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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Ana Claudia Coelho de Oliveira VELHICE: que imagens fazemos dela? VELHICE, SAÚDE E PEDAGOGIA AUDIOVISUAL RIO DE JANEIRO 2011

Velhice, saúde e pedagogia audiovisual

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    Ana Claudia Coelho de Oliveira

    VELHICE: que imagens fazemos dela?

    VELHICE, SADE E PEDAGOGIA AUDIOVISUAL

    RIO DE JANEIRO

    2011

  • Ana Claudia Coelho de Oliveira

    VELHICE: que imagens fazemos dela?

    VELHICE, SADE E PEDAGOGIA AUDIOVISUAL

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Educao em Cincias e Sade, Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao em Cincias e Sade

    Orientadora: Vera Helena Ferraz de Siqueira

    Rio de Janeiro

    2011

  • Oliveira, Ana Claudia Coelho de. Velhice: que imagens fazemos dela? Velhice, sade e pedagogia

    audiovisual / Ana Claudia Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Nutes, 2011. 149 f. : il. ; 31 cm. Orientador: Vera Helena Ferraz de Siqueira. Dissertao (mestrado) -- UFRJ, Nutes, Programa de Ps-graduao

    em Educao em Cincias e Sade, 2011. Referncias bibliogrficas: f. 113-119. 1. Educao em Cincias e Sade. 2. Velhice. 3. Vdeos na

    educao. 4. Recursos audiovisuais. 5. Tecnologia educacional em sade - Tese. I. Siqueira, Vera Helena Ferraz de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Ps-graduao em Educao em Cincias e Sade. III. Ttulo.

  • Ana Claudia Coelho de Oliveira

    VELHICE: que imagens fazemos dela?

    VELHICE, SADE E PEDAGOGIA AUDIOVISUAL

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Educao em Cincias e Sade, Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao em Cincias e Sade

    Aprovada em

    ______________________________________________________

    Vera Helena Ferraz de Siqueira, doutora em Educao, docente do Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade/UFRJ

    ______________________________________________________

    Luiz Augusto Coimbra de Rezende Filho, doutor em Comunicao, docente do Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade/UFRJ

    ______________________________________________________

    Eliane Portes Vargas, doutora em Sade Coletiva, coordenadora adjunta da ps-graduao stricto sensu em Ensino em Biocincias e Sade

  • AGRADECIMENTOS

    minha me e meu pai pela vida, bnos e oraes.

    Aos meus irmos, em particular, minha irm, cunhadas(o), tios(as) e sobrinhos(as) por saberem precisamente o que amar...

    A todas(os) as(os) minhas(meus) amigas(os) to queridas(os) pelo apoio, estmulo e amizade incondicional, incluindo Pretinha, a melhor amiga de homens e mulheres!. Agradecimentos especiais quelas que alimentaram corpo e alma! com seus quitutes (obrigada, Re Nen!) e, em particular, Marcia, por ter enriquecido as iguarias com o inconfundvel tempero foucaultiano.

    s minhas mestras-amigas da infncia e maturidade, Zulmira e Ligia, pelo prazer de trabalhar com palavras e velhos.

    Rosa e Vitor, por me ajudarem a transformar sofrimento em vontade de viver e determinao.

    Aos(s) meus(minhas) colegas de trabalho pela torcida solidria que repousa no reconhecimento da importncia de renovarmos saberes e prticas e, muito especialmente, ao Deusci, minha chefia imediata de Servio, e Rosimeri, subcoordenadora da equipe de psicologia, que desde sempre me apoiaram nesse desafiador retorno academia.

    queles(as) que me confiam seus sentimentos, no cotidiano de minha prtica profissional.

    Aos(s) que vivem dentro de mim em preciosas lembranas Wilma, Leo, Victor e Joana.

    Vera, que freireanamente me orientou, respeitando dificuldades e limites em clima de permanente e generoso encorajamento.

    Aos(s) demais professores(as)do Programa pela competncia e entusiasmo.

    Aos(s) funcionrios(as) do NUTES, muito mais amigos(as) do que funcionrios, em particular aos da Secretaria, Direo, LVE (Ronaldo e Iolanda, apoio logstico nota 10, aquele abrao!) e Biblioteca, toda a minha gratido pelo empenho e gentileza constantes.

    equipe da VideoSade Distribuidora/ICICT/FIOCRUZ, sem a qual essa pesquisa no teria acontecido, um agradecimento especial pela disponibilidade, ateno e presteza.

    A Deus, que dispensa palavras...

  • OLIVEIRA, Ana Claudia Coelho de. Velhice: que imagens fazemos dela? Velhice, Sade e Pedagogia Audiovisual. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado do Programa de Ps-graduao Educao em Cincias e Sade) Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011

    RESUMO

    Esta pesquisa pretendeu investigar como o tema da velhice vem sendo

    contemporaneamente construdo na confluncia de prticas e saberes dos campos da sade e

    da pedagogia audiovisual com base na anlise das concepes esttico-pedaggicas que

    constituem o material de estudo: vdeos nacionais produzidos e/ou utilizados para fins

    educativos. Com esse objetivo, foram selecionados quatro vdeos editados para fins

    especificamente educativos, produzidos pelo Projeto Viva Legal, programa de promoo da

    sade proposto pelo Ministrio da Sade do Brasil e, como contraponto, uma produo

    independente, sem inteno pedaggica explcita, realizada por docente de universidade

    pblica brasileira. A abordagem metodolgica utilizada, de cunho qualitativo, articulou

    algumas noes foucaultianas principalmente as de biopoder e medicalizao com noes

    de anlise flmica, considerando-se que os discursos veiculados pelos vdeos so,

    inegavelmente, efeitos da articulao dinmica entre sua forma e contedo. As anlises

    revelaram que o material produzido sob a chancela do Ministrio da Sade aponta para a

    permanncia de uma pedagogia audiovisual transmissiva e prescritiva, alinhada a modelos

    ainda prevalentes de educao em sade e s orientaes estabelecidas pelo Instituto Nacional

    de Cinema Educativo (INCE) criado, em nosso pas, em 1937. A abordagem da velhice nestes

    vdeos acompanha a lgica que orienta sua produo: prescreve comportamentos afinados

    com os princpios biopolticos, endereados no apenas aos idosos, mas populao em geral.

    Na produo independente, em contrapartida, o tema foi trabalhado de modo a dar a ver no

    apenas a questo da velhice, mas, tambm, outras particularmente relevantes para o campo da

    educao em sade, tais como a prtica assistencial da rea e as engrenagens biopolticas que

    a sustentam, sendo endereado a todos ns, enquanto sociedade e, especialmente, aos

    profissionais de sade, instando-os a refletir sobre a racionalidade mdica hegemnica

    reproduzida no cotidiano das prticas naturalizadas. Esperamos, com essa pesquisa, poder

    acrescentar algumas reflexes aos necessrios debates sobre o uso de recursos audiovisuais

    nas prticas pedaggicas, em particular as inerentes ao campo da educao em sade.

    Palavras-chave: Pedagogia audiovisual. Educao e sade. Velhice.

  • OLIVEIRA, Ana Claudia Coelho de. Velhice: que imagens fazemos dela? Velhice, Sade e Pedagogia Audiovisual. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado do Programa de Ps-graduao Educao em Cincias e Sade) Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011

    ABSTRACT

    This research intended to investigate how the theme of old age is presently

    being constructed at the confluence of contemporary practices and knowledge from the fields

    of health and audiovisual pedagogy based on the aesthetic and pedagogical conceptions that

    constitute the studied materials: national videos produced and/or used for educational

    purposes. With this aim, four videos were selected, specifically edited for educational

    purposes, produced by the project Viva Legal (Live Well), a health promotion program

    developed by the Brazilian Ministry of Health and, as a counterpoint, one independent

    production video with no explicit educational intent, developed by a professor from a public

    Brazilian university. The methodology involved a qualitative approach with the articulation of

    some of Michel Foucaults notions mainly biopower and medicalization with notions of

    film analysis. It was considered that the discourses transmitted through the videos are

    undeniably effects of the dynamic articulation between form and content. The analysis

    revealed that the material produced by the Health Ministry indicates the persistence of a

    transmissive and prescriptive audiovisual pedagogy aligned with models of health education

    that still prevail and with recommendations established by the National Institute of

    Educational Cinema (INCE) created in Brazil in 1937. The view of old age in these videos

    follows the logic that orders their production: they prescribe behaviours linked to the

    biopolitical principles, addressed not only to the elderly, but to society in general. On the

    other hand, in the independent production video the theme was unfolded in a way that showed

    not only old age, but also other issues particularly relevant in the health education field. These

    included the practices in health care and the biopolitical gear that sustain them, which was

    addressed to general public, but specially to health professionals, urging them to reflect upon

    the hegemonic medical rationality produced in everyday life within their naturalized practices.

    With this research we hope to add some thoughts to the necessary debates on the use of

    audiovisual resources in pedagogical practices, mainly within the health education field.

    Key-words: Audiovisual pedagogy. Education and health. Old age.

  • LISTA DE QUADROS E ILUSTRAES

    Quadro 1: Tema Velhice acervo VideoSade Distrib./FIOCRUZ: gneros flmicos....

    Quadro 2: Tema Velhice acervo VideoSade Distrib./FIOCRUZ: recursos flmicos...

    Fotogramas 1, 2, 3, 4: planos aleatrios de apresentao da Videosade Distribuidora.....

    Fotogramas 5, 6: planos aleatrios de apresentao da Fundao Oswaldo Cruz...............

    Fotogramas 7, 8: planos aleatrios de apresentao do Projeto Viva Legal....................

    Fotogramas 9, 10: planos aleatrios de apresentao do Projeto Viva Legal..................

    Fotogramas 11, 12: planos aleatrios de apresentao do Projeto Viva Legal................

    Fotogramas 13, 14, 15, 16: planos do apresentador Projeto Viva Legal.......................

    Fotogramas 17, 18, 19, 20: planos da apresentadora Projeto Viva Legal.....................

    Fotogramas 21, 22: planos aleatrios de cartelas de texto Projeto Viva Legal.............

    Fotogramas 23, 24, 25, 26: planos de mdicos entrevistados Projeto Viva Legal........

    Fotograma 27: close up de idosa entrevistada vdeo Envelhecimento/Viva Legal....

    Fotograma 28: apresentador vdeo Envelhecimento/Viva Legal................................

    Fotogramas 29, 30: cartelas de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal...................

    Fotogramas 31, 32: entrevistas aleatrias vdeo Envelhecimento/Viva Legal...........

    Fotograma 33: comerciante idosa vdeo Envelhecimento/Viva Legal.......................

    Fotograma 34: cartela de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal............................

    Fotograma 35: psicloga de meia-idade vdeo Envelhecimento/Viva Legal.............

    Fotogramas 36, 37: cartelas de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal...................

    Fotograma 38: cartela de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal............................

    Fotograma 39: cartela de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal............................

    Fotograma 40: economista idoso vdeo Envelhecimento/Viva Legal........................

    Fotogramas 41, 42: idoso na farmcia/consulta vdeo Envelhecimento/Viva Legal..

    Fotograma 43: cartela de texto vdeo Envelhecimento/Viva Legal............................

    Fotogramas 44, 45, 46, 47: entrevistas vdeo Envelhecimento/Viva Legal...............

    Fotogramas 48, 49, 50, 51: planos de assistncia ao idoso vdeo Solitrio Annimo...

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  • SUMRIO

    1 INTRODUO..............................................................................................................

    8

    2 FUNDAMENTAO TERICA.................................................................................

    16

    2.1 O saudvel ser normal? Com a palavra, Canguilhem e Foucault...............................

    16

    2.2 Envelhecimento saudvel: desafios para o campo da educao em sade................

    27

    2.3 Imagem em movimento na prtica pedaggica: por que? Como? Para quem?.............

    44

    3 METODOLOGIA...........................................................................................................

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    3.1 Procedimentos metodolgicos.......................................................................................

    62

    4 RESULTADOS: Vide(os)-discursos!.............................................................................

    70

    5 CONSIDERAES FINAIS.........................................................................................

    110

    REFERNCIAS................................................................................................................

    113

    ANEXOS............................................................................................................................

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  • 8

    1 INTRODUO

    Muitos so os olhares lanados sobre a velhice e o envelhecer, sobretudo na

    atualidade. E no poderia ser diferente, visto que cresce a passos largos o contingente de

    idosos em todo o mundo, ainda que em ritmos diferenciados, variando entre pases e mesmo

    dentro de cada um, de acordo com as peculiaridades de suas diversas regies.

    De acordo com Camarano (2009, p.25, grifo nosso), as projees estatsticas indicam

    que na primeira metade deste sculo, o movimento da populao brasileira ser de rpida

    contrao e de superenvelhecimento. Ela dever atingir seu ponto mximo nos prximos 20

    anos, o que implicar a intensificao de estudos que dimensionem demandas de servios

    pblicos e privados (CAMARANO, 2009, p.25) e, acrescentamos ns, que reflitam sobre as

    imagens construdas por nossa sociedade sobre a velhice e o processo de envelhecimento,

    respeitando a multiplicidade de experincias que os constituem.

    Por princpio, em consonncia com Alves (2001, p.166), tomar a velhice como tema

    de estudo deve conduzir, necessariamente, ao delineamento da histria do interesse, do

    ponto de vista do conhecimento, pelo velho e pela velhice em nossa sociedade.

    Em breve panorama, a autora esclarece que at meados do sculo XX a velhice foi

    tratada como assunto exclusivamente mdico. A partir do final dos anos 70, as cincias

    sociais tomam para si o envelhecimento como tema de estudo, e a Gerontologia1 emerge

    como campo cientfico interdisciplinar, difundindo a idia de envelhecimento saudvel,

    tanto do ponto de vista fsico quanto mental: a velhice saudvel seria aquela que conseguisse

    dominar os efeitos negativos do envelhecimento. (DEBERT, 1999 apud ALVES, 2001,

    p.166). Defendendo a tese de outro autor2, acrescenta que a Gerontologia seria fruto de uma

    luta social que envolveria mudanas nos padres das relaes intergeracionais:

    [...] se quisermos compreender do que e de quem se fala quando nos referimos velhice na sociedade ocidental contempornea, devemos estudar quais so as bases e as maneiras atravs das quais se conformam e se explicam as posies sociais das geraes; posies que variam de acordo com a situao de classe e, acrescento eu, tambm com o gnero. (ALVES, 2001, p.166, grifo da autora).

    1 No h definio consensual para o termo. Propomos aqui a definio citada por Groisman (2002) que, em seu entendimento, parece ser a prevalente no Brasil: a gerontologia, no seu todo, o conjunto de conhecimentos cientficos aplicados ao estudo do envelhecimento humano, nos aspectos biolgicos, psicolgicos e sociais (JORDO NETTO, 1997, p.33 apud GROISMAN, 2002, p.63), dividindo-se em duas subreas a Geriatria e a Gerontologia Social sendo a primeira o ramo da medicina que visa tratar as doenas associadas ao processo de envelhecimento, enquanto a segunda, constituda em bases interdisciplinares, estudaria o processo de envelhecimento em seus mltiplos aspectos psicolgicos, sociais, jurdicos, etc. (GROISMAN, 2002, p.63-4). 2 LENOIR, R. (cf. ALVES, 2001, p.166).

  • 9

    Assim, a velhice ganha dimenso scio-histrica, marcada por disputas por poder

    entre geraes, classes e, tambm, entre os sexos, embora nunca tenha deixado de ser objeto

    da medicina que, desde o sculo XVIII, se ocupa de questes relacionadas ao gerenciamento

    das populaes, includos a os idosos. Diz Foucault (in MACHADO, 2008, p.197): eis que

    surge, no sculo XVIII, uma nova funo: a disposio da sociedade como meio de bem-estar

    fsico, sade perfeita e longevidade.

    interessante pontuar, contudo, que a velhice como categoria etria no est posta

    desde sempre. Silva (2008) assinala que foi a partir do sculo XIX que as diferenciaes entre

    as idades comearam a surgir e, com isso, a gradativa e crescente periodizao do curso de

    vida em etapas formais. Vale acompanhar a autora:

    [...] at o incio do sculo XIX fatores demogrficos, sociais e culturais combinavam-se de tal modo que as sociedades pr-industriais no procediam separao ntida ou a especializaes funcionais para cada idade. A diversidade de idades entre as crianas de uma mesma famlia, a ausncia da regulamentao de um tempo especfico para o trabalho e a coabitao de famlias extensas so apenas alguns dos fatores que, em conjunto, no favoreciam a fragmentao do curso da vida em etapas determinadas. A partir do sculo XIX surgem, gradativamente, diferenciaes entre as idades e especializao de funes, hbitos e espaos relacionados a cada grupo etrio. Tem incio a segmentao do curso da vida em estgios mais formais, as transies rgidas e uniformes de um estgio a outro e a separao espacial dos vrios grupos etrios. Desse modo, o reconhecimento da velhice como uma etapa nica parte tanto de um processo histrico amplo que envolve a emergncia de novos estgios da vida como infncia e adolescncia , quanto de uma tendncia contnua em direo segregao das idades na famlia e no espao social. (SILVA, 2008, p.156-57).

    Importante referir que, para Foucault, segundo Castro (2009, p.115), no sculo XIX,

    assistimos a uma crise da famlia, o que parece vir ao encontro das consideraes tecidas

    pela autora acima citada. E prossegue:

    o estabelecimento de uma sociedade disciplinar requereu, de fato, um fortalecimento da famlia [...] e, ao mesmo tempo, uma limitao, sua reduo clula dos pais e filhos. [...] quando a famlia entra em crise e no desempenha mais sua funo, ento surge toda uma srie de mecanismos disciplinares para remediar essa situao (os orfanatos, por exemplo). (CASTRO, 2009, p.115-16).

    Retomando Alves (2001), com a consolidao do capitalismo no cenrio ocidental, a

    partir de meados do sculo XIX, a utilidade daqueles(as) trabalhadores(as), cuja fora fsica

    prejudicada pelo envelhecimento se encontrava aqum da demanda do mercado, passou a ser

    questionada. Vemos a, o germe do que se apresenta atualmente como a Sociedade do

  • 10

    Desperdcio, licenciando-nos para parafrasear Guy Debord3 em aluso a Bauman4. Alinham-

    se as concepes de velhice, incapacidade e pobreza com a instituio da aposentadoria,

    inaugurando, naquele contexto, o entendimento da velhice como um problema social a

    exigir no da famlia, mas do Estado e instituies filantrpicas, sobretudo religiosas,

    amparo e ateno (ALVES, 2001, p.167, grifo da autora).

    A partir do sculo XX, as concepes de velhice ligadas pobreza passam a coabitar

    com as que a associam ao prazer e realizao pessoal. Insinua-se, em nome da lgica do

    consumo, a necessidade de aproximao entre as concepes de velhice e independncia,

    cabendo o termo idoso aos identificados com essa proposta, e a palavra velho para

    designar o pobre, dependente, doente (Alves, 2001, p.168). Nas palavras da autora:

    a ideologia da velhice independente revela uma preocupao dos mais velhos em garantir autonomia diante das geraes mais novas. Essa autonomia leva ao exerccio do controle dos efeitos do envelhecimento e, em ltima instncia, a uma negao da prpria velhice a partir de prticas individualizadas de cuidado com a sade, de rejuvenescimento do corpo e o desenvolvimento de uma vida social ativa. Essa nova velhice ficou conhecida como a terceira idade. (ALVES, 2001, p.168).

    A despeito dos esforos dos mais velhos em garantir autonomia diante das geraes

    mais novas, as configuraes scio-familiares da atualidade vm revelando importantes

    contradies que parecem acirrar dificuldades no mbito do convvio intergeracional.

    Observemos dados de pesquisa5 citada ainda pela mesma autora, em outra de suas obras:

    outro aspecto relevante do quadro domiciliar e familiar diz respeito ao nmero de idosos que se apresentam como chefe de famlia (71%). Nesse caso, essa chefia entendida como suporte material. O dinheiro das aposentadorias, penses e atividades de trabalho que os idosos ainda executam entra na manuteno das casas onde residem. Oitenta e oito por cento contribuem para a renda familiar. Mas, curiosamente, o poder na famlia parece se restringir com a idade. O que chamo de poder na famlia a importncia que a opinio do idoso tem para os membros de sua famlia. H uma dicotomia entre, de um lado, a chefia material e, de outro, a subordinao da opinio, dado relevante a ser comentado, pois levanta aspectos interessantes das dinmicas intergeracionais nas famlias e relativos ao lugar dos idosos na vida social. (ALVES, 2007, p.128, grifo nosso).

    Diante disso, logo se v a infinidade de questes relacionadas ao aumento desse

    grupo etrio a exigir respostas e impelir estudiosos, das mais diversas reas do conhecimento,

    a se debruar sobre o tema. Entretanto, vale dizer, consideramos que a velhice merea 3 DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 4 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 5 "Idosos no Brasil vivncias, desafios e expectativas na terceira idade", pesquisa que d nome ao livro, realizada em parceria entre a Fundao Perseu Abramo, o SESC Nacional e o SESC de So Paulo (ver referncias).

  • 11

    ateno, no somente porque urgem providncias a serem tomadas ao nvel das polticas

    pblicas, sociais, previdencirias ou de sade, embora, fique claro, reconheamos a

    legitimidade da importncia das mesmas, em particular no cenrio de iniquidades que

    caracteriza a realidade brasileira.

    Acreditamos que refletir sobre a velhice merea ateno, antes, por motivo simples e

    bvio: a despeito de todas as tecnologias mdicas e cosmticas que vm sendo desenvolvidas

    no sentido de retardar e mascarar o envelhecimento, ele segue seu curso inexorvel. O

    compasso em que o processo avana ser mais lento ou rpido dependendo dos recursos

    econmicos disposio de cada um. No entanto, a sentena uma s: envelhecer e morrer

    destino de quem vive - de todos ns - sendo tal condio existencial motivo suficiente para

    constituir-se como valioso objeto de estudo.

    A despeito dos esforos da geriatria e gerontologia no desenvolvimento de estudos e

    pesquisas que possam contribuir para o incremento da qualidade de vida da populao que

    envelhece, cremos na importncia de se incorporar reflexes sobre os balizamentos de ordem

    cultural que orientam tais produes, incluindo a problematizao da prpria noo de

    qualidade de vida, que parece favorecer a consolidao de um imaginrio social que

    representa a chegada velhice, no Brasil de nossos tempos, como a conquista da melhor

    idade. Que trama discursiva engendra tal concepo? De acordo com Fischer (2003),

    preciso que

    [...] se busquem os enunciados de certos discursos, de certos regimes de verdade, prprios de uma poca, produzidos, veiculados e recebidos de formas muito especficas, que falam de um certo tempo e lugar, que falam de determinadas relaes de poder, que produzem sujeitos de uma certa forma. (FISCHER, 2003, p.84).

    Mas por que relacionar o tema da velhice ao estudo do audiovisual, em particular, do

    audiovisual utilizado no campo da educao em sade?

    Apesar da hegemonia da escrita verbal, ainda vigente no sistema educativo da

    atualidade (MARTN-BARBERO; REY, 2001), vivemos em um mundo que se representa de

    forma cada vez mais imagtica e sonora, desafiando as instituies de ensino, sobretudo as de

    mbito formal, a repensar suas formas de relacionar contedos curriculares s experincias de

    vida dos estudantes (GOODSON, 2007). Trata-se de buscar, no a superao destas por

    aqueles, mas uma genuna integrao de saberes formais e informais que faa sentido para

    os envolvidos no processo educativo. Nas palavras contundentes de Martn-Barbero e Rey

    (2001, p.58-59, grifos dos autores),

  • 12

    [...] no s a escola, mas tambm o sistema educativo inteiro se nega a fazer perguntas como estas: que ateno esto prestando as escolas, e inclusive as faculdades de educao, s modificaes profundas na percepo do espao e do tempo vividas pelos adolescentes [e, ampliando o olhar, por todos ns], inseridos em processos vertiginosos de desterritorializao da experincia e da identidade, apegados a uma contemporaneidade cada dia mais reduzida atualidade, e no fluxo incessante e embriagador de informaes e imagens? Que significam aprender e saber no tempo da sociedade informacional e das redes que inserem instantaneamente o local no global? [...] Est a educao se encarregando dessas indagaes? E, se no o est fazendo, como pode pretender ser hoje um verdadeiro espao social e cultural de produo e apropriao de conhecimentos? (MARTN-BARBERO; REY, 2001, p.58-9, grifo dos autores).

    Diante disso, no h dvida de que o compromisso da educao com a formao de

    sujeitos crticos deva ultrapassar fronteiras: faz-se necessrio considerar a relevncia do

    debate proposto por Martn-Barbero e Rey em todos os nveis educacionais, do bsico ao

    superior e, alargando ainda mais o espectro de possibilidades, tanto nos mbitos do ensino

    formal como no-formal.

    De todo modo, sejam quais forem os nveis, mbitos de ensino e finalidades

    pedaggicas, inegvel a presena do audiovisual, e seu apelo, como recurso educativo.

    Como bem nos lembra Franco (1997):

    o bom ver, espectar. E definitivamente o prazer de ver/ouvir a grande mgica sedutora das linguagens audiovisuais. Por isso mesmo to persuasiva e pedaggica. No creio que tenha mais nenhuma eficcia tentar negar ou minimizar esse festival dionisaco. (FRANCO, 1997, p.34).

    Contudo, muito h que se refletir sobre o uso que vem sendo feito da imagem em

    movimento em contextos educativos. Leandro (2001) sintetiza bem a questo, apontando para

    o que considera um equvoco quanto ao prprio estatuto pedaggico da imagem:

    [...] um desses equvocos diz respeito ao prprio estatuto pedaggico da imagem, at hoje muitas vezes apreendida como ilustrao de contedo de cursos ou de pesquisas cientficas. A escola se apropria da imagem em movimento no como quem se aproxima de uma arte, a cinematografia, capaz, por si s, de pensar novas relaes de espao e de tempo, por exemplo, mas como quem busca um aditivo tecnolgico para incrementar processos educativos em andamento, desencadeados por cincias j consolidadas, como a Biologia, a Geografia, a Histria... Embora hoje faam parte da nossa formao cultural, tanto quanto a Literatura, as imagens em movimento ainda no constituem um objeto de estudo em si. Elas ainda so um simples meio para o estudo de outros objetos, prioritrios, porque cientficos. (LEANDRO, 2001, p.29, grifo da autora).

    Remontando histria do Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade

    NUTES/CCS/UFRJ (SIQUEIRA, 1998), cuja trajetria se inicia em 1972, no difcil

    perceber a relevncia do audiovisual no cenrio da educao para a sade no Brasil e Amrica

  • 13

    Latina, uma vez que a instituio, tornada polo irradiador de tecnologias ligadas imagem em

    movimento, foi responsvel pela produo de vdeos para a rea da sade, com impacto nas

    esferas acadmico-profissionais em nveis nacional e internacional.

    Assim, a prpria trajetria do NUTES nos d a dimenso do alcance que o

    audiovisual educativo pode atingir nos espaos de construo do conhecimento e, com essa

    pesquisa, esperamos poder contribuir com algumas reflexes sobre os modos de produo e

    utilizao deste recurso na atualidade em meio rapidez com que prticas de ordem poltica,

    social e econmica se multiplicam e lutam por hegemonia, dinmica que inelutavelmente

    repercute nas prticas pedaggicas que incluem o uso de tais materiais.

    Retomando o tema do trabalho, ao considerarmos os aspectos envolvidos na

    experincia do envelhecer que envolve saberes de diversas reas e campos, no apenas os

    relacionados s cincias biomdicas claro est que docentes e profissionais de sade so

    convocados, mais do que nunca, face complexidade da vida contempornea, a

    desenvolverem uma viso reflexiva e crtica a respeito de sua profisso e de suas prticas,

    ampliando seus conhecimentos humansticos em cincias sociais, antropologia e filosofia,

    capazes de propiciar esta reflexividade crtica. (AMORETTI, 2005, p.142).

    Entendemos que a dimenso biolgica do processo de envelhecimento demanda, sem

    dvida, grande ateno e esforos das cincias biomdicas no sentido de prevenir, controlar e

    tratar os agravos sade do idoso, o que inclui fazeres pedaggicos compatveis com cada um

    desses objetivos. Entendemos com Assis (2005, p.2) que o fazer pedaggico possa (e deva)

    acontecer em espaos de debate que estimulem os idosos a pensar a relao corpo/vida e a

    atuar na direo de integrar o fazer individual e coletivo que envolve a sade.

    Apenas gostaramos de realar, somando esforos com Assis (2005), a importncia

    de darmos destaque, nesses espaos de debate, e em outros que contemplem a diversidade

    etria, a todos os demais aspectos implicados na sade das pessoas (idosas ou no) aspectos

    econmicos, sociais, polticos, culturais que atravessam os processos de formao de suas

    subjetividades e, consequentemente, suas formas de estar no mundo, podendo matizar o

    sentido que conferem s suas existncias com cores vivas ou sombrias...

    E, aqui, vale referir Russo (2006, p.185), por defender uma visada que inclua a

    discusso dos pressupostos que fundamentam todo empreendimento cientfico ocidental,

    construdo em torno de uma lgica cartesiana, dualista, que ainda se constitui referncia

    bastante prevalente em nossos esforos de reflexo sobre as prticas que desenvolvemos,

    sejam pedaggicas ou assistenciais:

  • 14

    temos que ir alm da prpria medicina e pensar no que a fundamenta como pressuposto cultural. Refiro-me lgica subjacente a todo empreendimento cientfico ocidental que permitiu o desenvolvimento da medicina tal como a conhecemos hoje e que se fundamenta na concepo dualista do ser humano (RUSSO, 2006, p.185).

    Mantendo-nos nessa perspectiva, no demais pontuar a importncia de tomarmos

    nossos objetos de estudo de um ponto de vista igualmente no dualista. Dito de outro modo:

    para compreendermos o lugar que ocupam na complexa trama de saber-poder que funda nossa

    sociedade, precisamos considerar as microrredes de saberes e poderes que os constituem, sua

    microfsica, como nos ensina Foucault. Assim, a partir dos desdobramentos dessas

    microanlises, estaremos cada vez mais prximas de compreender que condies histricas

    favoreceram a emergncia de nossos objetos de um determinado modo e no de outro.

    Consideramos, tambm, igualmente relevante para esse estudo, o debate

    contemporneo sobre a noo de identidade (HALL, 2006), tendo como pano de fundo a

    marca da fluidez, da transitoriedade, nos processos de transformao da sociedade ocidental

    contempornea, agudamente retratada por Bauman (2005):

    se a vida pr-moderna era uma recitao diria da durao infinita de todas as coisas, com exceo da existncia mortal, a vida lquido-moderna uma recitao diria da transitoriedade universal. Nada no mundo se destina a permanecer, muito menos para sempre. Os objetos teis e indispensveis de hoje so, com pouqussimas excees, o refugo de amanh. Nada necessrio de fato, nada insubstituvel. Tudo nasce com a marca da morte iminente, tudo deixa a linha de produo com um prazo de validade afixado. [...] Um espectro paira sobre os habitantes do mundo lquido-moderno e todos os seus esforos e criaes: o espectro da redundncia. A modernidade lquida uma civilizao do excesso, da superfluidade, do refugo e de sua remoo. (BAUMAN, 2005, p.120).

    Atentas a este panorama, buscamos apreender como o tema da velhice vem sendo

    contemporaneamente construdo na confluncia de prticas e saberes dos campos da sade e

    da pedagogia audiovisual com base na anlise das concepes esttico-pedaggicas que

    constituem o material de estudo vdeos nacionais produzidos e/ou utilizados para fins

    educativos entendendo que os discursos que veiculam so efeitos da articulao dinmica

    entre sua forma e contedo.

    Para isso, tomamos quatro vdeos editados para fins especificamente educativos,

    produzidos pelo Projeto Viva Legal, projeto de promoo da sade proposto pelo

    Ministrio da Sade do Brasil, e uma produo independente, sem intencionalidade

    pedaggica explcita, realizada por docente de universidade pblica brasileira.

  • 15

    Esperamos, ao trabalhar sobre as especificidades do tratamento esttico-pedaggico

    conferido s peas selecionadas, poder acrescentar algumas reflexes aos debates sobre o uso

    de recursos audiovisuais nas prticas pedaggicas, em particular as inerentes ao campo da

    educao em sade, uma vez que o mundo em que vivemos nos incita a refletir sobre os

    parmetros que norteiam as instituies que criamos, dentre elas, a educao, e, em ltima

    anlise, sobre o modo como nos constitumos sujeitos portadores de discursos que configuram

    nossa realidade da forma como a vivemos.

  • 16

    2 FUNDAMENTAO TERICA

    2.1 O saudvel ser normal? Com a palavra, Canguilhem e Foucault.

    Assistimos, em nossos tempos, a uma superposio que parece bastante natural

    entre os binmios normal/patolgico sade/doena, no qual os termos normal e sade,

    ocupando o mesmo lugar na equao que os alinha, do forma sentena: ser saudvel, pois,

    ser normal. Contudo, se imaginarmos, do ponto de vista lgico, a frase inversa ser doente

    portar alguma patologia, estaremos, em ltima anlise, diante de uma falsa oposio entre as

    noes de normal e patolgico, pois, recombinando os termos, outra concluso lgica que

    poderamos extrair desse raciocnio se estou saudvel/normal, no estou doente/no porto

    patologia // se no estou doente/no porto patologia, estou saudvel/normal no pode ser

    aceita como um fato total e absoluto, uma vez que a noo de sade no pode ser reduzida

    mera ausncia de doenas.

    Outro aspecto interessante, apontado por Canguilhem (1982), diz respeito a uma

    perspectiva adotada no sculo XIX acerca das noes de normal e patolgico que parece, de

    certo modo, permanecer na atualidade. Vejamos:

    fizemos tambm questo de apresentar nossas concepes em ligao com o exame crtico de uma tese, geralmente adotada no sculo XIX, relativa s relaes entre o normal e o patolgico. Trata-se de uma tese segundo a qual os fenmenos patolgicos so idnticos aos fenmenos normais correspondentes, salvo pelas variaes quantitativas. (CANGUILHEM, 1982, p.17).

    Essa tese nos parece particularmente interessante por remeter a um pensamento,

    bastante recorrente nos discursos sobre sade de nossos dias, de que, em meio ao conjunto de

    experincias possveis, nem boas, nem ms, nem salutares ou destrutivas em si mesmas, mas

    avaliadas de modo negativo ou positivo de acordo com sua intensidade, uma atitude de

    moderao6 seria a chave do bem-viver. Esse raciocnio, por sua vez, nos leva a um bvio

    desdobramento: desejvel, portanto, ser tudo aquilo que fuja aos extremos, que corresponda

    mdia, norma, o que nos leva outra concluso: para sermos saudveis, precisamos ser

    normais. Mas, que implicaes esto contidas nessa assertiva?

    Acompanhadas por Castro (2009, p.309), vejamos a discusso proposta por Foucault

    sobre o poder e sua relao com a norma em nossa sociedade: o poder, para Foucault, na sua

    6 Beba com moderao a frase que se l/ouve em todos os comerciais impressos e audiovisuais das campanhas de venda de bebidas alcolicas em nosso pas, o que, diante dos tantos apelos ao consumo seja pela profuso de marcas quanto pela frequncia de exposio s peas comerciais, torna-se, ironicamente, uma advertncia incua.

  • 17

    forma moderna, se exerce cada vez mais em um domnio que no o da lei, e sim o da norma

    e, por outro lado, no simplesmente reprime uma individualidade ou uma natureza j dada,

    mas, positivamente, a constitui, a forma. Assim, para Foucault (2001):

    a norma no se define como uma lei natural, mas pelo papel de exigncia e coero que capaz de exercer em relao aos domnios nos quais se aplica. A norma portadora, consequentemente, de uma pretenso de poder. A norma no , sequer ou simplesmente, um princpio de inteligibilidade; ela um elemento a partir do qual determinado exerccio de poder encontra-se fundado e legitimado. Conceito polmico, dizia Canguilhem. Talvez se pudesse dizer: poltico. (FOUCAULT, 2001, p.62).

    Para Canguilhem (2005, p.41), um corpo humano vivo aquele cuja sade se

    expressa na qualidade dos poderes que o constituem, em interao com um ambiente que

    lhe demanda contnua reflexo sobre os mesmos quanto ao seu alcance e limites.

    Assim, para Canguilhem (2005, p.42), esse corpo , ao mesmo tempo, um dado e

    um produto. Sua sade , ao mesmo tempo, um estado e uma ordem. Por corpo como dado,

    o autor entende o efeito de um patrimnio gentico, um gentipo, ao passo que a noo de

    corpo como produto, apontaria para o efeito da relao entre esse gentipo e o meio que o

    circunda, resultando, de acordo com os diferentes ambientes, variados fentipos.

    E aqui temos uma contribuio valiosssima do autor para as reflexes que

    atravessam o campo da sade e da educao em sade, contribuio essa que estar na base

    do pensamento foucaultiano e merece ser citada integralmente:

    O corpo um produto, visto que sua atividade de insero em um meio caracterstico, seu modo de vida escolhido ou imposto, esporte ou trabalho, contribui para dar forma a seu fentipo, ou seja, para modificar sua estrutura morfolgica e, por conseguinte, para singularizar suas capacidades. neste ponto que um certo discurso encontra ocasio e justificativa. Esse discurso o da Higiene, disciplina mdica tradicional, doravante recuperada e travestida de uma ambio sociopoltico-mdica de regulamentar a vida dos indivduos. A partir do momento que a palavra 'sade' foi dita a respeito do homem como participante de uma comunidade social ou profissional, seu sentido existencial foi ocultado pelas exigncias de uma contabilidade. [...] Mas sade comeava a perder sua significao de verdade para receber uma significao de facticidade. Ela se tornava objeto de um clculo. Desde ento, conhecemos o checkup. [...] A ampliao histrica do espao no qual se exerce o controle administrativo da sade dos indivduos desembocou, nos dias de hoje, em uma Organizao Mundial da Sade, que no podia delimitar seu domnio de interveno sem que ela mesma publicasse sua prpria definio de sade. Ei-la: a sade um estado de completo bem-estar fsico, moral e social, no consistindo somente na ausncia de enfermidade ou de doena. (CANGUILHEM, 2005, p.42).

    Considerando com Caponi (1997, p.288), que Canguilhem tomou a noo de sade

    como objeto de problematizao filosfica, discutindo o binmio normal/patolgico e, a

  • 18

    partir da, a histria das cincias biomdicas, relevante que nos debrucemos sobre a maneira

    como o filsofo conceitua aquela noo em suas obras, ainda mais ao lembrarmos que

    Foucault, pensador que balizar nossos esforos de anlise do material emprico, teve

    Canguilhem como um de seus mais importantes interlocutores.

    Canguilhem (2005) nos lembra que, desde a antiguidade, a noo de sade e,

    consequentemente, as prescries do que poderia ser considerado saudvel, eram temas

    comuns nas conversaes populares antes mesmo de Hipcrates, personagem que marcaria o

    surgimento da medicina como saber cientfico no mundo ocidental. Contudo, para aquele

    autor, a validao de qualquer noo de sade requer, como pano de fundo, um saber

    institudo que a fundamente, e tantas haver quantos forem os pensadores dispostos a refletir

    sobre ela.

    Chama a ateno, de imediato, o alinhamento entre as noes de sade e silncio

    dos rgos (CANGUILHEM, 2005, p.35), sendo a formulao de Diderot (apud

    CANGUILHEM, 2005), datada de 1751, a que talvez melhor o descreva:

    quando estamos bem, nenhuma parte do corpo nos informa de sua existncia; se alguma delas nos adverte por meio da dor , com certeza, porque estamos mal; se for por meio do prazer, nem sempre certo que estejamos melhor. (DIDEROT, 1751 apud CANGUILHEM, 2005, p.36).

    Interessante observar que, para este filsofo, nem mesmo o prazer, sensao oposta

    dor, entendido como reflexo de sade. Tal concepo conduz no s a uma equivalncia

    entre sade e ausncia de doenas, mas, como se pode notar, at mesmo de sensaes

    prazerosas, o que parece condizente com o dito por Leibniz (apud CANGUILHEM, 2005,

    p.36, grifo nosso) em 1710, que, discutindo teses de outro autor sobre o bem e o mal,

    indaga: consiste o bem fsico unicamente no prazer? Em resposta prpria pergunta, afirma

    que o bem fsico pode ser considerado como um estado mediano, tal como o da sade,

    acrescentando: estamos muito bem quando no temos nenhum mal; um grau de ponderao

    nada ter da loucura, o que parece conferir algum grau de sinonmia entre as noes de prazer

    e loucura, inscrevendo-as no registro do excesso, j que exigem ponderao. E aqui, mais

    uma vez, remontamos ao culto moderao de nossos tempos.

    Embora no seja nossa pretenso aprofundar tais reflexes neste momento,

    interessante, e mais do que isso, necessrio, pontuar que em 1942, Paul Valry (apud

    CANGUILHEM, 2005, p.35, grifo nosso) tenha proposto que a sade o estado no qual as

    funes necessrias se realizam insensivelmente ou com prazer, o que estaria em oposio s

  • 19

    ideias de Leibniz e Diderot, concebidas no sculo XVIII, mas, de algum modo, em nosso

    entendimento, ainda presentes na atualidade. Isso aponta para a extrema riqueza do tema, bem

    como para a pertinncia de uma visada que admita superposies discursivas contraditrias

    num mesmo tempo e lugar, contrariando perspectivas lineares, evolutivas, o que, segundo

    Fischer (2003), estaria em consonncia com as ideias de Foucault. Para a autora, inspirada

    pelo pensamento do filsofo,

    [...] o trabalho dos pesquisadores no ser ir atrs das origens, dos comeos, de onde tudo um dia teve sua ecloso, e ir marcando as sucessivas transformaes e evolues. Datas e locais no so pontos de partida nem dados definitivos, mas elementos que compem a rede das condies de produo de um discurso que ali, naquele lugar, estabelece uma ruptura, produz um acontecimento dspar, uma descontinuidade em um determinado campo de saber. (FISCHER, 2003, p.384).

    Canguilhem (2005), ao traar o percurso do interesse pelo tema da sade no ocidente,

    comenta:

    a sade um tema filosfico frequente na poca clssica e no sculo das Luzes, abordado quase sempre do mesmo modo, com referncia doena, cuja iseno quase sempre considerada como o equivalente da sade. (CANGUILHEM, 2005, p.36).

    E cita Kant como um dos filsofos que dedicaram maior ateno a esse tema,

    distinguindo-se dos demais por posicionar a sade como um objeto fora do campo do saber,

    conferindo-lhe o status de conceito vulgar, no no sentido pejorativo comumente atribudo

    ao termo, mas no sentido de estar ao alcance de todos, no tendo em si, por isso, estatuto

    cientfico (CANGUILHEM, 2005, p.37). Tal argumentao se torna possvel porque o

    filsofo complexifica o debate ao introduzir uma dimenso subjetiva na discusso sobre a

    sade, trazendo tona a questo do sentir-se bem em oposio do saber-se bem.

    Acompanhemos o pensamento kantiano, datado de 1798:

    podemos nos sentir bem de sade, isto , julgar a partir do sentimento de bem-estar vital, mas nunca se pode saber se estamos bem de sade [...]. A ausncia do sentimento (de estar doente) no permite ao homem expressar que est bem, a no ser dizendo que vai bem em aparncia. (CANGUILHEM, 2005, p.37, grifo do autor).

    Guardemos essa importante reflexo e retrocedamos ainda mais no tempo a fim de

    dialogar com o filsofo que, segundo Canguilhem (2005) encabearia essa srie de

    filsofos: Ren Descartes. Escreve este, em 1649:

  • 20

    ainda que a sade seja o maior de todos os nossos bens concernentes ao corpo, ele , contudo, aquele sobre o qual fazemos o mnimo de reflexo e apreciamos menos. O conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos, no pensamos mais nela. (DESCARTES, 1649 apud CANGUILHEM, 2005, p.37).

    E aqui reconhecemos a semente do alinhamento entre as noes de sade e silncio,

    antes referido.

    Para Nietzsche, ainda de acordo com Canguilhem (2005, p.39), sade resume [...]

    fiabilidade, retido e completude, reflexo proposta em 1884, momento em que os

    fisiologistas j teriam estabelecido a existncia de aparelhos e de funes de regulaes

    orgnicas. interessante observar, contudo, que nos tratados de eminentes fisiologistas do

    incio do sculo XX, a palavra sade no figura em seus ndices remissivos, mas, sim,

    termos como homeostase, regulao e stress. E Canguilhem (2005, p.39) indaga: ser

    que se deve ver nisso um novo argumento para recusar ao conceito de sade a qualidade de

    cientfico?

    Vale a pena destacar que, a despeito do termo mecanismo ser frequentemente

    utilizado para explicar a maneira como uma determinada funo orgnica ocorre, Starling

    (apud CANGUILHEM, 2005, p.40), fisiologista responsvel pela publicao, em 1912, do

    tratado intitulado Princpios de Fisiologia Humana, adverte os estudantes sobre a

    necessidade de no se tom-lo muito a srio, j na introduo geral da obra. Assim, embora

    Descartes (apud CANGUILHEM, 2005, p.37) tenha se destacado pela proposio de uma

    concepo mecanicista das funes orgnicas, at mesmo ele se recusa a assimilar a sade

    como um efeito necessrio de relaes de tipo mecnico [...] no h sade de um mecanismo.

    (CANGUILHEM, 2005, p.40).

    Ou, dito de outra forma, com base em Caponi (1997, p.289), a excluso do conceito

    de sade do mbito do discurso cientfico, deriva da recusa em aceitar a sade como um efeito

    de relaes mecnicas entre as partes constitutivas do organismo, a despeito das funes

    orgnicas serem descritas com base na idia de mecanismo (CANGUILHEM, 2005, p.37).

    Tal recusa baseia-se na dimenso subjetiva contida na noo de sade, inapreensvel pela

    cincia em sua sanha de objetividade. Assim, nas palavras de Caponi (1997):

    esta exclusin explcita del concepto de salud del mbito que es proprio del discurso cientfico, resulta ser altamente significativa. Si nos preguntamos por los motivos de tal exclusin veremos que se deriva necesariamente del hecho de negarnos a aceptar esa antigua y arraigada asociacin por la cual se vincula la salud del cuerpo con un efecto necesario de tipo mecnico. Si nos negamos a aceptar la asociacin cuerpo-mecanismo y pensamos que para una mquina su estado de funcionamento no es salud y que su desregulacin nada tiene que ver con la enfermedad, entonces deberemos excluir del concepto de salud las exigencias de clculo (de contabilidad)

  • 21

    que poco a poco absorbieron su sentido individual y subjetivo. (CAPONI, 1997, p. 289-90).

    Caponi (1997) sinaliza que a inevitabilidade de remeter s noes de dor e prazer

    quando se fala de sade o que d o carter de subjetividade experincia humana,

    constituindo, assim, esse algo que sempre escapar s investidas de regulao da medicina.

    Nas palavras da autora:

    ocurre que cuando hablamos de salud no podemos evitar las referencias al dolor e al placer y de ese modo estamos introduciendo, sutilmente, el concepto de cuerpo subjetivo. Entonces, no podremos dejar de hablar en primera persona all donde el discurso mdico se obstina en hablar en tercera persona. (CAPONI, 1997, p.290, grifo da autora).

    Contudo, importante ressaltar que, ainda de acordo com Caponi (1997, p.290),

    Canguilhem no pretende defender um individualismo radical, ou seja, prope que no se

    deva entender o corpo subjetivo como uma anttese do corpo concebido pela cincia. Bem

    ao contrrio: para que aquele se sustente faz-se necessria a contribuio dos saberes por ela

    produzidos. Acompanhemos o filsofo:

    o reconhecimento da sade como verdade do corpo, no sentido ontolgico, no somente pode, mas deve admitir a presena, em termos precisos, como controle e muro protetor da verdade no sentido lgico, ou seja, da cincia. (CANGUILHEM, 2005, p.48).

    E acrescenta: certamente, o corpo vivido no um objeto, mas, para o homem,

    viver tambm conhecer (CANGUILHEM, 2005, p.48). Vale incluir, ainda, a respeito dessa

    questo, mais uma contribuio de Caponi (1997):

    esa salud sin idea presente y opaca, es de todos modos lo que valida y soporta las intervenciones que el saber mdico puede sugerir como artficios para sustentarla. Si hablamos de sugerir es porque es necesario que el saber mdico se disponga a aceptar que cada uno de nosotros lo instruya sobre aquello que solo yo estoy capacitado para decirle. Mi mdico ser, entonces, aquel que me auxilie en la tarea de dar um sentido, que para mi no es evidente, a ese conjunto de sntomas que de manera solitaria no consigo decifrar. Un verdadero mdico, dir Canguilhem, ser aquel que acepte ser un exgeta ms que un conocedor. (CAPONI, 1997, p.209).

    Castro (2009, p.310) assinala que nossa sociedade, entendida como uma sociedade

    de normalizao uma sociedade fundamentalmente medicalizada. Mas, o que isso

    significa? Significa dizer que a medicina se constitui em saber determinante para a formao

    de uma sociedade regida pela norma e no mais pela lei, ou nas palavras de Foucault (in

  • 22

    VARELA, 1996, p.76):

    si bien es cierto que los juristas de los siglos XVII e XVIII inventaron um sistema social que debera ser dirigido por un sistema de leyes codificadas, puede afirmarse que en el siglo XX los mdicos estn inventando una sociedad, ya no de la ley, sino de la norma. Los que gobiernan en la sociedad ya no son los cdigos sino la perpetua distincin entre lo normal y lo anormal, la perpetua empresa de restituir el sistema de la normalidad.

    Ainda com Foucault (in VARELA, 1996, p.76), compreendemos que a medicina de

    nossos tempos est dotada de um poder autoritrio com funciones normalizadoras que van

    ms all de la existencia de las enfermedades y de la demanda del enfermo. Ou, dito de outra

    forma, a medicina impe-se aos indivduos como um ato de autoridade, o domnio de

    interveno da medicina j no concerne apenas s enfermidades, mas vida em geral.

    (CASTRO, 2009, p.300).

    Importante, neste momento, sinalizar que a questo do poder est no cerne das

    problematizaes de Michel Foucault desde sempre. Sua obra, sistematizada em trs grandes

    fases arqueolgica, genealgica e tica conferiu maior destaque a essa questo no perodo

    genealgico. Contudo, mais do que dar visibilidade a condies histricas que forjam

    determinadas configuraes de poder, Foucault, particularmente na ltima fase de sua obra,

    assinala que no estamos inelutavelmente enredados nas tramas de um poder substantivo,

    encarnado em instituies, sujeitados a relaes de fora assimetricamente perversas,

    produzidas pelo modus operandi capitalista.

    Roberto Machado (2008, p.xiv), na introduo escrita para Microfsica do Poder,

    coletnea de reflexes de Michel Foucault sobre o poder na modernidade, esclarece:

    o interessante da anlise [de Foucault] justamente que os poderes no esto localizados em nenhum ponto especfico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ningum escapa, a que no existe exterior possvel, limites ou fronteiras. Da a importante e polmica idia de que o poder no algo que se detm como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou no. No existem de um lado os que tm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder no existe; existem prticas ou relaes de poder. O que significa dizer que o poder algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma mquina social que no est situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. No um objeto, uma coisa, mas uma relao. E esse carter relacional do poder implica que as prprias lutas contra seu exerccio no possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada est isento de poder. Qualquer luta sempre resistncia dentro da prpria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ningum pode escapar: ele est sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relaes de foras. E como onde h poder, h resistncia, no existe propriamente o lugar de resistncia, mas pontos mveis e transitrios que tambm se distribuem por toda a estrutura social.

  • 23

    Ajustando o foco, Castro (2009, p.324) adverte que o tema do poder , em

    realidade, para Foucault, um modo de enfrentar o tema do sujeito, e, corroborando o dito,

    temos as palavras do prprio pensador: no o poder, mas o sujeito, que constitui o tema

    geral de minha pesquisa (FOUCAULT in DREYFUS; RABINOW, 1995, p.232). Pensamos

    que esse ajuste no foco de relevncia capital por centrar a discusso naquilo que, de fato,

    importa: a potncia transformadora do humano, inspirao para aes inventivas nos mais

    variados campos, dentre os quais, o da educao, sade, e da educao em sade, recorte que

    particularmente nos interessa.

    Neste momento, vale remontarmos s origens do poder sobre a vida para, a partir

    da, compreendermos como nossa sociedade vem se tornando, dia a dia, cada vez mais

    organizada em torno dos saberes que do sustentao s prticas mdicas, estritas e amplas.

    Segundo Foucault (2006a, p.151), o poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do

    sculo XVII e se fundamentou em dois polos no antagnicos, ao contrrio, inter-

    relacionados: as disciplinas do corpo e as regulaes da populao ou, dito de outro

    modo, a antomo-poltica do corpo e a biopoltica da populao.

    De acordo com o filsofo, o primeiro polo a se constituir concebia o corpo como

    mquina: era necessrio extrair, docilmente, o mximo de utilidade dos corpos com vistas ao

    seu aproveitamento econmico e, para tal, se faziam imprescindveis formas de controle,

    procedimentos de poder as disciplinas que configuravam a dita antomo-poltica do

    corpo humano. O segundo polo, desenvolvido a partir da metade do sculo XVIII, se

    concentrou no corpo-espcie, ou seja, no corpo como suporte dos processos biolgicos,

    entendidos como os nascimentos, as mortes, o nvel de sade, a longevidade, controlados por

    mecanismos reguladores, a chamada biopoltica. Acompanhemos a sntese proposta pelo

    autor:

    as disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem os dois plos em torno dos quais se desenvolveu a organizao do poder sobre a vida. A instalao, durante a poca clssica desta grande tecnologia de duas faces anatmica e biolgica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja funo mais elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. A velha potncia da morte em que se simbolizava o poder soberano agora, cuidadosamente, recoberta pela administrao dos corpos e pela gesto calculista da vida. Desenvolvimento rpido, no decorrer da poca clssica, das disciplinas diversas escolas, colgios, casernas, atelis; aparecimento, tambm, no terreno das prticas polticas e observaes econmicas, dos problemas de natalidade, longevidade, sade pblica, habitao e migrao; exploso, portanto, de tcnicas diversas e numerosas para obterem a sujeio dos corpos e o controle das populaes. Abre-se, assim, a era de um biopoder. (FOUCAULT, 2006a, p.152, grifo do autor).

  • 24

    Castro (2009) tambm nos oferece uma compreenso bastante clara sobre o que

    consiste esse poder em torno vida, o biopoder:

    a partir da poca clssica, assistimos no Ocidente a uma profunda transformao dos mecanismos de poder. Ao antigo direito do soberano de fazer morrer ou deixar viver se substitui um poder de fazer viver ou abandonar morte. O poder, a partir do sculo XVII, organizou-se em torno vida, sob duas formas principais que no so antitticas, mas que esto atravessadas por uma rede de relaes. Por um lado, as disciplinas, uma antomo-poltica do corpo-humano. Elas tm como objeto o corpo individual, considerado como uma mquina. Por outro lado, a partir de meados do sculo XVIII, uma biopoltica da populao, do corpo-espcie. Seu objeto ser o corpo vivente, suporte dos processos biolgicos (nascimentos, mortalidade, sade, durao da vida). (CASTRO, 2009, p.57-58, grifo do autor).

    Esse investimento sobre a vida se intensifica na medida em que, a partir do sculo

    XX

    houve uma grande expanso da medicina [...]. Na maioria dos pases, houve melhoria nos indicadores de sade, na longevidade, na mortalidade infantil e materna, de tal modo que a sade e a medicina so sempre anunciadas como prioridades em qualquer governo, independente de sua orientao poltica. A medicina torna-se, cada vez mais, parte do dia a dia da maioria das pessoas e oferece uma explicao e uma interveno para as mais diversas situaes como o sono, o sexo, a alimentao, as emoes, entre outras. (POLI NETO; CAPONI, 2010, p.35).

    A essa investida operada pela medicina sobre a vida humana, denominamos

    medicalizao. No entanto, de acordo com Poli Neto e Caponi (2010, p.36), este um termo

    que pode ser entendido de maneiras diversas, havendo, contemporaneamente, uma pliade de

    definies como: crescimento em nmero de estabelecimentos [...] ou em profissionais

    mdicos; maior produo, variedade e distribuio de medicamentos ou, ainda, a

    incorporao de temas pela racionalidade biomdica; o controle dos indivduos atravs da

    medicina, sendo a ltima visada a que nos interessa.

    Considerando a existncia de outros autores, tais como Illich e Freidson (POLI

    NETO; CAPONI, 2010, p.35), igualmente interessados em debater o carter institucional da

    medicina de um ponto de vista crtico, gostaramos de enfatizar que a noo de medicalizao

    adotada neste trabalho se atm ao entendimento proposto por Foucault, qual seja: o termo

    medicalizao faz referncia a esse processo que se caracteriza pela funo poltica da

    medicina e pela extenso indefinida e sem limites da interveno do saber mdico

    (CASTRO, 2009, p. 299).

    No entender de Poli Neto e Caponi (2010, p. 46) a ideia de medicalizao parece

    ganhar novo impulso com a transformao da sociedade no que se convencionou chamar de

  • 25

    sociedade de risco, sendo notrio que vivemos pressionados por uma hipervalorizao da

    ideia de risco aplicada ao campo da sade, diferente da tradicionalmente associada a acidentes

    naturais ou vontade divina (POLI NETO; CAPONI, 2010, p. 47).

    Se, no sculo passado, o sentido do termo risco, utilizado em ambientes de aposta,

    comportava uma dimenso de benefcio, ao definir no s as chances de perdas, mas, tambm,

    de ganhos nos ditos jogos de azar, atualmente, essa noo, aplicada a outros contextos,

    remete, de modo prevalente, a desenlaces negativos (CASTIEL; GUILAM; FERREIRA,

    2010, p. 15). Ainda nas palavras dos autores:

    no Dictionary of Epidemiology [Dicionrio de Epidemiologia] (LAST, 1989), o verbete risco faz meno probabilidade de ocorrncia de um evento (mrbido ou fatal) e tambm funciona como um termo no tcnico que inclui diversas medidas de probabilidade quanto a desfechos desfavorveis. A prpria ideia de probabilidade pode ser lida de dois modos: intuitivo, subjetivo, vago, ligado a algum grau de crena, isto , uma incerteza que no se consegue medir; ou objetivo, racional, mensurvel mediante tcnicas probabilsticas incerteza capaz de ser medida. Nesta segunda acepo, est calcada a abordagem dos fatores de risco, isto , marcadores que visam predio de morbi-mortalidade futura. Deste modo, poder-se-ia identificar, contabilizar e comparar indivduos, grupos familiares ou comunidades em relao a exposies a ditos fatores (j estabelecidos por estudos prvios) e proporcionar intervenes preventivas.

    interessante observar o quanto essa atitude de classificao e controle do

    comportamento de grupos sociais visando preveno de males sade, to comum em

    nossos dias, se assemelha adotada nos sculos XVI e XVII, quando da implementao do

    modelo mdico e poltico da quarentena, plano de urgncia que se constituiu no sonho

    poltico-mdico da boa organizao sanitria das cidades, no sculo XVIII, tal como

    sinalizado por Foucault (in MACHADO, 2008, p. 87-8). Acompanhemos parte de sua

    descrio dos procedimentos implicados no plano de urgncia:

    A cidade devia ser dividida em bairros que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para isso. Esse chefe de distrito tinha sob suas ordens inspetores que deviam durante o dia percorrer as ruas [...]. Esses vigias de rua ou de bairro deviam fazer todos os dias um relatrio preciso ao prefeito da cidade para informar tudo que tinham observado [...]. Em todas as ruas por onde passavam, pediam a cada habitante para se apresentar em determinada janela, de modo que pudessem verificar, no registro-geral, que cada um estava vivo. Se por acaso, algum no aparecia, estava, portanto, doente, tinha contrado a peste, era preciso ir busc-lo e coloc-lo fora da cidade em enfermaria especial. Tratava-se, portanto, de uma revista exaustiva dos vivos e dos mortos. (FOUCAULT in MACHADO, 2008, p.88).

    Em nossos tempos, a revista exaustiva recai sobre os vivos e seus estilos de vida. A

    preocupao no reside apenas nos riscos que indivduos possam representar para outros

  • 26

    indivduos, como no caso dos envolvidos na transmisso de doenas infecto-contagiosas, mas,

    sim, nos riscos que possam representar para si mesmos.

    Considerando o modo como a medicina tem investido sobre as populaes, em

    particular a de idosos, tendo em vista seu surpreendente incremento, sobretudo em nosso pas,

    nos arriscamos a considerar que tem havido uma passagem de um modelo de excluso, como

    o suscitado pela lepra na Idade Mdia, para o de incluso, aplicado peste nos sculos XVI e

    XVII (FOUCAULT, 2002, p.59; MACHADO, 2008, p.88-9). Ou, dito melhor, o modelo de

    excluso, aplicvel aos velhos quando ainda no se constituam em problema social

    (ALVES, 2001, p.167), vem dividindo espao com o modelo da incluso, posto que o

    aumento da populao idosa exige dos governos medidas cada vez mais rigorosas de controle

    dos agravos sade frequentes nessa faixa etria medidas biopolticas, portanto.

    Voltando pergunta escolhida para dar ttulo a essa subseo o saudvel ser

    normal? se considerarmos que o envelhecimento tem se tornado um fenmeno cada vez

    mais normal em nossos tempos porque crescente, caso substitussemos os termos,

    poderamos, logicamente, chegar a uma outra indagao: ser saudvel ser velho? E

    pensamos que essa seja uma formulao instigante, se pensarmos que o empenho biopoltico

    em promover a ideia de envelhecimento saudvel parece consistir numa operao de

    valorizao da velhice.

    Mas, de qual velhice falamos, neste caso? Daquela que, por suas condies scio-

    econmicas favorveis possa manter em movimento as engrenagens de nossa sociedade de

    consumo, ou da outra, crescente em nossos servios pblicos de emergncia mdica, que,

    esqueltica, antecipa o destino de todos ns? Eis um dos grandes desafios da educao em

    sade em nosso pas.

  • 27

    2.2 Envelhecimento saudvel: desafios para o campo da educao em sade

    Percebemos, em nossos tempos, um massivo investimento na idia de que envelhecer

    de modo saudvel conduziria experincia da velhice como a melhor idade a ser vivida.

    Como sinalizou Alves (2001), embora a velhice tenha ganhado visibilidade social a

    partir da instituio da aposentadoria, em meados do sculo XIX, com a chegada do sculo

    XX que transformaes cruciais quanto aos sentidos atribudos ao envelhecer so operadas.

    Nas palavras da autora:

    O sculo XX vai trazer uma srie de transformaes que informaro uma mudana de tom no tratamento da velhice (DEBERT, 1992). A associao imediata entre pauperismo e velhice comear, principalmente a partir dos anos 60, a dividir terreno com uma imagem de velhice conjugada ao hedonismo, ao prazer e realizao pessoal. [...] Essas novas formas de consumo e cuidado para a velhice comprometem-se muito mais com a idia de uma independncia e autonomia do idoso, termo que afasta o uso, que se torna pejorativo, da categoria velho. Esse nome fica destinado ao outro: mais pobre, dependente, doente. (ALVES, 2001, p.167-8).

    Importante relembrar, ainda de acordo com Alves (2001, p.166), que at a dcada de

    60 do sculo XX, o envelhecimento era tratado como assunto exclusivamente mdico,

    tendo a gerontologia se constitudo como campo interdisciplinar de saberes e prticas voltados

    para a gesto do envelhecimento no intuito de dominar seus efeitos negativos: era preciso

    gerir a perda de habilidades fsicas, mentais e sociais de tal modo a produzir uma velhice

    saudvel.

    No entanto, como colocado por Groisman (2002), a gerontologia padece de

    inconsistncias internas relacionadas a dificuldades em estabelecer seu campo e definir seu

    objeto, dificuldades essas que acabam por comprometer seu to almejado estatuto de

    disciplina cientfica. Segundo esse autor, tais dificuldades estariam calcadas na

    impossibilidade de serem delimitadas as fronteiras entre o normal e o patolgico na velhice

    (GROISMAN, 2002, p.61), decorrendo da a importncia de resgatarmos o pensamento de

    Canguilhem sobre tais noes, tal como abordado na subseo anterior.

    A essa altura, pensamos no ser difcil perceber o entrelaamento entre tais questes

    e o campo da educao em sade, uma vez que prticas educativas, no caso as concernentes

    sade, fundam-se em normas, regras balizadoras de comportamentos considerados saudveis7,

    prticas intrinsecamente polticas.

    7 No por acaso a Rede Globo de Televiso lanou recentemente programa intitulado Bem Estar, cujas chamadas no portal de notcias da emissora so bastante reveladoras do investimento biopoltico que busca

  • 28

    Importante, de antemo, um esclarecimento: no se trata de demonizar as prticas

    educativas em sade, reduzindo-as a um amontoado de prescries a servio do

    capetalismo8, embora tal ingrediente esteja presente na receita. No pretendemos

    denunciar uma suposta luta do bem contra o mal ou vice-versa. Aprendemos com Foucault

    que no h posies definitivamente alcanadas, mas um perptuo jogo de foras que

    promove a cambialidade do que pode ser considerado bem e mal, de acordo com as

    configuraes scio-histricas em questo, o que, tal como tantos desenhos de Escher9, so

    noes indiscutivelmente relativas e condicionadas pelos regimes de verdade que ordenam a

    realidade de um certo modo, em cada tempo e lugar.

    E diante da fugacidade da vida contempornea, tal como apontado por Bauman

    (2005), consideramos importante levar em conta a noo de identidade proposta por Hall

    (2006), que observa o declnio da concepo de sujeito unificado, prprio das sociedades

    modernas, diante da pluralidade de identidades possveis face multiplicao dos sistemas

    de significao e representao cultural (HALL, 2006, p.13). Assim, a idia de uma

    identidade nica, slida e coerente seria, na atualidade, um mito, uma fantasia conveniente

    para o reasseguramento pessoal frente ao ritmo vertiginoso das mudanas sociais que

    caracterizam a contemporaneidade, ou, no seu dizer, a modernidade tardia (HALL, 2006,

    p.7).

    De acordo com Hall (2006), na medida em que o mundo se complexifica, emerge a

    concepo de sujeito sociolgico. Para os defensores dessa corrente de pensamento, o

    indivduo no seria suficiente em si mesmo, mas constituiria sua identidade na interao com

    os demais. Prevalece a idia de um ncleo, uma essncia interior, porm o sujeito estaria

    em constante processo de formao e transformao, ao ser tocado pelos mundos culturais

    exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2006, p.11, grifo do autor).

    modelar o processo de envelhecimento de nossa populao face s projees demogrficas que apontam para o expressivo aumento do nmero de idosos no apenas em nosso pas, mas no mundo: otimismo, autoeficcia e autoestima so chave da longevidade, diz mdico; ter autoestima uma forma de envelhecer bem; geriatra e preparador fsico tiram dvidas da internet sobre exerccios; especialistas tiram dvidas sobre envelhecimento saudvel; ficar parado envelhece. Disponvel em:

    . Acesso em: 07 mar. 2011. 8 Provocativa referncia ao capitalismo, cunhada pelo Profeta Gentileza, personagem que habita o imaginrio carioca pelos numerosos pensamentos registrados nos pilares de diversos viadutos da cidade. Disponvel em: . Acesso em: 07 mar. 2011. 9 Maurits Cornelis Escher, artista grfico holands, nascido no final do sculo XIX, famoso por trabalhos que criam efeitos de iluso de ptica.

  • 29

    Na modernidade tardia, contudo, ainda segundo o autor, essa noo da existncia de um

    ncleo, equivalente a uma espcie de eu real, que estaria em questo. Em suas palavras:

    o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estvel, est se tornando fragmentado; composto no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes contraditrias ou no-resolvidas. [...] O prprio processo de identificao, atravs do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisrio, varivel e problemtico. (HALL, 2006, p.12).

    Antes, porm, de seguirmos adiante, consideramos vlida uma pequena digresso

    sobre algumas questes relativas definio do campo da educao em sade, seguida de um

    breve histrico de seu percurso no Brasil, para, por fim, problematizarmos a ideia de

    produo da prpria sade (SANTOS; WESTPHAL, 1999), contida no iderio do

    envelhecimento saudvel, em tempos cuja liquidez (BAUMAN, 2005) nos demanda

    contnuas elaboraes de nossas cada vez mais provisrias identidades.

    *

    Candeias (1997, p.210) assinala que o uso indistinto dos termos educao e

    promoo em sade tem gerado prejuzos para os debates tcnicos relativos s intervenes

    sociais na rea da sade pblica, particularmente nos pases em desenvolvimento.

    A autora ressalta que duas das definies operacionais mais amplamente aceitas por

    especialistas em sade pblica, concebidas por Green e Kreuter (CANDEIAS, 1997, p.210),

    definem educao em sade, grosso modo, como quaisquer combinaes de experincias

    de aprendizagem delineadas com vistas a facilitar aes voluntrias conducentes sade, ao

    passo que promoo em sade, ainda em suas palavras, seria, na viso dos referidos autores,

    uma combinao de apoios educacionais e ambientais que visam a atingir aes e condies

    de vida conducentes sade.

    primeira vista, podemos perceber como uma das possveis marcas distintivas de

    tais conceitos, sua abrangncia. Vale a pena conferir, ainda nas palavras de Candeias (1997),

    um cotejamento mais elaborado dessas noes:

    muitos so os princpios e os conceitos que fundamentam a prtica da educao em sade e da promoo em sade. Sem cair em armadilhas reducionistas, a educao em sade (no confundir com informao em sade) procura desencadear mudanas de comportamento individual, enquanto que a promoo em sade, muito embora inclua sempre a educao em sade, visa a provocar mudanas de comportamento organizacional, capazes de beneficiar a sade de camadas mais amplas da populao, particularmente, porm no exclusivamente, por meio da legislao. (CANDEIAS, 1997, p.211, grifo da prpria).

  • 30

    A ttulo de ilustrao da controvrsia que envolve as definies acima referidas,

    citemos a categorizao proposta por Sutherland e Fulton (ASSIS, 2005, p.5) que toma a

    diviso entre as vertentes individual e coletiva no prprio e mesmo campo da promoo em

    sade. No entendimento desses autores, a primeira vertente estaria comprometida com a

    promoo de hbitos saudveis e a segunda com a instituio de polticas pblicas e

    fortalecimento do poder poltico da populao (ASSIS, 2005, p.6).

    As aes mais abrangentes no campo da promoo em sade corresponderiam s

    iniciativas identificadas com a perspectiva da nova sade pblica, contrastando com o

    enfoque preventivo, empenhado em produzir mudanas de comportamento ou de estilo de

    vida. E aqui, interessante lembrar o que dizem Santos e Westphal (1999):

    o movimento da nova sade pblica [...] busca mtodos adequados nossa realidade poltica, que tornem mais eficientes as aes sociais e ambientais por sade e qualidade de vida. Tal aspecto pressupe abandonar definitivamente o enfoque vertical e paternalista herdado do passado, decorrente de prticas prescritivas dos profissionais de sade, apoiados no biologicismo e no mecanicismo. Supe, por outro lado, o desenvolvimento de novas relaes com o Estado e com a sociedade civil, e o desenvolvimento de novas habilidades dos profissionais para implementar novas prticas. (SANTOS; WESTPHAL, 1999, p.77, grifo dos autores).

    Para Vasconcelos (1998, p.41), autor alinhado perspectiva da educao popular, a

    educao em sade o campo de prtica e conhecimento do setor sade que tem se ocupado

    mais diretamente com a criao de vnculos entre a ao mdica e o pensar e fazer cotidiano

    da populao, definio conquistada ao cabo de dcadas de lutas polticas pelo direito

    universal sade.

    De acordo com o autor (VASCONCELOS, 1998, p.41), at a dcada de 70 do sculo

    passado, a educao em sade em nosso pas esteve pautada pela iniciativa das elites

    polticas e econmicas que dominavam a cena brasileira, ficando, portanto, a reboque de

    seus interesses e dos padres de comportamentos estabelecidos pelas mesmas.

    Entretanto, paradoxalmente, o regime militar imposto pela Revoluo de 1964

    plantou as sementes de ruptura com o modelo acima descrito: com as atenes voltadas para

    a expanso da economia do pas, j que a represso poltica produzia uma paisagem de

    aparente tranquilidade social, o governo negligencia o movimento de resistncia que estava

    sendo engendrado com a participao de variados segmentos sociais nos subterrneos da

    vida poltica e institucional do pas. (VASCONCELOS, 1998, p.41).

    Face reduo dos investimentos do governo nas polticas sociais e o esvaziamento

    dos espaos de luta, tais como partidos e sindicatos, em razo da represso poltica, a

  • 31

    populao, pouco a pouco comea a se mobilizar em nome de seus prprios interesses e

    necessidades. A Igreja Catlica, preservada da represso poltica, apia a mobilizao

    popular, favorecendo parcerias com intelectuais irmanados pelas idias de Paulo Freire. Alm

    desses, profissionais de sade incomodados com as prticas mercantilistas que aambarcavam

    o setor de sade no pas, aumentam o coro dos descontentes. Assim, segundo Vasconcelos

    (1998, p.41), no vazio do descaso do Estado com os problemas populares, vo se

    configurando iniciativas de busca de solues tcnicas construdas a partir do dilogo entre o

    saber popular e o saber acadmico.

    Portanto, nos anos 70, no bojo dos referidos movimentos sociais, que emergem as

    primeiras experincias comunitrias em sade, desvinculadas de qualquer regulao estatal.

    Nesses espaos, profissionais e populao buscam dialogar sobre os problemas vividos com

    base nas especificidades das realidades locais, valorizando a necessidade de apreenso e

    compreenso do contexto social em que vivem luz de seus mltiplos condicionantes de

    ordem poltica, econmica, histrica, cultural na busca de solues para os problemas

    levantados, como to bem ensinou Freire (1987):

    no posso investigar o pensar dos outros, referido ao mundo, se no penso. Mas, no penso autenticamente se os outros tambm no pensam. Simplesmente, no posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros. A investigao do pensar do povo no pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar mgico ou ingnuo, ser pensando o seu pensar, na ao, que ele mesmo se superar. E a superao no se faz no ato de consumir idias, mas no de produzi-las e de transform-las na ao e na comunicao. (FREIRE, 1987, p.101, grifo do autor).

    Contudo, com a democracia poltica e a instituio do SUS na dcada de 80, essas

    experincias de carter local comeam a perder importncia em nome de lutas por mudanas

    mais globais nas polticas sociais (VASCONCELOS, 1998, p.41). A despeito disso,

    profissionais se mantiveram engajados na luta pela incorporao da metodologia da educao

    popular pelo servio pblico, buscando adapt-la complexidade das instituies de sade

    num cenrio urbano que tambm se tornava mais complexo.

    Retrocedendo alguns anos, faz-se importante destacar que, com a Conferncia de

    Alma-Ata, realizada em 1978, a ateno primria em sade ganha prioridade na agenda

    mundial, e com ela, a nfase no estudo das realidades locais para uma melhor adequao das

    prticas de sade. (VASCONCELOS, 1998, p.42). Entretanto, grande parte das prticas

    surgidas nesse contexto se vale dessa recomendao de forma utilitarista e simplificadora,

  • 32

    distorcendo a essncia humanista que animava os mtodos de educao em sade inspirados

    na filosofia de Paulo Freire. Segundo Vasconcelos (1998):

    as prioridades e os conhecimentos educativos necessrios continuam sendo determinados pelo grupo de tcnicos sem se deixar questionar pelas razes, interesses e saberes da populao, s que agora procurando revesti-los espertamente com discursos locais ou associando-os com acontecimentos e crenas daquela populao. Apesar da nova roupagem antropolgica, continuam repetindo o modelo da educao bancria criticado por Freire [...]. (VASCONCELOS, 1998, p.42-3).

    Importante destacar o dizer de Gazzinelli (2005) acerca do descompasso existente

    entre teoria e prtica no campo da educao em sade. Segundo a autora, nas ltimas dcadas

    pde-se perceber um desenvolvimento e reorientao expressivos das reflexes tericas

    e metodolgicas neste campo de estudo (GAZZINELLI, 2005, p.200). Contudo, as prticas

    educativas que vem sendo implantadas, e aqui Gazzinelli (2005, p.200) se refere quelas que

    dizem respeito ao manejo de fatores relacionados a doenas, ainda se encontram fortemente

    calcadas em concepes provenientes da psicologia comportamental, a despeito das

    contribuies de outros saberes, notadamente os das cincias sociais contemporneas.

    interessante observar, ainda com Gazzinelli (2005, p.201), que embora tenha

    havido uma clara mudana no discurso oficial da educao em sade, de uma perspectiva

    tradicional baseada na imposio de modelos para uma abordagem voltada para a participao

    comunitria, as diretrizes da educao para a sade sustentam, paradoxalmente, um discurso

    distanciado da preconizada comunho entre os saberes acadmico e popular, tendo por

    inteno ntida reforar padres de sade concebidos pelo governo para a populao

    (GAZZINELLI, 2005, p.201).

    Em defesa de uma prtica educativa no utilitarista, diz a autora: hoje se sabe que

    h um trabalho educativo a ser feito, que extrapola o campo da informao, ao integrar a

    considerao de valores, costumes, modelos e smbolos sociais que levam a formas

    especficas de condutas e prticas (GAZZINELLI, 2005, p.202, grifo nosso).

    Somando ideias com Gazzinelli (2005), Miranda, Schall e Modena (2007, p.17)

    pontuam que a sociedade, atualmente, apresenta demandas scio-educacionais que

    ultrapassam os limites formais e regulares da escola, convocando a educao a propor

    abordagens no-formais para a discusso de polticas pblicas, e a fomentar a insero da

    sociedade civil como agente de transformaes sociais.

    Considerar o potencial dos espaos educativos no-formais, especialmente no que diz

    respeito ao tratamento de temas que exijam reflexo crtica sobre questes que envolvam

  • 33

    aspectos de ordem subjetiva, como o tema dessa pesquisa, no implica, contudo, no descarte

    da possibilidade de trat-los em espaos educativos formais. Exemplo disso a pesquisa de

    Carvalho e Galvo (2003) sobre o tema do envelhecimento em instituies escolares.

    A matria, portanto, se presta a debate nos mais variados mbitos podendo e

    devendo ocorrer em instituies de ensino formal em seus diversos nveis educacionais,

    espaos comunitrios, atravs, por exemplo, da articulao entre agentes informais de sade

    e profissionais da rea (VASCONCELOS, 1989, p.117) e, tambm, muito especialmente,

    diramos ns, na Universidade. Vale incluir as palavras de Santos e Westphal (1999, p.85-6)

    acerca do relevante papel no apenas do ensino e pesquisa, mas da extenso universitria:

    de modo prioritrio, inclusive para no fugir sua misso primeira de produzir conhecimentos, a atividade de pesquisa deve ser orientada para equipar adequadamente o atendimento s demandas do ensino e da extenso. [...] No campo da formao, por exemplo, ao mesmo tempo em que o profissional de sade deve dar conta de tarefas tradicionais, sobretudo as de carter tcnico, necessita compreender o que trabalhar em sade hoje. Mais do que isso, deve ser equipado com o conhecimento e a habilidade para a interlocuo, para se dirigir a um pblico mais amplo do que fazia tradicionalmente, e principalmente para incorporar em suas tarefas e aptides o universo poltico que o rodeia. (SANTOS; WESTPHAL, 1999, p.85, 86).

    Desse modo, entendemos que educar em sade representa muito mais do que apenas

    a busca de solues para problemas de sade pblica relacionados ao controle, preveno e

    tratamento de doenas; implica uma concepo de sade que englobe dimenses mais amplas,

    igualmente fundamentais, tal como propem os mesmos autores:

    [...] ser saudvel no pode ser apenas no estar doente, no sentido tradicional. Deve significar tambm a possibilidade de atuar, de produzir a sua prpria sade, quer mediante cuidados tradicionalmente conhecidos, quer por aes que influenciem o seu meio aes polticas para a reduo de desigualdades, educao, cooperao intersetorial, participao da sociedade civil nas decises que afetam sua existncia para usar uma expresso bem conhecida, o exerccio da cidadania. (SANTOS; WESTPHAL, 1999, p.76).

    Tal abordagem nos leva a pensar no conceito de qualidade de vida, discutido por

    diversos autores, dentre os quais, Minayo, Hartz e Buss (2000). Em suas palavras:

    tornou-se lugar-comum, no mbito do setor sade, repetir, com algumas variantes, a seguinte frase: sade no doena10, sade qualidade de vida. Por mais correta que esteja, tal afirmativa costuma ser vazia de significado e, freqentemente, revela a dificuldade que temos, como profissionais da rea, de encontrar algum sentido

    10 Optamos por registrar a frase tal como se encontra grafada no texto, mas cremos que pelo desenrolar do raciocnio dos autores a frase correta seja: sade no ausncia de doena.

  • 34

    terico e epistemolgico fora do marco referencial do sistema mdico que, sem dvida, domina a reflexo e a prtica do campo da sade pblica. Dizer, portanto, que o conceito de sade tem relaes ou deve estar mais prximo da noo de qualidade de vida, que sade no mera ausncia de doena, j um bom comeo, porque manifesta o mal-estar com o reducionismo biomdico. (MINAYO; HARTZ; BUSS, 2000, p.8, grifo dos autores).

    Chachamovich, Trentini, e Fleck (2007, p.62) nos lembram que, a despeito do termo

    qualidade de vida ter sido referido pela primeira vez em 1966, no editorial do peridico

    Annals of Internal Medicine, intitulado Medicine and Quality of Life, de autoria de Elkinton,

    as pesquisas sobre temas relacionados a construtos de percepo subjetiva de satisfao

    iniciaram-se na literatura internacional em 1953, com a publicao de uma srie de estudos

    conduzidos por Jones, um psiclogo americano da Universidade de Harvard e reunidos no

    livro The pursuit of happiness11. De acordo com aqueles autores, Elkinton

    (CHACHAMOVICH; TRENTINI; FLECK, 2007, p.62) criticava a prtica mdica vigente

    na poca, por dar demasiado peso aos desenvolvimentos tecnolgicos e tcnicos em

    detrimento da preocupao com o bem-estar e o grau de satisfao que tais conquistas

    poderiam proporcionar aos pacientes. Quarenta e cinco anos se passaram e parecemos andar

    em crculos, considerando, no caso brasileiro, a necessidade de criao pelo Ministrio da

    Sade de um programa de humanizao12 em 2001, tornado poltica em 200313. Aos menos

    favorecidos, nem mesmo o acesso aos avanos tecnolgicos referidos por Elkinton

    proporcionado e garantido em tempo hbil e de modo equnime, o que torna necessria e

    urgente toda reflexo que debata vigorosamente a formao dos profissionais de sade, muitas

    vezes a nica tecnologia efetivamente disposio das camadas populares no sistema

    brasileiro de sade. E por formao, entenda-se no apenas rigor na competncia tcnica, mas

    tambm e muito especialmente o resgate de uma competncia no mbito das relaes

    interpessoais que h muito vem se tornando exceo nos servios de sade prestados

    populao14.

    A discusso sobre qualidade de vida bastante intensa e inclui debates sobre os

    diversos instrumentos criados para a mensurao do conceito, o que no consiste no foco de

    11 A busca da felicidade