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VELHICE E DIFERENÇAS NA VIDA CONTEMPORÂNEA organizadoras Neusa Maria Mendes de Gusmão | Olga Rodrigues de Moraes von Simson

Velhice e Diferecas

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VELHICE E DIFERENÇAS

NA VIDA CONTEMPORÂNEA

organizadoras

Neusa Maria Mendes de Gusmão | Olga Rodrigues de Moraes von Simson

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DI RE TOR GE RALWi lon Ma zalla Jr.

CO OR DE NA ÇÃO EDI TO RI ALWillian F. Mighton

CO OR DE NA ÇÃO DE RE VI SÃORo ber to P. Gomes

RE VI SÃO DE TEX TOSVera Lu ci a na Mo ran dim R. da Sil va

EDI TO RA ÇÃO ELE TRÔNI CAFa bio Di e go da Silva

RE VI SÃO DE FIL MESAnto nia S. Pereira

CAPAIvan Grilo

Da dos In ter na ci o nais de Ca ta lo ga ção na Pu bli ca ção (CIP)(Câ ma ra Bra si lei ra do Li vro, SP, Bra sil)

Ve lhi ce e di fe ren ças na vida con tem po râ nea /(or ga ni za do ras) Ne u sa Ma ria Men des de Gus mão,

Olga Ro dri gues de Mo ra es von Sim son. - -Cam pi nas, SP: Edi to ra Alí nea, 2006. - -

(Co le ção ve lhi ce e so ci e da de)

Vá ri os au to res.Bi bli o gra fia.

1. Enve lhe ci men to 2. Ge ron to lo gia 3. Re la çõesho mem-ani mal 4. Ve lhi ce-Aspec tos so ci a is

I. Gus mão, Ne u sa Ma ria Men des de. II. Sim son,Olga Ro dri gues de Mo ra es von. III. Sé rie.

06-4449 CDD-362.6

Ín di ces para Ca tá lo go Sis te má ti co

1. Ve lhi ce: Aspec tos so ci a is: Ge ron to lo giaso ci al 362.6

ISBN 85-7516-153-9

To dos os di rei tos re ser va dos à

Edi to ra AlíneaRua Ti ra den tes, 1053 - Gua na ba ra - Cam pi nas- SP

CEP 13023- 191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.2319www.ato moea li nea.com.br

Im pres so no Brasil

AlíneaE D I T O R A

AA AAA

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Conselho Editorial

CoordenadoraAnita Liberalesso Neri

Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da UNICAMP

MembrosElizabeth Fröhlich Mercadante

Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP

Emílio Antonio Jeckel-NettoPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica da PUC-RS

Luis Enrique de AguilarPrograma de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP

Maria José D´Élboux DiogoPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia da UNICAMP

Neusa Maria Mendes de GusmãoPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia da UNICAMP

Olga Rodrigues de Moraes Von SimsonPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia da UNICAMP

Ruth G. da Costa LopesPrograma de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP

Suzana A. Rocha MedeirosPrograma de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP

Valdemarina Bidone de Azevedo e SouzaPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica da PUC-RS

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SUMÁRIO

ApresentaçãoVelhice, heterogeneidade e a dança dos esquisitos............................7

Andrea Lopes

Capítulo 1.Políticas Públicas e Velhice:

Reflexões sobre velhos que vivem nas ruas .....................................19Roberta Cristina Boaretto e Neusa Maria Mendes de Gusmão

Capítulo 2.A Perspectiva dos Sujeitos Sociais:

Uma ação política direcionada aos velhos de rua ............................35Roberta Cristina Boaretto e Neusa Maria Mendes de Gusmão

Capítulo 3.Reinserção de Idosos no Mundo da Vida

e no Mundo do Trabalho: Algumas possibilidades ..........................51Wanda Pereira Patrocinio e Maria da Glória Marcondes Gohn

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Capítulo 4.Envelhecimento, Trabalho e Educação:

Um estudo sobre cooperativas populares .......................................75Wanda Pereira Patrocinio e Patrícia Gatti

Capítulo 5.Velhos, Cães e Gatos:

Interpretação de uma relação.......................................................107Marília Anselmo Viana da Silva Berzins

e Elisabeth Frohlich Mercadante

Capítulo 6.Memória, Loucura e Velhice:

Os ganhos no processo de envelhecimento

pós-reforma psiquiátrica..............................................................169Reginaldo Moreira e Olga Rodrigues de Moraes von Simson

Sobre os Autores .........................................................................185

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APRESENTAÇÃO

Velhice, heterogeneidadee a dança dos esquisitos

Andrea Lopes1

A leitura dos textos que compõem esta coletânea e assituações e pessoas que são retratadas trouxeram-me a lembrançade um trecho da canção Eduardo e Mônica, cantada aos quatroventos, na década de 1980, pelo vanguardista Renato Russo e suaLegião Urbana: Festa estranha com gente esquisita.

Que festa estranha é essa que ainda vivemos duas décadasdepois da menção dos artistas? E que gente esquisita é essa? Na década de 1980, Mônica era uma das personagens da canção, esquisita porqueera uma mulher mais velha e experiente que se apaixonava porEduardo. A mulher que fascinava o menino Eduardo era, na época, a“gente esquisita” que representava milhares e milhares de mulheresque sacudiam as relações de gênero daquele momento. Agora, em2006, Mônica talvez já tenha netos e continue revolucionando suageração, agora de velhos ou, no caso dela, dos parceiros da assimchamada Terceira Idade ! Será que continua parecendo esquisita? Ouhá outros ainda mais esquisitos?

As pes soas esqui si tas de hoje, que revo lu ci o nam silen ci o sa -mente a con tem po ra ne i dade são as Môni cas e Joa quins, Pedros e

SUMARIO

1. Cientista Social (USP). Mestre em Gerontologia (UNICAMP) e Doutoranda emPsicologia, Desenvolvimento Humano e Educação/Gerontologia (FE/UNICAMP).

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Antô nias que cir cu lam por aí nadando, dan çando, ali men tando gatose pom bos, demar cando espa ços nos faróis (vide os pedin tes ido sosexclu si vos da esquina da Praça Roo se velt, no cen tro da cidade de São Paulo), fre qüen tando ban cos esco la res, vivendo sozi nhos nas ruas ou em resi dên cias de luxo, lotando os pon tos turís ti cos, sendo volun tá -rios, esco lhendo novas car re i ras, alon gando filas para asi los ou paracine mas no domingo à tarde. São aque les que ganha ram mais vinte,trinta anos de vida, com os quais mui tos pare cem nem sem pre saberao certo se é um pre sente tro i ano ou vito ri ano. Toda essa “genteesqui sita” que encon tra mos por todos os can tos da vida con tem po râ -nea nos faz lem brar da exis tên cia de uma nova fase ou face do cursode vida, que nos parece ainda estra nha, posto que mal ini ci ada e reco -nhe cida como expe riên cia cole tiva.

Um dos marcos da constituição da velhice como categoriasocial começou a se formar no Brasil em meados da década de 1960,com a fundação da Sociedade Brasileira de Geriatria (Lopes, 2000).Nessa época, a necessidade era resolver o problema da “genteesquisita” que dava o que fazer nos corredores do Hospital MiguelCouto, no Rio de Janeiro. Um grupo de médicos preocupava-se com apopulação idosa que crescia e se acotovelava em meio às demandas degerações mais jovens e em fugir de propostas charlatonas, próprias daépoca no tocante aos assuntos do envelhecimento. O cenário noshospitais públicos brasileiros parece não ter mudado muito desdeentão, conforme o relato de uma médica que conheci no últimocarnaval, a qual desistiu da esquisitice do sistema público de saúde.Mas, no seu depoimento, pude perceber que a esquisitice ao menosdeixou de ser relativa às pessoas, e passou a ser do sistema, que não dáconta mais dessas “gentes”.

Hoje, quarenta anos depois que os pioneiros da Geriatria noBrasil preocuparam-se com os idosos que transitavam peloscorredores de hospitais, os idosos estão também em outros espaçossociais, incomodando não apenas um grupo de médicos, mas outrosagentes sociais. Uma categoria social legítima se forma assim mesmo:incomodando! Foi incomodando que os idosos francesesimpulsionaram a criação e a disseminação, na França, na década de1960, do conceito de “Terceira Idade”. Conforme Peixoto (1998), apolítica de integração da velhice naquele país, a partir de 1962, visava a modificações político-administrativas, assim como à transformação da

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imagem das pessoas envelhecidas (p. 75), com o objetivo de evitar oagravamento das condições de vida dos idosos no pós-guerra e aconseqüente revisão dos critérios de exclusão e integração dessapopulação. A imagem de uma velhice decadente, associada àscamadas populares, foi paulatinamente substituída por umaimagem ativa e independente, que se expressava socialmente noconceito e na imagem da Terceira Idade, assumidas principalmentepelos novos aposentados que começaram a reproduzir as práticasdas camadas médias assalariadas.

Pensando na visibilidade e no alcance que a velhice e os velhosatingiram atualmente, vemos que a criação de novas expressões edenominações sociais funciona não apenas como novos adjetivos, mas também para nomear novas fases no curso de vida – a Terceira Idadecomo a fase entre a aposentadoria e a velhice serve para estimular elegitimar a criação de uma gama de equipamentos e serviços (Peixoto,

1998, p. 76) e para estimular a formação de profissionais aptos para otrato dessa população e suas demandas (Lopes, 2000), movimentandoo cenário das preocupações sociais.

Na América Latina, as novas imagens e o novo trato doenvelhecimento chegaram da Europa e sensibilizaramespecialmente os médicos argentinos, além dos brasileiros daSociedade Brasileira de Geriatria. Imprimiram sua marca, aindatimidamente, também nos documentos e órgãos oficiais. Umexemplo é o nascimento do Instituto Nacional de PrevidênciaSocial (INPS) em 1966, que colocou a Previdência no rol dasquestões sociais de ordem pública (Peixoto, 1998).

O curso de vida brasileiro, com o aumento da longevidade eoutras tantas transformações, vive, hoje, a edificação do conceito develhice como categoria social legítima. Em análise que realizei sobre oestabelecimento da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia(Lopes, 2000), chamei de “Primeira Geração” os médicos dessainstituição que iniciaram o processo de legitimação da velhice comocategoria social digna de atenção pública no Brasil, nos anos 1960. A“Segunda Geração” ampliou o âmbito da instituição, ao envolveroutros profissionais, além dos médicos, que trouxeram ao estudo etrato do fenômeno uma abordagem multidisciplinar. Por fim, a“Terceira Geração”, na década de 1990, correspondeu à participaçãoda universidade como instituição interessada na formação de jovens

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profissionais e acadêmicos absortos pelo tema. Acredito que, hoje, jápodemos pensar em uma “Quarta Geração”, que extrapola o universoda SBGG, na medida em que envolve uma ampla rede de órgãospúblicos, universidades, profissionais, empresas, mídia, entre outros,envolvidos e interessados na construção da categoria social idosos.

Porém, apesar dos ganhos próprios da visibilidade elegitimação da velhice, deve-se atentar para as armadilhas inerentes à construção de categorias de idade, visto que tendem ahomogeneização de demandas e populações inteiras, ou ainda, nocaso da velhice, podem funcionar como aprisionamento e ordenaçãodas diferenças (Peixoto, 1998; Debert, 1999). Ou seja, reconhece-sea categoria social idosos, mas não se reconhece que entre eles existeforte heterogeneidade associada a diferentes condições de renda,saúde, idade e de acesso a oportunidades. Assim, todos são vistos oracomo doentes, inaptos e dependentes, ora como saudáveis eprodutivos, quando, na verdade, existem diferentes combinaçõesdessas condições em idosos que podem estar na fase inicial desseestágio de vida ou na velhice avançada. Estudando idosos franceses,Peixoto (1998) indicou que as caracterizações próprias da construção de categorias etárias mascaram diferenças de classe social e de níveleconômico. Na verdade, diferentes grupos, mesmo fazendo parte dagrande categoria idosos, demandam diferentes práticas e políticassociais, compatíveis com suas necessidades.

Debert (1999) chama a atenção para uma segunda armadilhacriada pela homogeneização dos idosos por critério etário. Aarmadilha consiste em apresentar idosos saudáveis e produtivoscomo o único modelo aceitável de envelhecimento, relegando osmenos saudáveis e menos produtivos a uma outra categoria, comstatus mais baixo e menor legitimidade. Assim, não é incomumcategorizar idosos ativos e produtivos, independentemente deterem 60, 70, 80 ou mais anos como pertencentes à Terceira Idade.Ao mesmo tempo, os que não correspondem a esse padrão modelarsão simplesmente chamados de velhos, com todas as conotaçõesnegativas inerentes ao termo. Além disso, tanto os saudáveis comoos não saudáveis são apontados, muitas vezes, como os únicosresponsáveis por sua condição, eximindo a coletividade daobrigação de oferecer mecanismos que atendam as diferenças. Aesse fenômeno Debert dá o nome de “reprivatização” da velhice.

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Em lugar disso, devemos nos perguntar se o idoso tem recursossuficientes para custear dietas nutricionais caras, ou se existemparques perto de sua casa, onde possa realizar as exigidascaminhadas. O risco apontado por Debert é o desaparecimento davelhice como categoria social do nosso leque de preocupaçõessociais, se ela se tornar um empreendimento de cunhoexclusivamente privado. Por exemplo, a reestruturação euniversalização das aposentadorias e Estatuto do Idoso são ganhosda visibilidade da velhice como categoria etária legítima, massempre devemos ter em mente que a efetivação e a manutençãodessas conquistas devem ser fruto não só de esforços individuaiscomo principalmente coletivos, atendendo à multiplicidade dossujeitos envolvidos.

Ao pensarmos na construção de uma categoria de idadelegítima e merecedora de atenção pública, devemos considerar,como sugere Featherstone (1994), o conceito de “cursos da vida”, noplural. O que a heterogeneidade da velhice atualmente evidencia éque, apesar de o curso da vida ser apontado como um processobiológico universal e de a velhice ter ganhado destaque social, seinvestigarmos as culturas humanas, e a nossa própria cultura,veremos que cada uma delas e cada indivíduo pertencente a elasconstrói sua própria história do envelhecer e chega à velhice das mais diferentes formas, embora compondo uma única categoria social.Essa categoria deve ser vista como um espectro de experiências epossibilidades, pois como aponta Debert (1998, p. 51), a velhice nãoé uma categoria natural, mas, como qualquer outra categoria deidade, é uma construção histórica e social. A periodização da vida

implica um investimento simbólico específico em um processo biológico

universal, diz a autora. A construção de uma categoria social dependeda elaboração simbólica de rituais que demarcam e definem espaços,demandas, comportamentos, direitos e deveres. Hoje, além decontinuar avolumando as filas da saúde e do INSS, os idosos tambémfazem crescer as filas dos bancos quando, por direito garantido porlei, têm prioridade de atendimento.

Ao mesmo tempo em que ganham legitimidade pública, osidosos estão cada vez mais mostrando suas diferenças ao ganharemvisibilidade pública. Neste livro, vamos ver o que idosos marcadospela diferença têm a oferecer ao debate social e, especialmente,

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gerontológico, voltado à compreensão da contribuição daheterogeneidade para a construção das categorias de idade.

No primeiro capítulo, Boaretto e Gusmão discutem aimportância de se refletir sobre a formatação de categorias sociais ea identificação de demandas sociais, tendo em vista a elaboração depolíticas públicas destinadas a segmentos específicos dapopulação. Por meio do conceito de “problema social”, conformediscutido por Debert (1998) e por Lenoir (1989), as pesquisadorasrelatam a condição dos velhos de rua como objeto de disputa dasinstituições sociais, bem como alvo de pesquisas acadêmicas, apartir da década de 1990. Para ilustrar, oferecem um breve cenáriodo município de São Paulo e do papel dos velhos de ruas no FórumEstadual das Minorias, ocorrido em 1996. Tal participaçãoocasionou o despertar da atenção pública para esta população, cujademanda nos albergues e casas de convivência gerou a necessidadede novos projetos que administrassem a sua insatisfação e a dosidosos residentes em instituições e que avaliassem a qualidade dosserviços a eles oferecidos.

O Capítulo 2 estende os investimentos das pesquisadorasdirigindo-se para a experiência paulista do Casa-Lar e Convivência SãoVicente de Paula. O capítulo tem como objetivo descrever a criação, em1999, e o fechamento da instituição, que tinha como finalidade atendervelhos de rua. Notamos neste capítulo a participação de uma redecomposta pelos mais diversos atores sociais atuando como agentes demudança, entre eles, especialmente, o próprio velho de rua, sujeito ativode sua condição. Com muita competência, as pesquisadoras descrevemo processo de reconhecimento, legitimação e expressão do velho de ruacomo alvo de ações políticas, bem como descrevem o impacto e arepercussão que a experiência de viver naquela instituição gerou nosvelhos de rua envolvidos.

O Capítulo 3 segue a lógica de pensar a inserção do idoso navida social e discute formas de participação cooperativa dessapopulação muitas vezes vista como “esquisita” no mundo dotrabalho.

Com base no conceito de Economia Solidária, Patrocinio eGohn discutem o conceito e os princípios do sistema decooperativas e de participação popular como alternativa para omodelo capitalista de produção, salientando a necessidade da

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criação de projetos e programas dessa natureza, específicos para apopulação idosa.

O Capítulo 4 ilustra os conceitos apresentados no capítuloanterior, ao analisar a influência da presença dos idosos nodesenvolvimento dos princípios de autogestão e da economiaparticipativa. Foram pesquisadas oito cooperativas da cidade deCampinas atendidas pela Prefeitura em parceria com a UNICAMP. Oobjetivo foi retratar a realidade de trabalhadores e trabalhadoras acimade 50 anos, participantes dessas iniciativas, com base nas categorias deanálise educação, trabalho e envelhecimento. Patrocinio e Gattiapontam que o critério de exclusão do mercado de trabalho é muitomais dependente do nível educacional do trabalhador do que da idadeem si. O difícil e caro acesso aos meios educacionais e à atualizaçãoprofissional desqualifica a mão-de-obra idosa. O estudo faz brilhanteanálise do impacto das condições de trabalho na saúde dos idosos e nasrelações de gênero. Tais análises remetem as pesquisadoras ao estudodas representações da velhice no mundo atual. A educação para oenvelhecimento é apontada como o caminho para a emancipação daspessoas e de populações específicas.

O quinto capítulo, de Berzins e Mercadante, trata da situação deidosos denunciados por seus vizinhos por apresentarem irregularidadesna acomodação e no trato de seus numerosos animais de estimação. Estecapítulo é revelador do processo de transposição da condição deinvisibilidade dos idosos, que fazem valer suas demandas na esferapública. Como dizem as pesquisadoras, no universo dos idosospesquisados, o idoso carrega outros estigmas sociais, como o de“esquisito”, ou o de “velha cachorreira”, que refletem o incômodocausado por aquele que é tido como “diferente”, ou o “outro”, casoanálogo ao dos velhos de rua e ao dos velhos cooperados. Osdepoimentos, as situações e as relações entre velhos e animais falamdaqueles anteriormente vistos apenas como personagens de contosinfantis. As falas dos participantes da pesquisa retratam suasinterpretações do mundo, de si, das relações sociais, da forma comoorganizam a vida, seres isolados e solitários. As pesquisadorasdescrevem em detalhes a relação entre essas pessoas e os animais emostram a existência de mundos paralelos, especialmente dentro dasgrandes metrópoles, e de quanto são merecedores de atenção pública. Amissão que assumem de cuidar dos animais gerou senso de utilidade,

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bem-estar, propósito de vida e senso de significado nos participantes dapesquisa, mesmo vivendo sob condições de alarme sanitário. O casodeles exemplifica, mais uma vez a heterogeneidade do envelhecimento.

O sexto e último capítulo, de Moreira e Simson, fala de“esquisitos” por tradição, os doentes mentais. Os pesquisadoresapresentam a trajetória de vida de idosos que realizaram tratamentode saúde mental no Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, nacidade de Campinas. Utilizaram a metodologia da história oral parainvestigar os temas memória, loucura e velhice em três grupos deidosos ligados a essa instituição, que passou por uma abrangentereforma psiquiátrica na década de 1990. O objetivo da pesquisa foiavaliar a qualidade de vida dos idosos que passaram pelo processode desospitalização. Devido a uma nova postura de atendimento,que prevê a integração assistida dos doentes mentais à vida social,desde 1993 a instituição é considerada pela Organização Mundialda Saúde como uma referência no tratamento à saúde mental noBrasil. Os pesquisadores descrevem essas transformações edemonstram a conquista de direitos e espaços sociais por partedessa população, já na velhice, como também as diferentes formasde participação dos reinseridos na comunidade.

Assim como os outros pesquisadores deste livro demonstram nas situações dos velhos de rua ou dos idosos cooperados, Moreirae Simson falam de um movimento protagonista por parte dessesvelhos egressos de um hospital psiquiátrico, seja por si mesmos,seja por meio dos agentes das instituições a que pertencem. Apesarde tímido, este movimento nos faz pensar na construção de novasredes sociais, com novos agentes e novos papéis, não mais apenasos de ex-loucos, pessoas de rua ou pessoas dependentes, estigmasque muitos deles carregaram ao longo de toda a vida.

Cada diferente forma de envelhecer apresentada nestacoletânea fala de uma velhice como categoria socialmente legítima, levando em consideração a diversidade de trajetórias e de cursos devida. Na presença de um ganho de dez, vinte ou trinta anos de vida,faz-se necessário estimular a formação de uma rede de interessadosnessa nova população que cresce em número, demandas evisibilidade. Como podemos ver neste livro, esta rede é formadapor órgãos governamentais os mais diversos, pela comunidade,pelo mercado, pela mídia, pela comunidade científica, pelas

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organizações não-governamentais, por profissionais diversos, mas, principalmente por velhos de cooperativas, manicômios, de rua, de“zoológicos domésticos” e de outros tantos espaços “esquisitos”que, como a Mônica de Renato Russo, seguem seduzindo e selegitimando no curso de vida “normal” , como o de Eduardo. Najuventude, este vivia jogando futebol de botão com um avô queainda não conhecia os clubes de caminhada, as Universidades paraa Terceira Idade, as filas de cinema e tantos outros espaços que avelhice conquistou a partir da década de 1980.

Como um manifesto, eu escrevo esta apresentação em tomotimista, apesar da trágica situação dos velhos de rua, dos locais depoucas condições de trabalho ocupados por cooperados, ou dascondições daqueles que ainda não dispõem de um tratamento de saúdemental adequado às suas fragilidades. Não pretendo desqualificar ouignorar as condições relatadas por Patrocinio e Gatti, que apontaram asituação de vulnerabilidade econômica e social dessa população e osperigos da noção de que os idosos formam uma categoria homogênea.Numa opção assumidamente pouco romântica, quero ressaltar que,apesar de suas duras vidas, estes idosos superam suas dificuldades dealguma maneira e com dignidade. Por meio de distintas formas deexperimentar a vida, e o que ainda de pouco lhes é disponibilizado,contribuem para a construção da visibilidade e para a legitimação desuas demandas no competitivo cenário das disputas sociais brasileiras.É como “velhos” que fazem isso, não como pessoas de rua, loucos,mulheres, ou qualquer outra identidade. Poucas foram as populaçõesvulneráveis, na contemporaneidade, que lograram obter tantavisibilidade e conquistar recursos para superar seus problemas.

Sustentando famílias inteiras no Nordeste brasileiro com suasaposentadorias, chamando a atenção da mídia, de pesquisadores egovernantes, o aumento da população idosa vem provocando aformação de novas categorias de gênero e redefinindo as relações dedependência (Debert, 1994; Lopes, 2003); vêm criando novastrajetórias, demandas sociais e mentalidades no mundo do trabalho eda aposentadoria (Simões, 1998, 1999); gerando novos enfoques emeducação (Cachioni, 1999, 2003), em cuidado (Santos, 2003; Neri,2002), nas relações entre os idosos e a mídia (Neri, 2003; Orjuela,1999) e em relação à finitude (Py, 1999). Estão dando origem a novaspolíticas públicas (Boaretto & Heimann, 2003; Borges, 2003), a novas

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formas de ver as relações intergeracionais (Pacheco, 2003; Barros,1987) e as relações com o corpo (Featherstone, 1994). Revelam-se,assim, novas possibilidades de existir para os idosos, não mais como“esquisitos”, mas como parte de uma ampla categoria socialreconhecida e integrada.

Não podemos fechar os olhos para essas transformações edevemos ter claro o papel de protagonistas que esses velhos e suasexperiências heterogêneas desempenham no redelineamento docurso de vida atual. Talvez não sejam “pessoas esquisitas” numa“festa estranha”, uma vez que a própria existência da diferençaprovoca mudança e os insere silenciosamente num novo curso devida, na construção de novas fases e no estabelecimento de novospapéis sociais. A vida tem sua dinâmica e não espera. As formas degestão do curso de vida estão paulatinamente mudando, pedindo aacomodação de novas “gentes”, entre elas várias categorias deidosos. Os trabalhos apresentados neste livro mostram quepodemos ser nós os Eduardos, “pessoas perdidas nessa festaestranha com gente esquisita”, os cursos de vida contemporâneos.

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POLÍTICASPÚBLICAS

E VELHICE

Reflexões sobre velhosque vivem nas ruas

Preso à minha classe e a algumas roupas,vou de branco pela rua cinzenta.

Carlos Drummond de Andrade

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CAPÍTULO 1

Roberta Cristina Boaretto | Neusa Maria Mendes de Gusmão

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Velhice, idade cronológicae a formulação de políticas públicas

Andar pelas ruas de uma grande cidade impressiona o olhar,marcado pelas pessoas com as quais nos deparamos e pelos contrastesexistentes entre elas e entre os lugares por onde passamos. No meio deuma urbanidade que parece disforme, aos poucos é possível distinguiras pessoas que transitam pelas ruas e outras que nelas permanecem.Um olhar mais atento nos faz enxergar, no entanto, os velhos que aíestão, fazendo parte também do mundo das ruas.

Partindo desse cenário, surge uma primeira inquietação:quem são esses velhos que encontramos nas ruas? Para refletirsobre isso, é necessário indagar previamente sobre a própriavelhice. Para compreendê-la, a Gerontologia e as Ciências Sociaismostram que é necessário realizar uma discussão que contemple asvárias dimensões do processo do envelhecimento, uma vez que elenão é uniforme ou único para todos os indivíduos.

É possível começar pela discussão do limite etário que divide a velhice da idade adulta. Não existe um consenso sobre a partir dequal idade a pessoa deve ser considerada idosa. A Psicologia doEnvelhecimento, por exemplo, considera a idade cronológica como uma das causas do desenvolvimento e, conseqüentemente, doenvelhecimento. É, portanto, a escala de tempo que marca esteprocesso e isso significa que ela é um importante indicador a serconsiderado na compreensão da velhice. Dessa maneira, a idadeconfigura-se como um organizador para quem deseja pesquisar este tema (Neri, 2002).

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No entanto, ao tratar de velhos que vivem nas ruas, a idadepode ser um indicador pouco expressivo e insuficiente. Observa-se,por exemplo, que pessoas que envelhecem e dependem de trabalhosinformais obtidos nas ruas percebem seu próprio envelhecimentonão pela entrada na faixa etária dos 60 anos, mas quando outros asreconhecem como velhas e, portanto, como improdutivas e inaptaspara o trabalho, impedindo que garantam a continuidade de seu meiode sobrevivência. Isso significa que características biológicas, taiscomo a idade, são afetadas, dentre outros, por aspectos culturais.Assim, desloca-se a discussão sobre os limites etários quedistinguem quem é velho ou não para a necessidade de identificarcomo as marcas culturais afetam a velhice.

Nesse sentido, Camarano et al. (1999) apontam quedemarcar um limite pela idade cronológica pode ser decisivo paraos formuladores de políticas, pois isso permite prever o número depessoas sujeitas a benefícios previstos em programas ou políticaspúblicas. Porém, isso mostra um pressuposto de que os sujeitos sãoconsiderados homogêneos espacial ou temporalmente, ou seja, nãoleva em conta diferenças individuais ou de segmentos particularescomo é o caso dos velhos que vivem nas ruas. Esse processo de fixar critérios e, portanto, de selecionar pessoas para que possam seinserir em políticas determinadas envolve disputa de interesses,trata-se de uma escolha. Isso significa que existe uma flexibilidadenos parâmetros de inclusão/exclusão dos sujeitos nas políticaspúblicas, que varia de acordo com a prioridade estabelecida porseus formuladores.

Um breve detalhamento sobre essas prioridades permite dizerque a pauta diretiva das ações políticas, bem como do destino dosorçamentos públicos estão permeados por uma valorização dosaspectos econômicos em detrimento dos sociais, especialmente nasúltimas décadas. Um exemplo disso é a divergência existente entre as diversas leis que tratam sobre idosos, tais como a Política Nacionaldo Idoso (Brasil, 1994), o Estatuto do Idoso (Brasil, 2003) e outras. A idade de 60 anos é o marco usado para definir alguém como idoso,mas benefícios como o de Prestação Continuada (BPC) e o direito àgratuidade para andar nos transportes coletivos são reconhecidospara aqueles com mais de 65 anos – no caso deste último, existe umadistinção por gênero, em que mulheres têm esse direito a partir dos 60

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anos1. Essa flexibilidade reflete não somente a ausência de umconsenso, mas mostra, portanto, que selecionar pessoas para seremincluídas ou não em determinadas políticas envolve interessesdiversos. Nesse sentido, fica acentuada a importância atribuída àdivisão das faixas de idade existente em nossa sociedade para ademarcação de um grupo social, como o dos idosos. Ressalta-setambém que a própria heterogeneidade inerente aos idosos acaba porburlar os esquemas de classificação estabelecidos.

Debert (1998) mos tra que a rele vân cia atri bu ída à idade cro no -ló gica está asso ci ada à ins ti tu ci o na li za ção do curso da vida que é pró -pria das soci e da des oci den tais moder nas, ou seja, à divi são dosdife ren tes perío dos da vida em infân cia, idade adulta e velhice. Essemeca nismo tem como fun ção a atri bu i ção de sta tus, a defi ni ção depapéis ocu pa ci o nais e a for mu la ção de deman das soci ais, res pec ti va -mente reco nhe ci dos como a mai o ri dade legal, a entrada no mer cado de tra ba lho e o dire ito à apo sen ta do ria. Além disso, a frag men ta ção dasfases da vida pela idade está rela ci o nada à deter mi na ção de uma ordem cien tí fica que teve como fun da mento mar car parâ me tros fixos e pre ci -sos para ana li sar o desen vol vi mento humano. A autora aponta aindaque esses cri té rios que sepa ram as ida des atuam como deter mi nan tesdos deve res e dire i tos do cida dão e são estes que defi nem as rela çõesentre gera ções, em detri mento da atu a ção de um apa rato cul tu ral quereflita os está gios de matu ri dade2.

O estabelecimento de classificações pela idade envolve,portanto, uma luta política em que pesa a redefinição dos poderes

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1. Elevar o limite de idade e criar restrições econômicas – como estabelecer odireito ao BPC apenas àqueles que se situam abaixo da linha da pobreza, fixá-la em um salário mínimo e posteriormente reduzi-la para meio salário mínimo –são estratégias normalmente utilizadas para restringir o número debeneficiários que teriam acesso a direitos legalmente constituídos. A esserespeito, conferir Lessa et al. (1997).

2. Uma distinção desta forma de divisão das faixas etárias que encontramos emnossa sociedade pode ser observada na descrição de estudos antropológicoscom tribos indígenas do Brasil e da América do Sul. Dentre elas estão osXavante, que estabelecem classes de idade, organizadas hierarquicamente eque conferem características e reconhecimento da capacidade de realização dedeterminadas funções, autorizando práticas específicas a cada classe,independendo da idade cronológica. Os velhos, por exemplo, são aquelesencarregados de formar as classes de idade abaixo deles e são reconhecidos por terem esse papel social (Maybury-Lewis, 1974).

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ligados a grupos sociais distintos em diferentes momentos do ciclo da vida. Isso significa que, apesar de existir uma antiga preocupaçãocom o envelhecimento, ele passou a se destacar como objeto deinteresse juntamente com o advento da Modernidade, que coincidecom a divisão do ciclo da vida pelas faixas etárias e com a atribuiçãode um espaço social determinado para a infância, a idade adulta e avelhice (Debert, 1998).

Considerando, portanto, os velhos que vivem nas ruas e aspolíticas destinadas a eles, é possível partir do referencial trazido pelasCiências Sociais, que compreende a velhice como uma construçãosocial, o que não significa uma restrição, mas que é preciso levar emconta como ela aparece em diferentes contextos e como é produzidapela sociedade em que está presente. No caso daqueles que estão nasruas, pode-se ainda verificar como são tratados pelos outros e comopassaram a ser alvo das preocupações sociais.

A população de rua é um fenômeno que está relacionado com os centros urbanos e sua existência tem implicações sobre a estrutura eorganização de grandes metrópoles, fazendo assim parte de nossocotidiano. Pensar a velhice, levando em conta que os velhos tambémestão presentes na população de rua, portanto, requer uma reflexãocuidadosa. Nesse sentido, para verificar como os velhos de ruatornaram-se alvo das preocupações sociais e, conseqüentemente, depolíticas públicas, é necessário descrever o contexto social e políticono período em que eles se tornaram alvo dessas ações, especificamente na década de 1990. Assim, torna-se possível compreender como foram influenciadas a formulação de políticas nos municípios em que se situa a população de velhos de rua, de acordo com as diretrizes estabelecidas num panorama mais amplo.

A década de 1990e a Reforma do Estado

Para fundamentar as ações destinadas aos diferentessegmentos sociais, tais como aquelas específicas para os velhos que estão nas ruas, é necessário fazer uma digressão sobre as políticaspúblicas e o processo de Reforma do Estado deflagrado a partir dadécada de 1990, a fim de estabelecer uma relação entre uma linha de

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ação mais abrangente e sua influência nas ações políticasmunicipais direcionadas aos diferentes segmentos sociais.

A Constituição de 1988 foi um marco de referência noestabelecimento de direitos e na consolidação dos espaços formaisde negociação entre Estado e a sociedade civil, conformando oprocesso democrático inexistente até então. Em análise sobre apolítica social brasileira na década de 1990, Lessa et al. (1997)afirmam que os grupos menos favorecidos não tiveram suasnecessidades básicas transformadas em direitos sociais efetivos, aocontrário do que propunha o capítulo da seguridade social daConstituição. Além disso, esse período foi acompanhado por umagrave crise financeira e política, que resultou em uma crise degovernabilidade, atingindo as três esferas de governo, a União,estados e municípios.

Como resultado dessas crises foram criados planos deestabilização econômica e redefinidas as políticas sociais, queacabaram por adquirir um caráter compensatório. O orçamentogasto em projetos e programas sociais foi reduzido e a prioridadepassou a ser conferida a outras áreas, como a de defesa e aeconômica. Assim, houve um redirecionamento do recursoespecífico da seguridade social – que originalmente deveria serempregado apenas para as áreas da saúde, assistência social eprevidência – para, por exemplo, os reajustes fiscais de emergência, tais como o Fundo de Estabilização Fiscal (Lessa et al., 1997). Issosignificou colocar recursos sociais à disposição do governo federalpara serem redistribuídos segundo seus critérios, desviando afinalidade primeira do orçamento da seguridade, ou seja, aspolíticas sociais3.

O processo de Reforma do Estado, iniciado na década de1990 pelo Ministério da Administração Federal e Reforma doEstado – MARE, criado em 1994 – teve como objetivo oferecerrespostas à crise de governabilidade por meio da reforma daadministração pública e conseqüentemente do Estado. De acordo

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3. A disparidade entre os valores das despesas executadas da União, por exemplo parao ano de 2002, indica sobre essa prioridade: as despesas realizadas com Saúde,Assistência Social e Previdência totalizaram pouco mais de 155 bilhões de reais,enquanto que as despesas com juros e encargos de dívida e com amortizações damesma totalizaram mais de 360 bilhões de reais no mesmo ano (Fonte: Ministério do Planejamento, disponível em http://www.planejamento.gov.br).

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com essa proposta de reordenamento, a origem de uma criseimportante no sistema estaria no mercado ou no Estado e assoluções propostas variam de acordo com a filiação ideológica dogrupo que as propõe (Pereira, 1997). Assim, a Reforma do Estadoproposta pelo MARE teve como fundamento a ideologia neoliberalque, segundo Soares (2005), produziu um retrocesso histórico naquestão social e uma valorização do aspecto econômico.

O pressuposto neoliberal da Reforma determinou que não havia problemas com o mercado, mas a questão crucial que envolvia a crisetinha origem no Estado, que tinha característica intervencionista e,portanto, criava um obstáculo para o bom funcionamento da gestãopública4. Além disso, o Estado brasileiro foi considerado ineficiente ecentralizador, permeado de práticas clientelistas e paternalistas quepossuem raízes históricas na política brasileira5.

Esse cenário produziu reflexos na formulação das políticaspúblicas do período. A crise foi definida, portanto, pelo seu aspectoeconômico, sendo necessário reduzir o Estado burocraticamente,adotando um modelo de administração gerencial, que toma comoreferência as práticas privadas, tornando o Estado supostamentemais eficiente e moderno. As práticas recomendadas são aprofissionalização dos funcionários estatais, a reestruturaçãoorganizacional, a redução dos níveis hierárquicos e a privatização eterceirização dos serviços, permitindo transformar o serviçopúblico em mais barato e de melhor qualidade6.

Por meio dessa reorganização, as políticas públicas e sociaisseriam as atividades estratégicas do Estado e seriam financiadas por ele.No entanto, esse processo foi acompanhado por cortes significativos no

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4. Segundo a concepção de Bresser Pereira, autor da proposta de reformulação do Estado brasileiro, “quando há uma crise importante no sistema, sua origemdeverá ser encontrada ou no mercado, ou no Estado. A Grande Depressão dosanos 30 decorreu do mal funcionamento do mercado, a Grande Crise dos anos80, do colapso do Estado Social do século vinte” (Pereira, 1997, p. 9).

5. As reflexões feitas sobre a prática gerencial, introduzida pela Reforma doEstado e aplicada à administração pública neste texto, fundamentam-se notrabalho elaborado pelo Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática(1998/1999).

6. De acordo com Laura Tavares Soares (2005), sob a égide da modernização doEstado, esse processo de reforma também teve como conseqüência a introduçãode novos mecanismos de privatização do aparato público-estatal, implicando aprecarização das relações trabalhistas, as demissões em larga escala e a baixaqualidade dos serviços prestados pelas empresas privatizadas.

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orçamento social, fazendo com que essas ações estratégicas ficassem em segundo plano, pouco incidindo sobre as desigualdades sociais ou sobrea qualidade de vida dos menos favorecidos.

Um outro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao enfoquesubjacente à Reforma do Estado, que não tratou da crise pelo seucaráter ético e político. Isso implicaria a reconstrução da gestãopública sobre bases mais democráticas, o que propiciaria oexercício da cidadania. No entanto, a elaboração de políticaspúblicas tais como as propostas pela Reforma do Estado não previaa participação da sociedade civil, em especial na definição dasprioridades, uma vez que essa é uma das tarefas estratégicas doEstado. Isso vai em direção contrária a uma divisão de poder, emque a sociedade civil seria decisiva no processo de tomada dedecisão e de estabelecimento de prioridades, restringindo-se àexecução das ações definidas pelos formuladores de políticas.

Com relação ainda à partilha de poder, compreende-se que aprática política ficou novamente centralizada, o que pode ter comoresultado a manutenção e reprodução de práticas privatistas eclientelistas criticadas pela própria Reforma. A conformação de umanoção de interesse público, essencial para o processo democrático,caracteriza a necessidade da participação da sociedade civil noprocesso decisório, ou seja, é fundamental a partilha de poder e deresponsabilidades entre Estado e sociedade civil, em que o primeiro é o executor, garantindo não interesses particulares, mas comuns.

É importante ressaltar que há uma multiplicidade deinteresses envolvidos no processo de elaboração das políticaspúblicas, que conseqüentemente não ocorre sem conflitos, mascontribui para a conformação de uma esfera pública de negociação(Dagnino, 2002). Não é, portanto, um processo uniforme, háintensa disputa que se reflete especialmente na prática daadministração pública e na formulação das políticas.

Desta forma, é possível dizer que, apesar da garantiaconstitucional de direitos que asseguram a justiça social, existemdiferentes formas de colocá-los em prática. O município de SãoPaulo é um exemplo a ser descrito no que se refere à formulação deuma política pública para um segmento específico, os velhos de rua, afetada pelo contexto em que foi formulada, o da reformaadministrativa do Estado brasileiro, conforme apresentado a seguir.

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A cidade e os velhos de rua

O município de São Paulo passou, desde a década de 1990, por gestões sucessivas de caráter centralizador e conservador, que foramdescritas como um retrocesso na conquista de projetos sociais7. Duasgestões foram permeadas por essa característica específica,consideradas o divisor de águas nesse período – ocorridas entre osanos de 1993 e 1996 e entre 1997 e 2000 – uma vez que priorizaram aextinção de políticas municipais das áreas consideradas comodireitos básicos, privatizaram setores – como a saúde e transportes – e desarticularam os espaços constitucionais de diálogo entre sociedade civil e Estado, como os conselhos municipais.

Assim, em 2000, o município estava com uma expressivadívida pública, presenciou o aprofundamento das desigualdadesexistentes entre as diferentes regiões da cidade e restringiu o acessoda população aos programas sociais.

Nesse contexto, alguns idosos que viviam em albergues domunicípio de São Paulo participaram em 1996 do Fórum Estadual deMinorias (São Paulo, 1999) – promovido pela Secretaria da Justiça eda Defesa da Cidadania, pelo Conselho Estadual de Defesa dosDireitos da Pessoa Humana, pela Comissão de Direitos Humanos daAssembléia Legislativa e pelo Núcleo de Estudos da Violência daUniversidade de São Paulo – que tinha como objetivo organizar oPrograma Estadual dos Direitos Humanos. Esse fórum foi compostopelos segmentos da população especialmente afetados em seus direitos humanos e, dentre estes, estavam os velhos que viviam nas ruas. Elesapresentaram os problemas vividos nos albergues, tais como ainadequação do espaço físico e a convivência com pessoas de outrasfaixas etárias que não os respeitavam.

A população de rua em São Paulo possui algumas formas deatendimento. Dentre elas estão os albergues, que oferecem o pernoite e são instituições de abrigamento, em geral gerenciados porentidades filantrópicas e conveniadas com a prefeitura. Eles possuem

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7. O Instituto PÓLIS – Instituto de Formação e Assessoria em Políticas Sociais –criou, em 2001, o observatório dos direitos do cidadão, que teve como objetivoacompanhar a evolução das políticas públicas em São Paulo nas últimas décadas,tais como as políticas de saúde (Junqueira, 2001), de educação (Freitas et al.,2001), de habitação (Amaral, 2001) e da assistência social (Sposati, 2001).

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horários e procedimentos rígidos: a entrada ocorre no período entrecinco e seis horas da tarde e a saída é por volta das sete horas damanhã seguinte. Os usuários têm uma carteira de identificação e háum prazo máximo para usar seus serviços – de três meses a um ano,dependendo do albergue.

Há também as casas de convivência que não se destinam aopernoite e são locais onde moradores de rua podem se alimentar,fazer a higiene, lavar roupas e participar de oficinas de discussão de temas como cidadania, saúde e outros; também são conhecidoscomo instituições de acolhimento da população de rua.

Os albergues, portanto, destinam-se ao pernoite e seususuários não podem ficar no local durante o dia, enquanto que ascasas de convivência são destinadas a atividades diárias. Algumasinstituições oferecem no mesmo local ambos os serviços, ou seja,durante o dia realizam atividades de uma casa de convivência e ànoite oferecem o serviço de albergue.

A participação no Fórum Estadual de Minorias constituiu umadas primeiras apresentações das questões vividas pelos velhos queviviam nas ruas. Ao mesmo tempo, as instituições que prestavamserviços para população de rua reconheciam como dificuldades para ocotidiano da instituição a demora dos idosos nas filas para realizarem asatividades de alimentação, banho e outras. A partir disso, foi destinado aeles um tratamento diferenciado em alguns albergues e casas deconvivência – tais como distinguir uma fila e horários especiais.

Isso significa que o reconhecimento das necessidadesdiferenciadas dos velhos que viviam nas ruas aconteceu não somentepelas queixas dos mesmos, mas também – e principalmente – pelasdificuldades provocadas por eles nas instituições por onde passavam. Esta foi uma das maneiras pela qual a atenção pública voltou-se paraesse segmento social. As necessidades dos velhos de rua foram, apartir desse momento, incrementadas e subsidiadas pelo apoio dasinstituições assistenciais, ganhando força e respaldo políticosuficiente para demandar ações da administração municipal, que teve como resposta projetos pontuais, como a criação de uma moradiaprovisória somente para idosos que viviam nas ruas. A elaboraçãodesses projetos, portanto, surgiu como resultado não somente dainsatisfação dos idosos com os serviços destinados à população derua, mas também por uma atuação das instituições assistenciais, que

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partiram de um pressuposto de que os velhos não se adequavam aoserviço oferecido.

As instituições assistenciais filantrópicas tradicionalmentetrabalham com a população de rua em geral, o que se estendetambém no caso dos velhos que vivem nas ruas. Quem vive nas ruasencontra formas alternativas de sobrevivência, que vão desde amendicância até os trabalhos informais. Além disso, essas pessoasmantêm uma rede de relações que as permite sobreviver emsituações adversas. Essa rede se dá com pessoas e também com asinstituições assistenciais, conformando o que Gregori (2000)chamou de trama institucional, auxiliando em dois mecanismosessenciais para quem depende das ruas: a circulação e a viração.

A circulação ocorre num espaço delimitado, onde se situamos locais de alimentação, descanso e de obtenção de dinheiro. Aviração, por sua vez, possui um caráter duplo, ou seja, ao mesmotempo em que é uma estratégia de sobrevivência material, émediadora de posicionamentos simbólicos que estabelecem quemdeve ser aquele sujeito que está nas ruas e, conseqüentemente, qualdeve ser a forma de tratamento e as ações destinadas a eles.

A trama institucional que envolve os velhos que vivem nasruas, bem como a população de rua em geral, age de forma paradoxal, pois ao mesmo tempo em que as instituições assistenciais acolhem,também alimentam sua situação e impedem o rompimento com essaforma de viver. A conseqüência disso é a transformação de quemvive nas ruas em um objeto de disputa, passando a pertencer àsinstituições. A disputa pelos velhos que vivem nas ruas não é restritaàs entidades assistenciais, ela se estende aos profissionais, ONGs eórgãos governamentais que contribuem para tornar públicas asquestões relativas a esse segmento social.

Publicização e a construçãode um problema social

A população de rua passou a ser alvo de estudo especialmentea partir da década de 1990, o que tem explicação tanto pelo seucrescimento numérico, como também pelo efeito econômico que

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esse segmento passou a representar nos orçamentos municipais – pormeio da assistência social – e na estruturação urbana.

Isso explica, em parte, o interesse despertado pela populaçãode rua como objeto de pesquisa, ou seja, no momento em que elaafeta a dinâmica da cidade da qual faz parte e quando o Estado passa a ser responsável pelas ações políticas destinadas à mesma. Oscensos sobre população de rua, realizados no município de SãoPaulo, ganharam destaque a partir de 2000, quando foi criada umametodologia para realizar essa contagem, o que reafirma o interesse sobre esse segmento social e mostra a necessidade de quantificar eexercer um controle sobre seu crescimento e, conseqüentemente,sobre suas demandas.

Considerando o cenário apresentado para a década de 1990 para o Brasil e o município de São Paulo, é possível dizer que havia umapequena possibilidade de que os velhos de rua obtivessem visibilidadepolítica suficiente para adquirir legitimidade em suas demandas frenteao poder público. No entanto, em 1999 foi criada uma instituiçãodestinada à moradia de velhos que viviam em albergues e nas ruas deSão Paulo, em que diversos atores sociais promoveram a publicizaçãoda situação vivida por eles. O detalhamento dessa ação política seráapresentado no capítulo subseqüente.

É necessário ressaltar que esse processo ocorreu de maneiraconflituosa e, segundo Dagnino (2002), isso acontece quando oprojeto político da administração pública diverge do que propõe asociedade civil. A participação desta no momento de formulaçãodas políticas públicas pode ser retomada, pois essa foi a maneiraencontrada para que, por exemplo, as questões dos velhos de ruaganhassem expressão.

Debert (1998) mostra que, apesar de o crescimento numérico de um segmento social ser um importante argumento para explicar a atenção sobre ele, é insuficiente. Isso significa levar em conta osprocessos pelos quais algo se transforma em problema que adquireexpressão e legitimidade no campo das preocupações sociais.

Para Lénoir (apud Debert, 1998), um problema social é umaconstrução social, não é resultado apenas de um problema defuncionamento da sociedade. Esse processo é constituído porquatro dimensões: o reconhecimento, a legitimação, a pressão e aexpressão por parte do social.

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O reconhecimento confere visibilidade a uma situação que éparticular e, por isso, é necessário conquistar a atenção pública, oque supõe a ação de grupos socialmente interessados em produziruma nova categoria de percepção sobre o real para atuar sobre ele.A legitimação, por sua vez, parte de um esforço realizado parapromover este problema e inseri-lo no campo das preocupaçõessociais, implicando uma mobilização e incorporação como objetode luta política. A pressão é realizada por meio de atores sociais queocupam posições privilegiadas, atuando como porta-vozes etornando a categoria social uma questão pública. O passo seguinte é a expressão pública, na qual se estabelecem as definições sobre oproblema e sobre as práticas a serem concretizadas a partir dele.

Pode-se dizer que os velhos de rua tornaram-se um problemasocial no contexto das políticas públicas no município de São Paulo.No entanto, isso não significa que se tornaram um segmento prioritário para a ação política. Diversos apontamentos se afiguram quando setrata essa questão, mas vale dizer que a prática política exercida emmunicípios como São Paulo, quando pontuais e pouco efetivas, acabareproduzindo as práticas vigentes de marginalização dos idosos eassociando a velhice às ruas, configurando este como um novo lugarpara os velhos.

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A PERSPECTIVADOS SUJEITOS

SOCIAIS

Uma ação política direcionadaaos velhos de rua

A pessoa que eu fui, depois que eu trabalhei,vivi com meu esforço próprio,

chegar naquela situação de miséria na rua.(...) Que a vida na rua é ruim, é.

É uma guerra, não respeita ninguém.

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CAPÍTULO 2

Roberta Cristina Boaretto | Neusa Maria Mendes de Gusmão

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A epígrafe acima faz parte do depoimento de um idoso quepassou um período de sua vida nas ruas de São Paulo. Ela nospermite uma breve aproximação daqueles que se encontram nessasituação e nos mostra o estranhamento do próprio narrador por estar nas ruas.

O presente capítulo tem como finalidade descrever umainstituição criada no município de São Paulo em 1999 e reestruturadaem 2004, destinada à moradia provisória de velhos que viviam emalbergues e nas ruas. Ela foi resultado da iniciativa de diversos atoressociais, tais como os velhos que viviam nas ruas, assistentes sociaisque trabalhavam na administração municipal e em instituições deatendimento de população de rua, além de integrantes do conselho derepresentantes dos idosos no município. O processo aqui apresentadorefere-se ao período de implementação da instituição, sendo possíveldefinir o contexto em que foi criada e assim compreender aconvergência de aspectos necessários para sua concretização. Outroponto a ser destacado é sobre o papel e o lugar destinado aos velhos derua a partir da criação da instituição.

Os diferentes atores e o processode reconhecimento do problema social

A proposta dessa moradia provisória, designada comoCasa-Lar e Convivência São Vicente de Paula, teve origem a partirde um grupo de discussões composto por idosos que freqüentavam

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uma das casas de convivência conveniadas com a então Secretariada Família e Bem-Estar Social – FABES1 – área responsável pelapopulação de rua e pelos idosos no município à época. Essasreuniões tiveram início alguns anos antes da criação da Casa-Lar,como resultado de oficinas de cidadania e direitos, realizadas comos usuários da casa de convivência.

Um dos motivos de interesse por essas discussões estava naconstatação de que o número de idosos que usavam os serviços dacasa de convivência tinha aumentado e, além disso, constatou-se queeles tinham dificuldade e lentidão nas filas para tomar banho, fazer aalimentação e outras atividades. Pode-se dizer que os idosos, a partirdisso, foram considerados diferentes do restante da população de ruaque freqüentava as casas de convivência, tornando-se um segmentocom necessidades diferenciadas e, como tal, deveriam ser atendidospor um serviço específico oferecido pela FABES.

O projeto da Casa-Lar propunha que fosse destinada a

idosos moradores de rua, independentes e socialmente

ativos, de ambos os sexos, a partir de 60 anos, com

flexibilidade para o atendimento de pessoas com mais de 50

anos que apresentem evidente envelhecimento precoce

(São Paulo, 1999, p. 4).

Os chamados “idosos” correspondiam às pessoas com maisde 60 anos, mas para essa proposta, era permitida a inclusãodaqueles com mais de 50 anos, uma vez que os profissionais quetrabalhavam com população de rua compreendiam a existência deum “processo de envelhecimento precoce” para esse segmento,flexibilizando a idade em que considerariam idosos os que viviamnas ruas. Esse fato demonstra a dificuldade existente para osformuladores do próprio projeto em definir a idade a partir da qualseriam inseridos os sujeitos, estabelecendo um critério arbitráriopara que mais pessoas fossem incluídas, relativizando o limiteetário que define a velhice.

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1. O nome desta Secretaria mudou posteriormente para Secretaria de AssistênciaSocial – SAS – e em 2005 denominava-se Secretaria de Assistência eDesenvolvimento Social – SADS. Essas alterações ocorreram durante asmudanças de secretário ou da gestão do município.

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A casa de convivência onde se realizavam as reuniões eraconveniada com a FABES e, portanto, estava sob sua supervisão.Assim, teve início uma negociação com a Secretaria sobre apossibilidade de criar uma instituição específica para os idosos derua, incorporando nas discussões assistentes sociais da FABESjuntamente com os idosos. As reuniões realizadas indicavam paraas funcionárias da FABES e para as assistentes sociais da casa deconvivência que não bastaria criar um albergue diferenciado paraidosos, uma vez que suas necessidades os impediriam de sairdaquela situação e não teriam como obter renda por meio detrabalho, como outras pessoas que vivem nas ruas. Assim, aproposta formulada deveria contemplar um espaço de permanênciapara os idosos durante o dia, configurando uma instituição nosmoldes de uma casa e não de um albergue.

A proposta de moradia provisória que se concretizou com acriação da Casa-Lar e Convivência São Vicente de Paula não tinhacomo objetivo substituir a rede já existente de acolhimento para apopulação de rua, pois tratava-se apenas de uma alternativaespecífica para os idosos.

Ao mesmo tempo em que se realizavam as discussões com os idosos na casa de convivência, as assistentes sociais da prefeiturapromoveram uma articulação entre as instituições filantrópicasassistenciais que trabalhavam com idosos – para além das quetrabalhavam com a população de rua, incluindo as de lazer e cultura– na região central da cidade, onde seria criada a Casa-Lar, com aintenção de promover um diálogo sobre os trabalhos realizados poressas instituições. Iniciaram também uma articulação com asassociações e federações de aposentados, que estavam localizadasna região central da cidade. Esse trabalho resultou na proposta deformalização de um fórum de representação dos idosos da regiãoCentro, juntamente com o conselho de participação dos idosos emSão Paulo, o Grande Conselho Municipal do Idoso – GCMI.Pode-se afirmar que esse processo foi o responsável por destacar otema dos idosos nos espaços de discussão da FABES, no conselhodos idosos e nas associações de aposentados, publicizando osproblemas e as demandas dos velhos de rua na região Centro de São

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Paulo. Dessa forma, outras instituições agregaram-se às reuniõesdos idosos de rua, nesse momento já realizadas no local destinado àmoradia provisória.

O projeto estava fundado em três eixos principais: a moradiaprovisória, com capacidade para dezesseis pessoas, a convivência com a população do entorno da instituição, com capacidade para aparticipação em oficinas de 150 pessoas e a geração de renda. Onúmero de idosos que participava das reuniões era superior adezesseis, sendo necessário um processo de seleção, ou seleção dedemanda. Nesse momento, a seleção foi ampliada para outras casas deconvivência conveniadas com a FABES. Um dos critériosestabelecidos foi, estivessem os idosos em albergues ou nas ruas, anecessidade de participarem de algum grupo de discussão nas casas deconvivência. Dessa forma, elas se tornaram a ponte para a Casa-Lar.

Da mesma forma que as instituições de acolhimento e deserviços voltados para a população de rua formam uma tramainstitucional (Gregori, 2000), elas se caracterizam como fonte derecurso e como oportunidades de deslocamento para os moradores derua. Além disso, tentam minimizar as condições de sofrimento, atuamna construção de uma imagem junto à opinião pública e fazem o papelde mediadoras de conflitos diversos, envolvendo a população de rua eos agentes que provocam sua expulsão dos logradouros (Frangella,2004). Isso significa que as redes institucionais alimentam o circuitoda rua, produzindo uma clientela e sendo produzida por ela, em umacontínua aliança permeada por conflitos. As casas de convivênciaforam, dessa forma, a passagem para a Casa-Lar e as assistentes sociais eram responsáveis pela indicação de quais idosos tinham condições departicipar do projeto.

Esse processo de elaboração da Casa-Lar conferiu,inicialmente, visibilidade à particularidade da situação dos velhosde rua. Para isso, foi necessário o reconhecimento promovido pormeio da ação das instituições, do conselho e da Secretaria, quetinham interesse nesse segmento social.

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A efetivação da proposta:legitimação e expressão

Nesse contexto, a Casa-Lar e Convivência São Vicente dePaula foi criada como proposta de moradia provisória para idososque viviam em albergues e nas ruas do município de São Paulo,instituição administrada diretamente pela FABES. Essa era umaação de intervenção, que tinha como objetivo a transição dos idososa uma outra condição, mais autônoma em relação a suamanutenção. A visão subjacente a essa proposta era a de responder,portanto, a um problema social que os idosos representavam e quefoi adquirindo reconhecimento e legitimidade como tal. Alémdisso, a instituição respondia à necessidade de se encontrar umasolução para os limites dos equipamentos assistenciais disponíveispara os velhos que viviam principalmente nos albergues, de umamaneira que atendesse aos reclamos dos sujeitos sociais.

A despeito da organização empreendida para se criar aCasa-Lar e Convivência São Vicente de Paula, a coordenaçãocentral da Secretaria – FABES – desconhecia os detalhes do projeto e tinha como prioridade naquele momento – 1999 – os trabalhosrealizados com crianças2. Como descrito no capítulo anterior, essefoi o período final de uma gestão municipal que encerrou diversosprojetos sociais e não considerava importante a participação dasociedade civil na formulação das ações políticas. A criação daCasa-Lar transcorreu paralelamente a essa gestão, por meio deprofissionais da Secretaria que tinham estabelecido uma prioridadede atendimento para os velhos de rua.

Uma das propostas da instituição era a co-gestão, pois setratava de idosos autônomos que tinham condições de realizartarefas na casa, como alimentação e limpeza; os funcionários

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2. As responsáveis pela área do idoso na região central da FABES e pelaefetivação da Casa-Lar encontravam-se, segundo seus relatos, numa situação,dentro da Secretaria, em que eram “orientadas” a não fazer trabalhos queenvolvessem os movimentos sociais ou provocassem grandes polêmicas. Agestão municipal deste período (1997-2000) era uma continuidade da gestãoanterior (1993-1996), dirigida por Paulo Maluf, que sucedeu a primeira gestãodo Partido dos Trabalhadores na cidade, administrada por Luiza Erundina, daqual estas funcionárias – assistentes sociais – participaram ativamente.

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tinham como atribuição orientá-los na execução dessas tarefas. Nodecorrer da implantação da instituição havia um discurso devalorização das decisões dos idosos sobre o funcionamento da casa. No entanto, a prática mostrou ser diferente do que se propunha oprojeto inicial.

A dinâmica da Casa-Lar contava com reuniões dos idosos ereuniões técnicas. Um dos temas tratados constantemente era sobrea provisoriedade da instituição. De acordo com a proposta inicial, ocaráter provisório da moradia não deveria ser entendido como umprazo determinado, mas como o tempo necessário para que todos os residentes tivessem condições de garantir a sua moradia definitiva,fosse por meio do retorno à família, da geração de renda ou daorganização e reivindicação por moradia. Por esse motivo, ainstituição oferecia oficinas sobre vários temas, enfatizando acidadania e a moradia.

Esta ênfase originou-se nas reuniões com os idosos, uma vezque eles expressavam a insatisfação com os albergues, a falta derespeito por serem mais velhos e a falta de dignidade que sentiam.Isso foi traduzido pelas assistentes sociais da Secretariaresponsáveis pelo projeto como a busca pela cidadania, pois o fatode eles estarem nas ruas não significava que não fossem cidadãos ou que não tivessem direito de opinar sobre suas necessidades. Odiscurso permeado pela cidadania, presente nos moradores efuncionários da instituição foi, portanto, uma interpretação do queos sujeitos sociais demandavam, tendo como resultado a estrutura eorganização da Casa-Lar tal como foi criada.

A despeito disso, houve uma distância entre o projetoproposto inicialmente e a prática que se desenrolou após a entradados moradores. O caráter de “co-gestão”, por exemplo, que visava à autonomia e à reinserção na sociedade, foi compreendido comoproposta inovadora3, mas não repercutiu dessa maneira nocotidiano dos idosos, caracterizando uma incongruência entre o que os idosos pareciam ter como idéia de projeto e a prática vivida.

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3. As responsáveis pelo projeto na FABES estudaram a Política Nacional doIdoso (Brasil, 1994) juntamente com a Lei de Organização da AssistênciaSocial (Brasil, 1993) e levantaram as instituições existentes para idosos nopaís. As alternativas destinadas às moradias existentes não possuíam o caráterconferido à Casa-Lar, consistiam apenas em experiências de repúblicas paraidosos e asilos.

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Por outro lado, o projeto ganhou visibilidade na Secretaria,na mídia, no conselho dos idosos do município – GCMI – e noseventos públicos sobre idosos4 realizados na cidade de São Paulo,por meio da participação dos moradores e da atuação dasresponsáveis pela instituição na Secretaria. Em 2000, ano eleitoral,a FABES sofreu algumas alterações, passou a ser designada comoSecretaria de Assistência Social – SAS – e teve nova coordenação.Iniciou-se outro projeto para a população de rua e para idosos derua, mas desta vez, com pleno conhecimento e apoio da Secretaria.O terreno destinado à construção do novo projeto comportaria umalbergue para a população de rua e uma área somente para idosos,composta por 20 casas destinadas à moradia provisória, um espaçode convivência e uma cozinha comunitária. Os idosos da Casa-Larforam convidados a visitar o terreno onde seria construído oprojeto, o que mostrou não somente o reconhecimento, mastambém a legitimidade dessas pessoas como representantes dosidosos que viviam nas ruas. Outro aspecto relevante é sobre aseleção de demanda para esse novo projeto: teve prioridade o grupode convivência da Casa-Lar, o que confirma mais uma vez osmoradores da Casa-Lar como representantes legítimos dos velhosque viviam nas ruas.

Até então, a experiência da Casa-Lar e Convivência SãoVicente de Paula adquiriu visibilidade suficiente para que o poderpúblico municipal incorporasse a necessidade de criação deinstituições voltadas especificamente para idosos que viviam nos

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4. A FABES, juntamente com a prefeitura, organizou dois seminários intituladosO idoso e a cidade de São Paulo, que contou com a presença de váriassecretarias municipais, vereadores, conselheiros do GCMI e teve como temasas políticas municipais do idoso e diretrizes a serem traçadas pelo governomunicipal. O segundo seminário ocorreu em 1999 e foi o primeiro eventopúblico da FABES em que os moradores da Casa-Lar organizaram-se, com oauxílio das supervisoras do projeto, e fizeram relatos sobre sua situação nosalbergues e a mudança com a Casa-Lar. Em todos os eventos em que seapresentavam, os moradores narravam uma história de participação ereivindicação que haveria culminado na criação da instituição. Além desseevento, os moradores da Casa-Lar fizeram depoimentos na Câmara Municipaldos Vereadores de São Paulo, dentro do seminário mensal intituladoQualidade de Vida para um Envelhecimento Saudável, organizado pelo entãovereador José Eduardo Cardozo desde 1996, que contava com a participaçãode profissionais da área do idoso, secretários municipais, acadêmicos erepresentantes de movimentos sociais, além dos próprios idosos.

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albergues e freqüentavam casas de convivência. Isso, no entanto,não significou uma diretriz política voltada para o idoso de rua, masafetou suficientemente os espaços de discussão para que seconformasse uma noção sobre as demandas específicas dessesegmento. Não houve, portanto, a consolidação de uma políticamunicipal para o idoso de rua que integrasse diversas secretariasmunicipais.

A ausência de uma diretriz política fez com que a Casa-Larfosse substituída por um projeto diferente em 2004. Ainda em 2001, houve mudança na gestão administrativa da cidade e a SAS também foi reformulada. O projeto inicial da Casa-Lar foi questionado,essencialmente sobre a provisoriedade, que não era aplicada, esobre os custos, ou seja, a Secretaria considerou excessiva apermanência dos moradores na instituição, além de ser um projetocaro para atender dezesseis pessoas, sem levar em consideração acapacidade para as atividades de convivência.

O processo de desmonte da Casa-Lar teve como argumento aquestão da tutela5. Entre 2003 e 2004 foram realizadas audiênciaspúblicas na Câmara dos Vereadores de São Paulo, no intuito depromover um debate entre a SAS – que entendia a Casa-Lar comoinstituição de tutela sobre os idosos de rua, uma vez que ofereciagratuitamente moradia e alimentação – e os moradores dainstituição – que entendiam não serem tutelados pela Secretaria,pois a Casa-lar oferecia condições de recuperarem sua autonomia,não sua dependência. O resultado desse embate político foi oconsenso de que os idosos não deveriam ser tutelados pela SAS, que reconhecia sua autonomia; mas em contrapartida, as instituições demoradia para idosos deveriam ser remuneradas6 e ter prazos fixosde permanência.

A Casa-Lar trouxe benefícios para seus moradores, bemcomo para os velhos que vivem nas ruas, pois promoveu umdiscurso sobre esses sujeitos e publicizou suas demandas. Além

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5. Outras estratégias usadas pela SAS foram a suspensão do fornecimento de gáse alimentos pela Secretaria Municipal de Abastecimento – SEMAB – comoforma de pressionar os moradores para se cotizarem e manterem ofuncionamento da Casa-Lar, além da suspensão gradual das oficinas,reduzindo o número de conviventes da instituição.

6. Prática esta que tem amparo no Estatuto do Idoso (Brasil, 2003).

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disso, os moradores da Casa-Lar mobilizaram-se para aorganização de um movimento de reivindicação por moradia paraidosos de rua, explicitando que a passagem para uma moradiadefinitiva somente seria possível por um diálogo do projeto comoutras Secretarias, como a da Habitação, construindo uma políticamunicipal integrada com projetos de moradia popular.

Dois aspectos foram decisivos para a extinção da Casa-Lar: oprimeiro deles refere-se à prática institucional exercida no dia-a-diados moradores. A idealização do projeto inicial não garantiu que seconcretizassem as diretrizes estabelecidas – que tiveram como causatanto a falta de apoio institucional da SAS, quanto a atuação defuncionários e moradores – o que resultou na aplicação de normasrígidas e descaracterização da instituição como uma casa e retirandoa prioridade pela autonomia, fazendo com que a prática fossereprodutora e mantenedora apenas da instituição e das práticas desegregação de idosos e de moradores de rua vigentes em nossasociedade, esquecendo-se e afastando-se dos sujeitos aos quais foidestinada.

O segundo aspecto refere-se à disputa de poder entre aSecretaria e os idosos e estes passaram a representar um projetopolítico distinto do que a primeira intencionava, fazendo parte deuma disputa na qual não tiveram condições de se sustentarpoliticamente, em especial em um momento em que não contavamcom o apoio das instituições assistenciais e da própria Secretaria,contrariamente ao que foi observado no período de criação daCasa-Lar. Todo esse processo de início e fim de uma ação políticateve implicações na vida daqueles que passaram pela instituição.

A repercussão da instituiçãono cotidiano dos sujeitos sociais

Primeiramente pode-se dizer que a Casa-Lar funcionoucomo objeto de publicização de uma situação vivida pelos idososno contexto paulistano, suficiente para ser o enunciador de umapolítica a ser efetivada pela administração municipal. O que se viu,no entanto, foi uma ação política que se fez mais em nome dos

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próprios gestores e das demandas de um campo político, do que emrazão dos sujeitos que dizia defender. Assim, pode-se dizer que odestaque e a repercussão dos idosos como atores sociais, obtidosdentro dos espaços de negociação política, implicaram açõespontuais e paliativas, sem promover uma reestruturação daconcepção sobre os idosos que vivem nas ruas, mostrando aausência de uma política efetiva e abrangente.

A transformação que esses idosos sofreram, entretanto, não foiapenas externa, física, ou seja, das ruas para a Casa-Lar. Eles tambémtransformaram a forma de se posicionar diante de um mundo que oscoloca à margem. Investiram-se e foram investidos de novos papéis,encararam o que lhes acontecia de modo a avaliar o que e quem eram, o que e quem eram os outros que com eles compartilharam um processode organização e de luta por cidadania e direitos. Não semcontradições, uma vez que são sujeitos, não apenas de uma história,mas de muitas que fizeram parte de seu cotidiano. Dentre elas, a deterem se apropriado dos fatos em movimento, compondo a cadamomento a própria história, antes e depois da rua, antes e depois daCasa-Lar e Convivência São Vicente de Paula.

A experiência de viver na Casa-Lar foi vivenciada por algunsmoradores como um aprendizado, a instituição foi considerada uma“escola de vida”. Eles entenderam que naquele espaço tiverampossibilidades inexistentes enquanto estavam nos albergues e nas ruas, onde não tinham reconhecimento; além disso, consideraram relevantea existência de um projeto daquela natureza para idosos, especialmente pela iniciativa de oferecer uma possibilidade até então inexistente. Aomesmo tempo, os sujeitos dessa ação política identificaram osproblemas de funcionamento da instituição, especialmente em relaçãoao gerenciamento das normas e à diferença de tratamento dispensadopelas funcionárias a alguns moradores. As regras criadas na Casa-Larserviram como um mecanismo de readequação que reproduzia otratamento conferido à população de rua em geral. Isso significa queeles eram tratados – por funcionários e pelos próprios moradores –como inadequados e precisavam, portanto, ser reeducados em seumodo de agir e de se comportar.

Um outro aspecto importante é sobre a intolerância existenteem relação aos moradores, marginalizados duplamente pelasobreposição do mundo das ruas e da velhice. Essa imagem

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negativa refletia-se na prática cotidiana da Casa-Lar, ou seja,aqueles eram sujeitos que carregavam consigo não somente oestereótipo da teimosia, intransigência e decrepitude, mas tambémda vagabundagem e desleixo.

A organização e a estrutura da Casa-Lar funcionou, paraalguns moradores, tanto como medida de correição – necessáriapara os outros moradores – quanto como possibilidade deconscientização política. Além disso, a Casa-Lar ofereceuvisibilidade pessoal para alguns moradores, uma vez que setornaram representantes dos idosos da instituição nos espaços denegociação política, como o Grande Conselho Municipal do Idoso– GCMI – e as audiências públicas na Câmara dos Vereadores.

Isso significa dizer que, por meio dessa tentativa de ampliaçãoda publicidade de suas questões, ocorreu uma institucionalização dogrupo dos moradores da Casa-Lar, pois eles não ocupavam maisapenas aquele espaço, articularam-se com movimentos de moradia,inseriram-se no GCMI e representaram o segmento da população derua no Orçamento Participativo da cidade, definindo, em algumasregiões, prioridade orçamentária para projetos com idosos de rua.Ampliaram-se, desta forma, a atuação e a legitimidade desse grupo nos espaços de negociação política.

O processo de implantação da Casa-Lar mostra, como aponta Gusmão (2004), que a elaboração de uma política social pode, naverdade, deixar transparecer uma prática frágil diante dos desafiosencontrados, a despeito de parecer buscar a efetivação dos direitossociais. As políticas sociais são o reflexo de uma capacidade deorganização em que estão envolvidos tanto o Estado quanto asociedade civil, porém, nem sempre em diálogo, como se pôdeobservar na relação entre os moradores da instituição e a Secretariade Assistência Social.

A concepção sobre os velhos de ruae as perspectivas para a ação

Os velhos que viviam nas ruas de São Paulo e passaram aviver na Casa-Lar alcançaram visibilidade em relação à sociedadecivil e ao governo municipal, desdobrando-se em ações políticas e

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no reconhecimento deles como um segmento social relevante emerecedor da atenção pública. No entanto, ações pontuais que nãorefletem uma política pública ganharam notoriedade pelos meios de comunicação, em especial quando ficou evidente o descaso comaqueles que vivem nas ruas. Três fatos acontecidos em 2005 sãorepresentativos da maneira como essa questão da população de ruatem sido abordada pela administração municipal, indicando asconcepções subjacentes à sua atuação.

O primeiro mostra um idoso que vivia em uma praça de umbairro nobre de São Paulo. Manoel Menezes da Silva, 68 anos deidade, fora internado dias antes involuntariamente no HospitalPsiquiátrico Pinel por apresentar, segundo laudo médico,condições de demência. Ele transitava no bairro há 20 anos e oincômodo causado por sua presença – em especial as condições dehigiene – levou os moradores do bairro a acionarem a Guarda CivilMetropolitana, a Secretaria de Assistência e DesenvolvimentoSocial e a limpeza urbana para retirá-lo da praça.

O secretário municipal do desenvolvimento e assistênciasocial afirmou que Manoel apresentava

(...) as características de uma pessoa mentalmente enferma:

não trabalha, nem como carroceiro, não consegue se

limpar, dorme no chão, é refratário ao uso de albergues e

equipamentos municipais para alimentação e higiene. (...)

Queremos institucionalizar todos os moradores de rua”

(Capriglioni & Bergamo, 2005, p. C10).

Retirar esse idoso das ruas não significou necessariamenteuma maneira de reinseri-lo na sociedade, mas consistiu,fundamentalmente, em retirá-lo de circulação, institucionalizando-o. Pouco tempo depois, Manoel foi liberto e recebeu um habeas corpusconferido pelo Ministério Público para transitar livremente pelasruas da cidade.

Em agosto de 2005, os jornais noticiaram o despejo decrianças de rua de suas “casinhas de boneca”. Eram pequenas casasde madeira colocadas na rua por uma instituição assistencial comoforma de atenuar a situação das crianças; a iniciativa foi aprovada por seus moradores. No entanto, a prefeitura decidiu recolher asmoradias improvisadas e a ação ficou restrita ao despejo que se deu

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ao ar livre. A cena mostrava a brutalidade dos funcionários daprefeitura arrancando as casas e o caminhão saindo às pressas,atingido por algumas pedras jogadas pelas crianças que continuaramna rua, ao contrário das casas.

Em outu bro do mesmo ano, a pre fe i tura colo cou as cha ma das“ram pas anti men di gos”, cons tru í das sob via du tos para impe dir a per -ma nên cia dos mora do res de rua. Como resul tado dessa ação, diasdepois os mora do res expul sos de um via duto na região cen tral encon -tra vam-se em outro bairro, ape nas trans fe ri dos for ço sa mente de lugar.

Essas ações não conformam uma política pública destinada àpopulação de rua, pois visam apenas à retirada dessas pessoas delocais onde são indesejadas. Apesar de visíveis publicamente, olugar dos moradores de rua, velhos, adultos e crianças permanecesendo as ruas, reafirmando a falácia de ações que em tese pretendem reinserir essas pessoas na sociedade ou dar condições para que elassobrevivam dignamente.

Os canais de interlocução entre o governo municipal e asociedade civil por vezes ficam interrompidos, comprometendo asperspectivas de elaboração de ações efetivas conjuntamente comsegmentos específicos como os velhos de rua. Os grupos consolidadose organizados, tal como se constituíram os moradores da Casa-Lar,continuam atuando para garantir a manutenção desses espaçospúblicos de negociação.

Em A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade (1997,p. 25) nos chama a atenção:

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

A for mu la ção e a imple men ta ção de polí ti cas sem a par ti ci -pa ção da soci e dade civil podem pro mo ver ações que se dis tan ciamdos suje i tos a quem elas se des ti nam. Sendo assim, a real dis po si ção dos diver sos ato res gover na men tais é impres cin dí vel para umaapro xi ma ção efe tiva entre as polí ti cas públi cas e as neces si da desdos dife ren tes seg men tos sociais.

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ReferênciasAndrade, C. D. de. (1997). A flor e a náusea. In C. D. de Andrade. AntologiaPoética. Rio de Janeiro, RJ: Record.

Brasil. (08 dez. 1993). Ministério da Previdência e Assistência Social. Lei 8.742,de 07 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da assistência social e dáoutras providências. Diário Oficial da União. p. 18769.

Brasil. Presidência da República. (05 jan. 1994). Lei 8.842, de 04 de janeiro de1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, p. 77.

Brasil. Presidência da República. (03 out. 2003). Lei 10.741, de 01 de outubro de2003. Dispõe sobre o estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial daUnião, p. 1.

Capriglione, L, & Bergamo, M. (maio 2005). O morador de rua que irritou umbairro e acabou no Pinel. Folha de São Paulo (p. C10). São Paulo, 22. Cotidiano.

Frangella, S. M. (2004). Corpos Urbanos Errantes: uma etnografia da corporalidadede moradores de rua em São Paulo. 361p. Tese de Doutorado em Filosofia e CiênciasHumanas), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual deCampinas, Campinas.

Gregori, M. F. (2000). Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo:Companhia das Letras. 288p.

Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática (1998/1999). Dossiê: osmovimentos sociais e a construção democrática. Idéias. ano 5(2) 000000/ 6(1),7-122. Campinas, SP.

Gusmão, N. M. M. de. (2004). Os filhos da África em Portugal: antropologia,multiculturalidade e educação. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais – ICS –Universidade de Lisboa, 362p.

São Paulo, Secretaria Municipal da Família e Bem-Estar Social. (26 abr. 1999). Projeto da Casa-Lar e Convivência. Ofício nº 041/99.

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REINSERÇÃODE IDOSOS NO

MUNDO DA VIDAE NO MUNDO

DO TRABALHO

Algumas possibilidades

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CAPÍTULO 3

Wanda Pereira Patrocinio | Maria da Glória Marcondes Gohn

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Neste texto pretendemos desenvolver uma reflexão sobre aproblemática da velhice na sociedade contemporânea, na qual osvelhos são, muitas vezes, excluídos, sofrendo de preconceitos ediscriminação. Partiremos desse contexto para discutirmos como aeconomia solidária, por meio do cooperativismo, pode promoveruma possibilidade de transformação desta realidade, reinserindo osidosos no mundo da vida e no mundo do trabalho.

Num primeiro momento, contextualizaremos o conceito develhice adotado em nossa reflexão e abordaremos as possibilidadesde sua reinserção no mundo da vida. Por fim, discutiremos oconceito de mundo do trabalho por meio da Economia Solidária edo Cooperativismo como alternativa para a inclusão social deidosos como sujeitos participativos e ativos no mundo.

Contextualizando a velhicee as possibilidades de sua reinserção

no mundo da vida e do trabalho

Mundo da vida

O conceito de Mundo da Vida é tratado por Habermas(1987), na obra Teoria de la acción comunicativa, em que esseautor nos traz uma teorização sobre mundo da vida e sistemas. Omundo da vida é um lugar transcendental em que os sujeitos podemse encontrar, podem se criticar, resolver seus desentendimentos e

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chegar a um acordo. E temos como componentes estruturais domundo da vida: a cultura, a sociedade e a personalidade.

Analisaremos o primeiro componente do mundo da vida, acultura Habermas compreende a cultura como acervo de saber, em queos participantes na comunicação se abastecem de interpretações paraentender algo no mundo. O segundo componente estrutural de mundoda vida, segundo Habermas (1987), é a sociedade que são asordenações legítimas através das quais os participantes na interaçãoregulam seu pertencimento a grupos sociais, assegurando com isso asolidariedade. Por fim, a personalidade compreende competências que convertem um sujeito a ser capaz de linguagem e de ação, isto é, que ocapacitam para tomar parte nos processos de entendimento e paraafirmar nesses processos sua própria identidade.

Freire (1975, p. 65) considera fundamental a questão dacultura; para ele:

O homem como um ser de relações, desafiado pela

natureza, a transforma com seu trabalho; o resultado desta

transformação, que se separa do homem, constitui seu mundo.

O mundo da cultura que se prolonga no mundo da história.

Mas o conceito de cultura que permeia este texto é o adotadopor Gohn (2001b, p. 98):

A cultura é concebida como modos, formas e processos

de atuação dos homens na história, onde ela se constrói. Está

constantemente se modificando, mas, ao mesmo tempo, é

continuamente influenciada por valores que se sedimentam

em tradições e são transmitidos de uma geração para outra.

A autora coloca que Malinowski demoliu a concepção decultura como colcha de retalhos, muito presente em abordagensevolucionistas, reafirmando que ela é constituída por sistemas designificados que são parte integrante da ação social organizada.

Tendo apresentado os componentes do mundo da vida, cabediscutir como os idosos serão reinseridos neste mundo. Traremospara discussão a realidade brasileira e toda diversidade existentenela; para tanto enfocaremos a reinserção das pessoas que estãoenvelhecendo no âmbito do mundo da vida e iniciaremos através da

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SUMARIO

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componente sociedade, ou seja, como a questão do envelhecimentotem sido tratada em nossa sociedade1.

Os estudos em Gerontologia são relativamente recentes emnosso país e as pesquisas começaram a ganhar relevânciaprincipalmente após 1982, quando a Organização das NaçõesUnidas (ONU) legitimou a Gerontologia como campo de sabermultidisciplinar para tratar das questões do envelhecimento(Lopes, 2000). Com isso, um número significativo de pesquisastem sido realizado; grande parte dos estudos toma como referencialteórico pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos.

Segundo Debert (1997), desde a década de 1980, as questõesrelacionadas com a velhice ocupam cada vez mais espaço entre ostemas que preocupam a sociedade brasileira.

De acordo com Camarano (2002), a população brasileira tem aumentado sua longevidade nas últimas décadas, mas não podemosatribuir unicamente a esse fato o surgimento de novasrepresentações sobre a velhice e o envelhecimento, assim como oaumento da participação social dos idosos, pois de acordo comLima (1999, p. 2), isso

é reflexo de mudanças que implicam redefinições das

formas de periodização da vida, das categorias etárias que

recortam a organização da sociedade e a revisão das formas

tradicionais de gerir a experiência do envelhecimento.

Em termos gerais, para análise da velhice no contexto social,utilizaremos como premissa básica neste texto a abordagemantropológica (Debert, 1998) que agrega aos aspectos naturais,biológicos, características da espécie humana ao longo da vida, osaspectos culturais, lingüísticos, os valores sociais e costumes específicos a determinado contexto social, em dado momento histórico.

Segundo Neri (2001), a sociedade constrói cursos de vida namedida em que prescreve expectativas e normas de comportamentoapropriado para diferentes faixas etárias, diante de eventos

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SUMARIO

1. O envelhecimento pode ser considerado, segundo Neto (2002, p. 10), como afase de um continuum que é a vida, começando esta com a concepção eterminando com a morte. Em termos gerais, quando falarmos deenvelhecimento, estaremos nos referindo à fase da vida que precede a entradana velhice, que permeia essa fase e que continua até o final da vida.

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marcadores de natureza biológica e social, e na medida em queessas normas são internalizadas pelas pessoas e instituições sociais.

Numa perspectiva sociológica, a velhice representa umaconstrução social que diz respeito à capacidade de desempenho depapéis na comunidade ou numa coletividade. É um fenômenosociológico o fato de que, em todas as sociedades, a cada faixaetária corresponde uma função social. Com isso, temos que nossacategoria social é a velhice e as pessoas que fazem parte dessacategoria podem ser chamadas de velhos, idosos, novos velhos,aposentados, entre outros2.

A idade é uma categoria de análise referente aos sistemasde organização das sociedades, do sistema produtivo, daspolíticas públicas, etc. O conceito de idade abrange, dessaforma, não apenas os aspectos biológicos ou cronológicos, mastambém os aspectos sociais, psicológicos e culturais (Debert,1998). Dessa forma, podemos perceber que a questão dotratamento que é dado ao velho é muito forte em termos de idadee papel social. Partindo da produtividade que permeia nossasociedade, Gusmão (2001, p. 117) afirma que:

O caráter do mundo moderno em sua natureza

capitalista está dado pela ordem produtiva que toma o

jovem e o adulto como produtores e compreende o velho e

a velhice como uma irrupção perigosa da ordem, posto que

já não são produtivos para o capital.

E por isso o velho pode ser considerado um “ser descartável”.Infelizmente, é nessa cultura que estamos inseridos, que

valoriza a juventude, aqueles que ainda produzem bens materiaispalpáveis, algo para a sociedade capitalista. Por outro lado, caberessaltar que o velho não é tratado dessa maneira descartável em todosos lugares do Brasil. Se percorrermos nosso país, vamos encontrarformas diferenciadas de cuidado e atenção ao velho, diferenciando-seprincipalmente nos locais onde a cultura local, mais tradicional, aindamantém certos costumes. O resultado é esse cenário onde encontramos alguns respeitando, se sociabilizando, outros negando, rejeitando,talvez seja o que Bosi (1987, p. 7) chama de cultura plural:

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SUMARIO

2. Para saber mais sobre esse assunto, ver, por exemplo Peixoto (1998).

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... Não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos

nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao

contrário: a dimensão do seu caráter plural é um passo

decisivo para compreendê-la como um "efeito de sentido",

resultado de um processo de múltiplas interações e

oposições no tempo e no espaço.

Retomando o conceito de cultura adotado neste texto, Gohn(2001b) destaca que ela abarca a pluralidade dos modos e formas de

construção histórica dos homens. E a velhice, seria uma outra cultura?A velhice é uma etapa neste processo. Gusmão (2001) destaca ainda que a cultura do velho resulta de sua própria vida em acontecimentoe de suas atividades diárias. Dessa forma, a cultura representa aexperiência vital de seu tempo e espaço em termos do próprio velhoe como sujeito coletivo e é nesse sentido que vamos reinseri-los,dando voz aos participantes como sujeitos sociais.

Como isso pode ser feito em termos metodológicos numapesquisa?

De nada adianta formularmos projetos, programas, atividadesdirecionadas ao público idoso, se antes não os consultarmos, não dermos a palavra a eles e escutarmos suas reais necessidades. Muitas vezes,criamos estratégias de atendimento e atenção à velhice acreditando queestamos fazendo o bem para os velhos, sem sequer indagarmos a eles seé isso, realmente, o que eles querem e do que necessitam.

No tocante ao outro componente apresentado por Habermas,a personalidade do mundo da vida, podemos entendê-la como aindividualidade de cada ser em seu processo de envelhecimento.Nesse sentido, nossa individualidade é marcada socialmente, poispertencemos a determinados grupos etários e isso delimita asnossas possibilidades de expressão e de sociabilidade. SegundoMagro (2003, p. 35),

na cultura ocidental contemporânea, pode-se dizer que

quando crianças devemos brincar, quando adolescentes

devemos experimentar, quando adultos trabalhar e

produzir, e quando velhos devemos nos aposentar.

A legislação brasileira relativa à Previdência Social dá aostrabalhadores que contribuíram 35 anos com o INSS (InstitutoNacional de Seguridade Social) e às trabalhadoras que contribuíram

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SUMARIO

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30 anos o direito à aposentadoria. Além disso, trabalhadores commais de 65 anos e trabalhadoras com mais de 60 anos também podemse aposentar, desde que tenham contribuído um tempo mínimonecessário com o INSS. Contudo, muitas vezes, os cidadãos nãoconseguem adquirir esse direito e continuam no mercado de trabalho, pois muitos trabalharam na roça ou em empregos que não lhes dão,atualmente, a comprovação do tempo de trabalho e de contribuição(Patrocinio, 2005).

Se considerarmos que nossa sociedade está imbricada nomundo do trabalho e que, portanto, somos considerados dignosatravés da produtividade e do trabalho, as pessoas acima de 50 anos,que não conseguem trabalho no mercado formal ou aquelas que nãoconseguem o benefício da aposentadoria, acabam procurandoformas alternativas de inserção no mercado, como nas cooperativas.

Em muitos contextos, não é necessário atingir 60 anos paraser considerado velho no mercado de trabalho. Peres (2002) afirmaque existem várias profissões e carreiras em que as pessoas já sãoconsideradas velhas quando atingem os 40-50 anos; muitas vezes,isso ocorre porque ainda prevalecem em nosso meio representações sociais negativas sobre o envelhecimento. Isso sem falarmos dealgumas profissões, no campo das artes, moda e esportes, nas quaisa idade ativa é muito curta.

As representações sociais mais comuns sobre a velhiceconsideram que ser idoso é ter determinados aspectos físicos e desaúde, em que se associa velhice à doença. Outros associam avelhice a uma etapa que precede a morte, portanto, a última etapa do ciclo vital, em que não há mais nada a ser feito apenas esperar amorte chegar. E, por fim, existe uma comparação marcante entresentir-se velho/jovem e se ver velho fisicamente. O fator beleza,sempre associado à juventude, é um indicador do ser ou estar velho.

É importante enfatizar, também, o papel exercido pelaSociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e peloServiço Social do Comércio (SESC) na institucionalização dagerontologia e da geriatria e no início do esforço para a formação derecursos humanos para atender o idoso nas áreas social e de saúde(Neto, 2002). Cabe ressaltar, ainda, na área da educação, o papelpioneiro de alguns programas de Pós-Graduação strictu sensu emgerontologia, a exemplo da UNICAMP e da PUC de São Paulo e,também a iniciativa da Universidade da Terceira Idade da Pontifícia

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Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e das demaisUniversidades desse tipo que vêm se constituindo pelo Brasil, poistodas trazem contribuições valiosas para o trabalho com pessoas queestão envelhecendo. Essas experiências são algumas daspossibilidades de trazer o idoso para o convívio e contato social.

Com o envelhecimento populacional, o aumento do númerode pesquisas na área da gerontologia e as diversas atividadesdirecionadas para o público idoso, cresce também o respaldo legalpara a categoria social da velhice. Borges (2003) afirma que com acriação do Ministério da Previdência e Assistência Social, em 1976, iniciou-se a elaboração de uma política direcionada a esse grupoetário, principalmente dos aposentados.

Atualmente, em termos de legislação brasileira, temos aConstituição Federal (1988), a Política Nacional do Idoso, Lei8.842/94, o Estatuto do Idoso, Lei 10.741/03 e, em âmbito departicipação direta, local estadual e nacional, os Conselhos deIdosos. De acordo com Boaretto e Heimann (2003, pp. 111-112), os

conselhos são espaços legais reconhecidos pelo Estado em que a

sociedade civil pode exercer sua cidadania e ter seus direitos conquistados

para além do voto3. O Art. 230 da Constituição Federal traz oseguinte: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as

pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo

sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. A Política Nacional do Idoso, em seu Art. 1º, nos apresenta o

objetivo dessa proposta: assegurar os direitos sociais do idoso, criando

condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na

sociedade. No tocante à questão do trabalho, o Estatuto do Idoso é omais efetivo em assegurar os direitos das pessoas acima de 60 anos,sendo o Capítulo VI (Art. 26, 27 e 28) todo dedicado a essa questão.

O aparato legal em torno da questão da velhice tem apoiado umgrande número de movimentos, crescentes, em torno da luta pelosdireitos dos idosos na sociedade (Borges, 2003). Habermas (1987)afirma que características como, por exemplo, idade, servem àconstrução e à determinação de comunidades, ao estabelecimento decomunidades de comunicação que se autoprotegem em forma desubculturas, buscando condições adequadas para o desenvolvimentode uma identidade pessoal e coletiva.

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3. À respeito dos Conselhos, vide também Gohn (2001a).

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Mundo do trabalho

No item anterior, apresentamos algumas possibilidades dereinserção dos idosos no mundo da vida (sociedade, cultura epersonalidade). Neste tópico, pretendemos discorrer sobre areinserção no mundo do trabalho, através da componente mercado,tratando da Economia Solidária e do cooperativismo como formaspara tal reinserção.

Relacionada com o conceito de mundo da vida, Habermas(1987) traz a perspectiva dos sistemas sociais, que são consideradoscomo as estruturas macro da sociedade. Nessa perspectiva, o autor nostraz uma análise mais conjuntural da sociedade e suas relações com oEstado, fornecendo elementos para analisarmos melhor o mundo dotrabalho e a realidade de trabalhadores idosos neste contexto.

Para ele, o capitalismo e o Estado moderno são entendidoscomo subsistemas que, através dos meios dinheiro e poder, sediferenciam da estrutura social do mundo da vida. De um lado temos ocapitalismo/dinheiro e o Estado/poder contrapondo-se à sociedade e àvida em comunidade. Em todas essas estruturas encontraremos aesfera da vida privada e a esfera da opinião pública.

O núcleo institucional da esfera da vida privada constitui aunidade familiar, a qual desde a perspectiva de sistema econômicofica definida como economia doméstica. Já o núcleo institucional daesfera da opinião pública constitui aquelas redes de comunicaçãoreforçadas inicialmente pelas formas sociais em que se materializa ocultivo da arte e depois pelos meios de comunicação de massa.

Na sociedade brasileira atual observa-se o crescimentopopulacional de idosos em nosso país e, também, o alarmanteaumento do número de desempregados que afeta não somente ajovens, mas inclusive a muitos adultos maduros e idosos queprecisam, ainda, trabalhar para ajudar ou manter o sistema familiar.

Como já vimos, o mundo da vida está constituído pelasestruturas da sociedade, personalidade e cultura; esse mundo secontrapõe aos sistemas sociais que têm como componentes o Estadoe sua estrutura de poder, e o Mercado e suas relações capitalistas.

Através do mercado e do capitalismo, podemos entrar nomundo do trabalho. Coraggio (1991), analisando o desenvolvimentoda questão urbana na América Latina, afirma que na década de 1980

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ocorrem, na maior parte da América Latina, pesquisas sobre a vidacotidiana popular, as estratégias de sobrevivência, os modosparticulares de se agenciarem terra, moradia e serviços. Esse autorafirma que:

A privatização e municipalização dos serviços começa a

pôr no centro da atenção a autogestão, as tecnologias

alternativas, a informalidade e a denominada “economia

popular de solidariedade”4, na expectativa de que se acaba a

etapa de reivindicações eficazes ao Estado e que o mercado

capitalista promete mais exclusão e carências (Coraggio,

1991, p. 36).

Observa-se que Coraggio (1991) afirmou para a década de1980, generalizou-se nos anos 90 via economia informal.Atualmente, o mundo do trabalho, o mercado formal só temdiminuído suas ofertas5, principalmente no tocante às pessoasacima de 50 anos. Gohn (2001b, p. 95) afirma que:

O maior problema no mundo do trabalho é o desemprego

e a necessidade de alterar as políticas públicas, de forma que se

priorize a retomada do desenvolvimento e a expansão do

setor produtivo.

No item anterior, apresentamos algumas possibilidades dereinserção das pessoas em processo de envelhecimento no mundo davida (sociedade, cultura e personalidade). Neste tópico, pretendemos discorrer sobre a reinserção no mundo do trabalho, através dacomponente mercado, tratando da Economia Solidária e docooperativismo no Brasil.

Economia solidária

Antes de adentrarmos pelo conceito de Economia Solidária,é necessário contextualizar brevemente o cenário social, político eeconômico em que se deu seu surgimento no Brasil.

Reinserção de Idosos no Mundo da Vida e no Mundo do Trabalho 61

SUMARIO

4. Os conceitos concernentes a este assunto serão explicitados adiante.5. Mesmo que a mídia televisiva e jornalística mostre dados positivos em relação

ao crescimento do emprego, sabemos que isso é muito insignificante emrelação ao índice alarmante de desemprego em nosso país.

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Segundo análise do mundo do trabalho, sabemos que a óticavigente em nossa sociedade é o modelo neoliberal. De acordo comReginaldo Moraes6, o neoliberalismo pode ser visto por trêsaspectos: primeiro, como uma corrente de pensamento e umaideologia; segundo, como um movimento intelectual clássico; e,por último, como um conjunto de políticas aplicadas e adotadas porgovernos neoconservadores.

Esse autor acredita que, atualmente, o neoliberalismo seja umaideologia do capitalismo financeiro que tem algumas orientaçõesestratégicas, tais como: destruir os sindicatos, privatizar as empresas eliberar a entrada de capital estrangeiro. Além disso, ele tende a destruiras políticas sociais e a destruir a resistência organizada de grupossociais. Esses dados parecem assustadores, mas, se pensarmos naquestão do desemprego, perceberemos o quanto essa políticainfluenciou o aumento do número de desempregados em nosso país.

Ainda segundo dados de Reginaldo Moraes, em 1994, naGrande São Paulo, o número de desempregados era de 500.000,com um tempo médio de procura por outro emprego de 22 semanas.Em 2001, o número de desempregados saltou para 1.800.000, comuma média de procura de 28 semanas, segundo o mesmo autor.

De acordo com Antunes (2004), a adoção do modelo neoliberalem nosso país foi iniciada de forma aventureira pelo governo deFernando Collor de Mello em 1990, tendo prosseguimento essapolítica com a presidência mais racional de Fernando HenriqueCardoso de 1995 até 2002, que visou pavimentar os caminhos doneoliberalismo no Brasil. Essa mesma política vem sendo seguida pelo atual governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva.

Na ótica vigente do neoliberalismo estão presentes o livremercado, a produtividade e a competitividade penetrando não só naprodução, mas também nas relações sociais. O alto nível dedesemprego, a flexibilização de direitos conquistados e a necessidadede qualificação profissional colocam os trabalhadores e trabalhadorasde nosso país em constante luta para se manterem dentro dos critériosexigidos pelo mercado.

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SUMARIO

6. Palestra ministrada no dia 04/07/2002 dentro da disciplina Teorias Políticas eEducação, da professora Patrizia Piozzi, na Faculdade de Educação, UNICAMP.

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Antunes (2004) afirma categoricamente que o primeiromandato de Fernando Henrique Cardoso não se contentou emfincar os andaimes da desmontagem do país, que ele fala que foichamada eufemisticamente de “modernização” e isso se deuatravés dos seguintes acontecimentos:

Através da privatização, da “integração” subordinada à

ordem, da destruição do que foi criado desde o varguismo,

como as empresas de siderurgia, energia elétrica,

telecomunicações, a previdência etc. Isso sem falar no

destroçamento social que se acentua crescentemente, na

desregulamentação e na precarização do trabalho, no

desemprego explosivo, conferindo-nos o título de quarto país

em desemprego absoluto mundial (Antunes, 2004, p. 44).

E o que essa política traz para o mundo do trabalho dos idosos? Em relação à Previdência, Antunes (2004) acredita que o ponto maisdanoso dessa política foi a substituição do tempo de trabalho pelotempo de contribuição na Reforma da Previdência Social. Se antes aspessoas se aposentavam pelo tempo de serviço trabalhado, hoje, nãoimporta se elas trabalharam ou não, importa que elas tenhamcontribuído para o INSS, pois sem isso não conseguirão o direito aobenefício da aposentadoria. Isso significa que:

Os aposentados gozarão a previdência quando a Justiça

do Trabalho lhes der ganho de causa. Provavelmente,

embaixo da terra. Isso sem falar na exclusão, pura e simples,

de mais de 20 milhões que estão no chamado trabalho

precário, sem carteira de trabalho assinada e sem direitos.

A estes, não resta nada! (Antunes, 2004, p. 49).

Esse é o contexto social, político e econômico em que se dá osurgimento da Economia Solidária, que vem de encontro à vontadedaqueles que se contrapõem à lógica destrutiva do sistema produtorde mercadorias ou que estão sendo esmagados por essa nova formade estruturação do trabalho. Antunes (2004, p. 50) acredita queessas pessoas devem buscar alternativas que contraditem fortemente

estas tendências hoje dominantes, em vez de fazer coro com os interesses

da ordem, que estão em sintonia com o neoliberalismo.

Reinserção de Idosos no Mundo da Vida e no Mundo do Trabalho 63

SUMARIO

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Além disso, ele acredita que o maior desafio do mundo dotrabalho e dos movimentos sociais de esquerda é inventar novasformas de atuação autônomas, capazes de articular e darcentralidade às ações de classe. Gohn (2001c) assinala que a lutaimediata é pela sobrevivência física: o emprego, a fuga aos efeitosda recessão, em que

o coletivo deve ser o cenário, o espaço de construção das

vontades, através do pluralismo das idéias, de seus

confrontos, e da formulação de linhas comuns que

possibilitem a canalização das vontades individuais em

vontades coletivas (Gohn, 2001c, p. 108).

Com tudo isso, vemos que é emergente o surgimento de algodiferente, em que os trabalhadores e trabalhadoras possam, realmente,acreditar e ter perspectivas de uma sobrevivência e um envelhecimentomais digno. Singer (2002) afirma que a Economia Solidária é outraforma de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletivaou associada do capital e o direito à liberdade individual.

No entanto, ainda não se tem um consenso em relação ao nomea ser dado a este fato novo na vida econômica de amplas maiorias dapopulação. Alguns chamam de Economia Solidária, outros deEconomia Popular Solidária, outros ainda de Socioeconomia Solidária e temos, também, Economia de Solidariedade. Não vamos aquidestrinchar cada um desses conceitos, porque não é nosso objetivo e,também, porque muitos autores já o fizeram7.

Vamos citar apenas alguns autores que têm se destacado emrelação à discussão desse tema. Tal apresentação se faz necessária paraque todos entendam o que significa Economia Solidária e a capacidade que este movimento tem de apresentar alternativas para os idosos quevêm sendo excluídos e expulsos do mercado de trabalho. Grande partedesses trabalhadores poderiam até já ter a própria aposentadoria,alguns já a possuem, mas o nível socioeconômico se mantém baixo eeles precisam continuar trabalhando.

Singer (2000, 2002) é um dos pioneiros a estudar esse temano Brasil, e usa o termo Economia Solidária como um modo deprodução e distribuição, de certa forma, alternativo ao modo

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SUMARIO

7. Ver, por exemplo, Singer (2002, 1999); Bertucci e Silva (2003); Dagnino(2004); Nunes e Cifuentes (2001).

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capitalista, que é sempre criado e recriado por trabalhadores que seencontram marginalizados do mercado de trabalho formal.

Segundo Singer (2000), a Economia Solidária começou aressurgir em nosso país de forma esparsa na década de 1980 e só foitomar maior impulso a partir da segunda metade dos anos 90, poisseria uma espécie de reação dos movimentos sociais contra odesemprego em massa que começou a assolar o Brasil a partir de1981, se agravando com a abertura do mercado interno àsimportações, a partir de 1990.

Alcântara (2003) complementa ao constatar que a EconomiaSolidária surge para atender a uma necessidade, a geração de renda,porém o público-alvo desse modelo, em princípio, não eramindivíduos desempregados, sem qualificação e que já estivessemfora do mercado de trabalho. Ela afirma:

Na verdade, o modelo está sendo "apropriado" por

esses indivíduos, ou melhor dizendo, destinado a eles com a

intenção de sanar uma necessidade imediata: a inexistência

de renda (p. 35).

Luis Inácio Gaiger, da UNISINOS/RS, considera aEconomia Popular Solidária como iniciativas populares de geraçãode trabalho e renda baseadas na livre associação de trabalhadores enos princípios de autogestão e cooperação. Para ele, os projetos

coletivos contribuem para a racionalização da solidariedade, uma vez que

criam espaços para a sua prática intencional e cotidiana (2000, p. 275).Usando o termo Socioeconomia Solidária, Marcos Arruda,

coordenador-geral do Instituto de Políticas Alternativas para o ConeSul, fala em um movimento que transcende as iniciativas restritas aoeconômico. Ele acredita que, além das transformações institucionais naesfera social e econômica, implica uma mudança profunda no nível dasrelações sociais e culturais; a socioeconomia estaria a serviço dasociedade humana e não apenas como um fim em si mesma. Ele falatambém de uma economia a partir do coração, que seria:

Aquela que segue o caminho da “cooperatividade” em

vez da competitividade, da eficiência sistêmica em vez da

eficiência apenas individual, do “um por todos, todos por

um”, em vez do “cada um por si e Deus só por mim”. E esta

economia já existe. Ela tem como centro o coração, cuja

Reinserção de Idosos no Mundo da Vida e no Mundo do Trabalho 65

SUMARIO

Page 66: Velhice e Diferecas

energia é o amor. Trata-se, então, de uma economia

amorosa, que pressupõe seres amorosos (Quintela &

Arruda, 2000, p. 317).

Aqui podemos fazer uma relação da economia solidária comas relações sociais que permeiam a vida dos idosos em nossasociedade. Como visto, vivemos em uma sociedade que discriminae mantém muitos preconceitos em relação à velhice. Para ocorreruma mudança no olhar discriminatório sobre o envelhecimento será preciso, antes de tudo, transformarmos a mentalidade das pessoas,buscando, cada vez mais, formar e orientar indivíduos para olharem o outro como seres humanos, semelhantes, agirem e viverem comoseres amorosos. Uma nova cultura política a respeito da velhice tem que ser construída.

Coraggio (1991, p. 335) fala em Economia Popular e entende esse conceito como o conjunto de recursos, práticas e relaçõeseconômicas próprias dos agentes econômicos populares de umasociedade; tal conjunto abarca

unidades elementares de produção-reprodução orientadas

primordialmente para a reprodução de seus membros e

que para tal fim dependem fundamentalmente do exercício

continuado da capacidade de trabalho deles.

Essa economia é então diferente da economia empresarialcapitalista exatamente pela sua lógica, que se caracteriza por umamelhoria da qualidade de vida e não, simplesmente, pelo acúmulode riquezas. Tiriba (2000, p. 229) também concorda com esseconceito quando afirma que

os empreendimentos pertencentes ao setor da economia

popular têm se caracterizado, fundamentalmente, pela

lógica da reprodução da vida e não do capital.

Tauile e Rodrigues (2004) se referem à Economia Solidáriaquando tratam dos Empreendimentos Autogestionários, ou seja,um conjunto de elementos de fomento e suporte às empresasformalmente constituídas ou grupos com potencial de constituição:

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SUMARIO

Page 67: Velhice e Diferecas

Estamos falando de administração e gerenciamento

fundamentados na democracia e na igualdade de direitos e

responsabilidades; sociedades econômicas cuja natureza

jurídica caracteriza-se por ser sociedade de pessoas, as

cooperativas.

Lima (s/d) cita Car bo nari (1999) e Razetto (1998), queenten dem a Eco no mia Soli dá ria como uma eco no mia cen trada nabusca de con di ções de satis fa ção das neces si da des dos seres huma -nos, na pers pec tiva do bem viver de todos e para todos, a ser viço dohomem, e não ape nas como a cha mada eco no mia de sobre vi vên cia,mar gi nal à eco no mia de mer cado; esses auto res cami nham na linhada soci o e co no mia soli dá ria. De acordo com Sin ger (2000, 2002),tam bém acre di tam que a eco no mia soli dá ria pode ser vista como ocami nho pro pul sor para uma nova forma de orga ni za ção do tra ba -lho na soci e dade capi ta lista, advinda das popu la ções pobres e mar -gi na li za das, a par tir da força da soli da ri e dade, a qual liberta e criavín cu los de orga ni za ção e de comu ni dade.

Com a crescente atenção que esse tema passou a ter nasociedade e nos órgãos públicos, criou-se, em nível federal, aSecretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), no âmbito doMinistério do Trabalho e Emprego, cujo secretário nacional é oeconomista Paul Singer.

De certa forma, os conceitos têm nomes diferentes, maspodemos identificar elementos comuns entre as reflexões dessesautores. A Economia Solidária representa um conjunto deiniciativas econômicas populares que expressam valores e práticasdiferentes do atual sistema capitalista; nesse sentido, acreditamosque tais valores são os primordiais para a aceitação de idosos nomundo do trabalho. Ao trabalharmos de forma solidária, umempreendimento deste nível abarca qualquer indivíduo, pois oimportante não é a idade, mas sim o ato de estar junto e produzirações coletivas, geradoras de produtos e bens materiais ouimateriais.

No tocante à reinserção de idosos no mundo do trabalhoatravés de empreendimentos autogestionários, Coraggio (1991,p. 351) afirma que:

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SUMARIO

Page 68: Velhice e Diferecas

Em relação à economia popular urbana em suas várias

possibilidades de setores de atuação (serviços ou

produção), a possibilidade de obter satisfação de alta

qualidade e baixo custo está já aberta e pode ser acentuada

com uma apropriada adoção de novas tecnologias. Tudo

isso pode ser feito contando com profissionais hoje

excluídos do mercado capitalista.

Como pudemos perceber, a Economia Solidária abrange váriassituações e iniciativas econômicas, uma delas é o cooperativismo e aautogestão como maneira de vencer o desemprego.

Mas o que é uma cooperativa popular?Segundo a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares

da Universidade Estadual de Campinas (ITCP-UNICAMP), umacooperativa popular é um empreendimento de grupo de trabalhadores,com no mínimo 20 integrantes, que se unem para desenvolver atividades econômicas de forma democrática, cuja gestão é exercida por eles.

A mis são da ITCP-UNICAMP é con tri buir para o desen vol -vi mento da eco no mia soli dá ria no Bra sil, aju dar a com ba ter odesem prego e a pre ca ri za ção do tra ba lho e auxi liar a ampli a ção doexer cí cio da cida da nia atra vés da participação popular.

Além disso, essa Incubadora teria como objetivos: primeiro,acompanhar e assessorar a formação de cooperativas popularesautogestionárias e, também, outras iniciativas de economiasolidária – para tanto, pretende disponibilizar aos grupos atendidoso conhecimento técnico e científico produzido pela UNICAMP eajudar na consolidação de tais iniciativas; segundo, permitir aosprofessores e estudantes vinculados ao programa um campopermanente de observação e aprendizado em relação à sociedade e a suas demandas sociais mais urgentes.

A atuação dos monitores da ITCP-UNICAMP ocorrediretamente junto às cooperativas e grupos atendidos, em seus locaisde trabalho, e envolve ações de extensão e de pesquisa nas áreas detrabalho e geração de renda, educação popular de jovens e adultos,autogestão, adequação sociotécnica e tecnologias apropriadas, saúde emeio ambiente, bem como ações experimentais de ação coletiva nasmais diversas áreas do conhecimento.

Singer (2002) nos traz uma exemplar comparação entre umaempresa capitalista e uma empresa solidária, aqui se entendendo

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uma cooperativa, para ficar mais claro quais as diferenças entreesses empreendimentos. Teoricamente, as cooperativas estãoinseridas num processo dual, em que, dentro delas, entre oscooperados, deveria haver união e solidariedade para que o grupocaminhasse, já que são autogestionários; e fora dela, na relação com o mercado, como estão atuando num sistema capitalista, precisamser competitivos.

Em termos gerais, segundo Singer (2000), os princípiosorganizativos de uma cooperativa estão baseados na posse coletivados meios de produção pelos membros do grupo que a utilizam paraproduzir; gestão democrática da empresa; repartição da receitalíquida entre os cooperados por critérios aprovados em assembléiase reuniões destinadas para esse fim.

A forma de organização e funcionamento de umacooperativa vai depender da construção prática de cada grupo,porém existem alguns princípios do cooperativismo, que foramcriados pela cooperativa Rochdale em 1844 e, depois, de acordocom Singer (2002), foram imortalizados como os princípiosuniversais do cooperativismo, quais sejam:

1. Livre ade são;2. Orga ni za ção demo crá tica da ges tão (auto ges tão), em que

cada coo pe rado tem dire ito a um voto e a sobe ra nia plenaé da assem bléia-geral;

3. Supre ma cia da vida sobre o tra ba lho e do tra ba lho sobre ocapi tal;

4. Eqüi dade e soli da ri e dade: repar ti ção do tra ba lho, do poderde deci são, do conhe ci mento e do pro duto do tra ba lho;

5. Que a dife rença nas reti ra das não ultra passe 3 para 1;6. Segu ri dade social (fun dos soci ais coo pe ra ti vos);7. Inter co o pe ra ção;8. Qua li dade no pro duto, ética na con cor rên cia, res pe ito ao

con su mi dor, pre ser va ção ambi en tal, tec no lo gias soci al -mente adequadas;

9. Trans for ma ção da soci e dade: cida da nia ativa, par ti ci pa -ção popu lar, dis tri bu i ção soli dá ria da riqueza;

10.Edu ca ção con ti nu ada e defesa da escola pública.

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Atualmente, existem vários ramos de atuação de cooperativas, as mais comuns são: reciclagem de resíduos sólidos, alimentação,confecção/costura, limpeza e de profissionais liberais. Em termos detrabalho para o idoso, temos que os trabalhadores dessa faixa etáriaque se encontram nas classes populares poderão visualizar algumasaída por meio das cooperativas de reciclagem de entulhos,alimentação, confecção/costura e limpeza, pois são atividades quenão requisitam qualificação profissional ou são atividades comunsna vida dessas pessoas.

Já os idosos das classes mais abastadas, com maiorconhecimento educacional, poderão se reunir em cooperativas deprofissionais liberais, cada um buscando sua área de atuação oumontando cooperativas mistas, que envolvem vários ramos deatuação com um ideal comum.

Existe todo um aparato para a montagem e atuação dessascooperativas. Além dos requisitos apresentados anteriormente, épreciso ter uma orientação educacional e jurídica para funcionamentoefetivo desse sistema alternativo de produção. Havendo interesse, osidosos e idosas que precisam de reinserção no mundo do trabalhopoderão procurar órgãos especializados neste tipo de atuação comoIncubadoras de Cooperativas nas Universidades ou mesmo órgãos doPoder Público que, muitas vezes, já possuem Programas direcionadospara o cooperativismo.

Considerações finais

Nosso texto buscou contextualizar a realidade social dosidosos e idosas em nosso país no tocante ao mundo da vida e aomundo do trabalho, refletindo sobre possibilidades de reinserçãodessas pessoas nesses espaços.

Na formulação de projetos, programas e atividades direcionadasao público idoso, é necessário darmos a palavra a eles e escutarmos suasreais necessidades. Dessa forma, ao criarmos estratégias de atendimentoe atenção à velhice, criaremos ações efetivas de atuação no mundo davida dos idosos e idosas em nossa sociedade.

Vimos, também, a manifestação ativa dessa população nosProgramas das Universidades da Terceira Idade e nos Programas das

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Escolas Abertas do SESC, bem como a importância dos estudos epesquisas na área gerontológica desenvolvidos pelos programas dePós-Graduação em Universidades públicas e privadas.

Para ocorrer uma mudança nos paradigmas errôneos sobre oenvelhecimento, apontamos a necessidade de transformação namentalidade das pessoas, por meio de formação e orientação aosmais variados grupos, para que possam perceber os idosos comoseres humanos, semelhantes, agindo e vivendo como seresamorosos. Acreditamos na construção de uma nova cultura políticaa respeito da velhice.

A Economia Solidária, por meio das cooperativas populares,pode ser uma grande possibilidade de reinserção de pessoas que hojesão discriminadas pelo mercado de trabalho, em nosso caso, osidosos. Tais empreendimentos recebem qualquer indivíduo, pois oimportante não é a idade, mas sim a vontade de trabalhar do cidadão.

Torna-se imprescindível uma parceria com o Poder Públicopara que essas cooperativas possam vislumbrar uma certaefetividade de produção dos grupos. Os recursos advindos do Poder Público, por exemplo, por meio do Orçamento Participativo,podem propiciar às cooperativas a aquisição de maquinário,equipamentos de proteção individual e construção de barracõespara se instalarem.

Além disso, é preciso que os Órgãos Públicos e Privados, queatuam com a Economia Solidária, percebam que existe, ainda, umgargalo de atuação na população idosa, que se criem projetos eprogramas específicos para essa população. Que os formadores depolíticas públicas com formação gerontológica possam pensar e criarmecanismos de geração de renda para idosos em todos os âmbitos deatuação, desde as classes mais necessitadas até orientação e assessoriapara os idosos mais privilegiados socialmente.

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ENVELHECIMENTO,TRABALHO E

EDUCAÇÃO

Um estudo sobrecooperativas populares

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CAPÍTULO 4

Wanda Pereira Patrocinio | Patrícia Gatti

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Este capítulo foi elaborado tendo como base os resultadosobtidos na dissertação de mestrado, Cooperativas populares:representações sociais, trabalho e envelhecimento, de Patrocinio(2005a). Os dados foram coletados no ano de 2004 e o trabalho foidefendido em fevereiro de 2005, no Programa de Pós-Graduaçãoem Gerontologia da Faculdade de Educação, UNICAMP, comsubsídios da CAPES.

Utilizando-nos dos dados desse estudo, pretendemosdesenvolver uma reflexão sobre a realidade de trabalhadores etrabalhadoras de cooperativas populares, do município de Campinas, e a partir desse contexto realizar uma discussão em torno das seguintescategorias de análise: educação, escolaridade e cultura; trabalho eenvelhecimento; gênero e velhice; e representações sociais doenvelhecimento e suas relações com a saúde.

A metodologia utilizada na pesquisa se apoiou em umaabordagem quantitativa – qualitativa. Num primeiro momento,realizou-se um levantamento quantitativo de cada cooperativa emestudo com o objetivo de conhecê-las mais profundamente, através dohistórico de cada grupo e dos dados estatísticos de cada cooperado.Com esse material, realizou-se um retrato socioeconômico dostrabalhadores e trabalhadoras acima de 50 anos nas cooperativaspopulares. O segmento dos idosos caracteriza-se pela faixa etária com60 anos ou mais e que tem uma população crescente, porém ocontingente de trabalhadores mais velhos tem conferido uma novaorientação e adequação à realidade nacional que comumente os privadas condições de trabalho, trazendo para a discussão idosos ativos com 50 anos ou mais, afetados pelo contexto de exclusão e pelas ideologiassobre o envelhecimento.

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No total, estudaram-se oito cooperativas popularesespalhadas pela cidade de Campinas, que foram atendidas por umPrograma da Secretaria de Desenvolvimento da PrefeituraMunicipal em parceria com a Universidade Estadual deCampinas. Para o segundo momento da pesquisa, selecionaram-se duas cooperativas para realização do trabalho de campo e asentrevistas com os trabalhadores e trabalhadoras acima de 50anos. Os critérios adotados para a escolha das cooperativas foram:primeiro, grupos que já estivessem com seus barracões emfuncionamento; segundo, que possuíssem o maior número decooperados na faixa etária desejada e, terceiro, que fossem deramos de atividades diferentes.

O desenvolvimento deste texto se iniciará pela apresentaçãoda realidade socioeconômica dos trabalhadores e trabalhadorascom idade igual ou superior a 50 anos das cooperativas estudadas ese encerrará com uma discussão baseada nas categorias de análisesupracitadas.

Retrato socioeconômico dostrabalhadores e trabalhadoras

acima de 50 anos de cooperativaspopulares na cidade de Campinas

O retrato socioeconômico – no conjunto das variáveisantecedentes representadas pelos dados sociodemográficos (idade,gênero, nível de escolaridade, renda, estado civil, profissão, entreoutros) –, que será apresentado foi realizado junto à IncubadoraTecnológica de Cooperativas Populares da UNICAMP(ITCP-UNICAMP).

Essa Incubadora é um Programa da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade Estadual de Campinas.Segundo informações disponíveis no site da ITCP-UNICAMP (Verhttp://www.itcp.unicamp.br/), sua missão é a de contribuir para odesenvolvimento da economia solidária no Brasil, ajudar a combater

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o desemprego e a precarização do trabalho e auxiliar a ampliação doexercício da cidadania através da participação popular.

Além disso, essa Incubadora teria como objetivos: primeiro,acompanhar e assessorar a formação de cooperativas popularesautogestionárias e, também, outras iniciativas de economiasolidária – para tanto, pretende disponibilizar aos grupos atendidoso conhecimento técnico e científico produzido pela UNICAMP eajudar na consolidação de tais iniciativas; segundo, permitir aosprofessores e estudantes vinculados ao programa um campopermanente de observação e aprendizado em relação à sociedade esuas demandas sociais mais urgentes.

Uma cooperativa popular é um empreendimento de grupo detrabalhadores, com no mínimo 20 integrantes, que se unem paradesenvolver atividades econômicas de forma democrática, cujagestão é exercida por eles.

A ITCP-UNICAMP, juntamente com a Prefeitura Municipalde Campinas e as outras Incubadoras da cidade (EDH – Ecologia eDignidade Humana e CRCA – Centro de Referência emCooperativismo e Associativismo) escreveram um pequeno livrosobre as cooperativas populares da cidade de Campinas. Para isso, osmonitores dessas incubadoras aplicaram um questionário nascooperativas atendidas para atualização dos dados, que permitiu arealização do retrato socioeconômico dos trabalhadores etrabalhadoras na faixa etária selecionada em Cooperativas Popularesque participaram do Programa de Cooperativismo da PrefeituraMunicipal de Campinas.

Tabela 1. Faixa Etária – Cooperativas Populares – Campinas.

Ida de Qu an ti da de de co o pe ra dos Por cen ta gem

Aci ma de 50 anos 57 21%

Me nos de 50 anos 215 79%

To tal 272 100%

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Figura 1. Gênero.

Figura 2. Escolaridade.

Figura 3. Experiência profissional.

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Feminino65%

Masculino35%

Nunca estudou18%

Ensino médio18%

5ª a 8ª série14%

Ensino superior2%

1ª a 4ª série48%

Faxina, limpeza, organização33%

Cargos técnicos(Enfermagem, Telefonia, Digitação)

11%

Fábricas,empresa, lojas

30%

Construção civil, agricultura26%

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Figura 4. Local de nascimento.

Figura 5. Pessoas que moram na mesma residência.

Figura 6. Renda familiar.

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Região nordeste28%

Região sul11%

Região centro-oeste2%

Região sudeste59%

4 a 6 pessoas47%

1 a 3 pessoas48%

7 a 9 pessoas5%

Até R$ 100,002%

De R$ 101,00 a R$ 200,0011%

De R$ 201,00 a R$ 500,0034%

De R$ 501,00 aR$ 1000,00

28%

Acima R$ 1000,0025%

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Figura 7. Tempo de moradia em Campinas.

Figura 8. Emprego registrado.

Fonte: Wanda Patrocinio – Cooperativas Populares: Representações sociais, trabalho eenvelhecimento – 2005.

Do retrato socioeconômico acima exposto, podemos apreenderque do total de pessoas atendidas nas cooperativas popularesestudadas, 21% são pessoas acima de 50 anos.

A grande maioria é do sexo feminino, 65%, o que nos remeteao tema da feminização do envelhecimento, que requer uma atençãono tocante às chefias familiares e domiciliares por mulheres idosas.

A escolaridade dessas pessoas é de 48% nas primeiras sériesdo Ensino Fundamental (1ª a 4ª série) e ocorre um empate de 18%entre aquelas que nunca estudaram e aquelas que cursaram até oEnsino Médio.

A grande maioria dos participantes nasceu na Região Sudeste,59%, e em segundo lugar encontramos 28% de cooperados advindosda Região Nordeste. Não há pessoas da Região Norte.

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Mais de 20 anos61%

De 10 a 20 anos19%

De 5 a 10 anos11%

Menos de 2 anos7%

De 2 a 5 anos2%

Sim88%

Não12%

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Encontramos um empate entre os trabalhadores que moramsozinhos ou com até duas pessoas e aqueles que dividem a residênciacom três a cinco pessoas. Cinqüenta e quatro entrevistados estão nessacondição, sendo 27 na primeira circunstância e 27 na segunda.

A renda familiar que mais se destacou foi na faixa de R$ 201,00a R$ 500,00 (34%); 28% têm renda de R$ 501,00 a R$ 1.000,00.

A grande maioria dos participantes, 69%, vive em Campinashá mais de 20 anos.

Na experiência profissional, os trabalhos mais encontradosforam: limpeza, faxina e organização em geral, com 33% dasrespostas, e 30% para serviços em fábricas, empresas e lojas.

Grande parte deles já fez parte do mercado de trabalhoformal, trabalhando com carteira assinada – 88%.

Em relação aos bairros de moradia, as cooperativas estãoespalhadas por toda a cidade de Campinas, nas suas 14Administrações Regionais e mais dois subdistritos, Barão Geraldoe Nova Aparecida.

Um dos temas que merecem cada vez mais destaque e seconstituem em desafios para as políticas públicas é que a populaçãobrasileira tende a se tornar, cada vez mais, uma população de idososnum crescimento desordenado e, mesmo diante das conquistas noscampos social e de saúde, a possibilidade de envelhecer relativamentebem, a despeito das perdas e incertezas da velhice, coloca muitosidosos em situação de vulnerabilidade, com poucas condições deinfraestrutra econômica e social decentes.

Resultados e discussão

Para discussão dos resultados, levaremos em consideração as seguintes categorias de análise:

1. Com pa ra ção entre as duas coo pe ra ti vas sele ci o na das;2. Educa ção, esco la ri dade e cul tura;3. Tra ba lho e enve lhe ci mento;4. Gênero e velhice; 5. Repre sen ta ções soci ais do enve lhe ci mento e suas rela ções

com a saúde.

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Comparação entre as duascooperativas selecionadas

Dentro das oito cooperativas apresentadas abaixo,utilizamos os dados da Tatuapé e da CooperMimo para realizaçãoda discussão aqui presente.

Tabela 2. Cooperativas e Ramo de Atividade – ITCP – UNICAMP

Nome da Co o pe ra ti va Ramo de Ati vi da de

Co o per Vi da Re ci cla gem de Re sí du os Só li dos

Vi tó ria Pro du ção de Ali men tos

Ba rão Re ci cla gem de Re sí du os Só li dos

Ta tu a pé Re ci cla gem de Entu lho

Co o per So nho Arte sa na to

Bom su ces so Re ci cla gem de Re sí du os Só li dos

Co o per Mi mo Cos tu ra

Re nas cer Re ci cla gem de Re sí du os Só li dos

Fonte: Wanda Patrocinio – Cooperativas Populares: Representações sociais, trabalho eenvelhecimento – 2005.

Como se dá o trabalho em cada uma delas?

• Tatuapé: esta cooperativa funciona juntamente com umaUsina Recicladora da Prefeitura Municipal de Campinasem parceria com a Sanasa.

São feitas montanhas de entulhos, os cooperados recolhemos materiais mais fáceis da base e, quando a base fica limpa, o tratorpassa na montanha, abrindo caminho para os cooperadosrecolherem mais materiais. O trabalho é realizado a céu aberto e aPrefeitura cedeu os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) –chapéus, aventais, máscaras, óculos, luvas e botas.

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Na montanha de entulho, eles separam para aproveitamento dacooperativa em vendas: papelão, plástico, madeira, ferro e outrosmateriais; e só ganham em cima do material que vendem, conforme osseguintes valores: Madeira – R$80,00 o caminhão; Papel/Papelão –Branco – R$0,25/kg; Cimento – R$0,08/kg; Papelão – R$0,27/kg;Plástico – PVC/PET – R$0,40/kg; outros – R$0,27/kg; Ferro/Sucata –R$0,27/kg; Vidro – R$0,08/kg; Cobre – R$7,00/kg.

A infra-estrutura observada estava precária, não havia luzelétrica, nem cozinha, eles almoçavam sentados no chão ou emcadeiras improvisadas. Há um local provisório para descanso comum sofá e cadeiras que, provavelmente, vieram nas caçambas oucaminhões. Entram às 7:00 horas, param para almoço e descansodas 12:00 às 13:00 horas e depois trabalham até 16:20 horas. Namedida do possível, fazem pequenos intervalos para beber água edescansar um pouco, mas nada sistematizado.

A formação da cooperativa começou em agosto de 2001.Havia um aterro onde os caçambeiros jogavam entulhos; nesseterreno trabalhavam, irregularmente, em média 100 pessoas. A

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Figura 9. Seu Benvindo, 64 anos.

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Prefeitura Municipal prometeu que a regularização aconteceriadentro do prazo de 90 dias. Com a demora desse processo, muitaspessoas foram desistindo ao longo do caminho e as que ficaram eestavam interessadas em montar a cooperativa se juntaram,somando 21 pessoas que acreditaram nessa empreitada, realizaramcursos de qualificação e receberam todas as informaçõesnecessárias para formação e atuação de uma cooperativa popular.

Mesmo com todo o conhecimento adquirido, o grupo, em geral, ainda mantém uma postura de trabalhador assalariado, que chega demanhã, trabalha, pára para almoçar, volta a trabalhar e, no final do dia,se arruma e volta pra casa. Segundo o presidente, eles ainda nãoconseguiram compreender o poder que cada um possui dentro dessesistema de trabalho e, por essa não-compreensão, acabam tendodificuldades em assumir responsabilidades, deixando tudo nas mãosdo presidente e de outros do Conselho Administrativo.

• CooperMimo:enquanto os cooperados da Tatuapétrabalham num local extenso a céu aberto, o barracão daCooperMimo encontra-se nos fundos da casa da atualpresidente. É um espaço um tanto pequeno e apertado parao trabalho das nove cooperadas.

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Figura 10. Dona Noemia, 66 anos.

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O trabalho na Tatuapé é um serviço precário em termos decondições estruturais do ponto de vista da saúde física, pois oscooperados carregam materiais pesados e vivem em meio a objetosque são descartados pela população. Já as cooperadas daCooperMimo realizam um trabalho mais fino, suave e limpo nosentido do tipo de material que utilizam – panos, linhas e agulhas.

Modo de produção: A encomenda chega (encomenda esta jáacertada previamente via telefone ou pessoalmente e o contratante jáentrega a peça piloto com o tamanho desejado), elas recebem o material(panos, moldes, linhas), discutem como é a melhor forma de realizar aconfecção daquela peça, por exemplo, uma calça de uniforme – olhamcós, vincos, barras, bolsos etc. e qual máquina é melhor de utilizar paracada momento do trabalho. Daí partem para a produção.

Existia a promessa de um barracão da Prefeitura Municipal deCampinas para mudança de local de trabalho da cooperativa, mas issoainda não aconteceu. O horário de trabalho é das 7:30 às 17:00 horas,com intervalo mais ou menos das 9:00 às 9:30 e das 15:00 às 15:30horas e o horário de almoço é das 12:00 às 13:00 horas.

Em relação ao retorno financeiro de cada trabalho, elascobram os seguintes valores por tipo de serviço: Camisetas – R$0,30 por peça. Blusinha social para boutique – R$1,00 a peça. Calça para uniforme – R$1,60 a peça.

Uma grande diferença em relação à Cooperativa Tatuapé éque nesta o trabalho não exige qualquer tipo de habilidadeespecífica, é só chegar e ter um conhecimento rápido da separaçãodos materiais que qualquer pessoa pode executar a tarefa. Por outrolado, saber costurar exige um conhecimento mais apurado, ter maisprática e habilidade. Essa especificidade traz problemas para aCooperMimo, pois algumas cooperadas não sabem executar atarefa efetivamente, o que ocasiona muitos erros de produção e,conseqüentemente, gera estresse entre as trabalhadoras.

Educação, escolaridade e cultura

Há uma diferença marcante entre as duas cooperativasanalisadas no tocante à escolaridade dos cooperados. Na Tatuapé,as pessoas com idade igual ou superior a 50 anos cursaram no

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máximo até a 4ª série do Ensino Fundamental; já na CooperMimo agrande maioria das entrevistadas possui o nível de escolaridade noEnsino Médio.

Essa diferença pode registrar-se, também, na escolha daatividade profissional de cada cooperativa, pois como já citadoanteriormente, na cooperativa de reciclagem de entulhos, ocooperado não precisa ter qualquer tipo de habilidade específicapara realização do trabalho; já na cooperativa de costura, énecessário estudar um pouco mais para realizar o serviço.

O que temos de comum entre as duas cooperativas é que, emambas, os participantes na faixa etária supracitada não fazem maisparte do ensino formal, a educação da qual eles fazem parte é essaque se dá ao longo do curso da vida, segundo Gohn (2003, p. 98) é aeducação atrelada à cultura, adquirida ao longo da vida dos cidadãos; umadas cooperadas da Mimo afirma “então, a vida dá muitaexperiência prática” (Dona Noemia, 66 anos, CooperMimo).Tendo-se em conta o caráter polissêmico do construto “cultura”,entende-se o termo cultura popular como a soma dos valorestradicionais de um povo, expressos na forma artística, ou nascrenças, costumes gerais, ou nos valores individuais e sociais. Nãose trata de um tecido linear, que basta ir seqüencialmentedesvelando, tendo como esteio uma metodologia bem traçada, massim de uma trama complexa para a qual é preciso construir um olharque possibilite uma leitura e uma escuta intercultural.

Uma constante no aspecto do aprendizado foramdepoimentos de assistir à televisão, mais especificamente à RedeGlobo e, principalmente, novelas, pois é o horário em que eles e elas já chegaram em casa, tomaram seus banhos, jantaram e podemdescansar um pouco antes de ir dormir para começar tudo de novo.Segundo Acosta-Arjuelo (2002), ao considerar o conteúdo da TVcomo fonte de informação sobre a realidade social, o idoso limitaseu contato com o mundo externo.

Outro aspecto da educação que nos chamou a atenção foi aquestão de passar para os filhos o que eles tiveram ou não ao longo davida. Por exemplo, uma depoente da Tatuapé frisou que tentou darpara os filhos a educação escolar que ela não teve, que fez questão queos filhos estudassem. Já uma cooperada da CooperMimo trouxe aeducação recebida pelos pais no seio familiar, dizendo que tudo que

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ela é hoje foi por causa da criação que ela recebeu dos pais e que tentapassar isso para suas filhas.

Em relação à trajetória educativa, existe uma diferença muito grande entre as duas cooperativas. Enquanto os depoimentos damaioria dos cooperados da Tatuapé foram muito marcados por umaeducação através do trabalho, pois desde muito cedo eles já tiveramque ajudar suas famílias no trabalho e, geralmente, na roça, ascooperadas da Mimo trouxeram uma trajetória mais voltada para aeducação formal e só adentraram no mundo do trabalho quandoadolescentes ou adultas.

Sabemos que no processo de envelhecimento do ser humanoocorrem algumas perdas em funções biológicas, que podem afetar a aprendizagem da pessoa que envelhece, porém, temos outrasfunções que realizam uma espécie de adaptação para os aspectosdeclinantes do organismo. Conforme ocorre o amadurecimento decada indivíduo, as possibilidades de influências biológicas,psicológicas, sociais e culturais apresentam-se cada vez mais deforma ampla, o que aumenta as possíveis maneiras de o ser humanose auto-educar (Cachioni & Neri, 2004).

Além disso, seguindo uma perspectiva de educaçãoconstituidora do ser social, Freire (1975, p. 83) nos chama a atenção para o fato de que:

O que importa fundamentalmente à educação, contudo, é

a problematização do mundo do trabalho, das obras, dos

produtos, das idéias, das convicções, das aspirações, dos

mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo da cultura e da

história, que, resultando das relações homem–mundo,

condiciona os próprios homens, seus criadores.

Trabalho e envelhecimento

Os cooperados e cooperadas de reciclagem de entulhosrelatam a questão da pobreza e necessidade financeira comoprincipal motivo para trabalharem na Tatuapé. Segundo Fortes(2005), a pobreza que gera dificuldades relacionadas aos cuidadoscom a saúde e outros estressores fatores psicossociais tem sido

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associada a distúrbios de humor na velhice, assim como às perdassociais – habilidade para o trabalho, perdas de papéis, mudanças nasredes sociais. Os fatores psicológicos e os ambientais e o estilo devida também são importantes na relação envelhecimento e doença.

Já na Mimo, apesar de elas também precisarem de uma renda, a retirada que conseguem é muito baixa e algumas dizem estar nacooperativa pelas relações sociais que lá se estabelecem, o quemostra a importância do grupo num momento de vida em que muitas

perdas podem vir a ocorrer... (Patrocinio, 2003, p. 220).O que ficou muito forte em ambos os grupos é a questão de

não terem outra oportunidade de trabalho devido à idade avançada,por isso, optaram por fazer parte da cooperativa: “Mais na minhaidade não tem jeito de arrumar mais. Só serve pra aposentar,aposentou, saio de lá” (Seu Benvindo, 64 anos, CooperativaTatuapé). E isso não foi percebido somente na Tatuapé e naCooperMimo; quando do levantamento histórico das outrascooperativas da ITCP-UNICAMP, uma líder relatou:

“Essas senhoras que estão lá já têm uma certa idade, nãovamos falar que é velha, velha não é, mas pra sociedade elas nãoservem mais, porque elas já têm uma certa idade, não serve mais.Qual empresa vai pegar uma pessoa de 50 anos, 60 anos? Me fala,ninguém pega” (Dona Josenilda, CooperVida).

Muitas vezes, os cooperados e cooperadas até tentaram umemprego no mercado formal, mas tiveram respostas negativas queos levaram a desistir:

“Porque, infelizmente, aqui no Brasil, passou de 30 anos éconsiderada velha e eu tive em vários lugares, que eu tenhoconhecimento de muitas coisas que eu já fiz, certo? Ah, é muitobom, levei meu currículo, tal faz isso, faz aquilo, mas a genteprecisa de pessoas mais novas, então foi uma ducha de água friaque me deram, daí que eu falei: O quê que eu vou fazer? Ninguémme aceita pela idade, eles não vêem a experiência que a pessoa demais idade tem” (Dona Nena, 54 anos, Cooperativa CooperMimo).

Segundo Peres (2002) a “velhice” aos 40 ou 50 anosverificada no contexto atual do mercado de trabalho é um fato, namedida em que os profissionais que atingem tal faixa de idadesofrem com a estereotipia que caracteriza a velhice.

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O critério de exclusão no mercado não é, necessariamente, aidade e sim a educação do trabalhador, que precisa satisfazer asexigências das empresas no tocante a habilidades, fluência emalgum outro idioma e experiência no cargo. Com isso, ostrabalhadores e trabalhadoras mais velhos que não tiveram e nãotêm acesso à educação ficam excluídos do mercado formal detrabalho (Patrocinio, 2005b).

Em relação ao motivo que mantém as pessoas trabalhandonas cooperativas, encontramos um sentimento contraditório. NaTatuapé, se por um lado temos a repulsa ao tipo de trabalho, temostambém o sentimento de dignidade que o trabalho proporciona,segundo Peres (2002, p. 1): É pelo trabalho que não só se obtém o

próprio sustento, mas também que se mantém a dignidade e que se

constrói a própria identidade. Vários dos cooperados relataram ser um trabalho árduo, sujo e difícil: “É que ali é um serviço sujo, é sujomesmo sabe, aquelas coisas né, aquele poeirão, bicho morto,aquele barulho de máquina no ouvido da gente” (Seu Benvindo, 64anos, Cooperativa Tatuapé). Por outro lado, relataram que acabamse acostumando com esse tipo de serviço e que se sentem felizes por terem um trabalho, por serem úteis de alguma forma.

Na CooperMimo, a contradição encontra-se no fato de elasrelatarem ter entrado no grupo para ajudarem na renda familiar e essaquestão econômica também tem a ver com a dignidade do trabalho:

“... que era preciso trabalhar, arrumar alguma coisa assim,que ao menos eu ganhasse assim, uma coisa mais certa né, aí digo:ah, vou procurar serviço de costureira, falei pra ela, inclusive eufui na cidade, tinha um serviço de costureira, mas sabe quandochega, que olha pra sua cara e vê a sua idade, acho que elaspensam que a gente tá caindo aos pedaços, que a gente não vai darconta” (Dona Noemia, 66 anos, CooperMimo).

Mas durante esses anos de luta dessa cooperativa, a retiradadelas mal dá para manter a continuidade do trabalho, isso significaque elas têm levado muito pouco para suas casas, é a esperança deque ainda vai dar certo que as faz continuar trabalhando:

“Mas tem que lutá, sei lá, tem que ir até onde vê que dá, ahora que não der mais mesmo, que a gente vê que não tem jeito, aíjunta todo mundo, vende o que conseguiu, divide, acabou, mas atéque tiver uma luzinha lá no fim do túnel, tem que correr atrás e

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ainda dá pra ver a luz, vamos ver se nós alcança” (Dona Terezinha, 50 anos, Cooperativa CooperMimo)

A questão da dignidade nessa fase de envelhecimento podeser explicada pela ótica da produtividade e da valorização do jovemem nossa sociedade, segundo Debert (1997): O velho, por não se

constituir em mão-de-obra apta para o trabalho, é desvalorizado e

abandonado pelo Estado e pela sociedade. Nessa perspectiva, trabalhar nesse momento da vida de uma pessoa pode trazer o sentimento derealização por estar produzindo, mesmo que não tenha renda, comoé o caso da CooperMimo: “Eu fico muito orgulhosa em falar: EUTRABALHO!” (Dona Eva, 55 anos).

No tocante ao trabalho propriamente dito, foi uma constantena Tatuapé o relato dos cooperados de que se encontrassem umemprego registrado deixariam a cooperativa sem pensar duasvezes: “Se você arrumasse um serviço registrado, quer dizer, nãopor contrato, pra eu trabalhar direto, se eu achasse eu saía dacolá,agora eu saía dacolá. Aí se eu achasse, eu saía, agora eu saía” (Seu Vicente, 58 anos, Cooperativa Tatuapé).

Já na Mimo elas ainda mantêm uma esperança muito forte deque a cooperativa vai dar certo e que dali elas vão tirar uma rendapara ajudar as próprias famílias. Segundo uma das cooperadas, elasprecisam tocar a cooperativa para a frente para ganhar dinheiro:“Nós temos que lutar pra ter alguma coisinha nossa... eu queriaque fosse pra frente, o meu sonho era ganhar dinheiro, meu Deus,eu queria ganhar, pelo menos um salário, se eu trouxesse pradentro de casa” (Dona Eva, 55 anos, CooperMimo).

Por fim, sabemos que a exclusão no trabalho não ocorreapenas por causa da idade, de acordo com Neri (2002, p. 13):

O desemprego dos adultos mais velhos e dos idosos é

mais devido à falta de oportunidades educacionais e de

treinamento em serviço e aos preconceitos do que ao

envelhecimento em si mesmo.

E isso foi amplamente relatado pelos cooperados e cooperadasda Tatuapé e da CooperMimo, então, o que seria preciso realizar paraque essas pessoas pudessem envelhecer no mundo do trabalho comdignidade? A mesma autora nos traz uma saída:

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A superação de falsas crenças é fundamental para a

promoção de um tratamento mais conseqüente da questão

da velhice. A educação permanente de pessoas de todas as

idades é o instrumento mais adequado para essa finalidade.

Por meio dela, será mais provável conseguir superar não só

os estereótipos sobre o idoso e a velhice, como também as

práticas sociais discriminatórias em relação aos que

envelhecem no ambiente de trabalho (Neri, 2002, p. 25).

Gênero e velhice

Segundo Scott (1990), gênero é uma maneira de se referir àorganização social da relação entre os sexos e só é pensado em termosde relação. Para ela, o interesse pelas categorias de classe, de raça e degênero assinalava, primeiramente, o engajamento do pesquisadornuma história que incluía os discursos das(os) oprimidas(os) e umaanálise do sentido e da natureza de sua opressão.

Retomando os dados deste trabalho, perceberemos que agrande maioria dos trabalhadores acima de 50 anos, nascooperativas populares, é do sexo feminino, 65% do total. Por queencontramos essa maioria esmagadora de mulheres? A feminização da velhice é um fenômeno sociodemográfico a se considerar.Segundo Neri (2001), esse fenômeno não somente se atribui àmaior presença relativa de mulheres na população, ou também peloaspecto da longevidade da mulher, mas à crescente integração dasmulheres idosas em diversas esferas da vida social.

No Brasil, segundo dados do IBGE, 53% das mulheresintegram a População Economicamente Ativa – PEA, mas apenas17% estão no mercado formal. Vinte e três por cento estão no setorinformal e 12% desempregadas. Os fatores que afetam aparticipação das mulheres idosas no mercado de trabalho ocorremprincipalmente pela falta de desenvolvimento profissional eeducacional devido às interrupções da atividade de trabalho e dasobrigações relacionadas com a família, como também os baixosrendimentos durante os anos produtivos da mulher, gerando maispobreza na velhice.

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Além disso, com a situação econômica atual, a mulher acabatendo que buscar saídas de geração de renda e encontra nascooperativas uma forma de driblar o desemprego. O que torna otrabalho neste sistema tão interessante é que nele não há a tãofamigerada diferenciação salarial entre homens e mulheres. Adesigualdade de remuneração entre homens e mulheres é umaconstante em todo o mundo, o que não ocorre dentro das cooperativas,pois não importa ser homem, mulher, jovem, velho, branco, negro,todos recebem a mesma retirada no final do mês. Salvo apenas emcasos de cooperativas que trabalham com o valor por hora de trabalho,nesse caso, ganha-se o quanto se trabalha em horas por dia.

Há que se levar em consideração, também, a questão dadupla jornada de trabalho, pois ainda resta para as mulheres chegarem casa e cuidar dos afazeres domésticos e da educação dos filhos,por mais que os homens passem a ajudar mais, ainda sobra para asmulheres a maior responsabilidade sobre essas tarefas. Porexemplo, a mãe ou avó que precisa pegar um filho ou neto nacreche, participar de uma reunião de professores, levar um filho ouneto ao médico. Ela vai ganhar menos por ter que sair em horário detrabalho? Ou será que ela tem o direito de ganhar a mesma retirada?

Ainda existe muita resistência de homens e, também, demulheres que não têm filhos ou netos de ver esta mulher como umaigual. Há muitas frases do tipo: “Elas que se virem!” Se achávamosque dentro de um ambiente, teoricamente, solidário, isso nãoaconteceria, estávamos muito enganados, pois eles e elas viveramtoda sua experiência de trabalho como empregados e empregadas, é muito difícil, de uma hora para outra, terem que pensar em soluçõesde maneira não competitiva.

E terem vindo de um ambiente competitivo e individualistamostra claramente as relações de poder que permeiam a sociedade e nela as relações de gênero. Segundo Scott (1990), o gênero é umaprimeira maneira de dar significado às relações de poder. Seriamelhor dizer: o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou pormeio do qual, o poder é articulado. Nesse sentido, ela afirma que Os

conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e

simbólica de toda a vida social (p.16).Estudar gênero implica compreender quatro elementos que a

ele são constitutivos: primeiro, os símbolos culturalmentedisponíveis que evocam representações simbólicas; segundo, os

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conceitos normativos que põem em evidência as interpretações dosentido dos símbolos e que se esforçam para limitar e conter suaspossibilidades metafóricas; terceiro, uma noção de política bemcomo uma referência às instituições e à organização social; quarto,a identidade subjetiva.

Para Scott (1990, p. 15),

os historiadores devem antes de tudo examinar as maneiras

pelas quais as identidades de gênero são realmente

construídas e relacionar seus achados com toda uma série

de atividades, de organizações e representações sociais

historicamente situadas,

acreditamos que essa afirmação não se direciona somente para oshistoriadores, mas também para todos que se preocupam com essacategoria analítica de estudo (o gênero) e que buscam compreendermelhor as situações que nos são postas em nossa sociedade,principalmente, na relação de gênero e velhice.

Representações sociaisdo envelhecimento

e suas relações com a saúde

Neste item, trataremos das representações sociais sobre oenvelhecimento nas duas cooperativas populares estudadas e,também, discutiremos as condições de saúde que permeiam oprocesso de envelhecimento analisado. Escolhemos tratar doaspecto da saúde, pois existe uma prevalência de representaçõesnegativas sobre essa fase da vida por conta do aparecimento dedoenças e incapacidades físicas que, muitas vezes, perpassam acaminhada dos idosos e das pessoas que começam a entrar navelhice. Segundo Neri e Yassuda (2004, p. 8):

Uma velhice bem-sucedida revela-se em idosos que

mantêm autonomia, independência e envolvimento ativo com

a vida pessoal, com a família, com os amigos, com o lazer, com

a vida social. Revela-se em produtividade e em conservação de

papéis sociais adultos.

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O sonho do ser humano é poder envelhecer com saúde eindependência; nessa perspectiva entende-se por saúde um campode estudo, que não se restringe apenas à concepção de doençalocalizada no corpo. Ela se constitui de ampla visão do homem numequilíbrio dinâmico da interação do indivíduo nos seus aspectossociais, relacionamentos entre as pessoas, aspectos biológicos,aspectos psicológicos, a história do desenvolvimento do indivíduoe a cultura na qual as pessoas estão inseridas (OMS)1. Os várioselementos indicativos na literatura que podem contribuir paramelhorar a saúde são a moradia, alimentação, transporte, trabalho,ecologia, cultura, lazer, educação, bem-estar subjetivo e atividadefísica, portanto a presença de doenças é determinada por grandevariedade de fatores genético-biológicos, ambientais e de estilo devida, os quais afetam de modo diferente homens e mulheres devárias idades.

Em relação às duas cooperativas em estudo, era de se esperarque na Tatuapé, por ser um trabalho mais pesado, pudéssemosencontrar mais problemas de saúde. No entanto, a diferença quesentimos foi que, nessa instituição, os problemas eram agudos, doresadvindas do árduo trabalho do dia-a-dia, porém com o descansonoturno, os cooperados já se restabeleciam e ficavam prontos paramais uma jornada.

Já na CooperMimo, talvez por elas ficarem muito temposentadas, paradas e executando movimentos repetitivos,encontramos problemas mais crônicos nas cooperadas acima de 50anos, como problema de coração, LER (Lesão por EsforçoRepetitivo), febrite, trombose, tendinite, osteoporose, artrose,problema de coluna, bursite, dor no cóccix e labirintite.

O que encontramos de comum nos dois grupos foi a questão dador e cansaço nas pernas e inchaço nos pés. No primeiro grupo, porficarem muito tempo de pé, carregando peso e, no segundo grupo, porficarem muito tempo sentadas, dificultando a circulação sangüínea.

Sobre os aspectos do relato de doenças e desconfortos de saúde,verificamos que esses resultados apontados estão relacionados com osdados de outro estudo sobre o bem-estar físico de homens e mulheres

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1. Organização Mundial de Saúde – Organização Pan-Americana da Saúde.Relatório sobre Saúde Mental no Mundo 2001: Saúde Mental – novaconcepção, nova esperança

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idosos. De Vitta (2001) apresenta uma grande associação entrevelhice, gênero feminino e sedentarismo. Neste estudo, os resultadosapresentados mostram que as mulheres idosas apresentaram asmaiores taxas de doenças músculo-esqueléticas e os idosos masculinos as maiores taxas de doenças cardiovasculares. A outra correlação foique as mulheres adultas e idosas e os sedentários relataram maisdesconfortos músculo-esqueléticos.

Em relação a gastos com remédios, foi unânime nas duascooperativas o fato de os cooperados pegarem os remédios no Posto de Saúde do bairro e só gastarem dinheiro para esse fim quando nãoencontravam o remédio desejado. Isso mostrou que a renda que eles e elas retiravam da cooperativa não se destinava a gastos comremédios, mas sim para gastos com suprimentos básicos desobrevivência: alimentação, água e eletricidade.

No tocante à valorização versus discriminação, em sua maioria,os depoentes de ambas as cooperativas relataram que se sentiamvalorizados ou não, mas não pelo fato da idade, de ser mais velho e simpelo trabalho, se trabalhavam conforme o esperado ou não.

Em termos de representação social, podemos separar osresultados em quatro grupos:

1. Aspec tos físi cos e de saúde;2. A velhice como algo natu ral;3. A velhice como etapa que pre cede a morte;4. Com pa ra ção entre sen tir-se velho/jovem e se ver velho

fisi ca mente.

No primeiro grupo, encontramos pessoas que se diziam nãose sentirem velhas porque não tinham cabelos brancos suficientes:

“Meus cabelos estão brancos, mas não são tão brancoscomo do Zé Ovídio, do Zé Ovídio é mais branco, ele parece maisvelho do que eu. Repara nele uma hora pra você ver. O Zé Ovídioparece mais velho do que eu. Eu não estou tão velho porque, pra euparecer mais tão velho assim, meu cabelo tem que estar maisbranco” (Seu Benvindo, 64 anos, Cooperativa Tatuapé).

Nesse grupo, houve um depoimento de uma mulher que está nafaixa etária abaixo de 50 anos, que mantém a representação social doenvelhecimento como “ser velho é ser doente”. Segue sua fala:

“Vai chegando a velhice, é assim mesmo!”.

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Pesquisadora: Para a senhora, ser velho é sentir dor e essascoisas aí?

“Cooperada: É, porque vai ficando velho e os problemasvão aparecendo” (Dona Ernestina, 44 anos, Cooperativa Tatuapé).

Essa representação da velhice como doença acaba sendoreforçada pelos próprios depoentes que salientam que esperamenvelhecer com saúde: “O importante é que eu chegue nos 50 anos,nos 60, nos 70 e que eu chegue com saúde, isso que importa, nãopenso que eu vou estar feia, bonita, tá velha, ou sei lá” (DonaTerezinha, 49 anos, CooperMimo).

A auto-observação subjetiva ou avaliações de parâmetrospessoais e sociais que as pessoas fazem sobre a qualidade dofuncionamento de sua saúde física e mental refere-se ao conceito desaúde percebida. A saúde percebida pode se referir aofuncionamento atual, do passado ou que inclui expectativas dofuncionamento futuro e não se justifica simplesmente pela ausência de doenças e de incapacidades, mas sim pela ausência de danosagudos. A capacidade de avaliar positivamente a própria saúdecomparada à de outras pessoas da mesma idade, segundo De Vitta(2001), pode ser considerada um mecanismo de adaptação,mediante o qual o indivíduo mantém a auto-estima e representa uma integração individual de muitos aspectos do conceito de saúde, taiscomo a capacidade de realizar determinadas tarefas, o statusfuncional e o status de saúde.

De certa forma, eles possuem uma representação social deque o envelhecimento leva à doença e que, portanto, eles nãoquerem isso para suas vidas. Não podemos negar que oenvelhecimento, em muitos casos, traz doenças, mas isso não podeser uma constante, é preciso modificar essa visão e partir dopressuposto de que nós envelhecemos conforme nós vivemos e noscuidamos durante todo o nosso curso de vida. Se tivemos um cursode vida marcado por doenças, fraquezas, medos, não é na velhiceque isso mudará. Ao contrário, se sempre cuidamos de nossa saúdefísica e mental, teremos menos perdas em nosso processo deenvelhecimento. Segundo Neri (2002, p. 16):

O importante é que não se pense que envelhecer é igual aficar doente, uma vez que o envelhecimento normal não é doença eque o progresso social e a disseminação de hábitos de vida

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saudável fazem com que aumente o número de idosos saudáveis ebem-sucedidos na população.

Sob essa ótica, envelhecer satisfatoriamente depende doequilíbrio entre as limitações e as potencialidades do indivíduo, que possibilita lidar com graus de eficácia, preservando o potencialindividual, com as perdas inevitáveis e com os limites daplasticidade de cada um (Neri, 1995). Tanto o desenvolvimentoquanto o envelhecimento são processos adaptativos caracterizadospela ocorrência conjunta de ganhos, perdas e manutenções dascapacidades e potenciais individuais determinados sob diferentesfatores, pois a velhice é um momento da vida que pode ser vivida deforma prazerosa, com satisfação e realização pessoal.

No segundo grupo, tivemos uma visão mais positiva sobre oenvelhecimento, como um processo natural e que, portanto, todosviverão, por isso, não há o que temer. Essa visão esteve muito abarcada pela questão do trabalho e de se sentirem ainda produtivos.

Uma das cooperadas da CooperMimo disse o seguinte: “Euencaro assim: que todo mundo vai passar por isso, eu penso quetodo mundo vai passar por isso, eu também vou, eu não tenho nadaassim medo da velhice, Deus dando saúde, o resto a gente correatrás” (Dona Eva, 55 anos, CooperMimo). Já uma cooperada daTatuapé salienta a questão de viver melhor no envelhecimento porconta do trabalho: “Eu acho que minha vida agora tá muito maismelhor do que da época que eu era mais nova, pelo menos, graças a Deus, eu trabalho e na época que eu era mais nova, eu nãotrabalhava, dependia, às vezes, de uma ajuda da minha mãe”(Dona Luci, 49 anos, Cooperativa Tatuapé).

No terceiro grupo, encontramos a representação social davelhice como etapa que precede a morte e essa representação estábaseada no fato de que, segundo Neri e Yassuda (2004, p. 8), éconhecimento amplamente disseminado que a velhice é a última etapa do

ciclo vital. Pelos relatos a seguir, perceberemos, de um lado, umavisão positiva dessa etapa que é fortalecida pela produtividade e,por outro, uma visão mais de abandono e falta de perspectivas.

“A história da vida da gente é só isso aí mesmo, porque gentesempre cada dia que passa a gente vai ficando cada vez mais velho echegando o dia, sempre o dia da vida da gente vai chegando praperto da morte (...) Então, a pessoa tem que sempre conformar né.

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Fazer que nem, então, nesse meio tempo, a gente tem que, cada diaque, antes de chegar, a gente tem que ir lutando até chegar o dia, não pode esmorecer, tem que ir lutando, porque aí a gente, cada dia quepassa, cada dia que vem lutando até chegar o dia, aí esse dia quenenhum de nós sabe, é só isso que eu falo também, e pra mim é só oque tem que falar” (Seu Francisco, 51 anos, Cooperativa Tatuapé).

“Ah, o que eu espero da vida é Deus me dar saúde, porque apessoa velha o que quer esperar de bondade daqui pra frente? Euacho... pessoa de idade ainda ter esperança, só se for Deus mesmo. O que eu espero é Deus me dar saúde até o dia que ele quiser. É isso aí”(Seu Vicente, 58 anos, Cooperativa Tatuapé).

No último grupo, temos uma representação muito forte decomparação do sentimento de ser velho e sentir-se velho, ainda maisquando comparado ao outro; segundo Gusmão (2001), é sempre navisão do outro que as pessoas se percebem entrando na velhice e issofica muito claro no depoimento de uma das cooperadas:

“No começo foi mais difícil pra mim aceitar né, mas depoisde repente, eu pensei assim: Gente, eu vou envelhecer, to ficando,pra ser mais, foi minha neta mesmo que me acordou, porque umdia, o pessoal tem mania de falar que ela é parecida comigo né, (...)E sabe que ela veio pra cá e ela falou assim: (...) eu não me achoparecida com a senhora, ela falou. ‘E por que fia?’ Ai, eu não seimãe, eu não tenho isso aqui ó (se referindo às rugas da avó)” (Dona Noemia, 66 anos, Cooperativa CooperMimo).

Como uma representação profundamente arraigada em nossasmentes, a valorização social se dá em termos de juventude e vitalidade,como se ser velho fosse sinônimo de decrepitude e essa comparação do sentir-se velha e/ou jovem ou com força para viver apareceu com certafreqüência: “Eu vou falar sinceramente, eu não me considero velhanão, em vista de muitas que eu vejo por aí mais nova do que eu, nossa,tenho muito gás ainda, eu não me considero (...) pra mim tá tudo bom,eu quero é mais dar risada” (Dona Nena, 54 anos, CooperativaCooperMimo). E uma outra cooperada disse o seguinte: “Eu não tôvendo minha vida mudar, pra mim, eu tô sempre a mesma coisa, podemudar as rugas aqui ó, né, mas disposição é a mesma coisa” (DonaTerezinha, 49 anos, CooperMimo).

Na CooperMimo, ainda, foi também marcante a associaçãoda entrada na velhice com a chegada da menopausa.

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De todos os grupos de representações aqui expostos,percebemos que existe uma mistura entre os participantes das duascooperativas nos diversos tipos de representações, mas, em geral,podemos apresentar a seguinte comparação: os cooperados ecooperadas da Tatuapé referiram-se mais freqüentemente arepresentações voltadas para a velhice como uma fase de doenças eperdas, que podem ser modificadas pela produtividade e pelotrabalho. De acordo com Luca (2003, p. 202), enquanto trabalha, não é

velho, independentemente da sua idade ou aparência. Já as cooperadas da CooperMimo referiram-se com mais freqüência a representaçõesvoltadas a uma comparação entre ser jovem, ser velho, ser ativo e terdisposição para viver, aqui também, independentemente da idadeque se tem.

Foi praticamente unânime o desejo de viverem uma velhicecom saúde, por meio da ajuda de Deus, o que traz a questão dareligiosidade como um instrumento de força para essas pessoasenvelhecerem no mundo do trabalho.

Considerações finais

Nossa discussão mostrou a importância das cooperativas navida das pessoas acima de 50 anos no sentido de que lhes devolvemo direito ao trabalho que o mercado formal lhes roubou. O Estatutodo Idoso clama para que o velho tenha autonomia e possibilidadesde continuar uma vida de produtividade, não importa em queâmbito de atuação. Através do trabalho, essas pessoas puderam sesentir cidadãs à medida que utilizaram os meios da cultura popularpara criar condições de sobrevivência básica, que são o trabalho, amoradia, a saúde e a alimentação.

O retrato socioeconômico dos trabalhadores e trabalhadorascom idade igual ou superior a 50 anos em cooperativas populares da cidade de Campinas apresenta dados da realidade dessescooperados, mostrando-nos quem são essas pessoas, de ondevieram, em qual situação econômica e social vivem; mesmo que osresultados tenham sido de uma parcela que não corresponde àtotalidade dos grupos do município, podemos vislumbrar como éformada a categoria das pessoas que estão envelhecendo nascooperativas populares estudadas.

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O crescimento demográfico trouxe consigo uma preocupaçãocrescente com relação às condições de vida dos idosos, num país emdesenvolvimento como o Brasil, onde as políticas públicas ainda sãomuito precárias para a população em geral e os sistemas de saúde nãoestão preparados nem respondem à demanda crescente. Se por umlado, vislumbramos a possibilidade de viver mais anos, por outro,convivemos com condições deficitárias de atendimento público emsaúde, pouco acesso à educação e ao mercado de trabalho.

Este estudo também mostrou que a grande maioria daspessoas com idade igual ou superior a 50 anos nas cooperativaspopulares é do sexo feminino, o que reforça a tese de que nesseambiente de trabalho a mulher está envelhecendo mais que ohomem, confirmando estudos gerontológicos que trazem oenvelhecimento como um processo, majoritariamente, feminino(Camarano, 2002). Além disso, em nossa sociedade, a força detrabalho no mercado formal ainda é do homem e, por mais quetenha crescido o oferecimento de vagas e oportunidades para asmulheres, estas ainda são mais discriminadas como seresprodutivos e, atrelado a isso, envelhecem mais que os homens.Então, se elas estão envelhecendo e sendo expulsas ou não aceitasno mercado, resta-lhes buscar trabalhos em sistemas alternativosde produção.

Em termos de Representações Sociais como um sistema devalores, idéias e práticas, percebemos uma dupla perspectiva. Emum primeiro sentido, a velhice valorizada por seus aspectos físicos,de perda da saúde, o que, na prática, pode ser amenizado pela idéiade continuar sendo produtivo por meio do trabalho. Por outro lado,a idéia que vigora em nossa sociedade é a de velhice como sinônimo de inatividade e incapacidade comparada com a idéia de juventude,que é cheia de vida e esperança.

Cabe aqui a pergunta: como mudar essas representaçõessociais negativas sobre o envelhecimento?

Por tudo que já foi exposto, sabemos que a velhice, apesar de tercaracterísticas comuns nas populações, é um processo individual eque, portanto, temos que considerar três padrões de envelhecimento:normal, patológico e bem-sucedido. Nas representações sociais, vimos

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uma predominância nas considerações de uma velhice normal, quando podem ocorrer mudanças típicas, mas que não trazem doenças queincapacitem as pessoas para as atividades de vida diária (Neri;Yassuda, 2004).

Encontramos também uma perspectiva de representaçãosocial e de avaliações da saúde percebida voltada para os aspectosdo envelhecimento patológico, em que a preocupação com doençasincapacitantes estava bastante presente. Nesse sentido, resta-nosressaltar, na população das classes populares, a perspectiva de umenvelhecimento bem-sucedido, pois este ainda é poucovislumbrado pelas pessoas que estão perto de entrar na velhice eque pertencem a uma classe social que pouco acesso tem a esseconhecimento. Reconhecer e buscar novas possibilidades emodalidades de trabalho, participação na força de trabalho e noaprendizado continuado da população idosa são contribuiçõesvaliosas para reduzir o risco de exclusão, dependência e melhorar as condições de vida dessa população.

Acreditamos em uma educação para o envelhecimento, emque a educação popular se constitui em um caminho deemancipação das pessoas. Realizar um trabalho de educação tantodo próprio idoso que já está na velhice quanto para os outros(crianças, jovens, adultos) que um dia envelhecerão nos maisvariados espaços. Promover uma orientação sobre as possíveisperdas que ocorrem com o envelhecimento humano e comoprevenir doenças incapacitantes, assim como programaseducacionais e de reeducação postural e nas variáveis sedentarismoseja entre adultos e jovens. Acreditamos que é relevante iniciar umtrabalho de conscientização desde a educação infantil, para que ascrianças possam valorizar o velho e tenham noção, desde pequenas, de como viver para conseguir um envelhecimento bem-sucedido.Nessa perspectiva, ansiamos por um país que envelheça com maisdignidade e qualidade.

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Page 105: Velhice e Diferecas

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Page 106: Velhice e Diferecas

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VELHOS,CÃES E GATOS

Interpretaçãode uma relação

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CAPÍTULO 5

Marília Anselmo Viana da Silva Berzins | Elisabeth Frohlich Mercadante

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Sei tão pouco sobre pessoas velhas!

Vi uma velha bruxa. Olhei para a decrépita criatura e

pensei: uma bruxa (...) Uma mulherzinha magra e curvada, o

nariz quase encostado no queixo, roupas negras pesadas e

empoeiradas, e uma coisa muita parecida com a touca que as

mulheres usavam antigamente (...) Era o cheiro dela, um

cheiro doce, azedo, empoeirado. Vi as linhas da sujeira no

pescoço magro e velho, e nas mãos (...) A casa tinha um

parapeito quebrado, degraus rachados e lascados (...) Entrei

com ela, meu coração apertado, meu estômago contraído por

causa do cheiro (...) Eu jamais vira nada igual a não ser no nosso

Arquivo de Miséria (...) Um velho fogão a gás, engordurado e

negro, uma pia de louça branca, rachada e amarela (...) O lugar

todo cheirava, cheirava horrivelmente (...) E uma gata amarela

no chão. Tudo muito sujo e encardido, sombrio e horrível (...)

Acariciava a gata o tempo todo – minha belezinha... afinal,

acorda com a gata ronronando e se esfregando em suas pernas

(Lessing, 1983, pp. 11-13 e 102).

Este texto é parte do livro O diário da boa vizinha que DorisLessing escreveu com o pseudônimo de Jane Somers. O livrodescreve uma relação de conflito e amor entre ela, uma jornalista euma velha senhora chamada Maudie que tinha uma íntima relaçãode afeto com uma gata de estimação, sua única companhia até omomento em que Jane entrou em sua vida para estabelecer com elauma relação de amizade, carinho e resgatar os valores humanosperdidos no tempo da existência de Maudie.

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Neste primeiro capítulo, é apresentada uma velhice muitosemelhante à descrita nas primeiras linhas deste capítulo e muitodiferente daquela que está presente nos grupos da Terceira Idade ou dasFaculdades da Terceira Idade, retratos atuais dos velhos brasileiros.

O estudo fundamenta-se em uma perspectiva multidisciplinare tem como proposta a análise de uma relação muito específica que se dá entre velhos e animais, no caso cães e gatos. O tema não se refere àrelação dos velhos com o seu animal de estimação, mas do velho (a)com seus muitos cães e gatos, número superior a dez animais vivendo em seus domicílios e em condições irregulares. Essas condições sãoirregulares tanto para o velho quanto para os animais, uma vez queestes animais não recebem o tratamento ideal e necessário. Agrava-se o fato de o grande número de animais abrigados representar umainfração de lei municipal1.

Os idosos depoentes desta pesquisa foram denunciados porseus vizinhos por apresentarem irregularidades; no manejo e tratocom seus inúmeros animais de estimação. Os veterinários quefizeram as visitas nos domicílios constataram as irregularidades,todos foram intimados a tomar providências e alguns chegaram aser multados. Eis alguns motivos referidos nos processos emrelação às pessoas atendidas:

“Trata-se de pessoa idosa que se descontrola facilmente.Sugiro que a Assistente Social tente diálogo com a intimada”.

“Encaminhamos o presente expediente, sendo que aproprietária dos animais é idosa e de difícil trato e o problema comfalta de higiene na criação de cães e gatos vem causando incômodo aos demais moradores”.

“Sugiro que a Assistente Social vá ao local fazer uma visitadevido ao fato da intimada ser idosa”.

“Trata-se de uma pessoa doente, idosa e difícil de seconversar”.

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1. Lei 10.309 de 22 de abril de 1987 que dispõe sobre controle de população econtrole de zoonoses no Município de São Paulo. Art.29º: Não são permitidos, emresidência particular, a criação, o alojamento e a manutenção de mais de 10 (dez)animais, no total, das espécies canina ou felina, com idade superior a 90 dias.

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À medida que o trabalho2 era desenvolvido e as visitasrealizadas nos domicílios dos idosos, várias reflexões começaram anos incomodar, sobretudo aquelas em que se procurava identificarquais os significados dos animais domésticos – gato e cachorro –para os idosos. Importante destacar o nosso interesse em estudar arelação que se estabelece entre o idoso e o animal doméstico, que,neste caso, não significa o animal de estimação, tendo em vista onúmero, a quantidade de gatos e cachorros com os quais essesidosos lidam. Ultrapassa a casa dos 10, chegando em alguns casos amais de 50 animais.

Assustava-nos ver tantos animais com as pessoas idosas.Inquietava-nos mais ainda verificar a intensidade da relação queessas pessoas estabeleciam com todos aqueles animais: relaçõesúnicas, singulares e permeadas de profundo significado. Não erafácil compreender as respostas que eram dadas sobre ossignificados dos animais para elas, principalmente esta: “eles são arazão da minha vida”. Ao se aprofundar na entrevista, verificavaque isso era absoluta verdade. Aqueles idosos não tinham outrarazão para viver, senão os animais. Ouvia, com certa freqüência,eles dizerem que os animais eram os “filhos deles” ou tambémrespostas como “os animais são melhores que os homens” e ainda“eles me fazem companhia”. Todas essas questões fizeram-nosrefletir sobre essa forma singular de envelhecer e viver a velhice.Pessoas com escassos ou com ausência de laços afetivos humanos esociais. Não há pessoas em suas vidas, somente animais. Ondeestavam os seres humanos? Desapareceram na linha do tempo e naconstrução social desses sujeitos e históricos.

Este grupo de idosos se compõe na sua maioria de mulheressolteiras ou viúvas. Elas não tiveram filhos. Residem sozinhas emcasa própria ou cedida por terceiros. Constata-se a ausência devínculos afetivos de família e, muitas vezes, faltam até mesmo esses familiares. Há ainda, na condição delas, fatos como o de elas não serelacionarem com os vizinhos e seus imóveis se encontrarem empéssimo estado de conservação, higiene e limpeza.

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2. Síntese da dissertação de Mestrado de Berzins e Mercandante (2000).

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Fundamentaçãoteórico/metodológica

A discussão metodológica da pesquisa veiculada neste textofundamenta-se na reflexão proposta pela atual “AntropologiaInterpretativa” que provocou um impacto importante no sentido dealterar a prática antropológica. Ela substituiu a ênfase de umaanálise antropológica tradicional do comportamento e estruturapelo estudo dos símbolos, significados e mentalidades. Um de seusexpoentes, Clifford Geertz, chama a atenção para as interpretaçõesantropológicas. Assim, na perspectiva desse autor, a Antropologia,com um conceito semiótico de cultura, deixa de ser uma ciênciaexperimental na busca de leis, e passa a ser uma ciênciainterpretativa à procura do significado.

Descobrir os significados implica o estabelecimento de umcontato mais próximo entre pesquisador e pesquisado e apossibilidade de um diálogo entre os mesmos. A interpretação dossignificados que os idosos dão aos seus animais é permeada nosseus discursos. Essas interpretações não se esgotam em si mesmas,mas elas constituem elementos para outras que poderão surgir. Naconstrução dos significados interessa-nos desvendar o processo deconstrução de novas concepções simbólicas elaboradas pelospróprios idosos.

Geertz propõe uma noção que interprete o conjunto simbólico.Na verdade, ele quer analisar o trânsito cultural dos símbolos de umadada cultura. Sustenta-se Geertz em Weber, afirmando que o homem éum animal amarrado às teias de significados tecidos por ele mesmo. Acultura seria o conjunto dessas teias e, assim, caberia à antropologia oestudo delas. Este conceito de cultura – interpretar significados – éentendido como sendo um conceito semiótico.

A perspectiva proposta por Geertz é muito rica e ampliadoradas possibilidades de descoberta de novos significados. Ao afirmarisso, certamente estamos refletindo sobre o tema da interpretaçãode uma relação de “velhos e seus bichos”, questão singular einusitada que a partir da perspectiva de interpretação dossignificados possa ser clareada.

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Os significados que a pesquisa procurou desvendar são aquelesrelativos à identidade de velho e de velhice. Interessaram-nos não só os significados que os próprios velhos atribuem à relação com seusanimais, mas, principalmente, descobrir outros significados distintos,ainda não revelados, que os velhos possuem a seu próprio respeito.

Voltando à fundamentação teórica sobre as propostas deGeertz, vê-se que esse autor objetiva descobrir e interpretar e nãoesgotar sua explicação em teorias já estabelecidas e que explicam arelação entre velhos e seus muitos bichos, classificando-os comosujeitos carentes emocionais ou os bichos como seus objetostransacionais.

Assim, na literatura psicológica temos Nise da Silveira,fundadora do Museu do Inconsciente e uma das primeirasprofissionais a utilizar, no Brasil, animais como co-terapeutas empacientes com transtornos mentais. Ela expressa o seguinte:

Parece-me merecer observação atenta a maneira como

se processa o relacionamento do homem (doente ou não)

com o animal. Este relacionamento reflete a problemática

entre o homem, que se esforça para firmar-se na condição

humana, e o animal existente nele próprio. Relacionamento

difícil, de luta, sacrifício, confronto, amizade, desenvolvido

ordinariamente numa trama complexa de projeções e

identificações (Silveira, 1982, p. 87).

Ela continua, conceituando os animais como excelentescatalisadores não-humanos. O cão, segundo a autora, reúne qualidades que o fazem muito apto a se tornar um ponto de referência estável nomundo externo. Ele nunca provoca frustrações, dá incondicional afetosem nada pedir em troca, traz calor e alegria. Já o gato tem um modo deamar diferente, pois é discreto e esquivo.

Não refutamos essas avaliações psicológicas, mas, elas sãoinsuficientes para explicar um ser tão múltiplo e complexo como é o homem. Esse homem não é somente um ser psicológico, é tambémao mesmo tempo cultural, social e biológico. Quando dizemos aomesmo tempo referimos novamente a Geertz, que chama a atençãopara o nosso pensamento que se estratifica em níveis cultural,psicológico e biológico, como se o segundo fosse mais profundoque o primeiro e o terceiro que o segundo. Geertz reconhece o

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psicológico, o cultural e o social, mas como dimensões que searticulam e não como níveis de estratificação.

A aná lise que leva em conta níveis de estra ti fi ca ção apontapara um redu ci o nismo e clas si fi ca ções injus tas e estig ma ti za do ras.Desta forma, no decor rer das con si de ra ções pos te ri o res dos suje i tos desta pes quisa, os lei to res pode riam ir clas si fi cando esses suje i toscomo pato ló gi cos ou pro cu rar enqua drá-los em uma psi co pa to lo -gia, prin ci pal mente por causa da sin gu la ri dade que esta rea li dadeapre senta. Não é este o nosso obje tivo e torna-se neces sá rio des ti -tuir das clas si fi ca ções preexistentes o que diz respeito a estessujeitos idosos.

Insistimos que num primeiro momento, o grupo de idososconstante nesta pesquisa pode parecer que é caracterizado por umapsicopatologia. Não é o caso. Gilberto Velho nos diz que:

Tradicionalmente, o indivíduo desviante tem sido encarado

a partir de uma perspectiva médica preocupada em distinguir o

”são" do “não-são” ou do “insano” (Velho, 1983 p. 12).

O objetivo desta classificação seria então diagnosticar o male tratá-lo, localizando o problema somente no indivíduo. Esta é uma postura reducionista que a teoria proposta por Geertz refuta por nãoconsiderar a vida sociocultural do indivíduo.

Num estudo quantitativo publicado recentemente nosEstados Unidos sobre pessoas que têm um grande número deanimais, elas foram denominadas como “colecionadores deanimais” cuja definição é a seguinte:

É alguém que acumula um grande número de animais, sem

proporcionar condições mínimas de nutrição, limpeza e

cuidados veterinários, e falha na ação sobre a deteriorização

das condições dos animais (incluindo doença, fome e até a

morte) ou do ambiente (superpopulação, precaríssimas

condições sanitárias) ou os efeitos negativos e prejudiciais a sua

própria saúde e bem-estar, como também aos seus familiares

(Patronek, 1999, p. 81).

Essa definição coincide com as características dos sujeitosconstantes nesta pesquisa. Entretanto, o estudo mencionadoclassifica e enquadra os “colecionadores de animais” como sendo

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dementes e portadores de uma doença mental. Não podemos nosesquecer de que o homem é um complexo dinâmico de idéias, forçase possibilidades. E de acordo com as suas motivações e relações devida e suas mudanças, ele pode fazer de si mesmo um fenômenodiferenciado e claramente definido. Essa relativa autonomia de suavida é nutrida numa fonte comum de sua energia e que é difícil declassificar. Portanto, partir do princípio de que todos osColecionadores de Animais são patológicos é negar a particularidade do ser humano e o meio social onde ele está inserido.

Uma interpretação como a proposta por Geertz percebe ossímbolos como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis.Assim, estudar a cultura e, nosso caso específico, as interpretaçõesque os idosos formulam para explicar suas relações com os animaisé tentar compreender os símbolos no sentido de que eles possam serdescritos de forma inteligível.

Segundo Geertz (1973, p. 30):

A análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos

significados, uma avaliação das conjeturas, um traçar e não a

descoberta do continente dos significados e o mapeamento

da sua paisagem incorpórea.

E continua afirmando que o propósito de uma análiseinterpretativa permite o alongamento do discurso humano:

O que procuramos, no sentido mais amplo do termo,

que compreende muito mais do que simplesmente falar, é

conversar com eles (Geertz, 1973, p. 24).

Encontramos ainda na mitologia primitiva uma outrainterpretação para o relacionamento com os animais. Eles, assim como os caçadores, foram os primeiros inspiradores da mitologia.Estabelecia-se uma relação de respeito, reverência, submissão etambém inspiração. Quando um homem queria poder e conhecimento, dirigia-se à floresta, jejuava e orava e um animal vinha ensiná-lo. Hojenão é mais assim. Os animais passaram para outro estágio na relaçãocom o homem.

Françoise Dolto (1998, p. 338), psicanalista contemporânea,define a relação homem-animal como sendo projeção:

Velhos, Cães e Gatos 115

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É porque o ser humano também tem algo dos

mamíferos. Diz respeito ao domínio do homem sobre os

animais. Os animais de companhia são objetos transicionais,

não entre o sujeito humano e uma pessoa exterior, mas o

sujeito humano e uma parte de si mesmo, a parte não

verbalizável de seus afetos. E dentro dele, o animal

desempenha o papel dele em pequeno como um adulto,

adulto que o protegia... ou que o explorava. E ele é assim

como seu animal de estimação, que ele educa e cujas

pulsões recalca, como as suas foram recalcadas. O animal

que ele educa e adestra para ser animal exibicionista é como

ele mesmo o foi, guardadas as devidas proporções, pela

educação que recebeu.

Este estudo procura também analisar o estigma social queeste grupo específico tem na comunidade onde mora e habita. Ovelho em questão, além da idade e do aspecto físico, que ocaracterizam como “velho”, é também o “diferente” na rua e bairroonde mora. A existência das diferenças, da multiplicidade degrupos heterogêneos no interior das sociedades pode expressar queas sociedades são complexas.

Os velhos aqui apresentados evidenciam atributos que ostornam diferentes das outras pessoas. Eles se diferenciam pelaidade, presente na aparência física, pelas condições péssimas da sua moradia, pela falta de higiene com que tratam seus animais e suascasas, pelo odor desagradável que exala das dependências de suascasas, pelo isolamento social no qual vivem e sobretudo pelogrande número de animais que possuem. Esse conjunto de variáveis é muito forte para os outros a tal ponto que há um rompimento como estigma informal, já que eles são “denunciados” ao serviçopúblico municipal à espera de providências.

Goffmann nos lembra que o termo estigma se originou do grego e se referia a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma

coisa extraordinária ou má sobre o status moral de quem os apresentava

(1975, p. 11). Esses mesmos sinais avisavam – aos outros – que oportador deveria ser evitado, especialmente em lugares públicos.

Hoje, o termo se refere a um atributo profundamente depreciativo no qual se confirma a normalidade de um e a anormalidade do outro. São duas contraposições, em que os que são diferentes dos normais

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constituem uma categoria com identidade diferente e depreciativa.Assim, o estigma surge como um produto da relação social.

Falar da velhice é sem dúvida alguma falar de estigma. Falarde velho com animais domésticos e de estimação reforça mais ainda esse estigma.

Várias situações práticas confirmaram a manifestação doestigma. Num dos casos atendidos, a senhora, que é proprietária deanimais (pombas, galo e galinhas), não deixa ninguém entrar emsua casa. Ela mora em um prédio de apartamentos e quitinetes. Oprédio foi pintado e era necessário entrar em sua casa para fazer apintura externa e o acabamento. Como ela não permitiu a entradados pintores, eles fizeram um X de tinta no lado externo de suajanela. Esse sinal identifica para todos os moradores e demaispessoas que passam pelo local que ali mora um “diferente”.

Outra situação semelhante: num prédio na região central dacidade, um senhor, proprietário de cachorros e gatos, que é vistocomo uma pessoa não muito sociável e amigável pelos seusvizinhos do prédio. Tudo o que acontece de ruim no prédio éatribuído, pelos outros moradores, como sendo de suaresponsabilidade. Observa-se que na parede onde está instalada suacampainha há um círculo maior que o botão e, um pouco acima,uma seta indicando a palavra danger (perigo). Um aviso para quemse atrever a tocar a campainha: poderá estar mexendo com o perigo.É um sinal, o “velho” que ali mora é perigoso ao convívio social.Aproximar-se daquele apartamento ou dele é aproximar-se doperigo, do desprezível e daquele que não obedece as normas deconvivência social. Torna-se necessário reafirmar que o ser velho éa marca que se dá pela visão do outro, estigmatizado no sentido dedepreciá-lo, porque ele “é velho, velho sujo e com bichos”.

A velhice e os velhos entrevistados

A compreensão filosófica sobre a velhice que norteia estetrabalho orienta-se em Simone de Beauvoir, uma vez que suasidéias coincidem plenamente com a velhice que encontramos nestapesquisa e que se apresenta como uma totalidade complexa, nãoapenas do ponto de vista de um grupo de pessoas maiores de 60anos, mas como sujeitos biopsicossociais e também seres culturais.

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É a própria Simone de Beauvoir (1990, p. 156) no seu estudosobre a velhice que assim a resume e sobre ela reflete:

É um fenômeno biológico: o organismo do homem idoso

apresenta certas singularidades. Acarreta conseqüências

psicológicas: determinadas condutas, que são consideradas

típicas da idade avançada. Tem uma dimensão existencial

como todas as situações humanas: modifica a relação do

homem no tempo e, portanto, seu relacionamento com o

mundo e a própria história. Por outro lado, o homem nunca

vive em estado natural: seu estatuto lhe é imposto na velhice,

como em todas as idades, pela sociedade a que pertence. A

complexidade da questão é devida à estreita interdependência

desses pontos de vista. Sabe-se, hoje em dia, que considerar

isoladamente os dados fisiológicos e os fatos psicológicos

constitui uma abstração: eles são interdependentes. O que

denominamos vida psíquica de um indivíduo só pode ser

compreendido à luz de uma situação existencial; também esta,

portanto, tem repercussões no organismo e vice-versa: o

relacionamento com o tempo é sentido de maneiras

diferentes, segundo esteja o corpo mais ou menos

alquebrado. Finalmente, a sociedade determina o lugar e o

papel do velho, levando em conta suas idiossincrasias

individuais: sua importância, sua experiência, reciprocamente,

o indivíduo é condicionado pela atitude prática e ideológica da

sociedade a seu respeito. De modo que uma descrição

analítica dos diversos aspectos da velhice não pode ser

suficiente: cada um deles reage sobre todos os outros e é por

ele afetado. É no movimento indefinido desta circularidade

que temos de apreendê-la.

Ao apresentar a questão da velhice destacamos que dianteda complexidade que ela encena, fica claro que, ao a analisarmos,não é possível entendê-la como algo homogêneo, como umasituação que pudéssemos generalizar para todos os sujeitosclassificados como velhos.

A própria concepção da velhice, que estabelece relaçõesentre o biológico, o social, o psicológico, o cultural e o existencialna medida em que sugere várias combinações desses elementos,

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aponta também para uma diversidade, uma heterogeneidade devivência desse processo de envelhecimento.

Cabe aqui uma pausa para discutirmos um pouco sobre o termo“pessoa idosa”. Messy aponta esta expressão como anônima, pois:

Designa uma categoria social, no sentido de uma

corporação que agrupa os indivíduos que pertencem à mesma

profissão, assim como o nome de um país serve de raiz para

designar seus habitantes. Infelizmente esta composição de

palavras faz desaparecer o sujeito com sua história pessoal,

suas particularidades, seu caráter. A "pessoa idosa" vira um

habitante da velhice (Messy, 1992, p. 18).

Deste ponto de vista, a pessoa idosa não existe, pois ela éapenas um termo social que não tem existência humana. Ela é umacategoria sem vida. O mesmo autor nos diz que “envelhecemosconforme vivemos” e que a velhice aparece quando acontece umaruptura brutal do equilíbrio entre perdas e aquisições. Assim, taisraciocínios nos levam a concluir que os velhos apresentados nestapesquisa estão sim velhos, pois houve uma ruptura com a vida, coma esperança e com a expectativa de vida. Eles se relacionam comanimais em detrimento do relacionamento humano.

Os velhos(as) que fazem parte desta pesquisa têm mais de 60anos e apresentam características muito peculiares de organizaçãode vida. São indivíduos dos quais o que ressalta é o ato de seremsozinhos e solitários. Embora os termos possam ser muitosemelhantes, identifico algumas diferenças. O ser humano temnecessidade do outro. Somos seres sociais e comunicarmo-nos com os outros. Há solidão quando não há contato físico, emocional,psíquico, afetivo ou sensorial. Sozinho não é apenas estardesacompanhado de outro ser humano. Estar sozinho é um modo de ser, é a experiência de uma vida no isolamento das relações, é aausência de um movimento interno em direção ao outro, não sesentindo digno de estar no meio dos outros seres ou mesmo deoutros seres não serem dignos da sua companhia. Ser sozinho é ofruto de uma solidão interior refletida na ausência do outro e querecusa contatos de um outro interlocutor que o ouça, o aceite ou onegue.

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Solitário é aquele que, mesmo vivendo num espaço comunitário(casa, rua, bairro, cidade) e habitado por seres humanos, não se relaciona com seus pares, continuando a viver sozinho, abandonado por todos.

Este grupo de pessoas escolheu os animais para serem seuscompanheiros de vida. Eles são seus companheiros inseparáveis eque suprem as necessidades de afeto, amor, carinho e companhia,elementos indispensáveis à sobrevivência humana.

Estamos chamando a atenção para esses idosos, um grupodiferente, como já relatei na introdução deste trabalho, pelo fato deapresentarem peculiaridades. Além do estigma social da velhice quepesa sobre seus ombros, acrescentam-se outros como serem“esquisitos”, “diferentes”, mas muito diferentes no sentido de a marca diferencial não ser um fator positivo, que faça com que sejamrespeitados na sua diferença, mas que sejam desprezados, denunciados como “velho estranho”, “velha esquisita”, “velha cachorreira”,“velha gateira” ou “velha bruxa”. Se a diferença respeitada podeincluir o sujeito na comunidade, estas marcas diferenciais dos nossosentrevistados são claramente excludentes.

Esses velhos também sabem o que significa ser velho. Sabem que são percebidos assim pela alteridade. Negam, porém, que sejam velhos, pois não se sentem incapacitados fisicamente, comoveremos nas várias falas dos entrevistados em outros momentosdeste trabalho.

Claro está que eles – os entrevistados – negam a velhice.Assim, não se sentem velhos, portanto sabem que ser velho é “só ooutro” e que são denominados como velhos pelos outros.Diferentemente do grupo “terceira idade”, os entrevistados não searticulam com outros do próprio segmento, vivem sozinhos, semcontato com vizinhos, parentes e muito menos com amigos. Adiferença que aparenta uma certa fraqueza desses indivíduos é onão desenvolvimento de vínculos sociais com outros sereshumanos.

Dessa forma, o estigma “velho” absorve esses indivíduos, e é ressaltado com todas as suas cores e formas em uma linguagemmetafórica. Em outros termos, a marca velho, com todas as suascaracterísticas negativas e generalizadoras, classifica essesindivíduos, negando-lhes qualquer possibilidade de defesa, nosentido de negar as marcas, a grande classificação pejorativa.

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Se até o presente momento chamamos a atenção para a forçada alteridade em relação a classificar esses indivíduos, não osconsideramos totalmente passivos, vítimas de uma força externa,de um movimento que vem só do outro lado, da alteridade.Claramente, há por parte dessas pessoas um movimento – presentenas suas diversas histórias de vida – de negação do contato socialque se agrava com a idade, com o passar do tempo. Esse movimento de negação de convívio social com seres humanos será analisado no decorrer desta obra. Também é neste trabalho que analiso a relaçãodesses indivíduos com os animais – gatos e cachorros –,substituindo ou não os vínculos humanos.

Campo de pesquisa

A pesquisa foi desenvolvida no Centro de Controle deZoonoses (CCZ) no período de 1997 a 2000, período quecorrespondeu ao desenvolvimento das atividades profissionais dapesquisadora, na função de Assistente Social. O CCZ é certamenteuma das instituições públicas que carrega um significado muitonegativo perante a população paulistana. Os munícipes desconhecemou ignoram a função de saúde pública e a associam apenas àcarrocinha. A instituição está associada à morte, ao sacrifício deanimais e ao mesmo tempo à maldade e crueldade humanas.

A instituição recebe constantemente cartas de pessoasmanifestando o horror que sentem por ela. Esses manifestos se dãoprincipalmente quando são veiculadas reportagens sobre o serviçode apreensão dos animais. Percebe-se nesses documentos odesconhecimento pelo serviço e, sobretudo, a revolta que aspessoas sentem pelo trabalho da “tão famigerada carrocinha”,como é popularmente conhecido o veículo de apreensão dosanimais. Uma estudante de 23 anos escreveu uma carta endereçadaà instituição, manifestando o seu protesto pela atuação dacarrocinha. Eis alguns trechos da sua carta:

“Fiquei impressionada com tanta maldade. O caminho quevocês encontraram para garantir a segurança da população émuito cruel, eu realmente desconhecia que poderia haver pessoas e

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métodos tão maquiavélicos para se livrar de uma animal, queapesar de ser um animal é um ser vivo e merece respeito.”

O nome da instituição era freqüentemente associado a umcampo de concentração e à prisão.

“... Não importa se choram a noite toda por estarem aosmontes e de qualquer maneira em jaulas como se fossemcriminosos, o que importa é que choram, um choro triste, umamelodia deprimente que pode durar até três dias, pois este é o prazo de vida concedido para aquele que é tirado de sua liberdade e quenão tem um dono para ir buscá-lo.”

São sentimentos e valores de vida e morte, amor e ódio, prisão eliberdade que permeiam a ação dos serviços prestados pela instituição.

Uma breve análiseda relação homem-animal

O animal, desde os primórdios, ocupou lugar de destaque nahumanidade. Ele teve uma complexa participação na vida dohomem primitivo, deixando marcas profundas na consciência dahumanidade. Em quase todas as religiões, há resquícios de velhoscultos, mitos e lendas, traduzindo o íntimo relacionamento dohomem com o animal.

Iniciando-se na pré-história, os animais eram transformadosem forças do bem e do mal; as primeiras eram veneradas e as do mal, temidas. O relacionamento caracterizou-se por diversas fasesconfusas, de respeito, adoração, horror e perseguição. Doscaçadores pré-históricos até os egípcios, exerceram papéis detotens, símbolos, emblemas ou seres sagrados.

Esse conceito foi quebrado quando se colocou a espéciehumana acima de todas as outras, inaugurando o antropocentrismo. Ohomem ocupava o topo da criação e todos os demais seres viventes aescala inferior. Esse pensamento prevaleceu até o século XVIII e início do século XIX. O progresso da ciência através da astronomia,botânica, biologia e zoologia trouxe grandes contribuições para aquebra desse paradigma, chegando-se à conclusão de que a Terra e as

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espécies que nela viviam não foram criadas em benefício dahumanidade, mas tinham história independente do homem.

Houve momentos na história relacional homem-animal emque estas relações com os animais domésticos foram mais estreitas.Não podemos esquecerque o número de animais era bem menor doque existe hoje, decorrente do tipo de vida doméstica, vivendo maispróximo do ser humano.

No início do período moderno (século XVII), os animaisestavam por toda a parte. Eles eram considerados como indivíduos.Por serem poucos, os donos estabeleciam um contato íntimo comseu rebanho, chegando mesmo a nomeá-los, alguns até com nomeshumanos.

O cão sempre foi o privilegiado de todos os animais nainteração com o homem. Havia muitos cães nas propriedades dostempos modernos. Ele exercia várias funções, destacando-se comoprincipal a de guarda da propriedade. Além da guarda, eles puxavampequenas carroças, trenós, acompanhavam tropeiros, agricultores,pastores e açougueiros. Eram assim considerados cães de utilidade.

No século XVIII, o cão já era conhecido como o “maisinteligente de todos os quadrúpedes conhecidos” e louvado como“o servo mais fidedigno e a companhia mais humilde do homem”.

Diferente dos cães, os gatos demoraram um tempo maiorpara subir na escala de afeto humano. Na Idade Média, eles eramcriados apenas para combater ratos e camundongos. Alguns donosnão davam comida para que eles mesmos tivessem razões para acaça. Os gatos também eram acusados de serem os responsáveis por alergias e causadores de problemas respiratórios.

Eles eram ainda apreciados para tortura Keith Thomasconta que:

Durante as procissões de queima do papa realizadas

durante o reinado de Carlos II, era costume encher as efígies

com gatos vivos, de maneira que seus gritos pudessem

aumentar o efeito dramático (Thomas, 1989, p. 132).

Foi no século XVIII que os gatos come ça ram a ser reco nhe ci -dos como ani mais de esti ma ção, con so li dando sua posi ção como cri a -tura a ser mimada e afa gada por seu com pa nhe i rismo. Uma das razões

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para essa condição foi a evo lu ção do asseio domés tico, asso ci ado aogato como sendo o ani mal mais limpo.

Por volta de 1700, a humanidade já dava sinais de obsessão aosanimais domésticos. Em muitas casas eles eram mais bem alimentadosque os serviçais. Assim se referiu Thomas aos animais:

Como enfeites, traziam anéis, plumas e sinos e vieram a

tornar-se presença constante em retratos de família em

grupo, geralmente simbolizando a fidelidade, a domesticidade

e a integridade, embora às vezes (o caso dos cães), também

uma irreverência maliciosa (Thomas, 1989, p. 141).

A morte de um animal doméstico e de estimação causavaprofundos abalos. Em alguns casos, os restos mortais recebiamtúmulos e sepulturas, com direito a funerais.

Os animais de estimação proporcionavam companhia aossolitários, alívio aos fatigados e compensação aos que não tinhamfilhos, pois manifestavam aquelas virtudes que os humanos comtanta freqüência mostravam não ter e serviam de modelo para osempregados domésticos.

Hoje, nossa sociedade vem cada vez mais dando um lugarespecial aos animais domésticos. A professora Mary Del Prioreresumiu esta realidade em sua coluna no Suplemento Feminino doEstado de S. Paulo do dia 23 de agosto de 1998. Eis o que ela nos diz:

Muitas vezes ter cachorro ou gato pode, também, funcionar

como derivativo para a solidão e a insegurança. A necessidade

de autoridade, de dominação, de apropriação, bem como a

angústia, agressividade, a riqueza de uma vida excessivamente

interiorizada ou a timidez e dificuldade de comunicação, as

frustrações afetivas ou sexuais de um casal desunido, separado,

ou sem crianças, a velhice em que as pessoas se sentem

abandonadas pelos filhos, o narcisismo, mas também as tensões

sociais e profissionais, todas essas motivações geradoras de

desequilíbrio podem levar à aquisição de um cachorro ou gato,

responsabilizado, em alguns casos, por comportamentos

anti-sociais (Priore, 1998, p. 2).

Os animais de estimação estão cada vez mais presentes nasociedade atual. O jornalista Gilberto Dimenstein, da Folha de S.

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Paulo, assim resumiu a necessidade que o homem moderno temhoje com respeito aos seus animais de estimação:

Psicólogos detectam que cada vez mais o animal de

estimação é tratado como se fosse um membro da família,

cuja morte provoca a mesma comoção reservada aos

humanos... O animal de estimação seria o amigo ou parente

ideal: dá afeto incondicional e não questiona as ordens

recebidas (Dimenstein, 1997, p. 24).

Ele conclui dizendo que:

o culto ao animal de estimação, substituindo o contato

humano, é uma doença social (Dimenstein, 1997, p. 24).

Essa “doença social” estaria vinculada à versão tecnológica,que nos leva a nos comunicarmos a qualquer hora com qualquerpessoa do planeta. O que torna as relações humanas difíceis é “falarcom o vizinho ou conviver com os familiares, por isso é mais fácil aconvivência com o animal de estimação.”

Análise interpretativa dos significadosdo animal para os idosos entrevistados

A seguir, os sujeitos da pesquisa se apropriam do processointerpretativo, se revelam e interpretam os significados dos animaisem suas vidas. Um significado não é único e nem solto, mas écontextualizado e referendado pelo trânsito simbólico. Na medidado necessário, as falas são reorganizadas e os códigos simbólicosdecifrados, partindo em seguida para uma interpretação de segundamão, indo ao encontro da opção metodológica adotada e sugeridapor Geertz e já apontada anteriormente.

O significado não se explica por ele mesmo, ele não é algo solto, encontra-se contextualizado e é parte integrante de um conjunto quecontém outros símbolos que encontram-se em movimento. Isso aponta para um trânsito simbólico. Para a interpretação que nos propomosrealizar, as falas dos entrevistados se apresentam como amatéria-prima e assim são reorganizadas a partir da metodologia queindica como fundamental o deciframento dos códigos. Reafirmamosque a fala dos sujeitos idosos é a fonte das informações e interpretações

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que esses sujeitos culturais têm de si mesmos, dos outros sereshumanos, das relações sociais e de seus animais.

Recorremos ainda a outras fontes que não são os depoimentosformais. Essas fontes, diversas e informais, incluem falas recolhidas pormeio da prática profissional diária e também de material coletado dejornais, revistas, filmes e outros.

Os idosos da pesquisa são designados por siglas. A primeiraletra da sigla identifica a letra inicial do primeiro nome da pessoa. Asletras seguintes identificam a espécie animal que a pessoa tem em casae com a qual se relaciona. Assim, a letra C identificará o Cão como oanimal escolhido e a letra G, que o animal presente na casa é o Gato.Nos casos em que a pessoa se relaciona com as duas espécies as letrasserão CG, respectivamente, Cão e Gato. Optamos por associar apessoa ao tipo de animal para que se evidenciem as diferenças esemelhanças que se apresentam na relação estabelecida com o tipo doanimal eleito. As siglas estão sempre entre parênteses no final da fala.O exemplo a seguir ajuda a compreender melhor: (KCG) a pessoa sechama Kátia e os animais da casa são o Cão e o Gato.

Para facilitar o entendimento dos significados dos animais paraos idosos componentes desta pesquisa são destacados os diversosaspectos do relacionamento e da organização da vida desses sujeitos.Eles mantiveram diálogo com o pesquisador que chamou atenção paraos significados, fornecendo, quando necessário, suas interpretações.Assim, foram agrupados os temas, em seus respectivos contextos, apartir das falas dos depoentes. Os contextos simbólicos quedestacamos neste capítulo foram assim classificados:

• Em relação ao motivo originário da denúncia;

• Em relação aos sujeitos depoentes;

• A casa agora é dos bichos;

• Os animais não transmitem doenças;

• Eu não quis casar;

• Os vizinhos querem que a gente suma daqui;

• Eu sempre tive bicho;

• Nunca ponho nome feio;

• Eles protegem nossa casa;

• Eles me fazem carinho;

• Eles são a nossa família;

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• Eles me dão amor;• Eles são como meus filhos;• Eu acho um horror o sacrifício;• Eles nunca passam fome;• Quando eles morrem eu choro;• Eu tenho uma missão protetora;• Bicho é melhor que gente;• A velhice é um naufrágio.

Em relação ao motivooriginário da denúncia

Apresentam-se a seguir os motivos que levaram osentrevistados a serem denunciados no setor de Vistoria Zoosanitáriado Centro de Controle de Zoonoses:

Criação de vários gatos e cães num apartamento causando mau cheiro. Quando os bichos morrem, ela joga pela janela, ocaso é grave.

Há vários gatos com mau cheiro insuportável.

Vários cães e gatos em local impróprio com muita sujeira,até na garagem os gatos estão fazendo sujeira. Os gatos estãocom sarna.

Casa abandonada com muitos gatos, pombos e ratoscausando mau cheiro.

Residência particular com muitos cães causando maucheiro, sem nenhuma condição higiênica... Cães emconfinamento... Grande quantidade de cães prejudicando avizinhança... canil doméstico com animais em estado precário.

Criação de vários gatos no local criando sujeira na casa dovizinho.

Todas as denúncias foram consideradas procedentes nasvistorias realizadas pelos veterinários na casa de cada um dosidosos. Todos foram intimados (notificação oficial da constataçãoda falta cometida. Nela são relacionados os artigos da lei que estãosendo infringidos) e alguns deles foram até multados.

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Em relação aos sujeitos depoentes

Visando à boa compreensão das questões que envolvem osignificado do animal para os sujeitos que participam destapesquisa, julgamos necessário fazer uma breve apresentação dosmesmos. Consideramos aqui alguns dados de identificação pessoal,alguns aspectos de suas histórias de vida e também destacaralgumas características físicas. Preocupamo-nos em preservar aidentidade dos entrevistados e também o respeito à singularidade de suas vidas.

A sra. SG tem 76 anos de idade e coincidentemente nasceu nodia 4 de outubro. Nessa data, a Igreja Católica comemora o dia de SãoFrancisco de Assis – o Protetor dos Animais. Esse detalhe consta deseu depoimento. A sra. SG tem um nome muito raro, que, segundo ela,significa metade. Ela explica: nasceu na divisa dos estados de SãoPaulo e Paraná, à meia-noite, ou seja, metade do dia e metade da noite.Num determinado momento do depoimento ela nos disse que se sentia“metade bicho e metade gente”, demonstrando a influência do nomeem sua vida. Portanto, um nome com vários significados metafóricos.Ela é a segunda de uma família de quatro filhas. Casou-se com 17 anose viveu nove com o marido. Ele morreu num acidente trágico de carro.Ela tem um filho e uma história impressionante sobre a concepção egestação dele. Seu esposo nunca quis que ela engravidasse. “O dia que você tiver um filho vai gostar mais do filho do que de mim.” Para evitar a concepção, além de manter poucas relações com ela, o maridointerrompia o coito. Ela assim declarou: “Eu tinha muita raiva deleporque eu não podia ter filho. Então eu tinha raiva, raiva, muita raivadele.” Era preciso fazer alguma coisa. A sogra e o médico da famíliaelaboraram, com a concordância dela, um plano para que ela pudesseengravidar. Seu filho é o fruto da única relação sexual sem interrupçãoque ela teve na vida.

Ela recebe dois salários mínimos de aposentadoria e temoutros imóveis, que aluga, complementando sua renda.

As irmãs NC e TC são gêmeas e não tiveram outros irmãos. “A minha mãe se assustou tanto quando nascemos que pensou queviriam quatro. ‘Eu já tenho duas e já está bom. Não preciso arriscarmais.´” Elas têm 65 anos, são solteiras e moram juntas. Nasceram naantiga Iugoslávia e nunca retornaram àquele país. Seus pais eram da

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Rússia e foram morar na Iugoslávia, fugindo da RevoluçãoComunista. As irmãs estudaram e foram trabalhar como secretáriasbilíngües de grandes empresas alemãs. Elas falavam alemão e porisso exerceram a função com bastante sucesso. A mãe teve umderrame que a deixou acamada por 18 anos e depois o pai tambémficou enfermo por um longo período. Até o momento em que os paiseram saudáveis, a família desfrutava de um bom nível social.“Quando meu pai era vivo, minha mãe e nós trabalhávamos fora. Agente começou a comprar carros e tínhamos dinheiro. Chegamos ater três carros.” Essa condição foi-se perdendo quando as irmãstiveram de parar de trabalhar para tomar conta deles: “precisamosparar de trabalhar para cuidar da nossa mãe”. Depois, começarama fazer trabalhos artesanais em casa. Especializaram-se na confecçãode ovos de páscoa típicos ucranianos de madeira e pintados à mão.

As irmãs são aposentadas e cada uma recebe um saláriomínimo por mês. Elas tiveram por um longo tempo um ponto deartesanato na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde vendiam aprodução dos ovinhos, caixinhas pintadas, bandejas e “babuskas”,peça do artesanato russo. Em razão do fechamento do ponto deartesanato e também do grande número de cães que mantêm em casa,sua condição social é precária. Elas têm um primo que é responsávelpela administração de um asilo para descendentes russos em SãoPaulo. O primo se dispôs a ajudá-las financeiramente na condição deque os cachorros fossem mandados embora. Elas recusavam a ajudae inclusive a opção de morarem no asilo provisoriamente até aconclusão da reforma da casa.

Ressalta-se que essas irmãs demonstram que gostam dosanimais com a mesma intensidade. Elas se parecem muito fisicamentee usam sempre o pronome “nós” ou “a gente” para falarem de si. O queuma começa a falar a outra complementa e vice-versa. Tivemosinclusive um pouco de dificuldade na transcrição da fita paraidentificar a fala de cada uma pela acentuada semelhança entre elas.Por serem gêmeas e terem partilhado as mesmas experiências etrajetórias na vida, tem-se a impressão de que são a mesma pessoa. Aprincipal diferença que se evidencia nelas é o humor. A sra. NC é umpouco mais irritada que a irmã TC. Nos demais aspectos, as irmãsgêmeas são muito semelhantes.

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A depoente seguinte é a senhora ECG. Trata-se de uma senhoracom 84 anos de vida, que se declarou “solteirona ainda”. Ela é paulistae desde pequena se dedicou à criação dos seus irmãos. É a mais velha deuma prole de seis filhos. O pai morreu no Hospital Psiquiátrico deFranco da Rocha. Logo depois da morte do pai, foi morar com a avó, que tinha uma condição econômica melhor. Parece-me que, por ter sidocriada pela avó e com a oportunidade de estudar e de desfrutar daqualidade de vida que seus irmãos não tinham, esse fato acarretou-lheculpa: “eu achava que tudo o que eu fazia por eles era pouco.”Começou a trabalhar bem cedo e com o salário ajudava a mãe asustentar os cinco irmãos: “eu levava o dinheiro para minha mãe.”Todos os irmãos se casaram e ela continuou a ajudá-los, criando ossobrinhos. Três irmãos são falecidos, ficaram duas irmãs. Ela,comparando-se às irmãs, afirmou: “eu é que estou fisicamente melhor”.

A sra. ECG foi morar com uma senhora russa, proprietária do seu apartamento, que não tinha parentes no Brasil. Cuidou dela atéo falecimento. Aposentou-se por tempo de serviço e recebe R$350.Contou que foi a única dos irmãos que pôde estudar. Ela se mostrabem informada. Gosta muito de ler e fez durante o depoimentovárias citações e referências sobre literatura. Disse entender inglês,um pouco de russo e também italiano. Possui alguns livros em casanessas línguas. Tem um timbre de voz muito agradável e sua falademonstra bastante tranqüilidade e segurança.

A outra depoente, GG, tem 78 anos, é solteira (eu não meinteressava por ninguém e nem queria saber de homens) e paulistana.É a segunda de uma família de três irmãos e apenas o irmão está vivo.A irmã faleceu há dois anos. O pai da sra. GG desapareceu naRevolução de 24 e sua mãe casou-se novamente. O padrasto era umhomem violento e bebia muito. Ela me contou várias passagens emque ele usava de violência física com ela e com seus irmãos: “Uma vezele queria bater no meu irmão... eu fiquei tão indignada de ver elequerendo bater no meu irmão que dei uma correiada bem no rostodele.” Ela se lembra inclusive de que, numa determinada noite, opadrasto pôs a mãe, ela e seus irmãos para fora de casa.

Aos dez anos, quando foi acender o fogo na casa da tia, sofreuum acidente que lhe deixou algumas marcas por toda a vida: “naqueletempo era carvão... Mas não tinha estopa. Então eu peguei um papel,enrolei e joguei fósforo. Aí não pegou. Pensei: acho que pus pouca

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gasolina. Quando fui pôr o fósforo que ainda estava aceso, subiu achama. Queimou o rosto e parte do corpo. Eles tiraram a pele daqui epuxaram para cá. Fizeram enxerto... fui para a Santa Casa. Ai meuDeus! Como doía! Nossa Senhora, o que sofri não está escrito!” Eladisse que durou cinco anos o tratamento.

A sra. GG é funcionária pública aposentada. Estudoucontabilidade e exercia essa função num órgão público. Ela é muitoreligiosa e se declara católica: “minha santa, além da Virgem Maria éa Santa Rita de Cássia”. Além de cuidar de gatos, ela alimentapombos e tem a explicação religiosa para cuidar desses animais: “opombo foi que ajudou Noé quando ele estava no mar e não haviaterra... o pombo lembra também o Espírito Santo, que veio na formade pombo e também foi Deus que pôs tudo na natureza”.

GG refere-se com freqüência a sua mocidade, que era muitobonita e que os homens a olhavam com desejo e as mulheres cominveja. Lembra que a queimadura lhe incomodava muito. Tem umabaixa estima bastante acentuada e irrita-se com facilidade. Ficamais em casa. Só sai para alimentar os animais. Ela assim resumiusua vida: “O pessoal tem inveja de mim não sei por que. Se elessoubessem o que já sofri na vida. Meu Deus! Com o meu padrasto ecom a queimadura.”

A próxima depoente, VCG, tem 76 anos. Ela nasceu numapequena cidade de Minas Gerais. Sua família era composta de 11irmãos e hoje eles “estão espalhados pelo mundo”. Foi criada naroça e não freqüentou a escola, pois precisava ajudar os pais nalavoura. Veio para São Paulo há mais de 50 anos, onde se casou.Seu marido era funcionário da rede ferroviária e morreu em 1972.

O casal não pôde ter filhos: “Eu não podia. Eu tinha úteroinfantil. Era perigoso se eu engravidasse. Aí pensei, deixa pra lá. ÉDeus que quer assim.” Ela confessou que queria muito ter tido pelomenos um filho. Trabalhou em serviços diversos e está aposentadapor idade com um salário mínimo e mais um salário mínimo depensão do seu esposo.

Por fim, o último depoente, BCG. Trata-se de um senhor de 77anos. Ele não é brasileiro e está no Brasil desde 1953. Suanacionalidade é holandesa, mas nasceu na Indonésia, quando ela eracolônia da Holanda. Sua esposa é falecida. Os filhos são casados eele tem uma neta. O Sr. BCG é aposentado.

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“A casa agora é dos bichos”

Há uma linguagem simbólica contida no espaço físico queocupamos e habitamos. O espaço físico é uma forma consciente etambém inconsciente de expressão e informação dos nossos sentidos. Assim sendo, não resta a menor dúvida quanto ao espaço, constitui uma

semiótica, um conjunto analisável de signos (Coelho, 1999, p. 21).

Ao apresentar e analisar as características das casasprocuramos considerar o espaço interior como parte do conjuntomaior de significados que os animais têm na vida dessas pessoas,uma vez que tais aspectos não devem ser separados, mas devemlevar-nos a uma visão poliocular. O espaço mantém umrelacionamento direto com o corpo do indivíduo, adquirindo umasignificação precisa e direta com o imaginário desta pessoa. Logo, acasa e a forma como se organiza, evidencia a vivência e a relação queestes sujeitos têm consigo e com o mundo. A significação dependerá,portanto, das relações sociais que são estabelecidas com os demais.

A aparência é essencial ao mesmo tempo em que o essencialaparece. Nas casas dos nossos depoentes, o exterior é quase sempreigual ao interior. Ou seja, o estado de deterioração externo (oessencial que aparece) da casa indica o mesmo estado do interior(essência). Isso fica muito evidente na rua onde a casa estálocalizada. Esta casa é a diferente. É a que chama a atenção de quempassa pela rua porque aparenta um estado de abandono e falta decuidados na conservação, destoando, na maioria das vezes, dascasas vizinhas.

A casa, que pertence à sra. SG, está localizada na Zona Norteda cidade e com ela habitam cerca de 40 gatos. É um sobrado queteve a construção iniciada há muitos anos e não concluída. Do ladoexterno, observa-se que ele difere das demais casas. Os blocos deconcreto ainda estão à vista. A porta é de madeira, sem maçaneta.As janelas que dão para a rua estão tampadas com madeira. Dentroda casa “não tem portas nem janelas. Só o meu quarto é que temporta, mas não tem janela. Ela é lacrada. Nos outros cômodos nãotem nada, não tem móveis, não precisa. É para dar mais liberdadeaos gatos”. Não há entrada de luz solar, apenas as lâmpadaselétricas dão claridade aos ambientes. O piso é de cimento. Há umagrande quantidade de caixas e jornais espalhados por toda a casa. É

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nesses jornais que os animais defecam e urinam. Como não háventilação na casa, o mau odor impregna todos os ambientes echega a ultrapassar o limite que o olfato mais resistente possasuportar. Assim, SG come em pé na cozinha porque não há cadeirasna casa. O quarto onde ela dorme é o único lugar da casa que lembrauma habitação humana. Há apenas uma cama velha revestida poruma colcha gasta. O televisor, preto-e-branco, é antigo e sintonizaapenas um canal. Há uma estante de madeira onde estão expostosalguns livros velhos. Não há nada novo naquela casa. “A casa édeles. Eu arrumei a casa para eles (gatos)” afirmou a depoente.

A outra depoente, GG, diferente dos outros entrevistados,possui duas casas. Em uma delas ela passa a maior parte do tempo eé onde estão dez de seus gatos, os “especiais” segundo sua própriadefinição. Na outra casa encontram-se mais outros 40 gatos. A casaonde ela mora é menor que a casa onde os outros gatos “moram” efaz parte de uma vila onde estão construídas apenas outras três. Adela se diferencia das outras pelo aspecto externo, com falta deconservação e também pelo odor que exala. Há jornais dispersospelo chão, onde os gatos defecam, bem como vários potinhos comração para eles se alimentarem. Seus móveis são velhos emalcuidados. Na sala, com pouca claridade, a lâmpada estáqueimada e ela aguarda há vários meses alguém para trocá-la. Hádois televisores, mas apenas um funciona. A estante abriga objetosantigos, livros, calendários com representações de animais, além de uma foto que constata a beleza que ela disse ter quando jovem. Acozinha é o lugar onde ela apenas esquenta suas refeições nomicroondas. Na mesa, em cima do fogão, os pratos, talheres, copose panelas estão espalhados desordenadamente. Ela não faz comida e a sua alimentação é entregue em casa. Tudo ali está fora do lugar.Ela explica que está arrumando, mas fica claro que as coisas estãofora do lugar há muito tempo e não serão arrumadas. Vê-se tambémmuita sujeira espalhada pelo chão, mesas, cadeiras, banheiro e portodo o lugar.

Outra casa, a das irmãs NC e TC, está localizada numa regiãobastante valorizada. Junto com as irmãs moram cerca de 40 cãesSRD (Sem Raça Definida). Trata-se de um sobrado grande que foiconstruído com muito zelo pelos pais. Há na sala, ampla, osvestígios de uma lareira. Não existem móveis na parte inferior, nem

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os demais que compõem a decoração de uma casa. Apenas um sofávelho, onde os cães dormem, e uma cortina aos trapos. Na cozinha,sem geladeira, encontra-se apenas um fogão velho: “agora a gentenão liga mais”. No andar superior tem dois dormitórios. Elasdormem no quarto da frente e o outro é reservado para a confecçãodo artesanato. Os cães têm acesso a todos os cômodos. A casaencontra-se em péssimo estado de conservação, inclusive comrachaduras e oferece risco às moradoras.

ECG reside num pequeno apartamento localizado na ZonaCentral da cidade. Seus companheiros são uma cadela SRD e 14gatos. O apartamento não é próprio. Ele é composto de uma sala,que se divide em dois ambientes. Um deles serve como cozinha. Háum pequeno dormitório, com apenas uma cama de solteiro, umarmário embutido, onde ela guarda seus objetos e roupas, banheiroe área de serviço. O restante do apartamento exibe alguns móveis:duas ou três cadeiras, uma mesa, geladeira, fogão, uma estante comlivros de diversos idiomas, um televisor portátil, que só sintonizauma emissora, e outras poucas coisas. Todos os móveis são velhos e indicam que já estão gastos pelo tempo. Nessa casa, o odor de fezese urina dos animais não é tão acentuado como nas residências dasoutras entrevistadas. Entretanto, da porta do apartamento pode-sesentir o cheiro que caracteriza a presença dos animais. Ela afirmanão necessitar de mais conforto na casa, “para mim está bom assim,não preciso de mais nada. Tenho uma caminha para dormir e umacomidinha simples para comer”. O local está organizado para osseus gatos: “a casa agora é dos bichos. Agora eles são os donos dacasa. Antes eles não entravam no quarto. Eles agora estão àvontade por aí. A casa é para eles”.

Na casa da entrevista VCG residem 15 cães (SRD) e cerca deseis gatos. Nessa casa não foi possível conhecer todos os cômodosporque os cães estavam muito agitados e não ofereciam muitasegurança. Informou-me que sua casa tem sala, quarto, cozinha ebanheiro: “a minha casa está suja. Eu tenho problemas nos rins enão posso me mexer muito”. A casa foi construída no ano de 1962 eestá precisando de uma reforma. A pintura está gasta e pode-seobservar vários materiais inservíveis espalhados pelo quintal. Háuma mesa do lado de fora e algumas cadeiras. Vê-se abundância devegetação na área externa: plantas, árvores e mato.

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Na casa de BCG vivem em sua companhia 10 cães e 8 gatos.É um sobrado grande composto de uma sala muito ampla, com apresença de raríssimos móveis, uma cozinha, dois dormitórios, queficam no andar superior, e um banheiro. A casa tem todos os móveis muito velhos. Ele disse que as coisas mais novas da sua casa eram ocarro (modelo 85), o rádio e o televisor. A entrevista foi realizada no seu quarto, onde há um quadro com a foto de um navio de guerra. As outras coisas são também lembranças do seu passado. Os animaisficam espalhados pela casa inteira. Pode-se constatar também afalta de higiene e um forte odor dos animais e de creolina em todosos ambientes. Na entrada há uma árvore muito grande, que não épodada com a devida freqüência, suas folhas encobrem a fachada da casa. Essa árvore indica que ali é a casa que denuncia o “homem que gosta de animais”, pois as pessoas sempre deixam animais no seuportão para ele cuidar.

Após a descrição das moradias dos nossos depoentes,gostaríamos de destacar que há uma nítida troca de lugar entre a casado dono e a casa do cachorro. Nas muitas situações observadas a casa– lugar de habitação – passa a ser dos animais: “eu moro com osanimais”. O espaço físico ficou organizado em função dasnecessidades dos animais e não para satisfazer as necessidadeshumanas. Geralmente as casas dos cachorros ficam nos fundos dosquintais. Em várias dessas casas a sensação que se tem é de que oidoso mora na casa do cachorro e o cachorro mora na casa do idoso. A mesma coisa pode ser dita em relação aos gatos que ocupam quasetodos os espaços da casa e não há o limite físico para os animais.Todo o espaço tanto interno como externo pertence aos animais.

Fica claro que, para esse grupo de pessoas, a sujeira e adesorganização espacial presentes em suas casas não lhes proporcionaincômodo e portanto eles estão fora das leis de convivência. Não seincomodam e não diferenciam o limpo do sujo. O estabelecimento dasdiferenças que existem dentro e fora, o limpo e o sujo, o humano e oanimal, o novo e o velho, o odor e o aroma, evidencia a criação de umanova ordem. Assim, a reflexão sobre a sujeira envolve reflexão sobre a

relação entre a ordem e a desordem, ser e não ser, forma e não-forma, vida e

morte (Douglas, 1976, p. 16).Quando as regras de higiene e limpeza são rigorosamente

violadas por esses depoentes, gera-se nos vizinhos e na comunidade

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uma profanação do limpo e do sagrado. A sujeira é por conseguinteuma contravenção da ordem que os depoentes não adotam, aorejeitarem o código de comportamento humano e de normas ideais.Pergunto com freqüência às pessoas que possuem um grandenúmero de animais se elas sentem o odor que exala dos dejetosdesses animais. A resposta é quase sempre negativa ou, então, quejá se acostumaram com o cheiro. A norma portanto é quebrada.

Concluindo: a visão higienizada de limpeza foi rompida pelosdepoentes. Eles estão isolados do convívio social, não tendo portanto o signo de inclusão. Também não fazem mais questão de seremincluídos neste contexto sociocultural. Suas relações estão num outro padrão que não o humano. Assim, não precisam mais manter suascasas limpas, arrumadas, perfumadas, móveis novos. Os animais nãonecessitam desse código. O deles é outro. É a manutenção da vida por meio do alimento e da proteção. As demais coisas, o resto, são coisasdos humanos, não fazem parte do mundo dos animais.

“Os animais não transmitem doenças”

Os depoentes acham que seus animais, cães e gatos, não lhestransmitem doenças e tampouco às outras pessoas. O fato deviverem há vários anos com muitos animais e não terem contraídoqualquer doença reforça-lhes a crença de estarem imunizados eprotegidos contra as zoonoses. É como se fosse um pensamentomágico. As informações que lhes são passadas sobre as zoonosesnão rompem os símbolos elaborados. Esses símbolos são rígidos ese reforçam pelo fato de os depoentes nunca terem mantido contatocom alguém que teve raiva. Mesmo quando os animais apresentamoutras zoonoses, por exemplo, escabiose, eles não reconhecem queesses animais estejam doentes.

Uma entrevistada assim se manifesta quanto à possívelcontaminação:

“Não acredito. Só pode transmitir a raiva, mas outrasdoenças não” (GG).

Outra diz o seguinte: “Eu vivo desde pequena com os animais e nunca peguei doença

nenhuma. Nunca, nunca” (TC).

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A afirmação de VCG generaliza a questão da nãotransmissão:

“Bicho não transmite doença porque eu fui criada no meio dosbichos. Eu fiquei doente só depois que vim para São Paulo” (VCG).

A sra. ECG também se manifesta no sentido de uma visãogeneralizada para concluir sobre sua pessoa:

“Se transmitisse eu estaria muito doente. Porque tive tantobicho doente em casa e nunca peguei nada. Estas doenças de pele,sarna, nunca tive nada disso” (ECG).

Nas falas das entrevistadas, fica evidente o homem comosendo o impuro, o contaminador. Assim, a declaração a seguir é:

“Quem contamina sempre é o homem com suasmaldades” (GG).

Essa é uma explicação geral presente nos discursos de todosos entrevistados. A opinião abaixo reforça o que foi interpretado:

“Quem transmite Aids? Quem transmite tuberculose eoutras doenças para o homem? É o próprio homem” (GG).

Há um reconhecimento por parte dos entrevistados de umaclassificação animal em que os cães, gatos e outros animaisdomésticos ocupam a primazia. Esses animais não fazem mal e nemtransmitem doenças aos homens. Portanto, são bons para o convívio.Do lado inferior dessa classificação animal, o rato é o seu principalrepresentante. O rato, juntamente com o homem, são agentestransmissores de doenças. Ao gato é dada a autorização para matar etorturar o rato, pois este é nocivo. Assistir a cena em que o gato caça orato dá um certo prazer ao observador do espetáculo.

“O rato transmite a doença. Ele é perigoso. Eu tive umavizinha que morreu por causa dos ratos ... Eu assisto aos gatosfazerem a festa (matarem) com os ratos” (SG).

“Não tenho dó de rato porque ele é perigoso. Dos outrosbichos eu tenho dó... os pombos são tão mansos, são tão bonzinhos.Meu Deus! Que coisa mais linda é o pombo!” (GG).

Fica claro ao interpretar os discursos dos entrevistados quehá uma idéia predominante sobre a pureza e o perigo, sobre o quepertence ao sujo e o que é contaminado.

“Estão isolados, não têm contato” (SG).SG justifica que não há perigo de transmissão de doenças,

tendo em vista o isolamento dos animais. A idéia é tão presente que

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cito, como exemplo, uma visita realizada à casa de uma pessoa nãopertencente ao grupo de depoentes e que tem gatos. Antes de entrar,ela me solicitou que retirasse o calçado para não contaminar a suacasa. Ela retira o calçado sempre que entra em casa. Andar na rua jáseria suficiente para pegar as doenças. O fato de os animaispermanecerem dentro de casa isenta-os da contaminação que estáno externo, que está na rua. A casa é sempre limpa e a rua sempresuja, interpretação presente nos discursos dos depoentes.

Assim, há uma crença presente nesses idosos ao eleger osanimais, neste caso, cães e gatos, para dividir consigo as suas vidas,separando e ao mesmo tempo protegendo-os do contato com outrosseres e, ainda, por acreditarem em sua pureza, não há o perigo deeles lhes transmitir doenças. Há categorias de pensamento, as quais são

pesadamente salvaguardadas por regras de escape ou por punições

(Douglas, 1976, p. 16).Se as depoentes aceitassem a idéia de que seus animais lhes

transmitem doenças, estariam admitindo serem eles uma fonte deameaça e perigo. Elas os amam e por isso os protegem, não podemrejeitá-los. O contágio seria também como a declaração do perigodos animais.

“Eu não quis casar!”

Nas histórias de vida das entrevistadas, o fato de elas nãoterem se casado ou não terem desenvolvido um bom relacionamentocom seus parceiros está associado à figura masculina com as quaiselas se relacionaram enquanto crianças e adolescentes.

Diversas circunstâncias impediram essas pessoas dealcançarem um bom entendimento afetivo no decorrer da vida. Foramcasamentos considerados por elas infelizes, sem o prazer sexual e orespeito à pessoa, além do medo de se envolverem em relacionamentos afetivos. Alguns depoimentos ilustram a frustração:

“Eu tive um namorado no Rio que era engenheiro eletrônico. Ele queria casar comigo. Mas eu não quis” (NC).

“Eu gostei de um palestino. Não deu certo. Eu era boba eorgulhosa. Ele nunca soube que eu gostava dele. Ele foi o grande amorda minha vida. Ele sofreu um acidente e morreu logo depois” (TC).

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“Eu andava tão séria que nem queria saber de namorar... euquis só estudar. Tinha uma pessoa conhecida da minha mãe, loucopara casar comigo. Minha mãe disse para ele que eu só queriaestudar. Ele falou que poderíamos casar e eu continuar a estudar.E eu lá queria saber de homens!” (GG)

“O meu pai faleceu em Franco da Rocha. Ele era doentemental. Então me disseram que essa doença não pega nos filhos,somente nos netos. Eu fiquei impressionada com isso. Talvez issoseja uma das causas por que não quis casar. Inconscientemente eunão quis ter filhos e nem me casar. Pode ser esta a causa” (ECG).

Ela continua ainda a dizer porque não se casou:“Outra coisa. Eu tive um namorado que tinha uma irmãzinha

doente. Ele não sabia que eu sabia. Ela tinha uma anormalidade física.Eu gostava muito dele. Ele me falou isto e me impressionou, porque eleme disse um dia assim: eu gosto muito de você. Mas eu infelizmentequeria ter família e filhos. Eu sei que você tem um pai doente e isso meincomoda muito para o nosso futuro. Pode ser que isso tenha memarcado. Eu era jovenzinha, com 17 anos.... depois tinha aquelacriançada para cuidar (os cinco irmãos menores)” (ECG).

Talvez essas declarações dos depoentes possam nos levar aconsiderar que cuidar de gatos e cães é mais gratificante e seguro doque arriscar a ter filhos doentes e com problemas mentais.

“Os vizinhos queremque a gente suma daqui”

Os vizinhos dos entrevistados são aqueles que procuram oserviço público para registrar e oficializar o incômodo que lhescausa. Quando o vizinho formaliza a denúncia, ele já está no limiteda sua paciência e praticamente tentou tudo para resolver oproblema. Os entrevistados não têm uma convivência amigávelcom seus vizinhos. Estes também não suportam mais essas pessoaspor causa dos transtornos. Há um conflito de interesses e o serviçopúblico passa então a ser o intermediador.

Freqüentemente os vizinhos reclamam desses idosos.Algumas reclamações refletem questões básicas e importantes, mas

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outras são incoerentes. As pessoas falam dos animais, da falta dehigiene e do odor que os incomodam. Nessas reclamações, está umdiscurso velado de que quem lhes incomoda é “o velho louco”, “avelha bruxa” ou “velhos”, adjetivados pela incompreensão eintolerância dos vizinhos. Dessa forma, o discurso sanitário quantoaos animais perde a objetividade e dá lugar ao preconceito à pessoaidosa. Os elementos que compõem o discurso oficial (animais)levam em conta uma avaliação objetiva no sentido de pedirprovidências ao setor quanto aos animais, mas na verdade o que está contido nele é o desejo de remover os velhos que vivem do lado desuas casas. Conviver com uma velhice que não desejamos é muitodifícil. Seria então a substituição da zoonose pela “gerontonose”,numa tradução livre como sendo “incômodo provocado pelosvelhos”. Eis a transcrição do sentimento das irmãs:

“Aqui na rua não tem ninguém que presta. Olha, a gente jámorou em outros bairros. Meus pais ficaram doentes por váriosanos. Nenhum, nenhum dos vizinhos veio visitá-los. Ninguém foiperguntar se a gente precisava de ajuda” (TC e NC).

As entrevistadas afirmam que os vizinhos não lhes querembem. Elas continuam se lamentando:

“Eu acho que eles querem que a gente suma do pedaço. Agente nem fala com eles, nem cumprimenta ... há pessoas quemoram aqui e não têm educação” (TC).

“...Os vizinhos aqui são cada um pra si. Por exemplo, os dolado de lá têm uma representação de carro e têm dinheiro. Sãochamados de novos ricos. Eles pensam que a rua é deles e quepodem comprar e fazer tudo” (NC).

“Eu sou conhecida aqui no bairro como 'a mulher dos gatos'. Eu me sinto bem com isso” (SG).

Para os entrevistados, quem não gosta de animais é inimigo.Nessa relação, os vizinhos que se sentem incomodados com apresença dos animais são considerados seus inimigos. Umaentrevistada referiu-se à vizinha que implica com ela como sendo“bruxa velha”, o mesmo adjetivo com o qual os denunciantes sereferem às idosas que têm um grande número de animais:

“Aquela bruxa velha, porque ela não gosta de criação.Quem gosta de bicho é amigo. Eu gosto de quem gosta de animais.Ela é muito implicante e ignorante, aquela mulher lá” (VCG).

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“Eu sempre tive bichos”

Para quase todos os depoentes, os animais domésticos e deestimação sempre estiveram presentes em suas vidas, sendo essaconvivência desde o tempo em que eram crianças. Os depoentesusaram das memórias infantis para justificar o estreito relacionamentocom seus bichos. A intensidade da relação foi-se alterando à medidaque os anos foram passando.

“Acredito que convivo com os animais desde que nasci.Tinha gato, cachorro e galinha lá em casa... Os gatos eram daminha mãe... ela gostava muito de cabras e de gatos” (SG).

No caso dessa entrevistada, os animais eram muitos. Suacasa era grande e com quintal:

“Na casa da minha mãe os gatos eram à vontade. Não davapara contar. O gato que aparecesse a gente cuidava e dava comidae também leite de cabra. Era eu quem tirava o leite” (SG).

Ela conta também sobre seu relacionamento com galinhas:“Já tive umas 80 cabeças de galinha. Eu não comia as

galinhas e nem como até hoje. Quando elas estavam prontas para o abate, a gente ia na avícola e trocava por uma novinha para eucriar. Eu não como a carne de galinha porque parece que eu estoucomendo gente. Olha que horror isso!” (SG).

Outra entrevistada fala:“Eu sempre gostei de bichinhos. Desde pequena. A nossa

vizinha, uma senhora de idade, tinha gatinhos pequenos e a casa delaestava sempre cheia de gatos. A gente gostava de ir lá e brincar com os gatinhos. Nós duas. Depois nós fomos morar na Alemanha... um diaminha avó achou um pato embaixo de um arbusto. Aí ela recolheu. Oscaçadores, e eram muitos, haviam matado a mamãe dele. Aí ela levoupra casa e ele morava conosco. Aí ele ficou bem grande e a dona dapensão ofereceu para levar ele junto com o rebanho para asmontanhas. Aí ele foi e nunca mais a gente viu ele” (TC).

A outra irmã lembra do seguinte fato com um cachorro,quando era criança:

“Depois tivemos um cachorro. Mas aquele dava muitotrabalho. Naquela época se vendia carvão nas ruas. E o nossocachorro não suportava o carvoeiro e nem gente preta. Ele sempreavançava e mordia no bumbum. A gente tinha que amarrar ele. Ele

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viveu conosco 13 anos e morreu em nossa casa. Acho que ele viveu 15ou 16 anos. Quando morreu nem podia se levantar para comer” (NC).

Esta entre vis tada morava na roça e lem bra do seu rela ci o na -mento com ani mais na infân cia:

“Lá a gente tinha tudo quanto era bicho: cachorro, gato,galinha, pato, porcos soltos. Não gosto nem de lembrar. Tinha umporco lá que ia sempre na cozinha e ficava deitado. No dia em quese foi matar aquele porco, eu e minha mãe fomos para a casa davizinha para não ver matar” (VCG).

O entrevistado teve também contato com animais desdepequeno:

“Fui criado com bichos. Nossa casa era cheia de animais detodos os tipos. Lá na Sumatra o orangotango é um bicho doméstico. Meu pai me deu dois orangotangos e eu fui criado junto deles. Meupai também ganhou dois tigrinhos marrons. Depois ele deu paraoutras pessoas criar. Inclusive meu irmão tem uma foto dessestigrinhos” (BCG).

Ele continua, contando agora sobre as cobras:“Na Indonésia, a gente criava cobras para matar os ratos.

Lá têm muitos ratos e as cobras acabavam com os ratos” (BCG).

“Nunca ponho nome feio”

Quando os entrevistados escolhem nomes para seus animais,na verdade, estão diferenciando-os dos demais, revelando aindividualidade deles. Eles reconhecem cada um e por isso osidentificam com um nome. Fuchs assim nos diz sobre a escolha dosnomes para animais:

Parece que dar nome é afirmar a individualidade de um

ser ou de um objeto. O nome do animal geralmente vai

além das exigências impostas pela raça e aspecto externo e

se materializa nalgum signo que relaciona o animal e a

pessoa de uma maneira peculiar (Fuchs, 1987, p. 73).

Todos os entrevistados, ao escolherem os nomes para os seusanimais, procuram associá-los a coisas e fatos positivos ocorridos em

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suas vidas ou então identificá-los com nomes de pessoas. Quandoassim definem, a preferência recai sempre para artistas famosos.

“Eu tenho o Mussum, o Zetti. Ele está por aí. Ele joga bolacomigo... eu tenho a Hebe, a Xuxa... o Pelé, o Gugu. A Xuxa ébranca. O Gugu é amarelo, está vendo? Ele não é loiro? O Mussum é negro e bravo” (GG).

“Eu associo os nomes a pessoas, a coisas que li ou a coisasboas. Nunca ponho nome feio e nem triste. Tem gente que põe. Umasenhora que conheço chama o gatinho de Trapinho. Eu acho quenão se pode fazer isso. Coitadinho!” (ECG).

“A cachorrinha é a Beatriz e não vejo problema nisso. Pelocontrário. Eu tenho também a Ludmila. Tem a Pitucha, a Manolita. Depois tenho a Dúnia, que é um nome comum na Rússia. Tem aFanny, que é a diminuição do nome Stefanie” (ECG).

“Nós conhecemos cada um dos cachorros. Todos têm nome.Um se chama Cob, de Cowboy. Depois tem o Cookie, de bolacha.Ele era tão bonitinho que parecia uma bolachinha. Outro se chama Maruskas. É um nome russo” (NC e TC).

“Eu tenho seis gatos dentro de casa. Eles não incomodamninguém. Os nomes são Frank. Ele é velhinho e tem quase 17 anos.Tem o Pretinho, a Pininha. Foi a minha esposa que escolheu os nomesdeles. Tem uma cachorra que se chama Nega e outros” (BCG).

Nenhum dos depoentes conseguiu dizer os nomes de todosos animais que possuem em casa. Alguns deles se confundiram nahora de identificá-los. Observamos na experiência profissional queos donos de muitos animais quando indagados sempre informampossuir um número inferior. Declarar o nome de todos seria a provade que o número deles excede ao que eles negam.

“Eles protegem nossa casa”

Os animais, principalmente os cães, proporcionam aosdepoentes o sentimento de segurança. Na sua maioria, trata-se depessoas que se sentem indefesas física e emocionalmente paraenfrentar a violência urbana. A presença do grande número deanimais em casa dá a segurança de que eles precisam.

Assim esta depoente se manifestou, ilustrando a situação:

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“Sabe, em geral os cachorros protegem os donos. Se entraralguém em nossa casa, eles ficam perto e não deixam ninguém seaproximar. A gente se sente segura. Principalmente agora que nãotemos nenhuma tranca nas portas. A gente deixa tudo aberto.Ninguém vai pular na nossa casa” (TC).

E sua irmã continua a desenvolver a idéia, creditando aoscães a importante tarefa de protegê-las de todas as intempéries davida:

“Eles protegem nossa casa. São nossos únicos protetores”(NC).

Por outro lado, há também a construção de um significadocom respeito à punição para as pessoas que não gostam oumaltratam os animais. Uma das depoentes lembra da história de umvizinho que mandou o cachorro embora e justamente na noite emque o animal foi dispensado o ladrão entrou na sua casa. Ficaevidente a mensagem de que em algum momento da vida essaspessoas pagarão por isso. Assim ela contou:

“A casa que não tem cachorros os ladrões não respeitam.Uma vizinha minha tinha um cachorro. Eles começaram a ter nojodo cachorro e não quiseram mais o cachorro. No dia em quemandaram ele embora o ladrão roubou o tanquinho, justamente nanoite. Cachorro dá segurança” (VCG).

“Eles me fazem carinho!”

Tato é essencialmente contato e conseqüentemente umaforma de comunicação com o mundo externo. Tocar e sermostocados é tão importante quanto nos alimentarmos. Toque, afago,estímulo, contato físico são formas de reconhecimento social. Aausência do contato físico na velhice é para muitos idosos arepresentação do abandono e solidão.

Para esse grupo de pessoas, não há contatos com humanoscom muita freqüência. Quando eles ocorrem, são distantes. Toda areferência afetiva delas está relacionada com o animal, inclusive ocontato físico. Os entrevistados não têm parentes próximos, seusvizinhos não os visitam porque não lhes querem bem. Não há cartase também não há telefonemas.

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O vínculo estabelecido com os animais parece-nos ser umaforma de satisfazer a necessidade de tocarem e serem tocados. Eis oque disseram as depoentes:

“Eu prefiro o contato com os animais do que com pessoas.Prefiro mesmo! Quando uma pessoa me abraça, sei que estáabraçando, mas não é a mesma coisa quando o gato faz assim coma cabeça (faz o gesto ronronando no seu rosto). Ele parece que quer beijar. A boca dele é diferente da nossa” (SG).

Outra depoente assim se pronunciou quanto ao contato comas pessoas:

“Não gosto de abraçar as pessoas. Sabe por quê? Eu achomuita falsidade. Eu nunca fui falsa para ninguém. Elas é que são. Aminha irmã já gostava de agarrar as pessoas. Eu não abraço nemmeus sobrinhos” (GG)

O gato chega, inclusive, a “abraçar” esta mesma depoente:“É no pescoço. Ele abraça. A gente sente ele apertar um

pouquinho. Gato é quente. Quando eu sento no chão assim, elesvêm no meu colo. Por que procura? Porque sabe que eu não voujudiar deles” (SG)

Os animais desta entrevistada dão o carinho de que ela tantonecessita:

“Eles sobem no meu colo. Você está vendo como eles estãoaqui ao meu lado, deitadinhos e quietinhos?” (VCG)

Esta descreve o carinho:“Sim, eles fazem carinho. Tem gatinho que vem passar a

carinha na gente, vem lamber. Esta Fanny, eu chego a cara pertodela e peço um beijinho. A impressão é que ela entende... então elavem assim, me encosta (mostra como o gato faz em cada ponto dorosto) nos quatro pontos do rosto. Depois ela volta e começa denovo. É como se fosse um beijinho” (ECG).

“A nossa família são os bichos”

Os animais representam a família que eles não tiveram ouque hoje já não têm mais. São pessoas solitárias que vivem rodeadas por gatos e cães. Conhecem cada animal pelo nome e por suasparticularidades. Contam a história de como cada animal chegou a

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suas casas. Eles têm nome, passado e presente. São, portanto, osmembros de suas famílias.

Declararam estas depoentes:“É como se eles (os cães) fossem a nossa família. Agora a gente

não tem ninguém no Brasil. Não temos parentes. Eles preenchem anossa vida. A nossa família são os bichos. Se temos que dar amor paraalguém, então nós damos para os bichinhos” (TC e NC).

“Eles me dão amor!”

Nossos depoentes não se reconhecem amados por outraspessoas; entretanto, são seres que têm muito amor para dar etambém tantas carências afetivas para serem supridas. Talvez porisso precisem de tantos animais em suas casas. A relaçãoestabelecida com cada animal é tão grande que o amor dispensado acada um é como se fosse o mesmo dispensado a um único animal.Assim se manifestaram estas depoentes:

“Eles nos dão amor e carinho. A gente fica lá em casa e elesficam no chão, ao nosso lado, assistindo a gente trabalhar. Elesficam quietinhos, quietinhos, sentados, olhando a gente” (TC).

“A gente sente que tem alguém que gosta de nós” (NC).A relação acentuou-se tanto que os animais passaram para

outro nível afetivo, chegando a ser considerados seus filhos.

“Eles são como meus filhos”

A maternidade associada ao desejo de gerar e ter filhos é algotido como fundamental para a reprodução da espécie humana,principalmente nas mulheres. É muito comum ouvir das pessoas quetêm animais domésticos e de estimação que os tratam como se fossemseus filhos. Isso também acontece com o grupo de entrevistados.

SG, num dos primeiros contatos, contou-nos que seu maridonão queria que ela tivesse filhos. Cada vez que ela falava que queriaengravidar, ele aparecia em casa trazendo-lhe animais, principalmentegatos. Ou seja, para cada filho desejado, um animal era presenteado.

Uma outra depoente se manifestou quanto a um dossignificados que os animais têm para ela:

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“... Eles são como os meus filhos!” (ECG).“É muito difícil eu me separar deles porque eu não posso

dizer qual eu vou mandar embora. Não dá para eu me separar denenhum. Eu teria que escolher qual eu vou mandar embora ou comqual eu vou ficar. É como a Escolha de Sofia.. Na escolha ela tinhaque saber qual filho viveria e qual não viveria. Acho que se euestivesse na situação dela eu também faria tudo para não me livrarde nenhum deles” (ECG).

O depoente também considera os animais como sendoseus filhos:

“Ela (a cadela) era como uma filha minha” (BCG).Há uma justificativa presente nos depoimentos dos

entrevistados sobre o fato de os animais, quando comparados a umacriança, serem considerados como seus filhos: é mais fácil criar umanimal do que um filho. A fala abaixo resume o conteúdo simbólicodesse entendimento:

“Porque os filhos não obedecem tanto a gente. Um cachorroé mais fácil de criar do que uma criança. A diferença é que ocachorro é mais fácil da gente educar. Ele só falta falar. Elesobedecem a minha ordem” (VCG)

Esta entrevistada é solteira. É tão presente o sentimento deque ela é mãe dos gatos, mas não pode chamá-los de filhinhos, poisé solteira. Assim se manifestou esta depoente:

“... Eu chamo de madrinha. Eu sou madrinha porque mãesolteira não dá. No meu tempo não podia ser mãe solteira. Então eu falo assim, vem aqui com a madrinha...” (ECG)

“Eu acho um horror o sacrifício”

Eutanásia, palavra de origem grega, eu (boa) e thanatos(morte), exprime a faculdade de provocar a morte, sem sofrimento,de doentes incuráveis, acometidos de dores físicas intoleráveis epersistentes, que os meios terapêuticos não são capazes de atenuar.Na medicina veterinária, a eutanásia é aplicada sob o critério dobom senso do médico veterinário e mediante a autorização do donodo animal. Muitas vezes representa a última saída para o alívio dosofrimento do bicho. Popularmente, esse procedimento é tambémdesignado como “sacrifício”.

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Os depoentes têm opiniões diferentes sobre a eutanásia. Uma delas assim se manifestou quanto a esta prática:

“Que poder Deus deu aos homens para matar os bichos oumatar outra pessoa? Jesus sofreu três horas na cruz até o fim edepois morreu. Se o animal estiver doente e sofrendo tem que darremédio para aliviar a dor até que ele morra. Ele tem que morrer de morte natural. O homem tem coisas mais prementes, quer dizer, deprimeira necessidade para tratar do que matar bicho” (GG).

O depoente assim declarou:“Eu sou absolutamente contrário. Tudo o que vive tem de

viver da melhor maneira possível” (BCG).“A gente fica muito triste. É como se fosse algum de nossos

parentes quando se vai matar” (NC).Esta depoente é contrária à prática, mas concorda com a

seguinte condição:“Só em casos desesperados. Um animalzinho atropelado

que está todo mal. Só nestas circunstâncias ou se ele estiver muitovelhinho, muito doente, sofrendo” (ECG).

O que também se assemelha ao pensamento do depoente:“Só se o bicho estiver realmente muito doente. Acho que sim.

E com uma injeção para dormir” (BCG).Ela declara também sua opinião sobre a eutanásia em seres

humanos:“Até em gente eu acho que deveria ser levado para

sacrifício. Eu sou a favor da eutanásia. A minha amiga pediu paramorrer. Ela estava sofrendo. Ela queria morrer para encontrarcom o irmão que ela adorava e com a mãe. Ela pedia. Eu nuncafaria uma coisa dessas. Eu acho que não teria coragem não. Mas eu sou a favor, eu sou” (ECG).

“Eles nunca passam fome”

O vínculo dos depoentes com seus animais é tão forte queeles são capazes de passar fome para que os seus animais tenhamalimento. Há portanto um sacrifício, uma privação deles, para queos animais possam ter a melhor parte na distribuição do alimento.

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“Sabe, às vezes a gente não come nada. Mas eles comem.Eles nunca passam fome. Tem dias que não temos nada paracomer, mas para os cachorros nós damos um jeito” (TC).

“É, os bichos não passam fome. A gente compra pão seco ecorta em pedacinhos e dá para eles. E nós ficamos sem comer. A gentetoma água, dizem que faz bem. A gente sente fome. Já ficamos mais deuma semana sem ter nada para comer. Nós tínhamos farinha e cebola. Então nós fritamos um pouquinho de cebola e pusemos a farinha comágua e sal. Ficou até uma sopinha gostosa” (NC).

“Eu escolheria ficar sem comer. Eu posso passar fome, maseles não podem” (VCG).

“Todo dia eu vou lá. Não tenho hora. Eu levo um saco deração com 2,7 quilos. Levo uns três ou quatro quilos de salsichae dou uma para cada gato. Não dou só ração. Já pensou vocêcomer só arroz e feijão todo dia. Eu pego e dou ainda Pedigree,que é para cachorro e tem vegetais. Eu deixo um pouco na águaaté amolecer. Tem que ver como eles gostam! Gostam até maisdo que Gatsy, que é de gato. Eu dou. Levo ainda o milho para ospombos” (GG).

“Quando eles morrem eu choro”

A morte dos animais causa a mesma comoção que a mortedos seres humanos. Cada bicho é único e singular. Sua morteprovoca o sentimento de perda e o início do processo de luto nosdepoentes. Mesmo tendo um grande número de animais em suascasas, lamentam a falta de cada um deles que deixa de existir. Assim eles declararam:

“Quando eles morrem, eu choro. A mãe deste cachorroquando morreu, eu chorei a sexta-feira inteirinha. Ela era tãoboazinha. Ela morava em cima de uma cadeira. Ela ficava lá, eladescia para dar comida aos filhos. Foi uma coisa triste, pareciauma filhona. Ela parecia perturbada. Nunca eles brigaramdaquele jeito. A Princezinha.... Que saudade!” (VCG).

“Um gato inesquecível foi o Leão. Ele ficou na UTI comproblema renal. Eu não tive Natal, eu não tive primeiro do ano. Coisahorrível! Ele sentiu mal. Vi que ele não urinava. Catei e levei. E ele

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ficou na clínica, precisando tomar soro. Eu ia visitar ele todo dia.Cheguei a comprar aquela comida, de vidro, para neném, para queeles dessem para ele pois ele era muito grande. Quando foi no dia 6 dejaneiro ele morreu. Cheguei lá e ele já estava morto. Eles já até tinham feito a necrópsia. Eles me falaram e eu não quis ver. Comecei a chorar e até hoje não esqueço dele... horrível! (pára de falar e chora). Aquelegato, acho que foi gente na outra vida. E gente muito boa! Eraeducado. Eu botava comida para os outros gatos e ele ficava ali dolado esperando, se lavando. Ele viveu 13 anos” (SG).

Outro depoente assim se comportou quando morreu seuanimal:

“Eu chorei muito com uma cachorra que eu tive desacrificar. Ela viveu comigo 13 anos. Eu abria a porta do carro eela ia comigo onde eu ia. Sinto muito a falta dela” (BCG)

Ele mesmo faz o sepultamento dos seus animais:“Quando morrem os meus gatos e cachorros eu vou atrás do

Aeroporto, levo uma pá, faço um buraco e sepulto. Faz uns cincomeses, jogaram um gato morto aqui. Peguei e pus num saco e leveilá para sepultar” (BCG).

E ele continua a se expressar:“Os animais me fazem falta. Se um bicho vai embora eu sinto

muito a perda. Não gosto nem de ver pescaria. Sinto dó dos peixesque morrem” (BCG).

A depoente SG disse o que segue sobre a morte nos sereshumanos, manifestando assim a diferença que ela sente na perda deum animal e de um ser humano:

“Quando vou a um velório não sou capaz de chorar. Eu ficonum constrangimento” (SG).

“Eu tenho uma missão protetora”

Este é um significado muito forte para os depoentes. Elesapresentam um discurso religioso de proteção e uma conseqüentevocação em cuidar de animais. Usamos o termo vocação com o sentido de escolha, chamamento, predestinação. Eles são capazes de nãomedir nenhum sacrifício, aqui entendido como renúncia em favor dosanimais, para o cumprimento dessa vocação, desse chamado.

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Uma das entrevistadas vê no cuidado que tem com seusanimais uma vocação recebida. Ela assim sintetiza:

“Eu acho que entendo isso como uma missão protetora. Eunão meço sacrifício para fazer. Quando eu vejo, já estou fazendo.Não dá para controlar” (ECG).

E complementa suas informações:“Eu fazia tudo isso protegendo, ajudando. Eu acho que isso me

levou por quase toda a minha vida... Eu acho que desenvolveu muitocedo em mim este sentido de proteção e sempre tive muita pena dascriaturas, de criança que eu via na rua e de animaizinhos” (ECG)

O depoente assim vê os animais:“Os bichos fazem parte da natureza. Por que vamos

maltratar os bichos? Temos que respeitar eles” (BCG).E complementa o raciocínio:“Eu acho que a gente tem que proteger tudo, plantas,

bichos” (BCG).Outra entrevistada acredita que o fato de cuidar de animais

lhe garantirá o céu:“Um dia conversei com um missionário da Igreja. Falei que

tem muita gente que implica com meus cachorros e gatos. Omissionário me disse que isso é serviço de gente que não tem o quefazer. Ele me disse: cuida bem dos seus bichinhos que quanto maisa senhora cuidar, mais pontos vai ter no céu. Então, os animaisajudam a gente a ganhar o céu” (VCG).

A necessidade de estar cumprindo a missão de proteger osanimais é incontrolável:

“Se eu vejo um bichinho abandonado na rua, eu pego. Eupego ele, pode ser bravo, do jeito que for. Comigo ele não ficabravo. Eu trago para casa e cuido e então ele vira meu amigo. Eume sinto bem cuidando do bicho. Se eu não tivesse nada paracuidar, eu não agüentaria” (VCG).

“Eu trazia os gatinhos dentro da sacola. Eu trazia os gatosabandonados. Nada de raça, gatinho bonitinho nada, gatinhodoente mesmo” (ECG).

Os entrevistados sentem que desempenham bem a vocaçãoque receberam a tal ponto de uma delas declarar o seguinte:

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“Se eu morrer e tiver que voltar, eu quero voltar como gato.Porque eu quero achar uma pessoa como eu para cuidar de mim. Éuma opinião minha” (SG).

O depoente tem uma concepção mais abrangente da suamissão protetora. Ele estende o seu cuidado para todo o tipo de vidaexistente na natureza. O seu discurso protetor aos animais estáinserido na manutenção de todas as formas de vida:

“Sou sócio do Greenpeace e pago uma contribuição paraeles. Eu participo de campanhas em defesa da natureza. Eu jábriguei com uma pessoa na rua que estava batendo num cachorro.Se vejo alguma coisa que maltrate a natureza, sou capaz de parar etomar providência” (BCG).

Uma das entrevistadas sente tanto a responsabilidade de protegeros animais que escolhe os menos favorecidos para dar proteção. Ela temsete gatos pretos em casa. Tradicionalmente os gatos pretos sãoassociados ao azar. Eles também são associados a agentes das forças domal. Acredita-se ser uma das formas que o demônio dava às suas servase às bruxas. Por essas razões, eles são os mais rejeitados pelas pessoas.Ela explica sua preferência, inclusive dá provas de que eles não sãoazarentos, pelo contrário, trazem-lhe sorte. Eis o que ela afirma:

“Eu tenho a impressão que é porque eles sofrem maispreconceitos. Eu nunca tive azar porque tive gatos pretos. Paramim eles dão sorte. A Manolita eu peguei um dia na rua. Eu dissepara ela que eu estava pegando para cuidar. Eu trouxe e ela está aí. Pêlo lindo e brilhante e os olhos são duas pedras de âmbar. Eugosto muito. Além de tudo, os gatos pretos são decorativos” (ECG).

A missão de proteger os animais faz com que elas tenhamuma percepção de que há uma hierarquização animal. A atençãodeverá estar voltada para os mais desfavorecidos, consideradoscomo “excluídos”:

“Eles representam também aquelas criaturas que sãocolocadas fora da sociedade, que são abandonadas, que ninguémliga, ninguém se incomoda, ninguém entende e procura entender.Eles têm, por exemplo, o sentimento de medo, que é um sentimentomais horroroso que existe e ninguém presta atenção nisso” (ECG).

A responsabilidade de cuidar dos animais implica também,quando isso é possível, investigar e acompanhar as pessoas a quem

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são doados os animais. Há um certo critério na seleção das pessoascom quem os animais ficarão. Assim diz esta depoente:

“A gente procura muito bem quem vai ficar com os filhotes dos nossos cachorros. Eu não dou para qualquer um. A pessoa tem quegostar muito de animais. Pesquisamos sempre onde eles moram.Para pessoas que moram em apartamento nós não damos” (TC).

Uma depoente assim expressou seu sentimento com osanimais:

“Eu queria que as pessoas parassem um pouquinho e vissemque os animais não são uma coisinha que está andando por aí. Nãoé objeto, não é de plástico, ele sofre tudo que o ser humano sofre.Ele tem medo, ele tem fome, ele tem dor. Já viu que pena ver umbichinho correndo na rua? E o pior é que eles não têm cabecinhapara pensar o que fazer. Depois, a maior tristeza do mundo é queeles não falam. Pode ter coisa pior? As pessoas que entendem,entendem, mas as que não entendem não ficam sabendo. Umacriancinha fala. Um bichinho não. Uma gatinha mãe está sofrendopara ter seus filhotes, ela morre e ninguém ajuda. Uma mãe vaipara o hospital de qualquer jeito, com a mãe, o marido, o pai, omédico. Uma gatinha não, pobrezinha, naquele desespero. Eupenso tudo isso. Não é difícil muita gente ajudar” (ECG).

Essa entrevistada sente e aceita que é uma eleita paraentender os animais. Falta ao animal linguagem humana para pedirajuda, falta-lhe a fala. Como ela entende a sua dor, o seu sofrimento, é capaz de se comunicar com ele, estando portanto apta a ajudaraquele que não tem como se comunicar e que não possui linguagemhumana. Ela se sente única e capacitada a poder ajudar, pois capta osofrimento daquele (o animal) que não é capaz de expressar sua dor, desespero, abandono e solidão.

Esta depoente resume o seu ministério de assistência aosanimais menos favorecidos. A capacidade de recolher os animais éilimitada, sempre cabe mais um em casa. Assim se manifestou:

“Quanto mais judiado um animalzinho, mais eu gosto decuidar. Eu conheço várias pessoas como eu que recolhemanimalzinho atropelado, abandonado, judiado pela rua” (ECG).

Perguntamos como elas se sentem quando vêem uma criançade rua ou um morador de rua.

A sra. GG respondeu o seguinte:

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“Tem que recolher os mendigos. Mas eles não querem saberdisso. Eles querem ficar aí azucrinando a vida das pessoas. Temuns que não saem daí de frente. Eles ficam vendo quem entra, quemsai. A gente fica até com medo” (GG).

Outra depoente manifestou-se da seguinte forma:“Eu tenho dó, mesmo que seja pivete. Eu tenho pena de

bandido. Eu vou fundo nas coisas. Mesmo as mulheres que pedemesmola com os filhos, eu tenho dó. Elas precisam sobreviver. Aminha irmã acha que este meu entendimento é exagerado. Eu achoque isso é da alma. É sensibilidade também” (ECG).

O grupo tem a concepção de que há uma punição, uma penapara aquelas pessoas que maltratam os animais. Assim disse estadepoente:

“Eu nem quero estar perto do que Deus pode fazer com elas.Deus pune. Isso foi Deus quem deixou para o homem. Aquelecachorro ali é um velhinho. Eu cuido, eu dou remédio. Eu me sintobem fazendo isso” (VCG).

O depoente manifestou o seu objetivo de vida ao resumirbem a missão de guardião da natureza:

“Eu quero lutar para todo mundo dar um passo atrás pelanatureza. Nós estamos estragando tudo com gás de monóxido decarbono e poluindo tudo. Ninguém resolve o problema. Temos quelutar” (BCG).

“Bicho é melhor do que gente!”

Os entrevistados construíram significados simbólicos em queos seres humanos são os representantes de uma espécie estranha eperigosa, na qual eles não se reconhecem como pertencentes. Eles jáfizeram parte da espécie, mas nas suas trajetórias de vida foramperdendo o contato com os seres humanos e em contrapartida osanimais foram ficando cada vez mais íntimos de tal maneira que “viver com bicho” tornou-se melhor e mais fácil. O animal passou asuprir-lhes o que a sociedade humana não está oferecendo mais. Umadessas carências é o contato humano: “Ninguém gosta de mim. Só osbichos. Quando estou com os bichinhos eu não estou só. Com oshomens eu estou só.” Percebe-se nessa frase, dita de diversas maneiras

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por muitas pessoas, que o que lhes falta é gente. Se não há gente paratrocar com eles, então eles passam a se relacionar com animais.

Pode-se interpretar nesses casos as relações homem/homeme homem/animal como possuidores de dupla alteridade. No caso darelação homem/ homem, a alteridade, ou seja, o outro, é semprevista negativamente. As qualidades que os “outros” seres humanosapresentam são sempre negativas. No caso da relaçãohomem/animal, a alteridade, o “outro”, cão e/ou gato, apresentaqualidades positivas de afeto, segurança, amor, fidelidade.Qualidades nitidamente humanas, mas que não são encontradas,segundo os entrevistados, na espécie humana, aparecendo emabundância na espécie animal. É o trânsito simbólico em que aalteridade, no caso os animais, reforça mais e mais o distanciamento das relações.

O levantamento das qualidades negativas presentes noshumanos se explica por uma ou mais histórias, vividas pelosentrevistados, de duras decepções, de traições tanto da parte dosfamiliares quanto por parte dos amigos ou vizinhos.

“Eu acho que de 100% das pessoas você tira 1% que presta.O resto pode-se jogar no lixo. Se você soubesse quanta maldade aspessoas fazem...” (GG).

“Eu tenho estado muito decepcionado e frustrado comgente... é mais fácil viver com os animais. Se der comida para oanimal ele se vira” (BCG).

“Os bichos são melhores do que as pessoas. Eles não fazemmal para gente. Gente faz mal aos outros. Os homens estragam avida dos outros” (NC).

“Os animais não. O bicho homem é a maior praga que existe. Você não escutou a entrevista que a Brigitte Bardot deu? Eu acho amesma coisa. Ela disse que lamenta ter tido um filho. Eu prefeririater cachorro do que ter um marido e um filho” (TC).

As irmãs NC e TC assim concluem suas visões sobre aespécie humana:

“É difícil conviver com pessoas. Com os bichos não é” (NC e TC)O depoente assim se manifestou na comparação entre os

animais e os seres humanos:

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“Os animais me fazem companhia. Falo com eles e eles meentendem. Gente não entende gente. Há uma vibração na voz deles. Eles obedecem. O cachorro é mais fácil de entender” (BCG).

Na comparação que essas pessoas fazem com os animais,pode-se concluir que viver com outro ser humano é difícil. Com osbichos não, porque eles não respondem e nem pensam. Há umadominação na relação, onde os donos são superiores. O animalobedece, acata sem contestação o que ele pensa ser o ideal. Ashistórias de suas vidas são repletas de frustrações com os sereshumanos com os quais eles se encontraram. Era o marido que nãorespeitava e nem permitia uma satisfação sexual; o padrasto quebatia, espancava a mãe e os irmãos. Assim, o animal é o sujeito ideal da relação. Eles se sentem absolutos e onipotentes, pois o animalnão sabe contestar. Isso talvez seja a maior dificuldade nas relaçõeshumanas: ouvir e respeitar o outro.

“Bichinho geralmente é puro, é natural, é transparente,nunca vai fazer hipocrisia, de forma nenhuma. Gente é hipócrita, étraiçoeira, gente mata, gente tem inveja, que é um sentimentohorroroso” (ECG).

Os entrevistados repudiam os sentimentos negativos nos sereshumanos. Mas quando os animais apresentam tais sentimentos, comopor exemplo, inveja, ciúmes, esperteza, é permitido que eles tenham.Perguntamos a ECG se os animais tinham ciúmes dela.

“Têm. Ele se sente colocado à parte. Ele vê quando estou sóagradando os outros. Ele percebe e fica tristinho. Eu percebo queele fica assim olhando. Não acredito que ele tenha raiva do outro,mas ele fica sentido. Coitadinho!”

Já a esperteza de um gato para pegar o alimento primeiro, nafrente dos outros, é assim vista por esta depoente:

“Ele (o gato) era muito educado. Porque tenho gato maleducado lá. Tem um gato que é grandão. Quando eu vou andando,ele vai passando no meio das minhas pernas. Outra coisa, ele évadio. Quando eu ponho o prato, ele é o primeiro que chega. Elequer ser o dono das coisas” (SG).

“Quando ponho comida para eles e um passa na frente dooutro eu não vejo problema. Eu acho que é a necessidade instintiva. É o instinto. Ele precisa comer, ele precisa viver. Então ele pula emcima da comida primeiro” (ECG).

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Esta depoente ainda incentiva a esperteza do gato:“Mas às vezes ou outros estão comendo e ele vai brigar para

pegar a comida. Eu digo: por que não vai pegar? Ele fica olhandopra mim. Aí eu pego um pouco de ração e falo: come logo, senão elesvão roubar. Aí meu Deus! É aquela luta. A gente se diverte!” (GG)

Uma das depoentes deu a seguinte resposta se isso nosanimais era permitido, uma vez que nos homens não é o ideal doponto de vista dela:

“Não é para ser assim nos bichos. Mas ele está sendo elemesmo. Ali a liberdade é total. Cada um faz o que quer” (SG).

E complementa a sua argumentação:“Eles são transparentes. Eles procedem como são. Nós não,

nós modificamos” (SG).A diferença nos comportamentos entre homens e animais está

no fato de que as pessoas pensam, ou seja, o homem tem odesenvolvimento do pensamento, os animais não. Essa é a grandediferença para os entrevistados. Enquanto os seres humanos exercem o livre arbítrio, escolhendo o que querem e o que não querem, decidem aquem amam ou se sujeitam, os animais não fazem juízo crítico dosfatos. A constatação desse exercício de escolha é que os entrevistadosnão conseguem conviver. Os animais se submetem aos seus donos enão questionam as ordens. Eis o que eles dizem:

“Os gatos são como crianças. Criança faz uma série decoisas que não está certa porque não pensa. Ainda não pensa, nãotem raciocínio. Mas o animal também não tem. Agora, gentegrande tem que pensar. Mesmo que não tenha instrução, que elaseja porção de coisas, só se for louca. Aí é diferente, mas se ela temo cérebro funcionando, ela é uma pessoa normal, ela tem queraciocinar. Ela não deve ter esses sentimentos ruins. Ela deve tercontrole, pode até ter uma coisa de repente, uma coisa que ela nãoespera, mas ela tem que ter controle” (ECG).

“Eu acho que é porque as pessoas pensam, as criaturashumanas pensam. Os bichos não pensam. Acho que aí está agrande diferença” (ECG).

Os entrevistados preferem o contato com os animais a tê-loscom os homens:

“Prefiro. Porque eu acho que eles (os animais) são maisespontâneos. Eu prefiro conviver com eles. Eles dão prazer. Eles

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conversam comigo, eles me entendem. Aquela gatinha lá (mostra oanimal), converso com ela e ela me entende” (ECG).

Observa-se na fala da próxima depoente que os animais sãosubmissos e que não guardam rancor. Eles não têm, portanto, amemória emocional. Se ofendemos um outro ser humano, ele nãovem logo em seguida nos agradar. Nos animais isso é freqüente.Característica que os entrevistados apreciam nos seus animais.Qual ser humano é capaz de repetir esse ato com freqüência? Eis oque ela diz:

“Prefiro os bichos. Me dou bem com eles. Eles são carinhosos,eles não são vingativos. Eu bato, daqui a pouco eles tornam a meacariciar. Eles passam na minha perna, me agradando” (GG).

Um depoente dá o seu conceito sobre o que é ser bicho:“Eu acho que é ser a melhor coisa do mundo, porque gente

não entende os outros. Gente não perdoa, gente é capaz de matar.O gato só arranha quando é maltratado. Certo? Que razão eutenho para maltratar alguém? O homem mata sem precisar” (SG).

“A velhice é um naufrágio!”

Para os entrevistados, a velhice não existe neles. Velhossempre são os outros nos quais eles não se reconhecem. Não hátambém uma idade que inicie a velhice. O aparecimento da velhiceestá muito associado à incapacidade física e mental.

“Nós não nos sentimos velhas. A velhice é as doenças. Por aíque aparecem coisas no fígado e não podemos fazer nada ... Nós temos ainda força para trabalhar. Temos forças nas pernas” (NC e TC).

Assim se manifestou o depoente quando perguntado se ele sesentia velho:

“De jeito nenhum. Velho é quem não pode andar. Não podemais se mover e não tem mais atividades. Eu tenho problema nojoelho, mas procuro esquecer isso e me movimentar” (BCG)

A velhice é uma fase normal da vida, mas evidente nos outros,fora e distante delas. Assim se manifestaram os entrevistados:

“Ela é uma fase normal. O bicho nasce, cresce, vive e morre. Ascriaturas então? Elas nascem, crescem e morrem também” (ECG).

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“Eu não vou ficar velha nunca. Ficar velha é quando vocêfica sem saber o que é. É ficar dependente do filho, da filha, domarido, da nora. É só querer ter uma coisa e não poder ter porquevocê não tem dinheiro. Coisa horrível!” (SG).

“Não me sinto velha. Eu não tenho tristeza, não tenho dor”(VCG).

“Não me considero velha porque minha cabeça está boa. Euto cuidando da casa, dos gatos, eu faço coisas para ajudar osoutros, ainda dá. Quando não der mais, aí eu vou começar a ficarvelha” (ECG).

E assim justifica o seu pensamento:“A pior coisa para uma pessoa velha é se sentir inútil.

Porque ela vê que está dando trabalho, está ocupando espaçomuitas vezes na família. Eu ficaria muito infeliz e aborrecida deficar inútil. O pior sofrimento é este. Na maior parte das vezes avelhice é isso: é a inutilidade” (ECG).

A velhice entendida como a impossibilidade de produção eautonomia.

“A velhice não deixa fazer coisas” (NC e TC).Algumas das entrevistadas são categóricas quanto ao

começo da velhice, transferindo o início sempre para um tempodistante. Para que a observação fique mais evidente, lembro queesta depoente tem 65 anos de vida.

“A velhice é 90 anos” (TC).“A minha mãe morreu com 91 anos e nunca foi velha. Ela

sempre trabalhou, até morrer. Acho que não tem idade para ficarvelho. Quando Deus quer levar, Ele leva” (VCG).

A uma depoente foi perguntado se o corpo envelhece já quepara ela, a velhice não existe.

“O corpo fica velho, por isso que eu me trato comnaturalista. É para fugir da química. Como uma vez só por dia,para manter 50 quilos de peso. Faz 18 anos que tenho 50 quilos.Tomo leite de soja e muita fruta. De 1980 para cá eu não tomeinenhum remédio” (SG).

Ao mesmo tempo em que as depoentes não se sentem velhas,observa-se que elas não têm a preocupação do acompanhamentomédico de suas condições físicas para a preservação da saúde, umavez que, para eles, a velhice está associada à incapacidade física.

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“Vou ao médico só quando preciso. Não tenho pressão alta,não tenho colesterol, não uso óculos” (ECG).

“Se eu sinto qualquer dor eu mesmo me medico. De tantoconhecer, acabei me cuidando. Não preciso de médico” (GG).

“Não. Eu não acredito na medicina” (TC).“Eu também não. A gente não se trata. Se estamos com dor

de cabeça, tomamos uma aspirina. Nunca fizemos exames paranada. Isso não é necessário” (NC).

“Nós mesmas medimos nossa pressão. Se ficamos tonta, agente tira a pressão e aí tomamos diurético” (TC).

“Não tenho pressão alta, não uso óculos. Só uso quando vouolhar na folhinha para ver o mês e o dia. Já fui operada da bacia.Foi uma operação muito gostosa e bonita que eu fiz. Não sentinada” (VCG)

Mesmo distante do conceito de velhice elaborado pelosentrevistados, uma delas fez a seguinte conclusão no final da suaentrevista:

“A velhice... Você lembra de uma frase do presidente DeGaulle? Perguntaram para ele que já estava velhinho e muitodoente: o que o senhor acha da velhice? Ele respondeu que avelhice é um naufrágio. Você perde tudo, não se salva nada. Euconcordo com ele. Perde-se tudo mesmo. Perde-se até os direitos. É um naufrágio e eu não quero naufragar” (ECG).

Uma das opções presentes e em grande desenvolvimento nanossa sociedade atual são os Grupos da Terceira Idade, que incentivam o idoso a participar e a desenvolver suas potencialidades. Todos osdepoentes foram questionados sobre o que pensavam dessasatividades. As propostas formuladas por esses grupos não lhesinteressam. São coisas para velhos. Prevalece o conceito de que velhodeve ficar quieto no seu canto. Há ainda um protesto: essas atividadessão consideradas ridículas e inadequadas. Dançar e atividades físicassó no tempo de mocidade. Fica evidente que eles também não queremcontato com outros pares da mesma faixa etária em que se encontram.

“Nunca ouvi falar” (BCG).“Já ouvi falar. Fui uma vez no Sesc. Eu acho que depende do

velhinho. Se ele gosta da vida social, ele vai lá jogar carta, dançar,aquelas coisas lá. Tudo bem. Ele está sentindo feliz assim. Depende do modo de sentir bem. Para mim não serve. Porque eu achei

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horrível e inútil ver velhinho sentado numa mesa jogando. Paracomeçar, nunca gostei de coisa parada. Eu sou muito ativa. Aquelamesa de jogo e os velhinhos jogando, achei ridículo. Velhinhodançando, pode ser coisa minha, mas eu acho antiestético aquelesvelhinhos pulando no meio do salão numa coisa que não é paravelhinho mais” (ECG).

“Acho besteira os bailes da Terceira Idade, coisa boba. Euacho tudo besteira! Puxa vida, depois de velha dançar?” (GG).

“Eu acho ridículo velho fazer essas coisas. Tanto é que todomundo que vai ver acha graça. Dá risada. Eu não gosto e não achointeressante pra mim. É meio palhaçada” (ECG).

Já que as atividades promovidas para idosos não são aceitaspor este grupo de pessoas, perguntamos o que as pessoas velhasdevem fazer. O conceito é que velho deve se recolher no seio dafamília e desenvolver atividades calmas e serenas e ainda ocupar oseu tempo cuidando dos seus netos ou quando não os têm, cuidandode bichos.

“Velho deve ler, deve ver televisão, deve pensar. Graças aDeus muitos velhos têm netos. Ele deve conversar com seusnetinhos. Criança é tão interessante. Velhinho tem que ter família.Por isso que família é bom” (ECG).

O asilo também é negado como opção para este grupo depessoas idosas.

“A gente não se sente velho para ir para o asilo” (NC).“Deus me livre, pelo amor de Deus! Se eu for para asilo, eu

morro no primeiro dia. Não dá para morar lá não. Deus me livre! Está louco! Só quero morrer na minha casa com os meus bichos” (VCG).

Esses idosos têm a consciência de que são finitos, mas háuma expectativa de que viverão ainda muitos anos. Não há projetose empreendimentos para serem alcançados. Em suas vidas houvepoucos projetos ou desejos. A vida os fez abandonar e eles sefecharam sobre si mesmos e se abriram para os animais.

“Eu acho que ainda vou longe...” (ECG).“A minha família pelo lado do meu pai, que descendia dos

índios, vive até 100 anos” (SG).“Não vou morrer agora. Vou longe” (VCG).“Morte, nem penso nisso. Por enquanto não quero nem

saber dela. Um dia vou enfrentar ela” (BCG).

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SUMARIO

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Ou então que a morte a esteja rondando. Segundo estadepoente, quando as coisas boas acontecem com ela é o sinal de quea morte está próxima. É a morte que se prepara para recolhê-la.

“Eu chamei o meu filho e falei que nós precisamos acertar ascoisas. Ele falou assim: a senhora que morra daqui a quatro anos,pois o nosso jazigo está cheio... a gente liga o Faustão no Domingoe vê que ele só está trazendo gente antiga, gente velha. NelsonGonçalves, Tim Maia e logo depois eles morreram. Quandocomeça esta coisa perto da pessoa, pode contar que ela não vaidurar muito... Eu sei que vou morrer dormindo. A chave da minhacasa está distribuída para quatro pessoas. Caso elas não me vejamem dois dias, elas podem ir atrás de mim porque estarei morta. Eunão sei como será o meu sepultamento” (SG).

Entretanto, há uma grande preocupação sobre o que seráfeito com os animais após a sua morte. Ao se considerar que, paraalguns dos entrevistados, os animais significam os filhos que nãotiveram, pode-se interpretar que desejam que seus animais morramantes para que eles não fiquem abandonados à própria sorte naausência delas.

“Eu peço para Deus me ajudar, que eles vão embora(morram) antes de mim, porque assim eu pude cuidar até o fim. Eutenho muito medo, muita peninha de deixar eles largados na vida...Eu sempre pedi a Deus para levar eles antes de mim” (ECG).

Há a preocupação de deixá-los abrigados na vida, levando-os para um gatil ou canil.

“Antes de morrer eu quero mandar os gatos para um gatil.Porque lá eu vou visitar” (GG).

A convivência íntima e constante com os animais faz comque este grupo crie um código especial no que diz respeito à morte.Eles associam a aproximação da morte de alguém chegado a algunscomportamentos animais, como por exemplo o uivar dos cães. Ouseja, os animais têm uma linguagem diferente da do ser humano.

“Quando os cães começam a uivar, eles estão querendodizer que a morte está aí. Os cachorros pressentem a morte. Elessão muito sensíveis” (NC).

Interessante observar que cuidar de vários animais é sinalpara esse grupo de idosos de que eles não estão velhos.

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“Eu procuro me manter sempre ocupado pra gente estarfazendo alguma coisa” (BCG).

Para essas pessoas, a velhice está associada à incapacidadede fazer coisas. Logo, se há um trabalho específico, cuidar deanimais e proteger, elas não estão velhos. Se tirar os seus animais,elas afirmam que vão morrer, ou seja, ficarão velhos e então estarãomorrendo. O bicho é a âncora deles na vida.

A sra. VCG resumiu da seguinte forma os significados que os animais têm em sua vida:

“Se eu ficar sem estes bichinhos eu acho que eu morro.Porque eu acho falta. Eles me obedecem, me fazem companhia. São meus amigos, eu converso com eles e eles me escutam. Deus melivre. Eu não ficaria sem eles... eu sei, estes bichos são a minha vida e os meus companheirinhos” (VCG).

Certamente a questão de vida e morte foi o ponto crucial dapesquisa: quando os depoentes declararam que seus animais são sua razão de viver e dão provas de que essa afirmativa é verdadeira enão apenas uma expressão de linguagem. Era uma absolutaverdade! Eles continuavam vivos tão somente porque tinham umagrande quantidade de animais para cuidar.

Considerações finais

Este estudo procurou apontar uma forma distinta deenvelhecimento para um grupo específico com característicaspeculiares. Este grupo de pessoas idosas, na medida em que semanifestou, representou e evidenciou a sua respectiva velhice e oquanto os animais são importantes em suas vidas. A velhice e osanimais estão diretamente relacionados neste grupo de pessoas. Aopção teórico-metodológica possibilitou que os sujeitos entrevistadostivessem voz ao relatar suas experiências, suas concepções e oconhecimento acumulado em suas vidas. Esse conjunto permitiudecodificar os significados que os idosos dão aos seus animais,realizando o que Geertz chama de uma descrição densa.

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Nas considerações sobre a relação homem-animal, ficouevidente o quanto ela é importante para o ser humano e osbenefícios que a relação pode propiciar. Chamamos a atenção paraa intensidade da relação e quando ela passa a ser única, excluindo ocontato com outros seres humanos. Isso a torna prejudicial. Nastrajetórias de vida dos depoentes, percebemos que a substituição doser humano pelo animal foi se dando em momentos diferentes desuas vidas, principalmente com aqueles em que as perdas forammaiores ou quando eles não receberam o afeto que esperavam dosparentes e amigos. Destaca-se que o respeito, o afeto e o cuidadocom os animais não podem eliminar a necessidade de atenção paracom um outro ser humano; pelo contrário, aprimoram ecomplementam a capacidade do relacionamento com nossossemelhantes. Quando se inverte esse conceito, há um prejuízogrande para os lados envolvidos, inclusive para os próprios animaisque têm suas necessidades básicas de cuidados prejudicadasconforme ficou evidenciado no estudo.

Na interpretação dos depoentes, a preservação da saúde atravésda higiene, limpeza e de outros cuidados não está presente. O Centrode Controle de Zoonoses é uma instituição de saúde pública que seocupa prioritariamente do controle das doenças transmitidas pelosanimais. Os idosos depoentes desta pesquisa estão inseridos numacomunidade populacional. Quando um ou mais vizinhos reclamou doincômodo que era evidenciado, coube ao CCZ, no papel de instituiçãopública, intermediar as relações na medida em que tem aresponsabilidade de preservar a saúde da comunidade, evitando oaparecimento de doenças, principalmente a raiva. Nos casos dosdepoentes, várias providências já foram tomadas para minorar osincômodos proporcionados. Muitas dessas providências requeremlongo tempo para serem consideradas pelos depoentes. Em algumassituações, não houve mudanças de comportamento.

Chamamos a atenção mais uma vez para o fato de como estesvelhos são vistos pela comunidade. O velho é sempre o outro emque eles não se reconhecem. Eles são sempre classificados nasdenúncias como sendo os “velhos” e “velhos com bichos.” Essa é aforma como os outros os vêem. Esse velho está sempre associado ao velho com cachorro, o velho dos gatos e também a velha bruxa ou avelha louca. É como se estivesse sendo avaliada e analisada adenúncia sobre a perspectiva daquele que é velho pelo denunciante

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como se o fato de ser velho já fosse decorrente da condição de sercachorreiro ou gateiro.

Os sujeitos constantes nesta pesquisa não se reconhecemcomo sendo velhos. Não o fazem porque não se reconhecem comoindivíduos improdutivos e com declínio físico acentuado. Conceitovigente no imaginário social, inclusive dos próprios idosos.Também não se percebem como estando no final da vida. Esteselementos, improdutividade, declínio físico e morte iminente,constituem o modelo de velhice sugerido socialmente. Osdepoentes se percebem como sujeitos singulares que nada têm a vercom o modelo geral, portanto não são velhos. Eles ainda seconsideram como muito ativos e produtivos ao cuidarem de váriosanimais. O fato de se sentirem como cumpridores da missãoprotetora que abraçaram os torna ainda mais distantes da velhice.Há, portanto, um sentimento de utilidade e dedicação à causapreservadora e protecionista dos animais.

A velhice não se processa de forma generalizada. Os sujeitosenvelhecem de formas incontáveis. Ao reconhecer esse fenômeno,chamamos a atenção para a importância de ver a velhice sob uma óticainterpretativa. É estabelecer conhecimentos sobre a velhice sob umavisão que vai além, que ultrapassa as diferentes disciplinas. Étranscender e unir estas sabedorias em suas diversas conexões. Oprincípio que orientou o estudo e procurou entender os sujeitospesquisados foi o da interdisciplinaridade. Os sujeitos entrevistadosnão são “velhos loucos”, “velhos desviantes”, são diferentes. Oconviver com os animais e o pensar sobre os bichos como próximosevidenciam um jeito singular de se relacionar e interpretar as relaçõestanto com os animais quanto com os outros humanos.

As interpretações dadas aos significados dos animais para ogrupo de idosos pesquisado são uma reinterpretação do pesquisadornão única e nem absoluta. As interpretações são abertas e incompletasconforme Geertz nos lembra. Os significados também passam pormudanças e registra-se o desafio para que outros pesquisadores sedebrucem sobre o tema e dêem continuidade ao estudo.

Goldfarb (1998, p. 13) nos lembra:

Falamos de todos eles (velho com bichos), já sãopersonagens conhecidos na nossa cultura; falamos de umvelho em particular e da velhice como categoria. Masfundamentalmente, através de todos eles falamos do velho

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que temos dentro de cada um de nós, do velho de nossafamília, daquele que entrou muito cedo na nossa história edireciona nosso olhar para todos os outros. Falando de todasas velhices (dos outros com animais) sempre falamos de umavelhice (a nossa) e dos muitos velhos que poderemos chegar aser. Da velhice que desejamos e da que tememos. Mas se cadasujeito tem sua velhice singular, as velhices são incontáveis.

E concluímos, citando novamente Doris Lessing (1983, p. 208)que apareceu no começo do capítulo e optamos por concluir com estacitação:

No passado eu tinha tanto medo da idade, da morte, queme recusava ver os velhos na rua – para mim eles não existiam. Agora fico horas naquela enfermaria, e observo e me espanto,fico maravilhada e admiro.

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168 Marília Anselmo Viana da Silva Berzins e Elisabeth Frohlich Mercadante

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MEMÓRIA,LOUCURA

E VELHICE

Os ganhos no processode envelhecimento

pós-reforma psiquiátrica

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CAPÍTULO 6

Reginaldo Moreira | Olga Rodrigues de Moraes von Simson

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O objetivo principal da pesquisa1 aqui apresentada foiconhecer a trajetória de vida dos idosos que realizam seu tratamento de saúde mental na instituição referida e seus possíveis ganhos nafase de desospitalização. As pessoas consideradas “normais” emnossa sociedade ocidental, pertencentes a uma família, com netos,bisnetos, ou mesmo as solteiras, pertencem a várias redes sociais.Segundo a maioria dos estudos gerontológicos, grande parte dessaspessoas apresenta um declínio crescente quando envelhecem, comperdas sociais, cognitivas e emocionais em diversos campos de suas vidas. A pesquisa teve o intuito de questionar se, ao revés dessedeclínio, os idosos do Serviço de Saúde “Dr. Cândido Ferreira”,que passaram pelo processo de desospitalização, tiveram ganhos ou ressarcimentos sociais importantes, que podem ser consideradosmelhorias em sua qualidade de vida, justamente na fase da velhice,no ocaso de suas vidas.

Muitos desses idosos passaram a vida apartados de direitos econvívio social. Uma vez que o Cândido Ferreira tem sua inauguraçãodatada de 1924 e a reforma psiquiátrica implantada no serviço só teveinício a partir de 1990, a população que lá se encontrava em tratamentojá estava, em sua maioria, idosa. A pesquisa questionou se todos osidosos teriam se beneficiado do processo de ressocialização, notocante à obtenção de documentação, moradia, trabalho, benefíciosocial e uma vida minimamente digna.

SUMARIO

1. A autoria da dissertação de mestrado Memória, Loucura e Velhice – Os ganhos no processo de envelhecimento pós-reforma psiquiátrica é de ReginaldoMoreira.

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Através da pesquisa de campo, o pesquisador buscou registrar, como objetivo secundário, as pluralidades de memória de diversosatores, envolvidos com a criação e funcionamento do antigoSanatório Dr. Cândido Ferreira e com as modificações advindas dareforma psiquiátrica, que atuaram no processo de envelhecimento,orientado agora pelo Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, após oinício da implementação, iniciada em 1990. Vinte e três entrevistasforam realizadas, entre os idosos que relembraram seu passado e com outros atores do processo, como funcionários, filantropos e vizinhos,que contribuíram com informações para construir o contexto maisamplo da realidade dessa população. Neste artigo, apresentaremossomente trechos de recordações dos idosos que viveram esseprocesso, no intuito de exemplificar a hipótese da investigação.

Para atingir os objetivos propostos, o pesquisador saiu acampo para ouvir dos depoentes colaboradores a reconstrução desuas trajetórias de vida, registrando-as e analisando-as. Ametodologia utilizada para a realização deste trabalho foi aMetodologia da História Oral. A metodologia se propôs a trazer apúblico as memórias individuais, que até agora se encontravamsubterrâneas, e reconstruí-las, sob o enfoque da Gerontologia.

Um instrumento complementar utilizado na pesquisa decampo foi a Fotografia, que se colocou neste trabalho como uminstrumento detonador da memória destes idosos.

A desordem cronológica do relato oral compreende a própriaordem do processo de rememorização e esta é a principal riqueza dotestemunho. O pesquisador atentou para a presença de omissões,invenções, delírios, silêncios contidos nos relatos, para posteriormente tentar interpretá-los e descobrir seus significados.

Memória, loucura e velhice

A pesquisa foi realizada tomando por base conceitos advindosda literatura científica que enfoca os temas: memória, loucura evelhice. Essas três pilastras mestras permitiram analisar os relatos dosidosos do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira. Em termostemporais, a pesquisa toma como fases distintas o antes (1924 a 1989)e o depois da reforma psiquiátrica (1990 a 2005). Com esses conceitos

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e esse norteador cronológico, a investigação pretendeu questionar ospossíveis ganhos de qualidade de vida dos idosos, que realizam seustratamentos nesta instituição, enfocados através de três grupos: osainda residentes na instituição, os que foram instalados na comunidade e aqueles que sempre moraram com seus familiares.

A memória dos entrevistados foi enfocada sob umaabordagem histórica e sociológica, portanto as funções cognitivas,psicológicas e biológicas da memória tiveram relevância relativapara esta pesquisa. O que interessava para a realização destetrabalho era a reconstrução das histórias de vida, a partir darememoração das vivências de cada idoso. Pelo dinamismoconstante da memória, o presente é determinante na rememoraçãode fatos passados. É a partir do momento presente que se dá oprocesso de recordação (colocar de novo no coração) (Menezes,1991, p. 9-15).

A reconstrução do passado por meio da memória dos idososdo Cândido Ferreira teve como objetivo a aproximação à realidadepor eles hoje vivenciada. A participação de idosos no processo dereconstrução histórica através de rememoração não só traz àpesquisa uma colaboração preciosa, como beneficia o própriorecordador. O velho recordador passa a ser visto de formadiferenciada pela comunidade envolvida, uma vez que o seu saber évalorizado, a sua memória referendada, possibilitando o importante papel de informante abalizado daquela comunidade.

(...) Assim, pessoas mais velhas, já aposentadas, mas com

faculdades de memórias intactas, são os informantes ideais e

excelentes testemunhos orais podem ser elaborados nesse

tipo de parceria. (...) A experiência tem mostrado que as

pessoas de mais idade são participantes valiosos no processo

de coleta de dados e que, por sua vez, beneficiam-se

psicológica e socialmente ao desempenhar o papel de

informantes (Giglio & von Simson, 2001, p. 142-143).

No caso dos idosos do Cândido Ferreira, nem todos osrecordadores apresentavam a memória intacta. Muitas vezes, oscolaboradores apresentaram fragmentos de memória que,somados a outros fragmentos, possibilitaram a reconstruçãohistórica, que metaforicamente pode ser comparada à elaboração

Memória, Loucura e Velhice 173

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de uma colcha de retalhos, montada com diversos “retalhos”,advindos de diversos tecidos, com estampas, texturas e fiosespecíficos, o que só veio enriquecer a trama da tessitura dememórias empreendida pela pesquisa.

Os manicômios pelos quais passaram e viveram os idosos emquestão, muitas vezes, puniam nossos entrevistados, justamente pelofato de tentarem se expressar. O desejado “bom comportamento”passava por uma submissão total às regras da instituição, queesperava um silenciamento de queixas e rebeldias, e hoje, não é de seestranhar que alguns usuários não falem, outros falam muito pouco eos silêncios ainda compõem, de maneira significativa, o discurso dosque se dão o direito de falar.

A loucura, neste trabalho, foi abordada sob o ponto de vistade um fenômeno social, produzido a partir da categorização dessefenômeno como doença mental. Historicamente, a loucura passoupara os domínios do saber médico, depois de ter sido tratada comopossessão pela Igreja Católica. No contexto de “doença mental” éque se passa o período pesquisado neste trabalho (1924 a 2005).Apesar de a pesquisa tomar a loucura como “doença mental”, para o estudo em questão não será relevante saber os diagnósticos eevoluções clínicas e psíquicas dos velhos estudados. Para apesquisa, o que importará é o fenômeno social de marginalizaçãoque este diagnóstico provocou em suas vidas, a partir do momentoem que foram internados num hospital psiquiátrico.

Os modos de tratar a doença mental, antes da reformapsiquiátrica, eram calcados exclusivamente nos cuidados clínicos,em que a psiquiatria via a necessidade de afastá-los da vida social.Após a reforma, ou seja, a partir de 1990, os cuidados relativos àdoença mental têm sido norteados pelos Direitos Humanos, pelareconstrução da cidadania, prevendo a participação social dessapopulação, além dos cuidados clínicos.

O velho foi abordado pela pesquisa, antes de mais nada,como pessoa, cidadão pleno de direitos e deveres. A difícil tarefados idosos é ter que provar à sociedade constantemente, na novasituação de vida, o quanto estão vivos e capazes. Na pesquisa,observamos que continuar sendo uma pessoa na velhice requer uma militância por parte desses idosos, apoiada nos que por eles lutam.Na apresentação do livro de Ecléa Bosi, Memória e Sociedade –

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Lembrança de Velhos, Marilena de Souza Chauí questiona, tendoem vista o homem comum:

Que é ser velho?, pergunta você. E responde: em nossa

sociedade, ser velho é lutar para continuar sendo homem.

...Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver

(Bosi, 1994, p. 18).

Foi no sentido de romper com o silêncio dessa população pordécadas silenciada que esta pesquisa pretendeu apresentar seu olhar sobre o ser velho, respeitando sua subjetividade e sua identidade.Nesse caso, especificamente a dos idosos que viveram a maior parte de suas vidas isolados no confinamento dos manicômios.

A instituição pesquisada

O Hospital de Dementes de Campinas foi o primeiro hospitalpsiquiátrico filantrópico do Estado de São Paulo. A instituição teve, desde sua fundação, um caráter filantrópico e humanitário, voltadoà caridade aos seus assistidos. A sua inauguração tirou os loucos doporão da Cadeia, e os colocou num espaço mais adequado paraatendimento, com instalações mais dignas para os portadores desofrimento mental. Apesar desse benefício incontestável, estapopulação que fôra escondida pelos procedimentos da Repúblicanos porões da Cadeia agora continuava afastada da sociedade,numa área rural, do Arraial de Sousas.

No decorrer da história, o hospital utilizou-se de diversastécnicas para o tratamento da loucura, como eletrochoque,impregnação medicamentosa, camisa-de-força, quartos-forte etc. Oúnico recurso não empregado no tratamento foi a lobotomia2, pelafalta de equipamentos cirúrgicos adequados para sua execução.

A usuária Silvana Borges, representante dos usuários doCândido Ferreira, apesar de não ter passado por esse tipo detratamento, mostrou-se contrária ao uso do eletrochoque, conformeseu depoimento:

Memória, Loucura e Velhice 175

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2. Procedimento cirúrgico cerebral, que consiste em extinguir a agressividade equalquer reação instintiva de defesa do ser humano.

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“Para mim, eu acho que não é válida, não, essa coisa deeletrochoque. Na UNICAMP ainda utiliza. Eles falavam,tratamento eletroconvulsante. Porque eu estive lá, pelo programade TV que a gente tem, e estive entrevistando a doutora lá, e elesexplicaram que tem benefícios, que deve passar, etc. Ma eu achoque é um tratamento muito degradante, que vai mexer com o seucérebro, vão colocar fios, dar uma descarga elétrica na pessoapara ela poder melhorar. Eu acho que não precisa disso tudo não,porque aqui, a gente não tem nada disso, e gente consegue setratar, a gente consegue melhorar. Porque se fosse bom, tinha emtodo lugar. Mas a bandeira da luta antimanicomial já diz que isso,eletrochoque nunca mais, camisa-de-força nunca mais, aumentode medicações também nunca mais, pessoas com um monte demedicação, medicação, medicação, também nunca mais. Então, na minha opinião é assim, eu acho que a pessoa deve ser tratada comdignidade, com amor, com carinho. Está bem que a pessoa precisade remédio, ela precisa do psicólogo, precisa de um terapeuta,precisa de tudo isso daí. E precisa ter espaço para poder falar epara poder ser ouvida. É muito importante isso” (Depoimento deSilvana Borges, 41 anos).

Dos onze usuários entrevistados para esta pesquisa, quatronão passaram pelo tratamento com eletrochoque. Dos sete usuáriosque foram submetidos a essa técnica, dois não conseguem maisverbalizar suas opiniões e sentimentos.

“Cheguei a tomar, cheguei.(...) Era ruim, porque chamavam por... Eu e mais dois

pacientes tomávamos eletrochoque. (...) Não sei (porque tomava choque), acho que porque dizem

que é tratamento psiquiátrico, tratamento psiquiátrico.(...) Sentia dor de cabeça (após tomar eletrochoque) ...(...) Era ruim demais.(questionado sobre a quantidade que tomou) (...) Uns

cinqüenta e sete para... Setenta e sete, por todo... Aliás, uns tantosanos assim para frente” (Depoimento de Carlos Alberto da SilvaDuarte, 63 anos).

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SUMARIO

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Para Maria Darcie Tucci, o eletrochoque também não deixou saudade:

“Faz tempo que eu já estava lá. Eu era nova, eu era nova.Internou eu, e eu levei choque, levei choque na cabeça.

(...) (como era tomar choque) Era assim (indicando astêmporas). Era ruim.

(...) Eu me sentia mal.(...) (Tomei) Cinco choques (...) ou mais.(...) Eu (tomava porque) estava nervosa, revoltada”

(Depoimento de Maria Darcie Tucci, 62 anos).“A polícia que me trouxe. (...) Eu estava quieta. (...) Eu

estava andando na rua. (...) Aí, eu fiquei tomando choque.(...) (tomou muito eletrochoque?) Nossa senhora! (...) Nem

lembro mais (fazendo alusão de que foram muitos). (...) Mandava a gente deitar na cama e encostava aquele

negócio, chamado eletrochoque.(...) Eu dormia (quando tomava). (...) Não via mais nada. (...)

Acordava tonta, caindo pra cá, prá lá” (Depoimento de Anita DelPiani, 84 anos).

O ano de 1990 marca uma nova fase no tratamento mentaldas pessoas internadas no Cândido Ferreira. Após um convêniocom o poder público municipal, a instituição mudou e vemtransformando os modos de cuidar da saúde mental dos pacientes.A implantação da reforma psiquiátrica possibilitou às pessoas queestavam sendo tratadas, ou que vieram a se tratar posteriormente àreforma, uma série de conquistas, em diversos campos.

“(...) antigamente, era difícil o tratamento, porque,antigamente, tratava somente o paciente. Hoje, a psiquiatria estámuito moderna. Além de tratar o paciente, a família também éacompanhada. Quando você tem a oportunidade de sair dohospital, a família também está preparada para te receber. É ondeé mais fácil a sua recuperação” (Silvio Burza, 62 anos).

De 1990 para cá, muitos internos descobriram o paradeiro deseus familiares e alguns voltaram a viver com eles, em sua terra natal.Os idosos que não localizaram suas famílias estão sendoressocializados, e, hoje, a instituição oferece para mais de 140 idosos33 casas localizadas em bairros da cidade de Campinas, que

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funcionam como “repúblicas mistas”, permitindo a maior autonomia eum convívio e participação mais ampliada na sociedade.

“(...) eu faço faxina aqui de manhã, a qualquer hora do diaeu dou uma limpadinha para não pisar em sujeira, em comida.(...)cada um tem uma atividade” (Depoimento de Carlos Alberto daSilva Duarte, 63 anos).

“Aqui, cada qual faz um servicinho. Essa daqui lava louça, aoutra faz comida, o outro limpa o mictório, essas coisas assim.Quando a outra cozinheira não está. Cada um faz uma coisa. Eracomo fazia lá no Cândido, lá também era assim” (Depoimento deJosé Marques, 69 anos).

Direitos fundamentais à documentação, como Certidão deNascimento e Carteira de Identidade, foram conquistados junto aoPoder Público, o que possibilitou o recebimento da “Ação deBenefício Continuada”, do Instituto Nacional da Previdência Social.Com o poder de compra, os idosos passam a freqüentar o comérciolocal e reaprendem o valor do dinheiro, possibilitando novamente osuprimento dos seus pequenos desejos e uma maior autonomia.

“E nós tivemos a oportunidade aqui, eu tive a oportunidadede ver pessoas depois de 1990, quando foi feita essatransformação, como eu já disse antes, o sorriso das pessoas, aliberdade, e as pessoas não têm medo de conversar com elas.Agora, o bacana que eu vi aqui também, foi quando você disse arespeito do RG: Como é gratificante você sentir que você viveu uma vida preso, sem saber quem você era, você não tinha documento, eelas passam a receber o RG. Você via o sorriso estampado no rostodessas pessoas, a gratificação de saber que ela era uma cidadãbrasileira com documento. Eu me chamo fulana de tal. Muitasdelas passaram a ir para suas casas e passaram a poder fazercompras porque ela tinha o prazer de chegar em uma loja, (e apessoa perguntava) Aonde é que você mora? Eu moro em tal lugar.Você tem documentos para eu poder fazer uma ficha? Tenho, eutenho o meu RG. Elas falam com orgulho: Eu tenho o meu RG. Etambém as moradias que foram proporcionadas, porque essaspessoas saíram de dentro do hospital, independente de termelhorado o hospital, mas elas foram para as moradias. O que éuma moradia? A moradia é onde elas têm o livre arbítrio, aspessoas podem ter um cachorrinho, isso é muito bom. Já pensou,

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você vai lá para uma moradia, e você ter um cantinho onde vocêpode plantar, você planta no quintal um almeirão, você planta umpé de couve, você se dedica àquele pezinho de couve, aquelealmeirão...” (Silvio Burza, 62 anos).

Como se trata de processo de reforma psiquiátrica emandamento, ainda hoje cerca de 40 velhos moram nas dependências do“Cândido Ferreira”. Os idosos ainda institucionalizados são os quenecessitam de maiores cuidados psiquiátricos e clínicos. O CândidoFerreira implementou duas casas para atender alguns idosos nessasmesmas condições, chamadas de “moradias de alta complexidade”.Essas casas são adaptadas para as necessidades dos idosos, além decontarem com atendimento clínico durante 24 horas. A intenção dainstituição é implementar mais casas, para desinstitucionalizar essesidosos que ainda moram no Cândido Ferreira, intenção que, entretanto, esbarra na falta de recursos financeiros disponíveis.

“Não tenho, eu sou de família abandonada. (...) Não localiza mais. (...) Perdeu o contato, perdeu faz tempo Régis, desde dequando eu estava em Americana, no hospital de Americana”(Maria José de Oliveira, 67 anos).

“Eu morei com a minha tia madrinha. (...) Então, para trás,meu primo foi buscar eu. E eu fui morar com a minha tia. E umaprima me judiava, amarrava eu assim, amarrava meu braço fortemesmo. Eu ficava sem comer, eu ficava de castigo (...) porque elanão combina com a minha tia. Ela quer que eu fique lá na minha tiapara dar isso que eu ganho. Por que você não vai morar com a suatia? (...) Você é aposentada, você ajuda a sua tia que está sofrendo,ela tem diabetes, tem isso e aquilo. Porque querem que eu ajude aela. De que jeito eu vou ajudar ela? Eu sou aposentada, e eu nãoposso nem me (sustentar) por mim. (...) Eu recebo aposentadoria.(...) (a tia quer) pegar o dinheiro meu. Mas então, a referênciaminha, a Alessandra, do CAPS Sul, ela não quer que eu vá mais lá,não, na casa da minha tia. Sábado e domingo não. (...) Nem sábadoe domingo. Domingo passado eu fui. Mas ela não quer que eu vá lámais não, porque ela pede, ela pede dinheiro meu. Eu tinhadinheiro, que eu recebia, no ano passado roubaram meu dinheiro.Tinha muito dinheiro novo, quatrocentos e quarenta, cinqüenta,por aí, porque eu não conheço. Eu não conheço (dinheiro), eu vouguardando na minha carteira” (Marlene Diniz, 57 anos).

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No campo da rea bi li ta ção, para o tra ba lho foram imple men ta -das doze ofi ci nas pro fis si o na li zan tes. Cerca de 250 pes soas par ti ci pam das ofi ci nas, que via bi li zam, além da rea bi li ta ção, o rece bi mento deuma “bolsa tra ba lho”, que varia de acordo com a venda men sal,girando em torno do valor de um salá rio mínimo. As ofi ci nas pro fis si o -na li zan tes se divi dem em qua tro ramos de ati vi dade: Culi ná ria, Agri -cul tura, Reci cla gem e Deco ra ção, que com pre en dem ofi ci nas deVitral, Vitral Plano, Mosa ico, Papel Reci clado, Grá fica, Ser ra lhe ria,Velas e Mar ce na ria.

“Eu vou falar para você, mesmo que você faça umtratamento, pode tomar os melhores remédios que forem, se vocênão tiver uma ocupação, um trabalho, você não fica bem, você temque trabalhar. E o bom aqui do Cândido é que ele oferece otrabalho, isso que é interessante. Os hospitais deveriam fazer isso,ter um espaço para trabalho onde você pode dedicar o dia detrabalho, onde você faz uso de medicação, mas você trabalha.Porque é gratificante trabalhar. Além de trabalhar, você tem o seudinheiro, você pode planejar o que você quer fazer. Agora, jápensou você tomando medicação, dormindo o dia todo e semtrabalho? É péssimo. Então, o que o Cândido faz, essas oficinas, émaravilhoso. Se todos os hospitais psiquiátricos, não só hospitaispsiquiátricos, mas qualquer entidade que faz aí algum tipo detratamento colocar uma oficina, um trabalho, o trabalho é oitentapor cento da recuperação, sem dúvida” (Silvio Burza, 62 anos).

Além das oficinas de trabalho apresentadas, outras oficinas vêm sendo realizadas na instituição, abertas à participação de usuários e dapopulação em geral, o que possibilita uma troca social entre as partes.As oficinas de comunicação têm como principal atividade a oficina derádio, que resulta na produção do programa Maluco Beleza, veiculadopela Rádio Educativa de Campinas, uma vez por semana. Essas novasformas de interação permitem o alargamento social para os usuários da saúde mental, e diminuem os estigmas relativos à loucura.

A liberdade e os novos modos de tratar a doença mentalampliaram os serviços, atendendo a população mais próxima aosbairros onde residem, facilitando o ir e vir dos usuários, a participaçãodos familiares, e a garantia dos vínculos com as famílias e com asociedade. Por esta nova postura nos cuidados aos usuários do serviço,desde 1993, o “Cândido Ferreira” é considerado referência de

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tratamento à saúde mental no Brasil, pela Organização Mundial deSaúde (OMS). Atualmente a instituição filantrópica atendeaproximadamente mil usuários por mês, e a maioria destes recebemtratamento durante o dia, retornando às suas casas no final da tarde.

Conclusões

A pesquisa que se propôs a investigar os possíveis ganhosdos idosos do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, depois dareforma psiquiátrica, chega ao seu final, após coletar, organizar eanalisar os depoimentos de onze idosos que viveram esses doismomentos de tratamento da saúde mental. Ela foi complementadacom depoimentos de doze informantes colaboradores queacompanharam parte desse processo de mudança, chegando-se aalgumas conclusões.

A maioria dos idosos do Cândido Ferreira teve ganhos na fase davelhice de suas vidas, uma vez que a reforma psiquiátrica se implantouem 1990, ano em que esta população conquistou direitos e cidadania, jána velhice. Muitos foram morar em “residências terapêuticas”,localizadas em bairros da cidade; obtiveram documentação;conquistaram o Benefício de Ação Continuada, concedido peloGoverno Federal; puderam iniciar curso de alfabetização para adultos;tiveram oportunidade de se inserir em oficinas de trabalhoprofissionalizantes oferecidas pela instituição, entre outros benefíciosque estimularam a inclusão, a participação e o convívio social. Houveuma reconstrução das redes sociais para esses idosos, transformando-osde indivíduos que só possuíam o papel social de insano em pessoas quehoje possuem uma multiplicidade de inserções na sociedade.

Apesar disso, parte da população idosa da instituição, cercade 40 pessoas, possui um comprometimento psiquiátrico grave, eou se encontra com problemas clínicos de saúde que, somados aocomprometimento mental, inviabilizam a implementação dasnovas formas de tratamento da “loucura”. Os recursos públicosdisponíveis para implementação de residências de altacomplexidade, que proporcionassem mão-de-obra especializada eequipamentos clínicos necessários para atender a demanda dessapopulação, são escassos, obrigando esses idosos a continuarem

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sendo atendidos em esquema asilar, perpetuando assim ainstitucionalização psiquiátrica.

Desta forma, pode-se ousar afirmar que a reformapsiquiátrica se efetivou para muitos idosos, que obtiveram ganhossocioculturais e na qualidade de vida, com sua implementação.Contudo, para esses 40 idosos acometidos de outras enfermidadesclínicas, a reforma veio tarde demais, não havendo tempo hábil para que usufruíssem de seus benefícios.

Sujeitos, agora, da própria história, na maioria dos casos, osusuários demonstram um grande poder de resistência e desuperação dos problemas pessoais e daqueles impostos por ummodo de cuidar em saúde mental, que durante muitos anos não foiadequado. Após a reforma psiquiátrica tornam-se sujeitosprodutores de cultura e conseguem transmitir essa cultura por meiodas artes, do artesanato, do programa de rádio, do jornal impresso,entre outros, denotando uma participação social ativa.

Os idosos da instituição, em sua grande maioria, sãoconscientes quanto aos processos pelos quais passaram ao longo desuas vidas. Conscientes de como adoeceram e do percurso quetiveram, analisam, vislumbram e sonham. A partir da reflexãopessoal e dos processos rememorativos que a pesquisa engendrou,alguns usuários se conscientizaram da necessidade de semobilizarem para a criação de uma associação, através da qualpossam organizar a luta pelos seus direitos e garantir os jáconquistados. Essa militância prevê também a inclusão da lutapelos idosos que perderam a capacidade de expressão por causa dasseqüelas dos antigos tratamentos, somados à idade avançada e aosproblemas de saúde dela advindos. Apesar da constatação do desejo de criação de uma associação de usuários, por parte da populaçãoatendida pela instituição, a mobilização entre eles é pequena,denotando um protagonismo ainda reduzido no tocante à criação daassociação. Algumas iniciativas já foram realizadas, no sentido dese organizarem para garantirem a manutenção dos direitosadquiridos e a ampliação desses direitos aos futuros usuários,porém a manutenção dos encontros para a criação, de fato, dessaassociação, não aconteceu até o momento.

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Sobre os Autores

Organizadoras

Neusa Maria Mendes de GusmãoAntropóloga e professora associada do DECISE – Departamento de

Ciências Sociais na Educação e dos Programas de Pós-graduação emEducação e em Gerontologia da FE/UNICAMP e pesquisadora do CNPq.Além de artigos nas áreas de antropologia, educação e velhice, organizou epublicou as seguintes coletâneas: Infância e velhice: pesquisa de idéias(Alínea, 2003) e Cinedebate: cinema, velhice e cultura (Alínea, 2005).

Olga Rodrigues de Moraes von SimsonDocente do DECISE, da Faculdade de Educação da UNICAMP, e do

Programa de Pós-graduação em Gerontologia, da mesma faculdade e diretorado Centro de Memória da UNICAMP.

Colaboradores

Elisabeth Frohlich MercadanteAntropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Coordenadora

e Docente do Programa de Pós-graduação em Gerontologia da PUC/SP.

Maria da Glória Marcondes GohnProf. Titular aposentada da UNICAMP, professora do Programa de

Pós-graduação em Educação da UNINOVE, Pesquisadora I do CNPq eSecretária Executiva do Research Committee “Social Classes and SocialMovements” da Associação Internacional de Sociologia. Publicou 12 livrossobre a temática da participação da sociedade civil em associações,Movimentos, ONGs, conselhos e em políticas públicas.

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Marília Anselmo Viana da Silva BerzinsAssistente Social da Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura da

Cidade de São Paulo. Mestre em Gerontologia pela PUC/SP. Doutorandaem Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP/SP.

Patrícia GattiMestre em Gerontologia e Mestre em Música pela UNICAMP.

Professora de vivências musicoterápicas na UNISAL; desenvolve trabalho de práticas musicoterápicas com idosos. É cravista do grupo ANIMA de músicade câmera.

Reginaldo MoreiraJornalista, Mestre em Gerontologia pela UNICAMP, Professor de

Jornalismo da PUC-Campinas e das Faculdades Hoyler, e Professor daUniversidade da Terceira Idade da PUC-Campinas.

Roberta Cristina BoarettoÉ psicóloga formada pela USP, especialista em Saúde Coletiva e

mestre em Gerontologia pela UNICAMP. No mestrado, pesquisou sobrevelhice e população de rua. Entre outros, desenvolve trabalhos sobreos temas de participação popular, políticas públicas e saúde.

Wanda Pereira PatrocinioPedagoga, Mestre em Gerontologia pela UNICAMP. Monitora e

pesquisadora da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares daITCP-UNICAMP (2002-2005). Professora da Faculdade Cenecista daTerceira Idade – Faceti/ CNEC/Capivari.

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