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  1 O Cancioneiro da Ajuda e a questão dos géneros 1  Graça Videira Lopes O objectivo deste relatório é o de fazer uma reflexão sobre as composições recolhidas pelo Cancioneiro da Ajuda à luz da questão dos géneros trovadorescos. De facto, se é certo que o CA é um Cancioneiro de Amor, como o classifica, desde a primeira hora, D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, também é certo que algumas das composições nele incluídas podem ser consideradas, em maior ou menor grau, anómalas face aos padrões habituais do género, facto que D. Carolina, com a agudeza que lhe é habitual, não deixa, em geral, de assinalar nas suas notas. Assim, um exame das composições recolhidas no CA pode conduzir-nos a dois tipos de questões: primeiro, quais seriam, realmente, os padrões do género (ou dos géneros)? Segundo, quais teriam sido, na verdade, os critérios do compilador do códice da Ajuda? Questões que este relatório procurará discutir, chamando, portanto, os textos ao debate dos intrincados problemas que ainda hoje o Cancioneiro nos oferece. Para o fazer, terei que passar em revista algumas questões prévias, relativamente elementares, mas cujo esclarecimento me parece ser útil para este debate. Por questões metodológicas relacionadas com hábitos contemporâneos de leitura, gostaria, ainda previamente, de chamar a atenção para a necessidade de distinguirmos dois momentos no que toca à poesia galego-portuguesa: o primeiro o da produção das cantigas e da sua apresentação pública, o segundo, necessariamente posterior (e mesmo em muitos casos, ao que tudo indica, bastante posterior), o da sua compilação nas recolhas colectivas que são os cancioneiros. Como é óbvio, a questão dos géneros situa-se no primeiro momento, o da criação dos cantares pelos trovadores e  jograis da escola. É a esse momento que se refere a minha reflexão inicial sobre os géneros. De forma a tornar mais claro o que se segue, gostaria ainda de convocar, por momentos, alguns nomes da poesia contemporânea (ou mesmo pós-renascentista), em forma de referência contrastiva: que poderão ser, a título de exemplo, os de Pessoa, Lorca, Rosalía, ou mesmo os de Camões ou Shakespeare – ou ainda, se quiserem, noutro registo, os de José Afonso ou Caetano Veloso. As reflexões que se seguem partem daqui. 1  Comunicação apresentada ao Congresso internacional “O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois”, Santiago de Compostela, Maio de 2004 

O Cancioneiro da Ajuda e a questão dos géneros

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O Cancioneiro da Ajuda e a questão dos géneros1 

Graça Videira Lopes

O objectivo deste relatório é o de fazer uma reflexão sobre as composições

recolhidas pelo Cancioneiro da Ajuda à luz da questão dos géneros trovadorescos. De

facto, se é certo que o CA é um Cancioneiro de Amor, como o classifica, desde a

primeira hora, D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, também é certo que algumas das

composições nele incluídas podem ser consideradas, em maior ou menor grau, anómalas

face aos padrões habituais do género, facto que D. Carolina, com a agudeza que lhe é

habitual, não deixa, em geral, de assinalar nas suas notas. Assim, um exame das

composições recolhidas no CA pode conduzir-nos a dois tipos de questões: primeiro,

quais seriam, realmente, os padrões do género (ou dos géneros)? Segundo, quais teriam

sido, na verdade, os critérios do compilador do códice da Ajuda? Questões que este

relatório procurará discutir, chamando, portanto, os textos ao debate dos intrincados

problemas que ainda hoje o Cancioneiro nos oferece. Para o fazer, terei que passar em

revista algumas questões prévias, relativamente elementares, mas cujo esclarecimento

me parece ser útil para este debate.

Por questões metodológicas relacionadas com hábitos contemporâneos de

leitura, gostaria, ainda previamente, de chamar a atenção para a necessidade de

distinguirmos dois momentos no que toca à poesia galego-portuguesa: o primeiro o da

produção das cantigas e da sua apresentação pública, o segundo, necessariamente

posterior (e mesmo em muitos casos, ao que tudo indica, bastante posterior), o da sua

compilação nas recolhas colectivas que são os cancioneiros. Como é óbvio, a questão

dos géneros situa-se no primeiro momento, o da criação dos cantares pelos trovadores e

 jograis da escola. É a esse momento que se refere a minha reflexão inicial sobre os

géneros. De forma a tornar mais claro o que se segue, gostaria ainda de convocar, pormomentos, alguns nomes da poesia contemporânea (ou mesmo pós-renascentista), em

forma de referência contrastiva: que poderão ser, a título de exemplo, os de Pessoa,

Lorca, Rosalía, ou mesmo os de Camões ou Shakespeare – ou ainda, se quiserem,

noutro registo, os de José Afonso ou Caetano Veloso. As reflexões que se seguem

partem daqui.

1 Comunicação apresentada ao Congresso internacional “O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois”,

Santiago de Compostela, Maio de 2004 

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No horizonte literário romântico segundo o qual “o estilo é o homem”, a poesia

trovadoresca, nomeadamente a galego-portuguesa, só pode aparecer como

desconcertante. De facto, os três géneros maiores cultivados pelos poetas da escola

apresentam-se ao mesmo tempo como três universos de sentido não só independentes e

bem distintos entre si, como até por vezes aparentemente contraditórios, pelo menos

para um leitor actual. E a norma, tal como nos aparece na grande maioria dos poetas dos

Cancioneiros, parece ter sido, em termos gerais (mesmo não levando em conta as

cantigas desaparecidas), um trovador poder cantar simultaneamente a coita  pela sua

senhor   inatingível e imaterial, a iniciação ao amor dos corpos delicados e sensuais das

velidas  a quem dão voz e um quotidiano muito menos eufemístico, povoado de

soldadeiras ou abadessas condescendentes, homossexuais diversos ou infanções avaros.

Ou seja, a norma parece ter sido o exercício simultâneo pelos trovadores (e, talvez em

menor grau, pelos jograis) dos três géneros que definem a escola galego-portuguesa:

cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer. Para um leitor

contemporâneo que se inicia com alguma atenção neste mundo da poesia medieval (o

 jovem estudante, nomeadamente) o panorama pode não ser assim evidente: como pode

um mesmo poeta morrer de amor absoluto e irrealizado numa página, comprazer-se com

descrição sensual do jovem corpo bem-talhado que dança na página seguinte e dar-nos

conta das suas experiências com a soldadeira Marinha Foça duas páginas mais adiante?

É este, no entanto, o panorama geral da poesia galego-portuguesa que até nós chegou. A

explicação, mais do que psicológica (do tipo “O poeta é um fingidor” como diria

Fernando Pessoa) parece-me dever ser procurada no âmbito do literário especificamente

medieval: de facto, este é um universo onde o estilo não é o homem mas sim, se

quisermos, onde o estilo é essencialmente o género. O homem, o autor, sendo aqui o

artista, é o artista à maneira medieval, ou seja o artífice, o que compõe seguindo normas

previamente definidas, as normas do género (ou dos géneros). Em termos gerais, o bomartista é, pois, o que é capaz de seguir correctamente essas normas. O excelente artista

(o artista saboroso) é, quando muito, o que as segue a partir de uma “boa razom” (uma

boa ideia, ou seja, uma boa variação de um tema próprio do género).

A questão dos géneros aparece-nos assim como central na poesia trovadoresca

medieval. O que é tanto mais complicado quanto, na realidade, de concreto apenas

chegou até nós – e através de um pequeno tratado de Poética de autor desconhecido e

data incerta (que, como se sabe, abre o CBN) – apenas chegou, dizia, a definição de umdos géneros, o satírico (com duas modalidades, cantigas de escárnio e cantigas de

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maldizer, ambas definidas como cantigas onde se quer “dizer mal”). Não temos, pois,

qualquer definição nem de cantigas de amor nem de cantigas de amigo. Como se sabe

ainda, na Arte de Trovar as definições desses dois géneros costumam pressupor-se a

partir do que nos é dito sobre as cantigas dialogadas (quando fala “ele” primeiro são de

amor, quando fala primeiro “ela” são de amigo). Estas duas formas de enunciação (voz

masculina e própria, voz feminina), parecem constituir, de facto, um princípio

estruturante maior dos cantares líricos – isto, obviamente, se partirmos do princípio que

nos encontramos já no universo lírico, uma vez que a questão do sujeito da enunciação

também pode colocar-se, bem entendido, em relação às cantigas de escárnio e maldizer,

em relação às quais, no entanto, esta questão não é realmente colocada (já agora, em

geral, voz masculina e própria; mas nem sempre). Digamos pois, se quisermos ser mais

exactos, que o que parece definir-se na lírica galego-portuguesa (como, aliás, na poesia

provençal) são dois grandes géneros, em sentido lato, o lírico e o satírico (cantigas de

temática amorosa, cantigas de “dizer mal”), sendo que, na modalidade lírica, os

respectivos géneros de cantigas se definem a partir da voz que canta, na primeira pessoa

(masculina nas cantigas de amor, feminina nas cantigas de amigo).

Qualquer leitor da poesia galego-portuguesa se dará, no entanto, conta que são

estas definições mínimas, sobretudo no que diz respeito às cantigas de amor e de amigo.

De facto, se o sujeito da enunciação é, sem dúvida, um factor essencial na delimitação

destes dois géneros líricos, há igualmente todo um conjunto de outros indicadores,

temáticos, linguísticos e mesmo técnicos, que desenham o horizonte normativo quer das

cantigas de amor quer das cantigas de amigo, e que dão a cada um destes dois géneros o

seu universo próprio e insubstituível. Só para dar um exemplo evidente de um factor

“técnico” normativo: não há praticamente nenhuma cantiga de amor paralelística. O

paralelismo é um recurso quase exclusivo do universo das cantigas de amigo. Das

restantes características fazem parte os elementos temáticos e linguísticos há muitoestudados e definidos (o que Tavani chama “campos sémicos”), e que são do

conhecimento geral: brevemente, no caso das cantigas de amor, a arte de amar que lhes

é indissociável (a coita na busca do bem da senhor  inigualável e inatingível, o serviço, o

segredo quanto à sua identidade, por exemplo), com o seu vocabulário próprio e

recorrente (coita, mesura, preço, bem,  numa lista que poderia estender); no caso das

cantigas de amigo, o universo feminino (mães, filhas, irmãs, amigas) que é o da

iniciação ao amor da jovem rapariga, a dona virgo, num mundo natural, também com oseu vocabulário próprio e recorrente (velida, bem-talhada, louçana, amigo, para dar os

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exemplos óbvios). Na prática, os elementos caracterizadores dos dois géneros vão, pois,

muito para além da definição do sujeito da enunciação (que, como disse, também não é

relevante na definição das cantigas satíricas). E mesmo que até nós não tenha chegado

qualquer referência teórica a estas questões, é certo que elas não resultam apenas da

análise que os especialistas contemporâneos podem fazer das cantigas, mas que os

próprios trovadores e jograis estavam conscientes destas normas alargadas que definiam

os padrões do género e que orientavam a composição dos diversos cantares. Nas

cantigas de escárnio e maldizer há várias discussões que remetem para o assunto. Só

para dar um exemplo, o conhecido caso denominado das “amas e tecedeiras”, com a

celeuma provocada pelas cantigas de amor “impróprias” de João Soares Coelho2, será

talvez a prova mais evidente do que digo (note-se que a celeuma não é provocada por

qualquer alteração no sujeito da enunciação, que continua a ser, nestas cantigas, a voz

lírica masculina, mas sim pelo que consideram “objecto” impróprio do canto de amor,

explicitamente uma “ama” – e para esta discussão é, neste momento, irrelevante a

verdadeira identidade da destinatária e o jogo que eventualmente João Soares Coelho

fará com o seu nome; a celeuma e o debate entre os trovadores parte, quer seja ingénua

ou ironicamente, do sentido primário do termo “ama” e recai sobre a “impropriedade”

dos ditos cantares face aos padrões do género, no caso os relativos à figura feminina). A

voz (masculina ou feminina) que canta na poesia lírica determina pois, igualmente, um

universo de sentido relativamente fechado, cujos padrões eram facilmente reconhecíveis

por todos (como o são ainda por um leitor actual). De tal forma esse universo é

determinante do género que ninguém põe em causa, para dar apenas mais outro

exemplo, que composições como a célebre “ Levantou-s’a velida…” (B569, V172) ou as

pastorelas façam parte das cantigas de amigo, quando, na realidade, é fácil reconhecer

que, em ambos os casos, se trata de poemas narrativos ditos em voz masculina (mesmo

se, nas pastorelas, por vezes em diálogo com uma voz feminina).Cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer são pois

três registos discursivos distintos, cada um deles correspondendo a universos

linguísticos e de sentido próprios (e quiçá mesmo socialmente desenhados), universos

no limite estanques, e que constituíam, em conjunto, a arte de trovar galego-portuguesa

ao dispor dos seus trovadores e jograis. No interior de cada um destes universos, a boa

2

 A166, B327; A171, B322. Comentam o caso Airas Peres de Vuitorom B1481, V1092; Fernão GarciaEsgaravunha B1511; João Garcia de Guilhade B1501. João Soares responde ainda a Juião Bolseiro numatenção B1181, V786.

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cantiga parece ser a boa variação dos seus elementos estruturais próprios (sobretudo no

caso dos dois registos líricos). E a passagem de um registo a outro, por mais que um

leitor actual os possa achar contraditórios, é tanto mais “evidente” quanto mais

evidentes e distintos são estes mesmos elementos estruturais. Natural é pois esta

passagem, e não problemática como pode surgir aos olhos de um leitor actual. Nestes

termos teóricos e gerais, e para retomar novamente o que disse antes, a questão da

“sinceridade” do poeta não faz sentido na poesia medieval, ou se quisermos, é

completamente irrelevante, já que, como em qualquer outra arte medieval, a arte poética

é essencialmente um “saber fazer”: saber fazer uma boa cantiga de amor, uma boa

cantiga de amigo, uma boa cantiga de escárnio e maldizer segundo as normas é o que se

exige ao poeta medieval.

No entanto, como em todas as épocas, da teoria à prática vai um mundo humano

de reflexão, insuficiências, imaginação e talento. O caso merece por isso que o

abordemos de uma forma mais prática e documentada. E o Cancioneiro da Ajuda, dadas

as suas características, é um excelente corpus para esta análise. Na verdade, e para além

de ser, como se sabe, o único manuscrito que será talvez contemporâneo da última

geração de trovadores, é também um manuscrito que, ao contrário dos dois outros

grandes Cancioneiros, o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana, parece não ser uma

simples recolha, mas sim uma recolha antológica. Ou seja, o Cancioneiro da Ajuda foi

aparentemente elaborado a partir de um critério restrito, que é exactamente um critério

de género: a ideia parece ter sido, tanto quanto podemos perceber, a de realizar uma

antologia de cantigas de amor. E do ponto de vista da definição restrita desta categoria

lírica, ou seja, se levarmos apenas em conta o sujeito da enunciação, o Cancioneiro da

Ajuda é, efectivamente, um cancioneiro de amor: todas as vozes que se ouvem ao longo

das suas 310 cantigas são vozes masculinas falando em nome próprio. Ou seja, não há

cantigas em voz feminina – não há cantigas de amigo3. Em termos teóricos, no entanto,não é este um critério suficiente para definir o género, já que, como vimos, também as

cantigas satíricas funcionam na mesma modalidade de enunciação. Teremos por isso de

analisar as cantigas à luz das restantes normas definidoras do género, do seu padrão

alargado. E aqui a questão passa a não ser tão evidente.

De facto, a fronteira entre a lírica e a sátira não pode deixar de ser flutuante. O

que se passa é que a definição dos limites entre estes dois grandes géneros (no sentido

lato do termo) deixa de poder ser feita a partir de um critério objectivo, como acontece

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no interior do canto lírico (o sujeito da enunciação) para se centrar num critério

relativamente subjectivo, que é o da intenção do canto (dizer ou não dizer mal). Assim,

quando os trovadores e jograis “querem dizer mal” estamos perante uma cantiga

satírica, diz-nos a Arte de Trovar. Sobre as modalidades ou formas deste canto satírico

pouco nos é dito (para além da referência à existência ou não do equivocatium). É óbvio

que também as cantigas de escárnio e maldizer obedecem de forma geral, como os

outros dois géneros, a padrões temáticos e linguísticos alargados. Há um universo das

cantigas satíricas, como o há das cantigas de amor e de amigo. É o universo da “lírica

do realismo”, na expressão que me parece feliz de Peter Dronke, com as suas

personagens recorrentes (soldadeiras, homossexuais, infanções avaros ou pelintras,

cobardes, etc.), abordado numa linguagem de registo quotidiano e popular, muitas vezes

cómico, registo onde o calão e o jogo de palavras são recursos habituais. Note-se, no

entanto, que “dizer mal” é um critério lato, um critério pela negativa, se quisermos, já

que não impõe lugares nem modelos temáticos ou mesmo técnicos obrigatórios na

afirmativa, como acontece nos dois géneros líricos (o elogio obrigatório da senhor , por

exemplo, nas cantigas de amor, a dona virgo, nas cantigas de amigo). Passando o

critério a ser a intenção do poeta, critério dificilmente objectivável, as fronteiras que

definem a sátira tendem a ser muito mais flutuantes, como disse. E todos os recursos

podem ser possíveis. Assim, não admira que encontremos até cantigas de amigo que

são, na verdade, cantigas satíricas, como é o caso das duas conhecidas cantigas de

Gonçalo Eanes do Vinhal (B 1390, V 999 e V 1008) ditas pela voz da rainha-viúva

Joana de Poitiers, madrasta de Afonso X – o que, aliás, só sabemos por uma informação

exterior, a rubrica explicativa que as acompanha, e que nos dá conta dessa intenção

satírica de cantigas de amigo aparentemente compostas segundo os melhores padrões

deste género. Caberá talvez perguntar se exemplos destes não seriam mais frequentes do

que o que hoje poderemos saber. É possível que assim tivesse acontecido. Mas, semexplicações exteriores (nomeadamente as dadas pelas rubricas), não será hoje em dia

possível apurá-lo. De qualquer forma, este caso deverá alertar-nos para o facto de que o

género satírico poderia comportar modalidades e cantigas que não se integravam

exactamente no seu universo padrão dominante, recursos satíricos entre os quais se

poderia contar, por exemplo, o desvio intencional dos padrões dos dois outros géneros

líricos (como é o caso das cantigas de amigo antes citadas).

3 Ainda que haja 4 cantigas dialogadas (230, 240, 249 e 277), todas iniciadas pela voz masculina.

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Por outro lado, convém notar que um critério intencional como o de “dizer mal”

implica também uma apreciação subjectiva por parte do ouvinte ou do leitor do que se

entende por “dizer mal”, introduzindo não só uma variável pessoal e mesmo histórica na

apreciação das composições, mas criando igualmente a possibilidade de uma espécie de

gradação progressiva entre lirismo e sátira que pode ir desde a existência de pequenos

elementos dissonantes no interior do universo fechado das cantigas de amor e de amigo

(ou seja, desde cantigas claramente líricas que contêm elementos alheios ao seu

universo padrão ou que “brincam” com esses elementos, geralmente com “intenção”

lúdica, mesmo que não satírica), até cantigas que misturam em maior ou menor grau os

dois registos. Para dar apenas um exemplo: que pensar das cantigas de amor onde o

nome da senhora é claramente explicitado? É evidente que este elemento por si só não

as transforma em cantigas satíricas. Mas também é evidente que a explicitação do nome

da dama é um elemento dissonante e constitui um desvio à norma do segredo do canto

de amor trovadoresco (podendo ou não tal desvio ter uma “intenção” satírica subjacente,

facto que hoje em dia, como é evidente, será difícil de apurar).

Seja como for, e por todas as razões expostas, os elementos “desviantes” ao

universo normativo das cantigas líricas devem merecer da nossa parte uma atenção

particular. A explicação para a “anomalia”, se assim lhe posso chamar, pode ser de

vários tipos, desde a simples inépcia ou ignorância do trovador ou jogral, até serem

esses elementos indicadores de um verdadeiro segundo sentido oculto e satírico. E

poderá tratar-se também – porque não? – de um caso de não-alinhamento, se assim me

posso exprimir, ou seja, da voz de um autor , no sentido moderno do termo, alguém que

voluntariamente inova, desviando-se dos estritos modelos da escola (parece-me ser este

o caso, diga-se, de uma parte significativa da “obra” de João Garcia de Guilhade, na

minha opinião um dos poetas mais imaginativos e talentosos da poesia galego-

portuguesa). Porque na prática, pelo conjunto dos factores que tenho vindo a enunciar, aarte da variação a partir dos elementos nucleares dos géneros, que constituía o “saber

fazer” do poeta medieval, podia igualmente comportar uma arte da originalidade e da

criação. Assim, se uma larga maioria das composições obedecem às regras definidas na

escola, algumas cantigas que chegaram até nós mostram-nos que os géneros admitiam

flutuações, ou seja, na prática não seriam tão fixos, fechados e imutáveis como a teoria

medieval os definia em modelo abstracto.

Dito isto, será talvez tempo de me debruçar finalmente sobre o Cancioneiro daAjuda que aqui nos reúne. Assim, relendo as suas 310 cantigas à luz do que foi dito

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antes sobre o padrão alargado do género cantiga de amor, e com uma latitude relativa

resultante do factor subjectivo de que falei, poderemos dizer que em cerca de 41 dessas

composições, é possível detectar, de uma forma mais ou menos acentuada, elementos

dissonantes. Antes mesmo de justificar este número, diga-se desde já que, representando

ele apenas cerca de 13% da totalidade das cantigas, não será arriscado concluir que, com

pelo menos 87% de composições seguindo o mais estrito modelo padrão da cantiga de

amor, o Cancioneiro da Ajuda parece ter sido, efectivamente, organizado a partir de um

critério antológico. Quem quer que tivesse sido o seu compilador, e fosse qual fosse o

material original prévio, parece evidente que a ideia teria sido fazer uma recolha de

cantigas de amor (ou pelo menos, no limite, predominantemente de amor)4. E no

entanto, se quisermos ser rigorosos, também é certo que este programa acabou por

comportar zonas menos padronizadas, ou seja, que o Cancioneiro da Ajuda não é

exclusivamente um cancioneiro de amor. Vejamos portanto os restantes 13%. Trata-se,

como disse, de 41 cantigas que assinalei como “dissonantes”. Sendo certo que cada uma

delas mereceria uma justificação particular e um estudo alargado, e sendo certo também

que o tempo de que disponho não me permite esse tipo de abordagem, limitar-me-ei

aqui a citar apenas alguns exemplos, em género de amostra, deixando para o texto

escrito uma indicação mais exaustiva das composições em causa5. Assim, e de um ponto

de vista geral, irei agrupar estas 41 cantigas em três categorias: algumas (não muitas)

são claramente alheias ao universo das cantigas de amor; algumas outras são ambíguas;

a maioria apresenta um ou outro elemento que as distingue daquilo que poderemos

designar como o modelo habitual da cantiga de amor. Começando por estas últimas, as

mais numerosas e as que mais facilmente poderemos ainda acrescentar aos 87% acima

citados, poder-se-ão considerar elementos dissonantes pontuais, por exemplo,

referências históricas e geográficas concretas, raras em cantigas de amor: é o caso da

cantiga 33, de Paio Soares de Taveirós: Quantos aqui d’Espanha som /todos perderom

o dormir/ com gram sabor que ham de s’ir…, numa abertura “realista” que o resto da

cantiga vai aparentemente secundarizar; ou das cantigas 236 e 238, nas quais João

4 A questão das lacunas, se deve ser colocada, não parece, à primeira vista invalidar esta asserção e as quese seguem. Ela constitui, no entanto, como é óbvio, um factor de incerteza suplementar que deverámatizar os dados apresentados, referentes exclusivamente ao Cancioneiro, tal como chegou até nós.5  João Soares Somesso A15, 18; Paio Soares de Taveirós A 33, 37, 38; Martim Soares A 42, 59;Desconhecido A 62; Pero Garcia Burgalês A 104, 105, 106, 107; Fernão Garcia Esgaravunha A 122; RuiQueimado A 136, 141, 142, 143; Vasco Gil A 146; João Soares Coelho A 158, 160, 166, 170, 171, 175,176; Rui Pais de Ribela A 198; João Lopes d’Ulhoa A 208; João Garcia de Guilhade A 229, 230, 236,237, 238; Paio Gomes Charinho A 256; Anónimo de Santarém A 278, 279, 280; Pedro Eanes Solaz A

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Garcia de Guilhade faz repetidas alusões a Barcelos e Faria, lugares das “casas” onde

via a sua senhor  (da qual se afasta para ir a Segóvia), senhora de quem, aliás, a cantiga

238 cita a linhagem, já que a refere como “ filha de Maria” – o que leva Carolina

Michaelis a sugerir que se poderia tratar da filha da Ribeirinha, Maria Anes. O que nos

conduz directamente para esse outro elemento “dissonante”, a indicação do nome da

dama: para além de Maria Anes (se é ela), aparecem-nos uma D. Leonor (na cantiga

198, de Rui Pais de Ribela), que D. Carolina, partindo da raridade do nome na época,

sugere poder ser D. Leonor Afonso, filha ilegítima de Afonso III; Maior Gil, na cantiga

301 de Vasco Rodrigues de Calvelo, cantiga que diz o que nega (não ousar o trovador

dizer-lhe como lhe quer bem), num jogo que teremos de considerar pelo menos lúdico.

Lúdicas são igualmente as cantigas que Rui Queimado dirige a Guiomar Afonso Gata

(142, 143), num tom onde o humor se alia com rápidos e notáveis traços de retrato, raro

nas cantigas do género (Pois que eu morrer, filhará/ entom seu queix’e dirá:/ Eu sõom

 Leonor Afonso6  – diga-se, aliás, que o humor está presente em várias outras cantigas de

Rui Queimado transcritas em A, uma delas, a 141, claramente um jogo com o tópico

“morte de amor”7, sendo por isso mesmo muito provavelmente o ponto de partida da

conhecida sátira de Pero Garcia Burgalês “ Rui Queimado morreu com amor(…) mais

ressurgiu depois ao tercer dia”; humor levado ao limite da paródia na cantiga 136, que

incluí na minha edição das cantigas satíricas: Por mia senhor fremosa quer’eu bem/ a

quantas donas vejo…, divertida confissão de múltiplos “serviços” (e que retomarei mais

adiante); ou ainda, regressando ao tópico da identificação de donas, as três cantigas

(104,105,106) onde Pero Garcia Burgalês joga com os nomes de Joana, Sancha e Maria,

para ir adiando a confissão de qual delas é a sua amada (sem nunca chegar a dizê-lo,

aliás). Sem elementos contextuais que nos permitam avaliar cabalmente da “intenção”

dos poetas na divulgação pública destes nomes femininos, mas tendo em conta que o

tom lúdico parece ser dominante em todas elas, não seria impossível sugerir que nosencontraríamos, em todos estes casos, não face a uma verdadeira intenção de “dizer

281, 282; Vasco Rodrigues de Calvelo A 301; Anónimo (Martim Moxa) A 305; Rui Fernandes deSantiago A 308.6  O tom humorístico é potenciado pelo facto de, em ambas as cantigas, o nome da senhor   surgir emrefrão.7

  Direi-vos que mi aveo, mia senhor,/ i logo quando m’eu de vós quitei:/ houve por vós, fremosa miasenhor,/ a morrer; e morrera…mais cuidei/ que nunca vos veria des i,/ se morress’…e por esto nom

morri.

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mal”, mas talvez face a uma poesia precursora das “gentilezas” que farão o seu caminho

nas cortes ibéricas de quatrocentos8.

Num contexto “anómalo” semelhante, mas de forma mais problemática,

poderemos referir as já citadas duas cantigas que João Soares Coelho dirige à polémica

“ama”, aqui incluídas (166, 171), uma delas, aliás, em resposta explícita às críticas que

lhe foram feitas ( Desmentido m’há ‘qui um trobador/do que dixi da ama, sem razom).

Investigações recentes, nomeadamente de Ângela Correia, parecem não deixar dúvidas

de que as referidas cantigas comportam um equivocatium  relativo à identidade da

senhora, que, se não parece imediatamente satírico, se aproxima certamente do trobar

clus provençal9. O mesmo se passará talvez com as três conhecidas cantigas do

chamado anónimo de Santarém (278, 279, 280), cuja imagem de marca nos é dada

imediatamente no misterioso refrão da primeira “ Ai Sentirigo! Ai Sentirigo!/ Al é

 Alfanx’e al Seserigo”, refrão, aliás, precedido, nesta e na composição seguinte (com

pequenas variações), da significativa frase “e nom sei home tam entendudo/ que

m’hoj’entenda o por que o digo”. Se não entendemos, de facto, cabalmente, o que vêm

fazer estas referências comparativas a bairros e aldeias do termo de Santarém numa

cantiga de amor, entendemos, no entanto, que as cantigas propõem uma espécie de

adivinha (e desafio) com factos e dados identificativos concretos cuja “chave” nem

mesmo para os contemporâneos seria evidente (diga-se, aliás, que o facto de Santarém

ter tido um papel central na guerra civil que conduziu Afonso III ao poder, e ser, como

tal, referida em várias cantigas satíricas, poderá eventualmente complicar ainda mais a

charada). Do anónimo de Santarém o Cancioneiro da Ajuda transcreve apenas estas três

cantigas. De João Soares Coelho transcreve 22, e as cantigas da “ama” não são as únicas

a apresentar elementos “dissonantes”: elementos deste tipo aparecem em pelo menos

mais quatro composições deste trovador (158, 160, 170, 175), todas elas interessantes,

mas que o tempo de que disponho não me permite analisar.Poderei, no entanto, dizer que são composições que poderíamos integrar na

segunda categoria que referi: as composições onde a ambiguidade é manifesta. Por

ambiguidade entendo a existência de elementos cuja “dissonância” é mais marcada,

parecendo apontar para um universo já relativamente afastado do universo padrão das

8  Como é sabido, nos cancioneiros posteriores, nomeadamente no de Garcia de Resende, a poesia líricaaparece-nos muitas vezes pessoalmente endereçada9

  “O outro nome da ama. Uma polémica suscitada pelo trovador Joam Soares Coelho”, inColóquio/Letras, 142.

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cantigas de amor, sem que, no entanto, esses elementos sejam suficientemente claros

para um cabal entendimento do seu sentido (são estas, aliás, as cantigas que D. Carolina

Michaelis assinala, na maior parte dos casos, nas suas notas). Deixando de lado a

célebre e polémica cantiga da garvaia, de Paio Soares de Taveirós, que aqui surge no

número 38 e que só por si mereceria ser objecto de uma comunicação,  limitar-me-ei

igualmente a dar apenas um ou dois exemplos menos conhecidos: de João Soares

Somesso, as cantigas 15 e 18, no estranho jogo que estabelecem com quem morre pela

senhor   e por que motivos (o trovador, um seu home, um seu vassalo). Em relação à

última destas cantigas, anota D. Carolina: “Se o leitor me perguntar quem é o homem

ameaçado de morte, se o próprio poeta, ou um seu rival, direi, lealmente, que não sei”.

Fazendo minhas as palavras de D. Carolina, acrescento que um leitor quinhentista

parece não ter tido tantas dúvidas, já que, no final da cantiga, nos deixou o seu bem-

humorado comentário à margem: “Máta-lo!” (explicitando o que a cantiga

ambiguamente sugere). Será talvez o mesmo inteligente leitor que classifica de “ fina” a

cantiga 59, de Martim Soares, provavelmente entendendo o subtil desvio às normas-

padrão que atravessa a cantiga, através do jogo que o trovador faz com o verbo “forçar”

(que inclui nitidamente o sentido corrente de “violar”), com o verbo “matar” e com a

identidade do “homem” que a senhora “tem” (sem que possamos apurar cabalmente,

mais uma vez, quem mata ou quem “força” quem).

Num tom mais sentido e dramático refere Rui Fernandez de Santiago, na cantiga

308, a violência de que foi objecto a sua senhor  (u vos forom d’aqui filhar,/ a força de

vós e levar,/ e vos nom puid’eu i valer!). Se a cantiga expõe, segundo as regras, a coita e

o desejo de morte do trovador motivados pelo afastamento da amada, é certo que os

motivos são aqui de uma ordem que pouco tem a ver com o universo padrão do canto de

amor, antes implicando uma denúncia social concreta de explícitos agressores (a

família? um raptor?). Também João Lopes d’Ulhoa, ainda noutro tom, se afasta desseuniverso quando termina uma das suas cantigas (208) explicitando que o motivo pelo

qual a sua senhor   o quer matar é o facto de ter sido seu “entendedor ” (seu amante).

Estamos mais uma vez no domínio do não-convencional, de ambiguidade manifesta, já

que uma referência deste tipo se aproxima claramente da confissão “inconveniente”,

mais própria da sátira do que do canto de amor. Outra ordem de ambiguidade surge na

cantiga 237, de João Garcia de Guilhade: de facto, sendo uma cantiga de amor

aparentemente padrão, deve notar-se que os três primeiros versos da segunda estrofe sãoexactamente iguais aos que surgem na última estrofe de uma estranha e polémica

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cantiga de Rodrig’Eanes de Vasconcelos (por mim publicada nas Cantigas de escárnio

e maldizer com o nº 375)10. Assinalo o facto, sem poder, de momento, explicá-lo.

Podendo ser erro de copista, também não é impossível que o processo satírico do

“seguir” pudesse não ser alheio a esta também estranha coincidência.

Resta-me falar, nesta breve abordagens das cantigas “anómalas” do cancioneiro

da Ajuda, do primeiro grupo de cantigas que referi, aquelas que parecem claramente

alheias ao universo das cantigas de amor. Como disse, não são muitas: detectei, ao todo,

8 cantigas (2,5 % da totalidade do Cancioneiro, para os ouvintes com mais espírito

matemático) Contrariamente às cantigas antes referidas (excepção feita à cantiga da

garvaia e às cantigas que Rui Queimado dirige a Guiomar Afonso), optei por incluir

estas oito cantigas na minha edição das cantigas de escárnio e maldizer. Duas delas já

tinham sido, aliás, incluídas por Lapa na sua edição: é o caso da cantiga 305, cantiga-

sirventês atribuída a Martim Moxa (Quem viu o mundo qual o eu já vi…), e da cantiga

62 (Pois nom hei de dona Elvira…), cuja autoria continua a suscitar polémica, e que

deixarei para o fim. As restantes seis, que acrescentei na minha edição, são: a cantiga

256, onde Paio Gomes Charinho desenha uma inesperada e ambígua comparação entre

o rei e o mar, sem fazer entrar na composição qualquer elemento lírico; não é esta,

manifestamente, uma cantiga de amor – e do meu ponto de vista, se o retrato é subtil,

também é claramente satírico; como não é uma cantiga de amor a cantiga 146, na qual

Vasco Gil faz uma diatribe contra Deus, em tudo semelhante às outras 4 ou 5 deste

curioso subgénero e de autorias diversas que até nós chegaram através dos outros

cancioneiros (cantigas estas incluídas por Lapa, aliás); igualmente satírica considero a

cantiga 37 de Paio Soares de Taveirós, declaração de amor a “uma parenta”, com

questões de  fazenda à mistura; como antes referi, considero igualmente a cantiga 136,

de Rui Queimado, uma falsa cantiga de amor, na razom paródica que desenvolve (como

não posso servir a minha senhora, vou servindo todas as outras entretanto); incluo aindaneste grupo as cantigas 281 e 282, de Pedr’Eanes Solaz, a primeira ( Eu sei la dona

 ferida…) um curioso e original registo de uma cena de violência conjugal, descrita em

voz masculina mas a partir dos elementos padrão das cantigas de amigo (incluindo

10 A 237, 2ª estrofe: Guisado teem de nunca perder/ meus olhos coita e meu coraçom;/ e estas coitas,

senhor, minhas som;/ mais los meus olhos, per alguém veer,/ choram e cegam quand’alguém nom veem,/

e ora cegam por alguém que veem.  Rodrig’Eanes de Vasconcelos, 3ª estrofe: Guisado teem de nunca perder/ meus olhos coita e meu coraçom;/ e estas coitas, senhor, minhas som;/ e deste feito nom

 poss’entender,/ d’eu por vassalo e vós por senhor,/ de nós qual sofre mais coita d’amor.

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paralelismo)11; a segunda ( Nom est a de Nogueira…), uma comparação entre duas

freiras, de nítido recorte satírico e igualmente paralelística12.

O caso de Pedr’Eanes Solaz é, aliás, interessante, e merecedor de alguma

atenção particular, já que poderá ajudar-nos a enquadrar mais genericamente os

exemplos dispersos que tenho vindo a dar. De facto, as duas outras suas cantigas

incluídas no Cancioneiro da Ajuda, mesmo se de tom lírico indiscutível, fogem também

do universo padrão das cantigas de amor (até por serem igualmente paralelísticas).

Analisando, no entanto, o conjunto das sete cantigas deste trovador que chegaram até

nós (todas, aliás, de marcada originalidade, como é o caso da conhecida leliadoura),

parece poder detectar-se que as três que não integram A são, de facto, as que são

claramente ditas em voz feminina – ou seja, as 4 composições transcritas em A,

correspondem muito nitidamente ao critério restrito dos géneros (voz masculina

própria), sem que pareça ter funcionado qualquer outra consideração, nomeadamente o

da “intenção de”: a única consideração parece ter sido a de excluir, a partir do material

disponível (e talvez pela sua marcada ambiguidade estilística) as cantigas em voz

feminina. Nos outros dois cancioneiros que no-las transmitiram essas 3 cantigas em voz

feminina aparecem-nos também num grupo à parte (por exemplo, em B têm a

numeração 828, 829, 830, quando as duas “em voz masculina” que aí surgem aparecem

nos nº 1219 e 1220 – facto este que Resende de Oliveira não leva muito em conta, a

meu ver erradamente, no resumo breve que destas questões faz na biografia final do

trovador, dizendo apenas que as cinco cantigas de Pedr’Eanes Solaz integram a zona das

cantigas de amigo desses cancioneiros, o que prova que teriam sido acrescentadas

tardiamente – de facto, se é certo que as cinco (incluindo as duas de amor) integram a

zona das cantigas de amigo, também é certo que elas surgem em grupos nitidamente

separados, o que poderá talvez significar que o original, fosse qual fosse, já faria a

mesma separação – que é exactamente a que nos surge em A, com mais dois textos.Seja como for, não é impossível que a inclusão no Cancioneiro da Ajuda das

duas cantigas de Pedr’Eanes, ditas em voz masculina, mas claramente alheias ao

universo das cantigas de amor, se relacione com a época tardia da compilação deste

cancioneiro (e parecendo comprovar a tese de Resende de Oliveira da introdução tardia

deste trovador em B e V), época na qual certas cantigas, isoladas do seu contexto

11

  Eu sei la dona velida/ que a torto foi ferida/ ca nom ama/. Eu sei la dona loada/ que a torto foimalhada/ ca nom ama.(…)12 Diz o refrão: E moiro-m’eu pola freira,/ mais nom pola de Nogueira.

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original próprio, seriam já, de certa forma, “património”, categoria tendente a esbater

subtilezas e “intenções de”. Ou, segunda hipótese, a aceitarmos que a data das

composições de Pedr’Eanes poderia eventualmente não ser muito distante da data da

compilação do próprio cancioneiro (como Resende de Oliveira sugere ser o caso da

composição de Paio Gomes Charinho antes citada), teremos de admitir que a subtileza

não seria critério prioritário para o compilador da Ajuda (ou para o compilador do

original de que eventualmente teria partido). Ou seja, o que funciona mais nitidamente,

neste Cancioneiro é a definição restrita, e de certa forma escolástica, dos géneros,

paralela à delineada na Arte de Trovar de B. Qualquer das hipóteses, poderá,

obviamente, ser extensível aos 13% de anomalias de que antes falei. Sem poder alargar-

me sobre o assunto, que aflora já a complicada questão da tradição manuscrita galego-

portuguesa (assunto sobre o qual, aliás, há aqui especialistas mais qualificados do que

eu) creio que este breve sumário relativo às cantigas de Pedr’Eanes é susceptível de

mostrar o contributo que pode dar, nos mais variados domínios, a reflexão sobre os

géneros.

Não posso terminar sem uma breve referência à D. Elvira já antes aludida.

Socorrendo-me do argumento de autoridade – neste caso de Lapa, que considera a

cantiga 62 uma cantiga satírica – como prova suficiente do género, o que me dispensará

de momento qualquer outra consideração sobre o assunto, referirei apenas a polémica

questão da sua autoria, que resumo brevemente. De facto, como se sabe, em B, que

também a transcreve, a cantiga vem atribuída a Martim Soares. E em A a cantiga segue

imediatamente as deste trovador. Baseado neste facto, Lapa, partindo ainda da muito

plausível identificação da visada como D. Elvira Anes da Maia e tomando em conta a

repercussão do escândalo do rapto de que foi protagonista e que originou uma outra

célebre cantiga de autoria, exactamente, de Martim Soares (Pois boas donas som

desemparadas – B 172), atribui pois a este trovador a autoria da pequena composição(que aparece, aliás, em B, com o nº 173, imediatamente a seguir à anterior portanto, tal

como em A). A contrariar esta hipótese, que, diga-se, acabei por seguir na minha

edição, há, no entanto um factor aparentemente intransponível: em A há uma iluminura

a separar as cantigas de Martim Soares da cantiga 62, o que indica claramente mudança

de autor. Por isso mesmo, D. Carolina tinha sugerido que talvez as “coplas jocosas (…)

fossem desabafos do próprio audacioso raptor”, ou seja, que a cantiga poderia ser da

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autoria de Rui Gomes de Briteiros, o raptor de D. Elvira, igualmente trovador13.

Esquecendo, do meu ponto de vista um pouco apressadamente, a referência às “coplas

 jocosas” feita por D. Carolina e classificando-a simplesmente como cantiga de amor,

Resende de Oliveira, mais recentemente retomou a sugestão de D. Carolina, atribuindo,

portanto, a cantiga 62 (e a seguinte) a Rui Gomes de Briteiros. Não me parece que seja

uma boa solução. Tal como a cantiga de Martim Soares às netas do Conde, também esta

é visivelmente uma cantiga posta em voz alheia, ou seja, quem fala é o próprio

satirizado e não o autor da composição14. Há várias cantigas deste tipo no cancioneiro

satírico e que os trovadores parecem ter designado como maldizer aposto. Se Rui

Gomes Briteiros pode ser, de facto quem fala nesta cantiga, como D. Carolina tinha

argutamente sugerido, não me parece que ele possa ser, na realidade, o seu autor (a

cantiga denuncia jocosa mas claramente o seu comportamento, na minha opinião num

momento anterior ao rapto, aliás). Será, de facto, a cantiga da autoria de Martim Soares?

Mesmo sem levar em consideração a atribuição de B, e de um ponto de vista puramente

temático, essa atribuição parece-me, como Lapa entendeu, absolutamente plausível15.

Resta a questão da iluminura16. Podemos resolvê-la de duas formas: a primeira é a de

deixar cair a atribuição de B e atribuir a cantiga 62 (e a seguinte, aliás) a um outro autor,

que continuamos sem poder identificar. Significa isto valorizar preferencialmente o

testemunho do Cancioneiro da Ajuda, mesmo desconhecendo se ele será, na verdade,

infalível. A outra forma de resolver a questão é considerar que há muitas coisas em

aberto no Cancioneiro da Ajuda. Esta será uma delas. E talvez estas breves

considerações sobre os géneros possam eventualmente contribuir, se não para a sua

cabal resolução, pelo menos para o seu debate.

GRAÇA VIDEIRA LOPES

13 O nome de Rui Gomes de Briteiros aparece, de facto, no pé de página de B. Trata-se, no entanto, deuma indicação de Colloci, completando o nome que aparece truncado na rubrica explicativa de B 172.14 Pois boas donas som desemparadas/ e nulh’home nõn’as quer defender/ nõn’as quer’eu leixar estar

quedadas/ mais quer’en duas per força prender (…) – compreenda-se que o eu que fala é, pois, o raptor.15  Martim Soares é autor de vários pequenos ciclos satíricos, ou seja, conjuntos de cantigas sobre omesmo tema e personagem. É o caso, por exemplo, das duas cantigas sobre Albardam, ou das quatrocantigas endereçadas ao jogral Lopo. Em “voz alheia” é ainda a cantiga B 1358, V 966, cuja rubricadefine claramente o maldizer aposto.16 E a questão da inicial trabalhada. Mesmo que o tempo desta comunicação não me permita desenvolvereste assunto, gostaria de chamar a atenção para um curioso ponto: de todas as iniciais trabalhadas queiniciam um ciclo, esta é a única a apresentar motivos humanizados. Trata-se muito claramente de um

tocador de pandeireta, em posição nitidamente jocosa. Se há, no Cancioneiro da Ajuda, algumas outras(raras) iniciais com motivos vermiformes, não há, em todo o cancioneiro, nenhuma outra inicial com estascaracterísticas. Refiro o facto, mesmo se sou incapaz de lhe dar um sentido exacto.

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16

Inicial (P) que abre a cantiga 62 (Pois não hei de D. Elvira…) 

BIBLIOGRAFIA

LOPES, Graça Videira, Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores e jograis

galego-portugueses, Lisboa, Editorial Estampa, 2002.

OLIVEIRA, António Resende de, Depois do espectáculo trovadoresco, Lisboa, Edições

Colibri, 1994.

TAVANI, Giuseppe, A poesia lírica galego-portuguesa, Vigo, Editorial Galaxia, 1986.