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OS CAMINHOS DA TRANSCULTURAÇÂO EM O OUTRO PÉ DA SEREIA Rodolfo José Alves de Mello 1 RESUMO: A obra do moçambicano Mia Couto traz consigo a marca da pós-modernidade. ermeado por !uestionamentos "s representaç#es atribu$das a seu continente e seu pa$s% o autor busca% traçando um camin&o singular% reconstruir literariamente essas imagens% em uma constante tens'o entre a tradiç'o e a modernidade. Com o ob(etivo de compreender esta tens'o em sua obra% lançaremos m'o do conceito de transculturaç'o narrativa% proposto  pelo uruguaio )ngel Rama% para observar a pro*imidade entre Couto e os autores latino- americanos no !ue diz respeito ao dese(o de encontrar o lugar dessas culturas% semel&antes nos processos de transformaç#es por !ue passaram. A obra escol&ida para esse estudo foi O outro pé da sereia% !ue apresenta as relaç#es atuais% em Moçambi!ue% entre a tradiç'o e o mundo globalizado. PALAVRAS-CHAVE:  Mia Couto% transculturaç'o narrativa% literatura moçambicana RESUMEN: +a obra del mozambi!ue,o Mia Couto trae la marca de la pos modernidad. Abarcado por cuestiones a las representaciones relacionadas a su continente su pa$s% el autor busca% percuriendo un camino singular% reconstrue literariamente esas imgenes% en una constante tensión ente la tradición la modernidad. Con el ob(etivo de comprender esta tensión en su obra% vamos a mirar el concepto de transculturación narrativa% presentado por )ngel Rama% para mirar la pro*imidad entre Couto los autores latino americanos a lo !ue forma parte al deseo de encontrar el sitio de esas culturas% seme(antes en los procesos de cambios !ue sufrieron. +a obra elegida para ese estudio fue  El otro pie de la sirena% !ue  presenta las relaciones actuales en Mozambi!ue el mundo globalizado. PALABRAS CLAV ES: Mia Couto% transculturación narrativa% literatura mozambi!ue,a /ou um escritor africano% branco e de l$ngua portuguesa. or!ue o idioma estabelece o meu ter rit óri o pre ferencial de mes tiç age m% o lugar de reinvenç'o de mim. 0ecessito inscrever na l$ngua do meu lado portugus a marca da min&a individualidade africana. 0ecessito tecer um tec ido afric ano % mas só sei fazer usa ndo  panos e lin&as europ eias. Mia Couto 1  Aluno do curso de 2specializaç'o em +iteratura da 3niversidade de 4aubaté . rodolfopinda5bol.com.br 

o Caminho Da Transculturação Em O Outro Pé Da Sereia

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OS CAMINHOS DA TRANSCULTURAÇÂO EM O OUTRO PÉ DA SEREIA

Rodolfo José Alves de Mello1

RESUMO: A obra do moçambicano Mia Couto traz consigo a marca da pós-modernidade.ermeado por !uestionamentos "s representaç#es atribu$das a seu continente e seu pa$s% oautor busca% traçando um camin&o singular% reconstruir literariamente essas imagens% emuma constante tens'o entre a tradiç'o e a modernidade. Com o ob(etivo de compreender esta tens'o em sua obra% lançaremos m'o do conceito de transculturaç'o narrativa% proposto pelo uruguaio )ngel Rama% para observar a pro*imidade entre Couto e os autores latino-americanos no !ue diz respeito ao dese(o de encontrar o lugar dessas culturas% semel&antesnos processos de transformaç#es por !ue passaram. A obra escol&ida para esse estudo foi Ooutro pé da sereia% !ue apresenta as relaç#es atuais% em Moçambi!ue% entre a tradiç'o e omundo globalizado.

PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto% transculturaç'o narrativa% literatura moçambicana

RESUMEN: +a obra del mozambi!ue,o Mia Couto trae la marca de la pos modernidad.Abarcado por cuestiones a las representaciones relacionadas a su continente su pa$s% elautor busca% percuriendo un camino singular% reconstrue literariamente esas imgenes% enuna constante tensión ente la tradición la modernidad. Con el ob(etivo de comprender estatensión en su obra% vamos a mirar el concepto de transculturación narrativa% presentado por )ngel Rama% para mirar la pro*imidad entre Couto los autores latino americanos a lo !ueforma parte al deseo de encontrar el sitio de esas culturas% seme(antes en los procesos decambios !ue sufrieron. +a obra elegida para ese estudio fue  El otro pie de la sirena% !ue presenta las relaciones actuales en Mozambi!ue el mundo globalizado.

PALABRAS CLAVES: Mia Couto% transculturación narrativa% literatura mozambi!ue,a

/ou um escritor africano% branco e de

l$ngua portuguesa. or!ue o idioma estabelece o

meu território preferencial de mestiçagem% o

lugar de reinvenç'o de mim. 0ecessito inscrever 

na l$ngua do meu lado portugus a marca damin&a individualidade africana. 0ecessito tecer 

um tecido africano% mas só sei fazer usando

 panos e lin&as europeias.

Mia Couto

1 Aluno do curso de 2specializaç'o em +iteratura da 3niversidade de 4aubaté. rodolfopinda5bol.com.br 

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6ncrédula% M7adia &esitava entre falar 

em portugus ou si-nung7ué. ara ela% na!uele

momento% toda l$ngua era estrangeira.

Mia Couto% O outro pé da sereia

8uando pensamos nas literaturas africanas oriundas de pa$ses cu(a l$ngua oficial é a

 portuguesa% encontramo-nos sob o risco de incorrer para uma avaliaç'o superficial% !ue

aponta para a concepç'o da!uelas como um prolongamento da literatura portuguesa ou

mesmo da literatura brasileira% muito difundida em )frica. 2sta percepç'o% entretanto%

mostra-se infundada " medida !ue se toma contato com obras de autores africanos. /e &

um ponto de convergncia óbvio entre essas literaturas% suas especificidades apontam para

camin&os distintos. 0este sentido% v-se fre!uentemente a anlise das literaturas dos pa$ses

africanos de colonizaç'o portuguesa em comparaç'o com a portuguesa e a brasileira% numa

 busca de pontos de apro*imaç'o e afastamento. 0este trabal&o% para além destas !uest#es%

 pretendemos avaliar a relaç'o destas literaturas 9 mais especificamente a moçambicana%

 pela obra do escritor Mia Couto 9 em conson:ncia com as observaç#es de Maria Aparecida

/antilli% !ue prop#e a adoç'o de um ;:ngulo desfocado do tema <dependncia e

individualidade= >...? deslocando o ponto de interesse para a apropriaç'o de motivos@

/A046++6% 1BD% p. % aspas da autoraE% buscando na obra O outro pé da sereia FGGHE%

elementos !ue confirmem o interesse pela ruptura com as representaç#es comumente

atribu$das a seu pa$s% Moçambi!ue% e a partida para um camin&o pessoal% buscando a

compreens'o mais ampla do ser moçambicano.

ara compreender este percurso% tanto de assimilaç'o como de resistncia%

lançaremos m'o do conceito de transculturaç'o narrativa proposto por Angel Rama 1BFE

!ue% embora em sua proposiç'o inicial este(a dirigido a escritores latino-americanos%

mantém ligaç'o estreita com as literaturas !ue representam o recon&ecimento do processo

de &ibridizaç'o por !ue passaram suas culturas. 0'o pretendemos apenas aplicar oconceito " obra% como mera verificaç'o de sua validade% mas buscamos compreender de

!ue maneira a elaboraç'o de te*tos !ue superaram um regionalismo mais estrito

 possibilitaram a criaç'o de obras !ue capitulam a essncia &$brida das culturas em !ue se

inserem.

F

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A obra do moçambicano Mia Couto est inserida num conte*to pós-colonial.

4omamos o termo pós-colonial n'o apenas pelo fato de sua produç'o literria ter in$cio na

década de 1BG% após a independncia pol$tica de Moçambi!ue% con!uistada em 1BID% mas

 pautando-nos no pensamento de raser FGGGE% citado por Carbonieri FGGEK

 

L cr$tico Robert raser FGGGE define como pós-coloniais todasa!uelas literaturas !ue surgem em pa$ses !ue passaram e foram além dasentença ou (ulgo da colonizaç'o. /egundo ele% essas literaturas passariam% sobretudo no !ue se refere " prosa de ficç'o% por seis estgios%compostos principalmente por 1E narrativas pré-coloniais% orais ouescritas% !ue constituem a &erança literria de um povo e !ue acabamsendo retomadas e transformadas em estgios posteriores FE narrativasimperiais ou coloniais% escritas durante a sub(ugaç'o pol$tica estrangeira e%de modo geral% em cumplicidade com ela NE narrativas de resistncia% produzidas durante o per$odo imediatamente anterior " independncia

com o intuito de libertar a imaginaç'o nativa das limitaç#es impostas pelocerceamento cultural e ideológico do imperialismo OE narrativas deconstruç'o da naç'o% proeminentes no momento !ue se segue "independncia% escritas com o ob(etivo de e*plorar a nova conscinciacoletiva nacional% sendo marcadas por um sentimento de euforia econfiança no futuro DE narrativas de dissidncia interna% caracter$sticasdos anos logo após a independncia% com a investigaç'o do papel daselites governantes nos problemas da (ovem naç'o e com uma fortedesilus'o a substituir a!uela esperança inicial% ( !ue a emancipaç'o pol$tica n'o trou*e% em grande medida% a liberdade dese(ada e%finalmente% HE narrativas transculturais% em !ue a idéia da naç'o como um ponto de referncia para a criatividade do autor se dissolve% sendo

substitu$da por noç#es de identidade e coletividade mais comple*as. Aoinvés de restringir o termo pós-colonial a alguns desses estgios% raser considera !ue ele se refere ao próprio processo de se via(ar por todos elessucessivamente% sendo observado a partir de um ponto vanta(oso situadono presente. RA/2R% FGGG. p. -B apud CARPL062R6% FGG. p. E.

Assim% o dese(o do autor de buscar camin&os para sua literatura de modo a romper 

com as representaç#es atribu$das a seu pa$s% tratando a busca da alteridade em sua obra

como meio e n'o fim% sem pautar-se em modelos r$gidos de valorizaç'o da cultura local%

mas num percurso pessoal de refle*'o e criaç'o literria bastante individual% é aspecto

fundamental na percepç'o de sua obra como indelevelmente inserida num conte*to de pós-

modernidade.

A obra do autor% ( bastante e*tensa% apresenta algumas marcas recorrentes. L dese(o

de problematizar a organizaç'o social moçambicana é latente. /egundo onseca e MoreiraK

N

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 0as narrativas de Mia Couto c&ama a atenç'o o motivo comum!ue atravessa sua escritaK a profunda crise econQmica e cultural !ueacompan&a o !uotidiano da sociedade moçambicana% durante e depois daguerra civil% ou se(a% após a independncia nacional. /uas obras problematizam a instabilidade na !ual est mergul&ado o povomoçambicano% a corrupç'o em todos os n$veis do poder% as in(ustiças

como conse!ncia de um racismo étnico% a subservincia perante oestrangeiro% a perple*idade face "s rpidas mudanças sociais% odesrespeito pelos valores tradicionais% a despersonalizaç'o% a miséria.L0/2CA MLR26RA% FGGI% p.NNE

2stes temas% no entanto% n'o s'o apresentados sob uma ótica ocidental% por um

narrador e*terno !ue se limita a avaliar o caso moçambicano% mas aparecem sob uma ótica

 própria% por um autor !ue% letrado% tem con&ecimento da cultura e tradiç'o grafas de seu

 pa$s e transita entre estes mundos de modo a fazer emergir uma nova percepç'o dessarealidade. A partir desta refle*'o é !ue atestamos a validade de pensarmos o conceito de

transculturaç'o narrativa aplicado " narrativa coutiana.

L conceito de transculturaç'o foi empregado% inicialmente% por ernando Lrtiz% em

1BOG% para !uestionar o conceito de aculturaç'o para tratar das relaç#es culturais na

América. /egundo LrtizK

2ntendemos !ue el vocablo transculturación e*presa me(or las

diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra% por!ue éste noconsiste solamente en ad!uirir una cultura% !ue es lo !ue a rigor indica lavoz angloamericana aculturación% sino !ue el proceso implica tambiénnecesariamente la pérdida o el desarraigo de una cultura precedente% lo!ue pudiera decirse una parcial desculturación% % adems% significa laconsiguiente creación de nuevos fenómenos culturales !ue pudierandenominarse neoculturación. LR46S% 1BOG. Apud. RAMA% 1BF p. NFE

4omando por base esse pensamento% de !ue na relaç'o entre duas culturas n'o & a

 perda definitiva de uma delas pela imposiç'o de outra% mas o surgimento de uma cultura

&$brida% Rama propQs a transposiç'o desse conceito para o campo da cr$tica literria%

avaliando autores !ue buscaram em suas obras apresentar n'o um conte*to regional isento

da influncia e*terna% numa tentativa de construir uma narrativa !ue% pela apresentaç'o de

um narrador culto% retratasse uma realidade primitiva% mas ocuparam-se de produzir obras

O

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!ue abordassem esse comple*o processo !ue se d no interior dessas culturas. Como afirma

o autorK

Como son dos los procesos transculturadores !ue se registran al

mismo tiempo uno entre las metrópolis e*ternas las urbeslatinoamericanas otro entre éstas sus regiones internasE ser$a elsegundo el !ue &abr$a de proporcionar las maores garant$as de unaconstrucción con ms notas diferenciales% adems espec$ficamenteamericanas% en a!uellos casos en !ue por obra de la ;plasticidad cultural@se consiguiera integrar dentro de las estructuras propias rearticuladas% lasincitaciones modernizadoras !ue las ciudades &abr$an mediatizado.RAMA% 1BF. p F1GE

L conceito de ;plasticidade cultural@ é fundamental para entender o processo por 

!ue passam esses autores% na medida em !ue suas obras reproduzem a capacidade das

culturas latino-americanas de adaptarem-se a outras.

Tentre os autores transculturadores citados por Rama% grande desta!ue se d para o

 brasileiro Jo'o Uuimar'es Rosa% pela recriaç'o literria feita pelo autor do sert'o brasileiro.

A!ui temos um ponto importanteK é notório o dilogo desse e outros autores brasileiros do

século VV com os autores africanos% visto !ue a cultura brasileira% de modo geral%

influenciou o pensamento pós-moderno dos pa$ses africanos CWAX2/% FGGD% p. FIHE.

osta essa consideraç'o% ressaltamos a apro*imaç'o entre Uuimar'es Rosa e Mia Couto% (apresentada por teóricos como C&agas FGGHE% para compreender o percurso transculturador 

do escritor africano.

/egundo Rama apud AU36AR XA/CL0C2++L/% FGG1% p.11-1FE a

transculturaç'o ocorre em trs n$veisK o da l$ngua% !ue resgata a linguagem regional%

criando uma linguagem literria peculiar o da estrutura narrativa% !ue rompe com o modelo

tradicional% adaptando-se "s circunstancias contempor:neas e o n$vel da cosmovis'o% no

!ual se produz a renovaç'o dos mitos% capazes de interpretar os traços culturais da América

+atina.

Y a partir destes n$veis de transculturaç'o !ue abordaremos a narrativa de Mia

Couto.

A obra O outro pé da sereia FGGHE apresenta duas narrativas paralelas 9 uma !ue se

 passa no espaço atual% mais especificamente em FGGF% e outra relacionada a um fato

D

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&istórico% em 1DHG 9 !ue acabam por entrecruzar-se pela personagem M7adia. A narrativa

dos tempos atuais relata a partida de M7adia para o povoado em !ue crescera% Xila +onge%

no intuito de encontrar um local ade!uado para depositar uma imagem de 0ossa /en&ora

com apenas uma perna% encontrada por seu marido% Sero Madzero% o reencontro da moça

com a vida !ue dei*ara para trs para viver num local isolado com seu marido e a c&egada "

vila de um casal de americanos% membros de uma L0U% dese(osos de con&ecer a ;)frica

verdadeira@. A outra narrativa baseia-se em uma incurs'o missionria portuguesa% ocorrida

em 1DHG% comandada por T. Uonçalo da /ilveira% para a cate!uizaç'o dos africanos em

terras moçambicanas.

 0a obra% vemos vrias das marcas de Mia Couto% especialmente no !ue diz respeito

ao valor da tradiç'o na cultura moçambicana. 0egando a simplificaç'o geralmente

atribu$da " cultura africana% atribuindo-l&e um carter primitivista% o autor prop#e umaavaliaç'o do conte*to em !ue se insere a Moçambi!ue atual% com todas as tens#es

ocasionadas pelo encontro entre o mundo globalizado e a populaç'o ligada a um modelo de

vida mais rudimentar. L próprio autor ( comentou o dese(o de romper com certas

representaç#es atribu$das ao continente africanoK

Lutro lugar-comum nesses e*erc$cios de dar rosto ao continente africanoé o peso concedido " tradiç'o. Como se outros povos% nos outros

continentes% n'o tivessem tradiç#es% como se o passado% nesses outroslugares% n'o marcasse o passo presente% os africanos tornam-se% assim%facilmente e*plicveis. Pasta invocar raz#es antropológicas% étnicas ouetnogrficas. Ls outros% europeus ou americanos s'o entidades comple*as%reservatório de relaç#es sociais% &istóricas% econQmicas e familiares.CL34L% FGGD apud W2R0A0T2/% FGGD% p. 1FE

Y constante na obra a tens'o entre passado e presente% n'o só pelo momento

&istórico em !ue se situam as narrativas !ue a constituem% mas pelo confrontamento entre

tradiç'o e modernidade. +ogo no in$cio da obra% percebemos esta !uest'o% !uando Sero

Madzero% depois de pensar !ue estava tornando-se Teus% policia-seK ;Arrependeu-se da

ousadia do pensamento. 0a igre(a l&e ensinaram !ue Teus só é se é Znico% mais !ue Znico.

2le !ue apagasse a multid'o de deuses familiares% essas divindades africanas !ue teimavam

em l&e povoar a cabeça.@ CL34L% FGGH% p.1HE.

H

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 0este aspecto% temos uma clara apro*imaç'o da obra aos conceitos postulados por 

Rama% !ue% sobre a tradiç'o% afirmaK

L componente tradiç'o% !ue é um dos traços obrigatórios de todadefiniç'o de cultura% era realçado pelo regionalismo% embora com evidentees!uecimento das modificaç#es !ue progressivamente ( vin&am sendoimpressas na bagagem tradicional anterior. 4endia% portanto% a e*pandir nas e*press#es literrias uma fórmula &istoricamente cristalizada datradiç'o RAMA% FGG1% p.FDNE

ensando nos trs n$veis de transculturaç'o narrativa propostos por Rama% podemos

verificar a apro*imaç'o entre obra e conceito% na medida em !ue Couto busca o mesmo !ue

os trasculturadores latino-americanosK romper com um regionalismo arcaizante e produzir 

novos significados.

 0o !ue tange " linguagem% o romance tem aspectos bastante relevantes. 0'o & o

dese(o da mera reproduç'o da linguagem local. ersonagens e narrador compartil&am da

mesma linguagem% simples% com o ritmo da oralidade% com diversos neologismos e

construç#es inusitadas% lançando m'o de variados recursos estil$sticos para a criaç'o de

novos efeitos CAXACA/% 1BBB% p.1BE. 0esse aspecto de recriaç'o lingu$stica% a

 personagem Jesustino tem destacado papel. adrasto de M7adia% fre!uentemente lança m'o

de construç#es em !ue & trocas de s$labas em e*press#es idiomticas% modificando-l&es o

sentido e criando efeito de &umor ;na escalada da noite@ CL34L% FGGH% p.HBE% ;n'o ten&o

onde cair torto@ CL34L% FGGH% p.B1E% ;vai de animal a pior@ CL34L% FGGH% p.B1E% ;n'o

!uero ser um manc&a prazeres@ CL34L% FGGH% p.1NNE. 2sta linguagem artificial% criativa%

marca do autor% é também caracter$stica dos transculturadores latino-americanos. /obre o

tema% afirmam Aguiar e XasconcellosK

2m resumo% é o autor !ue se reintegra na própria comunidadeling$stica% falando a partir dela% com uso desembaraçado de seus recursos

idiomticos. Como% no caso concreto dos transculturadores% essacomunidade é do tipo rural% >...? é a partir de seu sistema ling$stico !uetrabal&a o escritor !ue n'o procura imitar de fora uma fala regional% massim elabor-la de dentro com finalidades literrias. AU36ARXA/CL0/2++L/% FGG1% p. FFE

I

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 0o plano da estrutura narrativa% o romance também mostra caracter$sticas

 peculiares% a começar pelo constante deslocamento temporal entre as narrativas !ue

comp#em o livro 9 ora estamos em 1DHG% ora em FGGF. Além desse fato% o tom de relato

oral das narrativas mergul&am-na num universo africano% onde n'o & limites entre real e

sobrenatural. L insólito convive com os fatos cotidianos sem !ue &a(a !uestionamentos.

+ogo na primeira pgina do livro% M7adia% diante do marido% pergunta-l&eK ;Meu marido%

me confesse% voc ( morreu[@ CL34L% FGGH% p.11E 2sta &ipótese% levantada sem !ue

&ouvesse por parte das personagens nen&um tipo de estran&amento% acaba por ser 

confirmada ao final% mostra o modo como o ser africano povoa a obra% reproduzindo a

maneira como o imaginrio e o real convivem nestas sociedades sem nen&um

!uestionamento.

 0o plano da cosmovis'o% vemos emergir a !uest'o da alteridade. A partir daconstruç'o da ideia do mito% vemos na narrativa de Mia Couto o surgimento de uma

identidade africana a partir das mZltiplas relaç#es culturais entre )frica e o a cultura

ocidental. 2sta !uest'o est centralizada na imagem presente nas duas narrativas da obraK a

imagem de 0ossa /en&ora% !ue é venerada pelos missionrios portugueses em )frica e !ue

é% ao mesmo tempo% \ianda% a deusa das guas% de !uem 0imi 0sundi% o escravo guardi'o

do fogo e intérprete na nau de T. Uonçalo da /ilveira% retira uma das pernas. 2ssa dupla

representaç'o é um dos elementos permeadores da obraK a estrela carregada por Sero

Madzero% no in$cio% da obra é também um satélite !ue caiu pró*imo a sua casa% o vel&o

+zaro Xivo é nanga% o curandeiro africano% e ao mesmo tempo o elemento de contato

 para L0Us% com seu celular no pescoço e falante fluente da l$ngua inglesa. 4oda a obra

retrata essa travessia da representaç'o de )frica para uma imagem atual% de identidade

fraturada. 0essa travessia% a personagem M7adia assume papel fundamental. /eu nome 9 

canoa% em si-n&ung7é 9 encarna seu papel na obra% o de unir esses ;dois mundos@.

/egundo Rama% o aspecto fundamental do escritor transculturador é sua &abilidade

de interligar o primitivo e o moderno% a cultura local " cultura universalK

2l ;rol@ del mediador es e!uiparable al del agente de contacto entrediversas culturas as$ estamos visualizando al novelista !ue llamamostransculturador% reconociendo sin embargo !ue ms all de sus dotes personales% actZa fuertemente sobre él la situación espec$fica en !ue seencuentra la cultura a la cual pertenece las pautas segZn las cuales semoderniza. RAMA% 1BF% p. 1GNE

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Tessa maneira% Mia Couto representa notoriamente o papel de transculturador%

como afirma Martin&o% ao tratar da !uest'o da artificialidade da linguagem do autorK

2ste dado >o da artificialidade da linguagem? é a nosso ver absolutamente central no debate sobre l$ngua e literatura em )fricaK adupla conscincia% por parte do autor% de !ue tem uma &erança atransmitir% e de !ue tem um pZblico africano e ocidental% é sintomtica danecessidade de mediar essa relaç'o por meio de um ve$culo !ue seapresente como n'o contraditório para !ual!uer dos mundos.MAR460WL% FGG1% p. N1IE

/e Mia Couto representa o transculturador% dentro da obra% esse papel cabe a

M7adia. Y ela !uem une os dois mundosK o africano% grafo% e o ocidental% letrado. 4oda

construç'o da personagem remete a essa dualidade. Ao mesmo tempo em !ue ela e o

marido e*ilam-se do conv$vio social em ;Antigamente@% nome dado pelo marido ao local

em !ue residiam por!ue ;antigamente tudo era mais ordenadoK o c&'o c&amava e as

sombras obedeciam. As rezas subiam% a c&uva descia. oi para reinstalar essa antiga ordem

!ue nomeara a!uela aridez@ CL34L% FGGH% p. NFE% num dese(o de imergir numa )frica

m$tica% a moça recebera educaç'o católica no Simbab7e CL34L% FGGH% p.NHE. 2la%

con&ecedora tanto da cultura africana !uanto da ocidental% transita entre esses dois mundos%unindo-os% cumprindo seu papel de canoa. 0um dialogo com o curandeiro +zaro Xivo% a

 personagem encarna essa dualidade% a busca de uma identidade ou a conscincia da

impossibilidade de se ter apenas umaE% !ue é do próprio autorK

+zaro segurou as m'os de M7adia% abençoando a virgem e dando-l&e asdevidas instruç#es ─ O barco está lá, na curva do rio. Lá dentro está o remo. ─ E, depois, onde guardo a canoa?

 ─ Não se preocupe, ela vem sozina de volt a.M7adia sorriu% sem esconder alguma desconfiança. L curandeiro enrugoua voz% realçando em tom de desagrado. ─ !oc" está a duvidar, comadre? ─ #ei$e Lázaro, Não me d" import%ncia. ─ &á muito 'ue 'uero dizer isto, ()adia (alunga*!oc" +icou muito tempo lá no seminário, perdeu o esprito das nossascoisas, nem parece uma a+ricana. ─ &á muitas maneiras de ser a+ricana.

B

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 ─ - preciso não es'uecer 'uem somos... ─ E 'uem somos, compadre Lázaro? uem somos? ─ !oc" não sabe CL34L% FGGH% p. OHE.

  +etrada% M7adia leu todos os te*tos &istóricos encontrados (unto da santa ac&ada

 pelo marido% passando a ter con&ecimento de toda a &istória da incurs'o de T. Uonçalo da

/ilveira% na long$n!ua Moçambi!ue de 1DGHGK o envolvimento da ama Tia \umari e 0imi

 0sundi% a morte deste escravo% a transformaç'o de &omem branco em negro por !ue passou

adre Manuel Antunes e% por fim% a misteriosa morte de T. Uonçalo. Te posse desse

con&ecimento% M7adia os traz para o povoado de Xila +onge% para satisfazer o dese(o de

seu tio Casuarino de enganar os americanos% e assim tirar-l&es mais din&eiro% e o dese(o do

 próprio americano Pe(amin /out&man% descendente de africanos% !ue dizia estar em busca

da ;)frica real@. ingindo-se em um transe% a moça recebia esp$ritos !ue relatavam os

episódios dos antepassados% sendo !ue ;a própria M7adia parecia ter gan&ado gosto pela

representaç'o teatral. 2la cumpria a vocaç'o do seu nomeK como canoa% estava ligando os

mundos.@ CL34L% p. FNHE Con&ecedora dos dois mundos% M7adia podia transitar entre

eles% apresentado a!uilo !ue l&e conviesse tanto ao americano !uanto aos próprios

africanos.

or fim% neste embate entre culturas% ela opta por voltar para Antigamente% mesmo

sabendo !ue o marido com !uem vive l est morto% (unto com a imagem da santa e% suasZltimas palavras dirigidas " imagem% en!uanto a (oga de volta a sua casa% o rio% sintetizam

toda sua tra(etóriaK ;Xoc ( foi santa. Agora% é sereia. Agora% é nzuzu@ CL34L% p. NIBE

A obra O outro pé da sereia apresenta aspectos !ue a apro*imam das narrativas

transculturadoras latino-americanas. 2ssa apro*imaç'o% longe de se dar apenas por !uest#es

estruturais% apresenta-se profundamente enraizada no dese(o de seus autores de produzirem

obras !ue ultrapassassem um regionalismo !ue nega a relaç'o de trocas culturais e busca

uma imagem cultural ultrapassada. Antes% os transculturadores latino-americanos e

africanos buscam a redefiniç'o do papel de suas obras num conte*to pós-moderno% de

identidades fragmentadas% !ue n'o correspondem a um modelo r$gido% mas !ue se adaptam

e se transformam na medida em !ue entram em contato com novas culturas.

L próprio Mia Couto posiciona-se nesse sentido% ao afirmar !ueK

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4ambém para mim a escrita só vale en!uanto tessitura%transculturaç'o e viagem cu(o destino n'o é outro sen'o a vontade de partir de novo. ertenço a uma naç'o em estado de ficç'o% cu(a identidadesó é encontrada na procura da sua própria imagem. 2ssa ausncia demoldura% esse retrato em movimento% esse idioma em flagrante criaç'oKtudo isso s'o os materiais da min&a inspiraç'o. CL34L% FGGH. Apud

MAR460/% FGGH% p. E

A imagem !ue Moçambi!ue procura de si e a viagem constante de Mia Couto fazem

eco na imagem de 0ossa /en&ora% \ianda e na viagem de M7adia% para encontrarem-se e

&abitarem livremente os mundos sem fronteira da literatura.

R22R]0C6A/ 

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CARPL062R6% Tivanize. L pós-colonialismo como processo e a literaturaafricana..leiade oz do 6guaçu% v. F% n. 1% p. I-D% (an^(un.% FGG

CAXACA/% ernanda.  (ia /outoK brincriaç'o vocabular. +isboaK Mar Além^6nstituto. Cam#es% 1BBB

CWAUA/% /ilvania 0Zbia. Nas +ronteiras da memóriaK Uuimar'es Rosa e Mia Couto%ol&ares !ue se cruzam. FGGH. 1H1 f. 4ese Toutorado em +etrasE 9 aculdade de ilosofia%+etras e Cincias Wumanas% 3niversidade de /'o aulo% /'o aulo.

CWAX2/% Rita. 0ngola e (o1ambi'ueK e*perincia colonial e territórios literrios. Cotia 9 /K Ateie2ditorial% FGGD.

CL34L% Mia. O outro pé da sereia. /'o auloK Compan&ia das +etras% FGGH.

CL34L% Mia. ;3m retrato sem moldura@. in W2R0A0T2S% +eila%  0 2+rica na sala de

aula. /'o auloK /elo 0egro% FGGD.

CL34L% Mia. refcio% FGGH in MAR460/% Celina. O entrela1ar das vozes mesti1asKanlise das poéticas da alteridade na ficç'o de Ydouard Ulissant e Mia Couto. 2storilKrincipia% FGGH.

L0/2CA% Maria 0azaret& /oares MLR26RA% 4erezin&a 4aborda. FGGI. 3anorama dasliteraturas a+ricanas de lngua portuguesa. Cadernos C2/3C de es!uisa% /érie 2nsaios%n. 1HK +iteraturas Africanas de +$ngua ortuguesa% Pelo Worizonte% set% p. 1N-HN.

MAR460WL% Ana Maria M'o-Te-erro FGG1E /%nones Literários e Educa1ão4 os casos

angolano e moçambicano% +isboa% undaç'o Calouste Uulben_ian

RAMA% Angel. 5ransculturación narrativa en 0mérica Latina. Mé*icoK /iglo VV6%1BF.

 ```````````` Literatura e cultura na 0mérica Latina. /'o auloK 2dusp% FGG1.

/A046++6% Maria Aparecida. 0+ricanidadeK contornos literrios. /'o auloK )tica% 1BD

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