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O CADERNO DE MAYA

O Caderno de maya - Trecho

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O novo romance de Isabel Allende, O Caderno de Maya, diferentemente de seus tradicionais romances, é passado nos dias atuais. Apresenta a trama de uma garota americana de 19 anos que encontrou refúgio em uma ilha remota da costa do Chile, depois de cair em uma vida de drogas, crime e prostituição.

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Da autora:

Afrodite: Contos, Receitas e Outros AfrodisíacosCartas a Paula

A Casa dos EspíritosContos de Eva Luna

De Amor e de SombraEva Luna

Filha da FortunaA Ilha sob o Mar

Inés da Minha AlmaMeu País Inventado

PaulaO Plano InfinitoRetrato em SépiaA Soma dos Dias

Zorro

As Aventuras da Águia e do Jaguar

A Cidade das Feras (Vol. 1)O Reino do Dragão de Ouro (Vol. 2)

A Floresta dos Pigmeus (Vol. 3)

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IsAbEl AllENDE

O CADERNO DE MAYA

1a. edição

traduçãoErnani Ssó

Rio de Janeiro2011

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VERÃO

Janeiro, fevereiro, março

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Uma semana atrás, minha avó me abraçou sem lágrimas no aeroporto de São Francisco e repetiu para mim que, se dou

o mínimo de valor à minha vida, não deveria me comunicar com nenhum conhecido até que tivéssemos certeza de que os meus ini-migos já não estão mais à minha procura. Minha Nini é paranoica, como qualquer habitante da República Popular Independente de Berkeley, todos perseguidos pelo governo e por extraterrestres, mas no meu caso não estava exagerando: todo cuidado é pouco. Entregou-me um caderno de cem folhas para eu registrar um diário da minha vida, como fizera dos oito aos quinze anos, quando o des-tino sofreu uma guinada.

— Você vai ter tempo de sobra para se entediar, Maya. Aproveite para escrever as enormes burradas que você fez, para ver se aprende — disse ela.

Tenho diversos diários, lacrados com fita adesiva industrial, que meu avô guardava a sete chaves em sua escrivaninha e que agora minha Nini deixa numa caixa de sapatos embaixo da cama. Este seria o meu caderno de número 9. Minha Nini acha que eles vão me ajudar quando eu fizer análise, porque contêm a chave para desatar os nós da minha personalidade; porém, se os tivesse lido, saberia que estão

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cheios de historinhas capazes de despistar o próprio Freud. Em geral, minha avó desconfia dos profissionais que ganham por hora, já que resultados rápidos não lhes convêm. Mas abre uma exceção para os psiquiatras, porque um deles a salvou da depressão e das armadilhas da magia, quando deu para se comunicar com os mortos.

Coloquei o caderno na minha mochila, para não ofendê-la, sem a intenção de usá-lo, mas o fato é que aqui o tempo se arrasta e escrever é um modo de ocupar as horas. Esta primeira semana de exílio foi longa para mim — estou numa ilhota quase invisível no mapa, em plena Idade Média. Acho complicado escrever sobre a minha vida, porque não sei quanto é lembrança e quanto é fruto da minha ima-ginação; a verdade nua e crua pode ser tediosa, por isso, sem mesmo me dar conta, eu a mudo e a exagero, mas me dispus a corrigir esse defeito e mentir o menos possível no futuro. É o que venho fazendo agora, escrevendo a mão, quando até os ianomâmis da Amazônia usam computadores. Demoro, e minha escrita mais parece cirílico, porque nem eu mesma consigo entendê-la, mas espero que vá melhorando a cada página. Escrever é como andar de bicicleta: a gente não esquece, mesmo que fique anos sem praticar. Tento avançar em ordem crono-lógica, já que alguma ordem é necessária, e achei que assim seria fácil, mas perco o fio da meada, entro em atalhos ou me lembro de algo im-portante várias páginas depois, sem ter mais como mencionar. Minha memória anda em círculos, espirais e saltos de trapezista.

Sou Maya Vidal, dezenove anos, sexo feminino, solteira, sem namo-rado — por falta de oportunidade, e não por frescura —, nascida em Berkeley, Califórnia, passaporte norte-americano, temporariamente

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refugiada numa ilha ao sul do mundo. Me chamaram de Maya porque minha Nini é fascinada pela Índia e não ocorreu outro nome a meus pais, mesmo tendo tido nove meses para pensar. Em hindi, maya signi-fica “feitiço, ilusão, sonho”. Nada a ver com o meu temperamento. Átila me cairia melhor, porque onde boto os pés não nasce mais pasto.

Minha história começa no Chile com a minha avó, a minha Nini, muito antes de eu nascer, porque, se ela não tivesse imigrado, não teria se apaixonado pelo meu Popo nem teria se instalado na Califórnia, meu pai não teria conhecido minha mãe e eu não seria eu, mas uma jovem chilena muito diferente. Como sou? Tenho um metro e oitenta, cinquenta e oito quilos quando jogo futebol e vários outros se me des-cuido, pernas musculosas, mãos desajeitadas, olhos azuis ou acinzen-tados, conforme a hora do dia, e acho que sou loura, embora não tenha certeza, já que não vejo meu cabelo natural há muitos anos. Não herdei a aparência exótica da minha avó, com sua pele azeitonada e aquelas olheiras escuras que lhe dão um ar depravado, nem do meu pai, tão bonito e tão vaidoso quanto um toureiro; também não me pareço com meu avô — meu magnífico Popo — porque infelizmente não é meu antepassado biológico, mas o segundo marido da minha Nini.

Pareço-me com minha mãe, pelo menos no tamanho e na cor. Não era uma princesa da Lapônia, como eu pensava antes de co-meçar a fazer uso da razão, mas uma aeromoça dinamarquesa por quem meu pai, piloto comercial, se apaixonou no ar. Ele era jovem demais para casar, mas enfiou na cabeça que aquela era a mulher da sua vida e, teimoso, a perseguiu até ela ceder por cansaço. Ou talvez porque estivesse grávida. O fato é que se casaram e se arrependeram em menos de uma semana, mas permaneceram juntos até eu nascer. Dias depois do meu nascimento, enquanto seu marido voava, minha

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mãe fez as malas, me enrolou num cobertorzinho e foi de táxi visitar seus sogros. Minha Nini andava em São Francisco protestando contra a Guerra do Golfo, mas meu Popo estava em casa e recebeu a trouxa que ela lhe entregou sem muitas explicações, antes de correr para o táxi que a esperava. A neta era tão pequena que cabia numa só mão dele. Pouco tempo depois, a dinamarquesa mandou a papelada do di-vórcio pelo correio e, de quebra, a renúncia à guarda da filha. Minha mãe se chama Marta Otter, e a conheci no verão dos meus oito anos, quando meus avós me levaram à Dinamarca.

Estou no Chile, país de minha avó Nidia Vidal, onde o mar come a terra aos pouquinhos e o continente sul-americano se desmancha em ilhas. Para ser mais precisa: estou em Chiloé, parte da Região dos Lagos, entre o paralelo 41 e o 43, latitude sul, um arquipélago de mais ou menos nove mil quilômetros quadrados de superfície e uns duzentos mil habitantes, todos mais baixos que eu. Em mapuche, a língua dos indígenas da região, Chiloé significa terra de cáhuiles, umas gaivotas gritalhonas de cabeça preta, mas devia se chamar terra de madeira e batatas. Além da Ilha Grande, onde se encontram as cidades mais populosas, existem muitas ilhas pequenas, várias delas desabitadas. Algumas estão agrupadas de três em três ou de quatro em quatro e tão próximas umas das outras que, na maré baixa, se unem por terra, mas eu não tive a sorte de parar numa dessas: vivo a quarenta e cinco minutos, de lancha a motor e com mar calmo, do povoado mais próximo.

Minha viagem do norte da Califórnia até Chiloé começou no nobre Volkswagen amarelo da minha avó, que sofreu dezessete batidas

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desde 1999, mas corre como uma Ferrari. Saí em pleno inverno, num desses dias de vento e chuva em que a baía de São Francisco perde as cores e a paisagem parece desenhada a bico de pena, branco, preto, cinza. Minha avó dirigia à sua maneira, aos trancos, agarrada ao vo-lante como a um salva-vidas, com os olhos em mim, mais do que no caminho, concentrada em me passar as últimas instruções. Ainda não havia me explicado para onde exatamente ia me mandar; Chile era tudo o que tinha dito ao traçar o plano que me faria desaparecer. No carro, revelou-me os pormenores e me entregou um guia turístico de edição barata.

— Chiloé? Que lugar é esse? — perguntei.— Aí tem toda a informação necessária — disse, apontando o

guia.— Parece muito longe...— Quanto mais longe, melhor. Tenho um amigo em Chiloé,

Manuel Arias, a única pessoa neste mundo, fora Mike O’Kelly, a quem eu ousaria pedir para esconder você por um ou dois anos.

— Um ou dois anos! Está maluca, Nini!— Olhe, menina, há momentos em que a gente não tem nenhum

controle sobre a própria vida, as coisas simplesmente acontecem. Este é um desses momentos — anunciou com o nariz grudado no para-brisa, tentando se situar, enquanto andávamos às cegas pelo emara-nhado de autoestradas.

Chegamos apressadas ao aeroporto e nos separamos sem senti-mentalismos; a última imagem que guardo dela é o Volkswagen afas-tando-se aos trancos e barrancos na chuva.

Viajei durante várias horas até Dallas, espremida entre a jane-linha e uma gorda que cheirava a amendoim torrado, e depois dez

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horas em outro avião até Santiago, acordada e com fome, lembrando, pensando e lendo o guia sobre Chiloé, que exaltava as virtudes da paisagem, as igrejas de madeira e a vida rural. Fiquei aterrorizada. O dia 2 de janeiro de 2009 amanhecia com um céu alaranjado sobre as montanhas lilases dos Andes, definitivas, eternas, imensas, quando a voz do piloto anunciou a aterrissagem. Logo apareceu um vale ver-dejante, fileiras de árvores, terrenos cultivados e, ao longe, Santiago, onde nasceram minha avó e meu pai e onde jaz um pedaço misterioso da história da minha família.

Sei muito pouco sobre o passado da minha avó, raras vezes mencio-nado por ela, como se sua vida tivesse começado quando conheceu meu Popo. Seu primeiro marido, Felipe Vidal, morreu no Chile, em 1974, alguns meses depois do golpe militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende e instaurou uma ditadura no país. Quando enviuvou, ela decidiu que não queria viver sob um regime de opressão e migrou para o Canadá com seu filho, Andrés, meu pai. Ele não pôde acrescentar grande coisa ao relato, porque se lembra pouco de sua infância, mas ainda venera o pai, de quem restaram apenas três fotografias.

— Não vamos mais voltar, não é? — comentou Andrés, no avião que os levava ao Canadá.

Não era uma pergunta, mas uma acusação. Tinha nove anos, havia amadurecido de repente nos últimos meses e queria expli-cações, porque se dava conta de que sua mãe tentava protegê-lo com mentiras e meias verdades. Tinha aceitado bem a notícia do súbito

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infarto do pai, enterrado sem que ele tivesse podido ver o corpo e se despedir. Pouco depois foi parar num avião rumo ao Canadá.

— Claro que vamos voltar, Andrés — garantiu sua mãe.Mas ele não acreditou.Em Toronto, foram recebidos por voluntários do Comitê de

Refugiados, que arranjaram para eles roupas adequadas ao frio e os instalaram num apartamento mobiliado, com camas feitas e geladeira cheia. Nos três primeiros dias, enquanto duraram os suprimentos, mãe e filho ficaram trancados, tiritando de solidão, mas no quarto apareceu uma assistente social fluente em espanhol que os informou dos benefícios e direitos de todo habitante do Canadá. Antes de mais nada, receberam aulas intensivas de inglês, e o menino foi matricu-lado na escola; logo em seguida, Nidia conseguiu um emprego de mo-torista para evitar a humilhação de receber do Estado esmola por não trabalhar. Era o emprego menos apropriado para a minha Nini, que, se dirige mal hoje, imagine naqueles dias.

O curto outono canadense deu passagem a um inverno polar, sensacional para Andrés, agora chamado Andy, que descobriu a feli-cidade de patinar no gelo e esquiar, mas insuportável para Nidia, que não conseguia se aquecer nem superar a tristeza de ter perdido seu marido e seu país. Seu humor não melhorou com a chegada de uma primavera vacilante, nem com as flores, que surgiram da noite para o dia como uma miragem, onde antes só havia neve dura. Ela se sentia sem raízes e mantinha a mala pronta, esperando a oportunidade de voltar ao Chile assim que a ditadura terminasse, sem imaginar que esta duraria dezesseis anos.

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Nidia Vidal permaneceu em Toronto por uns dois anos, contando os dias e as horas, até que conheceu Paul Ditson II, meu Popo, um pro-fessor da Universidade da Califórnia em Berkeley, que estava em Toronto para proferir uma série de conferências sobre um planeta muito arisco, cuja existência ele tentava provar mediante cálculos poéticos e saltos de imaginação. Meu Popo era um dos poucos as-trônomos afro-americanos numa profissão de esmagadora maioria branca, uma eminência em seu campo e autor de vários livros. Quando jovem, havia passado um ano no lago Turkana, no Quênia, estudando os antigos megálitos da região, e desenvolveu a teoria, baseada em descobertas arqueológicas, de que essas colunas de basalto haviam sido observatórios astronômicos usados trezentos anos antes da era cristã para determinar o calendário lunar borana, ainda em uso entre os pastores da Etiópia e do Quênia. Na África, aprendeu a observar o céu sem preconceitos, e assim começaram suas suspeitas sobre a existência do planeta invisível, que depois procurou inutilmente no céu com os telescópios mais potentes.

A Universidade de Toronto o instalou numa suíte para acadê-micos visitantes e alugou para ele um carro numa agência; foi assim que coube a Nidia Vidal escoltá-lo durante sua estada. Ao saber que sua motorista era chilena, ele contou que estivera no observatório de La Silla, no Chile, que, no hemisfério sul, se veem constelações des-conhecidas no norte, como as galáxias Pequena Nuvem de Magalhães e Grande Nuvem de Magalhães, e que, em alguns lugares, as noites são tão limpas e o clima tão seco que são ideais para esquadrinhar o firmamento. Assim se descobriu que as galáxias se agrupam num desenho semelhante ao das teias de aranha.

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Por uma dessas coincidências novelescas, ele terminou sua visita ao Chile no mesmo dia de 1974 em que ela partiu com o filho para o Canadá. Cogitei que tivessem estado ao mesmo tempo no aeroporto, à espera de seus respectivos voos, sem se conhecerem, mas, segundo eles, isso não seria possível, pois ele teria notado aquela bela mulher e ela também o teria visto, porque um negro chamava a atenção no Chile da época, especialmente um tão alto e bonito como meu Popo.

Bastou uma manhã dirigindo por Toronto com seu passageiro no banco de trás para que Nidia compreendesse que ele possuía a rara combinação de uma mente brilhante com a fantasia de um so-nhador, carecendo por completo do bom-senso que ela afirmava possuir. Minha Nini não conseguiu me explicar como chegou a essa conclusão ao volante e em pleno trânsito, mas o fato é que acertou em cheio. O astrônomo vivia tão perdido quanto o planeta que pro-curava no céu; podia calcular, num piscar de olhos, o tempo que uma nave espacial leva para chegar à lua viajando a 28.286 quilômetros por hora, mas ficava perplexo diante de uma cafeteira elétrica. Ela não sentia o difuso adejar do amor havia anos, e esse homem, muito di-ferente dos outros que tinha conhecido em seus trinta e três anos, a intrigava e atraía.

Meu Popo, bastante assustado com a audácia das manobras de sua motorista, também sentia curiosidade pela mulher que se ocultava na-quele uniforme grande demais e naquele gorro de caçador de ursos. Não era homem que cedesse facilmente a impulsos sentimentais e, se por acaso lhe passara pela cabeça a ideia de seduzi-la, descartou-a na mesma hora por ser muito embaraçosa. Em compensação, minha Nini, que não tinha nada a perder, decidiu cruzar o caminho do astrônomo antes que ele terminasse suas conferências. Gostava de sua notável cor

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de mogno — queria vê-la por inteiro — e pressentia que ambos tinham muito em comum: ele, a astronomia, e ela, a astrologia, que, em sua opinião, eram quase a mesma coisa. Pensou que ambos tinham vindo de longe para se encontrar naquele ponto do globo e de seus destinos, porque assim estava escrito nas estrelas. Desde aquele tempo, minha Nini vivia grudada no horóscopo, mas não deixou tudo por conta do acaso. Antes de tomar a iniciativa de atacá-lo de surpresa, averiguou que era solteiro, de boa situação econômica, saudável e somente onze anos mais velho que ela, embora, à primeira vista, ela pudesse parecer sua filha, se fossem da mesma etnia. Anos depois, meu Popo confes-saria, rindo, que, se ela não o tivesse nocauteado no primeiro assalto, continuaria até hoje apaixonado pelas estrelas.

No segundo dia, o professor se sentou no banco da frente para ver melhor sua motorista, e ela deu várias voltas desnecessárias para lhe dar tempo de ser vista. Nessa mesma noite, depois de servir o jantar a seu filho e deitá-lo, Nidia tirou o uniforme, tomou banho, pintou os lábios e se apresentou diante de sua presa com o pretexto de lhe devolver uma pasta que havia ficado no carro, que poderia muito bem ter entregado na manhã seguinte. Nunca tinha tomado uma decisão amorosa tão atrevida. Chegou ao edifício desafiando um ventinho gelado, subiu até a suíte, benzeu-se em busca de coragem e bateu à porta. Eram onze e meia quando entrou definitivamente na vida de Paul Ditson II.

Minha Nini tinha vivido como uma reclusa em Toronto. À noite, sentia saudade do peso de uma mão masculina em sua cintura, mas preci-sava sobreviver e criar o filho num país onde sempre seria estrangeira; não sobrava tempo para devaneios românticos. A coragem com que

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