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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
THALLES TADEU BRUNELLO ZABAN
O BÕÕ PAGÃO: A CAVALARIA DE PALAMEDES
EM A DEMANDA DO SANTO GRAAL
VITÓRIA 2013
THALLES TADEU BRUNELLO ZABAN
O BÕÕ PAGÃO: A CAVALARIA DE PALAMEDES
EM A DEMANDA DO SANTO GRAAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, na área de Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré.
VITÓRIA 2013
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
(Centro de Documentação do Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Z12b
Zaban, Thalles Tadeu Brunello, 1979-
O bõõ pagão : a cavalaria de Palamedes em A demanda do Santo Graal / Thalles Tadeu
Brunello Zaban. – 2013.
101 f.
Orientador: Paulo Roberto Sodré.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências
Humanas e Naturais.
1. A demanda do Santo Graal – Crítica e interpretação. 2. Literatura medieval – História e
crítica. 3. Cavaleiros e cavalaria na literatura. 4. Palamedes – Personagem literário. I. Sodré,
Paulo Roberto. II. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e
Naturais. III. Título.
CDU: 82
THALLES TADEU BRUNELLO ZABAN
O BÕÕ PAGÃO: A CAVALARIA DE PALAMEDES EM A DEMANDA DO SANTO GRAAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, na área de Letras.
Aprovada em ___ de ____________ de 2013.
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré Universidade Federal do Espírito Santo Orientador ___________________________________________ Profa. Dra. Fabíola Simão Padilha Trefzger Universidade Federal do Espírito Santo Membro titular do PPGL ___________________________________________ Prof. Dr. Michel Sleiman Universidade de São Paulo Membro titular externo ao PPGL ___________________________________________ Profa. Dra. Leni Ribeiro Leite Universidade Federal do Espírito Santo Membro suplente do PPGL ___________________________________________ Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz Universidade Federal da Bahia Membro suplente externo ao PPGL
A meus pais, pela eterna compreensão. À Gisele, pelo carinho mais que necessário.
Ao prof. dr. Paulo Roberto Sodré, pela soberana paciência. À Capes, pelo crédito e apoio financeiro.
A todos os amigos que, de alguma forma, me deram armas para a demanda.
RESUMO
Traduzida presumivelmente para o português no séc. XIII, a partir de um
manuscrito francês, hoje perdido, A demanda do Santo Graal aborda a matéria
de Bretanha por um viés acentuadamente religioso, e busca, como um
exemplum, servir de ferramenta para a configuração de um pretenso código de
valores morais cristãos no seio da cavalaria. Nesse sentido, Palamedes
merece destaque entre os personagens da novela por ser o único cavaleiro
pagão em atividade a ser admirado pelos da corte cristã do rei Artur.
Considerando o (pre)domínio da Igreja Católica no que tange às esferas
política, cultural e ideológica quando da redação da novela, a exaltação das
qualidades morais e marciais de Palamedes, um mouro, ganha especial relevo,
na medida em que representa, na estrutura de valoração ambivalente da
Demanda – em que valores corteses e mundanos contrapõem-se à conduta
cristã exemplar –, a excelência dos atributos constituintes da Ordem de
Cavalaria, à revelia da submissão desta à Igreja. Assim, a cotejar as cavalarias
cristã e árabe, a considerar o discurso constituinte das narrativas
cavalheirescas da baixa Idade Média e a verificar a representação do oriente
mourisco presente no imaginário da península Ibérica, analisa-se a atuação de
Palamedes na estrutura da novela, avaliando a orientação dos episódios que
compõe sua gesta. Dessa forma, descobre-se um personagem que, em certa
medida alheio a conformações étnicas e culturais mas dentro de um universo
de expectativas cortês marcado pelo signo da ambiguidade, excele como
cavaleiro.
Palavras-chave: Novela de cavalaria portuguesa medieval. A demanda do Santo Graal – crítica e interpretação. Palamedes – Personagem literário. Cavalaria medieval – Tema literário. Representação literária.
ABSTRACT
Presumably translated to Portuguese in the 13th century, from a French
manuscript, lost nowadays, A demanda do Santo Graal broaches the matter of
Britain by a pronouncedly religious view, and aims, as an exemplum, to serve
as a tool for the configuration of a pretense Christian moral values code within
the Knighthood. On this matter, Palamedes deserves distinction among the
novel characters for being the only pagan knight in activity admired by the king’s
Arthur Christian courtisans. Considering the Catholic church (pre)domination
regarding the political, cultural and ideological spheres when the novel was
written, the exaltation of the moor Palamedes moral and martial qualities gains
special importance, once it represents, in the Demanda’s ambivalent valuing
structure – in which worldly and courtisan values oppose the Christian exemplar
behavior –, the order of chivalry constitutive atributes excelency, despite its
submission to the Church. Thereby, collating the Christian and Arabian
knighthoods, considering the constitutive discourse of the late Middle Ages
chivalric narratives and remarking the Moorish East representation on the
Iberian Peninsula’s imaginary, this work analises the character’s function on the
novel’s structure, examining the orientation of the episodes that forms its deeds.
And then we discover a character that, something alien to etnic and cultural
conformations but inside the courtly universe of expectations marked by the
sign of ambiguity, excels as a knight.
Keywords: Medieval Portuguese Chivalric Novels. A demanda do Santo Graal – Criticism and Interpretation. Palamedes – Literary Character. Medieval chivalry – Literary Theme. Literary Representation.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................8
1.1 A CAVALARIA NA HISTÓRIA .....................................................................10
1.2 O MUNDO E A OBRA ....................................................................................17
2 A CAVALARIA .................................................................................................................30
2.1 A CAVALARIA OCIDENTAL ........................................................................31
2.2 A CAVALARIA ÁRABE ..................................................................................40
2.3 A CAVALARIA LITERÁRIA ...........................................................................53
3 O CAVALEIRO .................................................................................................................63
3.1 O CAVALEIRO MOURO NA LITERATURA ............................................63
3.2 PALAMEDES ....................................................................................................70
3.3 PALAMEDES N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL ..............................73
3.3.1 O batismo de Palamedes ...........................................................83
3.3.2 O fim da Besta Ladradror e a postumeira festa ...............88
3.3.3 A morte de Palamedes ................................................................91
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................96
5 REFERÊNCIAS ..............................................................................................................100
5.1 FONTES PRIMÁRIAS ..................................................................................100
5.2 FONTES SECUNDÁRIAS ..........................................................................101
8
1 INTRODUÇÃO
O que se tenta desenvolver nas próximas páginas é uma reconstituição. Tal
pretensão surgiu de uma leitura algo incipiente de A demanda do Santo Graal
(2005)1, realizada a propósito de um projeto de pesquisa de Iniciação
Científica, e, de forma mais específica, de uma reflexão acerca do personagem
Palamedes e seu papel na novela: de que forma um personagem mouro pode
destacar-se em uma novela cristã (ou, de qualquer forma, cristianizada),
redigida como exemplum2 e traduzida em português e em castelhano a um
público leitor da península Ibérica do baixo medievo? Essa questão,
naturalmente, desdobrou-se em várias outras, dentre as quais a possibilidade
de se definir um código de cavalaria medieval não matizado pela Igreja pôs-se
como basilar para aquela pesquisa, concluída em 2009 (ZABAN, 2009).
A investigação apresentou, como se esperava, problemas de ordem dialógica:
deveria ser buscado um ponto de contato profícuo entre os ramos da História e
da Literatura medievais, pois, além do aspecto filológico do estudo, é peculiar à
natureza do objeto de pesquisa seu viés histórico-cultural. Aquilo que
atualmente se sabe a respeito do código de cavalaria foi retirado de várias
fontes, como O livro do código da cavalaria, de Ramon Lull (2000); o Título 21
(“Los caballeros y de las cosas que les conviene hacer”) da Segunda de Las
siete partidas, do rei Afonso X (1992); e de canções de gesta, romans, novelas
– ou seja, narrativas cavalheirescas produzidas à época, tomadas, portanto,
como fontes documentais sobre a matéria de Bretanha.
O uso de textos literários como documentos históricos é especialmente
pertinente para o período medieval. Deve-se, em boa parte, à pouca
quantidade de tratados e registros de natureza não ficcional ou simbólica,
mesmo porque, antes do século XIII, os limites entre os estatutos de História e
Ficção tangentes às narrativas eram confusos (AUERBACH, 2011, p. 105;
ZINK, 2006, p. 80). Além disso, a Cavalaria, segundo Heitor Megale, “foi
1 No desenvolvimento do trabalho, referir-se-á à novela pela sigla DSG. 2 Trata-se de um gênero literário que se vale de narrativas edificantes para a orientação religiosa dos cristãos, e que obteve bastante sucesso no século XIII (LE GOFF, 1983, p. 151). Aludir-se-á mais ao gênero em capítulo apropriado.
9
sempre fiel a um código oral, nunca inteiramente registrado e documentado”
(1992, p. 20), o que leva qualquer pesquisa de cunho histórico sobre o período
a valer-se de romances e canções como fontes válidas de (re)conhecimento de
um espaço e tempo determinados.
As canções de gesta e os romances medievais, enquanto narrativas épicas de feitos cavaleirescos, atuam entre o histórico e o lendário. [...] A ausência de variada fonte de documentação histórica, sem dúvida, terá influído, entre os historiadores especializados na matéria, a adotar critérios de valorização documental para as narrativas épicas da Idade Média (MEGALE, 1992, p. 22).
De acordo com os dados levantados e a análise realizada naquela pesquisa
preliminar, a pergunta orientadora do trabalho (haveria um código cavaleiresco
a despeito da influência da Igreja?) resultou na abertura de conceitos, e novas,
mais ricas questões, das quais “do que se trata o código de cavalaria – e,
portanto, o que será considerado cavalaria?” a fundamental. Todavia, a partir
dessa mobilização da pergunta (e de seu encaminhamento), delineou-se então
caminho para a confirmação da hipótese de que a cavalaria primordial possui
valores determinados e compartilhados fora do âmbito sagrado da Igreja
Católica.
O questionamento primeiro deste trabalho refere-se exatamente à prioridade
desses valores no que tange ao comportamento do cavaleiro, uma vez que a
prática da cavalaria é anterior à difusão dos valores da Igreja junto aos
militares. Na DSG, essa questão parece repousar de forma especial sobre a
figura de Palamedes, um cavaleiro mouro que prova ser tão valoroso quanto os
da corte de Artur, cristã por excelência. Dessa forma, o estudo será norteado
por duas análises complementares: da cavalaria, tanto a ocidental, cristã,
quanto a oriental, islâmica, enquanto instituição de caráter e essência
movediços; e de Palamedes, enquanto pagão pertencente a uma ordem já
cristianizada, como pareciam querer o(s) redator(es)3 da novela.
A recolha de textos literários e críticos sobre o tema mostrou-se sólida quando
da pesquisa primeira, e por isso boa parte mantém-se neste trabalho. Desse
3 Para um estudo sobre a autoria da DSG, cf. Irene Freire Nunes (2005, p. 12).
10
modo, irão contribuir sobejamente a edição de Irene Freire Nunes da DSG; os
estudos de Lênia Márcia Mongelli (1992; 1995), Heitor Megale (1992), Massaud
Moisés (1977; 2004) e António José Saraiva (1994), quanto aos elementos
críticos e genológicos da novela; os trabalhos de Dominique Maingueneau
(2006) e Eric Auerbach (2011), para uma teoria da relação entre obra literária e
mundo medieval; os de Jean Flori (2005) e Dominique Barthelémy (2010), no
que tange ao levantamento de aspectos histórico-culturais medievais; e os de
Amin Maalouf (1988), Paul Rousset (1980) e W. Boutros Ghali (1919)4, para
uma análise das relações entre o mundo islâmico medieval e sua relação com
a Europa.
1.1 A cavalaria na História
Pôs-se claro desde o início da pesquisa a necessidade de se abordar o tema
pelo viés histórico em complemento ao viés literário, em que ganham peso os
tratadistas medievais aludidos anteriormente e sua percepção do que era – ou
deveria ser – a cavalaria no período. De acordo com o Título 21 da segunda
partida (“Los caballeros y de las cosas que les conviene hacer”) de Las siete
partidas, no princípio, as qualidades do cavaleiro eram ligadas de forma
estreita e preponderante ao porte físico do guerreiro, ignorando-se sua ordem
social (AFONSO X, 1992, p. 195). Com a evolução desse grupo militar ao
estado de casta nobiliárquica, o critério de valoração passou a ser baseado no
moral do pretendente, necessariamente fidalgo, mantenedor de uma linhagem.
Por fim, para atender à demanda e aos interesses da Igreja, o cavaleiro deveria
também portar uma série de valores espirituais, em contraponto à natureza
originariamente mundana de seu dever de soldado, personificando o epítome
do guerreiro de Deus (MEGALE, 1992, p. 19).
4 A referida obra de W. Boutros Ghali – La tradition chevaleresque des Arabes – recebeu nova publicação em 1996, sem alterações significativas de conteúdo ou formatação. Uma vez que a primeira edição de 1919 continua sendo comercializada e utilizada para fins acadêmicos, relevou-se, nesse trabalho, seu possível anacronismo, em favor de uma análise atenciosa do rico levantamento histórico e literário e da argumentação comedida daquele autor.
11
Devem-se ressaltar, sobre a mudança na concepção do cavaleiro exposta por
Afonso X, suas motivações de origem. O cavaleiro primordial é o guerreiro
paramentado com armas – o cavalo incluído – e técnicas de um tipo de
combate específico, de foco defensivo, voltado para a proteção de um feudo
por laços de vassalagem ao senhor deste. Em algum momento não muito
preciso dessa prática germânica5, dá-se o processo evolutivo de
estabelecimento de critérios descrito anteriormente.
É também digno de nota – e aqui se trata de uma visão particular de Dominique
Barthélemy, em A cavalaria (2010), que adotamos não como base
argumentativa determinada, mas a título de uma problematização profícua dos
últimos anos da cavalaria, especialmente o ano mil – que a cristianização da
cavalaria, com todos os símbolos presentes no adubamento (ou investidura),
na cruzada, na paz de Cristo, pode referir-se não a uma ascensão dos
cavaleiros enquanto casta política e econômica, mas como uma tentativa de
enaltecer um grupo nobre cujo poder é já solapado por uma burguesia rica. O
cantar trovadoresco em prosa e verso seria, portanto, um canto de cisne, a
relembrar tempos prósperos da elite armada, dentro de um projeto moralizador
da Igreja Católica (BARTHÉLEMY, 2010, p. 460).
Pela leitura dos estudos citados, torna-se evidente que a observância de
liturgias, pelo menos na cerimônia de investidura do cavaleiro, deveria fazer
parte da conduta cavaleiresca do século XII (BARTHÉLEMY, 2010, p. 297).
Entretanto, com efeito, é importante notar que essas liturgias não constam nas
origens da investidura, e que os princípios que demarcam o ideal, como se
sabe, não necessariamente condizem com o relato histórico. Mesmo com toda
a força da Igreja no período, seria praticamente impossível controlar, por meio
de apelos à sublimação mística e às virtudes cristãs, a rapina de homens
tradicionalmente orientados para a guerra e para os feitos bélicos. De fato,
acontecia mesmo o contrário do que se pretendia. De acordo com Jean Flori,
em A cavalaria, apesar da constatação de uma crença na proteção divina,
5 Ponto recorrente de debates, acreditamos na origem germânica da cavalaria como a entendemos e sobre a qual refletimos nesse trabalho, baseando-nos em A Cavalaria, de Dominique Barthélemy (2010). O assunto será abordado mais pormenorizadamente no capítulo seguinte.
12
[...] isso não quer dizer que os cavaleiros se sentiam [...] “a serviço da Igreja”, como lamentam, aliás, muitos eclesiásticos que deploram as depredações, ataques, violações e pilhagens às quais se entregam tantos cavaleiros [...], às vezes em detrimento das próprias igrejas que os recrutaram para sua proteção (2005, p. 43-44).
Por um viés histórico, portanto, torna-se difícil imaginar a cavalaria, mesmo em
seu auge, como ordem militar que assimilou integralmente, na prática, um
código de conduta religioso. Posteriormente, a análise da DSG – e de
Palamedes – nos dará mais bases para essa consideração.
A título de exemplo constituinte do conflito entre vida secular e vida religiosa,
tem-se como parte do comportamento do cavaleiro a disputa de justas e a
participação em torneios militares – jogos em que os contendedores
procuravam provar sua superioridade em armas diante dos outros cavaleiros,
em prol do enaltecimento da glória e fama próprias. Os torneios faziam parte da
agenda cortesã, e possuíam real importância para a formação de
relacionamentos, organização social e diplomacia. Essa prática é tanto mais
interessante à visão de uma cavalaria laica justamente por ter sido execrada
pela Igreja, que nunca conseguiu realmente dirimi-la. De acordo com Jean
Flori, os cavaleiros “aperfeiçoam sua técnica em torneios, que surgem a partir
de meados do século XI e se multiplicam no século seguinte, apesar das
repetidas proibições da Igreja” (FLORI, 2006, p. 195). No mesmo sentido e de
forma curiosa, dado o cunho evangelizador desta obra do fim do século XIII, o
próprio Livro da Ordem de Cavalaria enaltece o exercício dos torneios:
Cavalgar, justar, lançar a távola, andar com armas, torneios, fazer távolas redondas, esgrimir, caçar cervos, ursos, javalis, leões [...] são ofício do cavaleiro; pois por todas essas coisas se acostumam os cavaleiros a feitos de armas e a manter a Ordem de Cavalaria (LLULL, 2000, p. 29).
Nesse ponto, convém perceber que, apesar de ser uma instituição fortemente
ligada à Igreja, a cavalaria parece já possuir princípios morais antes dessa
ligação; os ideais de lealdade, a soberania do cavaleiro entre os demais
guerreiros e a conduta que dele é esperada já estão em vigor, pelo menos,
desde que a condição de cavaleiro é atrelada à fidalguia. Esse atrelamento, por
13
cerceador da antiga mobilidade social do Medievo, opera no plano mundano,
laico; permite, portanto, que a cavalaria possua entre suas hostes alguém não
ligado à Igreja, embora munido de valores tradicionais, extraespirituais. A
cavalaria, dessa forma, seria mais a prática de um belicismo justificado por
ideais de justiça, proteção e busca pela glória, do que a assunção, por parte do
guerreiro, das benesses advindas de uma vida terrena sem pecados.
Entretanto, se o cavaleiro ocidental, por volta do ano mil, deve
necessariamente pertencer à nobreza e, portanto, destacar-se do resto da
sociedade, comungando de certas práticas exclusivas e ligado (pelo menos em
teoria) a um código de conduta baseado na honra e na cortesia (FLORI, 2005,
p. 187-188), seu equivalente em armas oriental é formado de maneira diversa.
Apesar de guardar várias características em comum tanto no que tange às
armas utilizadas quanto no comportamento no campo de batalha, a cortesia
cavalheiresca, tomada de forma abrangente como o conjunto de práticas
virtuosas relacionadas ao cavaleiro, difere em natureza à dos ocidentais:
assim, o próprio conceito de cavalaria põe-se em crise.
Em um contexto de cruzadas e expansão islâmica, o contato entre francos – ou
ocidentais, de forma mais genérica – e árabes foi, naturalmente, constante, e
esperar-se-ia hostil e violento. De fato, a figura do árabe no período medieval
ganha a literatura trovadoresca como monstruosa, lasciva, diabólica, para o
que contribuía o tom da pele e o hirsuto das barbas (MADERO, 1992, p. 122).
Era uma das principais personagens da alteridade cristã, a quem, para a
defesa de uma cultura homogênea, se teme e refuta, apesar da possibilidade
de uma aproximação pela conversão (LIU, 2004, p. 92).
Todavia, a despeito de qualquer conflito, os feitos bélicos e corteses mostrados
no campo de batalha foram tomados como uma moeda à parte, e mais: uma
moeda comum às duas culturas. A virtude guerreira e as ações cavalheirescas,
mostrando-se das duas partes, por vezes aproximaram os polos conflituosos.
Houve efetivamente algum diálogo em meio ao combate, por meio de um
vocabulário comum: os valores da cavalaria. Quem nos dá um vislumbre desse
contato é Paul Rousset:
14
O valor militar e a coragem dos turcos6 espantaram os cruzados. ‘Quem teria bastante engenho e arte para ousar descrever a sagacidade, os dons guerreiros e a valentia dos turcos?... Não faltarei à verdade...; por certo, tivessem eles observado sempre com firmeza a fé em Cristo e na santa Cristandade, [...] ninguém poderia rivalizar com eles em força, coragem e ciência de guerra.’ As palavras são do Anônimo, que, ao tecer encômios aos turcos, engrandece os francos, seus vencedores (1957, p. 71).
No que tange às armas e formas de combate dos árabes por volta do ano mil,
Giordani indica uma evolução ligada à expansão do império islâmico. As
conquistas da Síria e do Egito, por exemplo, deveram-se ao camelo – chamado
o “navio do deserto” – mais que ao cavalo, por sua resistência ao duro clima
desértico, acompanhando toda a jornada dos árabes até a Espanha. Ainda no
início das conquistas, o contato com persas e bizantinos foi importante para um
primeiro aperfeiçoamento de suas armas e táticas de guerra, já incluindo a cota
de malha e o escudo como principais armas defensivas. Mas foi na península
Ibérica que os muçulmanos passaram a usar armas bastante semelhantes às
dos cristãos (1975, p. 162-164). Isso sem falar da qualidade dos cavalos,
elemento de igual preocupação e importância para ambos os guerreiros,
ocidentais e orientais.
As armas não fazem o cavaleiro, entretanto. Se mouros e cristãos peninsulares
do século XIII ostentavam os mesmos apetrechos de batalha, os valores da
cavalaria árabe parecem ter uma origem bem mais popular, ligada a preceitos
comunitários, que a desenvolvida no Ocidente, se acompanharmos o
pensamento de Boutros Ghali. Segundo ele, enquanto a cavalaria europeia
deriva de uma especialização – um estatuto que liga nobreza de nascimento à
nobreza de conduta e que traz a incumbência exclusiva de proteger aqueles
que não podem proteger a si mesmos –, sua correspondente oriental deriva de
uma generalização: a irmandade dos homens fiéis a Deus faz demanda de
6 Utilizamos o termo “árabe” de forma abrangente, como designador de uma civilização unida por uma cultura comum. O uso aparentemente indiscriminado dos gentílicos e patronímicos orientais deve-se ao uso quase sinonímico que houveram na península Ibérica medieval. Definimos, portanto: “Árabes”, no coletivo, o povo árabe; “mouro”, natural da Mauritânia, norte da África, generalizados como muçulmanos na península; “sarraceno”, o muçulmano oriental; “turco”, natural da Turquia (MACHADO, 1952-1959, p. 2125). Enquanto “sarracenos” seria um termo que denominaria “invasores de origens diversas” (ROUSSET, 1980, p. 19), os três primeiros, pela generalidade, terão uso avultado na região.
15
todos que partilhem os mesmos valores, observem a virtude nas mesmas
ações e protejam-se mutuamente (GHALI, 1919, p. 32). Não se trataria, pois,
de uma obrigação imposta por uma instituição (a Igreja) com objetivos
específicos (o controle da rapinagem), verticalmente: para a civilização árabe –
que observava os francos cruzados com horror, por sua rudeza (TATE, 2008,
p.158) –, os valores ditos corteses deveriam ser naturais a toda a comunidade
de fiéis, o que garantiria uma certa horizontalidade nas relações sociais e um
senso de pertencimento – a uma família, a uma tribo, a uma crença –
aparentemente mais forte que o dos ocidentais.
Il est donc établi que la Chevalerie Arabe ne s’est pas réalisée en une instituition, comme la Chevalerie européenne, avant le XII siècle; mais qu’elle existait de fait dans les moeurs, depuis les temps les plus reculés. En Europe l’instituition a précédé les moeurs, au lieu que chez les Arabes l’instituition est venue tard, au moment où leurs sentiments chevaleresques allaient s’affaiblissant7 (GHALI, 1919, p. 33).
Por esse viés, teriam sido os árabes a emprestar aos francos – e, portanto, ao
Ocidente – o sentido de cortesia cavalheiresca. A bravura, a coragem e a
valorização pelas armas encontram ascendência entre os germanos;
entretanto, o sentimento de respeito ou mesmo gentileza para com o inimigo no
campo de batalha seria um traço árabe, e sua manutenção deveu-se bastante
à pena de cronistas, poetas e historiadores árabes. É com base nessa
mutualidade que Ernst Robert Curtius pontua a proximidade entre as culturas
árabe e europeia:
Deve-se [...] recordar que o Islã também teve um ideal de cavaleiro que mostra ‘surpreendentes analogias’ com o do Ocidente cristão. [...] A cultura hispano-árabe, seus ideais de vida e formas poéticas influenciaram até na França meridional” (1957, p. 654).
Estabelecidas as semelhanças, é importante frisar que, como se trata de
origens cavalheirescas diversas, a palavra “cavalaria” e seus derivados apenas
7 “É então estabelecido que a Cavalaria Árabe não se realizou como instituição, como a Cavalaria europeia, antes do século XII; mas que ela existiu de fato nos costumes, desde os tempos mais remotos. Na Europa a instituição precedeu os costumes, ao passo que, com os árabes, a instituição veio tardiamente, quando os sentimentos cavalheirescos enfraqueceram-se” (tradução nossa).
16
em parte possuem um conceito correspondente no mundo árabe no período
medieval. Com efeito, utiliza-se o termo “cavalaria árabe” apenas para que os
pontos de contato entre as práticas de cortesia guerreira orientais e ocidentais
permaneçam claras, e por serem pertinentes tanto ao objeto de estudo quanto
ao recorte deste trabalho; entretanto, como se verá em capítulo específico, a
instituição de uma cavalaria islâmica de natureza política foi tardia e pouco
sólida. Novamente, o que parece ter formado o guerreiro montado árabe (a
camelo ou a cavalo) são os valores a si atribuídos, mais que um código
específico, como na Europa. Enfim, deve ser considerada também a evolução
pela qual passou esse ideal de guerreiro, assim como ocorrido no Ocidente.
Tais considerações se tornam importantes na medida em que servem à
reconstituição de um personagem mais próximo de uma realidade histórica,
para seu futuro cotejo com um personagem literário, objetivo principal deste
trabalho. Dessa forma, se os árabes (assim como os judeus) ganharam
contornos aviltantes nas cantigas satíricas (MADERO, 1992, p. 117), a DSG
parece trazer um mouro mais verossimilhante, exaltando-o por suas qualidades
marciais. Também não se pode esquecer que, como será analisado
posteriormente, Palamedes possui uma função específica para a estrutura da
narrativa: não se trata, pois, apenas de redenção de um personagem
estereotipado, mas de uma construção diversa do mesmo personagem em
função de um objetivo determinado: o exemplum evangelizador. De qualquer
forma, essa manipulação só é possível pela proximidade entre as cavalarias
árabe e cristã.
Entretanto, para que se faça uma correta reconstituição da cavalaria moura, é
preciso que se mantenha em foco a relação entre a obra apresentada (assim
como seus personagens) e o mundo que lhe serve de referência. Uma vez que
se pretende lançar luzes sobre um determinado personagem da literatura
medieval por meio da análise do jogo de valores que transitam entre o mundo
real e o ficcional, faz-se necessária a escolha de um aporte teórico que leve em
consideração elementos exteriores ao texto, confirmando-o também como
documento histórico, e não apenas como monumento artístico. Dessa forma,
mostra-se importante, ainda na introdução deste estudo, alguma reflexão sobre
17
o conceito de representação, a demonstração da insuficiência de tal conceito
como tradicionalmente interpretado para o embasamento analítico proposto, e
sua substituição pela ideia do texto literário enquanto discurso constitutivo.
1.2 O mundo e a obra
Estudar a cavalaria medieval é, em boa medida, trabalhar os gêneros literários
que protagoniza. Para Paul Rousset,
“[a] frase muitas vezes citada de Gaston Paris: “A Cruzada era impossível sem a Canção de Rolando”, contém uma profunda verdade. Nesse poema épico, [...] Carlos Magno aparece como o líder autêntico do mundo ocidental e como o campeão encarregado de ir guerrear fora dos limites da Cristandade e em nome desta [...]. A poesia épica fará com que tudo isso seja sentido pela cavalaria do Ocidente e a tornará receptiva ao apelo de Urbano II (ROUSSET, 1980, p. 17).
O uso do texto literário para a recriação de um mundo historicamente
determinado remete-nos, neste trabalho, à discussão sobre a propriedade
mimética da obra de arte, observando-se a polarização que apresenta: a arte e
o mundo ao qual a arte se refere. Entretanto, o conceito de mímesis, de onde
essa querela deriva, não se resume à simples imitação destacada do mundo,
mas corresponde a um processo criativo. A leitura da Poética, de Aristóteles,
feita por Antoine Compagnon, em O demônio da teoria, é bastante elucidativa a
esse respeito: “a mimèsis é [...] conhecimento, e não cópia ou réplica idênticas:
designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele constrói,
habita o mundo" (2006, p. 127). Note-se que tal releitura ecoa o
posicionamento de Paul Ricouer em Tempo e narrativa, em que pensa a
mímesis aristotélica, mesmo compreendida como imitação ou representação,
considerando sua natureza necessariamente produtiva.
Se continuarmos a traduzir mímesis por imitação, deveremos entender o contrário do decalque de um real preexistente e falar de imitação criativa. E, se traduzirmos mímesis por representação, não deveremos entender por essa palavra uma duplicação de presença, como ainda se poderia esperar da mímesis platônica, e sim o corte que abre o espaço de ficção. [...] Nesse sentido, o termo aristotélico mímesis é o emblema desse desengate que [...] instaura a literariedade da obra literária (RICOUER, 2010, p. 81).
18
Esse posicionamento – a interpenetração e a mútua influência entre obra de
arte (no caso, a narrativa) e mundo – irá atingir plena autonomia no
pensamento de Dominique Maingueneau. O linguista abandona o conceito de
representação em favor do de constitutividade – do mundo pelo texto e vice-
versa, num processo criativo imediato e indissociável. Para ele, considerar um
conceito como representação (da vida, ou do mundo, pela literatura) pressupõe
uma divisão entre mundo e escritor, o que seria equivocado, uma vez que é
impossível pensar um determinado contexto sem a obra em questão, e vice-
versa. Da mesma forma, é necessário desvincular a ideia da análise
objetivadora do texto literário, como se positivamente houvesse um método
ideal para lidar com a literatura. Ora, essa polarização – autor e obra, ou crítico
e obra – deixa de existir a partir do momento em que ambos coabitam um
mundo determinado:
Quer se coloque o autor como fonte única do sentido, quer se o considere como o simples suporte de uma mentalidade coletiva, permanece-se no mesmo espaço. De fato, a obra é indissociável das instituições que a tornam possível: não existe tragédia clássica ou epopéia medieval fora de uma certa condição dos escritores na sociedade, fora de certos lugares, de certos modos de elaboração ou circulação de textos (MAINGUENEAU, 1995, p. 19).
Embora pareça querer abolir o conceito de representação como função da
literatura, o que Maingueneau pretende é retirar da palavra a carga de mimèsis
vinculada à cópia da natureza como elemento estático, ao símile.
Compreendendo a mimèsis como atividade de construção, Maingueneau
aproxima-se da leitura de Aristóteles feita por Compagnon:
Nessa perspectiva, não se conceberá a obra como uma representação, um arranjo de “conteúdos” que permitiria “exprimir” de maneira mais ou menos desviada ideologias ou mentalidades. As obras falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é parte integrante do mundo que pretensamente representam. [...] A literatura também consiste numa atividade; não apenas ela mantém um discurso sobre o mundo, mais (sic) gera sua própria presença nesse mundo (1995, p. 19, itálicos do autor).
A adoção do texto enquanto discurso constituído e constitutivo serve
especialmente à análise das novelas de cavalaria, ao se considerar a visão de
19
Eric Auerbach sobre a função dos romances e novelas de cavalaria na
sociedade medieval como colocada em seu Mimesis (2011), discutido mais
adiante. Antes, porém, uma vez que tratamos da indissociabilidade entre o
texto literário e o tempo e o espaço em que se insere – e de onde brota –,
torna-se necessário verificar o contexto da produção literária medieval, para
que autor e leitor delineiem-se mais claramente.
Inserida em uma tradição latina de narrativa épica moldada pela nova lírica
francesa, a novela de cavalaria é uma narrativa em prosa dos feitos de armas
da nobreza guerreira feudal (LOPES; SARAIVA, 1992, p. 94). O material
novelístico é retirado de lendas populares britânicas, difundidas oralmente, em
sua maioria – daí a denominação de matéria de Bretanha –, entre as quais se
destaca a de rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda. Sabe-se, porém, que
essas lendas foram codificadas em vernáculo no continente; e que, a partir dos
romances de Chrétien de Troyes, ganharam vulto (SILVA, 2011, p. 29). Sendo
assim, faz-se mister perguntar-se quem, à semelhança de Chrétien, são esses
romancistas.
O autor europeu da baixa Idade Média é um escritor carregado de
religiosidade. À revelia da natureza canônica ou profana de sua obra, sua
formação como homem de letras se dá nos moldes da escolástica cristã. O
espaço de produção e reprodução de textos por excelência, durante todo o
período, foi o monastério, como o da manutenção do conhecimento mundano
ou canônico.
O monopólio dos clérigos sobre a escrita não foi fortemente contestado: os reis e os grandes senhores empregaram "clérigos da administração" para redigir os atos da chancelaria e cuidar dos registros, antes que se desenvolvesse um verdadeiro pessoal administrativo laico. Quanto aos "autores" da jovem literatura profana, dos quais conhecemos em geral só o nome (como Chrétien de Troyes), é certo que muitos receberam as ordens menores, passaram pelas escolas ou foram beneficiados pelo privilégio "clerical" (SCHMITT, 2002, p. 244).
Dessa forma, a Igreja não funcionava apenas como detentora do sagrado, mas
também como fonte de sabedoria, de instrução, de erudição. Considerando a
estratificação da sociedade na baixa Idade Média e o fato de que apenas a elite
20
feudal tinha acesso às letras, é lógico pensar em um mundo que favorecesse
representativamente, em literatura, a nobreza. Sobre esse ponto, Maingueneau
comenta que,
[como] a distância entre autor e público é pequena, os gêneros em voga são os que se baseiam na conivência dentro desse meio e a reforçam. Esses gêneros são menos o “reflexo” da mentalidade, dos valores de uma certa elite, do que estão associados a um modo de vida e contribuem para constituir e manter um vínculo social (1995, p. 68).
É lógico, portanto, que se entenda a literatura produzida no Medievo como a
serviço da moral cristã e feudal, perpetuando seus valores e constituindo o
mesmo mundo de que pretende fazer parte. Nesse sentido, uma vez que, neste
trabalho, se abole a ideia de uma representação estática para dar lugar à
dinâmica do discurso constituinte, é importante que se reflita sobre a função
das novelas de cavalaria na corte. O código jurídico afonsino é particularmente
claro a esse respeito, ao indicar, em sua “Segunda Partida”, a importância da
narração dos feitos de bravura pretéritos a título de paradigma a ser seguido
pelos cavaleiros.
Apuestamente tovieron por bien los antiguos que feziesen los cavalleros estas cosas que dichas avemos en la ley ante desta; e por ende ordenaron que asy commo en tienpo de guerra aprendiesen fecho darmas por vista e por prueva, que otrosy en tienpo de paz lo apresiesen por oyda e por entendimiento: e por eso acostunbravan los cavalleros quando comien que les leyesen las estorias de los grandes fechos de armas que los otros fezieran, e los sesos e los esfuerços que ovieron para saber vençer e acavar lo que querien. [...] Eso mesmo fazien que quando non podien dormir, cada uno en su posada se fazie leer e rretraer estas cosas sobredichas: e esto era porque oyendolas les cresçian los coraçones, e esforçavanse faziendo bien e queriendo llegar a los que los otros fezieran o pasaran por ellos8 (ALFONSO X, 1991, p. 188-189).
8 “Ordenadamente, tiveram por bem os antigos que os cavaleiros fizessem estas coisas que dissemos na lei anterior; e por isso ordenaram que, assim como em tempo de guerra aprendessem feitos de armas por observação e por prova, que também em tempo de paz aprendessem por escuta e entendimento: e por isso os cavaleiros, quando comiam, eram acostumados a que lhes lessem as histórias dos grandes feitos de armas que outros fizeram, e o senso e os esforços que tiveram para saber vencer e acabar o que queriam. [...] Isso mesmo faziam que, quando não podiam dormir, cada um em sua pousada fazia com que se lessem e contassem essas coisas sobreditas: e isto era porque, ouvindo-as, lhes cresciam os corações, e esforçavam-se fazendo o bem e querendo aproximar-se daqueles que outros fizeram e pelos quais passaram” (tradução nossa).
21
De acordo com Montoya Martínez, por “estorias de los grandes fechos de
armas” entenda-se a épica, publicada como canção de gesta, e cuja narração
era encargo dos jograis – ou, quando de sua falta, de escudeiros ou cavaleiros
mais velhos ou experientes (1991, p. 355). Dessa forma, as canções tinham a
função clara de fortalecer o ânimo dos cavaleiros, para que melhor
suportassem as penas de sua profissão (MONTOYA MARTÍNEZ, 1991, p. 353-
356). O aspecto didático da manutenção das narrativas cavalheirescas também
é colocado por Ramon Lull:
Assim como os juristas e os médicos e os clérigos ouvem nas ciências e livros a lição e aprendem seu ofício por doutrina de letras, é tão honrada e alta a Ordem de Cavalaria que não tão somente basta que ao escudeiro seja ensinada a Ordem de Cavalaria [...], como seria conveniente que o homem da Ordem de Cavalaria fizesse escola, e que houvesse ciência da Cavalaria escrita em livros e que fosse arte ensinada, assim como são ensinadas as outras ciências [...] (2000, p. 21).
Em termos de concretização de uma ideologia, a cavalaria romanceada ganha
um acentuado caráter político na visão atual de Dominique Barthélemy. Para o
historiador, o que se narra nesses textos teria mais a ver com uma tentativa de
manutenção da ordem e seus valores (ajudando, portanto, a produzi-los) que
propriamente seria reflexo de uma atividade correspondente à realidade
medieval (BARTHÉLEMY, 2010, p. 460). Seria a novela de cavalaria, portanto,
uma ficção construída para um fim lúdico em que se destaca a função didática,
ou como redenção de uma casta de nobres que já veem seu declínio político e
econômico? Para Barthélemy,
[nada] prova que ela (a literatura) crie facilmente o desejo de imitar seus personagens entre aqueles que têm a idade e o estatuto para tal, ou seja, jovens Cavaleiros [...]. Ela não pode, de toda forma, diverti-los, oferecer-lhes uma compensação imaginária àquilo que eles não fazem, às suas decepções e a seus fracassos? (2010, p. 461).
Dada a proximidade entre Igreja e nobreza que se assinala no período, há de
se concluir que o mundo literário dos cavaleiros é, por excelência, o dos ideais
cristãos. Sobre isso existe pouca dúvida. Todavia, há que se atentar também
para o fato de que tanto romances quanto novelas de cavalaria não obedecem
a uma lógica de representação: às vezes baseiam-se no real, nas convenções
22
sociais e políticas do mundo feudal; outras, no misticismo, no mundo das fadas
popular bretão (AUERBACH, 1994, p. 114), cujos elementos persistem na
novela cristã (a floresta como espaço do misterioso, da aventura; os caminhos
bifurcados, as fontes maravilhosas, os objetos mágicos etc.). De acordo ainda
com Auerbach,
[todos] os muitos castelos e palácios, lutas e aventuras dos romances corteses, especialmente dos bretões, são do país dos contos de fadas, pois sempre emergem como brotados do chão. [...] Mesmo a sua significação moral ou simbólica só raramente é determinável com alguma certeza. [...] O secreto, o que brota do chão, ocultando suas raízes [...] foi tirado pelo romance cortês da lenda popular bretã, que ele recebeu e pôs a serviço do aperfeiçoamento do ideal cavaleiresco. A matière de Bretagne mostrou-se, evidentemente, como o meio mais apropriado para o desenvolvimento deste ideal – mais apropriado ainda do que, por exemplo, os gêneros antigos, que entraram em voga quase simultaneamente, mas logo foram deixados para trás (1994, p. 114).
A presença do maravilhoso, caracterizado por Jacques Le Goff “pela raridade e
pelo espanto que suscita, em geral admirativo” (2006, p. 106), e diverso, no
período medieval, do miraculoso (p. 105), está na base mesma das aventuras
cavalheirescas.
É na passagem do século XII ao XIII que entra em cena o sistema medieval do extraordinário, discernindo entre o miraculoso de origem divina e o mágico de natureza diabólica, um intermediário propriamente terreal, natural, o maravilhoso propriamente dito. [...] No domínio literário, o lai e o romance cortês veem-se totalmente penetrados pelo maravilhoso, e a aventura cavaleiresca é, em si própria, uma maravilha (LE GOFF, 2006, p. 107-108).
Com efeito, derivada dos romances corteses, a DSG é eivada desses
elementos. Há fontes encantadas em que se perdem as forças (2005, p. 247)
ou em que se as recuperam (p. 426), encantadores servos do demônio (p.
295), maldições que ganham formas monstruosas (a besta ladradora [p. 76], de
que se tratará mais adiante), pecados que se voltam contra os pecadores ainda
em vida (p. 318); sem contar os castelos de estranhos costumes (p. 325), as
armas de poder extraordinário (p. 55), as visões simbólicas (como o cervo
branco guardado por leões [p. 76]), as capelas miraculosas (p. 117), os sonhos
de significado premonitório (p. 125). Nesse sentido, a fórmula narrativa "nom
achou aventura de que contar seja", que recorrentemente preenche o tempo
23
entre duas aventuras, ilustra bem o fato de o cenário das novelas ser criado
unicamente para a aventura.
Para Auerbach, ao contrário das canções de gesta, em que há um propósito
para a conduta dos cavaleiros (como exemplo, tome-se a Canção de Rolando,
em que o belicismo da classe guerreira justifica-se pela luta contra os infiéis), o
personagem do romance cortês não é contingente de nenhum ethos, não se
volta para nenhuma finalidade política, senão para a satisfação do horizonte de
perspectivas ideais criado pela própria classe (1994, p. 116). Tal afirmação
deve ser considerada com parcimônia, em que pese a autoridade do autor. O
que dela pode ser depreendido é que, de forma diversa de narrativas como a
Canção de Rolando, os chamados romances corteses (entre os quais se
incluem os textos do ciclo da Post-Vulgata9) não estariam tão ligados a uma
“realidade histórica” (AUERBACH, 2011, p. 105); esse “destacamento”,
também frisado por Barthélemy (2010, p. 520), resulta de um público produtor e
leitor por demais diminuto para que a obra, demasiadamente específica, fosse
capaz de expressar a sociedade medieval em toda sua complexidade. Não
esqueçamos, todavia, que não se está operando neste trabalho com o conceito
de representação mimética, a partir de uma polarização, como colocado por
Auerbach; já não é possível que se “destaque” efetivamente qualquer obra
literária de qualquer sociedade, sejam quais forem seus atributos ou objetivos.
Posto isso, e nos termos de um discurso literário constituinte, tem-se que a
matéria narrada está inextricavelmente ligada a um ethos e, automaticamente,
a uma função política. Sendo assim, por uma vertente ideológica e estrutural (e
não cultural e histórica, a adotada aqui), Heitor Megale assinala que
[a] novela de cavalaria é a manifestação ideológica dos interesses do estamento e do correspondente sentido de honra de uma camada social que acaba de ascender de um estamento guerreiro profissional a um estamento ocioso de nascimento. [...] A estrutura social é, em boa parte, responsável pelas grandes divisões da produção literária medieval (1992, p. 14).
9 Dá-se o nome de Post-Vulgata, ou Pseudo-Boron, à atualização do primeiro ciclo de prosificação e compilação dos romances relativos à Matéria de Bretanha (chamada Vulgata ou Lancelot-Graal), por volta de 1250 (NUNES, 2005, p. 7-10). Para um estudo mais aprofundado sobre a evolução desses ciclos, cf. Sílvio de Almeida Toledo Neto (1999, p. 129-153).
24
Nomenclaturas à parte, o que se pretende pelo cotejo entre os pensamentos de
Auerbach e Megale (sobre o pano de fundo de Maingueneau) é trazer para a
discussão o contexto de produção da literatura cavaleiresca, para que se tenha
uma noção mais precisa das implicações de uma cavalaria literária, por assim
dizer, e sua relação ambígua com uma não menos ambígua cavalaria histórica,
proposta que procuraremos discutir.
Segue-se que, em uma perspectiva ficcional, o romance cortês e as novelas de
cavalaria podem ser tratados como apoiadores de uma segregação social e
política perpetrada por um grupo de escolhidos: os nobres guerreiros a cavalo,
predestinados a viverem aventuras (ZINK, 2006, p. 86). Dessa maneira, tal
grupo se autoalimenta – tornando-se assim mais acertado, talvez, buscarmos
não uma relação de causas e efeitos entre o mundo e a literatura, mas uma
relação de idealização do mundo por parte da literatura; e então a discussão
sobre a verossimilhança dos textos literários, permanentemente em crise, vem
novamente à tona.
As ficções podem pretender a uma outra forma de verossimilhança, narrativa desta vez, cujas leis são coerentes. [...] de um lugar ao outro, de um conflito às conciliações, a literatura preenche o que em aparência apagara. Sob a forma de roteiros fantasmáticos, ela sugere uma avaliação extremamente sensível das relações do indivíduo e do coletivo, é a matriz de suas oscilantes e utópicas fronteiras [...] (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 314).
É nesse jogo de forças10, muitas vezes opostas, que se encontram os
cavaleiros literários do Rei Artur: entre o profano e o religioso, o orgulho
mundano e a subserviência divinal, a procurar o santo Graal – relíquia cristã ou
artefato mágico (ZINK, 2003, p. 63-90) – mas desviados, em sua maioria, do
sagrado. Dezenas propõem-se à mesma demanda, apenas doze a alcançam;
entre eles, Palamedes, anteriormente conhecido como bõõ pagão, ausente da
távola de Artur, não demandante do Graal.
Assim, tendo sido preliminarmente explicados os pontos de encontro e
divergência entre as cavalarias cristã e moura e escolhido um viés teórico
10 Tal jogo terá discussão mais alentada em capítulo pertinente, a partir do conceito de paratopia postulado por Maingueneau (2006, p. 87).
25
pertinente à verificação do contato entre a obra literária e o mundo medieval, é
possível apresentar a jornada de Palamedes na DSG, suas possíveis
implicações e o alcance de seu recorte para este estudo.
A presença de um cavaleiro muçulmano entre os notáveis de Bretanha não é
de todo espantosa. As cruzadas tornaram mais frequente o contato entre as
culturas ocidental (cristã) e oriental (islâmica) – contato quase nunca pacífico,
diga-se de passagem –, o que propiciou a constituição de várias colônias
árabes mais ou menos vultuosas ao longo da Europa meridional. Dessa forma,
uma família de muçulmanos (turcos ou árabes) em território bretão, como a de
Palamedes, não seria algo extraordinário. A expansão do Islã e a subsequente
conquista da península Ibérica podem ter feito com que as trocas – de
mercadorias, de conhecimentos, de palavras – entre esses povos tenham
perdido força; mas seja por motivos religiosos, a impelir regularmente
peregrinos cristãos à Terra Santa; seja por motivos econômicos, tendo o mar
Mediterrâneo como cenário de um comércio sempre diversificado, rico e de
fronteiras pouco definidas; a ligação entre o Oriente árabe e o Ocidente cristão
nunca foi rompida.
No século XI, às vésperas das Cruzadas, [...] o Ocidente e o Oriente acham-se unidos por mil lembranças e por inúmeros interesses comuns. Até mesmo entre cristãos e muçulmanos subsistem vínculos, particularmente importantes no Mediterrâneo oriental. A Cruzada, levando os ocidentais até a Síria, colocá-los-á em contato direto com um mundo que já conheciam através da intermediação de terceiros; ela dará continuidade a um movimento há muito tempo esboçado (ROUSSET, 1980, p. 20).
A literatura cavalheiresca também apresenta essa aproximação. Apesar de o
imaginário medieval adotar uma figura estereotipada do mouro, tal personagem
pareceu ganhar contornos heterogêneos, mais ou menos pejorativos, de
acordo com o gênero literário em que figura. A DSG é particularmente esquiva
– ou mesmo benevolente – ao tratar de seu único cavaleiro mouro em
atividade; não apresenta traços distintivos significativos entre ele e os demais
personagens, muito provavelmente por se tratar de uma novela de cavalaria.
Auerbach, referindo-se aos romances corteses, coloca que a pequenez do
campo de ação e do campo ideológico presente nas narrativas cavalheirescas
26
em geral faz com que a diferença entre árabes e europeus não seja notada, a
não ser quando dita explicitamente.
[...] embora a vida dos cavaleiros pagãos, é claro, mal se diferencie da dos cristãos [...]; ainda que amiúde, e às vezes, de maneira fanática e simbólica, eles sejam apresentados como seres degradados e intimidatórios, também são cavaleiros, e a estrutura social parece ser a mesma para eles e para os cristãos. Este paralelismo vai até os pormenores e contribui para evidenciar ainda mais a estreiteza do espaço vital apresentado (AUERBACH, 2011, p. 87-88).
Personagem surgido no Tristan en prose – roman contemporâneo ao ciclo da
Post-Vulgata –, na DSG a linhagem e a história de Palamedes são dadas a
conhecimento por seu pai, Esclabor, no capítulo 126 (“Como Esclabor louvava
Palamedes seu filho”), quando as conta a Galaaz e Boorz, por albergarem em
sua fortaleza (DSG, 2005, p. 102-103). Natural da Galiléia, Esclabor fora
cavaleiro de Artur; tomara por esposa a filha de um gigante, morto pelos
cavaleiros daquele rei, a qual se recusara a se casar com um cristão ou mudar
sua crença. Abençoados por Artur, todavia, o casal permanece unido por doze
anos e dão à luz doze filhos, que também se tornam cavaleiros prezados na
corte de Artur, e mantêm-se pagãos como os pais. Eventualmente, todos os
filhos de Esclabor – à exceção de Palamedes – são mortos pela Besta
Ladrador, monstro de história peculiar11, e cuja destruição constitui a demanda
particular do filho sobrevivente. A obsessão pela Besta, entretanto, não faz com
que se turve a sabedoria do herói, uma de suas principais características. Após
ter já derrubado vários cavaleiros que duelaram consigo pelo direito de caçar a
Besta, dá-se o primeiro contato com Galvam nos termos seguintes:
– Ora ouço maravilhas, disse Palamades. Nunca mais ouí dizer de casa u houvessem tantos sandeus cavaleiros nem tantos sisudos como em casa de rei Artur. E os sisudos passam de bondade e de prez todolos outros sisudos do mundo e os sandeus passam de sandice todolos outros sandeus do mundo. – E porque o dizedes vós? disse Galvam. – Por Deus, disse el, eu o digo por vós e polos sandeus que havedes começada a demanda do Santo Graal e nem ũũ de vós pode ende vĩir aa cima nem havedes ainda ende senam vergonha. E com aquela
11 Fruto da relação entre o demônio e uma dama que entregou o próprio irmão aos cães, a Besta Ladrador é a materialização monstruosa do pecado, a cruzar eventualmente o caminho dos cavaleiros. Uma análise alentada sobre a Besta e sua significação na DSG encontra-se no estudo de Lênia Márcia Mongelli (1995, p. 97-114).
27
demanda, em que nom fezestes rem unde vos venha honra, começades outra demanda. Nom é esto sandice grande sobeja que leixades o que havedes começado e vos metees em demandas que os cavaleiros estranhos ham mantiúdas longo tempo? E nom seeria milhor de dardes ante cima aa demanda que começastes ca vos trabalhardes d’outra? Vós sodes daqueles que todas as cousas acabar se tremetem e de cada ũa cousa se partem a honta (DSG, 2005, p. 411-412).
Considerando-se o caráter evangelizador da novela (MONGELLI, 1995, p. 13),
é no mínimo curioso que Palamedes, enquanto pagão, possua tantas – e
muitas vezes mais – qualidades físicas e morais que outros cavaleiros, que o
celebram recorrentemente e lamentam que não seja cristão. A bravura de
Palamedes chega a lhe valer o reino de Camelot, após ter se destacado entre
os defensores de Artur quando do cerco do reino pelo exército de Mars.
Todavia, a humildade e o senso do dever – qualidades tão caras à ordem de
cavalaria – levam-no a declinar da oferta; a demanda pela Besta Ladrador
ainda não havia sido levada a cabo.
Palamedes inicia sua conversão ao cristianismo quando se prepara, em casa
de seu pai, para enfrentar o desafio de Galaaz, contrariando sua disposição
inicial: apenas batizar-se após dar fim à aventura da Besta Ladrador. No
entanto, essa mudança de postura impõe-se pela força das circunstâncias:
Galaaz é o guerreiro invencível, e sua derrota dar-se-ia por certa. Da mesma
forma que o pai, coagido pela possibilidade de vingança do Deus cristão que
demanda sua conversão, Palamedes é submetido a uma violenta
cristianização: primeiro, sofrendo de antemão com o pavor de lutar contra
Galaaz, de quem já havia observado os feitos; e enfim pelo combate em si, ao
se defender à morte dos golpes sobre-humanos do cavaleiro escolhido.
A busca de Palamedes e a qualidade de sua cavalaria podem ser ainda mais
relevadas por o cavaleiro não estar na mesma busca que os outros; deseja a
vingança pela morte de seus irmãos, fato que molda sua postura em relação
aos outros cavaleiros. Não há em primeiro plano um objetivo transcendente,
espiritual: mesmo após abraçar o cristianismo, sua ocupação maior ainda não é
a busca pelo Graal, mas a resolução de uma aventura que o liga a um passado
familiar. Palamedes só passa a interessar-se pelo artefato sagrado uma vez
28
concluída a missão autoimposta, o que apenas se torna possível após violento
rito de passagem. Com efeito, é apenas como cristão que Palamedes poderá
derrotar a Besta Ladrador, emblema do Pecado, e o fato chama a atenção para
o elemento alegórico evidente na relação entre o monstro, os cavaleiros e o
papel desempenhado pelo “bõõ pagão” na narrativa.
Dignificado por sua persistência e pela nobre intenção de reerguer a memória dos irmãos, a obra caracteriza-o como o simpático pagão arrependido, fazendo correr paralelos o seu processo de conversão e a caça à Besta, sugerindo, como de hábito, que não se está para matar cavaleiro, mas para buscar a salvação. [...] O batismo final de Palamedes, pouco antes de sua morte nas mãos de Galvam, testemunha o sucesso que muitas vezes resulta da tolerância da Igreja para com os infiéis (MONGELLI, 1995, p. 104).
Vários são os que tentam por fim à aberração da “besta desassemelhada”, em
busca simbólica da superação das próprias falhas individuais (MONGELLI,
1995, p. 97-98). Entretanto, apesar dos esforços dos outros cavaleiros, a
demanda é de Palamedes, que deve passar por estágios probatórios – a saber,
a comprovação de sua resiliência moral e força física, a arregimentação da
amizade dos cavaleiros de Artur e o batismo de sangue – para, enfim, dar cabo
dela, sob o olhar reconhecido de Galaaz e Persival. São palavras do primeiro:
Ora nos podemos ir, ca esta aventura sem falha é acabada. Ora aveo o que vos eu disse hoje manhãã. E já mais homem desta besta nom veerá mais que se a nunca visse. E Palamedes deve ende haver honra e prez e nós seeremos ende enquisas que o vimos. E ora beengamos Nosso Senhor que nos tal maravilha mostrou (DSG, 2005, p. 433-434).
Apesar de possuir, como analisaremos no último capítulo, uma função bem
definida na narrativa, Palamedes, talvez mais que outro cavaleiro, é constituído
por uma ambiguidade marcante. A falta de identificação no início da novela, o
alheamento à demanda do Graal e a particularidade da caça à besta ladradora
lhe conferem uma subjetividade que se contrapõe à universalidade dos valores
de cavalaria que demonstra na novela, em que supera a maior parte dos
cavaleiros cristãos de Artur. Para melhor compreender tal errância, que
coaduna bem com o espírito de aventuras da narrativa cavalheiresca, mostrou-
se chave o conceito de paratopia como postulado por Maigueneau: livremente
traduzido como um lugar além, ou um não lugar, diz respeito à qualidade de
29
não pertencimento total do escritor e, muitas vezes, de personagens, a um
mundo normativo determinado. Assim como o escritor de narrativas do século
XIII – um híbrido formado entre os ditames da Igreja e a moda cortesã, como
veremos adiante –,
[o] cavaleiro não serve apenas para unificar sequências de episódios ou de narrativas, para estabilizar com seu nome um material narrativo abundante: tal como o escritor, ele não é aquele que tem um estatuto advindo do nome que recebeu, mas o anônimo pelo qual ninguém responde e que constrói um nome para si através de seus atos, o produtor de lendas do qual se conhece o nome mas não o rosto (MAINGUENEAU, 2006, p. 131).
Marcado pela indefinição, pela ausência (às vezes voluntária) de nomeação,
construindo-se nos caminhos incertos da aventura contando apenas consigo
mesmo, o cavaleiro é, para Maingueneau, um personagem paratópico por
excelência; e, como tentaremos mostrar ao fim deste trabalho, Palamedes, em
sua singularidade, o seria mais que qualquer outro da DSG.
O caminho que se pretende trilhar neste estudo, baseado nas reflexões
teóricas e críticas até aqui preliminarmente levantadas, é o da afirmação da
origem mundana da cavalaria, pela análise de Palamedes e seus feitos
enquanto índice de tal hipótese, por figurar em uma novela de cunho cristão.
Tomando como base teórica e crítica as interpenetrações do discurso
constitutivo como exposto por Maingueneau, o primeiro capítulo, “A cavalaria”,
será dedicado a suas origens – ocidental e oriental –, passando pelas
características que compuseram sua evolução até a consideração de seu maior
legado: o romance e as novelas de cavalaria. O segundo capítulo, “O
cavaleiro”, a partir do estudo da imagem do mouro na literatura trovadoresca do
baixo Medievo, tratará de Palamedes e da DSG; pela análise de sua gesta será
possível levar a cabo a reconstituição do cavaleiro e verificar a
correspondência (ou a disparidade) entre personagem literário e personagem
histórico, para uma leitura mais crítica e profícua da DSG. Assim, se a definição
de cavalaria abre os trabalhos, o estudo de Palamedes por meio do cotejo
entre uma cavalaria literária e a cavalaria histórica os irá concluir, mesmo que
sem pretensão de esgotamento do tema.
30
2 A CAVALARIA
Estudar a cavalaria hoje é tarefa intrigante. Devido à quantidade de referências
e teorias sobre a Idade Média, suas instituições, seus valores e mutações,
trabalha-se muitas vezes em terreno demasiadamente hipotético. Todavia,
após a definição de um corpus informativo que se aproxime de uma possível
verdade histórica, é necessário que se escolha a forma de abordá-lo, um
determinado modelo de análise da narrativa, por assim dizer.
No que tange aos inícios da cavalaria ocidental europeia – i.e, ao surgimento
do guerreiro montado, suas funções e valores e sua evolução enquanto
membro de um corpo de elite, organizado sob a égide do cristianismo e
inspirador de toda uma literatura em verso e prosa –, os dados são,
naturalmente, tanto mais brumosos quanto mais recuados no tempo. A
valermo-nos de compilações de fôlego e prestígio (como as realizadas por
Jean Flori [2005] e Dominique Barthélemy [2010]), tentaremos estabelecer,
mesmo que em escopo reduzido, as bases para que tratemos do cavaleiro
europeu e árabe (e de suas respectivas “ordens”, quando assim puderem ser
chamadas) historicamente descritos, para um cotejo com aquilo que se nos
apresenta nas literaturas produzidas no século XIII como matéria
cavalheiresca.
Antes de passarmos em revista a história da cavalaria, deve ficar clara a
ressalva de que o mesmo termo “cavalaria” não é de maneira nenhuma
semanticamente homogêneo ou determinado; faz convergir para si, isto sim,
vários elementos ligados ao poder e ao valor como tomados pelo feudalismo
ocidental, sempre ligados a uma ideia social e, por vezes espiritual, de
nobreza, como se atesta em sua evolução (FLORI, 2005, p. 14-15). Espera-se,
na outra mão, que cheguemos ao final deste capítulo se não com uma ideia
definitiva, ao menos com uma imagem suficientemente traçada do que
poderíamos considerar cavalaria para os fins de crítica literária, em particular
das narrativas cavalheirescas produzidas após o século XII. Assim, mais que
31
tratar da história dessa instituição, interessa o estudo do estado da cavalaria e
das implicações do termo no tempo da redação da Demanda do Santo Graal.
2.1 A cavalaria ocidental
As discordâncias que ocupam o terreno da história da cavalaria começam
efetivamente no estabelecimento de suas origens. Os dois principais
posicionamentos teóricos apontam ou para Roma, a estabelecer a disciplina
rígida e o senso de dever de seus soldados, ou para a Germânia, mais
especificamente no desenvolvimento de suas relações de vassalagem, na
valorização do guerreiro a cavalo e na entrega de armas aos jovens guerreiros.
Feita a ressalva à relatividade de um nascimento pontual da cavalaria, optamos
neste estudo trabalhar com a segunda teoria, por se apresentar aparentemente
enquanto unanimidade entre os historiadores estudados, e especificamente
defendida com propriedade por Jean Flori (2005) e com maior veemência e
fôlego por Dominique Barthélemy (2010).
De acordo com esses autores, à revelia do que pretendiam os nobres heróis
medievais, as origens guerreiras da Europa e o status conferido ao guerreiro –
principalmente ao cavaleiro – remontam à Germânia, como descrita por Tácito
por volta do ano 100. O cotejo entre a conduta dos guerreiros apresentada pelo
historiador romano e a dos soldados da Gália de César faz com que
Barthélemy favoreça os primeiros como os mais prováveis iniciadores da
tradição cavalheiresca.
Esses guerreiros não devem uma obediência estrita, automática a um chefe, a um Estado digno desse nome. [...] É sempre necessário que eles partam e guerreiem de sua plena vontade, e por uma virtude da qual eles têm o mérito pleno que os honra. A virtude do guerreiro é a ideologia de sociedades nas quais o poder dos chefes, sem ser insignificante, permanece medíocre. [...] A “Cavalaria” medieval lembra mais a emulação germânica de “virtude” do que a disciplina cívica ou militar de Roma – onde a função transcende o dirigente (BARTHÉLEMY, 2010, p. 31).
Parece haver, entre as linhas do historiador francês, uma espécie de recorte
inadvertido, atenuado pelas aspas: essa “Cavalaria medieval” aludida seria a
32
cavalaria franca? Tais virtudes surgiram realmente na Germânia? Mais: seriam
esses valores comuns a toda e qualquer cavalaria? A busca das origens desse
grupo de guerreiros está alienada à própria palavra que o designa; então,
talvez o mais adequado seja modalizar essa definição, pluralizando-a, como
prefere Jean Flori: há, na verdade, várias cavalarias – merovíngia, carolíngia,
romana, árabe, sármata... mesmo uma oriunda das estepes, bastante influente
entre os “bárbaros germânicos” (FLORI, 2005, p. 11) –, espalhadas
geograficamente pela Europa e além. A busca por uma origem da cavalaria
volta-se, enfim, para uma redução, apesar de criteriosa: no caso deste estudo,
buscam-se os valores que delinearam o herói das novelas do século XIII.
Nesse sentido, as palavras de Barthélemy fazem um primeiro e necessário
cerceamento.
Resta ainda uma ressalva: tal afirmação determina um contexto histórico,
indica já a semente de um conjunto de valores, mas não precisa uma marca
temporal. Naturalmente, se pode sempre eleger um determinado traço ligado à
prática do guerreiro montado ou sua relação com a sociedade e vincular,
digamos, um século específico – por exemplo, tomando as palavras de
Barthélemy, “é a partir do século VIII a. C. que sobre o solo da Gália, assim
como da Germânia vizinha, a posse de um cavalo e de um tipo de espada de
ferro distingue uma elite” (2010, p. 23) –; mas trata-se de uma redução por
demais grosseira. Efetivamente, qualquer compreensão histórica da cavalaria
parece demandar um estudo de sua evolução: tal conceito traduz-se em
processo, e não numa instituição com origem, objetivos e fim demarcados.
Pode-se dizer que o cavaleiro não é apenas um elemento do sistema feudal,
mas um seu produto. A crescente descentralização política que se segue à
queda do Império Romano do Ocidente faz com que o poder de reis passe para
príncipes, e então se dilua em propriedades menores pertencentes a uma
pequena nobreza, que irá firmar território e influência por meio de sua força
militar. Juramentados a seu senhor, os guerreiros que formam a guarda de
uma propriedade – a cavalo ou não, muitas vezes mercenários – veem seu
poder crescer, seu castelão cada vez mais dependente. Dessa forma, no que
concerne ainda a uma esfera específica da realidade feudal (a militar), o
33
cavaleiro é suas armas e seu cavalo. E isso é o bastante para que galgue os
primeiros degraus da fidalguia.
Os milites, auxiliares armados dos novos poderosos, ao mesmo tempo que escapam das exações, separam-se também da massa anônima dos trabalhadores da terra, de onde a maioria deles saiu. Rodeando a aristocracia a que servem de armas na mão, os cavaleiros tendem a dissolver-se nela pela combinação de costumes e mentalidades comuns, assim como pela elevação de sua condição socioeconômica [...]. Sem se confundir ainda com a nobreza, que permanece questão de sangue, de nascimento, de linhagem, a cavalaria ganha em dignidade e logo compõe uma classe hereditária, que constitui, por sua vez, uma aristocracia, na qual se entra por adubamento [...] (FLORI, 2006, p. 190).
Essa evolução de um grupo heterogêneo de guerreiros a um estrato social
particular deveu-se a alguns séculos de transformações de ordem na estrutura
feudal, sobre os quais seria redundante tratar aqui. Todavia, por ser tomado
como base de debates teóricos entre os historiadores, vale focarmos a
discussão naquilo que se chamou a mutação do ano 1100.
Por volta desse ano, teria havido uma mudança significativa nos hábitos e
costumes cavalheirescos – ao mesmo tempo em que ganharam modos mais
delicados ou sofisticados (mais “corteses”), cristalizaram-se em torno de um
estatuto mais bem demarcado; a cavalaria ganha as feições com que será
emoldurada no século seguinte (Barthélemy localiza essa mudança em torno
dos duques da Normandia), e com as quais ganhará as narrativas. Um dos
principais elementos dessa mudança, como indicado por Flori, era a investidura
– ou adubamento –, a qual merece atenção especial por singularmente
importante na formação do cavaleiro.
A investidura é a entrega das armas ao recém-formado cavaleiro (que se diz
então adubado) por seu senhor, para que o proteja e lhe seja sempre leal.
Muitas das narrativas cavalheirescas atrelam a essa prática um sentido e uma
cerimônia religiosos: a entrega das armas é precedida por vigília, jejum, banho
purificador e orações. Tais narrativas, a rigor, não se afastam da realidade
medieval do século XIII, como veremos a seguir. Todavia, é importante, para os
fins pretendidos por este trabalho, que se verifiquem as origens da investidura,
34
uma vez que se tenta perceber a possibilidade de o conceito de cavalaria e
suas práticas ocidentais aplicarem-se a um pagão.
E, nesse ponto, há certa unanimidade entre os historiadores investigados: o
adubamento, originalmente, configura-se tão apenas como uma transferência
de armas, de natureza bastante prática, do suserano a seu vassalo, às vezes
mesmo sem solenidade alguma, funcionando ainda como um rito de passagem
do guerreiro à vida adulta, remetendo-se em certa medida à entrega de armas
de tradição germânica (FLORI, 2006, p. 194). Com o tempo, tal prática,
traduzindo o refinamento de costumes do ano 1100 aludido acima, passará a
ser cada vez mais cerimoniosa, representando a entrada do adubado a uma
corporação nobre de guerreiros.
O adubamento é um rito de integração à nobreza feudal, do qual se pode querer sublinhar, mais ou menos a hierarquia ou a igualdade, da mesma forma que acontece com os demais ritos de vassalidade. [...] Ao mesmo tempo, o convívio, a solidariedade relativa entre vassalos de um mesmo senhor é antiga, e pouco a pouco o adubamento vai se estender, ou melhor, vai concorrer com as outras práticas Cavaleirescas, para desenvolver um tipo de consciência de classe explícita que parecia menos marcada na primeira idade feudal (BARTHÉLEMY, 2010, p. 212).
Nesse período de mudanças, não se pode negligenciar, observada a evolução
da cavalaria europeia, a influência exercida pela Igreja nos modos
cavalheirescos. Tal influência se dá de forma gradual. Desde a metade do 1º
milênio, os grandes senhores germânicos passam a se cristianizar; no ano
1000, tornam-se recorrentes os juramentos da “paz de Deus”, votos que
preveniriam desmandos praticados por senhores contra vassalos. Tal fato
poderia determinar a época mais ou menos precisa em que a cavalaria, por
pressão da Igreja, pôs-se a alinhavar seu primeiro código de conduta,
afirmando-se como instituição. Entretanto, de acordo com Barthélemy, não se
deve ver a desordem em que atuavam os cavaleiros como pura barbárie, ou
mesmo os juramentos como leis inexoráveis, seguidas sem contestação,
incorruptíveis. As nuances de que são dotados os acordos medievais abrem
espaço para interpretação variada; e, em se tratando do estatuto do cavaleiro,
não se devem perder de vista os aspectos mundanos de sua atividade, sua
herança germânica que põe em evidência a coragem e os feitos de bravura
35
sobre as demais virtudes. É de se esperar, portanto, que uma mudança de
conduta em relação a esse grupo guerreiro deva-se muito mais a interdições
que a uma real, efetiva, mudança de caráter (BARTHÉLEMY, 2010, p. 190).
Desse período, dois tratados sobre os deveres do cavaleiro precisam ser
citados, pela visão que apresentam da cavalaria como a encontramos no
século XIII: a segunda de Las siete partidas, o famoso código jurídico composto
por volta de 1265 pelo rei de Leão e Castela, Afonso X (1991), a qual trata, ao
Título 21, dos cavaleiros e das coisas que a eles correspondem; e O Livro da
Ordem de Cavalaria, de Ramon Lull (2000), obra de redação provável entre os
anos de 1279 e 1983 e composta entre a dialética aristotélica e a sacralidade
da qual se acreditava oriundo o ofício de cavaleiro. A considerar a diferença
entre os modos discursivos, nota-se grande semelhança entre os postulados:
ambos pretendem-se registros de como a cavalaria deve ser ordenada em
suas atividades e funções. Em ambos – mais em Lull que em Afonso X – a
obediência à liturgia católica como dever do cavaleiro é evidenciada; temos já
solidificado o ideal de união entre Igreja e cavalaria, classificadas pelo
missionário de Maiorca como ordens divinas, ligadas por amizade mútua
(LULL, 2000, p. 25). O rito da investidura, por exemplo, que deve ocorrer
sempre em dia santo, demanda um capítulo à parte tanto no código afonsino
quanto no Livro da Ordem de Cavalaria, em que se destacam a vigília, a missa,
os sacramentos e outros atos religiosos de cerimônia. É também cerimoniosa a
entrega de armas pelo cavaleiro adubador, conferindo ainda maior importância
ao evento.
Não nos esqueçamos, entretanto, de seu significado original: para além de toda
a ritualística imbricada pela Igreja, alegorizando seu objetivo doutrinário,
importa-nos particularmente que, no início, a investidura é apenas mundana,
um traço ligado à vassalidade, a uma relação de lealdade e proteção mútuas.
Sua herança germânica a define muito mais como política, e, portanto,
referente a uma nobreza laica, que como moral e religiosa, perpassada pelos
dogmas da Igreja, que irá apenas interessar-se pelo rito no século XII, quando
a cavalaria ganha maior importância.
36
De um lado, a Igreja observa, com um certo atraso, a existência de forças armadas que escapam em grande medida à autoridade dos príncipes [...]; por outro lado, ao dirigir-se a cada cavaleiro investido, a Igreja constata o surgimento de uma consciência individual que, ainda fortemente engajada nas estruturas de vassalagem e linhagem, começa todavia a se mostrar. [...] Enfim, com o apelo à cruzada, essa elaboração litúrgica expressa a tentativa da Igreja de assumir os destinos da sociedade ocidental [...] (FLORI, 2005, p. 44).
É importante observar que a moralização promovida pela Igreja, e que teve
ares reformadores no século XII (BARTHÉLEMY, 2010, p. 290), não diz
respeito apenas à cavalaria ou à nobreza feudal, mas a toda a sociedade; além
disso, não se pode se esquecer da Igreja enquanto instituição medieval e,
assim, como parte do jogo social e político, de concessões e acordos.
Nesse contexto, a recente prática dos torneios pode ser considerada como um
microcosmo das relações ambivalentes, por vezes contraditórias, e quase
sempre tensas, entre cavaleiros, ou mesmo a aristocracia feudal, e a Igreja.
Temos traços de verdadeiras tensões entre a Igreja e os Cavaleiros, na aproximação do ano 1200. Uma parte ao menos do alto clero, formada nas escolas de Paris, entoa sermões contra os pecados de Cavaleiros: orgulho, torneios, ações sociais duras de todos os tipos (ainda com rapinas) (BARTHÉLEMY, 2010, p. 455).
Surgidos no século XII, os torneios (derivados etimologicamente do verbo
tornear, ligado ao movimento de volta dos cavaleiros após as investidas)
punham frente à frente dois cavaleiros ou equipes de cavaleiros, cuja
motivação era mais derrubar ou capturar seus adversários que realmente feri-
los à morte. Tratava-se realmente de uma atividade cavalheiresca, em que
deviam ser mostrados ao mesmo tempo bravura, feitos de armas e, sobretudo,
cortesia, manifesta na misericórdia e na generosidade – e que merece
consideração pontual.
O conceito de cortesia, com efeito, nunca foi elucidado senão de forma
incompleta, por seu caráter sincrônico; seu sentido foi diversamente
demarcado pela história. Mas não parece haver dúvidas de que o início de uma
cultura dita cortês tenha ocorrido após o império carolíngio, e se fortalecido na
conquista da Inglaterra pelos normandos (BARTHÉLEMY, 2010, p. 205), já nas
37
primeiras décadas do século XI. Neste período, as habitações principescas
ganharam uma estrutura administrativa mais bem definida; e é quando a classe
dos milites ascende socialmente pela proeminência que obtém nessa estrutura,
estando sempre próximos ao rei, formando, junto a clérigos e funcionários de
nobre nascimento, a sua corte (GUENÉE, 2006, p. 272). Neste sentido,
cortesia seria o comportamento habitual condizente ao cortesão. Não nos
interessa aqui tratar dos inúmeros manuais12 relativos ao assunto;
consideremos apenas que as convenções que fundamentaram tal
comportamento são tomadas, a rigor, como a chave reguladora dos hábitos
rudes dos guerreiros de elite e que os transformou em cavaleiros nobres. Entre
os vários fatores que concorreram para essa mudança, destacamos os
decretos reformadores da Igreja, cujos objetivos doutrinários são conhecidos; e
o contato com o Oriente, cujo nível de refinamento foi aludido à Introdução
deste trabalho e que será retomado em breve.
Dessa forma, tal atmosfera de abrandamento dos modos bélicos é propícia a
simulações e jogos de guerra – mas de uma guerra bastante específica: aquela
desempenhada pela cavalaria. Entretanto, tal prática não é de todo alienada de
uma realidade militar. O “declínio” da cavalaria enquanto arma de guerra irá
ocorrer apenas com o desenvolvimento da artilharia de pólvora, convivido e
talvez equivalendo em importância ao arco longo inglês e às bestas genovesas;
e, enquanto exercício de armas que colocava lados opostos em escaramuça
direta, os torneios, por vezes exaltados demais para que fossem vistos apenas
como jogo, funcionavam tanto como treinamento de armas como uma “prévia”
de confronto, uma batalha em si mesma, com regras específicas, mas
validadas pelo ideário comum.
Apesar de a violência ser controlada por normas próprias ao torneio, e de toda
forma ligadas ao cavalheirismo, os torneios contavam com uma audiência
assídua e interessada, e o ânimo dos cavaleiros, instados pelos assistentes,
podia exacerbar-se a ponto de perderem o comedimento necessário à “boa
justa”: a morte era, sim, um risco – o que, naturalmente, gerou retaliações
12 Entre eles, destacamos o Tratado do amor cortês, de André Capelão (2000).
38
severas por parte da Igreja, empenhada, à época, no abrandamento do espírito
belicoso dos cavaleiros (FLORI, 2005, p. 104).
O repúdio da Igreja, de fato, pouco conseguiu mudar essa atividade. Os
torneios adquiriram uma importância muito grande para serem postos de lado:
politicamente, davam a se conhecer cavaleiros, estabeleciam laços de amizade
(e inimizade), resolviam disputas feudais; socialmente, serviam como
entretenimento para toda a corte; militarmente, funcionavam como treinamento
para o cavaleiro e mantinham-no ocupado em períodos de paz (FLORI, 2005,
p. 108). Viu-se mesmo como evangelizadores laicos, como Ramon Lull,
recomendam os torneios como dever do cavaleiro, e ainda dentro da Igreja há
aqueles que não os repudiam.
Por fim, toda uma literatura cavalheiresca irá exaltar essa atividade,
fortalecendo os traços mundanos dos nobres guerreiros, ligados ao belicismo
atávico germânico e temperados pela cortesia. A cavalaria é já parte da
aristocracia; a nobreza da Ordem de cavalaria deve ser mantida igualmente por
fidalgos; não há mais espaço para a ascensão social por meio das armas.
Afonso X, cujas pretensões imperialistas orientariam a generalidade de seu
tratado (DELGADO, 1991, p. 285), alega que “[tanto] encaresçieron los
antiguos orden de cavalleria, que tovieron que los enperadores nin los Reyes
non devien seer consagrados nin coronados fasta que cavalleros fuesen13”
(ALFONSO X, 1991, p. 183).
E já não se deve ser cavaleiro se não investido de posses. O mesmo rei de
Leão e Castela estabelece que não se deve fazer cavaleiro “omne muy pobre”,
pois pode dar-se à mendicância e ao roubo (1991, p. 184). Vai Lull no mesmo
sentido: o escudeiro (aquele que se prepara para receber a investidura
prestando serviços a um cavaleiro) precisa poder arcar com suas despesas,
pelo mesmo risco.
13 “[tanto] encareceram os antigos a ordem de cavalaria, que se teve que nem imperadores nem reis deviam ser consagrados ou coroados até que fossem cavaleiros” (tradução nossa).
39
Cavalaria não pode ser mantida sem o arnês que pertence ao cavaleiro, nem sem os honrados feitos e as grandes despesas que convêm ao ofício de Cavalaria. E por isso, escudeiro sem armas e que não possua tanta riqueza que possa manter Cavalaria não deve ser cavaleiro, porque por falta de riqueza falha o arnês, e por enfraquecimento do arnês e despesas, malvado cavaleiro torna-se roubador, traidor, ladrão, mentiroso, falso, e de outros vícios que são contrários à Ordem de Cavalaria (LULL, 2000, p. 61).
Ao mesmo tempo em que a cavalaria ganha fausto e sofisticação, em relação
talvez mais estável com a Igreja, e que os cavaleiros têm atribuídos a si
diversas atividades – polarizadas pela cortesia dos torneios e jogos e as
batalhas reais das cruzadas –, a burguesia consolida-se enquanto classe e, de
certa forma, faz com que o prestígio econômico e político da nobreza feudal
comece a ruir (BARTHÉLEMY, 2010, p. 366). A cavalaria parece, agora,
habitar cada vez mais o espaço determinado entre uma realidade atual que lhe
é particularmente pouco favorável e outra que se alimenta da prática cortesã
para a manutenção dos costumes da nobreza feudal. Logo, nesse período,
enquanto os cavaleiros procuram manter-se pela união com casas burguesas,
ou migrando para áreas rurais,
[...] os reis, os príncipes, os barões estão lá para amparar um pouco dessa evolução própria da “segunda idade feudal” (séculos XII e XIII). Quando reúnem grandes cortes festivas em algumas cidades, não permitem aos Cavaleiros, amplamente ruralizados, voltarem regularmente a consumir e puncionar riquezas? A corte seria, em suma, uma maneira legítima, elegante e confortável para a classe de Cavaleiros, de saquear as cidades, graças ao príncipe ao qual seu poder e suas rendas crescentes permitem fazer prodigalidade (BARTHÉLEMY, 2010, p. 367).
Assim, vive-se durante algum tempo uma simbiose entre a classe burguesa e a
nobreza ainda com posses, em que o cavaleiro desempenha um papel muito
pouco virtuoso, bastante distinto daquele que encena nas novelas de cavalaria
– as quais irão funcionar como exemplo de conduta, refinando-lhe os modos e
aproximando-os de uma vida cristã ideal, menos violenta.
O cavaleiro do século XIII é, portanto, um nobre – i.e, pertence à aristocracia
feudal, está imerso em práticas cortesãs que servem de contraponto à violência
e à rudeza de sua profissão, ostenta riqueza e distribui presentes nos festejos
de sua investidura, percorre torneios em busca de fama para si (em nome de
40
uma dama, boa parte das vezes [ALFONSO X, 1991, p. 190]). É certo que a
Igreja virá desempenhar um papel significativo nessa transformação da
cavalaria em “ordem” ou instituição, mas não definitivo, e nunca homogêneo
(FLORI, 2005, p. 138). Enfim, um homem cuja vida é já determinada por um
código de conduta baseado no bom uso das armas, no cavalo e na honra
própria e de sua linhagem, orientado por querelas vassálicas em que se
manifestam vícios e virtudes, membro de uma irmandade que não parece
conhecer fronteiras no Ocidente – este será o cavaleiro europeu do qual
trataremos neste estudo, a ser cotejado ao árabe, do qual cuidaremos agora.
2.2 A cavalaria árabe
Como já apontado à Introdução deste trabalho, as semelhanças existentes
entre a cavalaria árabe e a cavalaria europeia no século XIII são grandes. A
instituição de uma Ordem de Cavalaria e os ritos que dela advêm segregam-na
do resto da sociedade como classe específica e especial, ao mesmo tempo em
que os modos cavalheirescos ganham universalidade (BARTHÉLEMY, 2010, p.
256). Não só os modos: também as técnicas de combate ganham
particularidades e passam a ser compartilhadas, em torneios ou em batalhas
reais. A cavalaria deixa de ser apenas uma força de combate a cavalo
extremamente eficaz, o que lhe rende um lugar demarcado na história da
guerra; ela ganha o status de guerra aristocrática, mais nobre.
O estudo histórico do desenvolvimento daquilo que poderíamos chamar, pelo
menos para o escopo deste estudo, de cavalaria árabe no período medieval,
nos traz uma semente diversa daquela que gerou “a flor da cavalaria” no
Ocidente – apesar de alguns galhos terem naturalmente se entrelaçado no
processo evolutivo de ambas. Cabe, portanto, que analisemos brevemente o
papel dos valores cavalheirescos na sociedade árabe e como ocidentais e
orientais puseram a olhar-se, naquela época, pelas lentes do militarismo.
É entre os séculos VII e VIII que Mário Curtius Giordani aponta o surgimento,
sob o governo Omíada, na Síria, de uma cultura ou civilização árabe ou
41
muçulmana, amalgamada por uma grande diversidade de influências,
pensamentos, etnias e outras culturas.
Da sua península os árabes trouxeram consigo duas grandes contribuições: o Islã e o idioma arábico aliado ao seu código de cavalaria do deserto. Também trouxeram o estímulo psicológico de um povo conquistador, vigoroso sobre populações do mundo exterior, mais civilizadas, é certo, mas estagnantes (ATIYAH, apud GIORDANI, 1976, p. 72).
Tal afirmação traz à tona dois conceitos de grande importância para o cotejo
entre as culturas oriental e ocidental, e para a consequente comparação do
cavaleiro literário e o cavaleiro histórico: o código de cavalaria e a civilidade.
Vejamos o que postula Barthélemy, ainda sobre os cavaleiros europeus.
Os antigos germânicos foram de uma “barbárie” no seio da qual se pode descobrir, como em outras sociedades em que os guerreiros nobres dominam, “uma espécie de Cavalaria.” Sente-se viver neles um ideal heroico, enquanto adotam por vezes táticas e argumentos necessários para não irem até o final da vingança e da luta mortal. Então já aparece desprezo pelo simples camponês [...] (2010, p. 584).
A barbárie de que fala Barthélemy (e o pontuado desprezo pelo camponês, os
quais serão retomados em breve) relaciona-se mais a um sistema social
baseado na vassalidade direta (a “barbárie” oposta à “romanidade”, digamos)
do que em práticas de rudeza ou violência gratuitas promovidas por um povo
pouco civilizado. Esse ponto é passível de contestação, se tomarmos como
base os relatos de cronistas árabes transcritos por Amin Maalouf, em seu As
cruzadas vistas pelos árabes (1988). Já sabemos que a conduta dos cavaleiros
europeus não correspondia, boa parte das vezes, às exortações e imposições
da Igreja; são aristocratas armados, agora membros de uma ordem sagrada,
em tudo superiores ao resto da sociedade; é de se esperar que as longas
jornadas pela reconquista da Terra Santa deem ocasião a comportamentos
muito pouco cavalheirescos. Com efeito, os ataques dos franj – denominação
dada a todos os francos, generalizada para os europeus, pelos árabes – são
pintados com cores fortes. Em 1096, por exemplo, atravessam o Bósforo a
caminho de Constantinopla, efetuando vários saques a igrejas gregas. Em
meados de setembro, após dias de acampamento,
42
[...] os franj modificam seus hábitos. Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Nicéia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser estocadas em celeiros, nesse período de colheita, massacrando sem piedade os camponeses que tentavam resistir. Crianças de colo teriam sido queimadas vivas (MAALOUF, 1988, p. 19).
Ao mesmo tempo em que não podemos crer absolutamente na veracidade ou
no vulto de tais relatos, não podemos desconsiderá-los, tampouco. É mister
que se veja na cruzada o seu lado mundano, a carnificina e o horror da guerra.
Assim, tem-se que a cavalaria europeia, já digna de ser chamada por esse
nome, apresenta-se no campo de batalha estrangeiro como um flagelo – e não
somente por sua força ou bravura, mas por seu comportamento
desmesuradamente feroz, sem traços de civilidade aos olhos dos orientais.
Ao tratar do processo de civilização no Medievo, Norbert Elias (1994) irá
aproximar o conceito de civilidade (ainda não cunhado no século XIII) ao de
cortesia, de valor semelhante, ou embrionário. Apreende-se daí que, enquanto
o termo “civilização” só poderá ser utilizado com propriedade por volta do
século XVI, a ideia de uma classe aristocrática autoconsciente e exemplar já se
demonstra na baixa Idade Média pelo modelo cortesão (ELIAS, 1994, p. 76).
Lembremos também que a cortesia atrela-se diretamente a moldes de
comportamento cristãos: logo, apenas os nobres cristãos poderiam ser
civilizados, por serem corteses. O conceito de civilização relativo ao Medievo é,
como a classe dos cavaleiros, exclusivista; e tal fato faz com que as
admoestações aos francos por parte dos árabes ganhem um caráter
surpreendente: seria possível que pagãos fossem mais civilizados (ou mais
corteses) que os cristãos? Em alguma medida, esse confronto ideológico irá
causar forte estranhamento às hostes árabes. Seria diferente com eles,
portanto? Como surgem e se articulam as virtudes ditas cavalheirescas no
interior da cultura árabe?
De acordo com Boutros Ghali, não se pode falar realmente em uma cavalaria
árabe antes de os contatos militares entre a Cristandade e o Islã ganharem o
volume das cruzadas, após o primeiro milênio. As primeiras considerações
sobre um guerreiro destacado dos demais por seu valor surgem na literatura
43
árabe antes do século VII; entretanto, o termo usado comumente para esse
personagem, fêta, não corresponde à ideia de cavaleiro. Nas palavras de Ghali,
“[le] mot ‘fêta’, en effet, dit un homme de coeur e de vaillance, un preux. Il ne
devint synonime de ‘Chevalier’ que beaucoup plus tard, vers le XIIe siècle,
quand la ‘Chevalerie’ fut connue en Orient”14 (1919, p. 25). Tal constatação
poderia levar a crer que, de fato, a cavalaria e seus modos são uma criação
puramente europeia, especificamente franca, da qual os árabes teriam
emprestado modos e tecnologia. Viu-se, no entanto, o relativo fracasso da
Igreja em temperar efetivamente a tendência à rapinagem e à truculência dos
cavaleiros; e pelas crônicas árabes, os francos teriam pouco a ensinar-lhes
sobre “modos cavalheirescos”. Para Ghali, o “bom” exemplo virá precisamente
dos inimigos da Igreja – a civilização muçulmana, a qual já teria, à época, um
“código de cavalaria”.
Um código, mas sem uma instituição. Para Ghali, uma das principais diferenças
entre as genealogias cavalheirescas árabe e europeia é a própria estrutura
social sobre a qual se erguem: não esqueçamos que, ao passo que a Igreja
Católica, apesar de toda sua influência, mantinha relações conflituosas com o
século, o Islamismo levava a cabo uma teocracia: os ideais de fraternidade e
generosidade – refletidos também em proteção dos mais fracos – que deveriam
grassar entre os principais valores do cavaleiro cristão fazem parte de um
código de honra que se estrutura na base de toda a sociedade árabe
(HOURANI, 1995, p. 164). O desprezo pelo camponês, apontado por
Barthélemy como traço das origens da cavalaria ocidental, reflexo de uma
verticalização social acentuada, não tem lugar na fraternidade islâmica. Poder-
se-ia mesmo se falar de uma “ordem de cavalaria gigantesca” (GHALI, 1919, p.
32), em que o aperfeiçoamento das virtudes pessoais é o que move seus
membros e os distingue, elevando ao mesmo tempo a virtude do grupo –
família ou tribo.
Comme les Arabes étaient tous égaux, ils cherchèrent tous à se distinguer, à se singulariser par la richesse et la variété de leurs
14 “[a] palavra ‘fêta’, com efeito, diz respeito a um homem de coração e de bravura, um valoroso. Ela só se tornaria sinônimo de ‘Cavaleiro’ muito mais tarde, por volta do século XII, quando a ‘Cavalaria’ fez-se conhecida no Oriente” (tradução nossa).
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vertues; à se surpasser, à élever et a rehausser les colonnes de leurs mérites et de leur gloire. [...] Ils soutenaient à la fois de assauts d’armes et des assauts de magnanimité, des défis à la course et des défis de beau langage, des luttes de noblesse, de lignage, de largesse et de libéralité. Et ces épreuves intéressaient le présent et l’avenir, les vivants et les morts, car le triomphe d’un compétiteur se reflétait en gloire durable sur toute sa tribu, comme la honte de sa défaite rejaillissait sur chacun de sés concitoyens15 (GHALI, 1919, p. 36).
Isso considerado, tem-se que uma ordem de cavalaria árabe enquanto grupo
restrito não se caracterizaria pelo compartilhamento de ideais de conduta,
separados da sociedade ordinária. Entretanto, devido à desarticulação política
sofrida pelo império árabe causada por sua expansão, surge um único grupo
de identidade árabe que poderia corresponder politicamente à cavalaria franca
(ou, genericamente, ocidental) a pôr tais ideais no centro das atenções: trata-se
da Futuwwa, grupo de cavaleiros que, de acordo com Giordani, surgiu sob o
califado de Al-Nasir (1180-1226) e teve importante papel em sua tentativa de
unificação do império.
Com a finalidade de reconciliar os grupos dissidentes, o próprio Al-Nasir fundou
essa espécie de ordem de cavalaria da qual era o grão-mestre. Futuwwa é um
vocábulo árabe que exprime “o conjunto das virtudes próprias do homem na
flor da idade, notadamente a generosidade” (GIORDANI, 1976, p. 95.). Tais
virtudes seriam características dos fytian, plural de fata – o jovem, mas de
forma especial, o virtuoso. Em outra acepção, a futuwwah refere-se ao adulto,
e está ligada diretamente à ideia de valor e função social do indivíduo.
La futuwwah est de l'âge de l'homme la période comprise entre 18 et 40 ans. Elle représente le développement et la plénitude de la force et des bonnes qualités. Le fata emploie sa force au service de Dieu et du faible, il n'a pas d'adversaires, car Il s'acquitte de ses obligations et il renonce aux droits qu'il peut exercer16 (ARABI, apud ABU-SAHLIEH, 2010, p. 4).
15 “Como os Árabes são todos iguais, todos procuram distinguir-se, singularizar-se pela riqueza e a variedade de suas virtudes; a se superar, a se elevar e a realçar as colunas de seus méritos e de sua glória. Eles sustentam ao mesmo tempo os assaltos de armas e os assaltos de magnanimidade, os desafios de corrida e os desafios de boa linguagem, as lutas de nobreza, de linhagem, de generosidade e de liberalidade. E essas provas interessam ao presente e ao futuro, aos vivos e aos mortos, pois o triunfo de um competidor se reflete em glória durável sobre toda a sua tribo, como a vergonha de sua derrota mancha cada um de seus concidadãos” (tradução nossa). 16 “A futuwwah é na idade do homem o período compreendido entre os 18 e os 40 anos. Ela representa o desenvolvimento e a plenitude da força e das boas qualidades. O fata emprega
45
O paralelo entre as ordens de cavalaria ocidentais e al-Futuwwa, nesse
sentido, parece evidente. Todavia, da mesma forma que o conceito de
cavalaria não indica uma única atividade ou função precisa, al-Futuwwa e fata
são ideias de interpretação vária, a depender do contexto em que estão
inscritas. De qualquer forma, ambas as ordens parecem ter feito a mesma
jornada evolutiva – das milícias armadas à espiritualidade. De acordo com Abu
Sahlieh, tais grupos de guerreiros organizados, sob o nome comum de
futuwwah,
[…] ont connu une évolution, comme dans la chevalerie occidentale. Ils ont commencé par être des milices armées indépendentes du pouvoir avant que d'être récupérées par ce dernier, ensuite ils se sont transformés en ordres soufis et en union professionnelles, toutes ces formes ayant eu en commun un certain code d'honneur et un ritual17 (ABU-SAHLIEH, 2010, p. 6).
Portanto, parece que a forma mais correta de se proceder a uma reconstituição
do cavaleiro mouro é localizá-lo, primordialmente, no seio de uma comunidade
que salienta como predicado maior a irmandade e a igualdade entre os crentes,
o que torna familiares a todo membro os valores cavalheirescos. Aos que
empunham armas para a defesa desses valores – operando dentro ou fora dos
ditames do califado – uma denominação especial é garantida: al-Futuwwa, que
assim, e somente no que tange a um ponto de vista histórico e semântico
bastante específico, aproxima-se do que poderíamos chamar de cavalaria
árabe enquanto um grupo organizado.
Como no Ocidente, o estabelecimento de al-Futuwwah como ordem trouxe, a
título de registro, a organização de vários futuwaat-nameh: verdadeiros
tratados concernentes à iniciação, à conduta e à moral do cavaleiro. Essa
literatura, de forma semelhante ao que nos lega a tradição de narrativas
cavalheirescas ou à obra de Ramon Lull, remontam a criação da ordem de
sua força ao serviço de Deus e dos fracos, ele não tem adversários, pois está quite de suas obrigações e renuncia aos direitos que pode exercer” (tradução nossa). 17 “[…] conheceram uma evolução, como na cavalaria ocidental. Eles começam por ser milícias armadas independentes do poder antes que fossem recuperadas por este último, depois são transformados em ordens soufis e em uniões profissionais, todas essas formas tendo em comum um certo código de honra e um ritual” (tradução nossa).
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cavalaria a uma vontade de Deus e à sua aliança com os homens bem-
aventurados e fiéis (SAHLIEH, 2010, p. 12), o que reafirma o caráter sagrado
tanto da Jihad, a guerra santa promovida por Maomé, quanto da cruzada. A
diferença entre a Futuwwah e a ordem de cavalaria ocidental não reside,
portanto, no fato de haver um enredamento religioso em sua constituição, mas
em como se dá tal enredamento: enquanto no Ocidente a Igreja assume
paulatinamente um papel moralizador e modalizador de um grupo de guerreiros
descendentes do feudalismo germânico, a cavalaria oriental é, desde o
princípio, orientada e regulada por um código ao mesmo tempo espiritual e
secular.
Sendo assim, é necessário pensar as cavalarias ocidental e oriental como as
encontramos no século XIII ligadas fortemente ao cristianismo e ao islamismo.
Tais religiões tiveram papel fundamental em seu refinamento, em que
ganharam terreno virtudes amplamente reconhecidas, as quais serviram como
termos de diálogo e comparação entre os dois mundos. Nesse sentido, a
mutação universalista de 1100, em que se tenta mitigar a violência das práticas
cavalheirescas, dando-lhes ares de sofisticação (ou civilidade), aponta também
para o “amadurecimento”, ou para uma expansão, do conceito de cavalaria,
dialogando mais confortavelmente com o Oriente. “Ela se torna
verdadeiramente um tipo de universalismo senhorial, pronto para aceitar em
seu seio turcos e sarracenos, despertando neles alguma ressonância, e pronta
mais ainda a se estender das cortes francesas em direção às de toda a Europa
cristã” (BARTHÉLEMY, 2010, p. 587).
A cortesia, então, é um conceito que já se pode aplicar aos árabes. Vários são
os relatos históricos que lhes tecem loas à generosidade e grandeza de
espírito. Para citar um exemplo, tome-se al-Mutamid (1069-1095), rei de
Sevilha, cuja corte “tornou-se famosa como centro de cultura para onde
convergiam escritores e poetas. […] Seus numerosos biógrafos não escondem
a emoção em face do triste fim daquele cujo talento poético, generosidade e
espírito cavalheiresco não se cansam de elogiar” (GIORDANI, 1976, p.112-
113).
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Como visto, o sentido de cortesia carece de nitidez, devido em parte às
diferentes áreas em que se espera a excelência do cortesão: além de mostrar-
se um combatente digno, o cavaleiro deve saber comportar-se socialmente
(RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 48), e isso implica uma correta e, de certa
forma, rigorosa maneira de amar – a chamada fine amor, estabelecida como
doutrina por André Capelão em seu Tractatus de amore, de 1184, e propagado
pelos trovadores provençais e franceses.
Na lírica, o amor cortesão aparece como uma relação virtualmente adúltera: a dama é casada, é objeto de uma corte amorosa e de uma súplica cujos mensageiros são os poemas. A súplica amorosa é calcada no modelo feudo-vassálico. “Minha Senhora” [...], tal é o termo de requerimento [...]. A petição amorosa deve estar sempre ligada ao valor pessoal. Aquele que deseja tornar-se amante de uma dama se mostrará leal e cortês, dedicará toda a atenção a fazer o elogio da amada, e, particularmente na França do norte, [...] mostrar-se-á exemplar nos torneios e combates (RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 48-49).
Essa relação com as mulheres é bastante distinta entre os cavaleiros árabes e
francos. Flori, ao tratar do amor na cavalaria, equipara-o à “cortesia” quase
como sinônimo; e, ao transcrever o repúdio do príncipe sírio Ousama à atitude
liberal dos cavaleiros para com suas senhoras, toma-o como prova da
exclusividade franca das práticas corteses (FLORI, 2005, p. 152).
Ora, há de se convir que existe um espaço grande entre a liberalidade que se
mostra no campo de batalha, por exemplo, e a vassalagem amorosa
apregoada pelos trovadores provençais; falamos de cortesia como práticas
corteses individuais muito mais confortavelmente do que como um conceito
fechado e estrito – caso em que a ausência de um único de seus traços (a fine
amor, por exemplo) seria suficiente para a caracterização de um
comportamento como não cortês. Isso considerado, seguimos com o mesmo
comedimento que procuramos dedicar à análise de outros conceitos: mesmo
que se considere sua heterogeneidade, o termo cortesia traz a reboque,
inevitavelmente, o pressuposto da vassalagem amorosa; a cavalaria, enquanto
prática militar cortês, não. Dessa forma, como será desenvolvido no próximo
capítulo, poderemos dizer mais pertinentemente da cavalaria de Palamedes,
pelo respeito que o cavaleiro mouro angaria entre seus pares cristãos pela
48
proeza de armas e generosidade, que de sua cortesia – pois, apesar de ser
patente seu devotado amor por Iseu, tal característica não recebe, nesse
estudo, prioridade analítica.
Assim, devem-se frisar os elementos de uma tal cortesia militar que,
compartilhados por árabes e europeus, mostravam aos cavaleiros sua
condição de semelhante ou de par. Em se tratando de um código de ética
como o da cavalaria, pressupõe-se semelhante aquele que comunga de um
mesmo princípio moral, em que pesem as diferenças culturais. De acordo com
Giordani,
[a] força do exército árabe muçulmano [...] residia não na superioridade das armas, nem da excelência de sua organização, mas em seu elevado moral para o que, sem dúvida, a religião contribui com sua parte; em seu poder de resistência que a vida no deserto forjou; em sua notável mobilidade devida principalmente ao transporte por meio do camelo (GIORDANI, 1976, p. 163).
A singularidade do moral cavalheiresco do guerreiro árabe medieval estava
atrelada a elementos específicos de sua vivência e de sua cultura. Nesse
sentido, o camelo, alcunhado “o navio do deserto” (GIORDANI, 1976, p. 163),
sem dúvida teve um papel preponderante nas longas jornadas empreendidas
desde a Ásia até a península Ibérica, sendo portanto um traço identitário dos
guerreiros orientais. Entretanto, nenhum animal foi tão importante para a
cultura cavalheiresca árabe quanto o cavalo, cujo cuidado é mais um ponto de
contato entre Ocidente e Oriente no período medieval18.
A presença destacada do cavalo na sociedade árabe foi tratada com alento por
Maria Mercedes D. Pérez (2007). Seu levantamento histórico e literário aponta
sobejamente para como toda uma ciência de criação e cuidado do cavalo,
assim como a equitação em suas diversas finalidades, forjou-se a partir de uma
18 Como se sabe, a expressão “período medieval” (como “medievo” ou “Idade Média”) não se aplica ao mundo árabe com a mesma pertinência, uma vez que o início do calendário islâmico se dá com a Hégira, 622 dc., além de trazer a reboque um conjunto de percepções ligadas ao mundo ocidental e à cristandade, como problematizado por Christian Amalvi (2006, p. 537-550). Entretanto, como Giordani (1976) refere-se a um “mundo árabe medieval” em correspondência à Europa medieval, e Hourani (1995), apesar da ressalva feita aos calendários, utiliza majoritariamente datações cristãs para sua História dos povos árabes, utilizaremos o termo como sendo comum às duas culturas, apenas para efeito de contextualização histórica.
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literatura do maravilhoso ou foi baseada no misticismo maometano, que elevou
o cavalo, por vezes, à mais cara das possessões de um nobre. Todo o bem
feito a um cavalo, e mesmo o apreço reservado ao animal, seriam bem vistos
por Deus, contando como boa ação a Seus olhos.
La supra valoración de este acto religioso llega hasta el extremo de que ni tan siquiera se precisa la posesión de un caballo, sino que la buena querencia hacia el animal es suficiente pues, según la tradición, "Dios recompensará al hombre que guarde a los caballos, aunque no críe ninguno. Y si con ilusión sincera piensa que criará alguno, Dios le otorgará el premio reservado a los mártires". La crianza del caballo, pues, tenía igual valor que cualquier otro precepto religioso: "Quien cría a un caballo para servir a Dios, tiene igual recompensa que quien ayuna sin descuidos, o quien cumple todo deber religioso sin desidia”19 (PÉREZ, 2007, p. 30).
Apesar da importância que o conhecimento e o bom tratamento do cavalo
recebem na educação cavalheiresca ocidental, tal encarecimento místico do
cavalo, como pontuado por Pérez, é exclusividade árabe. Afonso X, na
Segunda Partida, Título 21, Lei 10, cria norma específica sobre a escolha e o
trato do cavalo como um dos principais misteres do cavaleiro, assinalando as
virtudes do animal a serem observadas: boa cor, coração forte, membros
proporcionados e boa linhagem (1991, p. 182-183). Em boa medida, são as
mesmas características distintivas atribuídas à montaria pelos tratados árabes
do período (PÉREZ, 2007, p. 30-36). A nobreza do cavalo e sua singularidade
entre os animais, outrossim, são topoi comuns entre as duas literaturas.
Contudo, na cultura árabe, a nobreza do cavalo é determinada diretamente por
Deus, que a escolhe para ser o senhor de todos os animais e o maior auxiliador
na glória dos fiéis. Pérez recupera a seguinte lenda árabe:
Cuando Dios quiso crear al caballo le dijo al viento del Sur: “Voy a crear a partir de ti una criatura que será la gloria de mis seguidores, la ruina de mis enemigos y el adorno de los que me obedecen.” Luego creó al caballo y dijo: “Te llamo caballo y te hago de raza árabe; a tu crin anudo el bien, y se conseguirán botines cabalgando sobre tu lomo; la honra estará contigo dondequiera que estés, y te hago señor
19 “A supervalorização deste ato religioso chega ao extremo de não ser preciso sequer a posse de um cavalo, mas apenas o querer bem ao animal já é posto como suficiente, pois, segundo a tradição, ‘Deus recompensará o homem que guarde os cavalos, mesmo que não crie nenhum. E se com ilusão sincera pensa que criará algum, Deus lhe outorgará o prêmio reservado aos mártires’. A criação do cavalo, pois, tinha o mesmo valor que qualquer outro preceito religioso: ‘Quem cria um cavalo para servir a Deus, tem a mesma recompensa de quem jejua sem descuidos, ou quem cumpre todo dever religioso sem desídia’” (tradução nossa).
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de los animales [...]; te he distinguido con la característica del rayo sobre el resto de los animales , te he concedido la querencia del corazón de tu dueño, y te he permitido que vueles sin alas; sirves para perseguir y para huir; sobre tu lomo montaré a unos hombres que me glorificarán, alabarán y aclamarán y me serán fieles” [...]. Y reuniendo todo lo que había creado se lo mostró a Adán y dijo: “¡Adán!, escoge de lo que he creado lo que quieras”; y Adán escogió al caballo. Y dijo Dios, alabado y ensalzado sea: "Has escogido tu gloria y la de tus descendientes, será eterna mientras vivan, y se reproducirán hasta el final de los siglos. A ti y a ellos os bendigo, no he querido tanto como a ti a ninguna otra de mis criaturas”20 (HAMID, apud PÉREZ, 2007, p. 26)
Já de acordo com Llull, a excelência do animal não é fruto de uma
consideração divina, mas, aparentemente, da experiência humana:
Buscou-se em todas as bestas qual era a mais bela besta e a mais veloz, e a que pudesse sustentar maior trabalho, e qual era a mais conveniente para servir ao homem; e porque o cavalo é a mais nobre besta e a mais conveniente a servir ao homem, por isso, de todas as bestas, o homem elegeu o cavalo, que foi doado ao homem que foi dos mil homens eleito. E por isso aquele homem tem o nome de cavaleiro (LLULL, 2000, p. 13).
Além do cavalo, a proximidade entre as duas culturas fez com que também as
armas fossem similares. A despeito das diferenças iniciais, em que se
contrapunham a rigidez quase impenetrável das pesadas couraças francas e a
rapidez mais frágil das leves armaduras árabes (MAALOUF, 1988, p. 28), os
muçulmanos peninsulares, de acordo com Giordani, usavam, no século XII, as
mesmas armas que os adversários cristãos (1976, p. 164). Os empréstimos
dão-se dos dois lados: a influência árabe nos modos cavalheirescos, patente
para Ghali, pode ser exemplificada pela heráldica: pouco desenvolvida pelos
francos, os brasões são adotados na Europa por imitação de árabes e persas,
devido à importância que esses povos davam à genealogia (GHALI, 1919, p.
20 “Quando Deus quis criar o cavalo disse ao vento do Sul: ‘vou criar a partir de ti uma criatura que será a glória de meus seguidores, a ruína de meus inimigos e o adorno dos que me obedecem.’ Logo criou o cavalo e disse: ‘Te chamo cavalo e te faço de raça árabe; a tua crina ligo o bem, e se conseguirão butins cavalgando sobre seu lombo; a honra estará contigo onde quer que esteja, e te faço senhor dos animais [...]; hei-te distinguido com a característica do raio sobre o resto dos animais, hei-te concedido o querer do coração de teu dono, e te hei permitido que voe sem asas; serves para perseguir e para fugir; sobre teu lombo montarão uns homens que me glorificarão, louvarão e aclamarão e me serão fiéis’ [...]. E reunindo tudo o que havia criado, mostrou-o a Adão e disse: ‘Adão!, escolhe do que criei o que queira’; e Adão escolheu o cavalo. E disse Deus, louvado e exaltado seja: ‘Escolheste tua glória e a de teus descendentes, será eterna enquanto vivam, e se reproduzirão até o fim dos séculos. A ti e a eles os bendigo, não quis tanto como a ti a nenhuma outra de minhas criaturas’ (tradução nossa).
51
58). Tais entrelaçamentos de ideias e costumes levam-nos a crer que árabes e
cristãos frequentavam-se para além de suas diferenças religiosas ou políticas.
De acordo com Tate, no início do século XII, na Síria, não se pensava no
cruzado exatamente como um inimigo, mas mais como um estrangeiro que
seria assimilado.
Entre os emires turcos ou árabes e os chefes cruzados existiam semelhanças fundadas na prática das armas e na estima entre combatentes. Travavam-se relações que persistiam, mesmo nos períodos de trevas, nutrindo uma estima recíproca que mantinha um comportamento de lealdade mútua. Emires muçulmanos e guerreiros imaginaram que um modus vivendi iria se estabelecer com os francos (TATE, 2008, p. 60-61).
Tal consideração é corroborada por Barthélemy, também resumindo a
qualidade das relações entre muçulmanos e cristãos, principalmente de suas
aristocracias, no contexto da guerra santa:
As duas Cavalarias têm mais de um valor em comum. Dos dois lados, a sociedade exige de seus machos dominantes que afrontem a morte, e a guerra santa se junta ao sentido de honra da sociedade faidal (sic) para prescrevê-lo. Nem uns nem outros se proíbem toda a estima pela Cavalaria do outro lado, e isso lhes assegura o reconhecimento como forma de pagamento. De um lado a outro há, entre esses Cavaleiros, inimizades e amizades de homem a homem. Tudo isso modera a dureza da confrontação, salva vidas nobres e deixa lugar para manobras (BARTHÉLEMY, 2010, p. 349).
Da mesma forma, a Espanha – ou o Andalus, seu nome árabe durante o
período de ocupação e governo muçulmano (HOURANI, 1995, p. 60) –
conheceu um convívio relativamente amistoso entre diversos povos coabitantes
(entre os quais os árabes propriamente ditos eram minoria, pelo menos até o
século X [HOURANI, 1995, p. 61]); convívio certamente marcado por restrições
e delimitações, mas geralmente orientado pela tolerância – haja vista a
presença dos moçárabes (GIORDANI, 1976, p. 172-173).
Desde o século VIII, entretanto, cristãos e muçulmanos mantiveram-se em
estado de alerta pela guerra latente (ROUSSET, 1980, p. 27). O século XI irá
presenciar a ruptura desse status quo quando as cidades cristãs espanholas,
aproveitando-se da fragilidade interna do império muçulmano, lançam-se em
batalhas rápidas e pontuais – e muitas vezes bem-sucedidas – contra os
52
ocupantes mouros (também chamados indiscriminadamente de sarracenos). A
esse período gradual de recrudescimento dos conflitos, que culminaria com a
expulsão dos mouros, deu-se o nome de Reconquista, um movimento que, por
seu caráter religioso, é também chamado de pré-Cruzadas, mas não sem certa
ressalva.
Digamos desde já que essa denominação é imprópria (se às vezes empregamos é por nos faltar um termo melhor e por ela ser utilizada por excelentes historiadores) e que não houve verdadeiras Cruzadas antes da expedição de 1096. Mas, como essas guerras se verificam numa época em que a noção de guerra santa se desenvolve e em que as condições políticas são favoráveis a uma ofensiva contra o Islã, elas apresentam um interesse evidente, e a sua descrição possibilita o reconhecimento de algumas causas da Cruzada (ROUSSET, 1980, p. 28).
Naturalmente, as relações entre muçulmanos e cristãos na península Ibérica
tornaram-se mais conflituosas no âmbito social, embora em vários aspectos a
política de concessões se mantivesse pelo lado cristão. Segundo Ademir Luiz
da Silva,
[os] mouros eram excluídos da vivência social, por serem estrangeiros, muitas vezes marcados com sinais de infâmia. Os convertidos jamais deixaram de ser vistos com desconfiança na cristandade. Mesmo na Península Ibérica, onde estes conversos não eram exatamente raros, dado as práticas políticas da Reconquista, onde a presença moura nas terras recuperadas poderia ser tolerada através de recursos que iam da conversão ao pagamento de impostos (2011, p. 14).
As Cruzadas terão grande responsabilidade na hostilização das relações entre
os dois mundos, e principalmente pela quantidade de aventureiros que
arrebatou a seu serviço – por motivos muito menos religiosos que materiais,
por certo (ROUSSET, 1980, p. 14). A propaganda cruzadística foi um motivo,
justificado em torno de um ideal e de um líder incontestável – o papa –, para
um projeto de colonização do Oriente e de pilhagem de uma terra maravilhosa,
berço de Jesus Cristo. Tal propaganda encheu os olhos principalmente de
cavaleiros irmãos mais novos, condenados à pobreza, e daqueles que,
engendrados pela política de remissão de pecados de Urbano II, partem para
Jerusalém em penitência por má conduta.
53
Este [ato penitencial] não consiste mais, como era o caso nas peregrinações tão frequentemente prescritas nos séculos X e XI, em ir até Jerusalém como peregrinos, como penitentes, sem armas, mas em usá-las contra o inimigo designado da cristandade: os sarracenos, os muçulmanos, assimilados aos pagãos da Antigüidade e diabolizados a sua imagem (FLORI, 2005, p. 136).
Todos levam na bagagem uma visão bastante distorcida dos muçulmanos e de
seu mundo.
Considerado esse painel histórico, social e cultural, percebe-se que, em
comparação, as diferentes origens das cavalarias muçulmana e cristã, apesar
de singularidades significativas, não se puseram como fator de impedimento ao
comércio de técnicas, modos e valores que vamos encontrar nos ordenados
cavaleiros do século XIII; no processo de desenvolvimento desses guerreiros
nobres, apresentou-se um diálogo, a partir de um denominador comum – os
valores de cavalaria –, que nem o cristianismo nem o islamismo parecem ter
querido ou conseguido cercear e eludir.
Tentou-se aqui investigar com alguma precisão histórica o cavaleiro mouro
como conhecido na península Ibérica no século XIII, assim como suas
semelhanças e diferenças em relação ao ocidental. Lance-se o foco do estudo
no espaço que o cavaleiro mouro ocupa no imaginário21 medieval cristão, ou
mais particularmente nas expectativas do cavaleiro ocidental, e descobre-se
uma figura ambígua: trata-se de um irmão de armas ou de um inimigo
religioso?
2.3 A cavalaria literária
Uma correta reconstituição da cavalaria medieval deve repousar
necessariamente sobre a literatura que o período nos lega, observado o caráter
de constitutividade desse discurso. Evitaram-se até então as referências à
produção literária da época como forma de privilegiar documentos oficiais, que
responderiam tradicionalmente por uma ciência histórica mais calcada em fatos
21 Sobre o conceito de imaginário medieval, cf. Jacques Le Goff (2008, p. 63-72).
54
objetivos; porém, mesmo os historiadores contemporâneos citados até agora
dão papel de destaque à mútua influência entre as narrativas cavalheirescas e
o dinamismo histórico da função do cavaleiro; em outras palavras, não existiria
a cavalaria como a conhecemos sem as canções de gesta, os romances e as
novelas de cavalaria.
Antes de averiguarmos esses gêneros, deve-se ressalvar que sua origem e
definição são controversas; assim, para os fins destacados neste trabalho, uma
rasa generalização rotulada narrativa cavalheiresca ganharia predileção: não
retratam todos esses textos, de forma bastante semelhante, aventuras de
cavaleiros, dizendo-nos os elementos em que seu mundo se constrói?
Entretanto, aponta cada uma para momentos diversos desse mundo medieval,
enfocando diferentes aspectos, em acordo com a recepção da época; além
disso, relacionam-se entre si numa ordem cronológica e, de certa forma,
evolutiva; a atualização de um gênero em outro indica mesmo a evolução de
um pensamento historicamente construído – em nosso caso, a cavalaria e tudo
que dela participa (MEGALE, 1992, p. 13-14). Logo, em que pesem as
influências mútuas de tais narrativas, sua constituição deve passar pelas
especificidades que apresentam.
Observada sua origem brumosa ou controversa, pode-se dizer que as canções
de gesta ganham popularidade a partir do século XI, e têm destaque por
referendarem-se em fatos históricos, suplementados por elementos lendários e
ficcionais (MOISÉS, 2004, p. 64). Tal é a natureza da Canção de Rolando
(1988), talvez a mais famosa chanson de geste, que irá narrar o episódio da
emboscada feita pelos sarracenos, favorecidos por traição, à retaguarda de
Carlos Magno em Roncesvalles: o fato ganha na canção proporções épicas;
seu herói, Rolando, sobrinho do imperador, é celebrado pelo povo francês
como modelo e mártir (VASSALO, 1988, p. 1-14). No contexto peninsular,
destaca-se o Poema de Mio Cid (1983), gesta do herói Cid Ruy Díaz que,
vítima de caluniadores e por isso exilado pelo rei Afonso VI, empreende várias
batalhas contra os mouros para reconquistar as graças de seu senhor e sua
honra – em consonância ao período histórico das invasões muçulmanas, com
efeito tema recorrente da épica castelhana medieval (TOVAR, 1983, p. 15).
55
Já os romans (por serem escritos em língua dita “romance”, ou vernácula, não
mais no latim castiço romano) surgem por volta do século XII, como narrativas
em verso de histórias de amor e de feitos de bravura, protagonizados por
cavaleiros, nobres damas e outras figuras palatinas (MOISÉS, 2004, p. 406-
407). Tais obras têm em Chrétien de Troyes mais celebrada origem; é sob a
pena deste escritor do norte da França que irão ser apresentados (ou
reapresentados) ao público cortesão Lancelote, Galvam, Ivain e Perceval, entre
outros heróis que irão constituir a futura Távola Redonda do rei Artur. Dessa
forma, quanto à temática, os romans seriam precursores das novelas de
cavalaria, como compiladas no ciclo da Post-Vulgata (TOLEDO NETO, 1999, p.
146).
Por fim, as novelas de cavalaria conviverão com as canções de gesta, das
quais, de certa forma, derivam (REIS; LOPES, 1987, p. 294; MOISÉS, 2004, p.
320), apropriando-se de temas, personagens e episódios já tornados famosos
pelos romans, os quais serão prosificados, atualizados, entrelaçados e
dispostos numa longa narrativa em prosa22. É o caso, obviamente, de A
Demanda do Santo Graal – última parte de um ciclo de narrativas conhecido
como Post-Vulgata, para o qual contribuíram as mãos de vários escritores
anônimos, e que trata dos sucessos localizados ao redor da corte do Rei Artur
(NUNES, 2005, p. 7-11).
Cabe então perguntar: quem são, pois, seus autores? A produção literária da
baixa Idade Média está vinculada inexoravelmente à Igreja, à qual se atribui no
período o status de detentora do conhecimento letrado. Comentou-se, no
capítulo anterior, sobre a tentativa da Igreja de, por meio de interdições e
cerceamentos, orientar a moral e controlar o comportamento não só dos
cavaleiros, mas de toda a sociedade. Contudo, os romances corteses,
fundamentados na fine amor e dela divulgadores, versam regularmente sobre
casais de enamorados, protagonistas do amor sensual, jovem, intensíssimo,
próprio para a produção literária cortês em verso e prosa, em que são
22 Para uma discussão sobre a genologia da novela, cf. Massaud Moisés (1977, p. 153-159).
56
justificados o adultério de Tristão e Isolda ou Lancelote e Genebra, à revelia
dos laços de lealdade que os prendem a seus senhores. Para além desse fato,
a violência grassa amiúde nessas narrativas – haja vista os vários episódios da
DSG em que, por motivos comezinhos ou mesmo sem motivo, demanda-se
justa, às vezes fatal, como no episódio “Como Galvam matou Ivam o Bastardo”
(DSG, 2005, p. 123). Não haveria, portanto, um contrassenso entre o que
predica a Igreja e o que seus monges e escribas clericais produzem? Não
inteiramente. Barthélemy lembra-nos que
[...] são clérigos da corte, cuja presteza em agradar aos jovens príncipes e suas esposas contrasta com a reprovação sermonária que bispos mais velhos, e de espírito menos secular, dirigem na mesma época às cortes. A Igreja não é homogênea e, para dizer a verdade, esses clérigos “romancistas” são muito mal conhecidos. Mesmo o mais genial e fecundo deles, Chrétien de Troyes, nos escapa; ele se esforça em apresentar contragolpes ao mito sulforoso de Tristão e Isolda, e em encaminhar seu Perceval em direção a Deus (com toda a Cavalaria arturiana, em busca do Graal) (2010, p. 501).
Vê-se, dessa forma, que tais autores comprometiam-se muito mais com o
entretenimento da corte a qual frequentavam do que propriamente com a
moralização de seus senhores por meio da literatura. Vive-se a época do amor
cortês, criado na Provença e nutrido pelas grandes proezas cavalheirescas;
não há como a literatura palaciana escapar dele (BARTHÉLEMY, 2010, p.
501). Entretanto, como foi ressaltado, há o esforço de matizar os arroubos
apaixonados de cavaleiros e damas com as tintas leves da devoção cristã e do
temor a Deus. Sobre a cristianização dos romances corteses nos ciclos
arturianos, Manuel Rodrigues Lapa afirma que
[a] remodelação de Roberto de Boron procurou pôr ordem e sentido cristão nesse acervo de lendas [...]; depois, certas correntes místicas então vigentes na Europa, (sic) ainda acentuaram mais o simbolismo religioso. Toda a obra agora se revela como um livro de propaganda da ascese cristã, uma reacção contra o mundanismo excessivo e adúltero do amor cortês (1981, p. 261).
Esse é o caso de A demanda do Santo Graal, novela de cavalaria que
tomamos como exemplum. No Medievo, esse gênero literário originalmente
curto configura-se como uma história edificante, de cunho religioso, orientado
para o comportamento cristão ótimo (LE GOFF, 1983, p. 151). Tendo
57
conhecido seu apogeu no século XIII, os exempla são narrativas cristãs
voltadas para um público cristão, mas em que figuram elementos excluídos
dessa sociedade. De acordo com Le Goff,
[...] tudo o que não é cristão nele [no exemplum] figura meramente a título de objecto, de instrumento. Mas, para além da lei imposta pelo gênero literário, encontra-se aqui a atitude fundamental da ideologia cristã medieval, que só se interessa pelos outros, pelos marginalizados e pelos excluídos, na medida em que eles possam servir para a salvação dos cristãos (1983, p. 155).
Essencialmente anticortês, a DSG irá apresentar, por meio das aventuras dos
cavaleiros da Távola Redonda de Artur em busca do graal e de seus sucessos
e fracassos, uma série de exempla (cada episódio da novela poderia ser
tomado por um exemplum) em que se percebe um sistema de conduta
bastante explícito que irá recompensar aqueles que seguem os preceitos da
Igreja, voltando-se para o aspecto místico-religioso da cavalaria e seus valores,
e a menosprezar e condenar aqueles que, mesmo cristãos, não praticam as
virtudes correspondentes (MEGALE, 1992, p. 38-69), preferindo os prazeres
mundanos (como ilustrará Lancelote) e entregando-se a um orgulho desmedido
(como o que irá epitomizar Galvam). Dessa forma, vê-se como as narrativas
produzidas à época traduzem bastante do complexo jogo político-social
protagonizado pela Igreja e a nobreza, da qual já fazem parte os cavaleiros.
Corrobora a ambiguidade (ou heterogeneidade) desse jogo a prática dos
torneios, ponto que vale trazer novamente ao estudo, por representar
importante resumo da constituição da realidade cavalheiresca. Atividade ao
mesmo tempo militar e desportiva, reúne em si e em sua evolução aspectos
políticos, ideológicos, religiosos e militares da realidade feudal ligada à classe
dos cavaleiros – ou seja, pode ser tomada como um pequeno universo das
expectativas desses indivíduos, e ao mesmo tempo constituindo o mundo
exclusivo que habita. Dessa forma, devem ser considerados o caráter lúdico
dos torneios e seu papel político e social de aproximação de guerreiros em
volta dos mesmos interesses que, simultaneamente, deslocam-se do resto da
sociedade feudal.
58
Estabelece-se, assim, sem abolição de hierarquias sociais, uma solidariedade cavalheiresca, um companheirismo guerreiro feito de todo um conjunto de usos e costumes comuns, linguagem e sinais compartilhados. Eles [os torneios] contribuem também para aumentar o caráter aristocrático, mundano, lúdico, de uma cavalaria que, assim, isola-se ainda mais do resto da sociedade que não compartilha dos mesmos valores (FLORI, 2005, p. 107).
No que diz respeito a nosso objeto de estudo, o principal legado dos torneios,
na medida em que destacam as proezas de armas – coletivas e individuais –
dos cavaleiros, é a literatura deles derivada. Já se falou neste estudo sobre
como discurso literário e realidade histórica se interpenetram; aproximando-se
de Maingueneau no que concerne ao seu posicionamento por um discurso
constitutivo do real, Flori destaca a importância das narrativas cortesãs para a
conservação de um status quo cavalheiresco e da preeminência dos valores
que o compunham.
Em seus romances, os poetas da corte lhes reservam [aos torneios] um grande espaço, os vestem com cores muito cintilantes, difundindo a ideologia da qual são portadores e ampliando ao mesmo tempo seu prestígio. Essa real simbiose entre a sociedade dos torneios e a dos poetas da corte explica ao mesmo tempo o lugar que eles ocupam na literatura e a influência profunda exercida pelos romances nos afrontamentos reais e, por isso mesmo, nos costumes e ideologia cavalheirescos (FLORI, 2005, p. 107).
Tal afirmação é também sustentada por Heitor Megale, para quem os
“cavaleiros pretendiam reeditar, na vida real, o heroísmo, a bravura, as
qualidades morais dos mais conhecidos e admirados cavaleiros das canções
de gesta e dos romances” (1992, p. 23).
A sustentação de um status social e a criação de um imaginário cavalheiresco
são, dessa forma, significativamente corroboradas pela literatura, que se
alimenta, por sua vez, desse espírito classista e cortesão. Em um universo em
que a hagiografia e os espelhos moralizantes resultavam enfadonhos, a
produção, tradução, cópia ou adaptação de canções de gesta, romances e
novelas ganha vulto (GUENÉE, 2006, p. 274). Há que se lembrar sempre,
todavia, que literatura e realidade histórica não devem ser confundidas; os
modelos criados – muitas vezes um amálgama pouco íntegro de vassalidade
germânica, amor cortês e temor a Deus – são fruto de um discurso
59
heterogêneo, em que competem, como pensamos, influências variadas; o bom
exemplo talvez não seja o único objetivo de uma narrativa cavalheiresca.
Enfim, a supor mesmo que sejam verdadeiros modelos destinados a conformar os comportamentos, os seres literários não são um todo uniforme. Isso é particularmente verdade nas canções de gesta, que colocam em cena situações e papéis permutáveis e convencionais, muito mais que personagens em sentido moderno. São obras que jogam com e trabalham sobre as tensões sociais e morais e, digamos, os desejos e tentações da sociedade Cavaleiresca (BARTHÉLEMY, 2010, p. 461).
É-se necessário, portanto, relativizar essa função da literatura, sem, todavia,
retirar-lhe a importância como documento – tão mais importante quanto registro
de uma classe antiga em sua tentativa de manter-se socialmente e
politicamente distinta e respeitada (BARTHÉLEMY, 2010, p. 499). Tal tradição
não remonta apenas a alguns séculos de moderação (para não dizer
cristianização) de costumes, mas a um passado anterior à pena dos escritores-
clérigos, presente nas lendas populares bretãs e registradas na forma de
romances cavalheirescos pelos trovadores franceses, por volta do século XIII.
O romance arturiano, na forma em que a maior parte da Europa ocidental o conheceria durante a Idade Média [...], surgiu e floresceu pela primeira vez no norte da França. A matéria tradicional era combinada com inovações, formando um conjunto narrativo específico que se chamou de matéria da Bretanha, a qual passou a ser denominação tradicional do vasto complexo de textos literários derivados da Grã-Bretanha e de raiz céltica, centrados na figura de Artur e seus cavaleiros (TOLEDO NETO, 1999, p. 137).
A essa tradição literária oral britânica, ou galesa, de raízes célticas pagãs
acentuadas, dá suficiente tratamento Angélica Varandas (2007), ao analisar a
correspondência entre nomes e temas que formam esse universo lendário
céltico – mais especificamente galês, influenciado talvez pelos contos
irlandeses – e aqueles que passeiam pelos romances continentais a partir do
século XII. Utilizando-se da percepção de Roger S. Loomis sobre a
precedência e influência das lendas irlandesas sobre a matéria de Bretanha,
Varandas comenta que
[foram] estas histórias que os conteurs bretões levaram para a França, tendo sido os principais responsáveis pela construção e divulgação do romance arturiano nesse país. Estes conteurs eram
60
também eles celtas, uma vez que descendiam dos celtas que, com a invasão anglo-saxônica do século V (449), tinham fugido da Britânia para a Armórica [...]. O contato com os habitantes da Armórica tornou-os bilíngües e assim espalharam a denominada Matéria da Bretanha pelo continente. Em França, alguns dos deuses celtas transformaram-se em heróis famosos, como Lug Sámildanach, que passou a ser conhecido como Lancelote Du Lac (2007, p. 29).
Erich Auerbach aponta a mesma origem, considerando inclusive a “atmosfera
feérica” do romance cortês como um dos elementos limitadores da apreensão
do real23 por meio desse tipo de narrativa (2011, p. 116). Enfim, observando a
plausibilidade de a alienação experimentada pela classe dos cavaleiros ter ela
mesma origem alienígena (as lendas bretãs), tomamos como patente tal
correspondência. Basta que ressaltemos não se tratar tais narrativas francesas
de traduções daquelas lendas em romance, mas de empréstimos de um corpo
temático que ganhou público e dimensão vastos no continente – principalmente
ao encontrar a mitologia cristã (LAPA, 1981, p. 260-261; MIRANDA, 1996, p.
87-88). Tal encontro cria uma ambiguidade bastante peculiar: o exemplum, que
na prosa se consolida (ZINK, 2006, p. 85) e predica os valores cristãos, o faz,
em termos de matéria narrativa, em um ambiente contaminado pelo paganismo
céltico, como observado anteriormente.
Opera-se dessa maneira o que podemos chamar de “cristianização” de uma
matéria literária, sem que sejam totalmente esquecidos os motivos célticos e
germânicos da lenda oral. Sua primeira manifestação irá se dar, fiando-nos em
Jean Flori, no Perceval ou o Romance do Graal, de Chrétien de Troyes. É
nessa obra que a Ordem de Cavalaria é considerada enquanto instituição
sagrada, que deve ser feita sem vilania; nas palavras de Gornemant de Gort,
homem probo que investe Perceval cavaleiro, “a ordem mais alta que Deus
criou no mundo” (TROYES, 2002, p. 46). Gornemant lhe diz também seus
deveres: às práticas habituais cristãs de assistir à missa e orar regularmente –
que de fato competem a toda a cristandade – somam-se, como
desdobramentos, a proteção de homens ou mulheres que necessitem de
auxílio e a misericórdia ao cavaleiro vencido que lha peça. Tais incumbências
são, no mais, aquelas referidas por Llull, por Afonso X e pela própria Igreja, e
23 Compreendido aqui com o sentido de verdade histórica, como colocada por Auerbach (2011, p, 105).
61
que também pontuam a defesa desta – ponto curiosamente ausente na obra de
Chrétien (FLORI, 2005, p. 168). Por fim, o universo de símbolos mistos que é
pano de fundo das narrativas cavalheirescas dá mais um passo no processo de
cristianização com Robert de Borom e as obras a ele atribuídas.
A colocação em prosa das obras de Robert de Boron [...] mistura mais ainda os traços resultantes da mitologia e das tradições célticas aos de um Cristianismo muito marcado pelo sacramentalismo, e até pela magia. [...] Essa cristianização atinge seu apogeu na Queste del Saint Graal (por volta de 1225) em que o Graal torna-se relíquia da Paixão e símbolo do Espírito Santo (FLORI, 2005, p. 170).
Por maior que seja o objetivo moralizante dentro de uma perspectiva cristã, o
misticismo das lendas celtas ainda tem lugar nesse novo universo mitológico
da novela de cavalaria, cuja cristianização aparece por vezes como pátina fina.
Sobrepondo tal imaginário aos ideais de honra, valor e lealdade já matizados
pelo exemplo cortês, tal é a constituição moral do herói24 que encontraremos
nas narrativas de cavalaria do século XIII, quando da redação da DSG: feroz
em combate, o cavaleiro está sempre pronto para o enfrentamento por outro
cavaleiro, principalmente por vingança ou por revide de algum ato tomado por
injurioso a si ou a sua linhagem, a demonstrar sua origem germânica; ao
mesmo tempo, ele é guiado (ou confundido) por visões místicas, tangido pelo
dogma cristão e julgado por sua santidade ou secularidade.
Fez-se aqui um breve levantamento do estado das cavalarias ocidental e
oriental historicamente dadas quando da moda das canções de gesta,
romances e novelas de cavalaria; e em acordo com o princípio de
constitutividade do texto literário, procurou-se mostrar como tais textos
participavam de um ideal de cavalaria que, mesmo segregado de uma
realidade pragmática de relações sociais, compunha o imaginário da baixa
Idade Média, desenhando a identidade europeia e a alteridade islâmica.
Como já aludido à introdução deste trabalho, entretanto, poderemos observar
que não há uma visão homogênea sobre esse “outro”, feito tão próximo pelos
séculos de comércio e guerras e ao mesmo tempo tão distante, pelos mesmos 24 Para um estudo sobre a constituição do herói medieval e sua herança clássica, cf. Ernst Robert Curtius (1957, p. 223-233).
62
motivos. O mouro que surge nas narrativas cavalheirescas europeias, tecidas
por clérigos, é marcado pelo signo da ignorância (ou da deturpação
categórica?) dos costumes de um Oriente que se pretende enquadrar ao
mesmo tempo como maligno – visão que ganhará força no cenário das
Cruzadas – e exótico, sendo o segundo predicado, por aberto à curiosidade
criativa, bastante mais interessante. Tratemos agora, portanto, deste
controverso mouro literário.
63
3 O CAVALEIRO
Os capítulos anteriores procuraram reconstituir tanto a cavalaria quanto o
contexto de produção da literatura cavalheiresca à época da redação de A
demanda do Santo Graal. Tais informações foram assim necessárias e
dispostas para a concorrência deste último e principal capítulo, em que se irá
buscar uma análise de Palamedes, enquanto personagem literário, e seu cotejo
com o mouro histórico. Para isso, os estudos de Lênia Márcia Mongelli (1995) e
Heitor Megale (1992), pela análise exploratória sobre, respectivamente, as
motivações da busca pelo Santo Graal (e das buscas individuais) e as
estruturas intrincadas que mantêm o mundo arturiano de pé, irão contribuir
sobejamente, por basilares à compreensão da narrativa como um todo dotado
de integridade.
Como já grifado por Rousset (1980, p. 17), as cruzadas tiveram a cumplicidade
de toda uma literatura medieval; o temor e o ódio nutridos pelo muçulmano
foram corroborados pela literatura produzida à época. Essa interpenetração,
como já vimos, baseando-nos em Maingueneau, torna mais rica a atividade de
investigação de um determinado personagem ou momento histórico, por
indissociáveis da forma com que são enunciados e ganham seu lugar na
memória social do medievo. Vejamos, então, como o cavaleiro muçulmano foi
tratado pela literatura ocidental.
3.1 O cavaleiro mouro na literatura
A literatura produzida na península Ibérica durante o baixo Medievo refletiu, em
suas diversas manifestações, muito da estratificação feudal (MEGALE, 1992, p.
13). Apesar das diferenças, o cristianismo foi responsável por um senso de
unidade e identidade muito claro, compartilhado pelos diferentes segmentos
sociais e mantido pela Igreja, principalmente durante os séculos de ocupação
moura e de guerra contra o Islã (LIU, 2004, p. 89). Nesse período, os mouros
ganharam o estatuto de anátema da cristandade, a raça e a religião árabes
64
sendo alvo de uma propaganda denegridora que irá servir-se muita vez do
grotesco e do cômico para um objetivo satírico (MADERO, 1992, p. 118). O
mouro havia de ser encarado com temor. A fronteira ideológica entre Ocidente
cristão e Oriente islâmico foi responsável pela construção, no imaginário
popular ocidental, de uma criatura assombrosa: o mouro deveria ser diferente,
e essa diferença seria necessariamente aviltante.
No terreno da moral, de acordo com Marta Madero, sodomia e luxúria teriam
sido as características que mais marcaram a figura do mouro na península
Ibérica medieval. Soma-se a isso a feiúra, relativa aos homens, pela cor da
pele e o hirsuto das barbas (MADERO, 1992, p. 122). Alusões a traços
animalescos e a outras corrupções físicas e caracterológicas dos mouros
pontuavam recorrentemente aqueles textos – reflexo de uma literatura e de um
modo de representação social orientados pelo dogma cristão.
[...] el desprecio [...] permite ver que la raza y la religión son categorías que ofrecen formas esenciales de la alteridad que estructuran las relaciones de poder y la noción de valor. [...] Los moros e judíos padecen de una identidad primera que la conversión no logra borrar25 (MADERO, 1992, p. 117-118).
Deve-se localizar essa representação, todavia: enquanto a atualização do
pensamento aristotélico parecia dar bases sólidas para a perseguição de
mouros, a atmosfera das cruzadas tornava a conversão possível.
[...] a partir del siglo XIII, judíos e moros van a compartir la acusación de ‘monstruosidad’ elaborada a partir de una concepción aristotélica [...] que permite a la teología moral establecer una definición de normalidad ‘natural’ que justifica las persecuciones. Pero paralelamente a este crecimiento de la intolerancia [...], el siglo XIII es también el del sueño de la conversión, que implicaba que los infieles eran considerados, en definitiva, lo suficientemente buenos como para ser convertidos26 (MADERO, 1992, p. 118).
25 “[...] o desprezo [...] permite ver que a raça e a religião são categorias que oferecem formas essenciais da alteridade que estruturam as relações de poder e a noção de valor. [...] Os mouros e judeus padecem de uma identidade primeira que a conversão não consegue apagar” (tradução nossa). 26 “À partir do século XIII, judeus e mouros vão compartilhar a acusação de ‘mostruosidade’ elaborada a partir de uma concepção aristotélica [...] que permite à teologia moral estabelecer uma definição de normalidade ‘natural’ que justifica as perseguições. Mas paralelamente a este crescimento da intolerância [...], o século XIII é também o do sonho da conversão, que implicava que os infiéis eram considerados, definitivamente, bons o suficiente para serem convertidos” (tradução nossa).
65
Nesse sentido, as cantigas são particularmente conhecidas pelo vezo da
descrição satírica ou injuriosa do mouro. Benjamim Liu (2004) aponta, por
exemplo, como serão dadas aos mouros as características de lascívia e
sodomia nas cantigas de escárnio e maldizer, dois dos principais gêneros
satíricos medievais. A título de exemplo, veja-se a seguinte estrofe, de Estêvão
da Guarda, em que se aponta a prática sodomita entre o satirizado e um seu
criado mouro:
Alvar Rodriguiz dá preço d'esforço a est'infante mouro pastorinho e diz que, pero parece menin[h]o, que parar-se quer a tod'alvoroço; e maestr'Ali, que vejas prazer, d'Alvar Rodriguiz punha de saber se fode já este mouro tam moço [...] (2013).
Neste outro excerto, de autoria de Afonso X, utiliza-se a imagem do combate
entre um mouro e uma soldadeira para o equívoco de cunho sexual:
Domingas Eanes houve sa baralha com um genet', e foi mal ferida; empero foi ela i tam ardida que houve depois a vencer, sem falha, e, de pram, venceu bõo cavaleiro; mais empero era-x'el tam braceiro que houv'end'ela de ficar colpada. O colbe [a] colheu per ũa malha da loriga, que era desvencida; e pesa-m'ende, porque essa ida, de prez que houve mais, se Deus me valha, venceu ela; mais [pel]o cavaleiro, per sas armas e per com'er'arteiro, já sempr'end'ela seerá sinalada [...] (2013).
As cantigas de Santa Maria, de Afonso X, por sua vez, irão também tipificar o
mouro como descrente e falso, traços que coadunam como a natureza não
cômica do gênero; são também feios, negros e barbudos (MADERO, 1992, p.
120). Vejamos dois excertos de cantigas de Santa Maria em que o personagem
mouro, vilão, é adjetivado. No primeiro, a cor negra é destacada como
demoníaca:
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[...] E leixárona dizendo: «Veremo-lo que farás.» Entonç' os conbatedores tornaron todos atras; e tres mouros que entraran, chus negros que Satanas, no castelo, os de dentro os fezeron en caer Poder á Santa Maria grande d' os seus acorrer [...]. (ALFONSO X, cantiga CLXXXV, itálico nosso).
Nesta outra, defeitos morais somam-se aos físicos:
[...] O om' entendudo foi e de bon sen e apercebudo de guardar mui ben o mouro barvudo, falss' e descreudo; e come sisudo o mandou meter en logar sabudo d' aljub' ascondudo, e dentr' estendudo o fezo jazer [...]. (ALFONSO X, cantiga CXCII, itálico nosso).
Lidar com a figura do mouro na península ibérica do século XIII, quando da
redação da tradução da DSG, é um exercício de crítica de uma alteridade que,
como veremos, pode servir a propósitos diversos. O mouro é antes de tudo
ambivalente. Caliendo (2009), ao analisar determinada descrição monstruosa
de um mouro guardador de touros em Le Chevalier au Lion, de Chrétien de
Troyes (1994), tece algumas considerações sobre a imprecisão que
fundamenta o retrato dessa figura na literatura medieval.
[...] mais que pôr sob os olhos do leitor/ouvinte o objeto (como afirmam os antigos), a descrição produz uma imagem. No entanto, não se trata da imagem do objeto, mas sim de uma certa imagem. Portanto, a descrição não reproduz; ela cria, não no sentido romântico de “criação”, já que estamos falando de descrições tópicas, realizadas no contexto da Retórica. Mas a descrição constitui um conjunto de motivações imagéticas a partir das quais cada receptor pode construir sua própria imagem (CALIENDO, 2009, p. 732).
Deriva daí uma ambiguidade que serviria mais para despertar a curiosidade de
um público leitor que para formar uma imagem nítida do mouro, o que
contribuiria, como artifício discursivo, para a confirmação do caráter
maravilhoso27 do personagem e, por conseguinte, da narrativa.
27 Para uma correta acepção do termo no imaginário medieval, conferir os estudos de Jacques Le Goff (2006, p. 105) e de Lênia Márcia Mongelli (1995, p. 30).
67
Como dito, a Igreja – ou a ideologia cristã – é o elemento primordial dessa
veiculação deturpada do mouro. É a religião que primeiro embaça a
observação do Oriente, raiz de uma guerra santa que, em seu ideal
cruzadístico, corresponde à Djihad proclamada por Maomé. Nesse ponto, a
correspondência entre os valores árabe e cristão parece refletir um estado
psicológico desses povos à época das cruzadas. Para Rousset,
[é] importante constatar que a noção de guerra santa se desenvolve ao mesmo tempo que a noção do djihad entre os muçulmanos [...]. Procurou-se saber se o djihad havia influído na atitude dos guerreiros cristãos, dando a esta um caráter duro e fanático [...]. É provável que djihad e guerra santa sejam ambas expressões de um mesmo estado de sensibilidade, de uma mesma mentalidade que se nega a fazer distinção entre o profano e o sagrado, a separar o temporal e o espiritual (1980, p. 25).
Viu-se também que as relações entre cristãos e muçulmanos no período
medieval não foram apenas marcadas pela hostilidade; ao mesmo tempo
inimigos e vizinhos, a fronteira aludida foi constante e variamente transposta.
Essa incerteza no trato e na percepção do mouro foi também refletida pela
literatura da época. Apesar de fazer parte de uma tradição genológica diversa,
a Canção de Rolando, canção de gesta das mais significativas no período
medieval, é fonte documental profícua – por derivar, mesmo que minimamente,
de um registro histórico – para a investigação do imaginário cavalheiresco.
Pode ser observada uma certa modalização do caráter do cavaleiro mouro (ou
sarraceno) que, mesmo errando por sua fé e recebendo epítomes injuriosos,
mantém qualidades cavalheirescas – o que produz descrições como a
seguinte:
Adiante cavalga um Sarraceno, Abime. Na sua companhia não já ninguém mais velhaco do que ele. Leva a marca do mal e das grandes traições. Não crê em Deus, filho da Virgem Maria. É negro como piche derretido. A traição e o assassinato o atraem mais do que todo o ouro da Galícia. Jamais alguém o viu brincar ou rir; é valente e muito destemido. Por isso é simpático ao infiel rei Marsílio (CANÇÃO, 1988, p. 55-56).
Tal constatação, que tomamos como fruto da mesma ambiguidade que
acompanha o olhar ocidental sobre o oriente islâmico, faz com que os dois
68
mundos se aproximem, a partilhar valores comuns. Em sua introdução à versão
brasileira da Canção de Rolando, Ligia Vassalo comenta que
[a] religião serve apenas de ponto de partida. Pagãos e cristãos lutam por prestígio, poder, terras, riquezas, bens materiais, saques, acobertados ideologicamente sob a antinomia Bem/Mal. Seus valores são os mesmos, porém invertidos. Por isso, os francos são fiéis, valentes, seguidores da lei de Cristo, belos, bons e detêm a certeza de suas posições, ao passo que os árabes são infiéis, covardes, heréticos, feios, maus e detentores do erro (1988, p. 12).
Nesse texto épico, a função narrativa dos sarracenos sugere certo
comedimento: como dito, apesar de taxados como infiéis, são combatentes
valorosos. Paralelamente, no Poema de Mio Cid, gesta emblemática para o
imaginário peninsular medieval, a visão sobre o mouro é quase neutra: nas
batalhas empreendidas pela reconquista das terras espanholas, não só o herói
apresenta-se magnânimo em relação aos mouros vencidos (a quem poupa e
garante bens, diplomático), mas o próprio poeta não os rebaixa: são mesmo
adjetivados de “firmes” (1983, p. 76). Assim, se a Canção de Rolando trata o
mouro ambiguamente, o Poema de Mio Cid simplesmente não o caracteriza,
talvez por uma visão marcada pela cumplicidade cultural. De acordo com José
Jesús de Bustos Tovar, esta generosidade
[...] no es sólo una prueba de liberalidad, sino también de prudencia. El Cid sabe que durante muchos años ha de vivir entre enemigos y no le parece aconsejable adquirir tal fama de sanguinario que haga imposible la convivencia. Por eso, sólo ante situaciones extremas da pruebas de energía; esto lo hace ser temido, pero también respetado28 (1983, p. 68).
A discussão deste trabalho sobre as semelhanças entre a cavalaria ocidental e
oriental vem sustentar-nos nesse ponto: em se tratando de cavaleiros, espera-
se um comportamento semelhante mesmo do inimigo, por nele se reconhecer,
intimamente, o reverso de uma moeda. Como pontua Barthélemy,
[...] um exame atento das canções de gesta revela que elas não veiculam nenhum ódio visceral em relação aos sarracenos muçulmanos, enquanto tais. Não é raro ler versos que fazem eco ao
28 “[...] não é só uma prova de liberalidade, mas também de prudência. El Cid sabe que durante muitos anos há de viver entre inimigos e não lhe parece aconselhável adquirir tal fama de sanguinário que faça impossível a convivência. Por isso, apenas ante situações extremas dá provas de energia; isto o faz ser temido, mas também respeitado” (tradução nossa).
69
elogio da Cavalaria dos turcos pelo cronista anônimo, normando, da primeira cruzada. O problema parece ser menos o ódio ao outro do que a negação de sua alteridade, situações que não comportam as mesmas implicações morais e sociais (2010, p. 463).
Para uma visão preliminar, procedeu-se até agora com um conceito por demais
genérico de “literatura medieval”. É necessário, entretanto, que se observe
como os diferentes gêneros narrativos medievais tratam o mouro. Como visto
na introdução deste trabalho, Auerbach, diferenciando as canções de gesta dos
romances pelo sentido histórico e político que carregam, pressupõe também
visões diversas sobre os personagens que as constituem. Apesar de nossa
ressalva, utilizamos no mesmo sentido a caracterização desses gêneros como
feita por Barthélemy.
As canções de gesta se enraízam todas no reino franco, e estão submetidas às leis de linhagem e feudal; seu gênio é se apoiar sobre elas. Os “romances”, ao contrário, situam-se em outro lugar no tempo e no espaço, em lugares de vida festiva que nem hostes sarracenas, nem ódios de famílias, nem reis espoliadores ameaçam; lugares onde, ao contrário, tudo é agenciado para permitir aos Cavaleiros, às individualidades marcantes desenharem sua trajetória, dando a suas amigas e a seus irmãos de armas provas de sua ligação – e deles recebendo o mesmo (2010, p. 500).
Uma vez que a novela de cavalaria apresenta-se como um gênero derivado do
romance, tal afirmação poderia ser relativizada. A festa de Pentecostes, que
abre a DSG, é considerada como uma reunião festiva, e a novela apresenta
mais de uma vez a recepção calorosa que cabe aos cavaleiros errantes em
qualquer castelo (exemplificada nos episódios do castelo de rei Brutus e no de
Esclabor); entretanto, como bem explorou Heitor Megale, os “anteparos” que
sustentam a corte de Artur – e todo o mundo aventuroso que alegoriza –
englobam também os conflitos de linhagem, notadamente a de rei Ban e a de
rei Artur; mesmo romances como o de Tristam são marcadamente fruto de
conflitos vassálicos (político-social ou amoroso), o que indica historicidade. Não
se pode relevar, na outra mão, o processo de cristianização que envolveu a
transformação dos romances em novelas, nas quais foi imbricada uma
ideologia diversa da original, contrária à cortesia amorosa.
70
Apesar disso, o sentido principal das palavras de Barthélemy permanece: a
jornada do cavaleiro é individual; não pertencendo a um cotidiano mundano,
seus conflitos não são historicamente dados, mas arranjados precisamente
para que, de forma extraordinária, se coloque à prova. Dessa maneira – e
apenas dessa maneira – ganha fama e respeito de seus pares e de sua dama.
E o “par” a que se alude aqui não é o cristão, mas o cavaleiro. Desde o ano
1000, o que importa efetivamente para a narrativa cavalheiresca é a cavalaria,
e tal elemento irá diluir, aqui e ali, as diferenças entre cristãos e muçulmanos.
[...] essa sociedade cristã penetrada de valores guerreiros não nota muito bem essas diferenças. Ela entreviu às vezes no normando do ano 900, ela entrevê incidentalmente nos mouros do ano 1000, homens tão parecidos com sua elite, com sua religião, que ela se serve deles como pretexto e como suporte às suas projeções. [...] essa Aquitânia do ano 1000 ignora tudo do islã como religião, e atribui aos sarracenos, tomando-os por “pagãos”, todos os tipos de “superstições” convencionais (BARTHÉLEMY, 2010, p.185).
Importante ressalvar, porém, que se aludiu aqui a uma literatura que compõe o
mouro como vilão ou inimigo. Seria de se esperar que, dentro de uma
propaganda cristã ainda mais sólida, a dos exempla novelísticos, o mouro
fosse ainda mais demeritoriamente tratado. Curioso notar o contrário: o mouro
realizado pela DSG, filho de um cavaleiro converso, é exemplo de cavalaria
cortês, a desfiar um sem número de feitos de bravura frente à admiração dos
da corte arturiana cristã.
Como veremos, as características que acompanham comumente o pagão no
Medievo – a feiúra grotesca, seu caráter faltoso ou corrupto – não cabem neste
cavaleiro, personagem-depósito de virtudes. O objetivo de sua jornada,
entretanto, tomado mesmo por exceção, não é desvinculado daquela
propaganda negativa cristã.
3.2 Palamedes
Utilizando-nos do índice onomástico de Irene Freire Nunes (2005, p. 537),
Palamedes – e seus nomes relativos: Paramedes, Palamades e Paramades,
71
seguidos ou não de epíteto – figura na DSG 72 vezes; um número bastante
expressivo, em comparação a outros personagens importantes (Persival, por
exemplo, figura 103 vezes) e em relação às 494 páginas do texto na edição de
Nunes (representando cerca de 15%). Mesmo não sendo um dos integrantes
da Mesa Redonda de Artur, de onde saíram 150 de seus comensais, após o
Pentecostes, para demandar o Graal, o sarraceno atraiu bastante o interesse
dos redatores da novela, principalmente em se tratando de um personagem
estrangeiro à primeira versão da novela (ou seja, ao ciclo da Vulgata). De
acordo com Ademir Luiz da Silva, “é possível que A Demanda do Santo Graal
seja o primeiro dos textos medievais europeus a conceder um lugar de
destaque para um herói pagão” (2011, p. 26).
A origem do personagem Palamedes na matéria de Bretanha confunde-se com
a própria genealogia dos romances que irão, posteriormente, ser prosificados e
amalgamados nos ciclos da Vulgata e da Post-Vulgata, da qual a DSG constitui
o terceiro e último volume – já funcionando como exemplum evangelizador. A
seguir os estudos filológicos minuciosos de Ana Sofia Laranjinha – em que se
defende que a refundição de textos na Post-Vulgata
foi também ideológica: profundamente hostil à cavalaria cortês e marcado por uma espiritualidade ascética, o redactor da Queste Vulgata afastou-se do que fora o espírito do primeiro ciclo arturiano, bem visível, apesar das interpolações, na Demanda portuguesa, e transformou um romance sobre a missão da cavalaria numa obra alegórica sobre a redenção da Humanidade (2005, p. 16) –,
podemos considerar a edição desses ciclos como coetânea à da publicação do
Tristan en prose, remontagem em prosa da pletora de textos concernentes à
matéria tristaniana contaminada por vários elementos dos textos arturianos. Tal
correlação, apontada no próprio texto da DSG quando da alusão à “grande
estória de dom Tristam” (2005, p. 27) – assim como a um suposto “Conto do
Brado” (p. 45), característica dos textos componentes da Post-Vulgata
(NUNES, 1999, p. 90), ao “livro do latim” ou à “verdadeira história” (DSG, 2005,
p. 62), é também tomada com certeza por Heitor Megale (1992, p. 73).
Levando em conta, pois, o entrelaçamento temático que regeu o
desenvolvimento dessas duas narrativas (o Tristan en prose e a Demanda do
72
Santo Graal), o “nascimento” de Palamedes é de incerta datação. Estima-se,
contudo, em acordo também com Baumgartner (2006), que é uma criação do
prosificador do Tristan; cronologicamente, portanto, Palamedes29 não existia
nem no romance primeiro desse personagem nem na Vulgata.
O estudo de Baumgartner (2006) indica que, no Tristan en prose, Palamedes é
um nobre cavaleiro sarraceno que integra a corte do rei Mars, da Cornualha, tio
de Tristam30. Apaixonado por Iseu, rivaliza com esse cavaleiro pelo amor da
donzela, por quem é sempre honrado, mas preterido. A coita de amor sofrida
pelo cavaleiro pagão ganha contornos bastante expressivos no romance: afinal,
Palamedes é tido como um dos cavaleiros de maior valor e cortesia: por que
seus esforços não seriam recompensados? (BAUMGARTNER, 2006, p. 336).
Lembremos: o Tristan en prose é um texto de cunho bastante mundano,
derivado de um romance cujos personagens não se esquivam do sentimento
amoroso; aqui não há lugar claro, como topos, para o exemplum religioso ou
para a estigmatização de um personagem por sua religião – o que cria certas
disparidades bastante nítidas quando tais personagens – Tristam, Iseu,
Palamedes – entram no ciclo do Graal, em que predominam o misticismo e
uma visão degenerada do mundo.
The effect created by modifying the text of the Vulgate Queste in order to interlace it with the Tristan, and then combining this material carefully with episodes from the Post-Vulgate Queste, was not simply to amplify and expand the narrative. […] This example of compilation has two consequences: it incorporates texts which are alien to the Tristan material and offers the reader an approach which contradicts that of the Queste, contrasting in pointed fashion the mystical and somewhat degraded world of the Grail Quest with the deliberately worldly ethos of the Tristan […]. It is thus an effective way of introducing disparities and dissonance into the narrative […]31 (BAUMGARTNER, 2006, p. 331).
29 Na tradição grega, Palamedes é um dos heróis da guerra de Tróia, renomado por sua sabedoria. A ele são creditadas várias invenções, tais como o jogo de dados, um precursor do jogo de xadrez, vários pesos e medidas e parte do alfabeto grego. Quando Odisseu pretende insanidade para não tomar parte na guerra, é Palamedes quem lhe desmascara o artifício. O rei de Ítaca nunca o perdoa, e forja uma carta em que Palamedes parece traidor, e pela qual este é injustamente morto (HARD, 2004, p. 459-460). Isso leva Trckova-Flamee a afirmá-lo como herói trágico, por ter sido vítima de um erro da justiça (1997). Discutiremos a tragicidade de Palamedes na DSG mais adiante. Note-se aqui que, apesar da especificidade do nome, não se verificou em nossos estudos qualquer ligação entre o personagem grego e o arturiano. 30 Os nomes aqui transcritos obedecem, como se percebe, à grafia da DSG. 31 “O efeito criado, modificando-se o texto da Queste Vulgata para entrelaçá-lo com o Tristan, e então combinar esse material cuidadosamente com episódios da Queste Post-Vulgata, não foi
73
O Tristan en prose e a DSG, portanto, na medida em que se apoiam em dois
prismas díspares, oferecem uma percepção de mundo caleidoscópica, em que
ganha relevo o atrito entre os valores mundanos cavalheirescos, baseados no
amor cortês e no combate, e a prédica cristã, a exortar os cavaleiros ao
esquecimento desses valores.
Dessa forma, se Palamedes constitui uma interrogação sobre a validade do
jogo do amor cortês no romance em que primeiro surge, na DSG irá, ao que
nos parece, desempenhar um papel bastante mais definido, dentro de um
esquema de redenção pelos valores morais. Para isso corrobora sua condição
de sarraceno, o que na novela, naturalmente, ganha destaque – e uma
finalidade moralizante, de acordo com nossa argumentação.
No entanto, surge novamente a pergunta: tais valores morais são cristãos ou
cavalheirescos? Mesmo com um papel relativamente claro (como podemos
avaliar pelo estudo de Mongelli), Palamedes carrega a bandeira da
ambivalência, desde sua origem até sua apoteose, quando por fim vê o Graal.
Assim, passaremos em revista a jornada do cavaleiro mouro na DSG,
destacando os principais episódios em que figura para, enfim, concluirmos
nossa reconstituição de Palamedes enquanto cavaleiro mouro.
3.3 Palamedes na DSG
Desde o início, Palamedes está ligado à caça da Besta Ladrador. Como
observaremos, encontrar a besta é também um encontro consigo mesmo.
Trata-se de uma aberração sem forma descrita, chamada apenas de
“desassemelhada”. Nascida da união da filha do rei Hipomenes, uma donzela
nigromante, com o demônio personificado, a Besta Ladrador traz em si o
simplesmente amplificar e expandir a narrativa. [...] Esse exemplo de compilação teve duas consequências: ele incorpora textos alheios ao material do Tristan e oferece ao leitor uma abordagem que contradiz aquela da Queste, contrastando de maneira pontual o místico e o mundo algo degradado da Demanda do Graal com o ethos deliberadamente mundano do Tristan [...]. É assim uma forma efetiva de introduzir disparidades e dissonância na narrativa [...]” (tradução nossa).
74
alarido de uma matilha – marca do pecado da mãe, que fez com que o irmão, a
quem amou debalde, fosse comido por cães. O monstro, na DSG, é
considerado uma das maravilhas do reino de Logres, como a Fonte de
Guariçon e a Dona da Capela, como o divisa a Galaaz, Persival e Boorz o rei
ermitão Peleam (DSG, 2005, p. 448-454).
A primeira aparição do mouro – ainda sem nome – se dá quando Ivam, o
Bastardo, decide ir atrás do monstro para descobrir de onde vêm os ladridos
que emite. Seguindo seu rastro, encontra-se com um cavaleiro “armado de
todas as armas e sobre bõõ cavalo”, trazendo consigo trinta cães. Tal
descrição, por breve que seja, já demonstra tratar-se não apenas de um
cavaleiro, mas de um caçador: essa primeira impressão mostra, antes de que
qualquer palavra seja trocada, a demanda de Palamedes. O uso dos cães e o
alarido que produzem também o aproximam da besta, ela mesma fonte de
latidos: um signo compartilhado, que os une inexoravelmente. Os outros
elementos que compõem a figura do cavaleiro são desenvolvidos ainda nesse
episódio, sem que se conheça ainda seu nome ou sua história: trata-se de um
cavaleiro de grande experiência (“[...] eu, que som o mais nomeado cavaleiro
desta terra [...]” [DSG, 2005, p. 85]) e outorga-se o direito inalienável de
perseguir a besta, sua demanda particular. A insistência de Ivam é tomada por
“folia”, pois pretende começar uma aventura que não lhe pertence, mas a
outrem. Assim, após derrubar o cavaleiro da Távola Redonda, ferindo-o
gravemente, deixa o campo de batalha com as seguintes palavras:
– Senhor cavaleiro, agora me leixaredes minha caça; al de meos este mês nom poderedes ir buscá-la. Assi Deus me valha, se vergonha nom fosse talhar-vos-ia a cabeça porque fostes começar cousa que nom era pera vós (DSG, 2005, p. 86).
Logo em sequência derruba Gilfret, outro cavaleiro de Artur, que não quis
esquivar-se da caça à besta. Desta feita, há maior generosidade do narrador,
pois diz ser o cavaleiro “grande e arrizado e ensinado feramente de gram
bondade de armas” (DSG, 2005, p. 86) – o qual cortesmente encomenda o
ferido a cuidar do amigo Ivam.
75
Imagem lacônica, mas forte: há, além da besta, um “cavaleiro da Besta
Ladrador”, munido de boas armas, força, senso de justiça e cortesia. Persegue
o monstro há tempo, mas é desconhecido dos demandantes (apesar de, como
diz Palamedes em seguida [p. 100], já haver estado várias vezes na corte de
Artur, aludindo ao ciclo tristaniano), o que confere certa suspensão curiosa ao
personagem. Aos poucos, aqueles serão os atributos pelos quais tal cavaleiro
será conhecido. Mas não nos adiantemos: confiemos à pena do narrador a
aventura de Palamedes, cujo próximo encontro envolve dois dos principais
cavaleiros da DSG: Galaaz e Boorz.
Ao perseguirem por sua vez a besta, esses dois companheiros de armas são
secundados por “ũũ cavaleiro armado de ũas armas negras, aquel que
derribara Ivam o Bastardo e Glifet” (DSG, 2005, p. 99), sobre o mesmo cavalo
e trazendo os mesmos trinta cães. Apesar de Palamedes já ser nomeado no
título do capítulo, ainda mantém-se desconhecido para Galaaz e Boorz, de
quem recusa companhia para a perseguição do monstro, e a quem deixa
patente mais uma vez o desafio das armas. Desta vez não há confronto. A
suspensão, todavia, é logo desfeita, pois os cavaleiros de Artur logo encontram
Esclabor o Nom Conhecido32, pai de Palamedes, que irá contar-lhes sua
história, sua desgraça e o porquê de seu filho perseguir a Besta (como já
resumido na introdução deste trabalho).
Dê-se nota aqui ao apreço com que Esclabor e seus filhos sempre foram
recebidos e louvados pela corte de Artur, mesmo sendo reconhecidamente
pagãos: uma familiaridade que transcende o determinismo religioso e opera
nos termos simples da bravura em combate, da lealdade, do valor
cavalheiresco. É interessante perceber, em episódios como o de Esclabor,
como a relação entre o pagão e o cristão na novela indica ambiguidade: o
texto, ao mesmo tempo que reconhece o valor do cavaleiro, matiza-o por não
acomodar-se ao dogma do exemplum, como se isso constituísse uma
preocupação dos possíveis redatores. Tal ambiguidade pode ser tomada como
um indício da evolução (ou cristianização) da matéria arturiana e da
32 O epíteto é conferido por Artur, que se espanta por não saber seu cavaleiro pagão, quando este pede a mão da filha do gigante morto (ela também pagã) (DSG, 2005, p. 101-102).
76
constituição do ciclo da Post-Vulgata em contato direto com o Tristan, apontada
anteriormente.
Enquanto Palamedes persegue a besta, é perseguido por sua vez pelos
cavaleiros de Artur que lhe cruzem o caminho. É fácil encontrá-lo: traz as
armas negras de costume e um leão vermelho no escudo, signos bastante
representativos na heráldica. De acordo com Vanessa A. Schimid,
[o] valor pejorativo da cor negra que figura o escudo do cavaleiro pagão pode facilmente ser atribuído a sua personalidade nos primeiros momentos em que aparece na narrativa, sobretudo, ao se considerar o teor moralizante da novela, pois o cavaleiro não se curva aos preceitos da doutrina cristã. [...] O animal representado no brasão de Palamedes é vermelho; a cor simboliza, por excelência, nas regras heráldicas a coragem e a valentia. Tais características podem ser observadas na busca incessante do cavaleiro pela Besta Ladrador (2010, p. 13).
Essas características também são mostradas recorrentemente aos adversários
de Palamedes. Difícil se faz vencê-lo, e são derrotados, em sequência, Elaim o
Branco e Estor de Mares. Após o combate com este último, deixado vivo por
cortesia, pela primeira vez a qualidade da cavalaria de Palamedes é
verbalizada nos seguintes termos:
– Fé que devo a Deus, bõõ é o cavaleiro que se vai e bem conheço, por quanto vi, que é milhor cavaleiro que eu som. E por esto o leixarei esta vez, ca bem vejo que nom som de tam gram bondade de d’armas que o possa vencer (DSG, 2005, p. 114).
Esse encontro é significativo por destacar as palavras em que se dá o diálogo
cavalheiresco no campo de batalha. Não é necessário conhecer o adversário
para que haja respeito mútuo, generosidade cortês em caso de vitória e
reconhecimento da superioridade do opositor na derrota. Isso irá fazer com que
a boa ou má conduta dos personagens traduza-se na linguagem própria da
justa, em que a sanha desmedida traz mau nome a Galvam e a justiça faz o
bom nome de Palamedes. Com efeito, o mouro é em seguida louvado por
Galaaz e Boorz que, ao partirem do castelo de Esclabor, cruzam seu caminho.
Novamente o entrevero sobre a preeminência de se caçar a Besta Ladrador,
novamente a vitória do cavaleiro mouro (sobre Boorz), que se volta
77
rapidamente para sua demanda. Tal feito é agora prova do que foi dito por
Esclabor e pelo próprio Palamedes: Galaaz e Boorz afirmam entre si tratar-se
de um dos melhores cavaleiros do mundo – o que é “gram pecado e grande
mal porque nom era cristão” (DSG, 2005, p. 131). E à semelhança do que
ocorreu com Esclabor e seus filhos, cavalaria e cristianismo são colocados em
ambiguidade.
É preciso notar que, antes de ter sua identidade mostrada, Palamedes é
apenas conhecido como o cavaleiro das armas negras, ou o da Besta
Ladrador. Mesmo seu pai não diz seu nome: sua motivação e sua história são
mais importantes. Nesse ponto da narrativa, Palamedes está atrelado ao
negro, elemento importante no imaginário da baixa Idade Média. De acordo
com Marta Madero,
[el] negro es en esta civilización lo contrario de la luz y de la pureza, representa la vejez, la enfermedad, la muerte; es el color del demonio. Las polaridades de color son fácilmente intercambiables con las polaridades morales y los escritores homilíticos asocian la figura del etíope con el pecado y lo diabólico. No hay, en estos siglos, ninguna possible belleza en la negritud33 (1992, p. 123).
Assim, mesmo que a cor de sua pele ou sua fisionomia não seja destacada,
suas armas o são. Ao mesmo tempo, essa identidade é matizada por suas
qualidades morais, não determinadas pelo negro, mas pelo animal vermelho
que compõe seu escudo: valentia e coragem. Refletindo sobre a importância do
tema da identidade – desconhecida, mascarada, manipulada – para a literatura
cavalheiresca, Danielle Régnier-Bohler indica que,
[proposição] enigmática ao olhar, servindo-se da monocromia, o indivíduo pode concentrar-se, reduzir-se à cor, tornar-se, por exemplo, “Cavaleiro Rubro” ou “Cavaleiro Branco”, com aquilo que os valores cromáticos comportam de discurso legível, designando o vermelho um personagem animado de más intenções, o verde um ser fogoso, o negro, provisoriamente polivalente, tornando-se pouco a pouco pejorativo, aparecendo o azul no incógnito, como um real valor para dizer a natureza dos personagens (2009, p. 397).
33 “O negro é nesta civilização o contrário da luz e da pureza, representa a velhice, a enfermidade, a morte; é a cor do demônio. As polaridades de cor são facilmente intercambiáveis com as polaridades morais e os escritores homilíticos associam a figura do etíope com o pecado e o diabólico. Não há, nestes séculos, nenhuma possibilidade de beleza na negritude” (tradução nossa).
78
E ainda:
Se as armas de um herói são proposições secretas para uma iniciativa hermenêutica, se a monocromia é “falante” ao mesmo título que as armas explicitadas, o tema do cavaleiro mascarado parece ter sido nos romances do século XIII o motivo privilegiado de uma dialética entre o anonimato desejado, a perda da posição social e a reconquista de um olhar de outrem por meio, em primeiro lugar, do valor físico da façanha que propõe uma identidade que o nome, depois, virá coroar. Para ser reconhecido e valorizado, o indivíduo parece dever passar por uma fase mascarada (2009, p. 398).
Primeiro a proeza de armas, depois a identidade. Diferentemente dos
romances corteses, a DSG não se detém em descrições minuciosas, seja de
pessoas, seja de lugares: o foco está nos acontecimentos e na significação
desses acontecimentos na ordem geral da narrativa. Poucas são as palavras
com que os cavaleiros são descritos, quando o são; no mais das vezes se lhes
apresenta apenas o nome, para que se saiba serem alguns dos da corte de
Artur em demanda. O surgimento de “um cavaleiro de umas armas negras” a
perseguir uma “besta desassemelhada” é, no início, ocorrência em todo alheia
à matéria principal. Quando a história de Palamedes vem à tona, este já
derrubara vários dos principais cavaleiros de Artur, mostrando-se um
adversário de valor. Não há mais como negar ao mouro sua virtude como
guerreiro.
O episódio seguinte de Palamedes coloca-o frente a Persival – um dos
principais cavaleiros de Artur e um dos três cavaleiros escolhidos –, mais um a
perseguir a Besta Ladrador. Novo desafio, nova vitória do cavaleiro pagão
(DSG, 2005, p. 155). Com efeito, não parece haver força no mundo da
cavalaria que consiga separá-lo de sua demanda. Encontrando Gariet, outro a
sofrer derrota pela lança de Palamedes, Persival admite a virtude de armas de
seu adversário, com a anuência do amigo. A jornada do bõõ pagão vai, assim,
redundando em seu bom nome, ecoado justamente por aqueles a quem vence,
ou por testemunhas de seu poder. No mundo da cavalaria, o tema de maior
interesse é justamente o exemplum cavalheiresco, e assim Galaaz e Tristam,
cavalgando juntos e conversando sobre suas aventuras, trazem à memória a
Besta e o cavaleiro, de quem Tristam já ouviu “muito loar de cavalaria”. Mais
79
uma vez apresenta-se o embate entre as esferas do mundano e do sagrado,
nas palavras de Galaaz: “– Certas, [...] ele é mui boo cavaleiro. Se fosse cristão
muito devia homem prezar sua cavaleria. Mais desto me pesa muito e como
desamo-o porque é mouro!” (DSG, 2005, p. 280). Com efeito, o conflito
ideológico é inequivocamente forte.
Segue-se um capítulo merecedor de nota. Ao se tratar do mouro na literatura
medieval, recolheram-se indícios de sua má reputação, de sua feiúra, entre
outras características consideradas vis. Ao se analisar a personagem
Palamedes, todavia, não se encontram esses traços – pelo menos não de
forma evidente. Em verdade, pouco se caracteriza o personagem fisicamente.
Nesse ponto da narrativa, um único capítulo específico (“Como o cavaleiro da
Besta Ladrador amou Iseu”) mostra tal intenção descritiva, mesmo que ligeira.
Num momento de descanso noturno, pensando estar sozinho, Palamedes
lamenta-se pelo amor não correspondido de Iseu, e é ouvido por Galaaz e
Tristam:
Quando Galaaz espertou do sono achou a cabo de si Tristam, que dormia tan feramente como se houvesse IIII dias que nom dormisse. Mais o outro cavaleiro nom fez assi, Ca estava já armado em seu cavalo. E quando vio aquela companha pesou-lhe muito, ca bem soube que ouviriam o que el dissera. E por esto se coitou de si ir o mais toste que pôde. E sabede que tragia ũũ escudo negro com ũũ liom branco34. E se me alguém preguntar quem era aquele cavaleiro que tam muito amava Iseu, eu lhe diria que era o boo cavaleiro pagão, o da Bescha Ladrador. E quem saber quiser em qual guisa amou primeiramente Iseu e quanto fez e sofreo por ela, a grande estória de Tristam lho dirá. Mais esta vez sabede que passava pela Joiosa Guarda e vio Iseu e, pola gram beldade que lhe vio, renovou-xe-lhe o amor que dela havia e começou de crecer mais e mais assi que nom amava tanto sii, nem outra, nem rem nom no fazia desesperar de haver seu amor, senom que Tristam era ũũ dos fremosos cavaleiros do mundo, ũũ dos melhores. Estas dous boas manhas que sabia em ele o faziam morrer com pesar e com inveja, ca bem sabia de si que nom era fremoso, mais tinha-se por boo cavaleiro (DSG, 2005, p. 282).
Esta é a única alusão à figura de Palamedes; não é bonito, pelo menos não
tanto quanto Tristam, e isso faz com que seja preterido em favor deste por
34 A mudança de cor – de vermelho para branco – do leão nas armas de Palamedes pode apontar a mesma transformação pela qual o personagem passa na novela: inicialmente pagão e desconhecido, gradualmente mostrando-se digno o bastante para alcançar o graal (SCHIMID, 2010, p. 13).
80
Isolda. Note-se, contudo, que não se trata efetivamente de uma descrição física
do personagem, mas apenas uma característica, por demais genérica;
insuficiente para que seja escarnecido ou se torne alvo de troça. Nesse
sentido, há uma diferença grande em não ser bonito e ser feio; não há
realmente uma acusação feita pelo narrador, mas uma constatação por parte
do próprio personagem, ao comparar-se ao “fremoso Tristam”. Essa
“autoconsciência” atrela-se, possivelmente, à cor negra de sua pele (se
partirmos de um pressuposto étnico), a corroborar as palavras de Madero e a
natureza marginal do personagem, reforçando seu contraste em relação aos
cavaleiros de Artur. Talvez como compensação, logo se diz da bondade de
cavalaria de Palamedes; e é aí que parece residir todo o valor do cavaleiro –
mesmo que, lembrando Baumgartner e sua reflexão pontual sobre o
merecimento de Palamedes, tais feitos não lhe deem como recompensa a
felicidade amorosa, já que é vedado ao cristão, em especial às mulheres,
envolver-se com mouros (ALFONSO X, apud LIU, 2004, p. 96-97). Pode-se
talvez pensar num artifício narrativo consonante ao exemplum: afastando-se da
“senhor das senhores”, logo o mouro será batizado e, por sua boa vida, capaz
de ver o Graal. Tristam, renitentemente cortês e adúltero, não.
A cortesia de Palamedes pode ser medida frente à sanha de Tristam, que, ao
ouvir seu lamento por Iseu, é arrebatado pelo ciúme. Obrigado a defender-se
do preferido de sua senhora, sabe que não pode empenhar-se em demasia. A
luta desenvolve-se ferozmente sob o olhar maravilhado de Blioberis, a atestar a
bondade de cavalaria de ambos, e que por isso pede que se identifiquem.
Sabendo quem são, advoga por Palamedes – ou seja, pelo término da batalha.
Diante da recusa do adversário, o mouro atesta sua humildade, ajoelhando-se
e entregando sua espada. Tristam deixa o combate, mas não a intenção de
desafiá-lo em ocasião próxima. A cortesia de Palamedes, entretanto, mantém-
se incólume: ao encontrar Tristam cercado por cem cavaleiros, põe-se
prontamente em seu auxílio.
– Certas dom Tristam, ora vejo eu que vós sodes o melhor cavaleiro que eu nunca achei. Ora me teria todo o mundo por mau se nom fezesse todo o meu poder em vos ajudar. E nom catarei o gram desamor que me vós havedes mas a gram bondade que em vós há,
81
ca todo o mundo valria meos de morte de tal homem (DSG, 2005, p. 292).
Assim é resolvido o desamor entre Tristam e Palamedes. Previsivelmente, a
DSG, como novela que refuta a cortesia amorosa, dá bastante espaço para o
tema; a diferença é que, nela, não se trata da linha narrativa principal, mas de
seu contraponto, uma vez que é tratada pela negativa. A vassalagem amorosa
é um motivador de ações e reações; mas, à breve exceção dos adultérios de
Genebra e de Iseu, não ganha o primeiro plano, senão como contraste da
busca espiritualizante dos cavaleiros. A demanda do Santo Graal não admite
mulheres, como anuncia o “homem velho” vestido com os “panos da ordem”,
logo antes da partida dos cavaleiros.
– Cavaleiros da Távola Redonda, ouvide! Vós havedes jurada a demanda do Santo Graal. E Naciam o ermitam vos envia dizer per mim que niũũ cavaleiro desta demanda nom leve consigo dona nem donzela, senam fará pecado mortal. E nom seja tal que i entre se riam (sic) for bem menfestado, ca em tam alto serviço de Deus como este nom deve entrar se nam for bem menfestado e bem comungado e limpo e purgado de todolos cajões e de pecado mortal. Ca esta demanda nom é de taes obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor que fará veer conhocidamente ao bem aventurado cavaleiro que el escolheo por seu sargente antre todolos cavaleiros terreaes, ao qual mostrará as grandes maravilhas do Santo Graal e lhe fará veer o que coraçom mortal nom poderia pensar nem língua d’homem nom poderia dizer (DSG, 2005, p. 41-42).
Lembremos, entretanto, que tal demanda não é a de Palamedes: apesar de
sua crescente fama, a caça à besta faz com que apenas toque, eventualmente,
o universo cristão dos cavaleiros de Artur – para logo que possível dele se
desvencilhar. Apesar de não ser cavaleiro da Távola Redonda, considera-se
vassalo de Artur por ter sido favorecido pelo rei no passado – uma espécie de
“vassalagem de coração” a que alude Megale (1992, p. 36). Assim, lança-se na
companhia do pai, de Artur o Pequeno e de Galaaz em ajuda ao rei quando
sabe que Camalot está cercada por rei Mars e pelos saxões. Entretanto, novo
atrito se dá entre o reconhecimento da boa cavalaria como atributo certificador
da fraternidade dos cavaleiros e o pertencimento ao cristianismo: Galaaz
recusa a companhia de Palamedes, na iminência do ataque a Mars e aos
saxões. A isso, retruca o mouro:
82
[...] Pois buscade quem vos ajude ca eu som aquele que d’hoje mais nom vos farei fora d’estorva pois me deitastes de vossa campanha. E desfiou logo seu padre e Galaaz e Artur o Pequeno e todolos da parte de rei Artur e disse a Galaaz: – Senhor, pouco me preçastes quando me nom quisestes contar por cavaleiro. E assi Deus me ajude, eu ante queria seer morto ca vos nom mostrar em esta batalha se som cavaleiro se nom. E entom se foi pera rei Mars (DSG, 2005, p. 350).
O verso da moeda do jogo ambivalente protagonizado por Palamedes vem na
página seguinte: apesar de não haver considerado Palamedes suficientemente
bom para acompanhá-lo, Galaaz lança-se em batalha para salvá-lo dos
inimigos, justamente por prezar sua cavalaria. Naturalmente, esses são
expulsos, e Artur recebe seus aliados e salvadores na corte. E nova mostra –
talvez a mais acintosa – da rigidez de caráter do mouro.
– Ai, Paramades! disse el-rei, muito vos oí loar por mui bõõ cavaleiro, e eu vos prezo de cavalaria sobre todos aqueles que em Deus nom creem. Nom há em vós niũa rem em que vos homem possa travar, fora em que nom sodes cristão. E, por Deus e por salvamento de vós e por meu amor, recebede baptismo. E el respondeu: – Senhor, nom vim cá por esso, nem esso nom faria eu em nem ũa guisa aa vontade que ora tenho; mas bem sabede que, se o houvesse a fazer por rogo de homem, que o faria por vós, ca vós sodes o homem do mundo por que homem mais devia fazer. E el rei lhi disse outra vez: – Fazede o que vos digo e rogo e dar-vos-ei esta cidade de Camaalot, que é cidade do mundo que mais amo. – Ai, Senhor! disse Paramades, por Deus, nom me roquedes em, ca nom há rem por que o ora fezesse, ca xi me nom outorga i meu coraçom. El-rei nom lhi falou i mais quando viu que lhi nom prazia (DSG, 2005, p. 355).
Ao recusar Camaalot, Palamedes prova que a caça solitária e exclusiva à
Besta Ladrador não se trata apenas de soberba, mas de uma demanda
particular que deve ser levada a cabo antes de tomar assento à Távola
Redonda ou de se lançar a outra missão – precisamente o que vem
repetidamente dizendo aos cavaleiros que encontra e derruba, mesmo a título
de conselho.
Nesse ponto da narrativa Palamedes já é conhecido e reconhecido por todos,
estabelecendo-se não como um cavaleiro de Artur, mas como aquele que,
pelos feitos de armas, mostrou seu valor após vários testes de cortesia,
83
idoneidade e proeza de armas. Como colocado por Régnier-Bohler, o tempo da
máscara veio a termo: não mais se o conhece por “cavaleiro das armas
negras”, mas por seus feitos e por seu nome. Em Camaalot, Palamedes recebe
a oferta maior, a consagrar-lhe como o mais alto cavaleiro entre aqueles que
não acreditam em Deus. É hora então de um tal cavaleiro, prezado de cavalaria
por todos, ser trazido para o lado da Igreja. Mas não sem luta.
3.3.1 O batismo de Palamedes
Nada menos que onze capítulos da edição crítica da DSG (561-571) são
dedicados à conversão de Palamedes, desde que Galaaz o desafia para vingar
Galvam, seu parente, vencido pelo mouro. Pela extensão do episódio, basta
que se coloque aqui a sequência dos fatos. Palamedes, após vencer
consecutivamente Estor, Gaeriet, Lancelot – que exaltam sua cavalaria –, não
recebe a mesma cortesia por parte de Galvam. Derrubado pelo mouro,
achando-se “astroso e cativo e mal aventurado” (DSG, 2005, p. 413), mente a
Galaaz, dizendo ter sido atacado por um cavaleiro “bravo e soberveo” (p. 413),
o qual lhes teria matado Lionel, irmão de Boorz. Em que pese sua santidade,
Galaaz não pode deixar de vingar alguém de sua linhagem, pela feudalidade
entranhada nas relações cavalheirescas: assim, desafia Palamedes. Este pede
a Galaaz que lhe dê tempo para curar suas feridas; é estabelecido então um
prazo de vinte dias. Durante esse ínterim, Esclabor, seu pai, exorta-o a tornar-
se cristão, dizendo ser a única forma de sair vivo e com honra da batalha
contra o melhor cavaleiro do mundo – o que significa, na estrutura alegórica da
DSG, tornar-se vivo também na fé cristã. Palamedes, que não vê outra
alternativa, promete ser batizado se assim ocorresse – e tal condição ganha
aqui especial relevo, uma vez que o batismo não é algo que desejasse, ou
mesmo que lhe turvasse a cavalaria. Pela força das circunstâncias,
alimentadas pela sanha de Galvam, o cavaleiro destinado a ser aquele que
maior dano trará à demanda do Santo Graal (DSG, 2005, p. 39), faz-se
necessário que Palamedes, à força, se torne cristão.
84
Mesmo resumida a fábula do cavaleiro mouro, os termos em que se dá a
preparação para a luta com Galaaz merecem análise mais próxima. Consciente
da inevitabilidade do encontro, Palamedes cai em profundo pesar; interrogado
por seu pai sobre o motivo, enceta o diálogo que segue:
– Senhor, se eu penso nom é maravilha ca, pois foi cavaleiro, nunca comecei cousa que nom acimasse a mia honra, fora a Bescha Ladrador a que nom pude dar cima. E bem vejo que tam alta aventura nom há a seer acabada per mim. E agora mim ar veo outra aventura mui receadoira em que tenho morte se per grande aventura nom for. – E que é? disse o padre. – Eu hei d’haver batalha, disse el, contra dom Galaaz que é o melhor cavaleiro do mundo. – Quando o padre esto ouiu leixou-se caer em terra esmorido tanto houve gram pesar. E, pois acordou e pôde falar, disse: – Ai, filho, mal te veo. – Bem sei eu, disse Palamedes, que nem ũũ bem nom me poderá vĩir desta batalha, pero nom no posso em tirar afora ca o promiti (DSG, 2005, p. 415).
Há um caráter de dramaticidade, ou mesmo de tragicidade nessa cena,
entendido o conceito de tragédia como um embate entre forças humanas e
divinas, ou entre o indivíduo e a coletividade, no qual o primeiro
necessariamente sucumbe. Nas palavras de Jean-Pierre Vernant,
[...] O que talvez defina (a Tragédia) no que é essencial é que o drama levado em cena se desenrola simultaneamente ao nível da existência quotidiana, num tempo humano [...] e num além da vida terrena, num tempo divino, onipotente [...]. Por essa união e confrontação constantes do tempo dos homens e (sic) com o tempo dos deuses ao longo da intriga, o drama traz a revelação fulgurante do divino no próprio decurso das ações humanas (2008, p. 20).
Esse conflito não seria de todo estranho à estrutura da DSG, observada como
exemplum anti-cortês: Galvam e Lancelot, por exemplo, podem também ser
vistos como heróis trágicos (NUNES, 1999, p. 94; TOLEDO NETO, 1999, p.
148), mantendo-se demasiadamente ligados aos ditames mundanos e corteses
da cavalaria, e por isso condenados ao fracasso na demanda.
Por sua vez, Palamedes carrega o conflito de duas forças: sua honra como
cavaleiro, que não lhe permite esquivar-se de uma justa; e a força sobre-
humana de Galaaz, que causaria sua morte. Mesmo sabendo que o combate
resultará fatal, mantém sua palavra e sua promessa: a angústia que precede a
85
batalha é representação do atrito entre privado e absoluto, entre a lei particular
(a manutenção da dignidade cavalheiresca mundana) e a lei geral (o poder do
deus cristão sob a figura de seu cavaleiro escolhido). Note-se que tal condição
não seria característica do personagem, mas da própria novela.
Dos vários pontos em comum entre as aventuras, um dos essenciais é a ambigüidade dos conflitos armados à revelia dos cavaleiros, momento culminante (ou “provação”) de sua existência de peregrinos em “demanda” do Graal. [...] Embora o apelo à polaridade das situações seja comum à literatura medieval e esteio das novelas de cavalaria, os membros da Távola Redonda defrontam-se com situações sem saída, que facilitam e até propiciam o erro e a queda [...] (MONGELLI, 1995, p. 130).
Munido de novas armas, a caminho do desafio, é forçado a lutar novamente
com Galvam, a quem novamente vence. Já ferido, justa com Galaaz e, como
se poderia esperar, é derrubado por ele. Apesar disso, nega-se a declarar-se
vencido. O capítulo em que se dá o desfecho do combate é bastante
interessante pelos adjetivos dados ao mouro e pela sobriedade de sua
argumentação, e por isso o transcrevemos quase integralmente.
[...] E Galaaz se pôs sobr’ele e disse-lhi: – Tu és morto se te nom outorgas por vençudo. E aquele que nunca em cavalaria errara e que nunca fezera i cousa que a vilania xi lhi podesse tornar e que era de mui gram coraçom polas bõas andanças que sempre atá aquela hora houve, respondeu: – Ai, dom Galaaz, esto nom é nada que vós mi dizedes. Já, certas, com pavor que haja de morte nom direi cousa de que me possam teer por covardo. Mas esto nom posso eu dizer que vós nom sodes melhor cavaleiro ca eu nem ca todos aqueles que nunca trouxerom armas no reino de Logres. E por em ni mim chal muito de eu morer per vossas mãos, ca assi mi nom poderóm dizer que pior cavaleiro ca mim me matou. – Esso nom é nada, disse Galaaz, que vós dizedes; convém que vos outorguedes por vençudo. – Mas esto é folia, dissi Palamedes que vós cuidades que eu faça cousa que a vergonça se me torne por pavor de morte que em pouca dura passará. Vós teendes bõa espada; matade-mi, se quiserdes. Quando Galaaz esto ouiu nom soube o que feizesse, ca o desamava mortalmente. E da outra parte, prezava tanto el e sa cavalaria que bem via que, se o matasse, que seeria gram dano. Entom disse: – Palamades, vós veedes que sodes morto, se eu quero. E ele respondeu: – Esto nom me é gram vergonha, ca todos aqueles que vos conocem sabem verdadeiramente que vós sodes o melhor cavaleiro do mundo. – Se eu som bõõ cavaleiro, disse Galaaz, tanto é vosso maior mal, ca vos matarei se quiser. Mas ora fazede ũa cousa que vos quero rogar por vossa prol e por vossa honra e por seer eu vosso companheiro e vosso amigo mentre vós vivades.
86
– E eu, certas, disse Palamades, por esto que me vós dizedes, nom há rem no mundo que eu nom fezesse que a honra se me tornasse, primeiramente por mia vida salvar, e pois por vós, unde me eu teeria por bem andante em quanto por vós fezesse e dizede-me que é. – Eu vos digo, disse Galaaz, que, se vós quiserdes leixar vossa lei e receberdes bautismo, que eu vos perdoarei quanto queixume de vós hei e tornar-me-ei vosso vassalo quite, assi que em todos logares u me, dês aqui, achardes, me poderedes meter em todo perigoo por vosso corpo defender. Quando Palamades esto ouiu, disse: – Pois leixade-me e eu fazer quero o que me rogades pola coveença que me havedes feita; e sabede que nunca houve maior vontade de rem no mundo como ora receber bautismo e creer na santa lei de Jhesu Cristo, primeiramente porque lho prometi e, dês i, por vosso rogo (DSG, 2005, p. 420-421).
Apontou-se até aqui, em mais de uma ocasião, como cavalaria e cristianismo
são valores relativamente separados, e como isso é percebido com maravilha
por Galaaz, ao observar Palamedes. Neste trecho, o conflito é levado ao
paroxismo: a narrativa sofre uma pequena suspensão para que se mostre o
embate psicológico de Galaaz, pela primeira vez confuso diante de uma
decisão. Levam-no a isso também as palavras de Palamedes: à beira da morte,
não verbaliza a derrota, precisamente por não contar Galaaz, o melhor
cavaleiro do mundo, como uma referência à cavalaria: se não é possível a
vitória, honra e desonra são conceitos que não teriam fundamento. Nesse
sentido, Palamedes parece mostrar-se muito mais cônscio da condição
cavalheiresca que Galaaz.
É também notável como a proposição do batismo é aceita apenas seguida de
um tipo de explicação mundana, ligada aos ditames da cortesia. O até então
mouro ouve seu antagonista cristão primeiro por ver sua vida salva, e depois
por que seria venturoso ao fazer um favor ao cavaleiro escolhido; converte-se,
então, com todo o fervor – mas porque assim foi prometido e por ter sido
Galaaz a pedi-lo. Ora, todos os motivos colocados obedecem a um código de
conduta mundano, cortês: melhor se faz a “santa lei de Jhesu Cristo” porque o
conserva da morte. Trata-se, enfim, de uma conversão de oportunidade –
coincidentemente da mesma forma como a que se operou com seu pai:
converte-se, ameaçado pelo Deus cristão, vendo mortos por um raio celeste
todos os seus companheiros também pagãos (DSG, 2005, p. 103).
87
Dessa forma, pode-se aferir que, para Palamedes – ou para os redatores da
DSG –, cavaleiro exemplar, a religião não é efetivamente estandarte a ser
defendido, a não ser quando pode preservá-lo da morte. Tal leitura é
necessariamente imprecisa: pode indicar tanto o cristianismo como único
escudo contra a morte – real ou metafórica – ou como o desinteresse de
Palamedes pela religião, atento apenas para a salvação de seu corpo e sua
honra, como ao final da batalha contra Galaaz é demonstrado.
Palamedes é, até então, exemplo de subjetividade forte: ignora evidentemente
os preceitos da Igreja e a mesma demanda do Santo Graal, por serem alheias
a sua religião e cultura, e ainda assim vence todos os cavaleiros que
atravessam seu caminho. O fim da batalha com Galaaz dá ainda a medida de
seu caráter: apesar de já pedir a Jesus Cristo que o livre com saúde do golpe
fatal, não se dá por vencido; pelo código de honra da cavalaria, não quer dizer
nada que redunde em desonra, enquanto a morte por um cavaleiro valoroso
não deve ser temida. A força mostrada por Palamedes faz com que sua
conversão ganhe vulto; enfim, os valores de um cavaleiro sem erros morais
encontram os valores cristãos, o que só faz enaltecer a Igreja: o particular,
representado pela moral do sujeito, encontra o pretenso “universal” cristão,
formando um todo harmônico na estrutura do exemplum.
É necessário considerar que a subjetividade de Palamedes, que vai de
encontro aos interesses “universais”, é, obviamente, um construto social: não
se deve olvidar a correspondência entre personagem literário e histórico, e o
particular de uma visão de mundo regida pelo Islã. Entretanto, Boutros Ghali já
nos advertiu para as várias similaridades entre o cavaleiro mouro e o cristão,
dados os pontos de encontro, hostis ou pacíficos, que regeram as relações
entre Oriente e Ocidente na baixa Idade Média. Consideremos também o ponto
de vista cristão da novela, escrita por religiosos (LAPA, 1981, p. 251), e a
obliteração daquele ponto de vista no que se refere à cultura oriental;
tendemos, por esses motivos, a ver em Palamedes menos um cavaleiro mouro
(como edificado historicamente) do que um personagem com propósito
narrativo bastante específico dentro da estrutura do exemplum: a recompensa
88
celestial para os valores morais cavalheirescos, dentro da ideologia de
conversão cruzadística.
As cenas que se seguem ao combate aumentam o episódio: Palamedes
recebe batismo e cura-se milagrosamente de todas as feridas; visita o pai;
toma assento na Mesa Redonda. Palamedes agora irá aventurar-se ao lado de
Galaaz, Boorz e Persival, os três mais bem aventurados demandantes.
3.3.2 O fim da Besta Ladradror e a postumeira festa
O exotismo de Palamedes não se resolve com sua conversão; há de se
terminar a demanda da Besta Ladrador. Após aventurarem-se juntos e a sós,
Galaaz, Palamedes e Persival encontram-se no encalço da besta, que,
cansada, parara em um lago para beber (DSG, 2005, p. 433). Palamedes a
fere, e o monstro é final e dramaticamente morto, transformando a natureza do
lago, que então passa a ferver – à semelhança do que é descrito no apocalipse
bíblico (MONGELLI, 1995, p. 114). De acordo com Ademir Luiz da Silva,
A religião cristã é o principal fator de unidade e nivelamento na Europa medieval, tornando iguais os diferentes. Assemelhava-se ao Islã, que não era apenas uma fé, mas todo um sistema social e jurídico. Palamedes, originário desse sistema, mesmo tendo a honra de ser aceito entre os barões de Artur, não poderia destruir a maior das bestas, uma fera equivalente ao dragão do Apocalipse (2011, p. 28).
Apesar de toda a boa cavalaria de Palamedes, a besta que perseguira por
tanto tempo é fruto de um pecado tão atroz que ele, sendo mouro, não teria
reais chances de derrotá-la, considerando o objetivo doutrinário cristão da
novela. A cortesia e a habilidade têm por certo seu condão, mas apenas
cristãos devem dar cabo das obras demoníacas. Há uma estrutura paralelística
bem aparente aqui: também foi necessário o melhor dos cristãos para o
batismo do melhor dos pagãos, que agora se aproximam em amizade.
Lembremos que, de acordo com Marta Madero, o século XIII é marcado pelo
sonho cruzadístico da conversão. Toda a gesta de Palamedes foi necessária
89
para que se afirmasse não apenas valoroso aos olhos de seus pares, mas da
cristandade. Assim, para Lênia Márcia Mongelli,
A aventura de Palamades é, por um lado, exemplo da vitória contra um arqui-inimigo, “demonstrança” do poder de Cristo e do alto simbolismo do lustro batismal [...]; por outro, a mesma aventura representa a “provação” do cavaleiro na peregrinação para o Graal (1995, p. 105).
Tal fato chama a atenção para o elemento alegórico evidente na relação entre
o monstro, os cavaleiros e o papel desempenhado pelo bõõ pagão na narrativa.
Vários são os que tentam pôr fim à aberração da besta desassemelhada, em
busca simbólica da superação das próprias falhas individuais.
A aventura da Besta Ladrador atende a essa necessidade imperiosa de fazer arrefecer os atrativos da “fornicaçam”, que continua grassando na corte arturiana. [...] A invencibilidade da Fera é diretamente proporcional ao Erro que ela encarna e constitui-se numa daquelas aventuras cuja essência maravilhosa representa forças mágico-transcendentais de difícil combate. A besta simboliza a conspurcação da Humanidade, a natureza deformadora e deformada do Pecado, o ser do Mal. Por isso serve a uma espécie de purgação coletiva, de “chance” para que todos se defrontem com o mistério e com o lado obscuro da vida (MONGELLI, 1995, p. 97-98).
Interessante notar, no plano maior da narrativa, como as figuras de Galvam,
Galaaz e Palamedes se entrecruzam, nesse ponto, evidenciando uma função
estrutural bastante eficaz. A mentira contada a Galaaz por Galvam e sua
aceitação inadvertida, ou mesmo ingênua, por parte daquele é um artifício que
irá aproximar a eliminação da Besta Ladrador, “síntese das forças demolidoras”
(MEGALE, 1992, p. 121) do mundo arturiano, por aproximar Galaaz de
Palamedes – o mesmo que dizer: aproximar Palamedes do mundo celestial
cristão. Tangenciando a demanda do Graal até então, livre dos conflitos
vassálicos da Távola Redonda, Palamedes possui também uma visão
privilegiada das forças envolvidas nessa busca, colocando-se como vértice de
um dos episódios de maior peso simbólico na novela.
A fusão, (sic) já percebida dos dois planos35 se revela com bastante
nitidez neste processo de catecumenato em que se situa Palamedes, uma vez que um elemento tão paradoxal [a mentira de Galvam] se
35 Notadamente, os planos mundano e celeste (p. 14-15).
90
torna o último móvel de sua aproximação do plano superior, onde é entronizado pelo batismo. [...] A lucidez com que Palamedes percebe os dois planos o torna participante de soluções, em igualdade de condições com Galaaz [...] (MEGALE, 1992, p. 122).
Destruída a besta, purificado seu perseguidor e livre o mundo da aberração
demoníaca, é já a hora de Palamedes, Persival e Galaaz encontrarem
Corberic, o castelo do Graal. O “achatamento” do tempo cronológico em prol de
um tempo narrativo – o que Mikhai Bakthin chamará, relativamente ao romance
cortês, tempo de aventuras (2002, p. 270), e também sublinhável na DSG pos
sua recorrência, em função do privilégio dado à ação aventuresca – coloca-se
novamente como artifício.
E eles assi o fezerom e partirom-se do lago e foram-se a ũa ermida u se desarmarom e jouveram i aquela noite por folgarem. Depois andarom de sũũ todos III e acharom muitas aventuras que nom contam aqui mas no romanço do Braado as acharedes. E tanto andarom em tal guisa de ũas terras em outras que chegarom a Corberic (DSG, 2005, p. 434).
A vinda de Galaaz a Corberic é o advento esperado por rei Peleam: só ele
pode salvá-lo da chaga que o aleija há anos, motivo retomado de Perceval ou o
conto do graal, de Chrétien de Troyes. Acontece então a “postumeira” festa, a
esperada reaparição do Santo Vaso para os 12 cavaleiros escolhidos pelos
céus como os melhores, Palamedes entre eles. A heterogeneidade do grupo
demonstra, em análise mais próxima, que o critério da recompensa é o mérito
pessoal dos cavaleiros (MEGALE, 1992, p. 123), o que faz com que dois
bastardos (Artur o Pequeno e Meraugis de Polergues, filhos de Artur e Mars,
respectivamente) participem do cortejo. Lembremos que Palamedes, aqui,
entra em Corberic na companhia de dois dos três cavaleiros escolhidos, Galaaz
e Persival, em concordância com aquele critério.
O Graal é então mostrado, sobre uma “távoa” de prata, e logo, no mesmo
lugar, surge um “homem vestido de panos brancos”, cuja face brilhante não se
pode ver, convidando a todos a receber a hóstia. À semelhança da reunião de
Pentecostes na corte de Artur, todos provam do manjar celestial. Pode se
considerar o episódio o auge da DSG – não só pela visão do Graal, mas pelo
contato entre céu e terra experimentado pelos cavaleiros, cuja separação
91
constitui o conflito básico do cavaleiro (TOLEDO NETO, 1999, p. 146-147) e
provoca toda a ambivalência estrutural da novela (MEGALE, 1992, p. 15).
E ele lhi deu a hóstia. E assi fez cada ũũ. Mas bem sabede que nom havia i tal deles a que nom semelhasse ca lhi metiam na boca ũũ homem vivo e nom houve i tal que cuidasse que eram em terra mas em ceos (DSG, 2005, p. 439).
3.3.3 A morte de Palamedes
A demanda do Santo Graal chega ao fim, e os cavaleiros agraciados
encomendam-se a Deus e partem. Para onde? A rigor, as aventuras que
experimentaram tiveram como pano de fundo, ou motivação primeira, a busca
do vaso sagrado. Após a morte da Besta Ladrador, o fim da novela é marcado
pelo desdobramento daquelas aventuras “menores”, derivadas de confrontos
fortuitos anteriores, culminando todas na ruína do mundo arturiano, iniciada
pela morte dos três eleitos e de Palamedes (MEGALE, 1992, p. 123), o
primeiro deles a cair.
Após deixar Corberic, Palamedes encontra-se com Lancelote (sem reconhecê-
lo), que lhe chama à batalha das espadas sem outro motivo que não o de
afirmar-se bom guerreiro. A luta é danosa a ambos, que se quitam cortesmente
por reconhecerem-se irmãos da Távola Redonda. Ferido, Palamedes é atacado
por Galvam e Agravaim, que não atendem ao juramento de não acometer um
cavaleiro da Távola Redonda.
Como aludido, Galvam é tomado como o bode expiatório da novela: a sina que
lhe compete desde o início, após ele mesmo sugerir que a demanda do Santo
Graal fosse encetada, é causar dano aos cavaleiros da Távola Redonda, o que
se mostra pela profecia da espada sangrenta (DSG, 2005, p. 37-39). Após se
ver como protagonista do augúrio, Galvam tomará atitudes que a confirmam: a
primeira, talvez a mais simbólica, é fugir ao juramento da demanda, deixando a
corte antes dos demais cavaleiros, à revelia dos pedidos de Artur. Para
Mongelli,
92
[embora] continue preso aos compromissos da fidelidade vassálica, Galvam coloca-se fora do perímetro da “demanda” e de seu metafórico programa de salvação. Rompendo com o sagrado, inaugura uma ordem de valores completamente contrária à sugestão de “desprezo do segre” e cria a imagem do maldito, mormente tendo em vista o “galardom” do Graal [...]. Da mesma forma, Galvam é também o único expulso da Távola Redonda [...] (1995, p. 135).
Aquele que é mais prezado por cortesia é vítima precisamente do cavaleiro
mais faltoso. Essa polaridade é ressaltada por Megale (1992, p. 57) em termos
de um embate entre o Graal, a força articuladora da demanda e do reino de
Artur, e os elementos que desviam os cavaleiros do caminho das “puridades”,
as forças destruidoras: esse conflito perpassa toda a matéria narrativa da
novela, sempre com uma designação de cunho ideológico cristão, desenhando-
se nas oposições que os cavaleiros prefiguram. Nesse esquema, Palamedes e
Galvam colocam-se como um desses pares de elementos contrários. “Observa-
se que, enquanto Palamedes era pagão, suas únicas qualidades reconhecidas
eram apenas as de nível cavaleiresco; tornado cristão, vem a ser vítima
daqueles que classificara de sandeus” (MEGALE, 1992, p. 124), o que leva à
consideração do destino desse cavaleiro converso, vítima da traição, como um
primeiro indício do desmoronamento do reino de Artur.
A morte de Palamedes, o “doo” feito por Lancelote e Estor e o consequente
suicídio de Esclabor requerem cinco capítulos (DSG, 2005, p. 442-447). Por
fim, o cavaleiro da Besta Ladrador é sepultado ricamente em uma abadia
construída pelo pai, sob “leteras” que divisaram sua vida e as circunstâncias de
sua morte.
Ao acompanharmos a cavalaria de Palamedes e tendo em consideração a má
imagem costumeira carregada pelo mouro na literatura medieval, vê-se aqui,
sobretudo e em contraponto, que a DSG busca não a alienação social de um
personagem pertencente a um grupo exótico, mas sua integração social; antes
de ser mouro, Palamedes é um cavaleiro, e um cavaleiro pertence a uma
corporação de elite, cujas ações só têm valor por serem convenções
compartilhadas.
93
A DSG, como os romances e as novelas de cavalaria, não se destaca por
representar (como defendido por Auerbach) toda a complexidade constitutiva
de um imaginário social do período, ou mesmo representar suas diversas
classes e seus pontos de vista: é uma história de cavaleiros para cavaleiros, e
nela não há lugar para valores mais altos (ou outros) que não o dessa classe.
O mouro retratado aqui não é o vilão, a ser escarnecido e vilipendiado por
grotesco: é aquele que se mostra no campo de batalha como valente e
perigoso e que, para os critérios de uma classe guerreira cortês, deve ser visto
com admiração.
Na DSG, a beleza do cavaleiro ou sua linhagem importam menos que a honra,
a bravura e a cortesia que mostram nas diversas situações. Isso faz com que
um mouro possa se converter e, por seu valor, ver o Graal, e com que
Lancelot, dito até então um dos melhores cavaleiros do mundo, não o faça,
pelo seu amor indigno com a rainha Genebra. Novamente, o fato de
Palamedes ser mouro aponta muito mais para uma alteridade pouco conhecida
do que para um estereótipo; enquanto mouro, sua cavalaria andante é
ambivalente: segue no pecado de uma fé considerada errada, mas apresenta-
se como ideal de cavalaria cortês. Extirpada a mácula da crença, é agraciado
pelo Graal. Tal análise nos leva a crer que o mouro Palamedes não
corresponde a um estereótipo de mouro satírico: não provoca o riso, não é
monstruoso nem caricato. Apesar disso, sua condição mourisca o diferencia
dos demais cavaleiros, torna-o extraordinário, entre o mundano e o
maravilhoso.
O debruçar-se sobre a demanda de Palamedes na DSG deriva de vários
motivos tópicos: o ser mouro, suas façanhas, seu amor por Iseu, sua ligação
com a Besta Ladrador, para citar alguns. Sua importância na novela é bem
atestada pela quantidade de capítulos em que figura. O que torna esse
personagem tão peculiar, entretanto, não são suas qualidades ou sua
representatividade (em termos quantitativos) na DSG, mas sim sua relação
com a corte de Artur e com a mesma demanda do Santo Graal. Chama a
atenção o fato de Palamedes desenvolver-se na narrativa alheio à busca do
objeto sagrado, sobre o qual demonstra pouca curiosidade. Trata-se, está
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claro, de um pagão, e tal alheamento seria natural. Motivação anotada, o
interesse no personagem permanece, por seu estatuto inicial de não
pertencimento, de uma identidade singular frente à agenda dos cavaleiros da
Távola Redonda.
Como aludido à introdução deste trabalho, essa característica ganha vulto
quando posta sob o conceito de paratopia, como articulado por Dominique
Maingueneau (2006, p. 87), e que diz respeito à qualidade do autor ou de
determinado elemento narrativo, notadamente um personagem, de encontrar-
se no espaço entre convenções, entre sistemas pré-definidos, entre instituições
normativas – ou seja, de manter-se sem um pertencimento definido. Tal
característica, para o teórico francês, seria fundamental para a produção do
discurso literário. Não se trata da negação absoluta do senso de
pertencimento, ou de uma anulação, mas da capacidade de se posicionar em
dois (ou mais) espaços discursivos simultaneamente, sem participar
plenamente de nenhum.
Toda paratopia envolve no mínimo o pertencimento e o não-pertencimento, a inclusão impossível numa “topia”. Assumindo quer a aparência daquele que onde está não está em lugar, daquele que vai de lugar a lugar sem desejar fixar-se ou daquele que não encontra lugar, a paratopia afasta de um grupo [...] ou de um momento [...] (MAINGUENEAU, 2006, p. 110).
Como visto anteriormente, Palamedes surge na novela após a partida dos
cavaleiros de Artur a demandar as aventuras que os levariam ao Graal; seu
papel na narrativa coloca-se como secundário (realmente, um empréstimo feito
pelos copistas da Post-Vulgata, como indicado anteriormente). Não possui
inicialmente nome que se conheça, mostra-se sob armas negras, caça um
monstro inaudito: tudo em si evoca o sentido do maravilhoso ou do misterioso.
Sua gesta não resulta apenas na formação de sua identidade, mas na
formação da própria narrativa cavalheiresca, também marcada pelo dinamismo,
pelo movimento. Ainda para Maingueneau,
[o] cavaleiro andante medieval, que do século XII ao século XVI exerceu uma espécie de monopólio sobre o romance europeu, [...] é ao mesmo tempo protagonista da história e aquilo que torna possível a narração. Tendo abandonado a clausura tranquilizadora da casa
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para “buscar aventura”, atravessa fronteiras sem dizer de onde vem nem para onde vai, o cavaleiro pode contar com suas próprias forças. Conhece homens e comunidades vinculadas a uma “nossa casa”, mas só pode parar em dois Lugares que excedem o profano e que são os únicos a poderem se fechar sobre ele: a Távola Redonda e o santuário do Graal (MAINGUENEAU, 2006, p. 131).
Sempre buscando seu monstro particular, confrontando eventualmente os da
Távola Redonda, aos poucos os feitos de Palamedes falam por si, e logo seu
nome e seus modos são comentados pelos cavaleiros de Artur – ainda assim,
não busca o mesmo que eles, e exige a primazia (e a individualidade) da caça
à besta. Até enredar-se na trama de vassalidade e caprichos que o levarão,
contra a vontade, a combater Galaaz, a cavalaria de Palamedes não se dá à
revelia somente da demanda do Graal, mas de todo o interesse a respeito da
corte arturiana: é um personagem orientado pelo signo da negativa: não é
vassalo de Artur, não é cristão, não busca o Graal. Ao mesmo tempo, é cortês,
é valoroso em combate, é o caçador da besta. Inevitável perguntar: quem é
esse cavaleiro? Ou melhor: como pode ser esse cavaleiro? Pergunta motivada
pelo status ambíguo desse mouro, pelo seu lugar ao mesmo tempo à margem
e destacado, por sua paratopia.
Neste capítulo e nos que o precederam, o levantamento de dados pareceu
sempre e necessariamente vinculado ao signo da ambiguidade. Ao tratarmos
das cavalarias, de sua manutenção enquanto matéria literária, da percepção do
mouro – enquanto figura de uma dada etnia histórica e personagem literário –
no imaginário ocidental ou do sentido das aventuras de Palamedes em A
demanda do Santo Graal, deparamo-nos com uma dubiedade que pareceu
comprometer a objetividade do processo de pesquisa. Entendemos, entretanto,
que todo ele orientou-se para a articulação dos elementos que, ao menos
imediatamente, circunscrevem a análise histórica, cultural e literária do
personagem e da matéria em estudo; o que nos leva a crer que tal incerteza,
por sua reticência, é dele parte integrante. Dessa forma, ao fim do trabalho,
podemos passar à resposta da pergunta enunciadora desta argumentação.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o início deste trabalho (e mesmo das pesquisas que o precederam), o
tratamento que se pretendeu dar a Palamedes foi cercado por indagações de
cunho tanto metodológico – haja vista os diferentes aportes teóricos utilizados
– quanto ideológico. Além da definição do escopo teórico e crítico pelo qual
seria tratado e da contraposição das visões histórica e literária sobre a
constituição do personagem, sua cavalaria, como apresentada em A demanda
do Santo Graal, levanta questões interpretativas que o colocam
constantemente sob o signo da plurissignificação, como pudemos ver no
capítulo anterior.
Tal característica se deve, em boa parte, ao próprio conceito de cavalaria e
suas implicações no imaginário medieval. A outra parte atrela-se à visão
preconceituosa que se punha sobre o mouro a partir do Ocidente, visão
distorcida, mas também impregnada de dúvidas. Observou-se também que,
apesar dessas dúvidas, houve vários pontos de reconhecimento entre as
culturas árabe e europeia no que tange à cavalaria e seu estatuto. Ao juntarem-
se esses dois campos de estudo no tratamento de um mesmo personagem
literário, é natural que qualquer reflexão, por sólida que se pretenda, apresente
modalizadores e possibilidades de argumentação bastante abertas.
Isso considerado, tornou-se fundamental que o estudo obedecesse ao norte
proposto pelas considerações feitas à Introdução, e que ao fim do capítulo
anterior tornaram-se perguntas: quem e como é Palamedes? Levantados os
dados histórico-culturais e feita a análise da novela, é já possível estabelecer
uma identidade específica a esse personagem?
Acreditamos que não, e nisso temos a confirmação de nossas expectativas.
Palamedes é um cavaleiro, e talvez o que melhor representa a instituição e os
valores que a constituem, considerando sua jornada na novela. Como visto, a
classe dos cavaleiros, apesar de dispor de um estatuto bastante exclusivista,
não possui um código claro e rigoroso (apesar dos tratados de Lull e Afonso X,
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por exemplo, eles mesmos ambivalentes quanto à prédica da Igreja), e por isso
é também repleta de contradições, principalmente quando depara a tradição
feudal com mandamentos eclesiásticos de não violência e de repúdio ao amor
cortês; a contradição, como vimos, é mesmo matéria cavalheiresca. A cultura
mourisca do personagem traduz também o jogo conflituoso em que se dá a
cavalaria mundana, a apontar a proximidade mais que aparente entre o Islã e a
cristandade.
As duas cavalarias têm mais de um valor em comum. Dos dois lados, a sociedade exige de seus machos dominantes que afrontem a morte, e a guerra santa se junta ao sentido de honra da sociedade faidal (sic) para prescrevê-lo. Nem uns nem outros se proíbem toda a estima pela Cavalaria do outro lado, e isso lhes assegura o reconhecimento como forma de pagamento. De um lado a outro há, entre esses Cavaleiros, inimizades e amizades de homem a homem. Tudo isso modera a dureza da confrontação, salva vidas nobres e deixa lugar para manobras (BARTHÉLEMY, 2010, p. 349).
Não se confundam cavalaria e Igreja, portanto. Como visto, apesar de todo seu
programa moralizador, a mutação cavalheiresca do ano 1100 não se deve
somente à Igreja, mas a um conjunto de fatores sociais e políticos, entre os
quais se contava o controle da classe de guerreiros nobres pelo clero. A
cavalaria é feudal, de origem remota, e quando falamos de uma “Ordem de
Cavalaria”, esta seria resultado de mudanças conjunturais que, gradualmente,
transformaram aquele grupo de guerreiros numa instituição e numa classe
social específicas – as quais eram também reconhecidas e dinamicamente
influenciadas pelo Oriente. Na literatura, é natural que um cavaleiro
pertencente ao Islã traga os mesmos traços valorativos que seu par da França;
são todos parte de um mesmo corpo guerreiro, e cavalgam sob um mesmo
estandarte: a cortesia.
Francos e sarracenos se admiraram mutuamente, lisonjeados com a estima do outro, ao mesmo tempo permanecendo cada qual na defensiva. Eles souberam que a Cavalaria não estava ligada a uma das religiões do Livro e sentiram, intuitivamente, que os inimigos que se parecem têm algum interesse em se enfrentar de maneira muito mais “Cavaleiresca” para melhor confortar seu lugar dominante, cada um em sua sociedade, especialmente em relação aos camponeses e às mulheres (BARTHÉLEMY, 2010, p. 353).
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Nesse sentido, a alegorização no capítulo 571 (“Como Galaaz disse que lhe
perdoaria se quisesse receber bautismo e como se outorgou i”) de uma
conversão pelas armas guarda um paralelo bastante evocativo das relações
entre cristãos e muçulmanos do séc. XIII. Em pequena escala, o combate entre
Galaaz e Palamedes projeta a aventura do cruzado, e a desejada vitória do
Ocidente. Por fim, após seu batizado cristão, Palamedes irá mostrar-se
suficientemente virtuoso para contemplar o Graal, quando houver abraçado a
demanda. Na sequência de sucessos que virão a seu encontro a partir de
então – da morte da Besta Ladrador ao banquete sagrado em Corberic, junto
aos onze outros cavaleiros escolhidos, à semelhança da Santa Ceia –, pode
ser verificada, com uma boa dose de comedimento interpretativo, a própria
evolução da cavalaria: laica, num primeiro momento, ligada a relações de
cortesia tradicionais entre a elite guerreira, e espiritual, num segundo, quando a
Igreja procura eliminar quaisquer traços de vilania do cavaleiro, moldando-o
como guerreiro religioso. A rigor, o trecho do capítulo 591 (“Como os três
cavaleiros forom ao Paaço Aventuroso”) que segue – quando Palamedes, junto
a Persival e Galaaz, roga por sua entrada juntos no “Paaço Aventuroso” – tem
grande poder de síntese: “– Ai, Deus! disse Palamades, seede nosso ajudador
em nossa fazenda, ca sem vossa mercee muita cavalaria toda é danada!”
(DSG, 2005, p. 434).
Estabelece-se, dessa forma, uma função para Palamedes em conformidade ao
exemplum cristão. Entretanto, a caracterização do personagem é ainda
ambígua, se contarmos com a já mencionada tipificação do mouro na literatura
medieval peninsular. Isso nos levou a uma crítica mais específica do
personagem, o que mostrou, em sua jornada, vários pontos de conflito. O
mouro, na figura de Palamedes, permanece sempre como um “outro” que,
embora muitas vezes lamentado por ser infiel, não é plenamente conhecido ou
entendido, habitando a esfera do estranho maravilhoso, do sempre
verossimilhante, do possível – e não de uma realidade precisa. Em outras
palavras: apesar de ser denominado mouro, as únicas características
constituintes de uma identidade são aquelas relacionadas à cavalaria. Talvez a
única forma de se compreender o personagem, aparentemente tão ambíguo,
seja levar em consideração a própria ambiguidade em que se ergue a
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cavalaria: sua origem mundana e feudal, o ideal cruzadístico tanto político
quanto místico, a influência oriental nos modos, o exemplum cristão.
Palamedes seria um cavaleiro exemplar precisamente por sua postura de não
pertencimento, ao que Maingueneau chama paratopia.
É importante esclarecer que o tratamento dado a Palamedes neste trabalho,
por mais que pareça fechado em si, não se trata de exercício hermenêutico;
não procuramos por uma resposta única. Pelo contrário: cada uma das
reflexões aqui presentes deriva de um questionamento único. Pesquisar o
personagem significou descortinar uma série de novas questões e adaptar
diferentes pontos de vista que se provaram, aos nossos olhos, congruentes em
pelo menos um caminho. Por esse caminho esperamos ter respondido a
algumas daquelas questões, e sinalizado, nas várias bifurcações que se nos
apresentaram ao longo de nossa busca, sendas mais seguras para novas
demandas.
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