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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA GERAL E ROMÂNICA O CANCIONEIRO DA AJUDA CONFECÇÃO E ESCRITA VOLUME I MARIA ANA RAMOS Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Doutor em Linguística Portuguesa – Linguística Histórica, sob a orientação do Professor Doutor Ivo Castro Lisboa 2008

O CANCIONEIRO DA AJUDA CONFECÇÃO E ESCRITArepositorio.ul.pt/bitstream/10451/553/1/17066_o_cancioneiro_1.pdf · textuelle ainsi que les conditions dans lesquelles se trouvaient les

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA GERAL E ROMNICA

    O CANCIONEIRO DA AJUDA

    CONFECO E ESCRITA

    VOLUME I

    MARIA ANA RAMOS

    Dissertao apresentada para obteno do Grau de Doutor em Lingustica Portuguesa Lingustica Histrica, sob a orientao do Professor Doutor Ivo Castro

    Lisboa

    2008

  • ii

  • Amicizia

    Noi non ci conosciamo. Penso ai giorni che, perduti nel tempo, c'incontrammo, alla nostra incresciosa intimit. Ci siamo sempre lasciati senza salutarci, con pentimenti e scuse da lontano. Ci siam riaspettati al passo, bestie caute, cacciatori affinati, a sostenere faticosamente la nostra parte di estranei. Ritrosie disperanti, pause vertiginose e insormontabili, dicevan, nelle nostre confidenze, il contatto evitato e il vano incanto. Qualcosa ci sempre rimasto, amaro vanto, di non ceduto ai nostri abbandoni, qualcosa ci sempre mancato.

    Vincenzo Cardarelli (1887-1959) [Poeti Italiani del Novecento, Ed. P.Vincenzo Mengaldo,

    Milano, Mondadori, 1978, p. 375]

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    v

    Resumo

    O ttulo O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e escrita pretende anunciar um estudo que se

    posiciona entre a filologia do cdice e a filologia do texto. O Cancioneiro da Biblioteca do

    Palcio da Ajuda em Lisboa a compilao antolgica mais antiga da produo lrica galego-

    portuguesa referente a cantigas de amor. O estudo de 1904 de Carolina Michalis de

    Vasconcellos concedeu-nos a edio crtica do ciclo de amor e facultou-nos tambm grande

    parte das caractersticas e das hipteses histricas relativas ao cdice. H. H. Carter em 1941

    publicou a importante edio diplomtica do Cancioneiro da Ajuda, que restituir ao pblico

    uma viso mais genuna do estado grfico do manuscrito, ao demonstrar as diversidades entre a

    edio de C. Michalis e a trasladao medieval. S em 1994, bastante tempo mais tarde, a

    edio fac-similada veio favorecer melhor aproximao ao manuscrito, criando condies

    propcias ao confronto com as edies precedentes.

    Este trabalho no se coloca, no entanto, em um mbito editorial. No se trata, pois, de

    mais um tipo de edio, mas de um estudo que, tendo como finalidade ltima a concepo

    textual mais apurada, procura acercar-se o mais possvel da verdade textual primitiva que o

    trovador lhe ter conferido.

    Configurando-se estes modos de examinar um cdice fragmentado como prolegmenos

    imprescindveis a qualquer trabalho editorial, notar-se- que a materialidade permite reconstituir

    estdios precedentes cpia e elucidar alguns dos maiores problemas relativos s linhas de

    transmisso textual (unidades de cpia, momentos de tradio, qualidade de certas lies,

    inseres extemporneas na coleco, fontes, etc.). Recuar at ao exemplar de base, do modo

    mais racional possvel, a maneira mais apropriada para observar a estrutura organizativa de

    um Cancioneiro que , na realidade, produto de um aditamento criterioso de vrios materiais de

    provenincias e de cronologias inconstantes. A reconstruo do modelo textual coopera tambm

    na representao da figura do compilador ou do comanditrio, no perfil de um scriptorium, mas

    sobretudo na reflexo sobre a substncia do manuscrito-arquetpico.

    O estudo da mise en page e da mise en texte permite apreender a disposio textual,

    assim como as condies nas quais se encontravam os modelos trovadorescos. Por outro lado, o

    carcter incompleto e inacabado explicita a ausncia inicial de uma mise en livre que clarifica a

    fragilidade do cdice que hoje conhecemos.

    A mise en graphie coloca por sua vez em evidncia as tcnicas adoptadas quanto ao

    modelo de escrita para um livro de amplo formato, a competncia de quem copiou e as regras

    imprescindveis a um livro de canto, projectado tambm para acolher partituras musicais. A

  • vi

    descrio e anlise dos procedimentos grafemticos consentem com apoio na raridade, na

    repetio e na alografia especificar a significao de um ou de outro fenmeno na tradio

    textual. Tanto a padronizao grfica como a persistncia de alguns substratos grficos

    proporcionam avaliaes plausveis quanto ao carcter das fontes utilizadas. As suposies

    sobre o estabelecimento da tradio manuscrita reavaliam a posio estemtica do Cancioneiro

    da Ajuda e dos seus textos no conjunto da tradio lrica galego-portuguesa.

    Palavras-chave

    Cancioneiros, Cancioneiro da Ajuda, tradio manuscrita da lrica galego-portuguesa,

    codicologia, filologia textual.

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    vii

    Rsum

    Le titre O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e escrita prtend annoncer une tude qui se

    situe entre la philologie du manuscrit et la philologie du texte. Le Cancioneiro de la

    Bibliothque du Palcio da Ajuda Lisbonne est la compilation anthologique la plus ancienne

    de la production lyrique gallego-portugaise ayant pour sujet les cantigas de amor. L'tude de

    1904 de Carolina Michalis de Vasconcellos nous a fourni l'dition critique du cycle d'amour

    des troubadours et nous a galement fait connatre une grande partie des caractristiques et des

    hypothses historiques concernant le manuscrit. H. H. Carter, auteur en 1941 de la publication

    de l'importante dition diplomatique du Cancioneiro da Ajuda, restitue au public une vision plus

    exacte de l'tat graphique du manuscrit en mettant en vidence les diffrences entre l'dition de

    C. Michalis et la translation mdivale. C'est seulement bien plus tard, en 1994, que l' dition

    fac-simile a permis une meilleure approche du manuscrit en crant les conditions propices sa

    confrontation avec les ditions prcdentes.

    Ce travail ne se situe cependant pas dans un contexte ditorial. Il ne s'agit pas d'un

    nouveau type d'dition, mais d'une tude ayant comme finalit ultime la conception textuelle la

    plus proche de l'original et le meilleur accs possible de la vrit textuelle primitive qui lui a t

    donne par le troubadour.

    Dfinir les modes d'examen d'un manuscrit fragmentaire comme prliminaires

    indispensables tout travail ditorial nous oblige noter que sa matrialit permet de

    reconstruire les tats prcdents de sa copie et d'lucider quelques uns des plus importants

    problmes relatifs aux procds de transmission textuelle (units de copie, moments de

    tradition, qualits de certaines lectures, d'autres insertions dans la collection, des sources, etc.).

    Revenir l'exemplaire de base de faon la plus rationnelle possible est la manire la plus

    approprie pour observer la structure organisatrice d'un Cancioneiro qui est, en ralit, un

    produit qui a ajout selon certains critres divers matriaux de provenances diverses et de

    chronologies inconstantes. La reconstruction du modle textuel fait partie aussi de la

    reprsentation de la figure du compilateur ou du commanditaire, du profil d'un scriptorium,

    mais surtout de la rflexion sur la substance du manuscrit archtype.

    L'tude de la mise en page et de la mise en texte permet de dcouvrir la disposition

    textuelle ainsi que les conditions dans lesquelles se trouvaient les modles de la posie de

    troubadours. Par ailleurs le caractre incomplet et inachev explicite l'absence initiale de la mise

    en livre qui claire la fragilit du manuscrit que nous connaissons aujourd'hui.

    La mise en graphie met son tour en vidence les techniques adoptes quant au modle

    d'criture pour un livre de grand format, la comptence du copiste et les rgles incontournables

  • viii

    applicables un livre de chant destin galement accueillir des partitions musicales. La

    description et l'analyse des procds graphmatiques, grce l'appui de la raret, de la rptition

    et de l'allographie, parviennent prciser la signification d'un phnomne dans la tradition

    textuelle. Tant la conformit au modle graphique que la persistance de quelques substrats

    graphiques nous fournissent les raisons plausibles des sources utilises. Les suppositions

    touchant l'tablissement de la tradition manuscrite confirment la position du Cancioneiro da

    Ajuda et de ses textes dans le stemma de l'ensemble de la tradition lyrique gallego-portugaise.

    Mots-clefs

    Chansonniers, Cancioneiro da Ajuda, tradition manuscrite de la lyrique gallego-portugaise,

    codocologie, philologie textuelle.

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    ix

    NDICE

    VOLUME I PARTE PRIMEIRA. O CDICE

    RESUMO ....................................................................................................................................................v

    RSUM...................................................................................................................................................vii

    PROLEGMENOS

    1. PROLEGMENOS ...............................................................................................................................3

    1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda......................................................................................................3

    1.2. Histria do projecto.............................................................................................................................7

    2. APRESENTAO DO ESTUDO.......................................................................................................17

    2.1. Objectivos...........................................................................................................................................17

    2.2. Estrutura e organizao....................................................................................................................21

    2.3. Um Cancioneiro singular ..................................................................................................................24

    PARTE PRIMEIRA. O CDICE

    1. HISTRIA DO MANUSCRITO ........................................................................................................33

    1.1. Conhecimento do cdice. Edies.....................................................................................................33

    1.2. Compiladores. Cronologia. Provenincia ........................................................................................42

    1.3. Bibliotecas. Inventrios.....................................................................................................................50

    1.4. Cota antiga .........................................................................................................................................53

    1.5. Proprietrio. Marcas de posse. Pero Homem..................................................................................55

    1.5.1. Identificao.................................................................................................................................55

    1.5.2. Pajem, escudeiro, estribeiro-mor..................................................................................................59

    1.5.3. Poeta. Justas e Cancioneiro Geral ...............................................................................................64

    1.5.4. Cronologia textual........................................................................................................................68

    1.5.5. Invocao potica a D. Denis.......................................................................................................75

    1.5.6. Ambiente cultural.........................................................................................................................78

    1.5.7. Intertextualidades. Anotao marginal a Juan de Mena ...............................................................82

    1.5.8. A inscrio Rey D Denis ............................................................................................................91

    1.5.9. Cancioneiros medievais. Cancioneiros quatrocentistas................................................................96

    1.6. vora. Vila Viosa ...........................................................................................................................103

    1.6.1. Testamento de Garcia de Resende .............................................................................................106

  • x

    1.6.2. Biblioteca de D. Teodsio..........................................................................................................108

    2. HISTRIA INTERNA DO CDICE...............................................................................................115

    2.1. Identificao da espcie. Marcas de contedo...............................................................................115

    2.2. Incipit e explicit ................................................................................................................................115

    2.3. Nmero de textos .............................................................................................................................116

    3. DESCRIO DO SUPORTE MATERIAL ....................................................................................119

    3.1. Nmero de flios ..............................................................................................................................119

    3.2. Natureza dos flios ..........................................................................................................................119

    3.3. Tinta e instrumento para a escrita .................................................................................................120

    3.4. Estado dos flios ..............................................................................................................................122

    3.5. Dimenses dos flios ........................................................................................................................125

    4. DISPOSIO DO SUPORTE MATERIAL....................................................................................127

    4.1. Disposio do pergaminho ..............................................................................................................127

    4.2. Agrupamento dos flios ..................................................................................................................128

    4.3. Descrio da estrutura dos cadernos .............................................................................................133

    4.4. Assinaturas de flio. Reclamo.........................................................................................................228

    4.5. Numeraes primitivas. Assinaturas de cadernos ........................................................................232

    4.6. Numeraes modernas ....................................................................................................................240

    5. PREPARO E APRESENTAO DO FLIO ................................................................................245

    5.1. Picotagem. Pauta .............................................................................................................................245

    5.2. Mise en page.................................................................................................................................247

    5.3. Lineamento.......................................................................................................................................251

    5.4. Modelos de pauta.............................................................................................................................254

    5.5. Os espaos em branco .....................................................................................................................259

    5.5.1. Espaos em branco destinados decorao ...............................................................................260

    5.5.2. Espaos em branco destinados a texto .......................................................................................262

    5.5.2.1. Textos incompletos em A e igualmente incompletos em B.................................................263

    5.5.2.2. Textos incompletos em A, mas mais completos em B ........................................................268

    5.5.2.3. Textos incompletos em A sem previso textual. Mais completos em B..............................269

    5.5.3. Espaos em branco destinados identificao de autores..........................................................272

    5.5.4. Um problema concreto: a atribuio da Guaruaya ....................................................................281

    5.5.4.1. Cantiga presente no Cancioneiro da Ajuda ........................................................................281

    5.5.4.2. Cantiga ausente no Cancioneiro Colocci-Brancuti.............................................................286

    5.6. Espaos em branco destinados msica .......................................................................................294

    5.6.1. Primeira estrofe ..........................................................................................................................298

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    xi

    5.6.2. Transcrio das fiindas...............................................................................................................300

    5.6.3. A separao silbica...................................................................................................................312

    6. DISPOSIO DO TEXTO ...............................................................................................................329

    6.1. A justificao. Mise en texte .......................................................................................................329

    6.2. As dimenses da justificao ..........................................................................................................336

    6.3. Linhas preenchidas..........................................................................................................................336

    6.4. Anotaes marginais .......................................................................................................................339

    6.4.1. De copista a artista. De artista a artista ......................................................................................339

    6.4.2. Revisor textual 1 ........................................................................................................................340

    6.4.3. Revisor textual 2 ........................................................................................................................344

    6.4.4. A tradio textual .......................................................................................................................350

    6.4.5. As correces marginais. Tipologia ...........................................................................................356

    6.4.5.1. A emenda ope-se lio de B ...........................................................................................358

    6.4.5.2. A emenda coincide com a lio de B ..................................................................................363

    6.4.5.3. A emenda ope-se lio de A e de B ................................................................................364

    6.4.6. A importncia da colao...........................................................................................................366

    6.4.7. Comentrios ulteriores ...............................................................................................................372

    7. DECORAO....................................................................................................................................377

    7.1. Procedimentos decorativos em cancioneiros .................................................................................377

    7.2. A imagem nas Cantigas de Santa Maria .........................................................................................385

    7.3. O sistema decorativo do Cancioneiro da Ajuda .............................................................................388

    7.3.1. Advertncias para os decoradores ..............................................................................................391

    7.3.2. Miniaturas. Descrio. Localizao ...........................................................................................398

    7.3.3. Iniciais. Processo de rubricao e descrio dos principais tipos...............................................415

    7.4. Alfabeto do rubricador ...................................................................................................................433

    8. ENCADERNAO............................................................................................................................447

    8.1. A primeira descrio .......................................................................................................................447

    8.2. Novas interpelaes .........................................................................................................................453

    8.3. O novo restauro ...............................................................................................................................454

    8.4. Possvel identificao do modelo decorativo .................................................................................456

    9. ANLISE COMPARATIVA ENTRE A ESTRUTURA MATERIAL E O CONTEDO ..........463

    9.1. A constituio do Cancioneiro ........................................................................................................463

    9.2. Hiptese de reconstruo do modelo textual. Perfil do compilador............................................468

    9.2.1. A ausncia de rubricas atributivas..............................................................................................469

    9.2.2. Textos de abertura de ciclo.........................................................................................................473

  • xii

    9.2.3. Textos interrompidos .................................................................................................................474

    9.2.4. Textos incompletos ....................................................................................................................475

    9.2.5. Textos novos ..............................................................................................................................480

    9.2.6. Textos mais ricos em msica .....................................................................................................481

    9.2.7. Textos colacionados ...................................................................................................................483

    9.2.8. Texto duplo ................................................................................................................................484

    9.2.9. Textos finais...............................................................................................................................485

    9.3. Hiptese de reconstruo das condies materiais. Perfil de um scriptorium ............................490

    9.3.1. Formato do Cancioneiro ............................................................................................................493

    9.3.2. Preparao do pergaminho.........................................................................................................495

    9.3.3. Ausncia de numerao original ................................................................................................496

    9.3.4. A assinatura de dois cadernos ....................................................................................................498

    9.3.5. Trabalho de cpia.......................................................................................................................499

    9.3.6. Trabalho de reviso ....................................................................................................................500

    9.3.7. Trabalho do rubricador...............................................................................................................502

    9.3.8. Trabalho do miniaturista ............................................................................................................502

    9.3.9. A representao instrumental .....................................................................................................505

    9.3.10. Trabalho dos encadernadores ...................................................................................................507

    9.4. Hiptese de reconstruo de um manuscrito-arquetpico. Perfil paleo- e (estrati-) grfico .......513

    ANEXOS

    ANEXO I Disposio do pergaminho (carne e plo) ........................................................................521

    ANEXO II Cadernos com numerao primitiva ..............................................................................527

    ANEXO III Sistema de numerao moderna dos flios...................................................................537

    ANEXO IV Flios com pauta .............................................................................................................543

    ANEXO V Nmero de linhas por flio ..............................................................................................547

    ANEXO VI Textos com falta de estrofes no Cancioneiro da Ajuda.................................................553

    ANEXO VII Espaos em branco........................................................................................................557

    ANEXO VIII Transcrio das fiindas ...............................................................................................563

    ANEXO IX Linhas escritas por flio .................................................................................................569

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    xiii

    NDICE DE FIGURAS Figura 1 Cdice segundo C. Michalis.................................................................................................130

    Figura 2 Actual composio do cdice.................................................................................................132

    Figura 3 Colocao da assinatura primitiva do caderno VI..................................................................234

    Figura 4 Colocao da assinatura primitiva do caderno X ...................................................................235

    Figura 5 Numeraes modernas descritas por C. Michalis.................................................................242

    Figura 6 Estado actual das numeraes modernas ...............................................................................243

    Figura 7 Tipo de rglure Leroy (mo 1 e mo 2) .................................................................................255

    Figura 8 Tipo de rglure Leroy (mo 2 e mo 3) .................................................................................255

    Figura 9 Tipo de rglure (fl. 1r) ...........................................................................................................256

    Figura 10 Cantiga da garvaia no primitivo caderno II .........................................................................289

    Figura 11 Stemma da tradio manuscrita (Tavani 1967 e ss.) ............................................................352

    Figura 12 Stemma da tradio manuscrita (DHeur 1974, 1984; Ferrari 1979, 1991; Gonalves 1976,

    1988, 1993)...............................................................................................................................................353

    Figura 13 Stemma(s) da tradio manuscrita (Ramos 1992) ................................................................371

    Figura 14 Arco no Cancioneiro da Ajuda (fl. 16).................................................................................390

    Figura 15 Arco no Haggadah de Barcelona...........................................................................................390

    Figura 16 Pormenor da miniatura relativa ao ciclo de Pero Garcia Burgals (fl. 21)...........................408

    Figura 17 Pormenor do chapu relativo ao ciclo de Pero Garcia Burgals (Magister?).......................408

    Figura 18 Ilustraes do fl. 77r.............................................................................................................411

    Figura 19 Esquemas de encadernao do tipo do Cancioneiro da Ajuda.............................................460

    Figura 20 Modelo figurativo n 430 para a encadernao....................................................................461

    Figura 21 Roleta com motivo para a encadernao (Gid 1984: 360-361) [Roulette TMq5] ................461

    Figura 22 Pormenor da encadernao do Cancioneiro da Ajuda e do fecho........................................462

    Figura 23 Fecho equivalente ao do Cancioneiro da Ajuda ..................................................................462

  • xiv

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    xv

    NDICE DE QUADROS

    Quadro 1 Localizao dos textos de D. Joam Manuel e de Pedro Homem no Cancioneiro Geral........68

    Quadro 2 Medidas dos flios ...............................................................................................................126

    Quadro 3 Cadernos VI-VIII .................................................................................................................179

    Quadro 4 Disposio da pele nos cadernos IX e X ..............................................................................206

    Quadro 5 Correspondncia entre as numeraes primitivas e a sequncia actual................................237

    Quadro 6 Simultaneidades e discrepncias entre os ciclos textuais entre A e B...................................277

    Quadro 7 As fiindas no ciclo de Pero Garcia Burgals ........................................................................333

    Quadro 8 Medidas da justificao........................................................................................................336

  • PROLEGMENOS

  • 2

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    3

    1. Prolegmenos

    1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda

    O trabalho, aqui apresentado, apoia-se na anlise da tradio manuscrita de parte do corpus da

    lrica galego-portuguesa e procura identificar o lugar que efectivamente ocupa um testemunho

    textual no diassistema histrico da produo potica medieval em consonncia com parmetros

    de espao, de tempo, de prestgio social e de funes comunicativas. bem conhecido que

    qualquer observao de natureza filolgica poesia dos trovadores se confronta com nmero

    incessante de dificuldades. Tanto o desfasamento cronolgico entre a produo e a recolha dos

    materiais, como a discordncia espacial entre os centros de produo, de cpia e de divulgao,

    como at a divergncia perante os procedimentos observao dos manuscritos, embaraam a

    caracterizao desta peculiar tradio manuscrita.

    No estou a pensar apenas em problemas dependentes de operaes ecdticas referentes exegese da edio crtica, mas na averiguao do mais adequado posicionamento que deve

    ocupar uma obra colectiva que compreende uma multiplicidade de textos de autores diferentes,

    quer em cronologia, quer em geografia, quer em critrios de antologizao e de compilao. As

    normas de confronto, de avaliao e de escolha nem sempre so facilmente reconstituveis at

    ao estdio mais primitivo.

    A pesquisa concentra-se na apreciao do mais antigo Cancioneiro da lrica galego-

    portuguesa, o Cancioneiro da Ajuda (finais do sculo XIII, primeiros anos do sculo XIV) e no

    em uma anlise que se ampare do exame fsico de outros cancioneiros, por me parecer que no

    s a geografia italiana da cpia que os afasta, mas sim a prpria concepo codicolgica de cada

    um dos objectos. O Cancioneiro da Biblioteca do Palcio da Ajuda em Lisboa o nico

    manuscrito ibrico, conhecido hoje, que se distingue como relator de uma confluncia de

    composies, que podem ser includas no prprio movimento trovadoresco da lrica galego-

    portuguesa, circunscritas em grande parte tipologia apropriada s cantigas d' amor.

    O estudo de Carolina Michalis de Vasconcellos, publicado em 1904, no nos

    disponibilizou apenas a edio crtica da coleco de cantigas d' amor trovadoresco. No se

    trata, na realidade, a sua edio de uma operao limitada ao Cancioneiro da Ajuda, mas de

    uma autntica reconstituio lachmanniana de todo o ciclo amoroso ao servir-se para a

    edificao de um cancioneiro ideal do testemunho dos manuscritos mais tardios copiados em

    Itlia no sculo XVI. Alm da edio textual, j a filloga expunha um nmero inestimvel de

    caractersticas e de conjecturas relativas gnese do manuscrito (histria do cdice, biografias

    de trovadores, enquadramento cultural, etc.). C. Michalis procurou assim conceder-nos o

  • Prolegmenos

    4

    projecto inicial, no s na reconstituio do que seria realmente lacunar (interveno facultada

    pela deficincia fsica observvel nos textos mutilados, na falta de estrofes ou nos versos

    incompletos, etc.), mas ofereceu-nos sobretudo uma espcie de espelho que reflectiria a

    globalidade de um programa traado pelo coleccionador ou pelo responsvel da compilao.

    Quer dizer que a sua restituio crtica no contemplar apenas o texto lacunar (naturalmente

    por aquilo que denomino de conjectura de proximidade com fundamento nos testemunhos

    quinhentistas), mas vai igualmente conferir-nos atravs da hiptese, que poderamos designar de

    conjectura distncia, a incluso de textos que podem, de modo paradoxal, ter estado

    realmente ausentes do projecto inicial. No fundo, necessrio ter bem presente, talvez mais

    para ns at do que para C. Michalis, que o Cancioneiro no era, afinal, mais do que um

    travail en cours e que muitas das suas faltas textuais no podem ser sempre imputadas nem a

    acidentes fsicos, nem a actos de negligncia ou de demolio (Ramos 2004).

    H. H. Carter em 1941 recupera o Cancioneiro da Ajuda no como monumento literrio,

    mas como um testemunho, que deveria ser examinado como um documento um diploma na

    sua superfcie escrita, e no nos seus aspectos conteudsticos. Esta indispensvel perspectiva

    reabilita o estado, podemos dizer, autntico do Cancioneiro da Ajuda. Ainda que as edies

    diplomtico-paleogrficas no ingressem no crculo das edies cientficas no mais alto grau,

    incontestvel que continua a ser imprescindvel corroborar a utilidade de uma edio

    diplomtica configurada nos moldes conservadores do palegrafo americano. No s como elo

    de ligao ao manuscrito ou no acompanhamento edio fac-similada, como ainda, superando

    a regular transcrio das cantigas, pela incluso de nmero significativo de componentes

    substanciais, que concorrem para o cotejo com o cmputo editorial de C. Michalis. Como

    rigoroso diplomatista, H. H. Carter e muito bem cingiu-se transliterao tcnica, no

    propiciando qualquer tipo de vnculo entre as propriedades da superfcie grfica e os

    processamentos da disposio textual do cdice (Ramos 2007).

    A edio fac-similada de 1994 veio favorecer o acesso ao manuscrito em condies

    mais favorveis de fruio, ao sopesarmos a confortvel possibilidade de consulta simultnea a

    outros cancioneiros e s edies capitais, a crtica, a diplomtica e a fac-similada. Seria quase

    espontneo afirmar que qualquer ulterior apreciao textual, anlise interpretativa ou crtica,

    dependentes do Cancioneiro da Ajuda, se encontrava complementada por estes acessrios de

    base, passagem, prvia ou subsidiria, a todos os estudos correlativos ao manuscrito ajudense.

    Dispondo de um completo campo editorial, o que faltaria ento estudar neste manuscrito?

    Impunha-se, contudo, um regresso histria do manuscrito e sua materialidade

    codicolgica, porque podem, uma e outra, vir a elucidar os problemas maiores relativos s

    linhas de transmisso textual (unidades de cpia, momentos de tradio, qualidade de certas

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    5

    lies, inseres extemporneas na coleco, fontes, etc.). Em uma palavra, pode afirmar-se que

    importa regressar situao do modelo, ou, dito de outro modo, convm retroceder at ao

    exemplar de base da forma mais racional possvel. Trata-se de uma perspectiva indispensvel,

    se considerarmos que uma obra colectiva, como um Cancioneiro, consequncia de um

    adicionamento criterioso de obras individuais, como tambm de outras coleces, pessoais ou

    variadas, mais ou menos extensas.

    Mas interessar, talvez mais ainda, regressar noo de original, no s para a histria

    literria, mas para a edificao de um mais slido pedestal ao exerccio da crtica textual. Para

    esta construo, ser necessrio revisitar a grafia, porque atravs dela que se podero criar

    condies para o exame transversal de variantes formais, em uma coleco plural e aditiva de

    textos literrios. Talvez seja assim possvel obter melhor racionalizao estemtica, entre a

    estemtica, prpria ao Cancioneiro, e a estemtica, inerente s composies individuais que

    nele foram recolhidas.

    Constitudo actualmente por apenas trezentas e dez composies, alm da duplicao de

    uma delas, fundamental, devido ao seu estado fragmentrio, perseverar mais na avaliao do

    seu aspecto inacabado e imperfeito, do que na sua qualidade de cdice truncado e lacunar,

    resultante de deterioraes materiais. No podemos esquecer que aquele nmero corresponde a

    circunstncias de degenerao concreta que nos impedem de conhecer a totalidade primitiva da

    coleco, mas tambm no devemos perder de vista o facto de que um nmero de cantigas, por

    mais total que seja, corresponder sempre a uma escolha, historicamente determinada, feita por

    um comanditrio ou por um compilador. E que, hoje, no temos mais do que uma preferncia

    que os satisfazia na altura da confeco.

    Aqui se colocam os problemas fundamentais da Filologia cancioneiresca em articulao

    e dialctica interna com os estudos romnicos. Recordem-se alguns: como examinar um

    Cancioneiro entre obra antolgica e obra compilativa? A extenso sincrnica da produo

    potica sugere o exame do Cancioneiro da Ajuda por si s, ou em conexo com a totalidade da

    tradio conhecida? Ser essencial optar pela amplitude sincrnica de outras produes escritas

    literrias e para-literrias cronolgica e diatopicamente confrontveis? Como ponderar a

    validade da escolha expositiva entre um produto nico e a pluralidade de produtos e, por fim, e

    no menos importante, como equacionar estes multifacetados problemas com as questes de

    mtodo? Estas, posicionadas ainda em um plano pr-analtico, atingem o ponto crtico na

    prpria concepo de texto no Cancioneiro da Ajuda. Como um original de uma obra

    escrita, ou mais como um qualquer material escrito resultante de cpia de cpia, de degradao

    em decadncia, ou afinal s como um texto, testemunho histrico intermedirio, que deve ser

    depurado de erros, de equvocos e de impropriedades, na procura de um modelo ou mesmo de

  • Prolegmenos

    6

    um arqutipo que desapareceu? Um arqutipo do Cancioneiro? Um arqutipo de cada texto? Ou

    um arqutipo de cada ciclo autoral? At onde levar a restaurao diacrnica de um

    Cancioneiro?

    Mas por que no contentar-se ento com o abandono da reconstruo, tutelado pela

    veracidade documentria de um manuscrito, na perspectiva de um elogio e da vitalidade da

    variante? E por que no satisfazer-se simplesmente com o texto de quem copiou?

    A estas questes, poder-se-ia contestar at afirmando que o Cancioneiro da Ajuda faz

    parte dos manuscritos privilegiados, detentor de um dos mais ricos campos bibliogrficos na

    produo medieval galego-portuguesa. Edio crtica de reconhecido valor, edio diplomtica

    com prevenida transcrio e edio fac-similada com imagens reproduzidas com qualidade. O

    que sobrar ento? Sobeja realmente o reconhecimento e a fora da variante na mincia da

    crtica das formas, no como um fim limitado e expedito, mas como uma transio compulsiva

    para o escrupuloso trabalho crtico. O trabalho a efectuar no ser portanto de natureza editorial.

    O trabalho, aqui desenvolvido, corresponde e radica-se em fases de carcter pr-editorial.

    assim na indispensabilidade da convivncia contnua com o manuscrito que se

    desenraizar o sustentculo mais profundo, que se consolidar o processo construtivo de um

    objecto inorgnico que no pode afastar-se da viso ampla e totalizante da estrutura de outros

    cancioneiros na Romnia medieval. Se um Cancioneiro uma coleco de canes, como

    examinar textualmente uma reunio de canes? Como um texto nico que foi difundido por um

    objecto nico? Ou como uma ordenada juno de textos de interesse esttico reunida apenas em

    um objecto nico?

    A este tipo de interrogaes procurar dar respostas este trabalho, ao servir-se de um

    leque pluridisciplinar, multiforme e multplice, na procura de uma extenso esclarecedora, que

    evita precaver-se, sempre que possvel, da disperso aleatria. As dificuldades a resolver sero

    decisivas para melhor adequao do Cancioneiro da Ajuda ao conjunto dos elementos que

    constituem a rvore genealgica da tradio lrica galego-portuguesa e para a deposio de um

    sedimento a qualquer ulterior prtica editorial. Como editar? Ser esta a pergunta que

    permanecer sempre implcita ao estudo aqui desenvolvido.

    Deste modo, mais do que outros cancioneiros completamente concludos, o Cancioneiro

    da Ajuda institui-se como um programa de antologia ou de compilao que, hoje, melhor

    poder restabelecer no s os critrios intrnsecos s primeiras disposies quanto reunio

    metdica de objectos poticos, como nos propiciar, ao mesmo tempo, linhas definidoras,

    conducentes centralidade da estrutura da confeco de um livro lrico-musical e do

    apuramento de um molde de escrita literria no ocidente da Pennsula Ibrica nos ltimos anos

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    7

    do sculo XIII, ou no incio do sculo XIV, se adoptarmos a incerteza da confeco na

    passagem de um sculo para outro.

    1.2. Histria do projecto

    Talvez pudesse iniciar esta reflexo com um problema que constantemente sobrevoou este

    trabalho. De quanta lingustica precisa um fillogo... E de quanta filologia precisa um

    linguista... E de que lingustica precisa um fillogo E de que filologia precisa um linguista...

    No darei uma resposta unvoca a esta dvida metdica em dados quantitativos, mas

    reclamando-me da rgida metodologia continiana e roncagliana, deixarei quase sempre

    subjacente que o estudo do Cancioneiro da Ajuda (s) poder progredir entre o estudo da

    filologia do cdice e o estudo da filologia do texto na busca da distino entre crtica das lies

    e crtica das formas.

    Para a primeira perspectiva, a filologia do cdice no poder resistir anlise de um

    produto que um texto literrio sem os recursos filolgicos propriamente ditos (quadro

    histrico-literrio, quem manda escrever, onde se escreve, como se transmitiram estes textos,

    qual a materialidade da confeco, qual a estrutura da composio dos cadernos, qual a

    disposio textual, etc.). Para a segunda, a filologia do texto no subsistir sem o suporte da

    lingustica nos seus ramos mais amplos (como esto transcritos os textos, com que modelo

    caligrfico, quem escreveu, para quem, a quem se destina a escrita, com que regras, com que

    infraces, com que competncia entre a lngua aprendida e a lngua copiada, em que condies

    de fidelidade ou de inconstncia em relao ao exemplar, etc.).

    O meu primeiro contacto com o Cancioneiro da Ajuda procedeu de uma estadia em

    Itlia, no Istituto de Filologia Romanza (Universit 'La Sapienza') em Roma, resultante a uma

    breve aprendizagem de lngua italiana na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A

    escola italiana de filologia e literaturas romnicas, a romana em particular, aquela que mais se

    activava na edio crtica de trovadores galego-portugueses, no podia deixar de estimular uma

    bolseira portuguesa no projecto de realizao de mais uma edio crtica que pudesse

    contemplar um trovador, cuja identidade, aps as investigaes de C. Michalis, se pressupunha

    integrar a coleco ajudense. Ao poeta Rodrigo Eanes Redondo , pertencente a uma

    linhagem activa durante os reinados de Afonso III e Denis, senhor em Santarm e prximo do

    poder rgio, deveriam ser atribudas algumas das cantigas reproduzidas pelo Cancioneiro da

    Ajuda (Ramos 1993c).

    Ora, o Cancioneiro da Ajuda, sem entrar na explicao de um caso peculiar, no

    desfruta de qualquer rubrica atributiva e, rapidamente, me pareceu que no bastaria editar,

    adoptando os instrumentos da crtica textual, as cinco cantigas presentes no Cancioneiro da

  • Prolegmenos

    8

    Ajuda (A 180 - A 181 - A 182 - A 183 - A 184), sem compreender como estavam organizados os

    trovadores nesta coleco e como, em confronto com o resto da tradio, se poderia

    efectivamente atribuir ou no estes textos mais a um autor do que a outro. A edio crtica, por

    outro lado, nunca se poderia privar de um contorno histrico, relativo ao autor das cantigas

    estudadas. De mais a mais, quando nas primeiras vezes observei o cdice, o flio, que continha

    estas cantigas, distinguia-se como um flio desarticulado e sem aderncia aos cadernos

    contguos apontando, parecia-me nessa altura, para uma situao material bastante fragilizada e

    obscura.

    Antes de dar incio ao trabalho editorial e, depois de ter feito a transliterao

    diplomtica deste corpus textual, confrontos casuais com outros sectores do manuscrito

    interpelavam-me quanto disposio das cantigas e quanto a certos procedimentos grficos

    presentes neste pequeno conjunto potico. Parecia-me difcil, para no dizer impossvel, encetar

    uma fixao textual quando a base que a transmitia no me inspirava qualquer probidade. Deste

    conjunto apenas uma cantiga se encontrava retranscrita nos Cancioneiro Colocci-Brancuti e

    Cancioneiro da Vaticana, o que no me confortava na procura de apoio crtico em uma tradio

    mais tardia que, eventualmente, viesse a contribuir para a clarificao de um conjunto potico

    diminudo pelo testemunho do cdice mais antigo e, de forma geral, mais investido de

    autoridade.

    Talvez ainda sem uma percepo plenamente fundamentada, devo ter interiorizado e

    decidido que a edio crtica daquele poeta no se poderia efectuar, em nenhuma circunstncia,

    sem um entendimento global dos critrios subjacentes disposio de todas as cantigas na

    coleco colectiva.

    Para um dos primeiros congressos, dedicados produo lrica galego-portuguesa (Pisa

    1979), pedia-se-me que verificasse o estado material do Cancioneiro da Ajuda, aps a descrio

    do cdice de C. Michalis em 1904. Passadas dezenas de anos, e no comeo da efervescncia de

    estudos sobre cancioneiros, provenais, franceses e italianos no quadro da tradio romnica

    ocidental, procurava-se saber se o Cancioneiro de Lisboa se teria entretanto deteriorado, ou se a

    descrio de C. Michalis teria apurado efectivamente os aspectos mais essenciais do estado

    material do cdice necessrios crtica textual.

    Mais do que me aperceber da gigantesca perspiccia da eminente filloga, era dar-me

    conta de que, alm do seu envolvimento na restituio textual, tivera alguma ingerncia no

    restauro de um Cancioneiro, que tinha sido encontrado em mau estado e com cadernos

    praticamente desagregados. Nas suas palavras, no momento em que o viu, em 1877, dizia que

    o volume todo andava retalhado em seis parcellas (Michalis 1904, II: 145) e na substituio

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    9

    da encadernao confirmava: e dei explicaes minuciosas sobre a ordem original das

    folhas, incluindo as de Evora (Michalis 1904, II: 102).

    A restaurao no juntar as parcellas teria sido preparada tambm com fundamento

    nos Cancioneiros italianos, que acabavam de ser descobertos em 1840 (Moura 1847; Monaci

    1875) e em 1875 (Molteni 1880), o que nos permitia questionar a legitimidade de uma ordem

    primitiva do Cancioneiro da Ajuda, concordante ou distinta dos cancioneiros italianos.

    Escrutnios parciais deste confronto no me aconselhavam s actualizao da descrio do

    manuscrito. Estimulavam-me mais ao estudo do Cancioneiro como um objecto material que

    detinha um agregado de textos poticos dissemelhantes e que no parecia ser portador de um

    corpus textual uniforme. Ao prosseguir o estudo de uma fraco textual, a editar

    individualmente, retiraria ao conjunto da coleco, em meu entender, um proveito colectivo que

    concorreria, por certo, para melhor entendimento do sector atribuvel a um nico autor, Rodrigo

    Eanes Redondo, ou a qualquer outro trovador.

    No sei, mas creio que o nome deste trovador no deve ter entusiasmado muito Lindley

    Cintra. Mesmo se a edio se alargasse a outros trovadores da famlia Redondo, a edio crtica

    de uma produo textual diminuta, e de poetas de algum modo menos renomados, no o

    animava. No entanto, a fora que me impelia ao exame da integralidade do Cancioneiro resistia

    colossal edio de C. Michalis com os seus milhares de pginas, e a todas as Randglossen

    que ao Cancioneiro da Ajuda se referiam e, ao mesmo tempo, confrontava-se com as aspiraes

    de Lindley Cintra no que dizia respeito aos estudos necessrios lrica galego-portugesa.

    A Lindley Cintra, no se institua, por isso, esta possibilidade de estudo global de um

    manuscrito como um desempenho profcuo, que j estava amplamente estudado desde o

    princpio do sculo vinte dizia-me , para no final abordar apenas a elaborao de uma

    pequena edio crtica de um ou de dois trovadores de uma linhagem discreta. Alm disso,

    acredito que temesse a minha tentao para a execuo de um trabalho, excessivamente tcnico,

    ou para uma colecta de dados quantitativos e distributivos, sustentado por matrias que cada vez

    mais se afirmavam no seu prprio campo de actividade como a Filologia, sim, mas entendida

    como um conjunto de disciplinas (scriptologia, grafemtica, codicologia, paleografia,

    diplomtica, reflexes tericas sobre metodologias aplicadas ao mais produtivo exerccio da

    crtica textual, etc.), animadas, em particular, por Ivo Castro.

    Pressinto tambm que, naquela altura, ao mencionar-lhe alguns aspectos grficos que

    tinha detectado naquele abreviado conjunto textual, o alertava para faltas de estudos que o

    deveriam perturbar. O seu Prefcio edio fac-similada do Cancioneiro da Vaticana (1973) e

    o projecto para estudar linguisticamente o Cancioneiro Colocci-Brancuti, anunciado depois na

    publicao tambm fac-similada deste cancioneiro em 1982, confirmavam este seu anseio por

  • Prolegmenos

    10

    uma descrio da lngua representada por cada um dos cancioneiros. Assim, verdadeiramente

    persuasivo, decidiu que a utilidade mais premente no procederia de uma edio de Redondos,

    mas de um estudo que contemplasse outro propsito que se poderia intitular A lngua do

    Cancioneiro da Ajuda.

    No era, com certeza, indita a alterao que se operava em um plano de estudo,

    previamente elaborado na dependncia de certo manuscrito. Modelo expressivo era o que se lia

    justamente no prefcio da Crnica Geral d'Espanha de 1344 onde o prprio Lindley Cintra

    confessava: longe estava eu ento de suspeitar as surpresas que me reservava o estudo detido

    do extenso texto. Pensava encar-lo exclusiva ou quase exclusivamente como documento

    lingustico; o seu interesse histrico-cultural e literrio havia de manifestar-se-me pouco a

    pouco e acabaria por impor-me como mais urgente a tarefa de o revelar, levando-me a deixar

    provisoriamente de parte o projecto e no menos importante comentrio lingustico do texto

    (1983, I: XVII).

    No devia na sua determinao estar afastada do seu esprito a ideia remota de Leite

    de Vasconcellos, expressa nas suas Lies de Filologia, com uma pequena insinuao maliciosa

    edio de C. Michalis. Na explicao de alguns textos trovadorescos, no se eximia de

    afirmar em 1911 [1 ed.] que ao Cancioneiro da Ajuda, depois da edio e investigao de C.

    Michalis (1904), faltava ainda um 3. volume, destinado ao estudo da lngua (Leite de

    Vasconcellos 1966: 94, n. 3). Foi com aquela agudeza que Lindley Cintra me desviou

    completamente de uma edio crtica da famlia dos trovadores Redondo e me convencia ao

    estudo de A lngua do Cancioneiro da Ajuda. Recordo mesmo que, em momentos mais

    fervorosos, me instigava ao empreendimento mais ambicioso, o exame da Lngua dos

    trovadores galego-portugueses.

    A esta distncia, no deixa de ser significativo constatar como a primeira aproximao

    ao Cancioneiro da Ajuda foi motivada por um obstculo concreto relativo viabilidade de uma

    edio crtica de um trovador. E no deixa ainda mais de ser simblico reconhecer, hoje, que a

    produo potica, atribuvel a Rodrigo Eanes Redondo, aps exames histricos e codicolgicos,

    no deve nunca ter feito parte da coleco ajudense.

    Assim sendo, subsistia o estudo da Lngua. Lembro-me, passado algum tempo, de ter

    sado de Lisboa para Roma com um projecto de trabalho muito bem organizado. Lindley Cintra

    tinha-me estruturado um plano que se configurava a um ndice de uma boa gramtica histrica.

    Convenci-me, e persuadi-o, de que no estudaria a lngua dos trovadores, mas examinaria s a

    lngua representada pelo Cancioneiro da Ajuda. Era um Cancioneiro que estava em Lisboa, o

    acesso ao manuscrito era cmodo, era um Cancioneiro que tinha uma boa edio diplomtica e

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    11

    era, alm disso, um manuscrito que possua j um largo estudo histrico-literrio. Imaginei, por

    isso, um trabalho bastante exequvel, sem obstculos e sem grandes embaraos metodolgicos.

    Antes do encontro com Aurelio Roncaglia, absorvi os seus trabalhos, La lingua dei

    trovatori (1 ed. 1965) para o provenal e a La lingua d'ol (1 ed. 1971) para os trouvres.

    Queria estar muito informada para a reunio onde apresentaria o meu projecto. Repeti infinitas

    vezes o dilogo imaginrio que queria ter com o grande fillogo romano. Arquitectei todas as

    suas perguntas. Ensaiei a rplica a todas os seus mais provveis obstculos. Na minha realidade,

    estava tudo, as palavras, as pausas, os silncios, os pedidos de ajuda e de opinio. Mais do que

    um exame, mais do que uma defesa de argumento, este encontro parecia-me bem preparado.

    Naquele momento, a lngua dos trovadores do Cancioneiro esboava-se num horizonte

    quadriculado onde se viam todas as linhas e onde s faltava o preenchimento dos vazios e eu

    sabia pensava saber como preench-los.

    Vieram as perguntas. A mais glacial, s por ter permanecido intacta na minha memria,

    e por ter desencadeado outras, proferia: como estudar a lngua de um Cancioneiro se o objecto

    cancioneiro no um objecto uniforme. O Cancioneiro da Ajuda era uma antologia, uma

    compilao ou uma crestomatia? Quantos autores? Que autores? De onde? Quantos copistas?

    Quantos organizadores? Que modelo? Que modelos? At aquele momento, pensava que tinha

    entendido o essencial do que j estava escrito por C. Michalis, julguei que as minhas

    preocupaes com os elementos codicolgicos poderiam resolver as questes primordiais ao

    estudo da lngua, mas quase nenhuma daquelas interrogaes me tinha ocorrido. Na precipitao

    do dilogo, parecia-me j que o Cancioneiro da Ajuda no era um, mas vrios documentos

    adicionados uns aos outros. E um estudo de lngua, seja ele de que natureza for, no poderia

    fixar-se do mesmo modo em um texto nico ou em uma pluralidade de textos difundidos por

    uma superfcie nica. Passado o tempo, que me separa desta conversa, verifico que esta intuio

    no se averiguou como contrria realidade.

    Como avaliar ento este corpus que me tinha sido definido como indivisvel e

    compacto? Um livro danificado s pelas vicissitudes do tempo? J no era s a dificuldade de

    anlise de lngua de um texto literrio problema incontornvel , mas de um exame de lngua

    de textos compsitos, aditados uns aos outros em concordncia com certos critrios de

    admissibilidade, que precisavam de ser revelados. Foi talvez naquela tarde de ottobrate romane

    que a minha lingustica se alvoroou e nunca mais me deixou olhar para o(s) texto(s) nem para

    a(s) palavra(s) da mesma maneira. Aquela Filologia no era, entendi-o logo tambm naquelas

    horas, uma disciplina, era um mtodo de trabalho exigente que se aplica na dependncia da

    natureza do objecto submetido a exame.

  • Prolegmenos

    12

    Estudar, estudar, comparar, procurar entender, entender, interpretar, repetia-me

    incessantemente. O objecto impunha certos exames e a anlise deste Cancioneiro no poderia

    contentar-se s com a palavra nem com a superfcie grfica. Era necessrio, antes de tudo,

    decretar se o Cancioneiro da Ajuda poderia ser uma fonte lingustica em primeiro lugar e, em

    segundo, se poderia constituir-se como uma boa fonte lingustica. S no me disse Aurelio que,

    muitas vezes, o objecto mais forte do que o observador, por mais obstinada que seja a sua

    perseverana. Vrias vezes, o carcter irresolvel perseverava. Cada caso institua-se como um

    problema em si e no parecia existir um mtodo soberano, capaz de tudo resolver na

    integralidade.

    Aprender esta diversa estima pela palavra no sentido mais lato, com tudo o que a

    envolve quem a escreve, onde a escreve, com que meios, com que arte, com que organizao,

    com que modelos e restituir o Texto sua forma mais genuna passaram a constituir o alvo

    do que se pretendia alcanar. Antes de estudo da Lngua, era o estudo do suporte da Lngua que

    se sobrepunha.

    A entendi que o meu pas, Portugal, possua um condicionamento. A geografia, este

    extremo ocidente europeu, tinha implicaes na recepo e no entendimento da civilizao ou

    da histria das tradies de cultura. Fazendo os mesmos estudos, e aparentemente os mesmos

    itinerrios acadmicos, no lamos as mesmas coisas, no aprendamos de igual modo, no

    procurvamos as mesmas respostas, no tnhamos os mesmos livrosA minha Filologia para

    textos portugueses, ou galego-portugueses, aproximando-se de uma romanstica histrica, no

    era a Filologia Romnica romana.

    Trabalhar em Filologia Romnica, como demonstrava Aurelio Roncaglia, era uma

    maneira de me dizer que o estudo do Cancioneiro da Ajuda no se poderia nunca fazer sem uma

    ampla Filologia, sem a compreenso dos outros cancioneiros romnicos. fora do

    entendimento pelo cotejo, que salienta as correspondncias e evidencia as disparidades, Aurelio

    Roncaglia insistia no estabelecimento de limites, no s de um produto literrio potico

    heterogneo para uma persuasiva restituio lingustica, mas na necessidade de recorrer a

    instrumentos mais potentes para a anlise de manuscritos repertoriais, que no s

    contemplariam as circunstncias de transmisso textual, como deveriam qualificar as superfcies

    paleogrfica e grafemtica, requeridas por um manuscrito definvel como arquivo potico

    inomogneo.

    Assim se integrava o Cancioneiro da Ajuda nos projectos de investigao sobre

    cancioneiros romnicos na escola filolgica romana Interrelazioni fra settori culturali distinti

    nelle letterature romanze del duecento como mais uma parcela a adicionar ao movimento

    colectivo de recolhas poticas medievais.

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    13

    Uma escola uma continuidade metodolgica, no necessariamente uma

    homogeneidade de procedimentos bem sei , mas foi sobretudo a transmisso de

    problemticas constantes na aplicao de mtodos comuns que mais permitiram o exame

    orientado do Cancioneiro da Ajuda. Essa identidade, concentrada na mais ajustada observao

    do texto literrio, no procurava entend-lo apenas como monumento e produto esttico, mas

    como determinar da forma mais completa possvel as circunstncias de cpia. E um dos pilares

    desta escola, Monaci, j o afirmava em 1875: Perch la futura critica del testo non manchi di

    fondamenta necessario di determinare fino che sia possibile in quale modo il testo fu copiato.

    (Monaci 1875: XII). Assim, se assinalava esta escola abrangente entre Filologia e Lingustica,

    entre operaes ecdticas, que aprofundam e reaxaminam a metodologia lachmanniana, entre

    determinao da historicidade do texto e interaces multidisciplinares e multimetdicas no

    estudo e na fixao das estruturas formais mais profundas e mais superficiais do texto. Da

    identidade de um texto nico, ao qual se aparentava o Cancioneiro, se deveria ento irradiar

    para um policentrismo crtico, preservando sempre a bipolarizao entre texto e mtodo

    filolgico, coordenando a cada instante a sistematicidade sincrnica e o movimento diacrnico

    na organizao do Cancioneiro.

    Nesta estratgia metodolgica de conjugao da soma de conhecimentos adquiridos

    mais correcta aco de editar, era necessrio determinar em primeiro lugar a melhor

    caracterizao possvel da fonte que difunde o texto na procura das condies que teriam

    envolvido o acto de escrita. A preocupao essencial na obteno de um texto original centrava-

    se na possibilidade de uma edio exegtica, ao restabelecer e avaliar os comportamentos da

    escrita do Cancioneiro da Ajuda para decompor uma tradio textual que nos chegou

    adulterada.

    Dado o seu carcter de objecto textual complexo, a pesquisa teria de prefigurar, para j,

    o contorno do estdio grfico representado, mais do que reconhecer uma superfcie apta a um

    aproveitamento como fonte lingustica. Uma fonte que se distingue no no sentido em que

    normalmente encaramos as fontes escritas do passado grafias que podem ou devem deixar

    transparecer estdios passados de lngua , mas como uma matriz complexa. Uma fonte que no

    se evidencia s pela interveno diversa de mos, mas pela variedade de materiais e pelo

    procedimento organizativo que deixa entrever um plano que agregava produtos de diversas

    autorias, procedncias e de distintas cronologias. A reconstituio do desempenho da cpia

    textual e o reconhecimento dos modos de traslado tornavam-se assim essenciais para a

    caracterizao de uma escrita literria, que teria ou no eliminado na obra colectiva a

    especificidade prpria de cada obra individual.

  • Prolegmenos

    14

    Foi com esta trajectria metodolgica que os primeiros ensaios sobre o Cancioneiro

    da Ajuda se focalizaram sobre o porqu de certos aspectos que pareciam depender

    directamente de uma organizao voluntariosa do manuscrito. O primeiro deles interrogava a

    falta de um sistema numerativo original do cdice. Uma tipologia numerativa constituiria pela

    prpria ndole o primeiro elemento que corroboraria determinada sucesso de cadernos e de

    flios no manuscrito. O ordenamento textual, revelado pela numerao, poderia concorrer para a

    instituio de uma tipologia estrutural procedente de preceitos baseados na geografia (autores

    galegos, autores portugueses, outros autores, etc.), na cronologia (trovadores mais arcaicos,

    trovadores mais recentes, etc.), ou em qualquer outra norma avaliativa quanto incluso do

    material potico. A ausncia, quase total, de processo de numerao primitivo evidenciava um

    dos problemas srios referente ordenao textual, sobretudo quando sabamos que a

    encadernao no sculo XIX tinha sido supervisionada por C. Michalis que interpretara e

    avaliara muitas das sequncias textuais que hoje conhecemos. Os sintomas, portanto, quanto a

    uma disposio original de autores no eram automaticamente demonstrveis e, ao mesmo

    tempo, o nico indcio, deixado pelas assinaturas primitivas apenas em dois cadernos, no se

    combinava com a ordem actual. A formulao de juzos interrogantes consentia a expresso de

    algumas conjecturas, pelo menos, quanto ao significado das duas indicaes numerativas e

    deixava objectivamente entrever problemas srios na linearidade da disposio daqueles

    sectores (Ramos 1985).

    Uma vez que o Cancioneiro da Ajuda se mostrava como um manuscrito incompleto

    textualmente, e inacabado materialmente, a anlise dos espaos deixados em branco tornava

    patente que os vazios no eram, afinal, resultantes a fortuitos actos de cpia, destitudos de

    sentido, mas vacuidade correspondia um programa dotado de sistema que anunciava

    processamentos separativos quanto insero dos trovadores. Cada conjunto textual acatava

    certo nmero de regras decorativas, o que de algum modo concedia ao Cancioneiro da Ajuda,

    apesar da ausncia de rubricas atributivas, princpios de repartio autoral e textual bastante

    ntidas. Este factor permitia rediscutir e reanalisar alguns casos de atribuio complexa,

    resultantes de distrbios ocorridos na tradio posterior. O Cancioneiro da Ajuda no era,

    afinal, um manuscrito que reunia um conjunto de textos annimos, mas uma coleco que

    recolhia um nmero determinado de autores, mesmo sem nome, identificvel por um sistema

    rgido da respectiva disposio textual (Ramos 1986; 1986b).

    Outro estudo, apesar de publicao com data anterior, derivava ainda da inspeco dos

    espaos em branco. A previso musical, perfeitamente comum, na primeira estrofe explicava-se

    por uma suspenso do trabalho, ou por uma dificuldade no recrutamento de tcnicos

    especialistas na transcrio musical. Mas o mesmo tipo de previso em alguns finais das

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    15

    composies poticas, nas fiindas, demonstrava tambm uma previso para uma escrita musical.

    Esta, verdadeiramente inslita, no se adequava de modo algum aos modelos que se conheciam

    da transcrio musical conhecida em outros cancioneiros.

    Perante o carcter extraordinrio deste fenmeno, que se comprovava no constituir

    um equvoco de quem copiava, o Cancioneiro da Ajuda assumia novo papel determinante em

    toda a produo medieval europeia. No se conhecem hoje outros cancioneiros que tenham

    transmitido este elemento musical para a interpretao do remate conclusivo das cantigas e

    diversos estudos musicais mais recentes vieram corroborar esta excepcionalidade (Ramos 1984;

    Ferreira 2004).

    O papel musical do cdice acentuava-se com outra observao que poderia cair na

    explicao da banalidade de uma incorrecta separao de palavras na escrita medieval. As

    separaes silbicas e intervocabulares, que se documentavam nas estrofes com previso

    musical, no eram consequentes a um comportamento arbitrrio grfico, mas a uma

    correspondncia precisa na dispositio do texto notao musical do modelo. O posicionamento

    literal, subordinado escrita musical, no podia ser examinado na imperfeita unio e separao

    de palavras, mas como um elemento imprescindvel presena ou ausncia, por exemplo, de

    contiguidades grficas e melismas musicais. A separao grfica apontaria em muitos casos

    para alongamentos de slabas na interpretao do canto, cujos melismas, no precisariam de

    uma representao hitica do ponto de vista grfico. Alm disso, a mise en texte permitia assim

    solucionar problemas de transmisso textual (fiindas com espao interpretadas como

    composio monostrfica) devidos ao distrbio suscitado pelo espao musical nas primeiras

    estrofes e nas fiindas (Ramos 1985; 1995; 2005; Ferreira 2004).

    O silncio musical abre perspectivas analticas muito significativas, quer para a

    interpretao de certos procedimentos grficos, que procedem da configurao fsica, quer para

    a funcionalidade de um manuscrito de natureza musical previsto para leitura distncia, exposta

    para partitura de canto.

    O carcter inacabado do manuscrito permitiu tambm o estabelecimento de uma

    tipologia procedente da descodificao do programa textual da coleco. A eloquncia dos

    espaos em branco, como na altura denominei, no s divulgava uma explanao quanto ao

    programa decorativo em geral, no s mostrava como esta indicao, aparentemente s esttica,

    favorecia uma intencional separao de autores, mas desvendava tambm suspenses textuais

    indubitveis. O carcter pendente conferia desta maneira insuficincias aos modelos do

    Cancioneiro da Ajuda. No s no comportariam materiais de ptima qualidade, como o

    compilador, ao prever espaos para ulterior preenchimento textual, apontava-nos a faculdade de

    em outro momento poder aceder a outros materiais mais ricos e mais completos para a sua

  • Prolegmenos

    16

    coleco. Uma tradio que circulava, portanto. Assim, se caracterizava em alguns sectores um

    dos primeiros indcios sobre o carcter mediano dos exemplares, mas ao mesmo tempo exclua-

    se a prtica de composies monostrficas na lrica galego-portuguesa figuradas pelo

    Cancioneiro da Ajuda, como se podia constatar em outras tradies lricas. A anteviso textual

    nestes casos sugeria o perfil de um coleccionador ciente de uma tessitura formal que o seu

    modelo trazia em modo truncado (Ramos 2004; 2006).

    Por outro lado, a observao das correces marginais possibilitava presenciar o

    cuidado explcito na verificao da transcrio textual de quem copiara, mas vinha sobretudo

    mostrar neste cotejo que os materiais utilizados para a averiguao textual do Cancioneiro no

    eram em todas as situaes da mesma ndole. O acesso a outras fontes para confronto punha em

    evidncia o testemunho directo relativo a materiais perdidos de melhor qualidade que serviram

    para melhorar algumas lies primitivamente copiadas e que nunca chegaram a ser utilizados

    pelo antecedente dos cancioneiros quinhentistas. A revelao destas fontes laterais concedia ao

    Cancioneiro da Ajuda um valor inestimvel no s pela sua alta cronologia, que era em parte

    conhecida, mas especialmente pelo testemunho srio de uma tradio textual activa, talvez

    mesmo contaminada por fontes no identificveis fora do stemma (Ramos 1993).

    Foi o exame das emendas marginais que me fez aproximar das assinaturas do antigo

    possessor do Cancioneiro da Ajuda. Assim, surgia pela primeira vez na histria do manuscrito o

    nome de Pedro Homem, poeta includo no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e

    estribeiro-mor de D. Manuel I, proprietrio do cdice no sculo XV. Todavia, alm da presena

    do Cancioneiro da Ajuda nas mos de um cavaleiro prximo da corte rgia, vamos que uma

    das suas composies poticas quatrocentistas mencionava justamente o rei D. Denis como

    poeta. A caracterizao do perfil deste poeta permitiu localizar o Cancioneiro da Ajuda em

    vora durante o sculo XV e a referncia a Obras del Rey Dom Denis, descoberta no catlogo

    de D. Teodsio (1510?-1563), quinto duque de Bragana, apontava para a presena meridional

    do cdice em ambientes rgio, corteso e senhorial durante este perodo (Ramos 1999; 2001).

    A histria do manuscrito precisava-se, os critrios organizativos transpareciam e estes

    dados apontavam para hipteses constitutivas de um cdice que nunca deveria ter sido

    concludo, o que por outro lado, questionava a possibilidade de entrever um manuscrito nunca

    aprontado como objecto para oferta ou troca. De algum modo este carcter no findado

    invalidava a suposio de um Cancioneiro, confeccionado em Castela, suspenso pela morte de

    Afonso X, mas oferecido a D. Denis. Parte destas ilaes foram sinteticamente expostas no

    estudo que acompanhou a edio fac-similada do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1994).

    Mas de tudo isto ressaltava fundamentalmente a noo de que, interrogado o

    Cancioneiro da Ajuda, ele no se poderia erigir como fonte lingustica primria e unssona.

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    17

    Alm da sua qualidade cronolgica, tinha de ser visto como livro miscelneo e no como livro

    unitrio. Se o carcter literrio estorva e frustra exames de reconstituio lingustica, mais

    decepcionante seria a apresentao de um sistema lingustico recolhido em uma fonte multplice

    e alheia aos ditames mais incontornveis (transcrio no autgrafa, omisso de data e de local,

    pluralidade de autores, de provenincias e de cronologia). O Cancioneiro da Ajuda no mostrar

    mais do que uma variedade escrita de uma lngua literria, historicamente determinada, que foi

    objecto de codificaes significativas.

    2. Apresentao do estudo

    2.1. Objectivos

    O enunciado dos objectivos deveria proteger-se sob a precauo expressa por G. Contini que,

    acerca das dificuldades da anlise formal, dizia na sua famosa Postilla 1985 ao ensaio Filologia:

    certo che in linea generale maggiori difficolt sorgono attualmente dalla riscostruzione

    formale che da quella sostanziale (Contini 1986: 64-65). O seu attualmente, daquela altura,

    deve introduzir hoje o mesmo tipo de cautela.

    Perante a complexidade de problemas colocada pelo manuscrito e perante alguns dos

    resultados, entretanto obtidos, o projecto deveria prosseguir no s pela pesquisa da mais

    apropriada explicao quanto composio do manuscrito, mas tambm pela indagao de

    sintomas que deveriam caracterizar este Cancioneiro como um manuscrito que,

    presumivelmente, no seria apenas uma cpia simples e parcial de um modelo estvel.

    O presente estudo retoma naturalmente a anlise de 1904 e inscreve-se em uma

    metodologia que tem como suporte uma seleco de instrumentos codicolgicos e de

    indicadores grafemticos que conduz a uma descrio pormenorizada quanto histria material

    do manuscrito, ao modo subjacente ao plano, organizao, execuo, sequncia dos

    trovadores, ao ordenamento dos textos, mise en page, mise en texte, ausncia de uma mise

    en livre inicial, etc., e superfcie textual, propriamente dita, isto , apreciao dos sistemas

    paleogrficos e grafemticos adoptados pelo conjunto da colectnea.

    No sendo explcito por um clofon o local de produo do Cancioneiro, a anlise de

    alguns procedimentos da prpria confeco ou da morfologia paleogrfica no elucidam, no

    entanto, um scriptorium preciso, mas enumeram princpios e critrios que dirigiram a cpia

    deste texto literrio, mesmo se sabemos, hoje, que elementos concordantes no definem

    necessariamente um atelier ou um ambiente particular. Se o exame paleogrfico-grafemtico

    poder explicar alguns dos mais complexos problemas ecdticos, que se colocam na exegese de

  • Prolegmenos

    18

    uma tradio antolgica, o questionrio grafemtico orientado pretende determinar a coerncia

    de um comportamento (micro)grfico ou (orto)grfico do(s) copista(s) perante o(s) texto(s)

    isolado(s) do(s) trovador(es) ou perante a(s) colectnea(s) que devia(m) transcrever.

    O propsito mais essencial busca alcanar respostas sobre a construo do manuscrito e

    sobre a implicao dos responsveis no conjunto de actividades indispensveis edificao de

    um cdice potico de grande formato. Tentar saber como foi arquitectado o Cancioneiro era

    uma maneira tambm de entender como que os textos, que hoje conhecemos, se encontravam

    recolhidos nesta coleco. Porque que os textos incompletos estavam circunscritos s a certos

    sectores? Porque que alguns textos estavam limitados a uma nica estrofe? Porque que

    alguns ciclos textuais calculavam espaos mais ou menos abundantes de pergaminho para

    outros textos, quando sabemos que o desperdcio de pergaminho no qualificava a confeco

    manuscrita medieval? Como justificar a presena de uma duplicao textual, e como

    fundamentar as correces marginais, inseridas ou no no corpus potico principal. As rasuras

    procediam de quem copiava, ou de quem emendava? E como avali-las? Como simples

    verificao textual pelo modelo de base para a correco de alguns erros de copista? Ou por um

    cotejo textual diferenciado mais apropriado?

    A observncia do trabalho de traslado textual obtm resultados que decorrem do modo

    de incluso dos diversos ciclos na organizao colectiva, e permite formular importantes

    reflexes sobre a configurao estemtica e sobre a funo que efectivamente desempenha o

    Cancioneiro da Ajuda na histria da tradio literria galego-portuguesa. Da circunstncia

    incontestada de um manuscrito incompleto e inacabado, definida em relao a vrios pontos de

    referncia, resulta um manuscrito, que ao no ter existido nunca como livro completo, evidencia

    fases de fabrico que as vicissitudes temporais no suprimiram.

    Toda a problemtica inerente a uma tradio textual heterognea acentua-se neste caso

    com um trabalho que ainda estava a ser organizado, um projecto que estava a decorrer. As

    consequncias textuais de uma tradio repertorial sublinham a dificuldade de um traado de

    um plano ecdtico com um manuscrito alm do mais no finalizado. As interrogaes quanto

    consistncia do arqutipo solidificam-se e a comprovao de possibilidades de aproveitamento

    de mais de um modelo constrange a observao crtica de qualquer sector e confere ao

    Cancioneiro da Ajuda um estatuto muito mais valorizado que anula a simples passagem

    instintiva de um exemplar a uma cpia.

    Alm do trabalho sem real finalizao, as implicaes do formato e da ndole de um

    manuscrito musical instituir-se-o na configurao textual como vias incontornveis, quer na

    cpia textual (cpias, correces, mudanas de mo, tintas, lacunas, insuficincias decorativas,

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    19

    etc.) quer nas opes grficas tomadas por cada um dos intervenientes na cpia das cantigas

    (preferncias, ou renncias, concedidas a um ou a outro sinal grfico, etc.).

    A questo substancial pode ento cingir-se a uma de duas possibilidades: ter sido a

    diversidade textual submetida a uma tessitura grfica coesa, ou a transcrio espelha-nos ainda

    estdios preliminares e diatpicos da tradio? Qualquer um dos desfechos auferidos no

    deixar de concorrer para um exame ponderado quanto ao modo de propagao desta poesia

    medieval entre produo individual e recolha colectiva, tendo presente que a constituio deste

    projecto se efectua ainda durante certo dinamismo do movimento potico trovadoresco.

    Os exames textuais por si s no bastavam. Outras questes impuseram-se. Como

    interpretar certas imprecises de natureza material? Quais os motivos que justificam a

    permanncia de apenas duas assinaturas em dois cadernos? Como aprear a disposio de flios

    soltos em certos sectores do manuscrito? Como avaliar a colocao assimtrica do pergaminho

    em determinadas zonas? da articulao entre a anlise material e o posicionamento textual que

    provir a descrio da estrutura dos cadernos e dos flios soltos, e da arrumao das cantigas

    que, por sua vez, explicitar sequncias sem decursos e incorporaes mais diferenciadas em

    relao ao conjunto.

    As incluses textuais mais avulsas foraram a investigao para o exame decorativo e

    para a prpria encadernao. Uma estrutura fascicular resistente apontaria para um estdio mais

    determinado e mais disposto para a operao final de um conjunto de cadernos prontos para o

    acto de encadernao. A ideia geral, bem propagada, de que o carcter incompleto do

    Cancioneiro da Ajuda provinha de uma laborao em um scriptorium afonsino, suspensa pela

    morte do rei (Alfonso X morre em 1284), evidenciaria em princpio maior nmero de

    negligncias nos sectores finais. Ora, o exame decorativo facultar indcios significativos para a

    reconstituio de um trabalho esttico com mais forte implicao na organizao textual, do que

    na ornamentao de um manuscrito. Porqu?

    Da mesma maneira, os diversos estdios da encadernao do cdice vo contribuir para

    dar a conhecer situaes materiais significativas quanto existncia ou falta de uma proteco

    primitiva em um conjunto de cadernos de um projecto que no estava terminado. Estas

    operaes, que em diferentes momentos revestiram este conjunto de cadernos, no s podem

    explicitar um itinerrio cultural, como confirmar o carcter precrio do aspecto geral do cdice.

    Com este tipo de cmputo poder-se- implementar um conjunto de instrumentos

    editoriais indispensveis anlise de um texto nico, ou de um ciclo de textos, interposto nesta

    tradio de formas multplices. Ao definir como discordante ou idntica a actuao de quem

    copia, ou de quem orientou a cpia, em relao ao(s) modelo(s), poder depreender-se melhor a

    insero textual no objecto Cancioneiro.

  • Prolegmenos

    20

    O livro medieval , na maioria das vezes, um livro compsito ou, pelo menos,

    miscelneo, contendo obras de mais de um autor. Se esta afirmao vlida para recolhas de

    vrios tipos de textos, ainda mais convincente se converter no caso de coleces, que contm

    obras em verso de mais de um poeta. Quer se preconize para estas coleces uma noo de

    antologia, que implica naturalmente critrios de escolha na obteno de um cnone, quer se

    esteja perante uma coleco de obras reunidas na urgncia de uma base compilativa, o

    Cancioneiro da Ajuda ilustrar estas diferentes atitudes. Alguns sectores parecem responder ao

    critrio da escolha e outros retratam o acto da compilao.

    O exame paleogrfico, alm de ilustrar performances tcnicas expressivas, revelar

    procedimentos grficos particulares dependentes de um grande formato, de uma disposio

    textual e da natureza musical do cdice. Mais do que a demarcao de mos, a aplicao mais

    ou menos disciplinada de procedimentos especficos para o tipo de gtica seleccionada que

    melhor caracterizar o comportamento vigilante na transcrio destas cantigas.

    A estratificao, fsica e paleogrfica, poder ser em parte validada pela anlise

    grafemtica, que tanto apontar para superfcies grficas de grande uniformidade, como pode

    demonstrar a particularizao de sectores bem demarcados no conjunto das adies textuais. O

    estudo da mise en graphie procurar assim entrever se s unidades compactas se sobrepem ou

    se sobpem estratos diferenciveis que possam acusar itinerrios textuais distintos.

    Deste estudo resultar que a disposio paralela ou subparalela no se posiciona apenas

    no plano de uma degradao material de um cdice, mas procede de circunstncias sucedneas a

    um projecto que no chegou a ser efectivamente um Cancioneiro acabado. O Cancioneiro

    actual o que nos subsiste de um plano organizativo de um programa de recolha de poesia lrica

    galego-portuguesa, que ainda estava a transcorrer, no o esqueamos. O processo de

    cristalizao material apontar para a coexistncia de mais de um modelo para a confeco desta

    recolha e a interligao entre a fenomenologia interna (corpus textual) e a composio

    reconhecida pela fenomenologia externa (produto codicolgico) revela uma contextura que

    anula a simples reproduo de um cancioneiro a outro cancioneiro.

    A considerao dos problemas materiais e dos estratos paleogrficos e grafemticos

    permite explicar as vrias irregularidades, quer no plano da tradio textual, quer no plano da

    produo de um objecto-cancioneiro especfico quanto configurao fsica (ordem de

    grandeza, manuseamento e funes vitais para o canto e exegese musical) e quanto

    visibilidade grfica para uma leitura dinmica (velocidade e eficincia de leitura,

    reconhecimento de hbitos e de tcnicas de leitura em uma escrita prevista para a interpretao

    coral).

  • O Cancioneiro da Ajuda. Confeco e Escrita

    21

    Qualquer exerccio de crtica textual, individual, ou em srie, referente ao Cancioneiro

    da Ajuda, dever assim com base em este tipo de investigao considerar as contingncias,

    codicolgicas, paleogrficas e grafemticas, quer quanto a decises subordinadas a critrios de

    transcrio, quer quanto ao lugar que ocupam os textos e os trovadores insertos na coleco

    ajudense.

    Mais do que prosseguir na busca obsessiva e na reconstituio de um original,

    convir ainda aprofundar o conhecimento do Cancioneiro da Ajuda, atravs de trabalhos futuros

    com materiais codicologicamente, ou tematicamente comparveis. Assim, se poder melhor

    reconstruir a identificao quer de uma tradio paleogrfica comum por meio de formatos

    anlogos, quer por opes paleogrficas especficas no cumprimento ou na infraco s regras

    da gtica. identidade grafemtica, dependente de preferncias paleogrficas, poder tambm

    ser alargada em trabalhos de grafemtica comparativa, quer dizer em estudos que possam

    relacionar procedimentos grafemticos nos mesmos modelos de escrita. Dito de outro modo. De

    pouco nos serviro trabalhos de grafemtica comparativa entre escritas cursivas e escritas

    gticas formais, ou entre casos de mise en texte para prosa e outros para poesia (disposio

    horizontal ou vertical), mas o cotejo paralelo entre procedimentos grafemticos em um mesmo

    prottipo de escrita trar seguramente resultados que iro de par entre a rigidez paleogrfica de

    um modelo e a actuao grafemtica de uma representao de um sistema lingustico para

    determinado tipo de texto.

    A centralizao no estudo do Cancioneiro da Ajuda no se protege, por fim, por uma

    aparente recuperao bdieriana, ou to-pouco por um neobdiarismo. O Cancioneiro da Ajuda

    no poder, enquanto tal, caracterizar-se nunca como um bon manuscrit, mesmo na mouvance

    de uma tradio lrica complexa. Pelo contrrio. O recurso a potentes instrumentos de anlise

    para a fenomenologia codicolgica e para o modus operandi da reproduo textual em um nico

    Cancioneiro tende, aqui, muito mais para a busca do profiling de uma diacronia e de um

    diassistema textual sob bases neolachmannianas no estudo da variantstica e na acurada

    descrio crtica do zelo ou da displicncia formal. Uma ampla recensio e uma ampla

    interpretatio, que confortar ou no o recurso ltimo emendatio, se temos presente a

    constatao de recensio aperta em alguns casos.

    2.2. Estrutura e organizao

    Este trabalho encontra-se estruturado com base em duas partes principais subdivididas em

    vrios captulos. A Parte Primeira. O cdice e uma Parte segunda.