si, mas um como se, uma metfora das coisas vividas.

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    Toda narrativa diz respeito a um processo de vida e, medida que a narrativa se desenvolve, so escolhidos trechos e enfoques para relatar tal processo. Algumas coisas so escolhidas para ser contadas, outras so omitidas. A narrativa, tal como a fotografia, um recorte da realidade, neste caso, da vida narrada.

    O tempo da narrativa, por outro lado, aquele presente no mo-mento em que ela se desenvolve. o tempo cronolgico (Kronos) transcorrido durante o ato de narrar. No o tempo empregado em criar a obra, porque uma histria se transforma cada vez que contada. Da mesma forma que as histrias de pescadores, cada um acrescenta suas impresses narrativa, suas prprias vivn-cias, aumentando ou diminuindo o tempo da narrativa cada vez que contada.

    Alguns trechos so narrados com mais detalhes, outros acon-tecimentos podem ser resumidos, contados antes, retomados ou completamente suprimidos. O narrador, como um artista, vai mol-dando a narrativa como se lhe imprimisse seu estilo, seu jeito de contar, sua verso da histria. E esse conto pode ser completamente diferente na prxima vez que for narrado. O tempo da narrativa varia de acordo com o narrador, com o contexto, as retrospectivas, as histrias que levam a outras histrias etc.

    Ricoeur (1987b) aponta que o tempo criado pela narrativa um tempo potico. O narrar no apenas a arte de contar a vida, mas tambm a arte de criar e estruturar a maneira como experi-mentamos o passar do tempo. A criao temporal propiciada pela narrativa o eixo de estruturao da vivncia do tempo, que se d entre o tempo empregado no ato de narrar e o tempo narrado.

    O tempo cronolgico se transforma em tempo humano quando se relaciona produo de sentidos sobre a nossa histria. Vivir es vivir en el tiempo, y vivir es tener historia (Garca, 2006, p.110). A histria, imersa no tempo, quando dita deixa de ser apenas um acontecimento e se torna histria.

    Pelo ato de narrar, o tempo desdobrado em tramas e causos que produzem sentidos medida que descrevem as experincias temporais e por elas transitam (Ricoeur, 1987a). No momento em

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    que se narra um acontecimento, o tempo que supostamente deveria ser linear perde tal caracterstica e se desdobra em mltiplas possi-bilidades.

    Na narrativa no existem regras para a sucesso de eventos que encadeiam uma histria, o tempo pode ser invertido, distorcido, emparelhado. O que aconteceu antes pode ser dito depois e, assim, pode-se modificar a sequncia temporal da histria (Garca, 2006).

    Toda narrativa um discorrer temporal, um passeio pelo tempo dos acontecimentos que se quer representar quele que nos ouve. O mundo narrado e os seus decorrentes sentidos so produes temporais.

    De acordo com Paul Ricoeur (1987b), o ato de traduzir o mundo em palavras um modo privilegiado de reconfigurar nossa expe-rincia temporal, que , a princpio, sem forma, confusa e muda.

    A narrativa faz com que os diversos acontecimentos envol-vidos na trama se integrem histria. Os acontecimentos apenas so significativos quando esto de alguma forma atrelados pas-sagem do tempo, histria (Garca, 2006).

    O tempo por ns percebido e medido medida que passa, contudo, o movimento que nos permite vivenciar a passagem do tempo no exterior. o prprio sujeito ou alma, como coloca Ri-coeur (1987a), quem compara os tempos breves com os duradouros, o transitar e o permanecer. De acordo com esse autor, atravs do homem o tempo ganha materialidade e passa do no-ser ao ser.

    Ricoeur (1987a), apoiando-se na afirmao de santo Agos-tinho a respeito de o tempo estar sempre relacionado ao presente,1 formula que o tempo atrelado narrativa implica a memria, a pre-viso e a espera. As previses sobre o futuro so esperadas como se fossem vindouras, nos dando uma pr-percepo do que est por

    1. Garca (2006) explica as reflexes de santo Agostinho sobre o tempo dizendo que o futuro ainda no , o passado j no e o presente nunca permanece, fugaz. Podemos nos comprometer a fazer algo amanh ou rememorar uma de-ciso tomada ontem, mas a nossa vivncia desses momentos se d durante a passagem do tempo, no presente.

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    vir, o que aproxima o prever ao recordar. memria desti-namos o passado e espera confiamos o futuro.

    A espera e a memria deixam uma impresso no sujeito, fa-zendo-o experimentar o tempo como uma grande expectativa do futuro ou uma grande memria do passado. Essa impresso cau-sada pelo tempo s existe, contudo, quando o sujeito atua sobre ela, quando espera, relembra e presta ateno.

    Atravs do narrar, o presente se torna o lugar em que se rea-lizam projetos do passado ao mesmo tempo em que determina pos-sveis projetos a serem realizados no futuro (White, 1992, apud Garca, 2006).

    O tempo atravessa a narrativa na medida em que favorece uma percepo global da histria. O desencadeamento da narrativa nos d pistas sobre o que aconteceu aos personagens nela envolvidos; o que pode acontecer ou, ainda, o que teria acontecido (ou estaria acontecendo) se uma deciso diferente tivesse sido tomada.

    Na narrativa, o tempo pode situar uma ao na histria ou, muito pelo contrrio, a narrativa pode desfazer-se do tempo e no ter uma referncia temporal especfica, podendo ser atemporal.

    A flexibilidade do tempo na narrativa acontece porque esta pode ser organizada de diversas formas, como uma montagem ou bricolagem. Dessa forma, os tempos do relato podem reorganizar o tempo do que est sendo contado sem seguir uma lgica temporal cronolgica. Pode-se avanar a narrativa mediante a recordao do passado ou antecipar-se o futuro. Garca (2006) diz que condio do tempo a durao, mas a narrativa trata essa durao de forma diferenciada, pois pode condensar ou dilatar o tempo. Ao narrar acontecimentos podemos nos delongar ou apressar alguns mo-mentos.

    A narrativa comporta inmeras possibilidades de relao com o tempo: a no linearidade, o mesclar presente com a rememorao do passado, avanar e retardar o tempo, prever, fundir experincias de diversos personagens, fazer do futuro um desejo, promessa ou esperana. A narrativa pode tratar do tempo perdido, do tempo re-

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    cobrado, da reiterao temporal dos acontecimentos e das anacro-nias. Como aponta Garca (2006), essa lista pode ser interminvel.

    O golpe de corte do ato fotogrfico

    Na medida em que a fotografia elaborada, alguns objetos so escolhidos e outros so deixados de fora do enquadramento, o que faz do ato fotogrfico necessariamente um recorte. Atravs do olhar do fotgrafo, a realidade mostrada por partes, nunca em sua tota-lidade. O espao selecionado e, da mesma forma, o tempo.

    A fotografia congela o tempo, aprisiona-o em um objeto pal-pvel tornando-o um instante nico e pontual. Atado imagem tambm est o espao, apresentado todo de uma nica vez, recor-tado, selecionado, transformado segundo os caprichos estticos do fotgrafo.

    O espao fotogrfico selecionado dentre toda a informao visual presente. No h como preencher aos poucos um espao vazio, como em uma pintura, mas sim retirar, suprimir o que no importa na cena. um ato irremedivel e que determina a imagem como um todo, criando o espao da fotografia e insinuando um es-pao que est fora, ausente, excludo do recorte e do olhar.

    O que foi deixado de fora, excludo da imagem, continua man-tendo uma relao de contiguidade com o espao selecionado. Sa-bemos que esteve ali no instante da tomada da fotografia, mas foi deixado de lado (Dubois, 1993). No podemos acessar o espao que est fora do enquadramento. Dele temos apenas indcios ou pistas: deslocamentos de personagens no campo da fotografia, jogos de olhar, elementos do cenrio.

    Provavelmente as fotografias amadoras, que captam registros do cotidiano, sejam as que nos deixam mais indcios do espao fora de campo. Capturadas com preocupao mais de registro do que de composio, deixam transparecer movimentos e objetos que expli-citam o que est alm do recorte, tal como aquelas fotografias com

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    cabeas cortadas, janelas entreabertas, espelhos que colocam vir-tualmente em cena o que est de fora (Justo, 2008).

    O ato fotogrfico executa um golpe de corte, criando o para-doxo de tornar esttica a ao para depois oferec-la ao olhar. O que est na imagem, dela no pode sair, est eternizado. O tempo capturado na fotografia torna-se, uma vez pego, um instante per-ptuo: uma frao de segundo, decerto, mas [...] destinada tambm a durar, mas no prprio estado em que ela foi capturada e cortada (Dubois, 1993, p.168).

    O congelamento da imagem interrompe o fluxo do tempo, pa-ralisa a vida entendida como mobilidade. Alis, nossa cultura, por um lado, vincula fortemente vida com tempo acelerado, com movi-mentao, com mobilidade e, por outro lado, associa fortemente imagens de imobilidade e paralisao com a morte.

    Outro aspecto curioso do relacionamento da morte com a imagem congelada que a morte socialmente representada como ausncia (enquanto a vida associada presena) e como falta; po-deramos entender tal ausncia e falta como ausncia e falta de forma, ou seja, com o desaparecimento ou ausncia da prpria imagem. O morto se esvai, se evapora, perde visibilidade, forma, presena.

    A figura do fantasma expressa bem esse fato. O fantasma re-presentado como aquele que carece de imagem, de uma forma, por isso mesmo to popular sua representao pela figura de um lenol branco se movimentando.

    A prtica de se colocar fotografias do morto em seu tmulo pode ser interpretada como uma tentativa de se manter aquela imagem que desapareceu para sempre. Nenhuma imagem apri-siona mais o tempo do que a foto de uma pessoa falecida. Morte e imagem se apresentam a numa relao deveras estreita.

    A fotografia, portanto, aprisiona o tempo, o faz parar. exata-mente a que ela revela seu carter mortfero. Ela mata o tempo! Dubois (1993) compara a fotografia com o olhar mortfero da Me-dusa, que petrifica o objeto no tempo e no espao. De um s golpe, o olhar da Medusa fixa, converte em esttua por ter sido visto.

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    Dessa forma, a foto do morto sobre o tmulo tanto significa que o tempo para ele se congelou, est parado, como tambm que os espaos se congelaram. Ele est ali trancafiado, mais do que um presidirio, num espao mnimo e tambm congelado, petrificado. Morrer significa sair do fluxo do tempo e do espao da mesma forma que, poderamos dizer, fotografar significa matar o tempo e o espao, det-los completamente. Talvez essa seja a fora e o en-canto maior do fotgrafo. To poderoso quanto a morte, o fot-grafo o ser capaz de dominar o tempo e o espao.

    O fotgrafo torna-se um intrprete da relao tempo/espao e sobre ela que, na verdade, ele atua. No somente interpretar e agir sobre o tempo ou sobre o espao, mas sobre ambos e ao faz-lo exerce esse poder absoluto, equivalente ao da morte. O fotgrafo detm o poder de interromper o fluxo da vida no tempo e no espao e det-la na imagem congelada.

    Poderamos tambm pensar que, ao produzir a paralisao do tempo e do espao, a fotografia, paradoxalmente, produz a morte da imagem ou do seu representado. Tomando a fotografia como o registro de uma imagem que representa um objeto ou que alude a um objeto, ao congelar a presena desse objeto num determinado tempo e espao, ela se desprendeu dele inteiramente e assumiu uma total autonomia.

    Retornando ao exemplo da fotografia da morte, aquela imagem j no se vincula mais ao morto, porque o morto j no possui mais aquela imagem, portanto, tornou-se algo completamente indepen-dente de seu representado, do seu referente. Da mesma forma, ao fotografar uma paisagem, o fotgrafo arranca dela uma imagem que no mais pertence a ela, mas prpria fotografia.

    A imagem liberta do objeto faz com que ela mesma se trans-forme em um objeto e ganhe autonomia. Autonomia de ser no mais apenas uma representao do que foi fotografado, mas a coisa em si. Torna-se livre das intervenes do tempo e espao que agiram sobre a cena fotografada, mas sujeita a amarelar, a apagar-se com o passar do tempo, a ser movida de um lado a outro, mostrada e exibida, como um objeto qualquer.

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    Studium, punctum: o tempo na experincia da fotografia

    Uma sugestiva discusso sobre as relaes do tempo com a fo-tografia feita por Barthes (1984) tendo como foco dois elementos intrnsecos fotografia: o studium e o punctum.

    Barthes (1984) nos chama a ateno para o quanto as imagens nos atraem. s vezes nos seduzem, nos fascinam, nos detm ou entorpecem, mas tambm produzem uma sensao quase indes-critvel que mais se assemelha a uma agitao do que ao entorpe-cimento.

    Essa agitao algo mais do que o simples interesse por uma fotografia bem-sucedida, admirao pela beleza do assunto retra-tado ou, ainda, o assombramento que o tema nos traz. Certas foto-grafias, segundo Barthes (1984), nos fazem vibrar tanto quanto uma aventura e, quando isso acontece, a fotografia torna-se viva ao mesmo tempo em que faz que nos sintamos vivos (tal qual uma aventura).

    Diante da mobilizao trazida pelas imagens, Barthes (1984) define alguns conceitos: studium e punctum.

    O studium o sentimento ou apreciao que est vinculado norma, cultura, que nos provoca interesse por determinados temas e, da mesma maneira, por determinadas fotografias.

    O autor descreve uma experincia sua relacionada ao studium. Ao folhear uma revista ilustrada percebeu que em algumas ima-gens algo parecia no pertencer cena: ele se detinha diante de monjas que apareciam ao fundo quando, em primeiro plano, havia soldados; ou ento se perguntava, ao observar outra imagem, por que a me carregava uma roupa branca enquanto olhava aterrori-zada o cadver de seu filho no meio da rua.2

    Enquanto olhava outras imagens que descreviam o mesmo tema, sentiu que eram belas e intensas, pois retratavam o horror de

    2. Ambas as fotos descritas so de autoria de Koen Wessing, e citadas por Barthes (1984, p.59-61).

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    uma insurreio na Nicargua, mas a homogeneidade dessas ima-gens no lhe desferia (a ele, espectador) uma marca, se tratavam de cenas que captavam a ateno de um espectador que, cultural-mente, podia se relacionar ao tema apresentado. um interesse que, segundo o autor, provm quase de um adestramento (cul-tural). Portanto, o studium diz respeito a um interesse contextuali-zado, produzido por valores transmitidos pela cultura e sociedade. um interesse enftico, ansioso, mas sem uma importncia espe-cial (Barthes, 1984).

    O punctum, por outro lado, o elemento que parece sair da fo-tografia para nos causar incmodo, atingindo-nos como uma flecha que deixa sua marca pontiaguda, que perfura, espeta. Barthes (1984) vincula ao punctum todos os verbos que poderiam descrever a sensao de perfurao por um objeto pontiagudo.

    Em uma imagem, o punctum o que dela se destaca aos nossos olhos, algo inexplicvel que seduz, atrai, nos faz parar diante dela imveis e perder a noo de quanto tempo estamos a observ-la. Entretanto, o puncutm mais do que gostar de uma fotografia, j que uma imagem pode nos agradar, mas sem causar um impacto perfurante.

    O gostar ou no gostar de uma fotografia diz respeito ao studium, ao interesse diverso, preferncia despreocupada e des-percebida que nos causa certa identificao com o fotgrafo e suas intenes ao criar tal imagem. Dessa forma, aprovamos (ou no) a obra e a compreendemos na medida em que compartilhamos, cul-turalmente, o ponto de vista de seu autor. Barthes (1984) acres-centa que a cultura, da qual depende o studium, nada mais do que um contrato entre criadores e consumidores que permite ao espectador se colocar no lugar do autor como se revivesse, ao revs, seus mitos, intenes e narrativas que levaram o fotgrafo a compor sua obra.

    A imagem, plena de significados e narrativas, faz com que o espectador goze de certo prazer, o studium, que nunca chega a ser um prazer pleno ou dor. Nos momentos mais intensos, de punctum, o espectador de fato se aproxima do prazer ou da dor. Existe uma

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    diferena, contudo, entre a dor e o choque. Algumas fotografias tm o intuito de chocar ou traumatizar o observador: a imagem grita, mas no fere, no desfere um punctum.

    Podemos ilustrar esse conceito quando, ao caminharmos pela cidade, somos surpreendidos por uma manifestao contra o uso de couro e peles. Alm de casacos e sapatos, os manifestantes exibem aos transeuntes fotografias de animais torturados, esquartejados, vertendo sangue.

    Tais imagens chocam, incomodam, sensibilizam. Mas tambm provocam aquela sensao de algo que j foi muitas vezes dito, tal como diz uma expresso popular: se j viu uma, viu todas. uma srie de imagens que abordam o mesmo tema, a mesma dor, ter-rvel, mas conhecida, sabida, que choca, mas no impressiona, no imprime uma marca para alm do que est ali explcito.

    A maioria das imagens que vemos nos passam despercebidas, mas algum detalhe ou outro nos atrai, a leitura da fotografia ime-diatamente se transforma, evidenciando a copresena entre studium e punctum. Se, por um lado, a fotografia bem composta e estrutu-rada tcnica e esteticamente desperta a apreciao de uma fotografia bem-feita (studium), o que dela nos perfura e incomoda (punctum) nada tem a ver com a anlise da tcnica, mas de um detalhe que toma a ateno do observador e transforma uma foto, que outrora era uma imagem qualquer, em algo especial. O punctum o que o observador agrega foto e que, ao mesmo tempo, j se encontra nela (Barthes, 1984).

    Existe ainda outro tipo de punctum prprio da fotografia que deflagrado, por sua vez, pelo tempo. Ao mesmo tempo em que de-flagra algo que j aconteceu, a fotografia decreta o futuro: isso vai acabar. Ela diz respeito apenas a um momento, instante, em que o que est ali retratado existe, mas logo em seguida deixa de existir.

    Ao olharmos lbuns de famlia comum nos depararmos com o pensamento este aqui j morreu. Em nossa dissertao de mestrado, ao estudarmos a relao das pessoas com seus lbuns de famlia, nos deparamos com um homem que, ao revisitar suas

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    fotografias h muito tempo guardadas, se surpreendeu ao per-ceber que muitos dos seus amigos e parentes j estavam mortos, o quanto sua casa mudou com o passar dos anos e, certamente, o quanto ele mesmo envelheceu: Olha que interessante. bacana pra caramba viu, voc se olha no espelho todo dia e acha que est lindo e maravilhoso, mas o tempo judia. Eu quando comecei a fa-culdade no usava culos e agora j troquei pelo segundo (Justo, 2008, p.88).

    A fotografia inevitavelmente nos deixa frente a frente com o tempo, geralmente um tempo transcorrido ou, como insiste Bar-thes (1984), com a morte. Esse autor afirma que, ao observarmos uma fotografia, somos dominados pela sensao de morte, acom-panhada pelo pensamento de que ou o objeto retratado est j morto ou vai morrer. Ele relata casos em que se deparava com re-tratos e esse pensamento sempre lhe vinha mente, desvelando sempre a forte ligao da fotografia com a morte, com a certeza de que este o inevitvel futuro de qualquer pessoa que tenha sido capturada pela cmera.

    A morte talvez seja o grande elo da fotografia com a velhice. Podemos pensar a fotografia como uma morte do objeto que, no entanto, pode ser ressuscitado ou reconstrudo na mente do obser-vador e, assim, ganhar vida. A fotografia no somente repassa a imagem de algum para outro, mas age como uma narrativa que reconstri a histria, que permite ao interlocutor modific-la e dar--lhe novos sentidos.

    Assim como a fotografia, os idosos, na nossa cultura, tambm estancam e esto estancados no tempo e no espao; com isso, ambos flertam com a morte. No entanto, ao fotografar podem, pelas pro-priedades da fotografia de fazer as coisas saltar do tempo e do es-pao, libertar as coisas e eles prprios do tempo e do espao.

    Nesse sentido, a fotografia mais do que congelar tempo e espao, e assim produzir a morte, ela, isto sim, retira as coisas dos fluxos do tempo e das constries de espaos determinados, abrindo-lhes pos-sibilidades de vida. A foto, parceira da morte, se torna tambm par-

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    ceira da vida ao permitir ao fotgrafo-idoso assumir esse poder de intervir no tempo e no espao.

    Nesse caso, poderamos dizer que os idosos so os fotgrafos da vida, no entanto, premidos pelo afugentamento do espectro da morte. Ao fotografar podem encarar e elaborar a temvel expe-rincia da finitude ao congelar ou transformar em esttua o que foi fotografado. Fotografar um objeto, por assim dizer, mortific--lo, mas tambm eterniz-lo ao lanar sua imagem a um infinito tempo vindouro e faz-lo resistir ao golpe mais radical da morte, que seria a desapario absoluta.

    Aos idosos como fotgrafos da vida cabe essa poderosa funo de lutar ou regatear com a morte. So eles que registram as ima-gens dos tempos e lugares que habitaram e que foram habitados por tantos outros. Trazem consigo, como os negativos das fotos anal-gicas, os registros das imagens das experincias coletivas. Segura-mente, os idosos eram os fotgrafos quando a cmera fotogrfica no existia. As imagens registradas em suas memrias e relatadas para as geraes seguintes cumpriam o mesmo papel da fotografia impressa ou reproduzida na tela de um aparelho.

    As imagens guardadas na memria ganham vida novamente ao serem recuperadas e transmitidas para as geraes seguintes. E as imagens do tempo, registradas e portadas como acervo da vida cole-tiva, no esto apenas na memria fotogrfica, mas no prprio corpo, tambm transformado em cmera fotogrfica. Corpo que re-gistra imagens do tempo vivido como o negativo de um filme que guarda e pode revelar, a qualquer momento, imagens da sua expe-rincia e trajetria no mundo.

    A pele enrugada e com marcas do sol, as mos calejadas, as pl-pebras cadas, a postura curvada, por exemplo, podem ser tomadas como imagens que o corpo revela de uma vida de trabalho intenso e duro. Imagens que aqui tomamos como positivas na medida em que expressam o que o tempo cravou no corpo e na vida, mas que podem tambm ser tomadas como negativos de um filme que contm o registro de toda uma vida, inclusive as imagens de vidas e corpos virgens e vigorosos da juventude.

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    interessante pensar que a fotografia, inerte, esttica, possa justamente dar margem passagem do tempo e, mais estranho ainda, pensar a mquina fotogrfica como um instrumento de vi-sualizao do futuro. E exatamente neste paradoxo que nos pro-pusemos a pensar quando iniciamos o presente estudo.

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  • O ATO FOTOGRFICO E O CONSTRUCIONISMO SOCIAL:

    O SUJEITO E SEU MUNDO

    Neste captulo discorremos sobre as origens do construcio-nismo social e suas principais bases epistemolgicas. A seguir, abordaremos a relao sujeito-objeto a partir das prticas discur-sivas produtoras de sentido para, finalmente, tecermos algumas consideraes sobre o papel da fotografia nessa relao.

    As razes do construcionismo

    O construcionismo social fruto de uma reviso da cincia e da Psicologia rumo a novos paradigmas na construo do conhe-cimento. A base dessa linha de pensamento a despreocupao com a representao fiel da realidade, j que esta tomada como nada mais do que uma construo coletiva, intermediada pela lin-guagem.

    A realidade, portanto, no pode ser concebida como algo apar-tado da produo do homem, ou seja, como algo objetivo passvel de ser apreendido em sua materialidade prpria por instrumentos e procedimentos desprovidos de qualquer subjetividade.

    Essa abordagem se assenta em algumas bases epistemolgicas centrais. Uma primeira diz respeito, precisamente, ao entendimento

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    de que a realidade no existe como algo independente do homem e, portanto, no pode ser conhecida integralmente. Outro esteio fun-damental diz respeito ao papel da linguagem e das relaes sociais na produo da realidade humana, construda a partir dos sen-tidos que o mundo adquire quando apreendido pela linguagem.

    Cabe inclusive ressaltar que, para o construcionismo social, o conhecimento possvel aquele construdo coletivamente, sem estar restrito classe dos pensadores. Uma forma vlida de produzir co-nhecimentos sobre o mundo e a realidade aquela construda pelo senso comum, desprovida da voraz busca pela verdade.

    A cincia moderna nasce e se fortalece, sobretudo no mundo ocidental, travando uma fervorosa batalha em duas frentes: uma com batendo os dogmas religiosos e outra combatendo o senso comum. Na frente de batalha contra os dogmas religiosos, o enorme desafio era mostrar que muitos dogmas sustentados pela religio no correspondiam aos fatos demonstrados pela cincia com seu mtodo irrefutvel. Na outra frente, tambm formada por crenas bastante arraigadas na mentalidade do homem comum, mas com um poder de resistncia bem menor do que a religio, o desafio era demonstrar que muitos convencimentos e saberes populares, criados nas prticas cotidianas, tambm no correspondiam s evi-dncias cientficas.

    Se na batalha contra os dogmas religiosos a cincia no conse-guiu uma vitria plena, erradicando-os inteiramente da mente hu-mana, pelo menos os desalojou e, inclusive, ocupou seu lugar no Estado moderno. Em relao ao senso comum, talvez tenha obtido um sucesso ainda maior, logrando um amplo convencimento e reco-nhecimento popular. O povo, renunciando s suas crenas cons-trudas na labuta do cotidiano, incorporou os saberes e as tecnologias produzidos e disseminados pela cincia.

    No entanto, o sucesso e a hegemonia conquistados pela cincia podem ter sido a causa maior de seu fracasso ou de seu desgaste ao longo do avano da modernidade. O sonho calcado na crena mo-derna de que a cincia iria sanar todos os problemas do homem e conduzi-lo a um estado ltimo de felicidade foi logo se desfazendo.

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    Conforme assinala Santos (2001), os impasses da cincia mo-derna na contemporaneidade a levaram a se destituir da arrogncia salvacionista e a se reconciliar com seus antigos adversrios, sobre-tudo o senso comum e o saber popular. Segundo esse autor, a cincia contempornea ou ps-moderna, como ele mesmo nomeia a cincia atual, est realizando duas rupturas epistemolgicas funda-mentais: uma aquela que procura desfazer a dicotomia sujeito--objeto to cultivada pela cincia moderna positivista e a outra justamente reconciliar o conhecimento cientfico com o conheci-mento popular, que, de adversrio, passa a ser visto como um im-portante e valioso aliado.

    O construcionismo, indubitavelmente, faz parte dessas duas rupturas epistemolgicas operadas na cincia atual. Por um lado, promove um encontro do sujeito com o objeto, ambos to distan-ciados pela cincia moderna clssica e, por outro lado, aproxima o saber cientfico do saber popular construdo no cotidiano.

    Ao considerar o saber como uma construo sempre dinmica, o construcionismo social no se preocupa em alcanar a verdade, pois esta no nem nica, nem neutra, portanto, no absoluta.

    Quanto impossibilidade de desvendarmos verdades abso-lutas, Shotter & Gergen (1994, apud Camargo-Borges, 2007, p.35) apontam que o conhecimento obtido e legitimado dentro de um sistema de crenas e valores que relativo, uma vez que forte-mente sustentado por determinados grupos.

    Alm disso, o importante que espaos dialgicos sejam cons-tantemente construdos e que o pesquisador no se restrinja ou se amordace buscando uma verdade transcendente. Para Camargo--Borges (2007), ao pensarmos uma realidade, preciso considerar a existncia de diversas verses de verdade, caractersticas de um contexto particular, vivenciadas por pessoas que coordenam suas prticas discursivas e constroem significados compartilhados.

    Da mesma forma que no existe uma realidade a priori, s coisas no est agregado um sentido predeterminado, pronto. O conhecimento, a realidade, o sentido das coisas e o prprio sujeito so elementos construdos socialmente. Estas no so atividades

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    cognitivas intraindividuais, nem a mera reproduo de modelos. So prticas sociais, dialgicas, que envolvem a linguagem em uso, o contexto e a histria (Spink & Medrado, 2000).

    Produo de conhecimento

    Para o construcionismo social, produzir conhecimento uma forma de gerar relatos, criar e recriar mundos. A busca pelo conhe-cimento parte do questionamento e do anseio por investigar, desco-brir e criar, sendo a disciplina a nica diferena entre o cientista e o curioso.

    Um conjunto de normas e leis sustenta a pesquisa cientfica, assegura a cientificidade e, ao mesmo tempo, a validade do conhe-cimento produzido na academia. Spink (2002) salienta que o co-nhecimento no deve ser automaticamente considerado vlido por estar associado academia ou cincia, o que nos leva a considerar a validade do conhecimento produzido no cotidiano, por pessoas implicadas na sua relao com o mundo.

    No cotidiano, o sujeito produtor de conhecimento levado por sua curiosidade a investigar o mundo, debater ideias e fazer inter-conexes com o saber produzido por outros.

    Shotter (apud Arendt, 2003), reportando-se passagem da cincia moderna cincia ps-moderna, ressalta uma mudana de estilo: inicialmente, o observador se mantinha afastado e imparcial ao testar suas teorias, valendo-se do raciocnio positivista de que a implicao do pesquisador com o objeto traria interferncias insa-nveis na produo de verdades e leis universais. A Filosofia da Cincia ps-moderna admite que todo conhecimento provisrio e est em constante tenso, sendo vlido apenas para determinado espao e tempo; estando, assim, em constante transformao (Kuhn, 1996).

    A cincia contempornea admite, ainda, a possibilidade de adoo de diferentes metodologias no processo de produo do co-

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    nhecimento e a inerente implicao do pesquisador na produo do saber (Feyerabend, 1989; Santos, 2001).

    Valendo-se desses pressupostos, o construcionismo concebe a produo de conhecimento como um processo interativo, no qual o observador participante testa procedimentos de forma interessada, implicando-se ativamente na construo do conhecimento (Arendt, 2003).

    Para Gergen (1996, apud Arendt, 2003), ao utilizar mtodos que ultrapassem a tentativa de compreender nossas prticas em termos de teorias, o pesquisador estaria assumindo uma potica social (em contraposio ao logos = razo), fundada nas relaes responsveis, dialgicas da construo social. Haveria uma mu-dana da expresso da razo para a expresso das emoes, permi-tindo ver novas conexes com o meio e captar algo de novo na articulao das circunstncias sociais que conduzam a uma nova compreenso das redes de conexes e relaes entre eventos.

    Seria uma concepo de teoria que, em vez de efetuar predies para o futuro, criaria o futuro atravs do dilogo por meio de uma avaliao crtica de prticas culturais, que permita a gerao de formas inteligveis para as aes pessoais ou coletivas e que, alm disso, crie caminhos para futuros alternativos.

    Arendt (2003, p.9) diz que, ao propor uma potica social no lugar da teoria, Shotter parece compreender a linguagem como veculo caracteristicamente humano de conscincia, no qual parti-cipantes de uma dana se permitam ir com os outros.

    Concepo de sujeito

    No pensamento construcionista, o self, a essncia do sujeito, constituda na linguagem, mais especificamente na linguagem entre interlocutores. Alm disso, o self no algo estvel ou dura-douro, pois construdo nos contextos relacionais, ou seja, depende dos relacionamentos (Rosa, Tureta & Brito, 2006).

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    A nfase da constituio do sujeito est no contato social, no pro-cesso dialgico do conhecer e responder ao outro (Rasera & Japur, 2001). O sujeito, no contato com o outro, d sentido ao mundo. Assim, a representao da realidade, do sujeito e dos fenmenos ps-quicos produzida no contato social, atravs da linguagem:

    [...] a constituio do self compreendida, ento, nos processos dialgicos que esto continuamente em movimento. [] Isto , quando dizemos, estou zangado, eu te amo, e assim por diante, no estamos tentando descrever uma terra distante da mente, ou um estado dos neurnios. Mais propriamente, estamos performatizando em uma determinada relao, e as prprias frases so apenas um dos elementos, dentre tantas outras aes total-mente corporificadas, incluindo os movimentos dos membros, entonaes vocais, a maneira de fixar o olhar, e assim por diante. (Gergen, 1996, p.8-11; traduo nossa)1

    Na construo do sujeito, o foco deslocado de uma estrutura privada para o contato social, da autoria individual para a conjunta. Existe, portanto, uma multiplicidade de selves articulados em cada momento de acordo com a demanda de um dilogo (Rosa, Tureta & Brito, 2006, p.45).

    As pessoas se constroem medida que, via linguagem, agem e reagem umas s outras, narram suas histrias para ns e sobre ns.

    Ser significa comunicar... ser significa ser para o outro, e atravs do outro, para algum. Uma pessoa no tem um territrio interno in-dependente, ela est completamente e sempre na fronteira; olhando

    1. [] the self is viewed, then, as achieved through dialogic processes that are continuously in motion. [] That is, when we say, I am angry, I love you, and the like, we are not trying to describe a far off land of the mind, or a state of the neurons. Rather, we are performing in a relationship, and the phrases themselves are only a constituent of more fully embodied actions, including movements of the limbs, vocal intonations, patterns of gaze, and so on.

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    para dentro de si, ela olha nos olhos do outro ou com os olhos do outro. (Bakhtin, 1984, apud Rasera & Japur, 2001, p.202)

    Gergen (1994, apud Guanaes & Japur, 2003), ao refletir sobre a constituio do self, recorre noo de self narrativo. A com-preenso de self no construcionismo social refere-se s narrativas e explicaes com as quais as pessoas se descrevem, por meio da or-ganizao temporal de eventos pessoais, estabelecendo conexes entre eventos vividos, inteligveis a elas mesmas e aos outros.

    O self narrativo compreendido como uma estrutura consciente. De acordo com Spink (2002), o sentido tomado como possibilidade de elaborao das vivncias do cotidiano, sendo, por-tanto, um ato da conscincia, expresso pela mediao da memria. A memria, por sua vez, entendida como elemento de significao e componente intrnseco ao processo de significao. Sendo assim, narrao, memria e produo de sentidos so os elementos bsicos na construo do sujeito.

    Dessa maneira, o construcionismo social abandona a investi-gao dos processos e das estruturas internas da psique humana, voltando-se exterioridade dos processos e s interaes (Duarte--Alves & Justo, 2007).

    Cabe ressaltar que o processo de constituio do sujeito est intimamente relacionado a dois elementos-chave do pensamento construcionista: a produo de sentido e a narrativa, que nada mais so do que particularidades das prticas sociais e da linguagem.

    Produo de sentido

    A produo de sentido pode ser definida como a forma de per-ceber o mundo, de signific-lo, interpret-lo, inscrita num tempo e lugar, em relaes sociais concretamente constitudas. Os sentidos que o homem produz e atribui sua experincia esto intimamente vinculados ao social, jamais desvencilhados do coletivo.

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    O sentido uma construo social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas na di-nmica das relaes sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situaes e fenmenos sua volta. (Spink & Me-drado, 2000, p.41)

    A nfase est no social, como alicerce da produo de sentido, e se contrape seja ideia de que a interpretao do mundo se d de dentro para fora, seja ideia contrria. Os sentidos emergem na interao, nas prticas cotidianas, no estando nem no polo de uma interioridade individual, nem no polo oposto de determina-es objetivas. Emergem, isto sim, na relao do sujeito com ou-tros sujeitos, no que os conecta e os interliga na convivncia social (Duarte-Alves & Justo, 2007).

    A produo de sentidos uma construo complexa, que acompanha a histria de vida dos sujeitos postos na interao e na conversao. Em qualquer momento, interpretamos o mundo ao nosso redor, construmos sentidos e verdades que, posteriormente, podem se transformar ou deixar de existir.

    Na sua trajetria de vida, o sujeito vai fazendo suas escolhas, se posicionando, colhendo vivncias e criando narrativas que vo formar sua identidade e seu modo de ver o mundo.

    Segundo Pinheiro (2000), o sentido que o sujeito d ao mundo produzido interativamente, na relao com os outros e se trans-forma a cada influncia que recebe daqueles com quem interage.

    Ao longo de sua histria de vida, o indivduo vai se posicionando e buscando uma coerncia discursiva, recolhendo e processando narrativas que vo lhe dar a identidade. Em outras palavras, o sen-tido produzido interativamente e a interao presente no in-cluiu apenas algum que fala e um outro que ouve, mas todos os outros que ainda falam, que ainda ouvem ou que, imaginaria-mente, podero falar ou ouvir. (Pinheiro, 2000, p.194)

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    Fica claro que a linguagem assume um papel central no cons-trucionismo, j que as prticas discursivas so responsveis pela interao social e pela constituio da realidade, ou seja, pela pro-duo de sentidos sobre o mundo.

    Prticas discursivas

    Como afirma Traverso-Ypez (1999, p.47), a experincia da realidade, a identidade e os fenmenos psicossociais se constituem na e atravs da linguagem. Nesse sentido, a linguagem no apenas um reflexo da sociedade, mas sua constituio.

    Atadas ao contexto, poca e cultura em que so produzidas, as prticas discursivas nos remetem aos momentos de ressignifica-es. Lima (2005) afirma que

    [...] as pessoas no constroem suas materialidades e compreenses do mundo no vazio, mas na concretude da vida cotidiana, por onde um fluxo contnuo e dinmico de atos de fala em tenses, conflitos, negociaes, solidariedades, contradies, vo configurando sen-tidos em contnua produo e reproduo. (Lima, 2005, p.3)

    Para Spink & Medrado (2000), as prticas discursivas so defi-nidas como linguagem em ao, pois a partir delas as pessoas pro-duzem sentidos e se posicionam nas relaes sociais cotidianas.

    A fim de melhor compreender essa definio, apresentamos a afirmao de Billig (1991, apud Spink & Medrado, 2000, p.47), segundo a qual, quando falamos, estamos invariavelmente reali-zando aes acusando, perguntando, justificando etc. , produ-zindo um jogo de posicionamento com os nossos interlocutores, tenhamos ou no essa inteno.

    Sempre que nos expressamos, existe algo que nos atravessa, seja uma lembrana, a nossa prpria histria, uma ideologia ou at mesmo algo que se manifesta sem que percebamos.

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    Uma forma particular de linguagem enfatizada pelo construcio-nismo social a narrativa, por ser uma prtica discursiva mais po-pular e livre de influncias ideolgicas. Por se fundamentar mais nas experincias de vida do que na retransmisso ideolgica, a narrativa capaz de dar maior vazo expresso de sentimentos e leituras de mundo.

    A narrao no existe apenas como voz, pois vem acompa-nhada por movimentos das mos, gestos, expresses faciais, dife-rentes entonaes que sustentam o que est sendo dito.

    Alm de mobilizar todo o corpo e as emoes do sujeito, na narrativa pode-se recorrer experincia no s de uma pessoa, mas de outras pessoas, pois o narrador acrescenta s suas palavras o que ouviu dizer (Benjamin, 1994).

    Assim, a narrativa engloba tanto experincias individuais quanto coletivas na medida em que entrelaa a histria pessoal grupalidade, mas tambm faz emergir traos singulares de cada in-divduo quando suas prticas discursivas se diferenciam das narra-tivas mais comuns, mais usuais. A narrativa do desvio e a diferena so entendidas como atividades criativas do sujeito no enfrenta-mento do mundo, que, ainda, do significado s suas experincias (Spink, 2002).

    Na narrativa, o que se preza a transmisso de sabedorias popu-lares, adquiridas com a vivncia e a experincia, tal como o conselho (Benjamin, 1994). No h preocupao com veracidade, legitimi-dade, status ou dominao, mas sim com a preservao de tradies de pequenos grupos.

    A narrativa tende a permitir a leitura do mundo porque sua prpria construo est atada ao coletivo. Benjamin (1994) destaca que a narrativa se funda na troca de experincias, na sabedoria po-pular, na tradio e na reminiscncia. A narrativa uma histria que se cria a partir de um acontecimento e se desdobra para muito alm dele, agregando fatos e vivncias cada vez que transmitida.

    Narrar trafegar entre as trajetrias de vida individuais e co-letivas (Justo, 2008, p.35). Dessa forma, compreenderemos o

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  • O ATO FOTOGRFICO 57

    termo narrar como uma produo discursiva atravessada pela histria e pelas vivncias sociais.

    A narrativa, associada fotografia, permite-nos adentrar no universo pessoal de cada participante-fotgrafo, para depois fazer emergir uma leitura compartilhada da experincia de autoria e lei-tura do mundo. A fotografia, nesse caso, no funcionar apenas como um artefato social ou um objeto colecionvel. A mquina fo-togrfica ser o prprio instrumento de mediao que torna visvel ao participante as particularidades do mundo. A finalizao do processo de construo de sentidos emergir sob a forma de narra-tivas, cumprindo o propsito fundamental dessa forma de lidar com a fotografia:

    Assim como as demais fontes de informao histrica