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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA GERAL E ROMNICA
O CANCIONEIRO DA AJUDA
CONFECO E ESCRITA
VOLUME I
MARIA ANA RAMOS
Dissertao apresentada para obteno do Grau de Doutor em Lingustica Portuguesa Lingustica Histrica, sob a orientao do Professor Doutor Ivo Castro
Lisboa
2008
ii
Amicizia
Noi non ci conosciamo. Penso ai giorni che, perduti nel tempo, c'incontrammo, alla nostra incresciosa intimit. Ci siamo sempre lasciati senza salutarci, con pentimenti e scuse da lontano. Ci siam riaspettati al passo, bestie caute, cacciatori affinati, a sostenere faticosamente la nostra parte di estranei. Ritrosie disperanti, pause vertiginose e insormontabili, dicevan, nelle nostre confidenze, il contatto evitato e il vano incanto. Qualcosa ci sempre rimasto, amaro vanto, di non ceduto ai nostri abbandoni, qualcosa ci sempre mancato.
Vincenzo Cardarelli (1887-1959) [Poeti Italiani del Novecento, Ed. P.Vincenzo Mengaldo,
Milano, Mondadori, 1978, p. 375]
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
v
Resumo
O ttulo O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e escrita pretende anunciar um estudo que se
posiciona entre a filologia do cdice e a filologia do texto. O Cancioneiro da Biblioteca do
Palcio da Ajuda em Lisboa a compilao antolgica mais antiga da produo lrica galego-
portuguesa referente a cantigas de amor. O estudo de 1904 de Carolina Michalis de
Vasconcellos concedeu-nos a edio crtica do ciclo de amor e facultou-nos tambm grande
parte das caractersticas e das hipteses histricas relativas ao cdice. H. H. Carter em 1941
publicou a importante edio diplomtica do Cancioneiro da Ajuda, que restituir ao pblico
uma viso mais genuna do estado grfico do manuscrito, ao demonstrar as diversidades entre a
edio de C. Michalis e a trasladao medieval. S em 1994, bastante tempo mais tarde, a
edio fac-similada veio favorecer melhor aproximao ao manuscrito, criando condies
propcias ao confronto com as edies precedentes.
Este trabalho no se coloca, no entanto, em um mbito editorial. No se trata, pois, de
mais um tipo de edio, mas de um estudo que, tendo como finalidade ltima a concepo
textual mais apurada, procura acercar-se o mais possvel da verdade textual primitiva que o
trovador lhe ter conferido.
Configurando-se estes modos de examinar um cdice fragmentado como prolegmenos
imprescindveis a qualquer trabalho editorial, notar-se- que a materialidade permite reconstituir
estdios precedentes cpia e elucidar alguns dos maiores problemas relativos s linhas de
transmisso textual (unidades de cpia, momentos de tradio, qualidade de certas lies,
inseres extemporneas na coleco, fontes, etc.). Recuar at ao exemplar de base, do modo
mais racional possvel, a maneira mais apropriada para observar a estrutura organizativa de
um Cancioneiro que , na realidade, produto de um aditamento criterioso de vrios materiais de
provenincias e de cronologias inconstantes. A reconstruo do modelo textual coopera tambm
na representao da figura do compilador ou do comanditrio, no perfil de um scriptorium, mas
sobretudo na reflexo sobre a substncia do manuscrito-arquetpico.
O estudo da mise en page e da mise en texte permite apreender a disposio textual,
assim como as condies nas quais se encontravam os modelos trovadorescos. Por outro lado, o
carcter incompleto e inacabado explicita a ausncia inicial de uma mise en livre que clarifica a
fragilidade do cdice que hoje conhecemos.
A mise en graphie coloca por sua vez em evidncia as tcnicas adoptadas quanto ao
modelo de escrita para um livro de amplo formato, a competncia de quem copiou e as regras
imprescindveis a um livro de canto, projectado tambm para acolher partituras musicais. A
vi
descrio e anlise dos procedimentos grafemticos consentem com apoio na raridade, na
repetio e na alografia especificar a significao de um ou de outro fenmeno na tradio
textual. Tanto a padronizao grfica como a persistncia de alguns substratos grficos
proporcionam avaliaes plausveis quanto ao carcter das fontes utilizadas. As suposies
sobre o estabelecimento da tradio manuscrita reavaliam a posio estemtica do Cancioneiro
da Ajuda e dos seus textos no conjunto da tradio lrica galego-portuguesa.
Palavras-chave
Cancioneiros, Cancioneiro da Ajuda, tradio manuscrita da lrica galego-portuguesa,
codicologia, filologia textual.
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
vii
Rsum
Le titre O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e escrita prtend annoncer une tude qui se
situe entre la philologie du manuscrit et la philologie du texte. Le Cancioneiro de la
Bibliothque du Palcio da Ajuda Lisbonne est la compilation anthologique la plus ancienne
de la production lyrique gallego-portugaise ayant pour sujet les cantigas de amor. L'tude de
1904 de Carolina Michalis de Vasconcellos nous a fourni l'dition critique du cycle d'amour
des troubadours et nous a galement fait connatre une grande partie des caractristiques et des
hypothses historiques concernant le manuscrit. H. H. Carter, auteur en 1941 de la publication
de l'importante dition diplomatique du Cancioneiro da Ajuda, restitue au public une vision plus
exacte de l'tat graphique du manuscrit en mettant en vidence les diffrences entre l'dition de
C. Michalis et la translation mdivale. C'est seulement bien plus tard, en 1994, que l' dition
fac-simile a permis une meilleure approche du manuscrit en crant les conditions propices sa
confrontation avec les ditions prcdentes.
Ce travail ne se situe cependant pas dans un contexte ditorial. Il ne s'agit pas d'un
nouveau type d'dition, mais d'une tude ayant comme finalit ultime la conception textuelle la
plus proche de l'original et le meilleur accs possible de la vrit textuelle primitive qui lui a t
donne par le troubadour.
Dfinir les modes d'examen d'un manuscrit fragmentaire comme prliminaires
indispensables tout travail ditorial nous oblige noter que sa matrialit permet de
reconstruire les tats prcdents de sa copie et d'lucider quelques uns des plus importants
problmes relatifs aux procds de transmission textuelle (units de copie, moments de
tradition, qualits de certaines lectures, d'autres insertions dans la collection, des sources, etc.).
Revenir l'exemplaire de base de faon la plus rationnelle possible est la manire la plus
approprie pour observer la structure organisatrice d'un Cancioneiro qui est, en ralit, un
produit qui a ajout selon certains critres divers matriaux de provenances diverses et de
chronologies inconstantes. La reconstruction du modle textuel fait partie aussi de la
reprsentation de la figure du compilateur ou du commanditaire, du profil d'un scriptorium,
mais surtout de la rflexion sur la substance du manuscrit archtype.
L'tude de la mise en page et de la mise en texte permet de dcouvrir la disposition
textuelle ainsi que les conditions dans lesquelles se trouvaient les modles de la posie de
troubadours. Par ailleurs le caractre incomplet et inachev explicite l'absence initiale de la mise
en livre qui claire la fragilit du manuscrit que nous connaissons aujourd'hui.
La mise en graphie met son tour en vidence les techniques adoptes quant au modle
d'criture pour un livre de grand format, la comptence du copiste et les rgles incontournables
viii
applicables un livre de chant destin galement accueillir des partitions musicales. La
description et l'analyse des procds graphmatiques, grce l'appui de la raret, de la rptition
et de l'allographie, parviennent prciser la signification d'un phnomne dans la tradition
textuelle. Tant la conformit au modle graphique que la persistance de quelques substrats
graphiques nous fournissent les raisons plausibles des sources utilises. Les suppositions
touchant l'tablissement de la tradition manuscrite confirment la position du Cancioneiro da
Ajuda et de ses textes dans le stemma de l'ensemble de la tradition lyrique gallego-portugaise.
Mots-clefs
Chansonniers, Cancioneiro da Ajuda, tradition manuscrite de la lyrique gallego-portugaise,
codocologie, philologie textuelle.
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
ix
NDICE
VOLUME I PARTE PRIMEIRA. O CDICE
RESUMO ....................................................................................................................................................v
RSUM...................................................................................................................................................vii
PROLEGMENOS
1. PROLEGMENOS ...............................................................................................................................3
1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda......................................................................................................3
1.2. Histria do projecto.............................................................................................................................7
2. APRESENTAO DO ESTUDO.......................................................................................................17
2.1. Objectivos...........................................................................................................................................17
2.2. Estrutura e organizao....................................................................................................................21
2.3. Um Cancioneiro singular ..................................................................................................................24
PARTE PRIMEIRA. O CDICE
1. HISTRIA DO MANUSCRITO ........................................................................................................33
1.1. Conhecimento do cdice. Edies.....................................................................................................33
1.2. Compiladores. Cronologia. Provenincia ........................................................................................42
1.3. Bibliotecas. Inventrios.....................................................................................................................50
1.4. Cota antiga .........................................................................................................................................53
1.5. Proprietrio. Marcas de posse. Pero Homem..................................................................................55
1.5.1. Identificao.................................................................................................................................55
1.5.2. Pajem, escudeiro, estribeiro-mor..................................................................................................59
1.5.3. Poeta. Justas e Cancioneiro Geral ...............................................................................................64
1.5.4. Cronologia textual........................................................................................................................68
1.5.5. Invocao potica a D. Denis.......................................................................................................75
1.5.6. Ambiente cultural.........................................................................................................................78
1.5.7. Intertextualidades. Anotao marginal a Juan de Mena ...............................................................82
1.5.8. A inscrio Rey D Denis ............................................................................................................91
1.5.9. Cancioneiros medievais. Cancioneiros quatrocentistas................................................................96
1.6. vora. Vila Viosa ...........................................................................................................................103
1.6.1. Testamento de Garcia de Resende .............................................................................................106
x
1.6.2. Biblioteca de D. Teodsio..........................................................................................................108
2. HISTRIA INTERNA DO CDICE...............................................................................................115
2.1. Identificao da espcie. Marcas de contedo...............................................................................115
2.2. Incipit e explicit ................................................................................................................................115
2.3. Nmero de textos .............................................................................................................................116
3. DESCRIO DO SUPORTE MATERIAL ....................................................................................119
3.1. Nmero de flios ..............................................................................................................................119
3.2. Natureza dos flios ..........................................................................................................................119
3.3. Tinta e instrumento para a escrita .................................................................................................120
3.4. Estado dos flios ..............................................................................................................................122
3.5. Dimenses dos flios ........................................................................................................................125
4. DISPOSIO DO SUPORTE MATERIAL....................................................................................127
4.1. Disposio do pergaminho ..............................................................................................................127
4.2. Agrupamento dos flios ..................................................................................................................128
4.3. Descrio da estrutura dos cadernos .............................................................................................133
4.4. Assinaturas de flio. Reclamo.........................................................................................................228
4.5. Numeraes primitivas. Assinaturas de cadernos ........................................................................232
4.6. Numeraes modernas ....................................................................................................................240
5. PREPARO E APRESENTAO DO FLIO ................................................................................245
5.1. Picotagem. Pauta .............................................................................................................................245
5.2. Mise en page.................................................................................................................................247
5.3. Lineamento.......................................................................................................................................251
5.4. Modelos de pauta.............................................................................................................................254
5.5. Os espaos em branco .....................................................................................................................259
5.5.1. Espaos em branco destinados decorao ...............................................................................260
5.5.2. Espaos em branco destinados a texto .......................................................................................262
5.5.2.1. Textos incompletos em A e igualmente incompletos em B.................................................263
5.5.2.2. Textos incompletos em A, mas mais completos em B ........................................................268
5.5.2.3. Textos incompletos em A sem previso textual. Mais completos em B..............................269
5.5.3. Espaos em branco destinados identificao de autores..........................................................272
5.5.4. Um problema concreto: a atribuio da Guaruaya ....................................................................281
5.5.4.1. Cantiga presente no Cancioneiro da Ajuda ........................................................................281
5.5.4.2. Cantiga ausente no Cancioneiro Colocci-Brancuti.............................................................286
5.6. Espaos em branco destinados msica .......................................................................................294
5.6.1. Primeira estrofe ..........................................................................................................................298
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
xi
5.6.2. Transcrio das fiindas...............................................................................................................300
5.6.3. A separao silbica...................................................................................................................312
6. DISPOSIO DO TEXTO ...............................................................................................................329
6.1. A justificao. Mise en texte .......................................................................................................329
6.2. As dimenses da justificao ..........................................................................................................336
6.3. Linhas preenchidas..........................................................................................................................336
6.4. Anotaes marginais .......................................................................................................................339
6.4.1. De copista a artista. De artista a artista ......................................................................................339
6.4.2. Revisor textual 1 ........................................................................................................................340
6.4.3. Revisor textual 2 ........................................................................................................................344
6.4.4. A tradio textual .......................................................................................................................350
6.4.5. As correces marginais. Tipologia ...........................................................................................356
6.4.5.1. A emenda ope-se lio de B ...........................................................................................358
6.4.5.2. A emenda coincide com a lio de B ..................................................................................363
6.4.5.3. A emenda ope-se lio de A e de B ................................................................................364
6.4.6. A importncia da colao...........................................................................................................366
6.4.7. Comentrios ulteriores ...............................................................................................................372
7. DECORAO....................................................................................................................................377
7.1. Procedimentos decorativos em cancioneiros .................................................................................377
7.2. A imagem nas Cantigas de Santa Maria .........................................................................................385
7.3. O sistema decorativo do Cancioneiro da Ajuda .............................................................................388
7.3.1. Advertncias para os decoradores ..............................................................................................391
7.3.2. Miniaturas. Descrio. Localizao ...........................................................................................398
7.3.3. Iniciais. Processo de rubricao e descrio dos principais tipos...............................................415
7.4. Alfabeto do rubricador ...................................................................................................................433
8. ENCADERNAO............................................................................................................................447
8.1. A primeira descrio .......................................................................................................................447
8.2. Novas interpelaes .........................................................................................................................453
8.3. O novo restauro ...............................................................................................................................454
8.4. Possvel identificao do modelo decorativo .................................................................................456
9. ANLISE COMPARATIVA ENTRE A ESTRUTURA MATERIAL E O CONTEDO ..........463
9.1. A constituio do Cancioneiro ........................................................................................................463
9.2. Hiptese de reconstruo do modelo textual. Perfil do compilador............................................468
9.2.1. A ausncia de rubricas atributivas..............................................................................................469
9.2.2. Textos de abertura de ciclo.........................................................................................................473
xii
9.2.3. Textos interrompidos .................................................................................................................474
9.2.4. Textos incompletos ....................................................................................................................475
9.2.5. Textos novos ..............................................................................................................................480
9.2.6. Textos mais ricos em msica .....................................................................................................481
9.2.7. Textos colacionados ...................................................................................................................483
9.2.8. Texto duplo ................................................................................................................................484
9.2.9. Textos finais...............................................................................................................................485
9.3. Hiptese de reconstruo das condies materiais. Perfil de um scriptorium ............................490
9.3.1. Formato do Cancioneiro ............................................................................................................493
9.3.2. Preparao do pergaminho.........................................................................................................495
9.3.3. Ausncia de numerao original ................................................................................................496
9.3.4. A assinatura de dois cadernos ....................................................................................................498
9.3.5. Trabalho de cpia.......................................................................................................................499
9.3.6. Trabalho de reviso ....................................................................................................................500
9.3.7. Trabalho do rubricador...............................................................................................................502
9.3.8. Trabalho do miniaturista ............................................................................................................502
9.3.9. A representao instrumental .....................................................................................................505
9.3.10. Trabalho dos encadernadores ...................................................................................................507
9.4. Hiptese de reconstruo de um manuscrito-arquetpico. Perfil paleo- e (estrati-) grfico .......513
ANEXOS
ANEXO I Disposio do pergaminho (carne e plo) ........................................................................521
ANEXO II Cadernos com numerao primitiva ..............................................................................527
ANEXO III Sistema de numerao moderna dos flios...................................................................537
ANEXO IV Flios com pauta .............................................................................................................543
ANEXO V Nmero de linhas por flio ..............................................................................................547
ANEXO VI Textos com falta de estrofes no Cancioneiro da Ajuda.................................................553
ANEXO VII Espaos em branco........................................................................................................557
ANEXO VIII Transcrio das fiindas ...............................................................................................563
ANEXO IX Linhas escritas por flio .................................................................................................569
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
xiii
NDICE DE FIGURAS Figura 1 Cdice segundo C. Michalis.................................................................................................130
Figura 2 Actual composio do cdice.................................................................................................132
Figura 3 Colocao da assinatura primitiva do caderno VI..................................................................234
Figura 4 Colocao da assinatura primitiva do caderno X ...................................................................235
Figura 5 Numeraes modernas descritas por C. Michalis.................................................................242
Figura 6 Estado actual das numeraes modernas ...............................................................................243
Figura 7 Tipo de rglure Leroy (mo 1 e mo 2) .................................................................................255
Figura 8 Tipo de rglure Leroy (mo 2 e mo 3) .................................................................................255
Figura 9 Tipo de rglure (fl. 1r) ...........................................................................................................256
Figura 10 Cantiga da garvaia no primitivo caderno II .........................................................................289
Figura 11 Stemma da tradio manuscrita (Tavani 1967 e ss.) ............................................................352
Figura 12 Stemma da tradio manuscrita (DHeur 1974, 1984; Ferrari 1979, 1991; Gonalves 1976,
1988, 1993)...............................................................................................................................................353
Figura 13 Stemma(s) da tradio manuscrita (Ramos 1992) ................................................................371
Figura 14 Arco no Cancioneiro da Ajuda (fl. 16).................................................................................390
Figura 15 Arco no Haggadah de Barcelona...........................................................................................390
Figura 16 Pormenor da miniatura relativa ao ciclo de Pero Garcia Burgals (fl. 21)...........................408
Figura 17 Pormenor do chapu relativo ao ciclo de Pero Garcia Burgals (Magister?).......................408
Figura 18 Ilustraes do fl. 77r.............................................................................................................411
Figura 19 Esquemas de encadernao do tipo do Cancioneiro da Ajuda.............................................460
Figura 20 Modelo figurativo n 430 para a encadernao....................................................................461
Figura 21 Roleta com motivo para a encadernao (Gid 1984: 360-361) [Roulette TMq5] ................461
Figura 22 Pormenor da encadernao do Cancioneiro da Ajuda e do fecho........................................462
Figura 23 Fecho equivalente ao do Cancioneiro da Ajuda ..................................................................462
xiv
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
xv
NDICE DE QUADROS
Quadro 1 Localizao dos textos de D. Joam Manuel e de Pedro Homem no Cancioneiro Geral........68
Quadro 2 Medidas dos flios ...............................................................................................................126
Quadro 3 Cadernos VI-VIII .................................................................................................................179
Quadro 4 Disposio da pele nos cadernos IX e X ..............................................................................206
Quadro 5 Correspondncia entre as numeraes primitivas e a sequncia actual................................237
Quadro 6 Simultaneidades e discrepncias entre os ciclos textuais entre A e B...................................277
Quadro 7 As fiindas no ciclo de Pero Garcia Burgals ........................................................................333
Quadro 8 Medidas da justificao........................................................................................................336
PROLEGMENOS
2
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
3
1. Prolegmenos
1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda
O trabalho, aqui apresentado, apoia-se na anlise da tradio manuscrita de parte do corpus da
lrica galego-portuguesa e procura identificar o lugar que efectivamente ocupa um testemunho
textual no diassistema histrico da produo potica medieval em consonncia com parmetros
de espao, de tempo, de prestgio social e de funes comunicativas. bem conhecido que
qualquer observao de natureza filolgica poesia dos trovadores se confronta com nmero
incessante de dificuldades. Tanto o desfasamento cronolgico entre a produo e a recolha dos
materiais, como a discordncia espacial entre os centros de produo, de cpia e de divulgao,
como at a divergncia perante os procedimentos observao dos manuscritos, embaraam a
caracterizao desta peculiar tradio manuscrita.
No estou a pensar apenas em problemas dependentes de operaes ecdticas referentes exegese da edio crtica, mas na averiguao do mais adequado posicionamento que deve
ocupar uma obra colectiva que compreende uma multiplicidade de textos de autores diferentes,
quer em cronologia, quer em geografia, quer em critrios de antologizao e de compilao. As
normas de confronto, de avaliao e de escolha nem sempre so facilmente reconstituveis at
ao estdio mais primitivo.
A pesquisa concentra-se na apreciao do mais antigo Cancioneiro da lrica galego-
portuguesa, o Cancioneiro da Ajuda (finais do sculo XIII, primeiros anos do sculo XIV) e no
em uma anlise que se ampare do exame fsico de outros cancioneiros, por me parecer que no
s a geografia italiana da cpia que os afasta, mas sim a prpria concepo codicolgica de cada
um dos objectos. O Cancioneiro da Biblioteca do Palcio da Ajuda em Lisboa o nico
manuscrito ibrico, conhecido hoje, que se distingue como relator de uma confluncia de
composies, que podem ser includas no prprio movimento trovadoresco da lrica galego-
portuguesa, circunscritas em grande parte tipologia apropriada s cantigas d' amor.
O estudo de Carolina Michalis de Vasconcellos, publicado em 1904, no nos
disponibilizou apenas a edio crtica da coleco de cantigas d' amor trovadoresco. No se
trata, na realidade, a sua edio de uma operao limitada ao Cancioneiro da Ajuda, mas de
uma autntica reconstituio lachmanniana de todo o ciclo amoroso ao servir-se para a
edificao de um cancioneiro ideal do testemunho dos manuscritos mais tardios copiados em
Itlia no sculo XVI. Alm da edio textual, j a filloga expunha um nmero inestimvel de
caractersticas e de conjecturas relativas gnese do manuscrito (histria do cdice, biografias
de trovadores, enquadramento cultural, etc.). C. Michalis procurou assim conceder-nos o
Prolegmenos
4
projecto inicial, no s na reconstituio do que seria realmente lacunar (interveno facultada
pela deficincia fsica observvel nos textos mutilados, na falta de estrofes ou nos versos
incompletos, etc.), mas ofereceu-nos sobretudo uma espcie de espelho que reflectiria a
globalidade de um programa traado pelo coleccionador ou pelo responsvel da compilao.
Quer dizer que a sua restituio crtica no contemplar apenas o texto lacunar (naturalmente
por aquilo que denomino de conjectura de proximidade com fundamento nos testemunhos
quinhentistas), mas vai igualmente conferir-nos atravs da hiptese, que poderamos designar de
conjectura distncia, a incluso de textos que podem, de modo paradoxal, ter estado
realmente ausentes do projecto inicial. No fundo, necessrio ter bem presente, talvez mais
para ns at do que para C. Michalis, que o Cancioneiro no era, afinal, mais do que um
travail en cours e que muitas das suas faltas textuais no podem ser sempre imputadas nem a
acidentes fsicos, nem a actos de negligncia ou de demolio (Ramos 2004).
H. H. Carter em 1941 recupera o Cancioneiro da Ajuda no como monumento literrio,
mas como um testemunho, que deveria ser examinado como um documento um diploma na
sua superfcie escrita, e no nos seus aspectos conteudsticos. Esta indispensvel perspectiva
reabilita o estado, podemos dizer, autntico do Cancioneiro da Ajuda. Ainda que as edies
diplomtico-paleogrficas no ingressem no crculo das edies cientficas no mais alto grau,
incontestvel que continua a ser imprescindvel corroborar a utilidade de uma edio
diplomtica configurada nos moldes conservadores do palegrafo americano. No s como elo
de ligao ao manuscrito ou no acompanhamento edio fac-similada, como ainda, superando
a regular transcrio das cantigas, pela incluso de nmero significativo de componentes
substanciais, que concorrem para o cotejo com o cmputo editorial de C. Michalis. Como
rigoroso diplomatista, H. H. Carter e muito bem cingiu-se transliterao tcnica, no
propiciando qualquer tipo de vnculo entre as propriedades da superfcie grfica e os
processamentos da disposio textual do cdice (Ramos 2007).
A edio fac-similada de 1994 veio favorecer o acesso ao manuscrito em condies
mais favorveis de fruio, ao sopesarmos a confortvel possibilidade de consulta simultnea a
outros cancioneiros e s edies capitais, a crtica, a diplomtica e a fac-similada. Seria quase
espontneo afirmar que qualquer ulterior apreciao textual, anlise interpretativa ou crtica,
dependentes do Cancioneiro da Ajuda, se encontrava complementada por estes acessrios de
base, passagem, prvia ou subsidiria, a todos os estudos correlativos ao manuscrito ajudense.
Dispondo de um completo campo editorial, o que faltaria ento estudar neste manuscrito?
Impunha-se, contudo, um regresso histria do manuscrito e sua materialidade
codicolgica, porque podem, uma e outra, vir a elucidar os problemas maiores relativos s
linhas de transmisso textual (unidades de cpia, momentos de tradio, qualidade de certas
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
5
lies, inseres extemporneas na coleco, fontes, etc.). Em uma palavra, pode afirmar-se que
importa regressar situao do modelo, ou, dito de outro modo, convm retroceder at ao
exemplar de base da forma mais racional possvel. Trata-se de uma perspectiva indispensvel,
se considerarmos que uma obra colectiva, como um Cancioneiro, consequncia de um
adicionamento criterioso de obras individuais, como tambm de outras coleces, pessoais ou
variadas, mais ou menos extensas.
Mas interessar, talvez mais ainda, regressar noo de original, no s para a histria
literria, mas para a edificao de um mais slido pedestal ao exerccio da crtica textual. Para
esta construo, ser necessrio revisitar a grafia, porque atravs dela que se podero criar
condies para o exame transversal de variantes formais, em uma coleco plural e aditiva de
textos literrios. Talvez seja assim possvel obter melhor racionalizao estemtica, entre a
estemtica, prpria ao Cancioneiro, e a estemtica, inerente s composies individuais que
nele foram recolhidas.
Constitudo actualmente por apenas trezentas e dez composies, alm da duplicao de
uma delas, fundamental, devido ao seu estado fragmentrio, perseverar mais na avaliao do
seu aspecto inacabado e imperfeito, do que na sua qualidade de cdice truncado e lacunar,
resultante de deterioraes materiais. No podemos esquecer que aquele nmero corresponde a
circunstncias de degenerao concreta que nos impedem de conhecer a totalidade primitiva da
coleco, mas tambm no devemos perder de vista o facto de que um nmero de cantigas, por
mais total que seja, corresponder sempre a uma escolha, historicamente determinada, feita por
um comanditrio ou por um compilador. E que, hoje, no temos mais do que uma preferncia
que os satisfazia na altura da confeco.
Aqui se colocam os problemas fundamentais da Filologia cancioneiresca em articulao
e dialctica interna com os estudos romnicos. Recordem-se alguns: como examinar um
Cancioneiro entre obra antolgica e obra compilativa? A extenso sincrnica da produo
potica sugere o exame do Cancioneiro da Ajuda por si s, ou em conexo com a totalidade da
tradio conhecida? Ser essencial optar pela amplitude sincrnica de outras produes escritas
literrias e para-literrias cronolgica e diatopicamente confrontveis? Como ponderar a
validade da escolha expositiva entre um produto nico e a pluralidade de produtos e, por fim, e
no menos importante, como equacionar estes multifacetados problemas com as questes de
mtodo? Estas, posicionadas ainda em um plano pr-analtico, atingem o ponto crtico na
prpria concepo de texto no Cancioneiro da Ajuda. Como um original de uma obra
escrita, ou mais como um qualquer material escrito resultante de cpia de cpia, de degradao
em decadncia, ou afinal s como um texto, testemunho histrico intermedirio, que deve ser
depurado de erros, de equvocos e de impropriedades, na procura de um modelo ou mesmo de
Prolegmenos
6
um arqutipo que desapareceu? Um arqutipo do Cancioneiro? Um arqutipo de cada texto? Ou
um arqutipo de cada ciclo autoral? At onde levar a restaurao diacrnica de um
Cancioneiro?
Mas por que no contentar-se ento com o abandono da reconstruo, tutelado pela
veracidade documentria de um manuscrito, na perspectiva de um elogio e da vitalidade da
variante? E por que no satisfazer-se simplesmente com o texto de quem copiou?
A estas questes, poder-se-ia contestar at afirmando que o Cancioneiro da Ajuda faz
parte dos manuscritos privilegiados, detentor de um dos mais ricos campos bibliogrficos na
produo medieval galego-portuguesa. Edio crtica de reconhecido valor, edio diplomtica
com prevenida transcrio e edio fac-similada com imagens reproduzidas com qualidade. O
que sobrar ento? Sobeja realmente o reconhecimento e a fora da variante na mincia da
crtica das formas, no como um fim limitado e expedito, mas como uma transio compulsiva
para o escrupuloso trabalho crtico. O trabalho a efectuar no ser portanto de natureza editorial.
O trabalho, aqui desenvolvido, corresponde e radica-se em fases de carcter pr-editorial.
assim na indispensabilidade da convivncia contnua com o manuscrito que se
desenraizar o sustentculo mais profundo, que se consolidar o processo construtivo de um
objecto inorgnico que no pode afastar-se da viso ampla e totalizante da estrutura de outros
cancioneiros na Romnia medieval. Se um Cancioneiro uma coleco de canes, como
examinar textualmente uma reunio de canes? Como um texto nico que foi difundido por um
objecto nico? Ou como uma ordenada juno de textos de interesse esttico reunida apenas em
um objecto nico?
A este tipo de interrogaes procurar dar respostas este trabalho, ao servir-se de um
leque pluridisciplinar, multiforme e multplice, na procura de uma extenso esclarecedora, que
evita precaver-se, sempre que possvel, da disperso aleatria. As dificuldades a resolver sero
decisivas para melhor adequao do Cancioneiro da Ajuda ao conjunto dos elementos que
constituem a rvore genealgica da tradio lrica galego-portuguesa e para a deposio de um
sedimento a qualquer ulterior prtica editorial. Como editar? Ser esta a pergunta que
permanecer sempre implcita ao estudo aqui desenvolvido.
Deste modo, mais do que outros cancioneiros completamente concludos, o Cancioneiro
da Ajuda institui-se como um programa de antologia ou de compilao que, hoje, melhor
poder restabelecer no s os critrios intrnsecos s primeiras disposies quanto reunio
metdica de objectos poticos, como nos propiciar, ao mesmo tempo, linhas definidoras,
conducentes centralidade da estrutura da confeco de um livro lrico-musical e do
apuramento de um molde de escrita literria no ocidente da Pennsula Ibrica nos ltimos anos
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
7
do sculo XIII, ou no incio do sculo XIV, se adoptarmos a incerteza da confeco na
passagem de um sculo para outro.
1.2. Histria do projecto
Talvez pudesse iniciar esta reflexo com um problema que constantemente sobrevoou este
trabalho. De quanta lingustica precisa um fillogo... E de quanta filologia precisa um
linguista... E de que lingustica precisa um fillogo E de que filologia precisa um linguista...
No darei uma resposta unvoca a esta dvida metdica em dados quantitativos, mas
reclamando-me da rgida metodologia continiana e roncagliana, deixarei quase sempre
subjacente que o estudo do Cancioneiro da Ajuda (s) poder progredir entre o estudo da
filologia do cdice e o estudo da filologia do texto na busca da distino entre crtica das lies
e crtica das formas.
Para a primeira perspectiva, a filologia do cdice no poder resistir anlise de um
produto que um texto literrio sem os recursos filolgicos propriamente ditos (quadro
histrico-literrio, quem manda escrever, onde se escreve, como se transmitiram estes textos,
qual a materialidade da confeco, qual a estrutura da composio dos cadernos, qual a
disposio textual, etc.). Para a segunda, a filologia do texto no subsistir sem o suporte da
lingustica nos seus ramos mais amplos (como esto transcritos os textos, com que modelo
caligrfico, quem escreveu, para quem, a quem se destina a escrita, com que regras, com que
infraces, com que competncia entre a lngua aprendida e a lngua copiada, em que condies
de fidelidade ou de inconstncia em relao ao exemplar, etc.).
O meu primeiro contacto com o Cancioneiro da Ajuda procedeu de uma estadia em
Itlia, no Istituto de Filologia Romanza (Universit 'La Sapienza') em Roma, resultante a uma
breve aprendizagem de lngua italiana na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A
escola italiana de filologia e literaturas romnicas, a romana em particular, aquela que mais se
activava na edio crtica de trovadores galego-portugueses, no podia deixar de estimular uma
bolseira portuguesa no projecto de realizao de mais uma edio crtica que pudesse
contemplar um trovador, cuja identidade, aps as investigaes de C. Michalis, se pressupunha
integrar a coleco ajudense. Ao poeta Rodrigo Eanes Redondo , pertencente a uma
linhagem activa durante os reinados de Afonso III e Denis, senhor em Santarm e prximo do
poder rgio, deveriam ser atribudas algumas das cantigas reproduzidas pelo Cancioneiro da
Ajuda (Ramos 1993c).
Ora, o Cancioneiro da Ajuda, sem entrar na explicao de um caso peculiar, no
desfruta de qualquer rubrica atributiva e, rapidamente, me pareceu que no bastaria editar,
adoptando os instrumentos da crtica textual, as cinco cantigas presentes no Cancioneiro da
Prolegmenos
8
Ajuda (A 180 - A 181 - A 182 - A 183 - A 184), sem compreender como estavam organizados os
trovadores nesta coleco e como, em confronto com o resto da tradio, se poderia
efectivamente atribuir ou no estes textos mais a um autor do que a outro. A edio crtica, por
outro lado, nunca se poderia privar de um contorno histrico, relativo ao autor das cantigas
estudadas. De mais a mais, quando nas primeiras vezes observei o cdice, o flio, que continha
estas cantigas, distinguia-se como um flio desarticulado e sem aderncia aos cadernos
contguos apontando, parecia-me nessa altura, para uma situao material bastante fragilizada e
obscura.
Antes de dar incio ao trabalho editorial e, depois de ter feito a transliterao
diplomtica deste corpus textual, confrontos casuais com outros sectores do manuscrito
interpelavam-me quanto disposio das cantigas e quanto a certos procedimentos grficos
presentes neste pequeno conjunto potico. Parecia-me difcil, para no dizer impossvel, encetar
uma fixao textual quando a base que a transmitia no me inspirava qualquer probidade. Deste
conjunto apenas uma cantiga se encontrava retranscrita nos Cancioneiro Colocci-Brancuti e
Cancioneiro da Vaticana, o que no me confortava na procura de apoio crtico em uma tradio
mais tardia que, eventualmente, viesse a contribuir para a clarificao de um conjunto potico
diminudo pelo testemunho do cdice mais antigo e, de forma geral, mais investido de
autoridade.
Talvez ainda sem uma percepo plenamente fundamentada, devo ter interiorizado e
decidido que a edio crtica daquele poeta no se poderia efectuar, em nenhuma circunstncia,
sem um entendimento global dos critrios subjacentes disposio de todas as cantigas na
coleco colectiva.
Para um dos primeiros congressos, dedicados produo lrica galego-portuguesa (Pisa
1979), pedia-se-me que verificasse o estado material do Cancioneiro da Ajuda, aps a descrio
do cdice de C. Michalis em 1904. Passadas dezenas de anos, e no comeo da efervescncia de
estudos sobre cancioneiros, provenais, franceses e italianos no quadro da tradio romnica
ocidental, procurava-se saber se o Cancioneiro de Lisboa se teria entretanto deteriorado, ou se a
descrio de C. Michalis teria apurado efectivamente os aspectos mais essenciais do estado
material do cdice necessrios crtica textual.
Mais do que me aperceber da gigantesca perspiccia da eminente filloga, era dar-me
conta de que, alm do seu envolvimento na restituio textual, tivera alguma ingerncia no
restauro de um Cancioneiro, que tinha sido encontrado em mau estado e com cadernos
praticamente desagregados. Nas suas palavras, no momento em que o viu, em 1877, dizia que
o volume todo andava retalhado em seis parcellas (Michalis 1904, II: 145) e na substituio
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
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da encadernao confirmava: e dei explicaes minuciosas sobre a ordem original das
folhas, incluindo as de Evora (Michalis 1904, II: 102).
A restaurao no juntar as parcellas teria sido preparada tambm com fundamento
nos Cancioneiros italianos, que acabavam de ser descobertos em 1840 (Moura 1847; Monaci
1875) e em 1875 (Molteni 1880), o que nos permitia questionar a legitimidade de uma ordem
primitiva do Cancioneiro da Ajuda, concordante ou distinta dos cancioneiros italianos.
Escrutnios parciais deste confronto no me aconselhavam s actualizao da descrio do
manuscrito. Estimulavam-me mais ao estudo do Cancioneiro como um objecto material que
detinha um agregado de textos poticos dissemelhantes e que no parecia ser portador de um
corpus textual uniforme. Ao prosseguir o estudo de uma fraco textual, a editar
individualmente, retiraria ao conjunto da coleco, em meu entender, um proveito colectivo que
concorreria, por certo, para melhor entendimento do sector atribuvel a um nico autor, Rodrigo
Eanes Redondo, ou a qualquer outro trovador.
No sei, mas creio que o nome deste trovador no deve ter entusiasmado muito Lindley
Cintra. Mesmo se a edio se alargasse a outros trovadores da famlia Redondo, a edio crtica
de uma produo textual diminuta, e de poetas de algum modo menos renomados, no o
animava. No entanto, a fora que me impelia ao exame da integralidade do Cancioneiro resistia
colossal edio de C. Michalis com os seus milhares de pginas, e a todas as Randglossen
que ao Cancioneiro da Ajuda se referiam e, ao mesmo tempo, confrontava-se com as aspiraes
de Lindley Cintra no que dizia respeito aos estudos necessrios lrica galego-portugesa.
A Lindley Cintra, no se institua, por isso, esta possibilidade de estudo global de um
manuscrito como um desempenho profcuo, que j estava amplamente estudado desde o
princpio do sculo vinte dizia-me , para no final abordar apenas a elaborao de uma
pequena edio crtica de um ou de dois trovadores de uma linhagem discreta. Alm disso,
acredito que temesse a minha tentao para a execuo de um trabalho, excessivamente tcnico,
ou para uma colecta de dados quantitativos e distributivos, sustentado por matrias que cada vez
mais se afirmavam no seu prprio campo de actividade como a Filologia, sim, mas entendida
como um conjunto de disciplinas (scriptologia, grafemtica, codicologia, paleografia,
diplomtica, reflexes tericas sobre metodologias aplicadas ao mais produtivo exerccio da
crtica textual, etc.), animadas, em particular, por Ivo Castro.
Pressinto tambm que, naquela altura, ao mencionar-lhe alguns aspectos grficos que
tinha detectado naquele abreviado conjunto textual, o alertava para faltas de estudos que o
deveriam perturbar. O seu Prefcio edio fac-similada do Cancioneiro da Vaticana (1973) e
o projecto para estudar linguisticamente o Cancioneiro Colocci-Brancuti, anunciado depois na
publicao tambm fac-similada deste cancioneiro em 1982, confirmavam este seu anseio por
Prolegmenos
10
uma descrio da lngua representada por cada um dos cancioneiros. Assim, verdadeiramente
persuasivo, decidiu que a utilidade mais premente no procederia de uma edio de Redondos,
mas de um estudo que contemplasse outro propsito que se poderia intitular A lngua do
Cancioneiro da Ajuda.
No era, com certeza, indita a alterao que se operava em um plano de estudo,
previamente elaborado na dependncia de certo manuscrito. Modelo expressivo era o que se lia
justamente no prefcio da Crnica Geral d'Espanha de 1344 onde o prprio Lindley Cintra
confessava: longe estava eu ento de suspeitar as surpresas que me reservava o estudo detido
do extenso texto. Pensava encar-lo exclusiva ou quase exclusivamente como documento
lingustico; o seu interesse histrico-cultural e literrio havia de manifestar-se-me pouco a
pouco e acabaria por impor-me como mais urgente a tarefa de o revelar, levando-me a deixar
provisoriamente de parte o projecto e no menos importante comentrio lingustico do texto
(1983, I: XVII).
No devia na sua determinao estar afastada do seu esprito a ideia remota de Leite
de Vasconcellos, expressa nas suas Lies de Filologia, com uma pequena insinuao maliciosa
edio de C. Michalis. Na explicao de alguns textos trovadorescos, no se eximia de
afirmar em 1911 [1 ed.] que ao Cancioneiro da Ajuda, depois da edio e investigao de C.
Michalis (1904), faltava ainda um 3. volume, destinado ao estudo da lngua (Leite de
Vasconcellos 1966: 94, n. 3). Foi com aquela agudeza que Lindley Cintra me desviou
completamente de uma edio crtica da famlia dos trovadores Redondo e me convencia ao
estudo de A lngua do Cancioneiro da Ajuda. Recordo mesmo que, em momentos mais
fervorosos, me instigava ao empreendimento mais ambicioso, o exame da Lngua dos
trovadores galego-portugueses.
A esta distncia, no deixa de ser significativo constatar como a primeira aproximao
ao Cancioneiro da Ajuda foi motivada por um obstculo concreto relativo viabilidade de uma
edio crtica de um trovador. E no deixa ainda mais de ser simblico reconhecer, hoje, que a
produo potica, atribuvel a Rodrigo Eanes Redondo, aps exames histricos e codicolgicos,
no deve nunca ter feito parte da coleco ajudense.
Assim sendo, subsistia o estudo da Lngua. Lembro-me, passado algum tempo, de ter
sado de Lisboa para Roma com um projecto de trabalho muito bem organizado. Lindley Cintra
tinha-me estruturado um plano que se configurava a um ndice de uma boa gramtica histrica.
Convenci-me, e persuadi-o, de que no estudaria a lngua dos trovadores, mas examinaria s a
lngua representada pelo Cancioneiro da Ajuda. Era um Cancioneiro que estava em Lisboa, o
acesso ao manuscrito era cmodo, era um Cancioneiro que tinha uma boa edio diplomtica e
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
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era, alm disso, um manuscrito que possua j um largo estudo histrico-literrio. Imaginei, por
isso, um trabalho bastante exequvel, sem obstculos e sem grandes embaraos metodolgicos.
Antes do encontro com Aurelio Roncaglia, absorvi os seus trabalhos, La lingua dei
trovatori (1 ed. 1965) para o provenal e a La lingua d'ol (1 ed. 1971) para os trouvres.
Queria estar muito informada para a reunio onde apresentaria o meu projecto. Repeti infinitas
vezes o dilogo imaginrio que queria ter com o grande fillogo romano. Arquitectei todas as
suas perguntas. Ensaiei a rplica a todas os seus mais provveis obstculos. Na minha realidade,
estava tudo, as palavras, as pausas, os silncios, os pedidos de ajuda e de opinio. Mais do que
um exame, mais do que uma defesa de argumento, este encontro parecia-me bem preparado.
Naquele momento, a lngua dos trovadores do Cancioneiro esboava-se num horizonte
quadriculado onde se viam todas as linhas e onde s faltava o preenchimento dos vazios e eu
sabia pensava saber como preench-los.
Vieram as perguntas. A mais glacial, s por ter permanecido intacta na minha memria,
e por ter desencadeado outras, proferia: como estudar a lngua de um Cancioneiro se o objecto
cancioneiro no um objecto uniforme. O Cancioneiro da Ajuda era uma antologia, uma
compilao ou uma crestomatia? Quantos autores? Que autores? De onde? Quantos copistas?
Quantos organizadores? Que modelo? Que modelos? At aquele momento, pensava que tinha
entendido o essencial do que j estava escrito por C. Michalis, julguei que as minhas
preocupaes com os elementos codicolgicos poderiam resolver as questes primordiais ao
estudo da lngua, mas quase nenhuma daquelas interrogaes me tinha ocorrido. Na precipitao
do dilogo, parecia-me j que o Cancioneiro da Ajuda no era um, mas vrios documentos
adicionados uns aos outros. E um estudo de lngua, seja ele de que natureza for, no poderia
fixar-se do mesmo modo em um texto nico ou em uma pluralidade de textos difundidos por
uma superfcie nica. Passado o tempo, que me separa desta conversa, verifico que esta intuio
no se averiguou como contrria realidade.
Como avaliar ento este corpus que me tinha sido definido como indivisvel e
compacto? Um livro danificado s pelas vicissitudes do tempo? J no era s a dificuldade de
anlise de lngua de um texto literrio problema incontornvel , mas de um exame de lngua
de textos compsitos, aditados uns aos outros em concordncia com certos critrios de
admissibilidade, que precisavam de ser revelados. Foi talvez naquela tarde de ottobrate romane
que a minha lingustica se alvoroou e nunca mais me deixou olhar para o(s) texto(s) nem para
a(s) palavra(s) da mesma maneira. Aquela Filologia no era, entendi-o logo tambm naquelas
horas, uma disciplina, era um mtodo de trabalho exigente que se aplica na dependncia da
natureza do objecto submetido a exame.
Prolegmenos
12
Estudar, estudar, comparar, procurar entender, entender, interpretar, repetia-me
incessantemente. O objecto impunha certos exames e a anlise deste Cancioneiro no poderia
contentar-se s com a palavra nem com a superfcie grfica. Era necessrio, antes de tudo,
decretar se o Cancioneiro da Ajuda poderia ser uma fonte lingustica em primeiro lugar e, em
segundo, se poderia constituir-se como uma boa fonte lingustica. S no me disse Aurelio que,
muitas vezes, o objecto mais forte do que o observador, por mais obstinada que seja a sua
perseverana. Vrias vezes, o carcter irresolvel perseverava. Cada caso institua-se como um
problema em si e no parecia existir um mtodo soberano, capaz de tudo resolver na
integralidade.
Aprender esta diversa estima pela palavra no sentido mais lato, com tudo o que a
envolve quem a escreve, onde a escreve, com que meios, com que arte, com que organizao,
com que modelos e restituir o Texto sua forma mais genuna passaram a constituir o alvo
do que se pretendia alcanar. Antes de estudo da Lngua, era o estudo do suporte da Lngua que
se sobrepunha.
A entendi que o meu pas, Portugal, possua um condicionamento. A geografia, este
extremo ocidente europeu, tinha implicaes na recepo e no entendimento da civilizao ou
da histria das tradies de cultura. Fazendo os mesmos estudos, e aparentemente os mesmos
itinerrios acadmicos, no lamos as mesmas coisas, no aprendamos de igual modo, no
procurvamos as mesmas respostas, no tnhamos os mesmos livrosA minha Filologia para
textos portugueses, ou galego-portugueses, aproximando-se de uma romanstica histrica, no
era a Filologia Romnica romana.
Trabalhar em Filologia Romnica, como demonstrava Aurelio Roncaglia, era uma
maneira de me dizer que o estudo do Cancioneiro da Ajuda no se poderia nunca fazer sem uma
ampla Filologia, sem a compreenso dos outros cancioneiros romnicos. fora do
entendimento pelo cotejo, que salienta as correspondncias e evidencia as disparidades, Aurelio
Roncaglia insistia no estabelecimento de limites, no s de um produto literrio potico
heterogneo para uma persuasiva restituio lingustica, mas na necessidade de recorrer a
instrumentos mais potentes para a anlise de manuscritos repertoriais, que no s
contemplariam as circunstncias de transmisso textual, como deveriam qualificar as superfcies
paleogrfica e grafemtica, requeridas por um manuscrito definvel como arquivo potico
inomogneo.
Assim se integrava o Cancioneiro da Ajuda nos projectos de investigao sobre
cancioneiros romnicos na escola filolgica romana Interrelazioni fra settori culturali distinti
nelle letterature romanze del duecento como mais uma parcela a adicionar ao movimento
colectivo de recolhas poticas medievais.
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
13
Uma escola uma continuidade metodolgica, no necessariamente uma
homogeneidade de procedimentos bem sei , mas foi sobretudo a transmisso de
problemticas constantes na aplicao de mtodos comuns que mais permitiram o exame
orientado do Cancioneiro da Ajuda. Essa identidade, concentrada na mais ajustada observao
do texto literrio, no procurava entend-lo apenas como monumento e produto esttico, mas
como determinar da forma mais completa possvel as circunstncias de cpia. E um dos pilares
desta escola, Monaci, j o afirmava em 1875: Perch la futura critica del testo non manchi di
fondamenta necessario di determinare fino che sia possibile in quale modo il testo fu copiato.
(Monaci 1875: XII). Assim, se assinalava esta escola abrangente entre Filologia e Lingustica,
entre operaes ecdticas, que aprofundam e reaxaminam a metodologia lachmanniana, entre
determinao da historicidade do texto e interaces multidisciplinares e multimetdicas no
estudo e na fixao das estruturas formais mais profundas e mais superficiais do texto. Da
identidade de um texto nico, ao qual se aparentava o Cancioneiro, se deveria ento irradiar
para um policentrismo crtico, preservando sempre a bipolarizao entre texto e mtodo
filolgico, coordenando a cada instante a sistematicidade sincrnica e o movimento diacrnico
na organizao do Cancioneiro.
Nesta estratgia metodolgica de conjugao da soma de conhecimentos adquiridos
mais correcta aco de editar, era necessrio determinar em primeiro lugar a melhor
caracterizao possvel da fonte que difunde o texto na procura das condies que teriam
envolvido o acto de escrita. A preocupao essencial na obteno de um texto original centrava-
se na possibilidade de uma edio exegtica, ao restabelecer e avaliar os comportamentos da
escrita do Cancioneiro da Ajuda para decompor uma tradio textual que nos chegou
adulterada.
Dado o seu carcter de objecto textual complexo, a pesquisa teria de prefigurar, para j,
o contorno do estdio grfico representado, mais do que reconhecer uma superfcie apta a um
aproveitamento como fonte lingustica. Uma fonte que se distingue no no sentido em que
normalmente encaramos as fontes escritas do passado grafias que podem ou devem deixar
transparecer estdios passados de lngua , mas como uma matriz complexa. Uma fonte que no
se evidencia s pela interveno diversa de mos, mas pela variedade de materiais e pelo
procedimento organizativo que deixa entrever um plano que agregava produtos de diversas
autorias, procedncias e de distintas cronologias. A reconstituio do desempenho da cpia
textual e o reconhecimento dos modos de traslado tornavam-se assim essenciais para a
caracterizao de uma escrita literria, que teria ou no eliminado na obra colectiva a
especificidade prpria de cada obra individual.
Prolegmenos
14
Foi com esta trajectria metodolgica que os primeiros ensaios sobre o Cancioneiro
da Ajuda se focalizaram sobre o porqu de certos aspectos que pareciam depender
directamente de uma organizao voluntariosa do manuscrito. O primeiro deles interrogava a
falta de um sistema numerativo original do cdice. Uma tipologia numerativa constituiria pela
prpria ndole o primeiro elemento que corroboraria determinada sucesso de cadernos e de
flios no manuscrito. O ordenamento textual, revelado pela numerao, poderia concorrer para a
instituio de uma tipologia estrutural procedente de preceitos baseados na geografia (autores
galegos, autores portugueses, outros autores, etc.), na cronologia (trovadores mais arcaicos,
trovadores mais recentes, etc.), ou em qualquer outra norma avaliativa quanto incluso do
material potico. A ausncia, quase total, de processo de numerao primitivo evidenciava um
dos problemas srios referente ordenao textual, sobretudo quando sabamos que a
encadernao no sculo XIX tinha sido supervisionada por C. Michalis que interpretara e
avaliara muitas das sequncias textuais que hoje conhecemos. Os sintomas, portanto, quanto a
uma disposio original de autores no eram automaticamente demonstrveis e, ao mesmo
tempo, o nico indcio, deixado pelas assinaturas primitivas apenas em dois cadernos, no se
combinava com a ordem actual. A formulao de juzos interrogantes consentia a expresso de
algumas conjecturas, pelo menos, quanto ao significado das duas indicaes numerativas e
deixava objectivamente entrever problemas srios na linearidade da disposio daqueles
sectores (Ramos 1985).
Uma vez que o Cancioneiro da Ajuda se mostrava como um manuscrito incompleto
textualmente, e inacabado materialmente, a anlise dos espaos deixados em branco tornava
patente que os vazios no eram, afinal, resultantes a fortuitos actos de cpia, destitudos de
sentido, mas vacuidade correspondia um programa dotado de sistema que anunciava
processamentos separativos quanto insero dos trovadores. Cada conjunto textual acatava
certo nmero de regras decorativas, o que de algum modo concedia ao Cancioneiro da Ajuda,
apesar da ausncia de rubricas atributivas, princpios de repartio autoral e textual bastante
ntidas. Este factor permitia rediscutir e reanalisar alguns casos de atribuio complexa,
resultantes de distrbios ocorridos na tradio posterior. O Cancioneiro da Ajuda no era,
afinal, um manuscrito que reunia um conjunto de textos annimos, mas uma coleco que
recolhia um nmero determinado de autores, mesmo sem nome, identificvel por um sistema
rgido da respectiva disposio textual (Ramos 1986; 1986b).
Outro estudo, apesar de publicao com data anterior, derivava ainda da inspeco dos
espaos em branco. A previso musical, perfeitamente comum, na primeira estrofe explicava-se
por uma suspenso do trabalho, ou por uma dificuldade no recrutamento de tcnicos
especialistas na transcrio musical. Mas o mesmo tipo de previso em alguns finais das
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
15
composies poticas, nas fiindas, demonstrava tambm uma previso para uma escrita musical.
Esta, verdadeiramente inslita, no se adequava de modo algum aos modelos que se conheciam
da transcrio musical conhecida em outros cancioneiros.
Perante o carcter extraordinrio deste fenmeno, que se comprovava no constituir
um equvoco de quem copiava, o Cancioneiro da Ajuda assumia novo papel determinante em
toda a produo medieval europeia. No se conhecem hoje outros cancioneiros que tenham
transmitido este elemento musical para a interpretao do remate conclusivo das cantigas e
diversos estudos musicais mais recentes vieram corroborar esta excepcionalidade (Ramos 1984;
Ferreira 2004).
O papel musical do cdice acentuava-se com outra observao que poderia cair na
explicao da banalidade de uma incorrecta separao de palavras na escrita medieval. As
separaes silbicas e intervocabulares, que se documentavam nas estrofes com previso
musical, no eram consequentes a um comportamento arbitrrio grfico, mas a uma
correspondncia precisa na dispositio do texto notao musical do modelo. O posicionamento
literal, subordinado escrita musical, no podia ser examinado na imperfeita unio e separao
de palavras, mas como um elemento imprescindvel presena ou ausncia, por exemplo, de
contiguidades grficas e melismas musicais. A separao grfica apontaria em muitos casos
para alongamentos de slabas na interpretao do canto, cujos melismas, no precisariam de
uma representao hitica do ponto de vista grfico. Alm disso, a mise en texte permitia assim
solucionar problemas de transmisso textual (fiindas com espao interpretadas como
composio monostrfica) devidos ao distrbio suscitado pelo espao musical nas primeiras
estrofes e nas fiindas (Ramos 1985; 1995; 2005; Ferreira 2004).
O silncio musical abre perspectivas analticas muito significativas, quer para a
interpretao de certos procedimentos grficos, que procedem da configurao fsica, quer para
a funcionalidade de um manuscrito de natureza musical previsto para leitura distncia, exposta
para partitura de canto.
O carcter inacabado do manuscrito permitiu tambm o estabelecimento de uma
tipologia procedente da descodificao do programa textual da coleco. A eloquncia dos
espaos em branco, como na altura denominei, no s divulgava uma explanao quanto ao
programa decorativo em geral, no s mostrava como esta indicao, aparentemente s esttica,
favorecia uma intencional separao de autores, mas desvendava tambm suspenses textuais
indubitveis. O carcter pendente conferia desta maneira insuficincias aos modelos do
Cancioneiro da Ajuda. No s no comportariam materiais de ptima qualidade, como o
compilador, ao prever espaos para ulterior preenchimento textual, apontava-nos a faculdade de
em outro momento poder aceder a outros materiais mais ricos e mais completos para a sua
Prolegmenos
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coleco. Uma tradio que circulava, portanto. Assim, se caracterizava em alguns sectores um
dos primeiros indcios sobre o carcter mediano dos exemplares, mas ao mesmo tempo exclua-
se a prtica de composies monostrficas na lrica galego-portuguesa figuradas pelo
Cancioneiro da Ajuda, como se podia constatar em outras tradies lricas. A anteviso textual
nestes casos sugeria o perfil de um coleccionador ciente de uma tessitura formal que o seu
modelo trazia em modo truncado (Ramos 2004; 2006).
Por outro lado, a observao das correces marginais possibilitava presenciar o
cuidado explcito na verificao da transcrio textual de quem copiara, mas vinha sobretudo
mostrar neste cotejo que os materiais utilizados para a averiguao textual do Cancioneiro no
eram em todas as situaes da mesma ndole. O acesso a outras fontes para confronto punha em
evidncia o testemunho directo relativo a materiais perdidos de melhor qualidade que serviram
para melhorar algumas lies primitivamente copiadas e que nunca chegaram a ser utilizados
pelo antecedente dos cancioneiros quinhentistas. A revelao destas fontes laterais concedia ao
Cancioneiro da Ajuda um valor inestimvel no s pela sua alta cronologia, que era em parte
conhecida, mas especialmente pelo testemunho srio de uma tradio textual activa, talvez
mesmo contaminada por fontes no identificveis fora do stemma (Ramos 1993).
Foi o exame das emendas marginais que me fez aproximar das assinaturas do antigo
possessor do Cancioneiro da Ajuda. Assim, surgia pela primeira vez na histria do manuscrito o
nome de Pedro Homem, poeta includo no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e
estribeiro-mor de D. Manuel I, proprietrio do cdice no sculo XV. Todavia, alm da presena
do Cancioneiro da Ajuda nas mos de um cavaleiro prximo da corte rgia, vamos que uma
das suas composies poticas quatrocentistas mencionava justamente o rei D. Denis como
poeta. A caracterizao do perfil deste poeta permitiu localizar o Cancioneiro da Ajuda em
vora durante o sculo XV e a referncia a Obras del Rey Dom Denis, descoberta no catlogo
de D. Teodsio (1510?-1563), quinto duque de Bragana, apontava para a presena meridional
do cdice em ambientes rgio, corteso e senhorial durante este perodo (Ramos 1999; 2001).
A histria do manuscrito precisava-se, os critrios organizativos transpareciam e estes
dados apontavam para hipteses constitutivas de um cdice que nunca deveria ter sido
concludo, o que por outro lado, questionava a possibilidade de entrever um manuscrito nunca
aprontado como objecto para oferta ou troca. De algum modo este carcter no findado
invalidava a suposio de um Cancioneiro, confeccionado em Castela, suspenso pela morte de
Afonso X, mas oferecido a D. Denis. Parte destas ilaes foram sinteticamente expostas no
estudo que acompanhou a edio fac-similada do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1994).
Mas de tudo isto ressaltava fundamentalmente a noo de que, interrogado o
Cancioneiro da Ajuda, ele no se poderia erigir como fonte lingustica primria e unssona.
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
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Alm da sua qualidade cronolgica, tinha de ser visto como livro miscelneo e no como livro
unitrio. Se o carcter literrio estorva e frustra exames de reconstituio lingustica, mais
decepcionante seria a apresentao de um sistema lingustico recolhido em uma fonte multplice
e alheia aos ditames mais incontornveis (transcrio no autgrafa, omisso de data e de local,
pluralidade de autores, de provenincias e de cronologia). O Cancioneiro da Ajuda no mostrar
mais do que uma variedade escrita de uma lngua literria, historicamente determinada, que foi
objecto de codificaes significativas.
2. Apresentao do estudo
2.1. Objectivos
O enunciado dos objectivos deveria proteger-se sob a precauo expressa por G. Contini que,
acerca das dificuldades da anlise formal, dizia na sua famosa Postilla 1985 ao ensaio Filologia:
certo che in linea generale maggiori difficolt sorgono attualmente dalla riscostruzione
formale che da quella sostanziale (Contini 1986: 64-65). O seu attualmente, daquela altura,
deve introduzir hoje o mesmo tipo de cautela.
Perante a complexidade de problemas colocada pelo manuscrito e perante alguns dos
resultados, entretanto obtidos, o projecto deveria prosseguir no s pela pesquisa da mais
apropriada explicao quanto composio do manuscrito, mas tambm pela indagao de
sintomas que deveriam caracterizar este Cancioneiro como um manuscrito que,
presumivelmente, no seria apenas uma cpia simples e parcial de um modelo estvel.
O presente estudo retoma naturalmente a anlise de 1904 e inscreve-se em uma
metodologia que tem como suporte uma seleco de instrumentos codicolgicos e de
indicadores grafemticos que conduz a uma descrio pormenorizada quanto histria material
do manuscrito, ao modo subjacente ao plano, organizao, execuo, sequncia dos
trovadores, ao ordenamento dos textos, mise en page, mise en texte, ausncia de uma mise
en livre inicial, etc., e superfcie textual, propriamente dita, isto , apreciao dos sistemas
paleogrficos e grafemticos adoptados pelo conjunto da colectnea.
No sendo explcito por um clofon o local de produo do Cancioneiro, a anlise de
alguns procedimentos da prpria confeco ou da morfologia paleogrfica no elucidam, no
entanto, um scriptorium preciso, mas enumeram princpios e critrios que dirigiram a cpia
deste texto literrio, mesmo se sabemos, hoje, que elementos concordantes no definem
necessariamente um atelier ou um ambiente particular. Se o exame paleogrfico-grafemtico
poder explicar alguns dos mais complexos problemas ecdticos, que se colocam na exegese de
Prolegmenos
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uma tradio antolgica, o questionrio grafemtico orientado pretende determinar a coerncia
de um comportamento (micro)grfico ou (orto)grfico do(s) copista(s) perante o(s) texto(s)
isolado(s) do(s) trovador(es) ou perante a(s) colectnea(s) que devia(m) transcrever.
O propsito mais essencial busca alcanar respostas sobre a construo do manuscrito e
sobre a implicao dos responsveis no conjunto de actividades indispensveis edificao de
um cdice potico de grande formato. Tentar saber como foi arquitectado o Cancioneiro era
uma maneira tambm de entender como que os textos, que hoje conhecemos, se encontravam
recolhidos nesta coleco. Porque que os textos incompletos estavam circunscritos s a certos
sectores? Porque que alguns textos estavam limitados a uma nica estrofe? Porque que
alguns ciclos textuais calculavam espaos mais ou menos abundantes de pergaminho para
outros textos, quando sabemos que o desperdcio de pergaminho no qualificava a confeco
manuscrita medieval? Como justificar a presena de uma duplicao textual, e como
fundamentar as correces marginais, inseridas ou no no corpus potico principal. As rasuras
procediam de quem copiava, ou de quem emendava? E como avali-las? Como simples
verificao textual pelo modelo de base para a correco de alguns erros de copista? Ou por um
cotejo textual diferenciado mais apropriado?
A observncia do trabalho de traslado textual obtm resultados que decorrem do modo
de incluso dos diversos ciclos na organizao colectiva, e permite formular importantes
reflexes sobre a configurao estemtica e sobre a funo que efectivamente desempenha o
Cancioneiro da Ajuda na histria da tradio literria galego-portuguesa. Da circunstncia
incontestada de um manuscrito incompleto e inacabado, definida em relao a vrios pontos de
referncia, resulta um manuscrito, que ao no ter existido nunca como livro completo, evidencia
fases de fabrico que as vicissitudes temporais no suprimiram.
Toda a problemtica inerente a uma tradio textual heterognea acentua-se neste caso
com um trabalho que ainda estava a ser organizado, um projecto que estava a decorrer. As
consequncias textuais de uma tradio repertorial sublinham a dificuldade de um traado de
um plano ecdtico com um manuscrito alm do mais no finalizado. As interrogaes quanto
consistncia do arqutipo solidificam-se e a comprovao de possibilidades de aproveitamento
de mais de um modelo constrange a observao crtica de qualquer sector e confere ao
Cancioneiro da Ajuda um estatuto muito mais valorizado que anula a simples passagem
instintiva de um exemplar a uma cpia.
Alm do trabalho sem real finalizao, as implicaes do formato e da ndole de um
manuscrito musical instituir-se-o na configurao textual como vias incontornveis, quer na
cpia textual (cpias, correces, mudanas de mo, tintas, lacunas, insuficincias decorativas,
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
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etc.) quer nas opes grficas tomadas por cada um dos intervenientes na cpia das cantigas
(preferncias, ou renncias, concedidas a um ou a outro sinal grfico, etc.).
A questo substancial pode ento cingir-se a uma de duas possibilidades: ter sido a
diversidade textual submetida a uma tessitura grfica coesa, ou a transcrio espelha-nos ainda
estdios preliminares e diatpicos da tradio? Qualquer um dos desfechos auferidos no
deixar de concorrer para um exame ponderado quanto ao modo de propagao desta poesia
medieval entre produo individual e recolha colectiva, tendo presente que a constituio deste
projecto se efectua ainda durante certo dinamismo do movimento potico trovadoresco.
Os exames textuais por si s no bastavam. Outras questes impuseram-se. Como
interpretar certas imprecises de natureza material? Quais os motivos que justificam a
permanncia de apenas duas assinaturas em dois cadernos? Como aprear a disposio de flios
soltos em certos sectores do manuscrito? Como avaliar a colocao assimtrica do pergaminho
em determinadas zonas? da articulao entre a anlise material e o posicionamento textual que
provir a descrio da estrutura dos cadernos e dos flios soltos, e da arrumao das cantigas
que, por sua vez, explicitar sequncias sem decursos e incorporaes mais diferenciadas em
relao ao conjunto.
As incluses textuais mais avulsas foraram a investigao para o exame decorativo e
para a prpria encadernao. Uma estrutura fascicular resistente apontaria para um estdio mais
determinado e mais disposto para a operao final de um conjunto de cadernos prontos para o
acto de encadernao. A ideia geral, bem propagada, de que o carcter incompleto do
Cancioneiro da Ajuda provinha de uma laborao em um scriptorium afonsino, suspensa pela
morte do rei (Alfonso X morre em 1284), evidenciaria em princpio maior nmero de
negligncias nos sectores finais. Ora, o exame decorativo facultar indcios significativos para a
reconstituio de um trabalho esttico com mais forte implicao na organizao textual, do que
na ornamentao de um manuscrito. Porqu?
Da mesma maneira, os diversos estdios da encadernao do cdice vo contribuir para
dar a conhecer situaes materiais significativas quanto existncia ou falta de uma proteco
primitiva em um conjunto de cadernos de um projecto que no estava terminado. Estas
operaes, que em diferentes momentos revestiram este conjunto de cadernos, no s podem
explicitar um itinerrio cultural, como confirmar o carcter precrio do aspecto geral do cdice.
Com este tipo de cmputo poder-se- implementar um conjunto de instrumentos
editoriais indispensveis anlise de um texto nico, ou de um ciclo de textos, interposto nesta
tradio de formas multplices. Ao definir como discordante ou idntica a actuao de quem
copia, ou de quem orientou a cpia, em relao ao(s) modelo(s), poder depreender-se melhor a
insero textual no objecto Cancioneiro.
Prolegmenos
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O livro medieval , na maioria das vezes, um livro compsito ou, pelo menos,
miscelneo, contendo obras de mais de um autor. Se esta afirmao vlida para recolhas de
vrios tipos de textos, ainda mais convincente se converter no caso de coleces, que contm
obras em verso de mais de um poeta. Quer se preconize para estas coleces uma noo de
antologia, que implica naturalmente critrios de escolha na obteno de um cnone, quer se
esteja perante uma coleco de obras reunidas na urgncia de uma base compilativa, o
Cancioneiro da Ajuda ilustrar estas diferentes atitudes. Alguns sectores parecem responder ao
critrio da escolha e outros retratam o acto da compilao.
O exame paleogrfico, alm de ilustrar performances tcnicas expressivas, revelar
procedimentos grficos particulares dependentes de um grande formato, de uma disposio
textual e da natureza musical do cdice. Mais do que a demarcao de mos, a aplicao mais
ou menos disciplinada de procedimentos especficos para o tipo de gtica seleccionada que
melhor caracterizar o comportamento vigilante na transcrio destas cantigas.
A estratificao, fsica e paleogrfica, poder ser em parte validada pela anlise
grafemtica, que tanto apontar para superfcies grficas de grande uniformidade, como pode
demonstrar a particularizao de sectores bem demarcados no conjunto das adies textuais. O
estudo da mise en graphie procurar assim entrever se s unidades compactas se sobrepem ou
se sobpem estratos diferenciveis que possam acusar itinerrios textuais distintos.
Deste estudo resultar que a disposio paralela ou subparalela no se posiciona apenas
no plano de uma degradao material de um cdice, mas procede de circunstncias sucedneas a
um projecto que no chegou a ser efectivamente um Cancioneiro acabado. O Cancioneiro
actual o que nos subsiste de um plano organizativo de um programa de recolha de poesia lrica
galego-portuguesa, que ainda estava a transcorrer, no o esqueamos. O processo de
cristalizao material apontar para a coexistncia de mais de um modelo para a confeco desta
recolha e a interligao entre a fenomenologia interna (corpus textual) e a composio
reconhecida pela fenomenologia externa (produto codicolgico) revela uma contextura que
anula a simples reproduo de um cancioneiro a outro cancioneiro.
A considerao dos problemas materiais e dos estratos paleogrficos e grafemticos
permite explicar as vrias irregularidades, quer no plano da tradio textual, quer no plano da
produo de um objecto-cancioneiro especfico quanto configurao fsica (ordem de
grandeza, manuseamento e funes vitais para o canto e exegese musical) e quanto
visibilidade grfica para uma leitura dinmica (velocidade e eficincia de leitura,
reconhecimento de hbitos e de tcnicas de leitura em uma escrita prevista para a interpretao
coral).
O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita
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Qualquer exerccio de crtica textual, individual, ou em srie, referente ao Cancioneiro
da Ajuda, dever assim com base em este tipo de investigao considerar as contingncias,
codicolgicas, paleogrficas e grafemticas, quer quanto a decises subordinadas a critrios de
transcrio, quer quanto ao lugar que ocupam os textos e os trovadores insertos na coleco
ajudense.
Mais do que prosseguir na busca obsessiva e na reconstituio de um original,
convir ainda aprofundar o conhecimento do Cancioneiro da Ajuda, atravs de trabalhos futuros
com materiais codicologicamente, ou tematicamente comparveis. Assim, se poder melhor
reconstruir a identificao quer de uma tradio paleogrfica comum por meio de formatos
anlogos, quer por opes paleogrficas especficas no cumprimento ou na infraco s regras
da gtica. identidade grafemtica, dependente de preferncias paleogrficas, poder tambm
ser alargada em trabalhos de grafemtica comparativa, quer dizer em estudos que possam
relacionar procedimentos grafemticos nos mesmos modelos de escrita. Dito de outro modo. De
pouco nos serviro trabalhos de grafemtica comparativa entre escritas cursivas e escritas
gticas formais, ou entre casos de mise en texte para prosa e outros para poesia (disposio
horizontal ou vertical), mas o cotejo paralelo entre procedimentos grafemticos em um mesmo
prottipo de escrita trar seguramente resultados que iro de par entre a rigidez paleogrfica de
um modelo e a actuao grafemtica de uma representao de um sistema lingustico para
determinado tipo de texto.
A centralizao no estudo do Cancioneiro da Ajuda no se protege, por fim, por uma
aparente recuperao bdieriana, ou to-pouco por um neobdiarismo. O Cancioneiro da Ajuda
no poder, enquanto tal, caracterizar-se nunca como um bon manuscrit, mesmo na mouvance
de uma tradio lrica complexa. Pelo contrrio. O recurso a potentes instrumentos de anlise
para a fenomenologia codicolgica e para o modus operandi da reproduo textual em um nico
Cancioneiro tende, aqui, muito mais para a busca do profiling de uma diacronia e de um
diassistema textual sob bases neolachmannianas no estudo da variantstica e na acurada
descrio crtica do zelo ou da displicncia formal. Uma ampla recensio e uma ampla
interpretatio, que confortar ou no o recurso ltimo emendatio, se temos presente a
constatao de recensio aperta em alguns casos.
2.2. Estrutura e organizao
Este trabalho encontra-se estruturado com base em duas partes principais subdivididas em
vrios captulos. A Parte Primeira. O cdice e uma Parte segunda.