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Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Belas Artes João Paulo Valadares Coimbra O ATOR ANTES DA CENA: PROCEDIMENTOS DE CRIAÇÃO ATRAVÉS DA LINHA DE AÇÕES FÍSICAS EM STANISLAVSKI E GROTOWSKI Belo Horizonte 2011

O Ator Antes Da Cena - João Paulo Valadares Coimbra

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Dissertação de Mestrado: O ATOR ANTES DA CENA: PROCEDIMENTOS DE CRIAÇÃO ATRAVÉS DA LINHA DE AÇÕES FÍSICAS EM STANISLAVSKI E GROTOWSKI

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  • Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Belas Artes

    Joo Paulo Valadares Coimbra

    O ATOR ANTES DA CENA:

    PROCEDIMENTOS DE CRIAO ATRAVS

    DA LINHA DE AES FSICAS EM

    STANISLAVSKI E GROTOWSKI

    Belo Horizonte 2011

  • [2]

    Joo Paulo Valadares Coimbra

    O ATOR ANTES DA CENA: PROCEDIMENTOS DE CRIAO

    ATRAVS DA LINHA DE AES FSICAS EM STANISLAVSKI E

    GROTOWSKI

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Artes. rea de concentrao: Arte e Tecnologia da Imagem Orientador: Prof. Dr. Luiz Otvio Carvalho

    Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG

    2011

  • [3]

  • [4]

    AGRADECIMENTOS

    minha me, Maria Luzia Valadares do Prado, e minha irm, Valria

    Valadares Coimbra, pelo apoio incondicional; aos meus amigos da Preqaria Cia

    de Teatro pelo companheirismo na jornada que motivou essa pesquisa; aos

    professores do Sken e do Centro de Formao Artstica do Palcio das Artes

    por cultivar a semente do teatro que havia em mim; Alexandre Mauro Toledo,

    Nunziato Schettino, Laly Cataguases, Lcia Ferreira, Cludio Dias, Fabiana

    Loyola, Joo Gomes Neto, Zilda Loiola e Piera Rodrigues pelo carinho e auxlio

    nos momentos difceis; aos professores da Escola de Belas Artes da UFMG; a

    todos os meus colegas das aulas do professor Mencarelli, que me auxiliaram

    com suas crticas e sugestes; aos professores Fernando Antnio Mencarelli e

    Antnio Hidelbrando, pela leitura cuidadosa e sugestes valiosas no perodo de

    qualificao; Escola de Belas Artes da UFMG; Coordenao da Ps-

    Graduao da EBA; Zina e a todos os funcionrios da Ps-Graduao.

    Luiz Otvio Carvalho, amigo-orientador, pela pacincia e dedicao, exemplo

    de grande pesquisador.

  • [5]

    RESUMO

    Esta dissertao tem por finalidade revisitar, sobre o prisma da ao fsica,

    alguns processos de criao de Konstantin Stanislavski e Jerzy Grotowski

    elencando alguns conceitos co-relacionados como se mgico, circunstncias

    dadas, tarefa, super-tarefa, fala cnica e tempo-rtmico em Stanislavski; e

    disciplina e espontaneidade, impulsos, associaes, contato e ao

    total em Grotowski. A idia uma pesquisa que oferea um texto de fcil

    leitura, tanto para profissionais quanto estudantes de teatro, com o objetivo de

    contribuir para a soluo de problemas de ordem prtica presentes no dia a dia

    de atores e diretores que utilizam ou gostariam de utilizar da ao fsica em seu

    trabalho.

    ABSTRACT

    This paper aims to revisit, on the prism of "physical action" some processes of

    creation of Konstantin Stanislavski and Jerzy Grotowski name a few co-related

    concepts such as "if" magic, "given circumstances", "task", "super-task", speaks

    scenic and "time-rhythmic" in Stanislavski and "discipline and spontaneity,

    "Impulses", "associations", "contact" and "total action" in Grotowski. The idea is

    to search a text that offers an easy to read, for both professionals and students

    of theater, in order to contribute to the solution of practical problems present in

    the daily lives of actors and directors who use or would like to use physical

    action in their work.

  • [6]

    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................. 08

    1 - A ao fsica como procedimento no trabalho de ator em

    Stanislavski..................................................................................................... 19

    1.1 O Se mgico e as Circunstncias dadas a servio da ao fsica...... 22

    1.2 A ao fsica configura-se em tarefa........................................................ 32

    1.3 A Super-tarefa como recurso norteador da linha de aes fsicas.......... 45

    1.4 A fala cnica vem da ao....................................................................... 49

    1.5 No lugar da emoo a ao fsica............................................................ 54

    1.6 Manipulando o tempo-ritmo da ao........................................................ 60

    2 - A ao fsica como procedimento no trabalho de ator em

    Grotowski........................................................................................................ 67

    2.1 O percurso at as Aes......................................................................... 67

    2.2 Disciplina e Espontaneidade................................................................... 70

    2.3 Nos detalhes esto os Impulsos ............................................................. 80

    2.4 O trabalho com as Associaes.............................................................. 82

    2.5 O contato e os companheiros na construo da cena.......................... 94

    2.6 A Ao Total e a manifestao da Personagem.....................................103

    CONSIDERAES FINAIS........................................................................... 114

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................. 130

  • [7]

    No se trata de ser missionrio ou artista original, trata-se de ser

    realista. Nosso ofcio a possibilidade de mudar a ns mesmos e

    desse modo mudar a sociedade. No preciso perguntar-se: o que

    significa o teatro para o povo? Est uma pergunta demaggica e

    estril. preciso perguntar-se: o que significa o teatro para mim? A

    resposta, transformada em ao, sem compromissos nem

    precaues, ser a revoluo no teatro.

    Eugnio Barba

  • [8]

    INTRODUO

    Este trabalho se prope a revisitar, sobre o prisma da ao fsica, alguns

    processos de criao de Konstantin Stanislavski e Jerzy Grotowski. A ideia

    uma pesquisa que oferea um texto de fcil leitura, tanto para profissionais

    quanto para estudantes de teatro, com o objetivo de contribuir para a soluo

    de problemas de ordem prtica presentes no dia a dia de atores e diretores que

    utilizam ou gostariam de utilizar elementos da ao fsica em seu trabalho.

    O desejo dessa pesquisa partiu de uma necessidade prtica de

    organizao do teatro que realizo. Estudo, trabalho e pesquiso o universo

    teatral h algum tempo e durante esse perodo participei de mais de uma

    dezena de montagens de espetculos, com outros tantos diretores diferentes,

    e, at hoje, nenhuma delas utilizou o mesmo procedimento de criao.

    Observando o resultado e, conversando sobre a prtica de outros artistas

    mineiros, sempre identifico processos de criao muito diferentes uns dos

    outros. Tenho ainda em minha casa algumas dezenas de livros de teoria teatral

    e, no computador, a cpia de outras dezenas de teses e dissertaes de

    pesquisadores brasileiros e estrangeiros que investigam processos de criao,

    e, at onde minha leitura foi capaz de alcanar, tambm nos exemplos tericos

    a prerrogativa se confirma: no h um mtodo para se criar em teatro e sim

    uma infinidade de trajetrias e processos criativos.

    Esse panorama se alinha reflexo do crtico, historiador e pesquisador

    de teatro Sbato Magaldi (1996) quanto ao exerccio do teatro no Brasil.

    Segundo Magaldi, a partir do espetculo Macunama (1978), de Antunes

    Filho, que se inaugura no Brasil o teatro contemporneo, cuja forte tendncia

  • [9]

    a figura do encenador. Para ele, esse novo teatro reconhece o dramaturgo

    como autor do texto, mas o encenador que o autor do espetculo, e, por

    essa autoria, compete-lhe assumir a responsabilidade da criao. Magaldi

    reconhece ainda que essa seja uma tendncia do teatro contemporneo em

    todo o mundo que reconhece o teatro como arte autnoma e no mera

    ilustrao da literatura. Para Magaldi,

    Essa criao ora configura-se com maior modstia, quando o encenador preserva o texto integral e apenas troca as vestimentas antigas pelas atuais; ora intervm na pea, reduzindo os dilogos ou juntando outras obras do autor no mesmo espetculo; ora adaptando, com ou sem auxlio de outrem, literatura de gnero diverso para o palco; ora, enfim, assumindo a inteira responsabilidade por texto e espetculo. Se o encenador no encontra, em determinado instante, pea pronta que exprima as preocupaes do seu universo, absolutamente legtimo que procure a criao integral (MAGALDI, 1996, p. 278).

    Como exemplos de encenadores contemporneos alm de Antunes Filho,

    Magaldi cita ainda Gerald Thomas, Bia Lessa, Ulisses Cruz, Antnio Arajo,

    Aderbal Freire-Filho, Moacyr Ges, Jos Celso Martinez Corra, Antonio

    Abujamra, Celso Nunes, Fauzi Arap, Marcio Aurlio, Marcio Vianna, entre

    outros encenadores-criadores que se tornaram mesmo considerando a

    formao de importantes grupos e companhias durante o mesmo perodo

    referncia para o fenmeno do teatro brasileiro contemporneo, nas dcadas

    de 1980 e 1990, alguns deles com atuao at os dias atuais.

    Segundo Fbio Cordeiro dos Santos (2004), o teatro contemporneo tal

    como o conceitua Magaldi veio transformar um modelo at mesmo cannico

    com que determinadas criaes aconteciam no teatro moderno, inaugurado

  • [10]

    com a criao, em 1948, da Escola de Arte Dramtica, mesmo ano em que se

    inaugura o Teatro Brasileiro de Comdia. Basta pensarmos na incidncia dos

    ensaios de mesa, na progressiva assimilao do mtodo Stanislavski, que

    viabilizaram no somente um tipo de espetculo, mas uma forma particular de

    criar a cena (Santos, 2004, UNI-Rio). Sob influncia do Sistema de

    Stanislavski o procedimento de estudar o texto, como obra literria, passou a

    ser, no teatro moderno, uma atividade cotidiana do ator brasileiro.

    principalmente no TBC e na EAD, onde o conceito moderno brasileiro de

    encenao vai sendo experimentado pelas novas geraes de atores,

    dramaturgos e diretores. Dois dos primeiros homens de teatro a utilizar

    conceitos do chamado Sistema Stanislavski no Brasil foram Augusto Boal, no

    Teatro de Arena, e Eugnio Kusnet, no Teatro Oficina.

    Santos (2004) acredita que o procedimento de algumas tendncias do

    teatro brasileiro, identificadas pela categoria como teatro experimental ou

    teatro de pesquisa, de se criar um espetculo em processo, tendncia

    identificada por Magaldi (1996) como a passagem do teatro moderno para o

    teatro contemporneo, tornou-se, nas ltimas dcadas, um valor e uma

    referncia. Essa tendncia passou a funcionar curiosamente como um

    diferencial desse teatro, supostamente inovador como linguagem cnica, em

    contraponto com o que se convencionou chamar de "teatro" termo pejorativo

    para o teatro que se aproxima, de algum modo, ao procedimento moderno de

    criao.

    Quando localizamos o encenador, ou os encenadores como, por

    exemplo, acontece em determinados grupos criadores, como centro

    desencadeador da cena contempornea , estamos considerando a encenao

  • [11]

    como um conjunto de procedimentos, no somente como um produto final e

    acabado. E nesse universo de infinitas possibilidades o ator passa a trabalhar

    dentro da escolha de um processo de criao feita pelo diretor. como se

    cada montagem fosse para o ator um novo momento de estudo e preparao

    tcnica correspondente proposta de encenao.

    Em alguns casos a liberdade de criao do ator chegou ao extremo de se

    partir da referncia zero em relao ao resultado esperado. Pode-se criar

    qualquer coisa, no h limites para o que o ator possa vir a apresentar ao fim

    de um processo, no h regras. Essa emancipao traz consigo um risco que

    o socilogo Zigmunt Bauman discute sob o ponto de vista social, mas que

    gostaria de trazer nossa pesquisa. Para Bauman,

    A ausncia ou a mera falta de clareza das normas anomia o pior que pode acontecer s pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam, a anomia anuncia a pura e simples incapacitao. Uma vez que as tropas de regulamentao normativa abandonam o campo de batalha da vida, sobram apenas dvida e medo (Bauman, 2001, p.28).

    Refletindo sobre essa constatao sociolgica, tendemos a traar um

    paralelo com as tcnicas de criao teatral. A pergunta bsica : nas

    circunstncias de infinitas possibilidades de criao, a quais procedimentos o

    ator pode lanar mo para o seu trabalho dentro de qualquer que seja a

    escolha de criao? A estratgia para se tentar responder a essa pergunta

    um estudo comparado dos procedimentos de criao atravs da linha das

  • [12]

    aes fsicas do ator em dois casos emblemticos para o teatro mundial: as

    pesquisas de Konstantin Stanislavski e Jerzy Grotowski.

    O termo ao fsica foi cunhado por Stanislavski e assumidamente o

    ponto de chegada das pesquisas desenvolvidas por ele ao longo de toda sua

    vida artstica. O mesmo termo declaradamente o ponto de partida do trabalho

    realizado na fase teatral, entre 1959 e 1969, de Grotowski. Objeto de estudo de

    vrios pesquisadores, a ao fsica continua sendo uma das ferramentas

    essenciais para grande parte das pessoas de teatro hoje.

    Considerada por muitos tericos contemporneos como a unidade

    mnima do trabalho do ator, as aes fsicas parecem ter sido um dos

    mecanismos vislumbrados por Stanislavski para a formao do ator preparado

    para qualquer situao cnica: Quero ensinar-lhes a interpretar papis e no

    um papel determinado, quero que pensem sobre isso. Todo ator deve trabalhar

    ininterruptamente na elevao de sua capacidade (TOPORKOV, 1961, p.168).

    Descrevendo a aplicao do mtodo das aes fsicas, Toporkov (1961),

    que foi ator em montagens sob a superviso de Stanislavski durante seus

    ltimos anos de vida, descreve que nos primeiros passos do processo de

    criao Stanislavski no dizia como os atores deveriam interpretar uma cena

    especfica, no marcava para os atores. Aplicando o mtodo das aes fsicas,

    ele abria, diante dos intrpretes, um caminho lgico para a autenticidade das

    aes, ajudando-os a descobrir os elementos vivos e humanos do papel. O

    fato de que os participantes comearam a demonstrar ativamente sua prpria

    iniciativa permitia esperar da cena um desenvolvimento e um desenho efetivo.

  • [13]

    (Traduo minha) Pouco a pouco o mestre nos guiava para o domnio de um ou outro elemento da conduta humana, conseguindo com isso uma autntica e geral ateno entre os participantes da cena. S isso j produzia um efeito muito mais eficaz do que as paixes exageradas de antes1

    . (Toporkov, 1961, p.153-154).

    O mtodo das aes fsicas ltima etapa da pesquisa de Stanislavski e

    onde ele pe em dvida muitas de suas descobertas anteriores.

    Seguramente sem o trabalho precedente no teria descoberto as aes fsicas

    e no teria alcanado a revelao de que os sentimentos no dependem da

    nossa vontade. Na fase precedente isto no era claro para ele. Seguia

    acreditando que o recurso da recordao de diferentes sentimentos

    experimentados na vida real, no fundo, significava a possibilidade de voltar a

    senti-los no palco.

    A exemplo de Stanislavski, muitos dos grandes mestres, encenadores e

    pensadores do teatro que surgiram no final do sculo XIX e incio do sculo XX

    participaram de movimentos vanguardistas que transformaram o pensamento

    artstico, propondo outras formas de teatro que exigiam novos procedimentos

    de criao do ator e consequentemente outra formao, dirigida no arte de

    determinado tipo de teatro, mas arte de um ator que capaz de cumprir as

    proposies de qualquer situao cnica.

    Segundo Bauman, o aumento da liberdade individual pode coincidir com o

    aumento da impotncia coletiva. Quando os padres e configuraes no so 1 Poco a poco el maestro nos guiaba hacia el domnio de uno u otro element de la conducta humana, consiguiendo con ello una autntica y general atencin entre los participantes de la escena. Esto solo ya produca un efecto mucho ms eficaz que las pasiones exageradamente recargadas de la primera versin.

  • [14]

    mais dados, e, menos ainda, autoevidentes tudo que acontece por conta

    do indivduo. Cabe ao indivduo descobrir o que capaz de fazer; esticar essa

    capacidade ao mximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia

    melhor servir. (Bauman, 2001, p.74).

    Essa nova responsabilidade sociolgica ligada descoberta de suas

    prprias qualidades parece ter ressonncia no trabalho do ator tanto de

    Grotowski quanto de Stanislavski. Segundo Thomas Richards (2005), ator e

    colaborador de Grotowski e atual coordenador do Work Center2

    Ainda segundo Richards, ao confrontar-se com seus predecessores

    Grotowski foi um bom ladro, examinando criticamente suas tcnicas e

    roubando o que podia funcionar em sua prtica.

    fundado por

    ele, Grotowski sabia que aprender algo significava conquist-lo atravs da

    prtica, atravs do fazer e no da memorizao de ideias ou teorias. Para

    Richards, o aprendizado com Grotowski no tinha semelhana com as lies

    de memria que se aprende em uma escola convencional, e as teorias eram

    utilizadas somente quando podiam ajudar a resolver um problema prtico que

    se apresentava a um ou a outro ator.

    (Traduo minha) O trabalho de Grotowski no nega em absoluto o passado; pelo contrrio, busca nele as ferramentas teis que podem ajudar no seu prprio trabalho. Crie teu prprio mtodo. No dependas servilmente do meu. Invente algo que funcione a ti. Essas so as palavras de Stanislavski e isso exatamente o que fez Grotowski3

    2 Work Center de Jerzy Grotowski and Thomas Richards, em Pontedera na Itlia.

    . (Richards, 2005, p.19).

    3 El tragajo de Grotowski no niega em absoluto el pasado, sino que, ms bien, busca en l las herramientas tiles que le puedan ayudar en su propio trabajo. Crea tu propio mtodo. No dependas servilmente del mo. Invntate algo que a ti funcione! sas son las palabras de Stanislavski y eso es exactamente lo que hizo Grotowski.

  • [15]

    curioso que o mesmo Stanislavski que influenciou e continua

    influenciando a maneira de se criar teatro no mundo inteiro, inclusive, como j

    foi citado, o teatro moderno brasileiro, aconselhava em seu discurso as

    pessoas a criarem o seu prprio mtodo. Grotowski compreendeu esse

    conselho e, buscando os ensinamentos do mestre russo, experimentava as

    proposies aderindo apenas quelas que diziam respeito ao seu trabalho.

    Para Richards (2005), apesar da declarada conexo com o trabalho de

    Stanislavski, citada por Grotowski em quase todas as suas conferncias

    pblicas, o que se v na maioria dos casos so atores e grupos de teatro que,

    na prtica, se esquecem dessa conexo. Tentam chegar mesma qualidade,

    saltando por cima dos fundamentos essenciais, dando um salto direto ao

    desconhecido, sem antes tentar conhecer o que j foi descoberto com anos de

    trabalho desses dois encenadores. Movidos pelo desejo de resultados

    imediatos, alguns atores ou grupos de atores buscam aprender com Grotowski,

    mas se esquecem por completo dos ensinamentos de Stanislavski que supe a

    necessidade de uma tcnica preparada conscientemente. Essa uma

    necessidade que Grotowski nunca esqueceu:

    (Traduo minha) No sentido profissional me formei no Sistema de Stanislavski. Acreditava, de certo modo, no profissionalismo. Agora no acredito mais. H dois tipos de vus, dois gneros de fuga. Pode-se fugir no diletanismo chamando-o de liberdade. Pode-se fugir tambm no profissionalismo, na tcnica. Ambas as coisas podem servir de pretexto para a absolvio. (...) Quando comecei meu trabalho, meu ponto de partida era a tcnica de Stanislavski. Porm, uma base sui generis para mim era tambm sua atitude que o impulsionava a descobrir o

  • [16]

    novo em cada fase da sua vida4

    . (Grotowski, Reposta a Stanislavski, Revista Mscara, 1993, p. 18).

    Para Grotowski, o mtodo est ligado tcnica. Isso quer dizer que no

    importa o quo criativo o ator se sinta, sem tcnica ele no tem um canal para

    expressar sua fora criativa. O encenador polons se refere a um

    conhecimento tcnico do ofcio que dar ao ator o equilbrio necessrio para

    que a criao plena tenha a possibilidade de acontecer. Quanto mais forte a

    criatividade mais forte deveria ser o oficio.

    (Traduo minha) Quando cheguei concluso de que o problema da construo do meu prprio sistema era ilusrio e que no existe nenhum sistema ideal que seja a chave da criatividade, ento a palavra mtodo mudou de significado para mim. Existe um desafio ao qual cada um deveria dar uma resposta prpria. Cada um deveria ser fiel prpria vida. Isto tenderia a excluir os outros, mas ao contrrio os inclui. Nossa vida consiste nas relaes com os outros, e os outros so precisamente o seu campo de ao. (...) Em todo caso, a experincia da vida a pergunta, enquanto a criao verdadeira simplesmente a resposta. Comea no esforo de no se esconder nem mentir. Ento o mtodo no sentido de sistema no existe. No pode existir de outra maneira do que como desafio ou chamado. E no se pode jamais prever qual ser a resposta de outra pessoa. muito importante estar preparado para o fato de que a resposta dos outros ser diversa da nossa. Se a resposta a mesma, ento quase certo que esta resposta falsa. necessrio compreender isso, o ponto decisivo5

    4 En el sentido profesional me form en el Sistema de Stanislavski. Crea en cierto modo en el profesionalismo. Ahora no creo ms. Hay dos tipos de velos, dos gneros de fuga. Se puede huir en el diletantismo llamndolo linbertad. Se puede huir tambien en el profesionalismo, en la tcnica. Ambas cosas pueden servir como pretexto para la absolucin. (...) Cuando comenc mi trabajo, mi punto de partida era su tcnica. Pero una base sui generis para m era tambin su actitud que lo impulsaba a descubrir de nuevo cada fase de la vida.

    . (Grotowski, Respuesta a Stanislavski, Revista Mscara, 1993, p. 19).

    5 Cuando llegu a la conclusin que el problema de la construcin de mi propio sistema era ilusorio y que no existe ningn sistema ideal que sea la llave de la creatividad, entonces la

  • [17]

    Grotowski considera o mtodo das aes fsicas de Stanislavski a tcnica

    de maior estmulo ao teatro ocidental, principalmente no que diz respeito

    formao do ator. Algumas pessoas no percebem isso porque realmente

    difcil diferenciar a tcnica da esttica. Grotowski aproxima o seu trabalho

    tcnico ao de Stanislavski, mas se sente distante da sua esttica. A esttica

    de Stanislavski era o produto de seu tempo, de seu pas e de sua pessoa.

    Todos somos o produto da associao de nossas tradies e nossas

    necessidades (Traduo minha)6

    Ao estudar a obra de Stanislavski e Grotowski percebemos dois

    processos verdadeiramente vivos. Ambos dedicaram suas vidas investigao

    do oficio e trabalharam com tal nvel de entrega e esforo pessoal que

    alcanaram grandes descobertas. Embora sejam portadores de estticas

    diferentes, seus campos de pesquisa tcnica se aproximam medida que

    elegem a ao fsica como centro da criao. Como disse no comeo dessa

    . (Grotowski, Respuesta a Stanislavski,

    Revista Mscara, 1993, p. 18)

    palabra mtodo cambi para m de significado. Existe el desafo al cual cada uno debera dar una respuesta propia. Cada uno debera ser fiel a la propia vida. Esto no tendera a excluir a los otros, sino ao contrario, los incluria. Nuestra vida consiste en las relaciones con los otros, y los otros son precisamente su campo de accin. (...) En todo caso, la experiencia de la vida es la pregunta, mientras la creacin en verdad es simplemente la respuesta. Comienza en el esfuerzo de no esconderse ni mentir. Entonces el mtodo en el sentido del sistema no existe. No puede existir de otro manera que como desafo o llamado. Y no se puede jams prever exactamente cul ser la respuesta de algn otro. Es muy importante estar preparados al hecho que la respuesta de los otros ser diversa de la nuestra. Si la respuesta es la misma, entonces es casi seguro que esta respuesta es falsa. Es necesario comprenderlo, es el punto decisivo.

    6 La esttica de Stanislavski era el producto de su tiempo, de su pas y de su persona. Todos somos el producto de la asociacin de nuestras tradiciones y nuestras necesidades.

  • [18]

    introduo, o objetivo dessa pesquisa revisitar alguns mtodos de criao

    desses dois grandes mestres atravs da ao fsica, esclarecendo seus

    elementos e conceitos relacionados.

  • [19]

    CAPTULO 01

    A ao fsica como procedimento no trabalho de ator em Stanislavski

    Konstantin Stanislavski (1863 1938) considerado por muitos

    estudiosos como um dos mais importantes pesquisadores de teatro de todos os

    tempos. Tal importncia est relacionada principalmente ao fato de o ator,

    diretor e pedagogo russo ser considerado o primeiro que, com mais detalhes,

    formulou um sistema de trabalho para a formao do ator aps uma vida inteira

    dedicada arte dramtica. Junto com Nemirvich-Dantchenko, Stanislavski

    fundou o Teatro de Arte de Moscou e o dirigiu por 40 anos. J em suas

    primeiras experincias, no incio do sculo XX, seu trabalho foi conduzido para

    um objetivo concreto: situar o trabalho de ator em um lugar central entre os

    outros elementos que compem um espetculo.

    Para Marvin Carlson (1997), apesar de nos primeiros textos Stanislavski

    trazer o foco para os elementos do estado interior do ator, temas como

    expresso corporal, dico e tempo-ritmo estavam presentes e demonstravam

    claramente que, de modo algum, ignorava a tcnica exterior em detrimento de

    seu interesse pela explorao interior. Mas so as transcries de seus ltimos

    ensaios que sugerem que por volta de 1930 Stanislavski

    (...) arrefecera a nfase at ento posta na vida interior como fonte para um papel e voltara-se para o estudo do texto, e tambm das aes fsicas por este requeridas, como um meio de estimular a vida interior. Buscava-se uma nova linha, a linha do ente fsico, e uma nova estratgia: os atores devem comear pelas tarefas e aes mais simples que conduzem vida fsica de um papel, a qual, por seu turno, remete vida espiritual e ao sentido verdadeiro da vida de uma pea ou papel, estes

  • [20]

    finalmente transformam-se no estado ntimo criador. (Carlson, 1997, p. 368)

    Ao longo de sua vida e das diversas experincias que realizou com foco

    no trabalho de ator, Stanislavski (1961) percebeu que quando o ator mostra o

    que sente atravs da ao que realiza, e no apenas, atravs do que diz ou

    formaliza intelectualmente em sentimento, capaz de apresentar

    caractersticas mais precisas e detalhadas do personagem. Com essa

    descoberta passou a perseguir com os instrumentos que conhecia e outros

    que ele mesmo inventou procedimentos para a criao dramtica atravs da

    ao fsica. Esse enfoque como reorganizador do seu sistema fez com que

    este passasse a ser conhecido como o Mtodo das Aes Fsicas.

    Carlson (1997) esclarece que o Sistema de Stanislavski antecede

    cronologicamente o Mtodo das Aes Fsicas. Para ele, essa viso do

    mestre russo que aponta o sentimento como reflexo dos estmulos das aes

    fsicas se integra de forma complementar aos outros elementos do Sistema.

    Ainda segundo Carlson, Stanislavski no parece ter visto seu mtodo das

    aes fsicas como uma ferramenta contrria ao seu sistema, e sim como um

    estgio no desenvolvimento desse sistema. A tarefa do ator evolui, de forma

    cclica, da ao fsica e da anlise do texto para a criao da vida interior e

    regressa ao exterior no papel tudo como parte de um mesmo processo

    (Carlson, 1997, p. 368). Observa-se que, nessa citao, Carlson no s aponta

    a evoluo das pesquisas de Stanislavski, mas tambm salienta a evidncia de

    uma reciprocidade entre interior e exterior e vice-versa.

  • [21]

    No texto de abertura da edio argentina do livro Stanislavski Dirige, de

    Vasily O. Toporkov, Farberman afirma que o mtodo das aes fsicas o

    ponto de chegada de um percurso que parte da linha das foras motivas e se

    soma com a experincia vivida com o Estdio de pera. Esse momento foi

    uma transio na qual a ao fsica adquiriu a predominncia no processo

    criativo do ator. Segundo Farberman, antes da elaborao do mtodo das

    aes fsicas, as foras motivas da vida psquica sentimento, mente e

    vontade tinham a funo de desencadear o processo criativo; ou seja,

    funcionavam como ponto de partida para o trabalho de ator. Com o mtodo das

    aes fsicas o trabalho de ator parte das aes do personagem propostas pela

    anlise do texto para se chegar ao sentimento.

    Toporkov (1961) descreve alguns procedimentos do mtodo das aes

    fsicas de Stanislavski nas montagens de Desfalco, de Valentn Katiev,

    Tartufo, de Molire, e Almas Mortas, de Gogol. Sobre essas montagens

    Toporkov afirma que:

    (Traduo minha) Nesse momento tudo girava exclusivamente em torno da conduta fsica. Para estud-la e aperfeio-la se aplicavam os mais diversos mtodos (...). Ao seguir esse mtodo, nosso trabalho ganhava a forma de um jogo divertido, ou de uma classe de exerccios com os elementos mais primrios das aes fsicas, com Stanislavski convertido em um professor exigente que de repente nos pedia que descrevssemos oralmente toda a linha de atuao dos personagens7

    7 Por el momento todo giraba exclusivamente alrededor de la conducta fsica. Para estudiarla y perfeccionarla se aplicavan los ms diversos mtodos. (...) Al seguir este mtodo nuestro labor tomaba la forma o de un juego entretenido, o de una clase de ejercicios con los elemntos ms primarios de las acciones fsicas, con Stanislavsky convertido en un profesor pedante y exigente que, de pronto, nos peda que le describiramos oralmente toda la lnea de actuacin de los personagens.

    . (TOPORKOV, 1961, p.96).

  • [22]

    sobre esse prisma da conduta e da ao fsica que refletiremos na

    sequncia, utilizando de outros elementos do sistema de Stanislavski

    relacionados ao fsica.

    1.1 O Se mgico e as Circunstncias dadas a servio da ao fsica

    O primeiro passo dado no caminho da aproximao do ator com o

    personagem a representar consiste na capacidade do intrprete de despertar

    sua natureza criativa, dar impulso sua fantasia, para que ela comece a

    trabalhar na direo sugerida pela prpria situao da obra. Assim, a primeira

    fase do trabalho nos processos de montagem descritos por Toporkov um

    estudo aprofundado do texto, uma anlise das circunstncias dadas pelo

    autor, seguidas das premissas da direo e da concepo pessoal

    compreendida pelo ator. Nas palavras do prprio Stanislavski, a expresso

    Circunstncias Dadas significa:

    (Traduo minha) A fbula da obra, seus fatos, acontecimentos, poca, o tempo e o lugar da ao, condies de vida, nossa ideia da obra como atores e diretores, o que agregamos de ns mesmos, a mise-em-scne, a produo, os cenrios e trajes, os acessrios, a iluminao, os rudos e sons, e todo o resto que o ator deve levar em conta durante a sua criao8

    . (Stanislavski, 2003, p.67).

    8 La fbula de la obra, sus hechos, acontecimientos, la poca, el tiempo y el lugar de la accin, las condiciones de vida, nuestra idea de la obra como actores y directores, lo que agregamos de nosostros mismos, la puesta en escena, los decorados y trajes, la utilera, la iluminacin, los ruidos y sonidos, y todo lo dems que los actores deben tener en cuenta durante su criacin.

  • [23]

    Vale ressaltar que o conceito de circunstncias dadas est em

    consonncia com fato de que Stanislavski nutria um grande respeito sobre a

    viso do autor do texto, considerando-a como a viso nica e verdadeira. Por

    isso, as Circunstncias Dadas um dos elementos do mtodo que, para

    Stanislavski, exige grande dedicao dos atores e do diretor. Alm de

    Toporkov, a atriz e professora Mara sipovna Knbel tambm viveu

    experincias de criao com Stanislavski, e d exemplos da aplicao prtica

    das circunstncias dadas, principalmente quanto ao que diz respeito ao

    estudo do texto a ser encenado. Knbel cita o mestre para afirmar que:

    (Traduo minha) O ator que estuda insuficientemente a obra e sem reflexo forma um juzo sobre ela, est fechando o caminho para o pleno descobrimento da concepo do autor. Sua imaginao se cala e, ainda sem compreender nada sobre a obra, j sabe como vai representar o personagem proposto9

    (Knbel, 2000, p.35).

    A partir da obra La desgracia de tener ingnio, de Griboydov, Mara

    Knbel d vrios exemplos de como a ambientao histrica da obra, a poca

    em que vive o personagem, de qual cidade ele veio, para onde est indo, a

    qual grupo social pertence so circunstncias de grande importncia para a

    construo do personagem a ser representado. Para Knbel (1996), todo o

    trabalho de absoro da imaginao do passado e do futuro do personagem 9 El actor que estudia insuficientemente la obra y que sin reflexin se forma un juicio sobre ellla, se est cerrando el camino hacia el pleno descubrimiento de la concepcin del autor. Su imaginacin calla, sin comprender an nada de la obra ya sabe cmo hay que representar al personaje que se ha propuesto.

  • [24]

    atravs das Circunstncias Dadas est ligado meta de recriao das ideias

    do autor atravs das aes realizadas no palco.

    Citando outro elemento do Sistema, Toporkov (1961) afirma que, para

    Stanislavski, o Se mgico o ponto de partida para se chegar s

    Circunstncias Dadas, ajudando a criar um estmulo interior para o impulso da

    imaginao. De acordo com a metodologia de Stanislavski, atravs do se

    mgico, os atores fazem uso de uma suposio como, por exemplo, Se eu

    fosse fulano de tal, como agiria nessa situao?, ou Quais so meus objetos

    de mo?, ou ainda Como os manipularia?, para criar uma verdade fictcia,

    imaginria. O se consegue transportar o ator do mundo real para o mundo

    imaginrio, o mundo criado pelo escritor e que representa a prpria realidade,

    se no a sua reproduo potica (Traduo minha)10

    Atravs dessas perguntas o ator pode, inclusive, enriquecer suas

    circunstncias dadas, criando um campo frtil para a aplicao das aes

    fsicas. Ao se perguntar como seria se ele tivesse vivido aquela experincia,

    como ele teria reagido, o que teria feito, vai encontrar as reaes que seriam

    verdadeiras para ele e que vo dialogar com as ideias propostas pelo autor.

    Nesse contato com a experincia pessoal, com a verdade procurada, o ator

    deve ento reunir, com riqueza de detalhes, as aes fsicas que lhe so

    associadas e que sejam absolutamente verdadeiras para ele. Torna-se, assim,

    consciente dessas aes, de forma que a sua reproduo fiel confira verdade

    tambm cena, para ele prprio e para o espectador. Dessa forma, o ator

    poder viver o papel a cada instante e em todas as vezes que represent-lo.

    . (Knbel, 2000, p. 27).

    10 El si enseguida traslada al actor del mundo real al mundo imaginario, al mundo creado por el escritor y que representa no la propia realidad, sino su reproduccin potica.

  • [25]

    Em uma aula de Tortsov, que uma espcie de alterego de

    Stanislavski, no livro El trabajo del actor sobre s mismo en el proceso creador

    de la vivencia (2003), temos um exemplo de aplicao do se mgico proposta

    por Stanislavski. Trata-se de uma improvisao onde os alunos deviam

    executar a ao de abrir e fechar uma porta. Uma ao simples e mecnica,

    aparentemente sem importncia. Mas e se o ator imagina, por exemplo, que

    a sala de trabalho a casa, para a qual se mudou hoje uma das atrizes, e que

    nela vivia antes um homem que se tornou louco e foi internado em um

    sanatrio psiquitrico? E se, ainda atravs da imaginao, aceita o fato de

    que este homem pode ter por acaso fugido do hospcio e se encontra nesse

    momento atrs da porta, como agiria nessa situao?

    Bastou levantar essas perguntas a respeito do louco para que a atitude

    dos atores frente ao simples de abrir a porta ganhasse novos contornos.

    Nas palavras de Tortsov, o que transformou de repente foi a finalidade interna

    da ao. No se trata de uma anlise da atitude possvel, os atores no devem

    pensar em como prosseguir com a atuao, nem se preocupar com o resultado

    ou forma externa. O que Tortsov fez foi fornecer um contedo interno, um

    novo ponto de vista para a tarefa apresentada que acabou norteando a escolha

    e qualidade de tal ou qual ao. Coube aos alunos dar vida a essas aes, j

    que, para Tortsov, isso no depende do diretor e so os atores que a partir da

    evocao do se fazem uso da imaginao para tornar a ao breve ou

    prolongada, chata ou interessante.

    Assim, os atores comearam a agir medindo pelo olho as distncias entre

    eles e a porta, a buscar com o olhar as sadas seguras da sala, a examinar

    todo o ambiente que os circundavam, traando possveis trajetrias de fuga,

  • [26]

    caso o louco entrasse na habitao. O instinto de preservao dos atores

    sugeria os meios para prever e lutar contra o perigo iminente, e assim por

    diante... Diante da boa improvisao de seus alunos, Tortsov conclui que toda

    ao no teatro deve ter uma justificao interna e ser lgica, coerente e

    possvel na realidade (Traduo minha)11

    Stanislavski ensina que em uma obra complexa se mistura uma grande

    quantidade de se imaginados pelo autor e que justificam tais ou quais

    atitudes, e tal ou qual conduta de seus heris. No instante da criao da obra, o

    autor est dizendo atravs do texto, por exemplo, se a cena acontece em

    uma poca especfica ou outra, em um pas ou outro, em um determinado lugar

    da casa ou na praa pblica. Est dizendo se nessa casa viveram

    determinadas pessoas com determinadas ideias, sentimentos e disposies de

    nimo, e que essas pessoas se relacionam entre si por tais ou quais

    circunstncias, e assim por diante. Da mesma forma, o diretor ao dirigir a obra

    complementa as circunstncias indicadas pelo autor com seus prprios se,

    dizendo se os personagens tm tais hbitos, se vivem em tais ambientes e

    se relacionam entre si com determinados nveis de aproximao ou tolerncia.

    O ator atua nessas circunstncias e se alimenta de todos esses se durante o

    seu trabalho de criao.

    . (Stanislavski, 2003, p.63)

    Mas isso no tudo; o cengrafo, por sua vez, imagina e executa o seu

    cenrio a partir da sua imagem pessoal quanto ao lugar onde transcorre a

    ao. E o iluminador aplica seu conhecimento para iluminar o ator e o cenrio,

    buscando tambm uma atmosfera e/ou ambientao esttica, criando uma

    11 Toda accin en el teatro debe tener una justificacin interna y ser lgica, coherente y posible en la realidad.

  • [27]

    referncia espacial de luz, cor e sombra; assim como os outros criadores do

    espetculo fazem a sua leitura da obra, utilizando-se de sua imaginao

    artstica atravs do se. Tortsov complementa:

    (Traduo minha) Observem, portanto, como na palavra se se encerra uma qualidade peculiar, uma espcie de poder; vocs o experimentaram durante o ensaio referente ao louco e lhes produziu instantaneamente uma transformao, um estmulo interior. No ensaio com o louco, a porta com a qual comeou o exerccio se converteu apenas em um meio de defesa, mas a tarefa essencial que atraa a ateno foi o instinto de conservao. Aconteceu naturalmente, de um modo espontneo12

    ... (Stanislavski, 2003, p.65)

    Para Tortsov, isso aconteceu porque a ideia de perigo sempre altera o

    comportamento humano. O se no fala do fato real, o que , mas apenas do

    que pode ser... se ocorresse de um homem querer mat-lo... Essas palavras

    nada afirmam e esse o segredo da fora de influncia que o se capaz de

    exercer sobre o ator. Ele presume uma dificuldade, lana um problema para ser

    solucionado, e o ator trata de dar a sua resposta, a sua reao em forma de

    ao fsica. Por isso o estmulo e a determinao surgem sem esforo. Tortsov

    no disse que havia um louco atrs da porta, ele no obrigou os atores a

    acreditar na verdade desse acontecimento imaginrio, e mesmo assim os

    atores reconheceram de bom grado essa possibilidade de que houvesse um

    fato semelhante na vida e se mobilizaram como tal.

    12 Observen adems cmo en la palabra si se encierra una cualidad peculiar, una especie de poder; lo expeimntaron durante el ensayo referente al loco y les produjo instantneamente una tranformacin, un estmulo inteior. En el ensayo con el loco, la puerta con la que empez el ejercicio se conveirti slo en un medio de defensa, pero el objetivo esencial que atraa la atencin fue el instinto de conservacin. Sucedi naturalmente, de un modo espontneo....

  • [28]

    Stanislavski afirma que quando o se franco e verossmil, quando no

    deixa espao para ambiguidades e aponta para uma situao clara, elimina a

    sensao de engano que muitas vezes se experimenta na interpretao. Se ao

    invs de propor atravs do se, Tortsov tentasse convencer os atores de que

    havia realmente um louco atrs da porta, provvel que a maioria deles no

    acreditasse e no sasse do lugar.

    A palavra se um estimulante da atividade criadora interior do ser

    humano, ela desperta no artista a atividade interna e externa, colocando-o em

    ao. Faz isso sem forar uma verdade, mas de uma maneira natural. O ator

    se pergunta o que poderia fazer, ou como se comportaria se existisse

    realmente um louco atrs da porta e, a partir de ento, responde a essas

    perguntas atravs das aes fsicas; como atores so impulsionados a

    converter suas respostas, que comumente seriam verbalizadas em palavras,

    ao desafio corporal de traduzi-las em aes. Imediatamente seu instinto

    humano e real de conservao provoca o primeiro impulso e, sem se conter,

    comeam a realizar a tarefa despertada pelo se no sentido de proteger-se

    exatamente como ele prprio, ou o personagem proposto pelas circunstncias

    dadas no texto faria.

    Tanto o se como as circunstncias dadas so uma suposio, um

    invento da imaginao. Para Stanislavski,

    (Traduo minha) Sua origem a mesma. Em um caso trata-se de uma presuno (o se); no outro, de seu complemento (as circunstncias dadas). O se sempre d comeo criao; as circunstncias dadas a desenvolvem. Sem elas o se no pode existir nem adquirir sua fora de estmulo. Mas suas funes so distintas: o se d o impulso imaginao adormecida,

  • [29]

    enquanto que as circunstncias dadas do fundamento ao se. Ambas ajudam a criar o estmulo interior13

    . (Stanislavski, 2003, p.67)

    Vejamos um exemplo de aplicao do se mgico na construo de um

    espetculo orientado por Stanislavski e descrito por Toporkov. Trata-se da

    construo de Toporkov para o personagem do caixeiro Vnechka em

    Desfalco, de Valentn Katiev. Aps a apresentao de uma cena em que

    Toporkov est em seu posto de caixeiro, Stanislavski questiona-o sobre o

    contedo da caixa-forte. As perguntas so simples:

    (Traduo minha) O senhor caixeiro; logo, o que h em sua caixa? (...) Dinheiro, est claro. Mas, o que mais? Quero detalhes. O senhor disse dinheiro. Porm quanto? Que tipo de dinheiro? Como o guarda? De onde veio? Que tipo de mesa, que cadeira tem em seu compartimento, quantas lamparinas? Em geral, conte-me detalhadamente sobre as coisas que o rodeiam (silncio...). J se v, o senhor desconhece o mais essencial de seu heri: sua rotina diria. Quais so seus interesses? Quais so suas desventuras...14

    (TOPORKOV, 1961, p.52-53).

    13 Su origen es el mismo. En un caso se trata de una pesuncin (el si); en el otro, de su complemento (las circuntncias dadas). El si siempre da comienzo a la creacin; las circunstancias dadas la desarrollan. Sin ellas el si no puede existir ni adquirir su fuerza de estmulo. Pero sus funciones son algo distintas: el si da un impulso a imaginacin adormecida, mientras que las circunstancias dadas dan fundamento al si. Entre ellos ayudan a crear el estmulo interior.

    14 Usted es cajero, luego, qu es lo que hay en su caja? (...) Dinero, claro est. Pero, e que ms? Quero detalles. Usted dice dinero. Pero cunto? Qu clase de dinero? Como lo guarda? Dnde lo tiene? Qu clase de mesa, qu silla tiene en su compartimiento, cuntas lamparitas...? En general, cunteme detalladamente acerca de todas las cosas que lo rodean. (...) Ya lo ve, usted desconoce lo ms esencial de su hroe: su rutina diaria. Cules son sus intereses, cules son sus cuitas...

  • [30]

    A partir da Stanislavski realiza verbalmente uma composio minuciosa

    de todas as caractersticas fsicas, psicolgicas, sociais e emocionais do

    caixeiro Vnechka. Para o mestre, se Toporkov fosse Vnechka, ele seria um

    homem modesto, jovem e simptico. A melhor coisa da sua vida estar em

    seu posto de caixeiro. Portanto, tudo o que concerne a este lugar motivo de

    sua preocupao: desde o lpis azul ao qual deu o nome de um amigo at a

    ordem e limpeza do local, a disposio dos objetos, dos mveis e da grande

    caixa-forte. Tudo isso orgulho de Vnechka. A caixa-forte abre e fecha sem

    rudos, porque suas fechaduras so untadas com graxa. O barulho suave que

    produzem ao abrir leva Vnechka a um verdadeiro gozo esttico, msica

    para seus ouvidos. H muito dinheiro nessa caixa e Vnechka sabe sempre o

    valor exato. Emociona-se, quando o montante aumenta ou diminui em grande

    quantidade. Quando, por falta de dinheiro, no pode efetuar os pagamentos,

    vive essa tragdia com o funcionrio que deveria receber. Nunca cometeu um

    erro nos clculos. Apesar de sua modstia e juventude, tem certa fama no

    mundo dos contadores e o chefe gosta muito do seu trabalho. Vnechka, por

    sua vez, tambm adora o chefe, como um soldado raso gosta do seu capito.

    Qualquer possibilidade de desordem ou desequilbrio desse mundo causa

    grande desgosto a Vnechka e torna-se motivo para suas conversas nas horas

    vagas.

    Aps vrios apontamentos desse tipo, Stanislavski orienta Toporkov a

    imaginar a complexa gama de sentimentos desse personagem, quando

    desperta depois de uma bebedeira em um vago de luxo do trem a caminho de

    Leningrado, e descobre um desfalque de uma dezena de milhares de rublos,

    essa provavelmente a maior tragdia de sua vida.

  • [31]

    Na bronca de Stanislavski vem a indicao de pequenas aes que

    poderiam ser criadas a partir dessas circunstncias:

    (Traduo minha) O senhor no criou esse mundo, no o sentiu intimamente, no tratou de encarn-lo em cena. No importa que o autor no nos mostre. Mas o senhor estando em seu compartimento durante a funo, com a janela fechada, quando ningum o via, ou, recluso, antes que comeasse o ensaio, tratou de viver fisicamente todas as peripcias da vida de seu heri, por exemplo, sacudir a terra, limpar a bombeia, ordenar o dinheiro, fazer a ponta do lpis, etc.? No, no fez, e no melhor dos casos ensaiava a inflexo da voz com que vai dizer sua primeira frase, quando se abre a janela e comea a parte visvel do seu papel. O senhor no criou as razes que nutririam seu personagem15

    . (TOPORKOV, 1961, p.54).

    Toporkov conta quando chegou ao teatro no dia seguinte seguiu as

    indicaes de Stanislavski e, sem se dar conta, foi arrastado pelos afazeres do

    caixeiro Vnechka. Ele sabia o que deveria ser feito e depois de uma olhada ao

    redor sacudiu a terra dos ps e comeou a organizar o dinheiro sobre a mesa.

    Seu objetivo era deixar o espao bem apresentvel. Tratou de fazer com

    grande empenho e ateno e isso pareceu lhe trazer algum resultado. Pegou o

    lpis e se props a fazer uma boa ponta, empregando toda a sua ateno para

    que ela ficasse perfeita. Tudo lhe pareceu muito prazeroso, principalmente pelo

    15 Usted no la cerado este mundo, no lo ha sentido intimamente, ni ha tratado de encarnarlo en el escenario. No importa que el autor no nos lo muestre, mas usted, estando en su cuchitril durante la funcin, con la ventanilla cerrada, cuando nadie lo ve, o, incluso, antes de que empiece el ensayo: trat de vivir fsicamente todas las minsculas peripecias de la vida de su hroe, por ejemplo, sacudir la tierra, limpiar la bombita, ordenar el dinhero, scarle la punta al lpiz, etctera? No, no lo ha hecho, y en el mejor de los casos ensayaba la inflexin de la voz con que dir su primera frase, cuando se abra su ventanilla y empience la parte visible de su papel. Usted no cre las races qeu nutriran a su personaje.

  • [32]

    fato de que, agora, ocupava-se de algo concreto, suas aes tinham um

    propsito.

    1.2 A ao fsica configura-se com a tarefa16

    Em vrios textos escritos por Stanislavski a ao fsica nomeada como

    ao psicofsica. Essa nomenclatura se d principalmente pelo fato de que no

    decurso de sua execuo as aes devem desencadear processos interiores,

    agindo como uma espcie de isca desses processos. Para Stanislavski

    (2003) o ponto principal das aes fsicas est no que elas evocam e no nelas

    mesmas; assim, as razes interiores que levam o heri de uma pea ao

    suicdio so mais importantes que o fato de ele acabar se matando. Para o

    mestre russo, existe sempre uma ligao entre a ao cnica e a coisa que a

    precipitou.

    Assim, para a execuo da ao, o ator necessita de uma tarefa interna

    imediata que a provoque. Segundo Stanislavski (2003), no h aes fsicas

    dissociadas de algum desejo, de algum esforo voltado para alguma coisa, de

    alguma tarefa, sem que se sinta, interiormente, algo que as justifique; no h

    uma nica ao imaginria que no contenha certo grau de ao ou

    pensamento. 16 Opto nessa pesquisa por utilizar as palavras tarefa e supertarefa em consonncia com a opinio de Jorge Saura na edio espanhola de 2003 para o livro El trabajo del actor sobre si mesmo em el proceso creador de la vivencia que defende os conceitos de tarefa e supertarefa em detrimento de objetivo e super-objetivo conforme os motivos elencados nessa citao: o termo tarefa habitualmente se traduz como objetivo, mas considero mais adequado traduzi-lo por tarefa por duas razes: em primeiro lugar a traduo literal da palavra russa utilizada por Stanislavski, e em segundo lugar objetivo induz a pensar em um resultado a alcanar, enquanto que tarefa sugere um processo que deve recorrer em todas as suas etapas, ideia mais prxima a teoria Stanislavskiana. (Stanislavski, 2003, p.149).

  • [33]

    Depois de se colocar a pergunta: se eu fosse o personagem, como agiria

    nesse momento? e pensar sobre como essa pergunta poderia ser

    transformada em uma tarefa cnica as respostas deveriam vir em forma de

    ao. O segredo deste processo consiste em no pensar na sinceridade das

    emoes, porque estas no dependem do ator.

    Como foi dito, para Stanislavski, as aes funcionam como uma isca de

    processos interiores. como se elas funcionassem como uma espcie de

    catalisador dos outros elementos do sistema; sobretudo, daqueles ligados aos

    processos interiores do ator. Mais uma vez recorremos a Stanislavski:

    Portanto, o novo segredo e a qualidade nova de meu mtodo para criar a entidade fsica, o ser fsico, de um papel consiste no fato de que a mais simples ao fsica, ao ser executada por um ator em cena, obriga-o a criar, de acordo com seus prprios impulsos, toda sorte de fices imaginrias. (Stanislavski, 1989, p.282 e 283).

    Acompanhando mais uma aula do alterego Tortsov descrita no livro El

    trabajo del actor sobere su papel (1975), podemos observar uma forma de

    abordagem do texto atravs das aes fsicas. Inicialmente, proposto a dois

    atores que representem a primeira cena de Otelo. Esta cena acontece na frente

    do palcio de Brabncio, entre Rodrigo e Iago. Como aquela era a primeira

    abordagem do texto, os atores perguntam ao mestre como seria possvel

    representar uma cena assim, de repente. Tortsov explica que eles no

    precisam fazer tudo, o que precisam fazer realizar as tarefas fsicas mais

    simples do personagem, realizar as suas aes.

  • [34]

    Na referida cena, a primeira ao descrita pelo texto a chegada de Iago

    e Rodrigo s portas do palcio. Portanto, os atores devem entrar em cena, mas

    no fazer isso como dois atores, preocupados em representar algo ou divertir o

    pblico, eles devem fazer isso como os personagens fariam, com a tarefa clara

    de acordar aqueles que esto dormindo atrs das grossas paredes do palcio.

    Os atores devem ter a clareza de que ao entrarem em cena j esto s

    portas do palcio, e a partir da agir no sentido de descobrir o que fazer para

    cumprir sua tarefa de acordar Brabncio. Para realizar essa tarefa, devem criar

    outras pequenas tarefas fsicas. Podem olhar para todas as janelas para ver se

    h alguma luz acesa, algum indcio de que algum est acordado, se h

    algum perto de alguma janela. E se encontrarem tero que tentar chamar a

    sua ateno. Para isso podem se movimentar, sacudir os braos, gritar ou

    atirar pedras na janela. Essa tarefa pode ser frustrada, ento podem repetir

    isso em diferentes pontos, buscar outras janelas, porque, se conseguirem

    despertar uma nica pessoa, esta despertar o resto da casa.

    Segundo Stanislavski, em suas aes os atores devem buscar perceber

    fisicamente a verdade e a acreditar nela (Stanislavski, 1993, p.200). Para cada

    tarefa, pequena ou grande, o ator deve encontrar uma verdade fsica pequena

    ou grande. A tendncia dos atores que querem entreter o pblico executar

    suas aes em ritmo acelerado; desta forma as tarefas so atropeladas. J na

    ao fsica autntica e viva, a energia controlada para que a ao tenha

    clareza e preciso.

    Se o ator representa sem a necessidade de realizar tarefas especficas,

    no acreditamos na verdade do seu personagem. Quando o diretor lhe pede

    que execute uma ao, ele vai faz-la apenas por fazer, sem se preocupar com

  • [35]

    o resultado. Mas para Iago e Rodrigo a preocupao de que o resultado de seu

    plano seja atingido total. uma questo de vida e morte que, como no

    exemplo do louco atrs da porta, deve evocar o senso de preservao humana

    dos atores. Portanto, precisam procurar uma luz nas janelas, chamar aos

    gritos, para encontrarem uma maneira de comunicarem-se de forma autntica

    e viva com os habitantes do palcio e no para ficarem se agitando em torno

    das cadeiras que representam um palcio no palco.

    Para Stanislavski, um erro que muitos atores cometem em cena pensar

    no resultado, em vez de concentrar-se na tarefa que o levar ao resultado.

    (Traduo Minha) Em cada momento de sua vida o homem quer algo, tende para algo. A criao cnica consiste em colocar-se grandes tarefas e uma ao autntica, criadora, orientada para um fim para realiz-las. O resultado se cria por si mesmo, se todo o anterior foi cumprido corretamente. (...) Ao evitar a ao mesma, tendem para o resultado por um caminho direto. Assim se obtm um produto forado e s pode levar mediocridade. Aprendam a habituar-se no palco a no forar o resultado; pelo contrrio, alcancem-no atravs da ao, de modo, autntico e coerente, durante todo o tempo que estiverem em cena. preciso amar a tarefa e saber achar sua ao correspondente17

    . (Stanislavski, 2003, p.159)

    Pelas descries das montagens acompanhadas por Toporkov, boa parte

    dos ensaios era dedicada ao exerccio de encontrar as tarefas corretas e

    conseguir control-las. Essa uma questo to importante para Stanislavski

    17 En cada momento de su vida el hombre quiere algo, tiende hacia algo. La creacin escnica consiste en plantearse grandes tareas y una accin autntica, creadora, orientada hacia un fin, para realizarlas. El resultado se crea por s mismo, si todo lo anterior se ha cumplido correctamente. (...) Al evitar la accin misma, tienden hacia el resultado por un camino directo. As se obtiene un producto forzado que slo puede llevar a la mediocridad.

  • [36]

    (2003) que ele acabou formulando algumas regras ou caractersticas para uma

    correta eleio das tarefas cnicas:

    1 As tarefas devem estar do lado de dentro da ribalta. Elas esto

    relacionadas com a obra e projetadas para os outros atores e no dirigidos

    para os espectadores.

    2 Elas devem ser pessoais e podem, inclusive, ir alm das proposies

    descritas pelo autor para o personagem que esto representando.

    3 Devem ser criativas e artsticas, no sentido de criar a vida de uma alma

    humana e expressa-l de forma artstica.

    4 Devem ser reais, vivas e humanas, capazes de impulsionar o papel

    para adiante; no podem ser mortas, convencionais ou teatrais.

    5 Devem ser verdadeiras de modo que os atores representam e o pblico

    possa acreditar nelas.

    6 Devem ter a qualidade de atrair e mobilizar o ator.

    7 Devem ser claras e tpicas do papel que esto representando. No

    tolerando noes vagas. Devem ser nitidamente tecidas dentro da estrutura do

    papel que lhes toca representar.

    8 Devem ter valor e contedo para corresponder essncia ntima do

    homem. No devem ser superficiais ou ocas.

    Stanislavski (2003) ensinava que mesmo na ausncia completa de

    movimento possvel se executar uma ao fsica desde que ela tenha uma

    tarefa clara. Um exemplo interessante que contempla esse caso um exerccio

    que o professor Tortsov executou com uma de suas alunas. No incio da aula

    ele pede a ela que suba ao palco e sente-se em uma cadeira; no momento

  • [37]

    seguinte ele abriria a cortina e minutos depois a fecharia uma tarefa fcil,

    comenta. Durante o exerccio o que se viu foi uma artificialidade, um desejo de

    entreter o pblico mudando vrias vezes de posio. Ansiedade e desconforto

    eram os sintomas que predominaram na aluna. Para Stanislavski (2003), na

    maioria dos casos, a mentira teatral resulta mais acessvel do que a verdade da

    natureza humana; assim, muito mais fcil para o ator estar no palco

    afetadamente do que simplesmente estar. Em situaes de imobilidade muito

    comum o rosto buscar uma expresso falsa, como no caso dessa aluna, cujo

    rosto assumiu a mscara de culpa ou splica de perdo, por no saber o que

    fazer e nem para onde olhar.

    Ento, sem explicar muito, Tortsov pede para que essa aluna volte ao

    palco e anuncia que desta vez ele ir atuar com ela. Comeariam agora um

    exerccio de outra natureza. A garota se sentou novamente na cadeira e

    Tortsov, em p ao seu lado, passou a procurar cuidadosamente algo em seu

    livro de apontamentos. Alguns minutos se passaram e a aluna foi se

    tranquilizando e por fim estava imvel, olhando atentamente para Tortsov. No

    queria atrapalh-lo e esperava com pacincia que o mestre lhe desse uma

    nova indicao. Naturalmente sua posio na cadeira tornou-se autntica e

    verdadeira.

    Tortsov interrompe o exerccio e parabeniza a aluna por seu bom

    desempenho. Ela no acredita que estava atuando, no pode entender aquilo

    que os demais alunos que a estiveram observando compreenderam. O fato de

    que sentar-se em cena e fazer algo, por mais insignificante que fosse, era

    muito mais interessante do que sentar-se e tentar mostrar os pezinhos ou

    mudar de posio.

  • [38]

    (Traduo minha) A imobilidade de quem est sentado em cena no significa necessariamente uma atitude passiva explicou Tortsov. Pode-se permanecer quieto e, sem dvida, atuar realmente. Mais ainda: muitas vezes a falta de movimentos fsicos deriva uma intensa atividade interior, que de particular importncia para a criao. O valor da arte se determina por seu contedo espiritual. Posso mudar algo na frmula para dizer assim: em cena deve-se atuar interna e externamente. De modo que se cumpra uma das bases principais da nossa escola: a atividade e o dinamismo de nossa criao cnica18

    . (Stanislavski, 2003, p.55)

    A segunda parte do prlogo na montagem de Almas Mortas, de Gogol,

    descrito por Toporkov (1961), mostra o diretor Stanislavski aplicando suas

    ideias a respeito da imobilidade preenchida por uma ao interior. Nessa cena,

    o monlogo de Chchikov e sua linha de ao fsica foram criados com o

    personagem sentado em uma cadeira. Com a experincia e criatividade de um

    grande mestre, Stanislavski concebe esse monlogo como um dilogo: uma

    acalorada disputa entre o raciocnio e o sentimento. Um que por questo de

    sobrevivncia precisa sair o mais rpido possvel e outro que compreende,

    apesar da pressa, que precisa refletir e planejar seus atos antes de partir.

    Com essa primeira definio Stanislavski orienta Toporkov a dividir-se em

    dois, razo e sentimento, como dois adversrios que devem se enfrentar. Essa

    diviso uma proposio fsica onde uma parte se situa na cabea e a outra,

    18 La inmovilidad de quien est sentado en el escenario no significa necesariamente una actitud pasiva explic Tortsov. Se puede permanecer quieto y, sin embargo, actuar realmente. Ms an: no pocas veces la falta de movimientos fsicos deriva de una intensa actividad interior, lo cual es de particular importancia en la creacin. El valor del arte se determina por su contenido espiritual. Por eso cambio algo la frmula para decirla as: en escena hay que actuar interna e externamente. De este modo se cumple una de las bases principales de nuestra escuela: la actividad y el dinamismo de nuestra creacin escnica.

  • [39]

    no plexo solar. De acordo com quem vai ganhando, Chchikov tem o impulso

    de saltar do acento com a inteno de executar a tarefa, antes que algum

    possa adiantar-se ao seu plano, mas o outro lado, pelo contrrio, se esfora

    por permanecer sentado na cadeira. Atravs desse exerccio o monlogo

    praticamente imvel ganhou vida, tornando-se muito interessante.

    Segundo Toporkov, muitas vezes, vista da escassez de elementos

    indicados pelo autor, torna-se muito difcil para os atores determinar as tarefas

    cnicas de certas aes. Trata-se de cenas em que a descrio do autor

    poderia ser at mesmo muito interessante, pitoresca e definitiva, mas, por isso

    mesmo, difcil de traduzir para a linguagem cnica. Cenas que, primeira vista,

    no davam pistas suficientemente claras sobre a linha de ao dos

    personagens. Muitas vezes, essa dificuldade reside no fato de no ser possvel

    responder, atravs das circunstncias dadas, as perguntas: o que deseja o

    personagem?; e o que espera do personagem com quem contracena?. Para

    Stanislavski, sem a resposta para essas perguntas o ator no capaz de

    definir a tarefa da ao e dificilmente alcanar xito.

    Em outra cena de Almas Mortas descrita por Toporkov (1961), Kedrov, o

    ator que representa o personagem de Manlov, experimentou uma dificuldade

    como essa. Trata-se da cena em que Chchikov, o personagem representado

    por Toporkov, vai executar a primeira compra das almas mortas. Ele escolhe

    Manlov para a primeira compra, porque acredita que ele seja o mais tolo entre

    as possibilidades que tem pra iniciar seus negcios. primeira vista, o autor

    descreve bem as caractersticas de perfil de Manlov que levaram a essa

    escolha, um homem sentimental, cordial e hospitaleiro e, por isso mesmo, mais

    fcil de ser passado para trs.

  • [40]

    Toporkov conta que mesmo depois de muitos ensaios Kedrov no

    conseguia encontrar as tarefas de seu personagem. Mesmo com as insistentes

    indagaes de Kedrov sobre tais tarefas, o diretor de cena, Sajnovski, no

    soube dar uma finalidade clara para suas aes. E, como haviam previsto os

    atores, quando Stanislavski assistiu a essa cena, percebeu que faltava algo, e

    foi ento que todos testemunharam a sensvel capacidade do mestre para criar

    tarefas concretas para cenas que a princpio no tinham. Stanislavski observou

    de imediato que, apesar da escolha de Chchikov por um Manlov cordial,

    hospitaleiro e tolo, aquela era ainda a primeira compra de Chchikov e, apesar

    de sua tarefa clara, Chchikov deveria encontrar obstculos para a consumao

    de seu feito. Dentro de sua cordialidade, as aes de Manlov deveriam ser

    realizadas de modo que acabassem por trazer condies desfavorveis ao

    andamento do negcio. Por exemplo, ao acomodar Chchikov no salo

    reservado especialmente para as visitas, ele deveria faz-lo, colocando-o na

    posio mais incmoda, observando-o com encantamento e desesperando-se

    se por acaso ele tentasse mudar de posio. Por sua vez, Toporkov deveria

    tentar mudar de posio sem que ele percebesse, tentando aproximar-se para

    uma conversa mais ntima. Aps vrios exerccios dessa natureza Stanislavski

    comentou:

    (Traduo minha) Vocs se do conta da diferena de tarefas de Manlov e Chchikov? Se Manlov fosse apenas um anfitrio cordial e hospitaleiro, o assunto seria mais simples. Mas ele admira suas prprias qualidades. A preocupao de um anfitrio verdadeiramente cordial e hospitaleiro dar prazer a seu convidado. Manlov oferece este prazer a si mesmo custa do sofrimento de sua visita. Encantam-lhe as cenas: Hei-nos aqui, eu e o senhor Chchikov almoando, Hei-nos aqui, filosofando

  • [41]

    em belas poltronas, Hei-nos aqui, eu, minha esposa e o senhor Chchikov sonhando com uma vida embaixo do mesmo teto, etc. Por isso toda a movimentao de Manlov ao redor de seu convidado a movimentao de um fotgrafo compondo grupos de cenas para fazer suas tomadas. Os senhores percebem que isso pode resultar desesperador? E principalmente para Chchikov, que veio falar de um assunto perigoso e suscetvel19

    . (TOPORKOV, 1961, p.117).

    Toporkov observa que, a partir dessa proposta de luta, os atores tinham

    onde se segurar para prosseguir com os ensaios. Desenvolvendo o tema

    proposto por Stanislavski, uma base firme para a criao das aes, eles

    retomavam a cena com entusiasmo, encontrando uma srie de momentos

    cmicos resultantes da simples compreenso de qual era o conflito da cena:

    (Traduo minha) Agora se do conta de onde est o problema? Chchikov vem por um assunto delicado, complexo e perigoso, e tropea com uma pessoa que se props a utilizar sua chegada para toda uma srie de fotografias sobre o tema: A chegada de Pablo Ivnovich Chchikov minha propriedade rural. Vocs se do conta quo distintas so as tarefas de ambos e como se molestam reciprocamente em conseguir cada qual o resultado desejado? Como difcil para Chchikov persuadir o fotgrafo, obsessivo em fazer as suas tomadas idlico-sentimentais, e obrig-lo a pisar em terra firme, e, por outro lado, que trabalho custar a Manlov introduzir no lbum de suas instantneas o inesperado

    19 Se dan cuenta de la diferencia de objetivos de Manlov y Chchikov? Si Manlov fuera slo un husped cordial y hospitalario, el asunto sera ms sencillo. Pero l admira sus propias cualidades. La preocupacin de un husped verdaderamente cordial y hospitaleiro es brindar un placer a su invitado. Manlov se brinda este placer a s mismo a costa del sufrimiento de su visita. Le encantan las puestas en escena: Henos aqu, a m y al senr Chchikov almorzando, Henos aqu filosofando en sendos sillones, Henos aqu a m, a mi esposa y al senr Chchikov, soando con una vida vajo el mismo techo, etctera. Por eso todo el trajinar de Manlov alrededor de su invitado es el trajinar de un fotgrafo componiendo grupos para hacer unas tomas. Perciben ustedes qu desesperante puede resultar esto? Y principalmente para Chchikov, que vino a hablar de un asunto peligroso y quisquilloso.

  • [42]

    elemento das almas mortas20

    . (TOPORKOV, 1961, p.117-118).

    Por mais correta que seja uma tarefa, uma qualidade importante e

    essencial que ela deve ter ser atraente para o prprio artista. necessrio

    que ele goste e se interesse por ela para querer realiz-la. Seu magnetismo

    deve ser um estmulo para o desejo criador. Alm disso, devem ser acessveis

    e realizveis. No adianta colocar uma grande tarefa para um personagem

    como por exemplo, salvar a humanidade , porque isso no algo realizvel.

    Devem-se colocar tarefas fsicas, mesmo que algumas tarefas fsicas tenham

    uma grande carga psicolgica como, por exemplo, matar uma pessoa.

    A proposta de criao de tarefas cnicas muitas vezes est ligada

    questo da simplicidade. Em outras palavras podemos dizer que, muitas vezes,

    a execuo da tarefa cnica, no mtodo das aes fsicas de Stanislavski,

    busca realizar a ao pura e simplesmente, buscando alcanar, dessa maneira,

    um efeito maior do que aquele alcanado em uma tentativa de interpretar a

    ao.

    Toporkov admite que em vrios momentos de sua atuao nas

    montagens de Stanislavski teve dificuldade de realizar uma ao fsica.

    Segundo ele, uma coisa imaginar e criar o desenho cnico, as circunstncias

    20 Ahora se dan cuenta dnde est el problema? Chchikov viene por un asunto delicado, complejo y peligroso, y tropieza con una persona que se propone utilizar su llegada para toda una serie de fotografias sobre el tema:La llegada de Pablo Ivnovich Chchikov a mi finca rural. Se dan cuenta cun distintos son los objetivos de ambos y cmo se molestan recprocamente en conseguir cada cual el resultado deseado? Qu difcil resulta para Chchikov doblegar al fotgrafo, obsesionado en hacer sus tomas idlico-sentimentales, y obligarlo a pisar tierra firme, y, por otra parte, qu trabajo le costar a Manlov introducir en el lbum de sus instantneas el inesperado elemento de las almas muertas.

  • [43]

    dadas e as tarefas, outra, bem diferente, realizar a ao que cumpre essas

    tarefas e circunstncias. Para Toporkov, em alguns casos apenas depois de

    muito trabalho e repetio que o ator vai conseguir alcanar a simplicidade e

    sua encarnao viva e orgnica em cena, alcanar essa qualidade especial

    graas a qual os intrpretes parecem personagens da vida real21

    Para entender a questo da simplicidade, vamos analisar uma construo

    de cena dirigida por Stanislavski para a montagem de Desfalco, de Valentn

    Katiev. Trata-se de uma cena em que a famlia do contador chefe o espera

    para o almoo. Ele est atrasado e sua esposa impaciente. De repente, batem

    porta e, quando sua esposa abre, o contador chefe entra acompanhado do

    caixeiro Vnechka. Ambos esto bbados e bem-humorados. Minutos antes,

    na cervejaria, o contador chefe teve a ideia de casar sua filha com o caixeiro, e

    com essa novidade chega sua casa, trazendo vinho e presunto para a

    comemorao. Mas a mulher do contador os recebe com insultos de toda

    natureza, insultos que o caixeiro nunca havia ouvido antes. Pela indicao do

    autor, Vnechka comea a tremer de medo da mulher. Buscando acalmar a

    esposa o contador chefe a leva para o quarto ao lado e tenta lhe explicar as

    vantagens do seu plano.

    . (Traduo

    minha) (TOPORKOV, 1961, p.111).

    O autor apresentou essas circunstncias dadas que so o tempero para

    a cena. Dando sequncia aos procedimentos de criao que estudamos

    anteriormente, Stanislavski pergunta a Toporkov o que faria a partir disso,

    como se comportaria agora que est sozinho na sala de seu chefe. Para

    21 (...) su encarnacin viva y orgnica en el escenario, lograr esta calidad especial gracias a la cual los intrpretes parecen personajes de la vida real.

  • [44]

    Toporkov no h muitas alternativas, pode ficar ali parado um tempo e depois

    se aproximar da porta, tentar escutar e olhar pela fechadura. Mas para

    Stanislavski isso no pouco, ele sabe que escutar e espiar atrs da porta

    pode se transformar em uma cena riqussima.

    Pede ento para que Toporkov execute essas aes, porm o resultado

    no bom. Est claro para o diretor que o ator no est ouvindo nada atrs da

    porta. Ele parece tentar interpretar algo, mostrar que escuta enquanto o que

    precisa fazer ouvir sinceramente os sons que vem detrs da porta. Antes

    ainda, o mestre acha que Toporkov deve se responder por que quer escutar?

    Por curiosidade a resposta que ele obtm, mas que Stanislavski no

    questiona. No entanto quando o ator repete a ao ela no sai convincente.

    Stanislavski tenta estimular Toporkov com algumas perguntas: Como atuaria

    se realmente e, custe o que custar, tivesse que inteirar-se do que est

    acontecendo na outra sala? Mas a cada nova repetio a cena parece cada

    vez mais distante do que Stanislavski acredita que ela possa vir a ser.

    possvel que nunca tenha escutado atrs da porta? Trate de recordar como

    fazia determina o diretor.

    Aps novas repeties, quando a ao de escutar j parece um pouco

    mais sincera, Toporkov pe-se a espiar pelo buraco da fechadura. Enquanto

    executa essa ao, Stanislavski sugere que algum possa ter enfiado uma

    agulha de tecer pelo buraco na direo de seu olho. Toporkov salta, mas

    Stanislavski interrompe, porque todos os movimentos parecem falsos e ele no

    consegue acreditar em nada. Depois de dezenas de repeties com indicaes

    para no se inibir, no tencionar tal ou qual msculo do corpo, finalmente algo

    comea a insinuar-se.

  • [45]

    Stanislavski aprova as aes, mas percebe que h ainda um yapa.

    Trata-se de uma pequena sobra, uma pequena tentativa de interpretao

    apenas perceptvel, se observado com ateno. Essa sobra tem seguramente

    a finalidade de fazer rir. Toporkov questiona, no acha que isso seja demais j

    que toda a cena na concepo do autor cmica. Mas o mestre garante que

    ela ser ainda mais cmica se o ator fizer apenas o necessrio. Este o grau

    mais expressivo. Os agregados, as sobras nunca beneficiam. o que se

    chama falsa teatralidade. Encontrar a justa medida , em nosso oficio, a tarefa

    mais difcil.22

    Toporkov faz mais algumas tentativas infrutferas e, quando j est um

    pouco nervoso e decididamente se rebela de tentar interpretar qualquer coisa,

    apenas executa as aes. Aproxima-se da porta e escuta, depois se agacha

    simplesmente, olha pelo buraco da fechadura e salta para trs. ento que

    ouve as gargalhadas sinceras de todos os presentes. Stanislavski o parabeniza

    pelo exerccio corretssimo, aconselhando-o a buscar essa mesma

    simplicidade em todas as outras cenas do espetculo.

    (Traduo minha) (TOPORKOV, 1961, p.60).

    1.3 A Supertarefa como recurso norteador da linha de aes fsicas

    Com o tempo um procedimento passou a fazer parte dos processos de

    criao de Stanislavski. Ainda na fase de anlise da obra, onde se estabelecia

    as circunstncias dadas, o ator enumerava cada uma das rplicas e reaes

    de cada um dos outros personagens da obra. Criando uma correlao efetiva

    22 ste es el grado ms expresivo. Los agregados, las colitas nunca benefician. Es lo que se llama falsa teatralidad.

  • [46]

    desde o comeo at o fim da pea, de tal modo que, nos ensaios, quando

    precisava estabelecer uma tarefa para suas aes fsicas, sua referncia seria

    concreta.

    (Traduo minha) Toda ao a expresso cnica de uma tarefa e tem uma justificao interior. H de ser lgica, coerente e real. A ao psquica interior deve preceder fsica exterior. Uma tarefa viva engendra uma ao verdadeira. No se deve esquecer de que a diviso em unidade e tarefas temporria aos efeitos de anlise da primeira etapa, no devendo ficar fragmentos nem no papel nem na obra durante a representao. Durante o transcurso progressivo dos ensaios se vo integrando, permanecendo totalmente fundidos nas representaes e dando por resultado a linha inquebrvel dos personagens. Em nenhum momento da representao o comediante deve perder o sentido do todo, que expresso das supertarefas de cada um dos mesmos23

    . (TOPORKOV, 1961, p.17).

    A supertarefa mais um elemento do sistema que tem grande

    importncia para Stanislavski, porque define a linha de ao do personagem de

    modo inequvoco e definitivo. A supertarefa a essncia e o ideal mximo

    do personagem, o seu sentido do todo alcanado atravs do estudo correto

    de suas unidades de ao e pequenas tarefas. Stanislavski (2003) ensinava

    que, apesar da supertarefa estar expressa pelo ator de forma ininterrupta

    durante todo o decorrer da pea, possvel que algumas tarefas cnicas 23 Toda accin es la expresin escnica del objetivo y tiene su justificacin interior. Ha de ser lgica, coherente y real. La accin psquica o interior ha de preceder a la fsica o exterior. Un objetivo vivo engendra una accin verdadera. No olvidar que la divisin en unidades y objetivos es temporaria y a los efectos del anlisis de la primera etapa, no debiendo quedar fragmentados ni el papel ni la obra durante la representacin. Durante el transcurso progresivo de los ensayos se van integrando, quedando totalmente fusionados en las representaciones y dando por resultado la lnea inquebrantable de los personajes, expresin de los super-objetivos de cada uno de los mismos.

  • [47]

    parecessem estar em flagrante contradio com ele e, muitas vezes, eram

    essas aparentes contradies que tornavam o personagem grande e atraente

    ao pblico.

    Para Mara Knbel (2000), a supertarefa do homem-artista a tese

    fundamental do Sistema de Stanislavski, porque sintetiza a concepo do

    mundo criado pelo autor como condio necessria para a criao consciente.

    A supertarefa dirige a fantasia do artista, faz mais ativa sua imaginao e torna

    mais apaixonado e direto todo o processo de construo de um personagem.

    Stanislavski acreditava que quando o ator realizava corretamente as

    tarefas fundamentais de seu personagem encontrava tambm a razo de ser

    desse papel e gradualmente poderia construir a sua linha de aes fsicas.

    Esta linha de aes delineava traos psicolgicos do personagem e estava

    ligada diretamente supertarefa:

    (Traduo minha) Esta linha inquebrvel galvaniza todas as unidades e tarefas da obra e as direciona para a supertarefa. Se uma ao fsica ou psquica por mnima que seja no est relacionada com a supertarefa, se no expressa mediante essa linha inquebrvel, no verdadeira e deve ser descartada por que suprflua (no agrega nada) ou equivocada (parte de uma suposio e no de uma realidade)24

    . (FARBERMAN in TOPORKOV, 1961, p.19)

    24 Esta lnea inquebrantable galvaniza todas las unidades y objetivos de la obra y los dirige hacia el super-objetivo. Si una accin fsica o psquica por mnima que sea no est relacionada con el super-objetivo, si no es expresada mediante esa lnea inquebrantable, no es verdadera y debe ser desechada por superflua (que no agrega nada) o por equivocada (que parte de un supuesto y no de una realidad).

  • [48]

    Analisando mais uma das aulas do professor Tortsov, alterego de

    Stanislavski (1997), podemos observar alguns de seus ensinamentos para que

    os atores estejam prevenidos contra as tendncias e propsitos estranhos ao

    tema principal, s reaes voltadas no caminho oposto de suas aes,

    preservando, principalmente, a linha de aes formada pelas tarefas

    fundamentais e a supertarefa. Como um dos elementos mais importantes do

    sistema, a supertarefa tem a funo de delimitar e focar a construo da linha

    de aes fsicas do personagem, uma estrutura criada a partir de uma

    sequncia lgica em direo ideia principal, onde toda ao se encontra com

    uma reao, que por sua vez intensifica a primeira. Em toda obra, alm da

    ao principal, encontramos seu impedimento oposto. E o consideramos

    valioso, porque seu resultado mais ao.

    como se, na organizao sequencial das aes em uma linha lgica de

    tarefas, o ator estivesse construindo uma sequncia tambm de reaes. A

    partir da primeira ao o ator pauta suas tarefas como uma reao sua

    prpria ao anterior ou, ainda, como reao da ao realizada por seu

    parceiro de cena como reao da primeira ao que executou. Para

    Stanislavski essa linha de aes e reaes, formada a partir de tarefas

    concretas, que vai dar ao ator aquilo que ser o mais interessante em sua

    construo, aquilo que o espectador vai ver primeiro na encenao e, por

    conseguinte, aquilo que ir convenc-lo da autenticidade da cena que est

    assistindo, das emoes que os personagens esto transmitindo e da

    veracidade das palavras que esto sendo ditas.

  • [49]

    1.4 A fala cnica vem da ao

    Para Knbel, no s Stanislavski, mas todo o povo russo tem um apreo

    muito grande pelas palavras ditas em cena. Essa constatao talvez se traduza

    no fato de que grandes autores, como Gorki, Tchekov, Ggol e Tolstoi, sempre

    exerceram forte influncia sobre a vida e identidade social russa. Knbel afirma

    que no por acaso que as palavras de Ggol, os sons da alma e do corao

    expressados por meio da palavra, sejam consideradas por vrios mestres da

    cena teatral russa mais variados que os sons musicais. (Knbel, 2000, p. 19)

    Assim, para Knbel (2000), a palavra cantada pelo corao, ou seja,

    pronunciada no palco com sinceridade e veracidade, a palavra que desvela

    toda a riqueza de pensamentos e sentimentos da pessoa predomina na arte do

    ator russo. Por conseguinte, pelo fato de essa palavra cantada com o

    corao ser muito mais complicada e difcil que a arte das falsas nfases, da

    declamao convencional e da retrica afetada, que a histria da formao do

    teatro russo est cheia de buscas, reflexes e tentativas de abrir os caminhos

    que pudessem conduzir o ator para a palavra viva no palco. O teatro russo

    educado no respeito e amor palavra, em muitas ocasies, delineava e

    estudava o problema da fala cnica, unindo-a a todo o conjunto de problemas

    da arte realista. (Traduo minha)25

    Consensualmente a toda a tradio do teatro russo, Stanislavski d

    grande nfase ao texto dito em cena. Por outro lado, ao longo de sua trajetria

    Stanislavski chegou concluso de que o teatro ao, e tudo o que ocorre

    (Knbel, 2000, p. 20)

    25 El teatro ruso, educado en el respeto y amor a la palabra, en muchas ocasiones planteaba y estudiaba el problema del habla escnica unindolo a todo el conjunto de problemas del arte realista.

  • [50]

    em cena sempre ao, expresso ativa do pensamento, da ideia, enrgica e

    ativa transmisso dessa ideia ao espectador. A arte dramtica uma arte de

    sntese: tem sua disposio toda uma complexa gama de recursos artsticos.

    Porm, segundo Stanislavski (2003), o principal e decisivo recurso para

    influenciar o pblico no espetculo dramtico a palavra.

    A ideia e o pensamento se expressam atravs de meios complexos,

    porem a palavra fundamental. Para Knbel, o sistema de Stanislavski tem

    como grande objetivo conseguir na cena o mesmo que na vida, que o

    processo de contato verbal entre as pessoas seja um processo enrgico, ativo,

    que a palavra em cena seja sempre racional, produtiva, enrgica e voltil, que

    seja sempre ao. (Traduo minha)26

    Portanto, na discusso sobre o texto falado, Stanislavski (2003) traz, mais

    uma vez, uma srie de apontamentos ligados ao. Ele orientava o ator a

    criar uma linha de preocupaes relacionadas com o assunto proposto e

    proceder de acordo com ela para, s ento, comear a dizer o texto. Partindo

    do pressuposto de que a palavra est indissoluvelmente unida aos

    pensamentos, ideias e atos do personagem, o mestre russo considerava que o

    ator s chegaria a uma palavra viva como resultado de um grande trabalho

    preparatrio que o conduzia a encontrar as palavras imprescindveis para

    expressar os pensamentos desse personagem.

    (Knbel, 2000, p. 32)

    26 (...) Conseguir que en la escena, lo mismo que en la vida, el proceso de contacto verbal entre personas sea un proceso enrgico, activo, que la palabra en escena sea siempre racional, productiva, enrgica y volitiva, que sea siempre accin.

  • [51]

    Para Stanislavski, ali, onde o trabalho do ator se baseia nos msculos da

    lngua, prima-se o ofcio, enquanto que o ator que parte de percepes visuais

    um criador. (Traduo minha)27

    Retomando a montagem em que Toporkov encenava o caixeiro Venechka

    em Desfalco, de Valentn Katiev, tomemos como elemento de anlise uma

    cena em que o ator tentava apoiar seu trabalho na entonao que daria para o

    texto, Stanislavski imediatamente condena a sua atitude. Deixa claro que

    enquanto o ator buscar uma entonao para texto vai conseguir apenas uma

    sobreatuao calcada na voz, incapaz de levar cena para uma construo

    autntica. E, ainda em consequncia disso, essa sobreatuao, construda em

    um erro de interpretao, saturaria os ouvidos com entonaes falsas que

    seriam muito difceis de corrigir depois.

    (TOPORKOV, 1961, p.113).

    Os conselhos para Toporkov so para no pensar na frase nem no tom

    de voz porque eles se formariam sozinhos. Ele deveria pensar apenas em

    como se comportar:

    (Traduo minha) Pense que justamente o senhor e nenhum outro personagem da obra est encarregado de dividir vrios milhares de rublos entre os membros de um artel (quadrilha de trabalho em cooperativa), que se amontoam em frente a sua janela. O senhor se responsabiliza por cada funcionrio. Vamos ver como o senhor atua... Tenha em conta que qualquer um pode ser um componente da quadrilha, todos so ladres e o senhor tem que proceder com cautela. Com