O baile do monstro: O mito da Paz de Vestfália na história das relações internacionais modernas

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Relações Internacionais

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    O baile do monstro:

    O mito da Paz de Vestflia na histria das relaes internacionais modernas

    The Monster Ball:

    The myth of the Peace of Westphalia in the history of modern international relations

    Diego Santos Vieira de JESUS

    Resumo: O objetivo deste artigo problematizar o mito da Paz de Vestflia nas relaes

    internacionais modernas, trazendo interpretaes alternativas para tal evento e para seus impactos

    no estudo da histria das relaes internacionais e nas relaes internacionais contemporneas.

    Problematizando, primeiramente o marco histrico, o argumento central aponta que a Paz de

    Vestflia no promoveu profunda inovao nem ruptura em relao perspectiva anterior Guerra

    dos Trinta Anos no que diz respeito aos aspectos essenciais das unidades constitutivas do Sacro

    Imprio Romano e das prerrogativas do imperador, apenas confirmou uma ordem cooperativa legal

    de entidades autnomas no-soberanas. O questionamento da existncia emprica de um sistema

    inviolvel de Estados soberanos evidencia, a seguir, as brechas nos princpios de autonomia e de

    territorialidade do modelo vestfaliano de relaes internacionais. Finalmente, as interpretaes

    alternativas do impacto da Paz de Vestflia para as relaes internacionais e para seu estudo

    indicam que a igualdade formal entre os Estados intensifica dificuldades na resposta s diferenas

    na cultura, na religio e no modo de vida.

    Palavras-chave: Histria das Relaes Internacionais; Paz de Vestflia; Soberania.

    Abstract: The aim of this article is to cast doubt on the myth of the Peace of Westphalia in modern

    international relations, bringing alternative interpretations for such an event and its impact on the

    study of the history of international relations and contemporary international relations. First,

    discussing the historical framework, the central argument points out that the Peace of Westphalia

    did not promote any important innovation or break-up in relation to the perspective before the

    Thirty Years' War regarding to the essential aspects of the constituent units of the Holy Roman

    Empire and the emperors prerogatives confirming just a cooperative legal order from non-sovereign autonomous entities. The questioning to the empirical existence of an inviolable system

    of sovereign states shows the gaps in the principles of autonomy and territoriality of the

    Westphalian model of international relations. Finally, the alternative interpretations of the impact of

    the Peace of Westphalia on international relations and its study indicate that the formal equality

    among states intensify difficulties in the response to differences in culture, religion and ways of life.

    Keywords: History of International Relations; Peace of Westphalia; Sovereignty.

    A Paz de Vestflia de 1648 refere-se a um conjunto de tratados que encerrou a Guerra dos

    Trinta Anos, iniciada com a intensificao da rivalidade poltica entre o Imperador Habsburgo do

    Sacro Imprio Romano-Germnico e as cidades-Estado luteranas e calvinistas no territrio do norte

    da atual Alemanha que se opunham ao seu controle. Tal guerra teve o envolvimento de potncias

    catlicas administradas pelos Habsburgo, como a Espanha e ustria, e tambm de Estados

    protestantes escandinavos e da Frana, que, mesmo sendo catlica, temia o domnio dos Habsburgo

    na Europa e apoiou os protestantes no conflito. Enquanto o tratado entre a Espanha e os Pases

    Professor Doutor Instituto de Relaes Internacionais e Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais

    PUC-Rio Pontifcia Universidade Catlica Rua Marqus de So Vicente, 225, CEP: 22451-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

    Questionamento acerca da segurana ontolgica; crtica ao conceber o outro conforme a antropologia contemplativa; projeto de unidade nacional que massifica/engessa o pluralismo sociocultural circundante.

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    Baixos assinado em Mnster, no ms de janeiro ps fim Guerra dos Oitenta Anos, o tratado

    assinado em Osnabrck, em outubro, pelo Sacro Imperador Romano-Germnico Fernando III, pelos

    prncipes do Sacro Imprio Romano-Germnico, pela Frana e pela Sucia encerrou a luta dessas

    duas ltimas potncias com o Sacro Imprio. Nos estudos mais tradicionais sobre tal evento e da

    histria das relaes internacionais, concebe-se que a Paz de Vestflia, alm de consolidar a

    independncia dos Pases Baixos, abalou o poder do Sacro Imperador, alm de ter autorizado que os

    governantes dos estados germnicos gozassem a prerrogativa de estipular a religio oficial dos

    territrios sem interferncia externa e oferecido reconhecimento legal aos calvinistas (WATSON,

    1992, p.182-197).

    Ao passo que a Frana firmava-se como a principal potncia europeia e os Habsburgo viam

    sua ambio hegemnica ser tolhida aps a Paz de Vestflia, os resultados daqueles acordos foram

    mais amplos para o estudo das relaes internacionais modernas e contemporneas. A Paz de

    Vestflia concebida como um marco fundamental do sistema laico das interaes e dos princpios

    estatais modernos, como a soberania territorial, a no-interferncia na poltica domstica dos demais

    Estados e a tolerncia entre unidades polticas dotadas de direitos iguais. Como destaca Philpott

    (1999, p.567-569), Vestflia permitiu a constituio da sociedade internacional, com normas

    mutuamente acordadas que definem os detentores de autoridade e suas prerrogativas, sendo o

    Estado moderno essa autoridade detentora de soberania. O sistema de Estados soberanos exigia

    instituies estatais dentro das fronteiras e o desaparecimento de autoridades que interferissem de

    fora, para que a autoridade suprema vigorasse dentro do territrio e tivesse independncia poltica e

    integridade territorial. Tal autoridade conota legitimidade aqui entendida como o direito de

    controlar instituies e poderes e territorialidade, num momento em que as pessoas governadas

    pelos detentores de soberania so definidas pela locao dentro das fronteiras, no por relaes

    familiares ou por crena religiosa.

    Nos termos mais tradicionais, a Paz de Vestflia concebida na rea de Relaes

    Internacionais como uma revoluo constitucional, pois, embora no tenham trazido uma

    metamorfose instantnea e as instituies polticas medievais ainda tenham permanecido por um

    bom tempo, tais tratados consolidaram o sistema moderno e trouxeram prticas subsequentes que

    definiram uma nova estrutura para a autoridade poltica. Ao estabelecer o Estado como entidade

    poltica legtima, o conceito principal de autonomia consolidou-se nas liberdades dadas s cidades-

    Estado alems em relao interferncia imperial. Naquele momento, a igualdade entre cidades-

    Estado europeias e a rejeio da autoridade universal papal e imperial apareciam frequentemente,

    enquanto os negociadores j vislumbravam um equilbrio europeu, que pressupunha ao

    independente. Outro princpio consolidado foi o da no-interveno: embora o Sacro Imprio

    Romano tenha continuado a existir, os prncipes podiam fazer alianas fora do Imprio, de forma a

    Princpio de soberania conforma na apreciao da norma que concede ao Estado o direito de existir como entidade independente, base para a individualidade e segurana, compartilhamento de valores comuns e institucionalizao de prticas para formar uma comunidade.

    Ou a no ingerncia externa a assuntos estritamente de trato interno

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    exercerem poder independente, e nem os prncipes nem o imperador intervieram para resolver

    questes religiosas no territrio de outro prncipe. Ademais, foram oferecidas garantias a novas

    unidades quanto adeso ao sistema, desde que tivessem atributos como um governo vivel, o

    controle do prprio territrio e a habilidade para fazer e honrar tratados. Com expanso colonial no

    sculo XIX e a descolonizao afro-asitica do sculo XX, o sistema de Vestflia adquiriu uma

    abrangncia maior, chegando tambm periferia do planeta (PHILPOTT, 1999, p.579-584).

    Nesse sentido, a Paz de Vestflia tornou-se um marco fundamental para os estudos das

    relaes internacionais contemporneas. Porm, como destaca Walker (2005, p.7), a construo de

    mitos de origem nas Relaes Internacionais naturalizam uma interpretao especfica e particular

    da histria e recorrem ao universal construindo um regime sobre a verdade do sistema

    internacional com o objetivo de preservar os mecanismos de poder e de excluir interpretaes e

    fenmenos alternativos, silenciando-se vises contrastantes e projetando aspectos do momento

    particular para outros tempos. Desafiando essa fora de criao do mito da Paz de Vestfilia, o

    objetivo deste artigo problematizar tal mito nas relaes internacionais modernas, trazendo

    interpretaes alternativas para tal evento e para seus impactos no estudo da histria das relaes

    internacionais e nas relaes internacionais contemporneas. Problematizando primeiramente o

    marco histrico, o argumento central aponta que a Paz de Vestflia no promoveu profunda

    inovao nem ruptura em relao perspectiva anterior Guerra dos Trinta Anos quanto a aspectos

    essenciais das unidades constitutivas do Sacro Imprio Romano e das prerrogativas do imperador e

    apenas confirmou uma ordem cooperativa legal de entidades autnomas no-soberanas. O

    questionamento da existncia emprica de um sistema inviolvel de Estados soberanos evidencia, a

    seguir, as brechas nos princpios de autonomia e de territorialidade do modelo vestfaliano de

    relaes internacionais. Finalmente, as interpretaes alternativas do impacto da Paz de Vestflia

    para as relaes internacionais e para seu estudo indicam que a igualdade formal entre os Estados

    intensifica dificuldades na resposta s diferenas na cultura, na religio e no modo de vida. As

    divises do artigo cobriro os passos indicados, e, na ltima seo, buscarei o desenvolvimento de

    um entendimento alternativo das fronteiras vestfalianas.

    A problematizao do marco histrico

    A viso dominante na academia sobre a Paz de Vestflia aponta que o Sacro Imprio estava

    mais dividido em 1648 que antes de 1618 e que o papel do imperador foi reduzido com os tratados.

    A Guerra dos Trinta Anos teria sido conduzida contra a ameaa trazida pelos Habsburgo, e

    Vestflia teria trazido maior enfoque soberania e construo de ordem anti-hegemnica. Nesse

    sentido, a Paz de Vetsflia representa o fim de uma luta entre as aspiraes hierrquicas lideradas

    pelos Habsburgo na configurao da ordem internacional e as aspiraes de surgimento de novos

    Mitos fundadores que amoldam pretenses universalistas ; o falseamento dos discursos de oficialidade histrica promotores da manuteno das relaes de poder.

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    Estados. Porm, desestabilizando a verso mais tradicional, a perspectiva crtica assumida neste

    artigo permite observar que nenhum dos atores que lutaram contra Habsburgo foi guerra por

    propsitos simplesmente defensivos em relao s supostas ambies hegemnicas da dinastia.

    Ao passo que a Frana e a Sucia desejavam a guerra para erodir a posio dos Habsburgo e a

    Frana visava a derrotar a ustria para tomar a liderana dos Estados catlicos, a Dinamarca temia

    que foras da Contrarreforma pudessem conquistar o territrio do norte da atual Alemanha antes

    dela. Ao contrrio do que as verses mais tradicionais da histria das relaes internacionais do

    perodo defendem, os Habsburgo no representavam uma ameaa iminente a tais atores nem os

    haviam atacado em seus prprios territrios. Ademais, Vestflia no estabeleceu o sistema

    vestfaliano baseado no Estado soberano nem criou um prottipo do sistema internacional atual

    embasado na soberania, mas apenas confirmou a existncia de uma ordem cooperativa legal de

    entidades autnomas no-soberanas (OSIANDER, 2001, p.270-273).

    A viso mais tpica acerca de Vestflia foi constituda e reproduzida por historiadores dos

    sculos XIX e XX, influenciados pela propaganda anti-Habsburgo. Porm, ela no leva em conta

    que nenhum dos tratados de 1648 tocou na questo da soberania nem faz meno aos seus

    corolrios, como a no-interveno, ou ao contedo positivo da soberania, particularmente as reas

    sobre as quais o Estado pode comandar legitimamente. Vestflia no promoveu profunda inovao

    ou ruptura em relao s caractersticas das unidades constitutivas do Sacro Imprio e das

    prerrogativas do imperador, que eram em 1648 praticamente as mesmas que em 1618, alm de que

    instituies do Sacro Imprio continuaram existindo, pois diversos atores as consideravam teis.

    Alguns Estados menores, por exemplo, poderiam utiliz-las para efetuar o equilbrio de poder em

    relao a membros maiores. Outras entidades polticas com controle exclusivo sobre um territrio

    bem definido existiam antes de Vestflia, como era o caso da Inglaterra, ao passo que instituies

    feudais e universais como o Sacro Imprio e o papado continuaram a existir depois. Nesse sentido,

    Vestflia no representou profunda ruptura com a ordem poltica anterior, num momento que

    parecia refletir muito mais os interesses de curto prazo dos poderes vitoriosos em vez de uma

    conceituao ampla das formas como o sistema internacional deveria ser ordenado (OSIANDER,

    2001, p.260-268; KRASNER, 1993, 1996).

    O que Vestflia fez, em certa medida, foi consagrar uma ordem cooperativa legal de entidades

    autnomas no-soberanas, o que indica que a soberania no o nico conceito ou forma possvel de

    interpretar a interao entre atores autnomos. As unidades constitutivas do Sacro Imprio no eram

    sujeitas autoridade centralizada, mas ao controle jurdico externo, de forma que o Sacro Imprio

    lembrava menos um Estado e mais um regime. O direito das unidades de concluir alianas com

    atores estrangeiros existia antes de Vestflia. Alm disso, a condio de ator nas relaes

    internacionais era baseada menos no poder militar e mais na conveno mtua, num momento em

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    que as unidades constitutivas do imprio, bem como a entidade coletiva que constituam, existiram

    por causa do empowerment mtuo e coletivo, sustentado por um cdigo compartilhado de

    legitimidade estrutural e procedimental. Assim, em vez de pensarem exclusivamente no

    autointeresse, tais unidades demonstravam um volume considervel de comportamento social, e o

    nvel de autonomia dos atores pode variar consideravelmente em parte por sua prpria escolha ,

    sem necessariamente levar dominao hegemnica. Diante do elevado nvel de ligao

    transfronteiria entre tais unidades, formas mais sofisticadas de cooperao institucionalizada foram

    sendo elaboradas (OSIANDER, 2001, p.270-284).

    Abalizado numa perspectiva histrica dinmica, cumulativa e retrospectivamente inteligvel

    no teleolgica da interao entre estruturas de propriedade e prticas antagnicas

    transformadoras das relaes sociais, Teschke (2003) desvela mecanismos generativos e

    transformativos das ordens geopolticas internacionais ao explicar suas diferenas institucionais e

    dinmica de transio, com base nas estratgias de reproduo de classe: mais do que fenmenos

    econmicos, as relaes sociais de propriedade so uma prxis social, que, ao mediar relaes intra

    e interclassistas, constitui unidades da ordem geopoltica, que operaro a mudana desse sistema.

    Os confrontos temporalmente especficos entre foras sociais cristalizam-se em instituies

    condicionantes de estratgias antagnicas de reproduo de relaes historicamente particulares

    entre e dentro de classes, fixando regimes de propriedade politicamente construdos e conflitos

    sociais que orientam a mudana e constituem interaes determinantes da operao das ordens

    geopolticas.

    A partir do questionamento da direo temtica e legitimidade histrica do mito de Vestflia

    como base da interao estatal moderna, o autor aponta que possvel problematizar concepes

    estticas e deterministas da ordem e, num entendimento dialtico do desenvolvimento histrico,

    mudar o enfoque dos mecanismos sistmicos de estruturao da ordem para uma interpretao

    crtica que elucida relaes sociais sustentadoras da ordem vestfaliana e a interdependncia das

    constituies do econmico/poltico e domstico/internacional pelas relaes de propriedade. Nessa

    perspectiva, a Paz de Vestflia, em vez de inaugurar relaes interestatais modernas, somente

    reconhece um sistema germnico de interao no-moderna entre unidades miniabsolutistas plurais

    no-secularizadas, embasado em relaes de propriedade social pr-capitalista, e cristaliza o status

    quo territorial e legal favorvel aos vencedores da Guerra dos Trinta Anos. A juridificao da

    poltica continental dinstica com referncia nos Estados germnicos objetivava a manuteno de

    paz, no a conquista de autodeterminao (TESCHKE, 2003).

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    As brechas nos princpios de territorialidade e de autonomia

    As leituras mais tradicionais sobre a Paz de Vestflia na histria das relaes internacionais

    apontam que o modelo vestfaliano de sociedade internacional que se estende at os dias atuais um

    sistema de autoridade poltica caracterizado pelos princpios de autonomia e de territrio. Porm, a

    leitura crtica proposta neste artigo sinaliza que, ao contrrio do que sugere tal concepo mais

    tradicional, o modelo vestfaliano no foi um equilbrio estvel ao longo da Histria, de forma que

    os Estados frequentemente tiveram incentivo e poder para viol-lo ou para abrir brechas em seus

    princpios. De acordo com Krasner (1996, p.123-140), a brechas no modelo vestfaliano de uma

    soberania inviolvel ficam visveis nas convenes internacionais, acordos nos quais os Estados

    fazem compromissos que expem suas prprias polticas a algum tipo de escrutnio externo ao

    concordarem em seguir certas prticas domsticas. Alm disso, com a coero, os Estados ameaam

    impor sanes a menos que as contrapartes comprometam sua autonomia domstica, e o alvo pode

    obedecer ou resistir. No caso da imposio, os Estados-alvo so to fracos, que devem aceitar

    estruturas e polticas domsticas preferidas por atores poderosos, pois, caso contrrio, sero

    eliminados.

    Os contratos e as convenes internacionais jamais violam a definio do direito internacional

    para soberania o direito de certos atores a aderir a acordos internacionais , mas podem violar o

    modelo vestfaliano se comprometerem a autonomia do Estado. A coero e a imposio pode violar

    tanto a concepo de soberania do direito internacional como o modelo vestfaliano. Esses

    mecanismos deixam pelo menos um ator com prejuzos. Cumpre lembrar que comprometer

    Vestflia foi, algumas vezes, visto como a melhor forma de se alcanar a paz e a estabilidade.

    Segundo Krasner (1996, p.140-149), os principais tratados e acordos de paz incluindo a prpria

    Paz de Vestflia incluram violaes ao modelo vestfaliano, principalmente ao princpio da

    autonomia. As infraes ao modelo de Vestflia no foram encobertas ou no-explicadas; ao

    contrrio, foram justificadas por princpios alternativos como os direitos humanos, os direitos das

    minorias, a responsabilidade fiscal, a estabilidade domstica ou o equilbrio externo at a

    contemporaneidade.

    Nesse sentido, a ordem vestfaliana pautada nos princpios de autonomia e territorialidade

    caracterizada pela independncia poltica dos Estados e pela no-interveno nos assuntos

    domsticos uns dos outros foi, ao longo da Histria, constantemente comprometida em face da

    atrao dos Estados pela adeso a princpios alternativos que permitiriam a satisfao dos seus

    interesses, bem como a consolidao das assimetrias de poder. Krasner (1996, p.150-151) destaca

    que, como no existe no sistema internacional uma autoridade suprema capaz de controlar ou de

    impedir as aes desses Estados, tais atores tiveram o incentivo e a oportunidade para violar

    princpios de autonomia e de independncia de ao de acordo com os seus interesses muitas

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    vezes aderindo a princpios alternativos com o objetivo de maximizar seus ganhos e preservar a

    estabilidade da ordem global e seu poder.

    Alm disso, os princpios de territorialidade e de autonomia e as brechas abertas nesses

    princpios pela atrao por princpios alternativos no esto dados ou fixos. Ao contrrio, eles

    podem ser vistos como resultados de processos complexos de construo da identidade estatal.

    Transcendendo a viso de simples instrumentalizao da cultura na busca de satisfao de interesses

    materiais pelos Estados e desvelando a dinmica cultural constitutiva de identidades e interesses na

    formao dessas comunidades polticas, Rae (2002) explica a resistncia de procedimentos

    sistemticos de homogeneizao patolgica de constituio estatal com base na relevncia da

    manipulao temporal e espacialmente especfica de recursos simblicos disponveis para elites.

    Tais elites visam construo da identidade coletiva estatal pela excluso sistemtica da diferena e

    legitimao de sua autoridade nas fronteiras dessa comunidade poltica unificada. A construo da

    identidade corporativa interna mutuamente constitutiva da identidade social externa do Estado, de

    forma que as prticas excludentes domsticas levaram ao desenvolvimento de normas

    internacionais de comportamento legtimo que as proscrevem e tm efeito na construo dessa

    identidade corporativa. A identidade social do Estado pode operar como constrangimento externo a

    mecanismos patolgicos de homogeneizao oferecendo alternativas de legitimao do poder,

    embora algumas vezes possa ser insuficiente para a reconstituio de estruturas normativas internas

    que apontem para noes menos exclusivistas de cidadania, garantindo-se os pr-requisitos para a

    permanncia da violncia na relao com a diferena.

    Com o enfoque na definio de fronteiras polticas a partir de prticas internas de

    homogeneizao, Rae (2002) ilumina a operao do processo disciplinador da subjetividade

    baseado na manipulao e reproduo de referenciais simblicos, em que os mtodos para a

    definio do Estado, como ordem normativa central, viabilizam a identificao ao autorizar o

    tratamento discriminatrio dos outsiders. Torna-se patente a multiplicidade de estratgias

    excludentes empregadas pelas elites construtoras do Estado para conquista da homogeneizao

    populacional e a legitimao de autoridade, desde polticas de assimilao at prticas refinadas de

    extermnio e expulso. A criao do outro como categoria social compe um procedimento

    poltico de traduo espao-temporal da diversidade como ameaa e de expulso e aniquilao

    dessa diferena objetivada pelas elites, buscando preservar a unidade soberana. A autora

    desestabiliza a fronteira analtica entre interno e externo, compreendendo que a dinmica poltica

    nos contornos da entidade soberana no est desconexa da poltica internacional: a manipulao

    simblica continua atrativa para legitimar regimes, mas a proteo de cidados em relao a seus

    governos torna-se preocupao transterritorial, fortalecendo atritos entre a no-interveno e a

    defesa de princpios universais como os direitos humanos no mundo contemporneo.

    Emudecimento dos discursos arbitrrios; subjetivaao foucaultiana e a naturalizao atravs da coercitividade discursiva, no cabendo ao indivduo seno o convencimento/conformismo.

    O outro encorpado como aquele que apresenta desvirtuamento moral ou tergiverso da uniformidade comportamental aceitvel, readmitindo a jurisdicidade interestatal como promotora do resguardo inclume dos indivduos, bem como homogeneizao. de signos simblicos e imageticos conotativo do protagonismo isonomico-legalista, concordia multilateral e integridade de autoridade.

  • 228

    A Paz de Vestflia e o problema da diferena

    Alm de desestabilizar o marco histrico e o modelo vestfaliano, tambm possvel

    desenvolver interpretaes alternativas do impacto da Paz de Vestflia para as relaes

    internacionais e para seu estudo. Ao contrrio do que propem as interpretaes tradicionais sobre o

    evento, Blaney e Inayatullah (2000, p.33-44; 2004, p.93-125) apontam que, embora Vestflia seja

    entendida convencionalmente como um marco na transio para uma ordem mais secular e

    tolerante, os arranjos institucionais desenvolvidos naquele momento serviram para assegurar a

    persistncia e a centralidade do problema da diferena na sociedade internacional. Num momento

    em que a Guerra dos Trinta Anos tinha representado uma cruzada contra a diferena, envolvido a

    equao entre diferena e inferioridade e operado como a culminao inevitvel de um longo

    perodo em que a diferena era traduzida como um objeto a ser erradicado. A Paz de Vestflia

    parecia, primeira vista, uma resposta limpeza religiosa e devastao material e psicolgica da

    Guerra dos Trinta Anos. Porm, embora tenha levado a uma dtente externa entre as unidades

    polticas no Sacro Imprio, Vestflia fez pouco para romper a concepo e a prtica de delineao

    da diferena como uma inferioridade a ser erradicada. Ao contrrio, a venerao que a rea de

    Relaes Internacionais ofereceu Vestflia tendeu a desviar a ateno de respostas criativas

    diferena que foram perdidas durante o perodo, bem como esvair a tarefa de explorar a fonte das

    chagas na resposta dominante diferena e anlise das maneiras em que o discurso intelectual

    reforou, em vez de desafiar, a interpretao da diferena como uma aberrao perigosa das normas

    de estabilidade, segurana e ordem.

    A releitura crtica de Vestflia por Blaney e Inayatullah (2000, 2004) viabiliza a

    problematizao de tal evento visto tradicionalmente como um marco de transio para uma

    modernidade mais tolerante e oferece uma nfase influncia deletria da Guerra dos Trinta Anos

    no discurso intelectual sobre a diferena, administrada a partir de estratgias espaciais de

    segmentao. Na prtica, em vez de resolver o problema da diferena religiosa, Vestflia manteve

    vivos os conflitos religiosos, perpetuando as divises religiosas, mas numa forma contida. Apesar

    da defesa da liberdade religiosa, as limitaes morais colocadas sobre lderes entravam em conflito

    com direito soberano de ditar a f do reino. O efeito disso foi a diviso da Europa em espaos

    catlicos e protestantes, dentro dos quais minorias no-conformadas continuavam sendo problema.

    Nesse sentido, a segmentao entre dentro e fora constitutiva da sociedade de Estados que

    consolida as delimitaes geopolticas como receptculos espaciais da diversidade cultural e nos

    mantm refns do entendimento depreciativo da diferena opera como pr-requisito para o

    adiamento do problema da diferena e a diluio de oportunidades para maior engajamento com a

    diversidade. Tal quadro decorre das implicaes prticas e intelectuais da homogeneizao cultural

    sistemtica e da constituio uniformizadora das novas unidades polticas, que realoca o

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    problema para a dimenso domstica onde se esperava que a diversidade fosse administrada e

    perpetua a violncia com relao s minorias no-conformadas f nacional dentro dessas

    unidades (BLANEY; INAYATULLAH, 2004, p.44-45).

    A tolerncia entre elas procede do equilbrio de poder e no do reconhecimento genuno da

    diversidade, consolidando-se a noo de que a construo de uma diferena internacionalizada

    poderia resolver o problema ao se negociarem regras para o relacionamento entre comunidades

    polticas. Porm, tal procedimento restringe o reconhecimento dos Outros internos e a apreciao

    do Eu como parte do Outro alm das fronteiras. A resposta hierarquizante e disciplinadora

    diferena domesticamente transborda para seu tratamento na esfera externa: entendida como

    elemento desestabilizador da harmonia domstica, a diferena interna gerenciada com hierarquia,

    erradicao, assimilao ou expulso, enquanto a externa vista como ameaa constante interditada

    nas fronteiras, enfrentada militarmente ou colonizada. Naquele contexto, em resposta s guerras

    religiosas e aos desafios na incorporao dos amerndios s vises de mundo europeias, o legado

    intelectual do momento naturaliza a diferena como elemento desestabilizador da associao

    poltica unificada e harmoniosa. Pensadores modernos inseridos em empreendimentos de

    pacificao buscavam fundaes no-questionveis da autoridade soberana e desproviam o estado

    de natureza da riqueza da sociedade civil. Nessa ocasio, a classificao dos amerndios num

    estgio pr-social associado desordem o estado de natureza procurava resguardar a noo de

    superioridade cultural europeia e fortalecer a justificativa de prticas coloniais. Em vez de apoiar

    a abertura em relao ao Outro, o legado intelectual da poca carrega uma suspeita intensa em

    relao diferena, vista como causa da desordem, enquanto a uniformidade e a homogeneidade

    eram associadas ordem social e estabilidade (BLANEY; INAYATULLAH, 2004, p.93-125).

    Porm, Blaney e Inayatullah (2004) vislumbram que a ambiguidade na caracterizao da diferena

    como fonte de desordem, mas tambm como de desejo sugere a possibilidade de entendimentos

    tico-polticos alternativos na zona de contato com tal diferena. Essa selvageria era uma

    possibilidade em cada ser humano e, alm de perigo, representava desejo. Tem-se, assim,

    elementos de improviso que explicitam possibilidades de engajamento com a diferena,

    permitindo reconhecer elementos de contato e fortalecer elementos de redeno.

    Por um entendimento alternativo das fronteiras vestfalianas

    A partir do questionamento do marco histrico da Paz de Vestflia, da evidncia de brechas

    no modelo vestfaliano de ordem internacional e da crtica marginalizao da diferena que tais

    fronteiras vestfalianas promoveram, possvel esclarecer no apenas as relaes de poder evidentes

    no conhecimento produzido sobre o mito de Vestflia na histria das relaes internacionais, mas

    buscar alternativas na forma de pensarmos e entendermos as fronteiras, inicialmente erguidas pelo

  • 230

    discurso da soberania. Problematizando a aceitao de limites territoriais cristalizados e

    naturalizados, Williams (2006) salienta que as fronteiras territoriais podem ser concebidas como

    eticamente fundamentais na expresso e na preservao da diversidade na poltica internacional e

    operar como mecanismos de sustentao da tolerncia diferena. Seria fundamental, assim,

    repensar as fronteiras com base no seu significado tico como prticas sociais. Isso permitiria

    ressaltar o papel da agncia humana e possibilitaria a articulao arendtiana da pluralidade essencial

    a uma leitura distinta da tica global de tolerncia: vendo na promessa e no perdo as orientaes

    para a superao dos erros passados, concebe-se um espao intermedirio de intersubjetividade

    no qual se viabilizam a constituio da identidade com o engajamento com a diferena e o

    compartilhamento de valores por meio da interao social (WILLIAMS, 2006).

    A partir das concepes de antecedncia da diversidade em relao soberania e de simbiose

    entre ambos, o tratamento complexo das fronteiras territoriais constri-se a partir da

    problematizao do conceito vestfaliano de soberania. Questionando noes reificadoras de

    fronteiras como cercas, podemos buscar ferramentas metodolgicas e analticas para a elucidao

    do papel intrinsecamente tico desses limites sem menosprezar a fora da soberania como norma

    constitutiva da sociedade internacional: tais fronteiras so entendidas como resultado de prticas

    sociais que podem existir independentemente da soberania, e a soberania compreendida como

    uma resposta provisria e dinmica no imutvel e essencializada aos desafios trazidos pela

    diversidade, demarcando espaos polticos que permitem a constituio de comunidades distintas e

    a delimitao de valores plurais com potencial imanente de mudana. Ao estabelecer uma conexo

    entre a redefinio crtica das fronteiras territoriais pela geografia poltica ps-positivista e a

    investigao de questes tico-normativas nas Relaes Internacionais, Williams apreende o

    instrumental terico de Hannah Arendt para a investigao da relevncia tica das fronteiras

    territoriais na preservao da diversidade, retornando-as ao mundo poltico a partir da

    defensibilidade tica no seu tratamento como prticas sociais e permitindo escapar ao seu

    confinamento a conceitos essencializados, como a noo dominante de soberania vestfaliana.

    Concebendo que o autoconhecimento fundamental para o reconhecimento da diferena, seus

    mritos abalizam-se na explorao da conexo da pluralidade comunidade, no reconhecimento da

    condio humana aos demais indivduos e na compreenso da poltica distinta da burocratizao

    do aparato administrativo que restringe o envolvimento poltico das massas como a forma maior

    de atividade humana, em que so desenvolvidas oportunidades de constituio da identidade e das

    noes de pertencimento no engajamento dinmico e flexvel com a diversidade num contexto de

    entendimentos compartilhados, produzidos numa interao social que no implica aniquilao ou

    padronizao da pluralidade dentro de comunidades ou entre elas.

  • 231

    A defesa da pluralidade como imperativo tico transcende a constituio homogeneizante do

    pluralismo pelas noes reificadoras de identidade comunal e focadas no Estado como o

    nacionalismo e significados polticos universalizantes: o direito de pertencer a comunidades

    polticas assegura sentido e efetividade posse de direitos o direito de ter direitos e reafirma a

    pluralidade dos indivduos, negada por projetos totalitrios que os submetem solido ao

    desarticularem sua capacidade de se relacionar com os outros. Ao estabelecerem espaos

    discursivos intermedirios de reconhecimento e engajamento com a diversidade, as fronteiras

    podem ajudar a compor a pluralidade das comunidades humanas pela distino entre elas em base

    territorial, e a violncia da intolerncia politicamente nula representa uma ameaa ao espao

    poltico ao destruir os sentidos da promessa e do perdo. No sentido da superao do simples

    significado tico derivativo dessas fronteiras, poderamos caminhar rumo defesa tica positiva,

    que examina a relevncia das prticas sociais de criao de fronteiras territoriais na manuteno da

    convivncia e do engajamento, genunos diversidade, e dos diferentes nveis de acomodao da

    diferena no sistema poltico. A criao dos espaos intermedirios nos quais a ao poltica se

    processa a partir do entendimento e dilogo viabilizaria a desreificao e a repolitizao das

    fronteiras, encorajando maior riqueza nas concepes de pluralismo e pluralidade a partir do

    envolvimento poltico entre indivduos e comunidades reais, no de conceitos abstratos como uma

    imensa coletividade humana ou de prticas elitistas de interao diplomtica. Porm, at o

    momento, ainda somos, na viso de Blaney e Inayatullah (2000), refns dos tipos de impulso em

    relao diferena que marcaram a Guerra dos Trinta Anos, num momento em que continuamos

    com o entendimento da diferena como desordem e falhamos na apreciao de oportunidades e de

    recursos que acompanham o engajamento com o Outro dentro e fora das fronteiras. Enquanto ainda

    continuamos vendo simplesmente monstros que nos atormentam, perdemos oportunidades de

    entender a complexidade dos universos por trs dessas mscaras que danam.

    Referncias bibliogrficas:

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    Artigo recebido em 05/2010. Aprovado em 08/2010.