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O CÃO DOS BASKERVILLES Sir Arthur Conan Doyle 1 a Edição

O cão dos baskervilles

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O CÃO DOS

BASKERVILLES

Sir Arthur Conan Doyle

1a Edição

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PREFÁCIO

Sir Arthur Conan Doyle nasceu em Edimburgo, a 22 de Maio de 1859, de ascendênciaaristocrática anglo-irlandesa. Seus pais, com poucos recursos financeiros, tiveram de fazerconsideráveis sacrifícios para oferecer-lhe o que, então, se considerava uma educaçãocondigna. Assim, como fidalgo pobre, entre colegas privilegiados, Doyle estudou nas escolasqualificadas de Hodder e Stoneyhurst; depois em colégios de Jesuítas, tanto na França,como na Alemanha. Aos dezessete anos dominava o latim e o grego, falava fluentementefrancês e alemão, além do inglês e irlandês, e adquirira uma formação metodológica queviria a ser-lhe útil como investigador e escritor.

O polivalente Doyle acabou se formando em Medicina, na Universidade de Edimburgo,após o que resolveu embarcar num veleiro, como cirurgião de bordo, para uma expediçãopredatória à baleia, no Mar Ártico. No final desta viagem, ele percorreu as costas da África,ocidental e oriental, como médico de um navio mercante.

Em 1885, casou-se com Jane Hawkins que, vítima de uma enfermidade crônica, ficouinválida durante muitos anos, até falecer em 1906. Foi no ano seguinte ao seu casamentoque, sempre escrevendo para a Imprensa, Doyle criou a famosa figura de Sherlock Holmes.

Recordando-se do professor de Cirurgia, Dr. Joseph Bell , com o seu nariz aquilino quelhe dava uma expressão de ave de rapina, a sua inclinação frustrada para a música e os seushábitos peculiares, Doyle moldou Sherlock Holmes à imagem daquele médico com quemestudou na “Enfermaria Real” de Edimburgo, anexa à Universidade.

O Dr. Bell, com base nas autópsias, contribuiu com algumas descobertas no campoda Medicina Legal, fundamentando-as na Anatomia, na Antropometria e até na novateoria científica da Frenologia, correlacionando as deformações cranianas com aPsicopatologia; e soube encantar os discípulos com as suas faculdades de análise e deduçãológica.

Assim, à imitação do mestre, Doyle dedicou a atenção a alguns casos criminais, chegando,posteriormente, a ser convidado a participar de vários inquéritos policiais. Mas não foi sóà influência do Dr. Bell — e sim a todo um conjunto de circunstâncias — que se deve oseu interesse pela criminologia. Em 1807, foi criada, na Universidade de Edimburgo, acadeira de Jurisprudência Médica (Medicina Legal). O professor catedrático era Sir HenryLittlejohn, Cirurgião-Chefe da Polícia daquela cidade.

Embora Doyle tivesse se apaixonado pelos métodos dedutivos e confessasse ter seinspirado no Dr. Bell ao criar Sherlock Holmes, não foi com Bell, mas sim com Sir HenryLittlejohn que estudou investigação criminal e que, como seu assessor, teve vontade de ser“testemunha da Coroa” (Acusação) em casos de homicídio debatidos no tribunal. Enquantoo personagem de Sherlock Holmes, pelo seu temperamento idiossincrático, não podia serconsiderado encantador; o Dr. Bell, pelo contrário, possuía um coração terno e um vivosenso de humor.

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Contribuíram para a escolha do nome, Sherlock Holmes: um detetive particularchamado Wendell Scherer que ficou famoso em Londres, pois, em tribunal, se recusou arevelar o segredo de um cliente, alegando — tal como os médicos — o sigilo profissional.E Wendell Holmes, o autor cuja leitura Doyle preferia. Ora, o apelido Scherer assemelhava-se ao termo alemão Shearer, que significa “barbeiro”, assim como Sherlock na gíria inglesa.Assim, a personagem que Doyle criou à semelhança do Dr. Bell foi batizada com o nomede Sherlock Holmes.

Na realidade, Doyle fez de Sherlock Holmes uma espécie de cavaleiro andante na lutado Bem contra o Mal, embora profissionalmente, o herói apenas procurasse a verdade,sobrepondo a análise científica a qualquer tipo de sentimentalismo.

Foi realmente pelo indiscutível mérito de Doyle que, em 1902, o governo britânicoinduziu a Coroa a homenageá-lo com um título de nobreza .

Outro fato significativo que altamente dignifica a obra de Sir Arthur Conan Doylereside na adoção, por parte de todas as Polícias do mundo civilizado, dos métodos einvestigação estruturados pelo genial personagem fictício Sherlock Holmes. Nas palavrasdo seu companheiro, Dr. Watson:

“(...) a dedução elevada à categoria de ciência exata”.

Publicando no “Strand Magazine” a sua primeira novela, “Um Estudo em Vermelho”,Doyle recebeu por ela apenas 25 libras, ou seja, quinhentas vezes menos do que hoje sepaga por um exemplar dessa edição. O interesse manifestado pelo público inglês não pareciaprometedor. Mas, um editor americano encomendou-lhe outra obra que veio a se chamar“O Signo dos Quatro” e que, sendo publicada em 1890, obteve um êxito surpreendente.

No ano seguinte, o “Strand Magazine” propôs-lhe a edição de doze contos, e depoisoutros doze e, então, o sucesso de Sherlock Holmes não teve limites, verificando-se aconstante procura por suas obras, não só seqüentes, mas também anteriores, mesmo apósa morte do autor, na sua casa de Sussex, a 7 de Julho de 1920, com 71 anos de idade.

Mais tarde fundaram-se sociedades e clubes em várias cidades da Europa e da América,e muitos outros escritores têm feito análise “biográfica” sobre esse investigador da BakerStreet, como se este tivesse realmente existido. Atualmente, nos Estados Unidos, o preçode cada exemplar das primeiras edições de Sherlock Holmes chega a atingir, conforme asua raridade, 7500 dólares.

Assim, a Editora Rideel lança agora a “Coleção Sherlock Holmes”.

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CAPÍTULO 1 – SHERLOCK HOLMES

O sr. Sherlock Holmes, que geralmente se levantava tarde, com exceção das ocasiões freqüentes em que permanecia acordado toda a noite, estava agora sentado à mesa do café matinal.

De pé, diante da lareira, peguei na bengala que, na noite anterior, onosso visitante ali deixou por esquecimento e notei que era pesada, demadeira de boa qualidade, com castão esférico do modelo conhecido porPenarg Lawyer. Logo abaixo do castão esférico, numa tira de metal de doiscentímetros de largura, estava gravado:

“Ao dr. James Mortimer, LM, recordação dos seus amigos doC. C. H. - 1884”

Era o tipo de bengala que costumavam usar os velhos médicos queassistiam as boas famílias: distinta, sólida e tranqüilizadora.

— Então, Watson, que é que isso lhe diz?

Holmes estava sentado, de costas para mim, e eu não entendi o quepensava.

— Como adivinhou o que estava fazendo? — estranhei. — Você pareceter olhos na nuca!

— Pelo menos, tenho diante de mim um bule de prata muito bempolido — replicou. — Mas diga-me o que pensa da bengala do nossovisitante. Já que tivemos a infelicidade de não o encontrar aqui e não fazemosidéia do motivo que o trouxe, este objeto torna-se importante. Gostariaque você me descrevesse o homem, de acordo com o exame da bengala.

Procurando seguir os métodos do meu companheiro, comecei:

— Creio que o dr. Mortimer é um médico idoso e bastante estimado,pois aqueles que o conhecem lhe deram esta prova de apreço.

— Muito bem — elogiou Holmes. — Excelente!

— Creio também — prossegui — que se trata de um médico daprovíncia e que faz grande número de visitas a pé.

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— Por que diz isso?

— Porque esta bengala, embora ainda bonita, está tão usada que nãodeve pertencer a um médico da cidade. A grossa ponta de ferro está gasta;por isso, ele deve ter caminhado muito com ela.

— Perfeito!

— Além disso, está aqui escrito: amigos do C. C. H. Calculo que setrate da sigla de um clube de hipismo, por ele ter prestado serviços a sócioscavaleiros que lhe retribuíram com este presente.

— Francamente, Watson, você está se superando — apreciou Holmes,afastando a cadeira e acendendo um cigarro. — Sou levado a dizer que, emtodas as descrições que gentilmente fez aos meus dons de investigação, temsido excessivamente modesto a seu respeito. Talvez você não seja luminoso,mas é um excelente condutor de luz. Há pessoas que, sem possuírem gênio,têm o extraordinário poder de estimulá-lo. Desde já lhe declaro, meu caroWatson, que me considero seu devedor.

Holmes nunca falou tanto e confesso que as suas palavras me causaramintenso prazer, pois eu fiquei várias vezes magoado com a indiferença que elemanifestava pela minha admiração e pelas tentativas que tenho feito paratornar conhecidos os seus métodos. Senti-me também orgulhoso por terassimilado o seu sistema tão perfeitamente que já conseguia aplicá-lomerecendo a sua aprovação. Então Holmes pegou a bengala e observou-adurante alguns minutos. Depois, com expressão interessada, pousou o cigarro,levou a bengala para junto da janela e começou a examiná-la com uma lente.

— Interessante, ainda que elementar — concluiu, voltando para o seucanto preferido na poltrona. — A bengala apresenta realmente algunsindícios que nos servem de base para deduções.

— Alguma coisa que me tenha escapado? — sondei. — Espero não terdesprezado um indício importante.

— Para falar francamente, meu caro Watson, receio que a maioria dassuas conclusões seja errônea. Quando disse que você me estimulava, quisdizer que, ao notar as suas falhas, me sentia ocasionalmente conduzidopara a verdade. Não quero dizer que, neste caso, você esteja completamenteenganado, pois não há dúvida de que se trata de um médico da província eque anda muito a pé.

— Então, acertei!

— Sim, até esse ponto.

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— Só nesse ponto?

— Não apenas nesse ponto. Porém, acho que este presente foi oferecidoao médico pelos colegas de um hospital e, quando vejo as letras C. C. antesdo H., penso que indiquem a Charing Cross Hospital.

— Talvez tenha razão... o hospital de Charing Cross.

— As probabilidades são a favor deste raciocínio e, se admitirmos essahipótese, encontramos uma nova base para imaginar as características donosso visitante desconhecido.

— Muito bem, Holmes. Supondo que C.C.H. sejam as iniciais deCharing Cross Hospital, a que novas conclusões poderemos chegar?

— Não faz uma idéia? Você já conhece os meus métodos. Portanto,procure aplicá-los.

— Só me ocorre uma conclusão óbvia: o médico exerceu clínica nacidade antes de se mudar para a província.

— E podemos ir ainda um pouco mais longe. Que ocasião seria maispropícia para um presente deste gênero? Em que circunstâncias se reuniramos amigos, para manifestar o seu apreço? Provavelmente, quando o dr.Mortimer se retirou do serviço hospitalar para estabelecer uma clínica porconta própria. Podemos assim admitir que o presente lhe foi ofertado nessaocasião em que deixou de ser “interno do hospital”.

— Parece realmente provável.

— Agora, podemos acrescentar que não devia fazer parte do corpo deprofessores do hospital, pois só um médico importante, estabelecido em Londres,poderia ocupar tal posição de destaque; nesse caso, não iria fazer clínica naprovíncia. Sendo assim, que funções desempenharia o nosso dr. Mortimer?

Se estava no hospital e não fazia parte do corpo de professores, não deviaser mais do que um estagiário interno. L.M.: licenciado em medicina. Ora,pela data da bengala, saiu de lá há cinco anos. Portanto, meu caro Watson,a sua dedução de médico idoso também cai por terra, pois ele é um rapazcom menos de trinta anos, amável, pouco ambicioso e um tanto ou quantodistraído, e dono de um cão que descrevo como sendo maior do que umfox-terrier, mas menor do que um mastim.

Ri, incrédulo, enquanto Sherlock Holmes se reclinava na poltrona,expelindo baforadas de fumo para o teto.

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— Quanto à última parte — repliquei —, não tenho meios para verificá-la. Em todo o caso, não é difícil descobrir a idade do sujeito e a sua carreiraprofissional.

Tirei da estante o livro Medical Directory e folheei-o. Havia váriosMortimers, mas um só susceptível de interessar-nos, e li em voz alta:

Mortimer, James, licenciado em medicina, em 1882; estudos emGrimpen, Dartmoor e Devon; médico interno no Charing CrossHospital, de 1882 a 1884. Foi distinguido com o prêmio Jacksonpara Patologia Comparada, com um ensaio intitulado: “AsEnfermidades São Atávicas?”. É membro correspondente daSociedade Sueca de Patologia e autor de “Algumas Aberrações daAtavismo” (ed. Lancet, 1882), e de “Conseguiremos Progredir?”(Jornal de Psicologia, 1883). É médico sanitarista das freguesias deGrimpen, Thorsley e High Barraw.

— Como vê, Watson, não há a menor referência ao clube de hipismo —sublinhou Holmes, com um sorriso irônico —, mas é médico da província,como você tão judiciosamente observou... E, pelo visto, as minhas deduçõesestavam certas.

Quanto aos adjetivos, creio ter mencionado “amável”, “pouco ambicioso”e “distraído”; sei por experiência própria que só um homem amável recebehomenagens e que só um médico sem ambições troca uma carreira emLondres por uma clínica de província. Por outro lado, só um indivíduodistraído deixa a bengala e não um cartão de visita depois de esperar umahora pelo dono da casa.

— E quanto ao cão?

— Esse tem a hábito de ir atrás do dono, levando a bengala. Comoé pesada, o animal transporta-a com firmeza, e as marcas dos dentesestão bem visíveis nela. Como pode ser notado, pelo espaço, entre asmarcas dos dentes, a mandíbula do cão parece demasiado larga para setratar de um fox-terrier e demasiado estreita para se tratar de um cão deguarda. Deve ser... é com certeza... um cão vulgar de pêlo crespo.

Enquanto falava, Holmes levantou-se e começou a andar pela sala.Parou diante da janela e havia tal convicção na sua voz que ergui osolhos, surpreso.

— Mas como pode estar tão certo disso, meu caro amigo?

— Pelo simples fato de estar vendo o cão à nossa porta... Ora, ouça o

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toque da campainha do dono. Por favor, Watson, não se ausente... Vamosreceber um colega seu e a sua presença poderá ser útil para mim. Este é omais dramático momento do destino, quando se ouvem passos queignoramos se vão entrar na nossa vida para o bem ou para o mal. Quedesejará o cientista, dr. Mortimer, de um Sherlock Holmes especialista emcrimes?... Faça o favor de entrar!

A aparência do nosso visitante surpreendeu-me, já que eu esperavaver um típico médico da província. Este era muito alto, magro, comum nariz adunco sobressaindo entre os olhos cinzentos, vivos e muitojuntos, que brilhavam por detrás de uns óculos de aros de ouro. Vestia-se decentemente, mas com certo desmazelo, pois o seu casaco estavasujo e as calças bastante surradas. Embora jovem, já tinha as costasligeiramente encurvadas e andava com a cabeça um pouco inclinadapara a frente, com ar de quem observa o mundo benevolentemente. Aoentrar, os seus olhos pousaram na bengala e ele soltou uma exclamaçãode alegria.

— Ainda bem! — exultou. — Não tinha a certeza se a tinha deixadoaqui ou na Companhia de Navegação... Por nada deste mundo quereriaperder esta bengala.

— Um presente, não é verdade?

— Exatamente.

— Do Charing Cross Hospital?

— Sim... de alguns colegas meus amigos, por ocasião do meucasamento.

— Isso veio a calhar mal! — proferiu Holmes, abanando a cabeça.O dr. Mortimer piscou os olhos, por detrás das lentes, inquirindo,admirado:

— Calha mal por quê?

— Porque veio desmentir as nossas breves deduções. Por ocasião do seucasamento, não foi o que disse?

— Sim. Casei-me e decidi deixar o hospital para montar uma clínicaparticular. Tornava-se necessário ter um lar próprio...

— Perfeitamente. Nesse caso, não erramos muito — considerou Holmes.— E já agora, professor Mortimer...

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— Apenas dr. Mortimer... Só me licenciei. Não cheguei a defender tesede Doutoramento.

— Vejo que é um homem de uma precisão indiscutível...

— Digamos antes, sr. Holmes, que sou um curioso da ciência, quecontinua estudando, como quem apanha conchas nas praias do grande oceanodo desconhecido. Creio que estou me dirigindo ao, sr. Holmes e não a...

— Sim, sou Holmes. Este aqui é o meu amigo, dr. Watson.

— Tenho muito prazer em conhecê-lo. Já ouvi o seu nome ligado ao dosr. Holmes, cujos métodos me despertam o maior interesse.

Não esperava, sr. Holmes, que tivesse um crânio tão dolicocéfalo, nemum tão grande desenvolvimento supra-orbitral. Permita-me que passe odedo pela sua fissura parietal? Gostaria de possuir um modelo do seu crânio,antes que seja possível obter o original genuíno... Seria um belo troféu parao Museu Antropológico... Não quero ser desagradável, mas confesso quecobiço o seu crânio.

Sherlock Holmes ofereceu uma cadeira ao visitante e percebi que se sentialisonjeado.

— Vejo que tem tanto entusiasmo pelo seu ramo de estudos como eupelo meu — declarou. — Pelo seu dedo indicador, percebo que costumafazer os seus cigarros. Não faça cerimônia. Queira enrolar um e acendê-lo.

O médico tirou do bolso uma carteira de mortalhas e uma onça de tabacoe começou a enrolar um cigarro, com surpreendente destreza. Tinha dedoslongos, ágeis e irrequietos, como as antenas de um inseto.

Holmes mantinha-se calado, mas os seus olhos manifestavam grandeinteresse pelo incomum visitante. Finalmente, observou:

— Espero que não tenha sido unicamente pelo prazer de examinar omeu crânio que se lembrou de me dar a honra de me procurar, ontem ànoite, e hoje, novamente...

— Não... Claro que não, embora me sinta satisfeito por ter tido essaoportunidade. Vim procurá-lo, mr. Holmes, porque reconheço que souum homem pouco prático e porque me encontro, inesperadamente, diantede um problema extraordinário. Ora, como reconheço que o senhor é osegundo perito da Europa...

— O segundo? — estranhou Holmes, com certa aspereza. — Possoindagar quem tem o mérito de ser o primeiro?

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— Bem... No campo do raciocínio puramente científico, o trabalho demonsieur Bertillon (1) tem um valor indiscutível...

— Nesse caso, não teria sido melhor o senhor consultá-lo?

— Mas, sr. Holmes... Eu disse “no campo do raciocínio puramentecientífico”. Contudo, como homem de senso prático e de ação, o senhor éreconhecidamente o primeiro. Espero não ter, inadvertidamente...

— Apenas um pouco — replicou Holmes. — Creio, dr. Mortimer, queseria mais sensato explicar, sem mais demora, a natureza exata do problemaque o levou a pedir o meu auxílio.

CAPÍTULO 2 – A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLE

—Sou portador de um manuscrito — anunciou o dr. James Mortimer.

— Reparei nisso ao vê-lo entrar — replicou Holmes.

— É um velho manuscrito...

— Sim, dos princípios do século XVIII, a não ser que se trate de umafalsificação.

— Por que diz isso?

— Porque, enquanto falava, o senhor permitiu que eu visse algunscentímetros do papel. Pobre do perito que não puder determinar o períodode um documento, com uma margem de dez anos! Não sei se o senhor teveocasião de ler a minha pequena monografia a esse respeito. Pelo aspecto,calculo que esse documento seja de cerca de 1740.

— A data exata — precisou Mortimer, extraindo-o do bolso do casaco —,é de 1742. Foi-me confiado por sir Charles Baskerville, cuja morte trágica, hátrês meses, causou a maior excitação no Devonshire.

Além de ser seu médico, tive a honra de ser seu amigo íntimo. SirCharles era um homem de caráter, com força de vontade, inteligente eprático... um homem tão pouco imaginativo quanto eu. Apesar dissoacreditou no teor deste documento e já estava preparado para o fim queteve.

(1) Alfonse Bertillon, sábio francês (1853-1914) que criou um método antropométrico paraidentificação de criminosos (N. do T.)

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Holmes estendeu a mão para pegar o manuscrito e desdobrou-o sobreos joelhos.

— Veja, Watson — apontou —, por que me permiti referir uma data.

Olhei por cima do papel amarelado e li, no topo superior, “BaskervilleHall” e, logo abaixo, em largos caracteres, “1742”.

— Parece ser um relatório.

— Sim. É a narrativa de uma lenda referente à família Baskerville.

— Mas, decerto, deseja me consultar acerca de algo mais atual e prático, não?

— Sim... Trata-se de um assunto atual, prático e urgente, que tem de serresolvido em vinte e quatro horas. O manuscrito é breve e está intimamenterelacionado com o motivo que me trouxe aqui. Se me dá licença, passo a lê-lo.

Holmes reclinou-se na poltrona, juntou as pontas dos dedos e fechou osolhos, com ar resignado. O dr. Mortimer virou o documento para a luz e leu:

Tem havido muitas versões acerca da origem do Cão deBaskerville. Porque descendo em linha direta de Hugo Baskerville eporque ouvi a história contada por meu pai que, por sua vez, a ouvirade meu avô, aqui a transmito, no convencimento de que assimaconteceu.

E desejaria, meus filhos, que acreditásseis que a mesma justiçaque castiga o pecado, pode também benignamente perdoá-lo, e quenenhuma maldição seja tão tenaz que não possa ser redimida pelaprece e pelo arrependimento. Aprendei, pois, a não temer os frutosdo passado, mas a ser ajuizado no futuro, para que as vis paixões queafligiram a nossa família não voltem a desencadear a nossa ruína.

Assim, sabei que, por ocasião da Grande Rebelião (e chamo avossa atenção para o seu relato, historiado pelo ilustre lordeClaredon), este solar de Baskerville pertencia a Hugo, desse mesmosobrenome, homem violento e ímpio.

Os vizinhos poderiam perdoar-lhe essas imperfeições morais, jáque nunca houve santos ali naquele lugar, mas possuía um carátertão cruel e corrupto que o seu nome ficou infamemente célebre portoda a região.

Sucedeu que Hugo se apaixonou pela filha de um lavrador quetinha propriedades nos arredores de Baskerville. A donzela, dereputação imaculada, sempre evitou se encontrar com o senhor do

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solar porque tinha medo de ficar mal falada. Ora, sabendo que o paie os irmãos da jovem se encontravam ausentes, Hugo, com cincoou seis dos seus companheiros, decidiu raptá-la. Quando a trouxerampara o solar, Hugo fechou-a num quarto do piso superior e em seguidafoi, como era seu costume, a uma orgia com os seus amigos dedevassidão.

A donzela quase enlouqueceu com as trovas torpes e os ditosobscenos que lhe chegavam aos ouvidos; e já era sabido que as palavrasque Hugo Baskerville proferia, quando se achava embriagado, eramde arrepiar.

Finalmente, o pavor que a jovem sentia levou-a a cometer aquiloque o mais bravo dos homens teria receado praticar. Firmando-se nahera que cobria (e ainda hoje cobre) a parede da fachada sul,conseguiu descer ao terreiro e fugir em direção à casa de seu pai, queficava a quase cinco quilômetros de distância, através do pântano.

Passados alguns momentos, Hugo se separou dos amigos para irlevar comida e bebida... e talvez tivesse más intenções... à suaprisioneira. Encontrou a gaiola vazia e a ave ausente. Então foi comose tivesse ficado possesso do Diabo. Desceu ao salão, saltou paracima da mesa, fez voar pratos e garrafas e afirmou aos companheirosque, nessa mesma noite, daria a alma aos poderes do inferno se esteso ajudassem a recuperar a donzela.

Perante uma tal fúria, todos ficaram estarrecidos. Contudo, umdeles, o que era mais cruel, ou talvez o mais ébrio, bradou quedeveriam largar os cães no rasto da fugitiva.

Hugo correu para fora do solar, ordenando aos lacaios que lheselassem a égua negra e soltassem a matilha. Deu aos cães um lençoda donzela para farejar e lançou-os no seu encalço, através do pântano.

Durante alguns instantes, os parceiros ficaram atônitos, mas logoperceberam a tragédia horrorosa que iria consumar-se no pântano.O clamor generalizou-se, gritando uns por suas pistolas, outros porseus cavalos, alguns ainda por mais vinho. Finalmente, recuperandoum pouco de bom senso, partiram no rasto do anfitrião. Eram treze,ao todo. A lua iluminava-os, enquanto cavalgavam em disparada,enveredando pela trilha que a donzela devia ter tomado para voltarpara casa.

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Tinham já percorrido cerca de três quilômetros, quando toparamcom um pastor noturno e indagaram se vira a caçada. Tão apavoradoestava pobre homem, que mal conseguia falar, mas acabou por declararque tinha visto a infeliz donzela com a matilha no seu encalço.

— Vi mais do que isso! — acrescentou. — Vi Hugo Baskervillena égua negra, correndo em disparada, e atrás dele, silencioso, umcão do inferno... tão medonho que espero que Deus jamais permitaque criatura assim corra algum dia atrás de mim.

Os cavaleiros, embriagados, amaldiçoaram o pastor e prosseguiramna carreira, mas logo sentiram o sangue gelar-se em suas veias, poisouviram um tropel de galope e viram a égua negra, empastada emsuor, passar por eles com as rédeas soltas e a sela vazia.

Então, os homens cavalgaram lado a lado, pois estavamapavorados. Seguiram ainda a passo lento através do pântano, sebem que qualquer deles, se estivesse só, teria dali fugido o mais rápidopossível.

Finalmente, encontraram os cães e, ainda que estes fossemconhecidos pela bravura da sua raça, ganiam agora, unidos no topode um precipício, fitando as trevas do vale.

Ao conterem as montarias, os cavaleiros se encontravam mais lúcidosdo que quando haviam partido. A maioria se recusava a avançar, mastrês deles, mais afoitos ou mais embriagados, adiantaram-se para a ravina.A trilha alargava-se no ponto onde se erguem aquelas duas grandes pedras,ali içadas por gente de tempos remotos. À luz da lua, via-se a infelizdonzela caída de bruços, varada de medo. Mas não foi a imagem do seucorpo, nem o de Hugo, estendido a seu lado, que apavorou os fanfarrões.Foi, sim, verem uma coisa asquerosa cravando as presas na garganta dosenhor de Baskerville. Era um cão enorme, descomunal. A fera rasgavaa garganta de Hugo e, quando se virou, com os olhos brilhantes e asfaces sangrentas, os três parceiros fugiram aos berros, pelo campo afora.

Um deles morreu nessa mesma noite e os outros dois ficarammeio dementes até o fim dos seus dias.

Esta é, meus filhos, a história do advento do cão que dizem ter,desde então, atormentado a nossa família. Aqui o relato porque aquiloque se conhece é menos apavorante do que aquilo que apenas ésugerido ou adivinhado. Nem pode ser negado que muitas pessoas

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da nossa família tiveram morte súbita, sangrenta e misteriosa. Apesardisso, confiemos na infinita bondade de Deus, que não há de punireternamente os inocentes, além da terceira ou quarta geração,conforme está prescrito na Sagrada Escritura. A esta DivinaProvidência vos recomendo, meus filhos, e dou-vos por avisadospara que tenham a prudência de não atravessarem o pântano, àshoras tenebrosas em que os Poderes do Mal estão exaltados.

De Hugo Baskerville, para seus filhos Rodger e John, com arecomendação de nada transmitirem a sua irmã Elizabeth.

Quando terminou a estranha narrativa, o dr. Mortimer subiu os óculospara a testa e fitou Sherlock Holmes. Bocejando, o detetive lançou o cigarropara as chamas da lareira.

— Não acha interessante? — sondou Mortimer.

— Sim, para um colecionador de contos de fadas.

Mortimer tirou do bolso um recorte de jornal e disse:

— Pois agora, sr. Holmes, vou mostrar algo mais recente. Eis o DevonCountry Chronicle de 14 de junho deste ano. Insere uma breve notícia do quese deduziu da morte de sir Charles Baskerville, ocorrida poucos dias antes.

Holmes inclinou-se ligeiramente para a frente, mostrando certo interesse.O nosso visitante tornou a ajeitar os óculos e começou:

O recente falecimento de sir Charles Baskerville, cujo nomecomeçava a ser citado como provável candidato liberal por Mid-Devon nas próximas eleições, causou grande consternação navizinhança. Embora tivesse residido em Baskerville por períodorelativamente breve, sir Charles soube conquistar o respeito e aamizade de todos, graças à sua gentileza e ampla generosidade.

Nestes dias em que imperam os “novos ricos” é saudável depararcom um caso em que um jovem de uma velha família que sofreuadversidades conseguiu fazer fortuna e teve o bom senso de investi-la na restauração da grandeza da sua decaída linhagem.

Sir Charles, após ter feito fortuna na África do Sul, mostrou-semais consciente do que aqueles que continuam imersos emespeculações, até a sorte lhes ser adversa. Adquiriu consideráveis bense regressou à Inglaterra, tendo há dois anos fixado residência em

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Baskerville. Contudo, os planos de reconstrução do solar dos seusantepassados foram interrompidos com a sua morte.

Como não tinha descendentes, era desejo de sir Charles que todoo condado se beneficiasse da sua prosperidade. Assim, muitosconterrâneos terão razões pessoais para lamentar o seu falecimentoprematuro. Os generosos donativos que efetuou a instituições decaridade foram com freqüência comentados nestas colunas.

As circunstâncias da morte de sir Charles não foramcompletamente esclarecidas no inquérito, mas procura-se dissiparrumores da superstição local. Sir Charles era viúvo e um poucoexcêntrico. Apesar da grande fortuna, tinha hábitos simples emantinha a seu serviço apenas dois criados: o casal Barrymore — omarido era mordomo, e a mulher, governanta.

Pelo depoimento deste casal, confirmado por vários amigos,sabemos que ultimamente sir Charles sofria de uma lesão cardíaca,revelada pela alteração da coloração do rosto, por falta de ar e porcrises de depressão nervosa.

O dr. James Mortimer, amigo e médico do extinto, prestoudepoimento acerca do seu estado de saúde. Segundo odepoimento dos Barrymore, sir Charles Baskerville tinha ocostume de todas as noites, antes de se deitar, passear pelafamosa Alameda dos Teixos do solar. No dia 4 de junho, sirCharles manifestou a intenção de ir, no dia seguinte, a Londres,e ordenou ao mordomo que lhe fizesse a mala. Nessa noite,ainda deu o seu passeio habitual e fumou um charuto, masnão voltou desse passeio.

À meia-noite, como Barrymore visse a porta do átrio aindaaberta, pegou uma lanterna e foi procurar o patrão. Foi fácilseguir-lhe as pegadas, pois chovera durante o dia.

Na alameda, a meio caminho, existe um portão que dá acesso àcharneca. Foram notados indícios de que sir Charles parou nesseponto, durante alguns minutos. Depois, teria continuado o passeio,pois o seu corpo foi encontrado no fim da alameda. Não se sabeexplicar a particularidade, apontada por Barrymore, de que os passosdo patrão tinham se alterado, a partir do portão, já que parecia tercomeçado a andar na ponta dos pés.

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Um tal Murphy, cigano, encontrava-se não longe desse lugar, masconfessou estar completamente embriagado, acrescentando terrealmente ouvido gritos, mas sem saber de onde provinham.

Não se viam sinais de violência no corpo de sir Charles, tendo oexame médico apenas registrado uma incrível distorção facial (tãoforte que, a princípio, o próprio dr. Mortimer chegou a duvidar deque se tratasse do seu amigo) e concluído se tratar de um sintomacomum em casos de dispnéia e morte por exaustão cardíaca. Após aautópsia, confirmou-se uma lesão grave e a decisão do juiz ratificoua opinião do médico legista.

Agora, espera-se que o herdeiro de sir Charles se instale emBaskerville e possa continuar a sua obra, tão lamentavelmenteinterrompida. Se a decisão do magistrado não tivesse posto um fimaos rumores românticos que correram acerca do caso, difícil seriatornar-se morador em Baskerville.

Parece que o herdeiro, caso se encontre vivo, é o sr. HenryBaskerville, filho do irmão mais novo de sir Charles. Quando, pelaúltima vez, se ouviu falar deste rapaz, encontrava-se nos EstadosUnidos da América, pelo que atualmente se procede a investigaçõesno sentido de descobrir o seu paradeiro e informá-lo da herança aque tem legítimo direito.

Mortimer dobrou o recorte e guardou-o no bolso do casaco.

— Aqui tem, sr. Holmes, os fatos conhecidos acerca da morte de sirCharles Baskerville.

— Devo lhe agradecer por ter chamado a minha atenção para um caso que,realmente, apresenta aspectos interessantes — reconheceu Holmes. — Li algunscomentários nos jornais, mas nessa altura estava tão ocupado com o casodos camafeus do Papa e empenhado em servir Sua Santidade, que me alieneide alguns casos ocorridos na Inglaterra. Diz o senhor que esse artigo contémtodos os fatos conhecidos do público?

— Exatamente.

— Nesse caso, pressupõe-se a existência de fatos ainda não conhecidos.Pode citá-los? — solicitou Holmes, inclinando-se para diante e juntando aponta dos dedos, mas conservando a expressão impassível. O dr. Mortimer,que começou a dar sinais de emoção, declarou:

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— Vou lhe confidenciar pormenores que não transmiti a ninguém. Arazão que me levou a ocultá-los no inquérito baseou-se na repulsa que umcientista sente em aceitar publicamente uma superstição. Animava-metambém outro motivo: não desejava que Baskerville ficasse desabitado, sóporque uma ocorrência insólita viera denegrir ainda mais a sua reputação.Achei ser meu dever não dizer tudo quanto sabia, mas com o senhor nãovejo motivo para não ser absolutamente sincero.

O pântano é pouco habitado e aqueles que moram nos arredorescostumam se reunir. Por isso eu via sir Charles com freqüência. Com exceçãodo sr. Frankland de Lafter Hall e do sr. Stapleton de Merripit, que énaturalista, não há qualquer outra pessoa educada numa área de váriosquilômetros.

Sir Charles era um homem retraído, mas a sua doença nos aproximou,assim como um interesse comum pela ciência. Ele trouxe muitas informaçõescientíficas da África do Sul e passamos bastantes noites agradáveis,discutindo a anatomia comparada dos boximanes e dos hotentotes.

Nos últimos meses, notei que sir Charles se achava num estado de extremoesgotamento nervoso, em virtude de ter levado muito a sério a lenda queacabei de ler, a ponto de recear andar, à noite, por aquele lugar.

Por incrível que pareça, convenceu-se de que uma terrível maldição pesavasobre a sua família e, na verdade, os casos que relatava nada tinham deanimadores. A idéia de uma presença terrível, sobrenatural, obcecava-o emais de uma vez me perguntou se, em qualquer das minhas visitasprofissionais, eu teria visto alguma criatura estranha ou ouvido latir de umcão. Fez esta pergunta repetidas vezes e sempre num tom emocional.

Lembro-me de ter ido uma noite a sua casa, três semanas antes da tragédia.Ele estava à porta no momento em que eu descia do coche. Notei que osseus olhos estavam aterrorizados e fixos em qualquer coisa que via atrás demim, por cima do meu ombro. Virei-me rapidamente e tive ocasião deavistar, apenas de relance, uma espécie de bezerro negro que passava noalto da alameda. Sir Charlie ficou tão alarmado que decidi ir até o localonde avistei o animal, mas quando lá cheguei ele havia desaparecido.

O incidente apavorou o meu amigo, por isso fiquei lhe fazendocompanhia durante toda a noite e foi então que ele me mostrou odocumento que acabei de ler. Menciono este episódio porque, após a tragédiaque se seguiu, tornou-se importante. Contudo, na ocasião, eu me convencide que a excitação de sir Charles não era justificável. Foi a meu conselhoque resolveu ir para Londres. Eu sabia que ele sofria do coração, e a constante

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ansiedade em que vivia, por pueril que fosse a causa, estava lhe afetandogravemente a saúde. Pensei que alguns meses de distração na cidade lhe fossembenéficos. O sr. Stapleton, nosso amigo em comum, também preocupado como estado de sir Charles, foi da mesma opinião. Porém, no último momento,ocorreu a tragédia.

Logo que Barrymore, o mordomo, verificou a morte do patrão, mandouPerkins, um dos cavalariços, me buscar a cavalo. Eu ainda não havia me deitadoe cheguei a Baskerville uma hora depois do acontecimento. Analisei todos osfatos que vieram a ser mencionados no inquérito. Segui as pegadas impressasna alameda e examinei o lugar junto do portão que dá para o pântano, ondeparecia que sir Charles tinha parado. Notei, realmente, a mudança da formadas pegadas; a partir desse ponto verifiquei que não havia outras, a não ser as deBarrymore. Finalmente, observei com cuidado o corpo em que ninguém aindatinha tocado. Sir Charles estava deitado, de bruços, com os braços abertos,tendo os dedos cravados na terra macia, e os traços do seu rosto estavam de talmaneira convulsionados pela emoção que mal o reconheci. Não se via qualquersinal de agressão. Contudo, no inquérito, Barrymore fez uma declaração falsaao afirmar não haver quaisquer sinais no chão, perto do cadáver. Ora, eu os viainda frescos e nítidos, a pequena distância.

— Pegadas?

— Sim.

— De homem ou de mulher?

Mortimer fitou-nos estranhamente e respondeu, quase num murmúrio:

— Eram pegadas de um cão enorme.

CAPÍTULO 3 – O PROBLEMA

C onfesso que ao ouvir estas palavras senti um calafrio percorrerminha espinha. Na voz do médico havia uma vibração queindicava estar profundamente emocionado, e os olhos de

Holmes apresentavam o brilho intenso que lhe era peculiar, quando estavavivamente interessado num assunto.

— Tem certeza de que viu essas pegadas?

— Vi tão claramente como estou vendo o senhor agora, sr. Holmes.

— E não disse nada?

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— Que adiantava alarmar ainda mais os presentes?

— E ninguém mais notou essas pegadas?

— Os outros estavam a mais de seis metros do corpo e ninguém prestouatenção. De resto, se eu não conhecesse a lenda, provavelmente tambémnão lhes atribuiria qualquer significado especial.

— Há muitos cães pastores lá?

— Bastantes, mas aquilo não era de cão de pastor.

— Pegadas grandes?

— Enormes.

— Mas não tinham se aproximado do corpo?

— Não.

— Como estava a noite?

— Úmida e fria.

— Mas não chovia?

— Não.

— Essa alameda, que forma tem?

— É constituída por duas alas de velhas árvores, que formam uma cercaimpenetrável de quatro metros de altura. O caminho tem cerca de trêsmetros de largura.

— Há alguma coisa entre as cercas e o caminho?

— Sim, uma faixa de relva de cerca de dois metros de largura.

— E há um portão nessa sebe?

— Sim. Como lhe disse, um portão de vime, que dá acesso à charneca.

— Existe qualquer outra entrada?

— Não.

— Isso significa que, para alguém entrar na alameda, tem de vir do solarou entrar por esse portão?

— Bem... há uma saída pela estufa, que fica no fim da alameda.

— Mas sir Charles não chegou até lá?

— Não. Caiu antes, uns cinqüenta metros.

— A relva não apresentava marcas de pegadas.

— Só havia marcas visíveis na areia do caminho.

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— Ao lado do portão?

— Exatamente.

— Isso me interessa muito. E o portão estava fechado?

— Sim, a cadeado.

— Que altura tem?

— Cerca de um metro e meio.

— Nesse caso, qualquer pessoa poderia passar por cima.

— Sim, seria possível.

— E que marcas viu junto do portão?

— Nenhuma digna de interesse...

— Que diabo! Ninguém examinou esse local cuidadosamente?

— Estava tudo muito pisado, mas não há dúvida de que sir Charlesesteve ali parado durante cinco ou dez minutos.

— Como chegou a essa conclusão?

— Porque a cinza do seu charuto caiu duas vezes no chão.

— Bravo! Aqui temos um colega, Watson, e dos bons!

— Só havia pegadas na areia. Não vi mais nada.

Batendo com a mão no joelho, Holmes mostrou-se impaciente.

— Se ao menos eu tivesse estado lá! É realmente um caso extraordinário.Agora, essa faixa de areia onde eu poderia ter descoberto tanta coisa foideteriorada pela chuva e pelas pegadas dos curiosos. Pensar que não mechamou, nessa altura, dr. Mortimer. Isso deve pesar na sua consciência!

— Não pude chamá-lo na ocasião, pois isso tornaria públicos os fatos.Além disso, receio que...

— Por que hesita?

— Creio que existe um reino onde o mais hábil e experiente detetiveficará impotente.

— Refere-se a algo sobrenatural?

— Não disse isso precisamente, mas...

— ...É evidente o que pensa.

— Confesso, sr. Holmes, que depois da tragédia tenho ouvido falar devários incidentes que dificilmente poderão ser considerados naturais...

— Como por exemplo...

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— Já antes dela, várias pessoas tinham visto no pântano um ser estranho,cuja descrição corresponde à do demônio de Baskerville e não à de nenhumanimal conhecido. Todos concordam em que se trata de um ser enorme,luminoso, horrível e espectral. Interroguei alguns desses homens: um delesé um aldeão inteligente; outro, é ferreiro; outro ainda, agricultor. Todosdescrevem identicamente a terrível aparição que corresponde ao cão-fantasma da lenda. Posso garantir, sr. Holmes, que o terror se espalhoupelo condado. Atualmente, só um homem muito corajoso se atreveria aatravessar o pântano durante a noite.

— E o senhor, dr. Mortimer, um cientista experiente, acredita que setrate realmente de um ser sobrenatural?

— Não sei o que pensar.

Holmes encolheu os ombros.

— Até hoje, as minhas investigações se limitaram às fronteiras destemundo terreno. Tenho, embora modestamente, combatido o mal... e talvezseja excessiva ambição de minha parte ousar desafiar o Pai do Mal. Contudo,doutor, o senhor terá de admitir que uma pegada é um vestígio material.

— Sim, mas o primeiro cão a que a lenda se refere também erasuficientemente material para dilacerar a garganta de um homem, nãodeixando de ser diabólico.

— Estou vendo, doutor, que passou para o campo dos sobrenaturalistas!Se tem essas idéias, por que veio me consultar? Considera inútil investigara morte de sir Charles e, ao mesmo tempo, pretende que eu o faça?

— Não declarei pretender que o senhor a investigue...

— Nesse caso, de que maneira poderei ser útil?

— Aconselhando-me sobre o que poderei fazer quando sir HenryBaskerville chegar à estação de Waterloo...

Mortiner consultou o relógio e acrescentou:

— Precisamente, dentro de uma hora e quinze minutos.

— Sir Henry é o herdeiro?

— Sim. Após a morte de sir Charles procuramos o beneficiário edescobrimos que o sobrinho possuía uma fazenda no Canadá. Pelas notíciasque nos chegaram, trata-se de uma ótima pessoa. Interessei-me a seu respeito,não como médico, mas como inventariante da herança.

— Há mais algum pretendente?

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— Nenhum. O único parente vivo que se conhece de sir Charles é esterapaz. Dos três irmãos, sir Charles era o mais velho; o do meio, que morreu,é pai do atual sir Henry: quanto ao mais novo, sempre foi a ovelha negra dafamília, reunindo as antigas características dos Baskerville e, segundo consta,retrato fiel do seu antepassado Hugo. Como já não lhe era possível continuarvivendo na Inglaterra, fugiu para a América Central, onde morreu demalária, em 1876.

Portanto, sir Henry é o atual baronete, como último dos Baskerville.Dentro de uma hora e cinco minutos, irei me encontrar com ele na estaçãode Waterloo pois recebi um telegrama anunciando que chegaria aSouthampton, hoje de manhã. Agora, sr. Holmes, que me aconselha?

— Por que motivo o herdeiro não iria viver no solar dos seus antepassados?

— Parece lógico que o faça... Contudo, todos os Baskerville que forampara lá tiveram uma morte trágica. Estou certo de que, se sir Charlestivesse falado comigo antes de morrer, pediria que não levasse para aquelelugar fatídico o último da sua raça, herdeiro de uma grande fortuna. Noentanto, não há dúvida de que a prosperidade da região depende da suapresença. A obra benéfica de sir Charles cairá por terra, se não houverum morador em Baskerville. Porém, como receio me deixar influenciarpelo meu próprio interesse, decidi solicitar o seu conselho.

Holmes refletiu durante alguns segundos.

— Na sua opinião, doutor, existe realmente um agente diabólico quetorna essa região demasiado insegura para que um Baskerville a habite?

— Ouso pelo menos dizer que há indícios de que assim seja.

— Mas se a sua teoria, baseada no sobrenatural, é exata, não há dúvidade que esse agente diabólico poderia ser maléfico para o herdeiro tanto noDevonshire como em Londres, não é verdade? Não é lógico conceber umdemônio que só tenha permissão de exercer o seu poder num local restrito.

— Sr. Holmes, está considerando este caso com uma ironia que certamentenão empregaria se tivesse lidado diretamente com o fenômeno. Parece que,na sua opinião, o rapaz estará tão seguro no Devonshire como em Londres.Ele chega dentro de cinqüenta minutos. Portanto, que me aconselha?

— Aconselho-o a apanhar um coche, chamar o seu cão, que está arranhandoa minha porta, e a dirigir-se para a estação, ao encontro de sir Henry.

— O vou dizer?

— Não diga coisa alguma, até eu ter tomado uma resolução.

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— Quanto tempo isso levará?

— Vinte e quatro horas. Gostaria que amanhã, às dez, o dr. Mortimertivesse a gentileza de vir aqui me procurar, e seria vantajoso que sir Henryo acompanhasse.

— Plenamente de acordo, sr. Holmes.

Mortimer anotou a hora no punho engomado da camisa, e saiuapressadamente com o seu modo peculiar e distraído. Quando já ia naescada, Holmes o deteve.

— Mais uma pergunta, doutor. O senhor disse que, antes da morte desir Charles, já várias pessoas tinham visto a tal aparição?

— Três pessoas, pelo menos.

— Alguma delas a viu depois disso?

— Não, que eu saiba.

— Obrigado, doutor. Até amanhã.

Holmes voltou para o seu canto com uma expressão de íntima satisfação,que indicava ter diante de si uma tarefa a seu gosto.

— Vai sair, Watson?

— Tencionava dar uma volta, a menos que passo lhe ser útil.

— Não, por ora, meu caro amigo. Só no momento de agir precisarei doseu auxílio. Agora, quando passar pelo Bradley’s, queira me fazer o favor derecomendar que me mandem um quilo do mais forte tabaco para cachimboque tiverem. Agradeço-lhe. Seria preferível que não voltasse antes da noite.Nessa altura, terei muito prazer em comparar as nossas impressões acercado interessante problema que hoje nos foi apresentado.

Eu sabia que o meu amigo precisava de solidão nessas horas de intensaconcentração mental, em que analisava todas as premissas, arquitetavateorias, comparava-as entre si e selecionava os indícios essenciais. Portanto,passei o dia no clube e só à noite regressei à Baker Street. Eram nove horasem ponto quando fui falar com Holmes. Ao entrar em casa, a minhaprimeira impressão foi de que havia um incêndio: a sala estava tão cheia defumo que a luz do candeeiro de mesa tornava-se obscurecida. Mas logoverifiquei que o fumo era de tabaco forte, que me fez tossir. Através danévoa, distingui vagamente o perfil de Holmes, de roupão, encolhido nasua poltrona favorita, com o cachimbo negro nos dentes. Em sua volta,estavam espalhados vários rolos de papel.

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— Constipou-se, Watson?

— Não, mas esta atmosfera poluída me faz tossir.

— Está realmente meio pesada! Só agora que você chamou a atençãopara o fato é que me dei conta disso.

— Meio pesada, Holmes? Intolerável, é o termo!

— Nesse caso, abra a janela. Vejo que passou todo o dia no clube...Acertei?

— Sem dúvida... mas...

Riu-se da minha expressão atônita.

— Você possui, Watson, um modo de ser tão brando que faz com queseja um prazer exercitar, à sua custa, as minhas tênues faculdades dedutivas.Pois bem: um cavalheiro sai de casa, num dia chuvoso, e volta à noite como chapéu e os sapatos ainda reluzentes. Portanto, concluí que esteveresguardado dentro de uma casa, todo o dia. Ora, você não tem amigosíntimos em cujo lar se instale demoradamente. Onde poderia ter estado?Não é óbvio, meu caro Watson?

— Sim... é óbvio.

— Esta vida está recheada de coisas óbvias que ninguém observa. Jáagora, onde pensa que tenho estado?

— Em casa.

— Engana-se. Estive em Devonshire...

— Em pensamento, claro.

— Exatamente. Nessa fugaz ausência espiritual, o meu corpo ficou nestapoltrona e consumiu dois grandes bules de café e uma incrível quantidadede tabaco forte. Depois de você ter saído, mandei buscar um mapa daquelaregião e o meu espírito andou por lá todo o dia. E, modéstia à parte, possoafirmar que não me perdi.

— Arranjou um mapa com o pântano?

— Tal e qual!

Holmes desenrolou uma parte do mapa e estendeu-a sobre os joelhos.

— Aqui temos o condado que nos interessa. O solar de Baskerville situa-se mesmo no meio.

— Cercado pelo bosque?

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— Sim! Creio que a alameda, que não está aqui indicada, se estende aolongo desta linha, com o pântano à direita. Aqui, este grupo de casas é a aldeiade Grimpen, onde reside o dr. Mortimer. Numa área de cinco quilômetros dediâmetro, apenas se vêem algumas casas dispersas. Aqui está Lafter Hall, queMortimer mencionou na sua narrativa e quando se referiu a um tal Frankland.Aqui, ainda, vemos uma casa que deve ser do naturalista Stapleton: Merripit,se não estou errado. Deste lado, temos duas casas rurais, já no pântano: HighTor e Foulmire. E agora repare: a catorze quilômetros de distância, situa-se agrande penitenciária de Princetown. Entre esses pontos e em seu redor, estende-se a parte do pântano deserta de vida humana. Este é o palco onde foirepresentada a tragédia dos Baskerville e onde, com o nosso auxílio, talvez sejapossível evitar uma outra.

— Deve ser um lugar selvagem.

— Sim. Creio que, se o Diabo desejasse interferir no destino dos homens,acharia este lugar muito apropriado.

— Também você está inclinado para uma explicação sobrenatural? —admirei-me.

— Bem... Admitamos que os agentes do Diabo possam ser de carne e osso.Duas perguntas pairam no ar: terá realmente havido um crime? Se houve,como o cometeram? Claro que, se a suspeita do dr. Mortimer for pertinente eestivermos lutando com forças sobrenaturais, a nossa investigação termina já.Mas temos de esgotar todas as outras hipóteses antes de nos conformarmoscom uma desistência. Creio que será melhor fechar essa janela. Acho que umambiente fechado é mais propício à concentração mental. Ainda não chegueiao extremo de me encerrar dentro de uma caixa, mas este é o lógico resultadodas minhas conclusões. Você já se deu ao trabalho de estudar o caso?

— Sim. Estive meditando sobre ele durante o dia.

— Qual a sua opinião?

— Bem... O caso é desnorteante. Não há dúvida de que apresenta estranhasparticularidades. Mas tem alguns pontos definidos. Por exemplo, aquela alteraçãodas pegadas. Que me diz disso?

— Mortimer concluiu que nesse trecho da alameda sir Charles andara naponta dos pés.

— Ao fazê-lo, limitou-se a repetir o que qualquer idiota declarou no inquérito.Por que teria ele andado na ponta dos pés?

— Sei lá? Na sua opinião, o que aconteceu?

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— Sir Charles fugia, Watson! Fugia desesperadamente, para salvar a vida.Correu até que o seu coração estourou... e sir Charles caiu já sem vida.

— Mas fugia de quê?— Aí está o nosso problema. Há indícios de que já estava louco de medo,

mesmo antes de começar a correr.— Por que diz isso?— Suponho que a causa do seu terror provinha do pântano. Se foi esse o

caso, só um homem completamente desvairado correria no sentido contrárioao de sua casa, em vez de procurar se proteger nela. Se acreditarmos nodepoimento do cigano, Sir Charles começou a correr gritando por socorro,na direção de onde teria menos chances de obter auxílio. Além disso, quemele estaria esperando nessa noite? E por que motivo esperava por essa pessoana alameda e não no solar?

— Você acha que ele estava esperando alguém?— Certamente. Repare que sir Charles era velho e doente. É compreensível

que quisesse dar um pequeno passeio noturno, mas nessa noite o tempoestava péssimo e o chão estava úmido. Acha natural que, nessas condições,ele tenha parado durante cinco a dez minutos, conforme a dedução do dr.Mortimer, que provou ter mais senso prático do que seria de esperar?

— Bem... O homem tinha o hábito de sair todas as noites...— É pouco plausível que parasse todas as noites junto do portão. Pelo

contrário, sabemos que evitava aquele lugar. Nessa noite, ficou esperandoalguém. Note que era a noite da véspera da sua partida para Londres. Assim,a história começa a se mostrar coerente. Peço-lhe, Watson, que traga o meuviolino. Vamos adiar as meditações sobre o assunto até termos ocasião defalar, amanhã de manhã, com o dr. Mortimer e sir Henry Baskerville.

CAPÍTULO 4 – SIR HENRY BASKERVILLE

A mesa do café matinal já tinha sido retirada, e Holmes, de roupão, esperava a chegada dos visitantes. Estes foram pontuais, pois o relógio acabava de dar dez horas quando o dr. Mortimer entrou,

acompanhado pelo jovem baronete. Sir Henry era baixo, de olhos escuros,aparentando cerca de trinta anos. Possuía espessas sobrancelhas negras, realçandoum rosto forte e guerreiro. Vestia um traje de tweed castanho-avermelhado etinha uma pele bastante bronzeada, de quem passou a vida ao ar livre. Apesardisso, o seu olhar firme, de tranqüila segurança, era o de um cavalheiro.

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— Apresento-lhe sir Henry Baskerville — disse Mortimer.

— Deixe-me lhe dizer, sr. Holmes — acrescentou sir Henry — que, se o meuamigo não tivesse sugerido esta visita, eu a teria feito espontaneamente. Ouvidizer que o senhor consegue resolver charadas e deparei hoje com uma que, paraser decifrada, precisa de alguém que saiba entendê-la melhor do que eu.

— Por favor, queira se sentar, sir Henry. Quer dizer que algo deextraordinário lhe sucedeu, desde que chegou a Londres?

— Nada de extremamente importante, pois creio que se trata de umamera brincadeira de mau gosto. Recebi hoje esta carta, se é que a isto sepode chamar carta.

Colocou sobre a mesa um envelope e nos inclinamos para vê-lo. Era umenvelope comum, acinzentado. O endereço de sir Henry Baskerville,Northumberland Hotel foi escrito em caracteres vulgares, e o carimbo, coma data da véspera, era do correio de Charing Cross.

— Quem sabia que o senhor iria se instalar no Northberland Hotel? —sondou Holmes, encarando o visitante.

— Ninguém sabia. Só depois de me encontrar com o dr. Mortimer éque ambos tomamos essa decisão.

— Mas, nesse caso... com certeza, o doutor já estava hospedado lá, não?

— Não, sr. Holmes. Estava na casa de um amigo. Ainda não pensava emir para esse hotel.

— Parece que alguém se interessou muito pelos seus passos.

Tirou do envelope meia folha de papel, dobrada em quatro, e estendeu-a em cima da mesa. Continha uma única frase, feita com letras de jornal,recortadas e coladas.

Só a palavra PÂNTANO estava manuscrita, a tinta.

— Agora, sr. Holmes, talvez o senhor possa me dizer o que significa istoe quem poderá estar tão interessado do nos meus assuntos pessoais?

O meu amigo preferiu sondar Mortimer:

se der valor à sua vida

ou à sua sanidade mental

deverá afastar-se do PÂNTANO

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— Qual a sua opinião, doutor? Concordará em que, pelo menos nisto,nada há de sobrenatural.

— Bem... — hesitou o médico — a mensagem pode ter sido enviadapor alguém que acredita que a história seja realmente sobrenatural.

— Que história? — estranhou o baronete. — Parece que os senhoressabem mais dos meus assuntos do que eu próprio!

— Prometo-lhe, sir Henry, que antes de sair daqui ficará a par de tudoquanto sabemos — afiançou Sherlock Holmes. — Agora, se nos permite,vamos nos ocupar deste documento que foi posto, ontem, no correio. Temaí o jornal de ontem, Watson?

— Sim, tenho. Está aqui neste canto.

— Quer fazer o favor de me passar a folha central, com as páginas quecontêm os longos textos dos artigos principais?

Lançando o olhar pelas colunas compactas, Holmes dobrou o jornal eexclamou:

— Ótimo artigo este acerca do comércio livre e da subida dos preços!Vou ler um trecho:

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

grande público. Se der agora crédito a que uma nova tarifa de preçosvenha a ser favorável à sua indústria, ou à sua atividade comercial,podemos concluir, sem grande esforço mental, que os aumentos serefletirão nas exportações, fazendo com que a economia se afasteainda mais da prosperidade, na medida em que irá reduzir o já tãobaixo valor das vendas para o exterior e, por conseqüência, deverádegradar irreversivelmente a já precária sanidade da balança de

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

pagamentos e as condições de vida na Ilha.

— Que me diz disto, Watson? — indagou Holmes, esfregando as mãosde contentamento. — Não acha admirável?

Mortimer olhou para o meu amigo, com curiosidade profissional, e sirHenry fitou-me com expressão perplexa.

— Não entendo coisa alguma de tarifas, nem nada desse gênero —protestou —, e parece-me que estamos nos afastando do assunto a que essacarta se refere.

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— Pelo contrário, sir Henry, creio que estamos no caminho certo. Watsonconhece os meus métodos melhor do que o senhor, mas receio que nem eletenha percebido o significado deste texto.

— Confesso não ver qualquer relação entre a mensagem e o artigo —declarei.

— No entanto, meu caro Watson, existe uma relação íntima, já que aprimeira foi extraída do segundo. Repare nas palavras, juntas ou isoladas:“se der”; “à sua” (que aparece repetida); “mental”; “afastar-se da”; “deverá”;“sanidade” (e finalmente) “vida”. Está vendo de onde foram recortadas aspalavras que compõem a mensagem?

— Puxa! Tem razão! É francamente brilhante! — espantou-se sir Henry.

— Se restasse alguma dúvida — prosseguiu Holmes —, logo seriadissipada pelo fato de as expressões “se der”, “à sua” e “afastar-se da” teremsido recortadas numa só tira, pois já se achavam juntas, respectivamente,no texto do artigo.

— Tem razão! É isso mesmo!

Fitando o meu amigo, com surpresa, Mortimer elogiou:

— Francamente, sr. Holmes, isto excede tudo quanto eu poderiaimaginar! Qualquer pessoa teria percebido que as palavras tinham sidorecortadas de um jornal... Mas, como pôde o senhor descobrir queprovinham de um artigo das páginas centrais do Times?

— Suponho, doutor, que o senhor não teria dificuldade em notar asdiferenças entre o crânio de um cafre e o de um esquimó?

— Certamente...

— Por quê?

— Porque essa é a minha especialidade, e as diferenças antropométricassão óbvias. A crista supra-orbitrária, o ângulo facial, a curva do maxilar...

— Pois também esta é a minha especialidade, e as diferenças são óbvias. Ameus olhos, há tanta diferença entre a impressão cuidada de um artigo doTimes e a má impressão de um jornal da tarde, barato, como a seus olhos ocrânio de um cafre é diferente o de um esquimó. O conhecimento dos tiposde impressão é uma das matérias elementares para o perito em criminologia,embora eu confesse que, quando era muito novo e inexperiente, cheguei aconfundir o Jornal Leeds Mercury com o Western Morning News. Porém, oartigo principal do Times tem sempre uma composição inconfundível, com

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letras mais negras, e essas palavras da mensagem não poderiam ter sidoextraídas de nenhum outro jornal. Ora, como foi redigida ontem, era maisprovável terem as palavras sido recortadas também ontem.

— Pelo que deduzi das suas explicações, sr. Holmes — concluiu sirHenry —, essas palavras foram recortadas com uma tesoura...

— Sim, uma pequena tesoura de unhas, de lâmina muito curta eligeiramente curva, visto que quem compôs as frases viu-se obrigado, emalguns dos casos, a dar duas tesouradas para recortar as palavras.

— Estou vendo... E depois, colou-as...

— Com grude — especificou Holmes.

— Com grude, no papel!... Mas, por que motivo, a palavra “charneca”foi escrita à mão?

— Porque o autor da mensagem não a achou impressa. As restantespalavras eram mais comuns, podendo ser encontradas nos artigos do jornal,mas o termo “charneca” já não é tão freqüente nas colunas do Times.

— Evidentemente!... Notou mais alguma coisa, na mensagem?

— Apesar de o seu compositor ter tido o cuidado de remover tudo quantopudesse denunciar uma pista, ainda descobri alguns indícios. Como vêem,o endereço foi redigido em caracteres grosseiros. Contudo, o Timespraticamente só é lido por pessoas educadas. Portanto, podemos deduzirque a mensagem foi composta por um homem educado que desejou sepassar por inculto; e o cuidado que teve em dissimular a sua própria grafiaindica que o seu tipo de letra é conhecido, ou poderá a vir a ser conhecidopelo senhor. Note, também, que as palavras não foram grudadas em linhaperfeitamente reta e que algumas estão visivelmente mais altas do que outras.Por exemplo, “vida” está muito desalinhada, o que pode indicar descuidoou pressa, por parte do remetente. Inclino-me mais para esta segundahipótese. Visto que, tratando-se de um assunto muito importante, seriapouco provável que o autor da mensagem não lhe dedicasse o merecidocuidado. Portanto tinha urgência de enviá-la. Mas, por que estaria assimcom tanta pressa, se uma carta colocada de manhã no correio, chegaria àsmãos de sir Henry antes que ele deixasse o hotel? Recearia o autor damensagem uma inoportuna interrupção? E quem poderia interrompê-lo?

— Estamos entrando no campo das hipóteses — observou Mortimer.

— Mais precisamente, no campo onde podemos avaliar as diversasprobabilidades e escolher as mais válidas. Este é o uso científico da

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imaginação, mas também temos uma base material para o início das nossasespeculações. Vão agora pensar que estou tentado adivinhar, mas quasetenho a certeza de que esse endereço foi redigido num hotel.

— Por que supõe tal coisa?

— Porque, analisando o envelope, percebemos que tanto a pena como atinta perturbaram o redator do endereço. Repare que, numa mesma palavra,a pena fez espirrar a tinta, duas vezes; também se nota que, numa só linha,a tinta acabou, por três vezes! Ora, uma caneta ou um tinteiro particularesraramente chegam a esse estado de desleixo, e a acumulação simultâneadessas duas deficiências é bastante rara, a não ser nas escrivaninhas doshotéis, cujas canetas e tinteiros se encontram geralmente numa lástima.

Portanto, não hesito em dizer que, se pudéssemos revistar os cestos depapéis dos hotéis que se situam nas imediações de Charing Cross, atéencontrarmos os restos desse exemplar do jornal recortado, não seria difícildescobrir o autor dessa estranha mensagem... Opa! Que é isto?

Holmes, mantendo o papel a poucos centímetros dos olhos, examinouatentamente as palavras grudadas.

— O que é?

— Nada de especial — respondeu, impassível. — É um simples pedaçode papel, sem qualquer marca de fabricação. Creio que, a partir desta carta,já deduzimos tudo quanto era passível de análise. Agora, sir Henry, diga-me, aconteceu mais alguma coisa estranha desde que chegou a Londres?...

— Não notei nada, sr. Holmes.

— Não foi seguido nem notou que alguém o espiasse?

— Até parece que vim cair no meio de um melodrama medíocre —comentou o baronete. — Por que desejariam me seguir?

— Nada tem realmente a nos contar?

— Depende daquilo que o senhor considera merecedor de ser contado.

— Qualquer ocorrência, fora da rotina normal.

Sir Henry sorriu.

— Bem... pouco sei sobre a vida na Inglaterra, já que passei quase todaa minha existência no Canadá e nos Estados Unidos, mas creio que perderum sapato não é coisa que aconteça todos os dias.

— Perdeu um sapato?

Mortimer interveio, admitindo:

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— Deve estar apenas fora do lugar. Acabará encontrando-o quandochegarmos ao hotel. Não vale a pena incomodar sr. Holmes com essainsignificância.

— Como falou de qualquer coisa fora da rotina...

— Precisamente — animou Holmes. — Por mais tolo que pareça oincidente, pode ser importante. Perdeu realmente um dos sapatos?

— Desapareceu. Deixei o par fora do quarto, ontem à noite, para que oengraxassem, e, hoje de manhã, só estava um lá. Não consegui obter qualquerexplicação por parte do engraxador. O que me aborrece é que os compreiontem, no fim da tarde, e nem sequer cheguei a usá-los.

— Se não tinham sido usados, por que motivo mandou limpá-los?

— Eram sapatos de sola, para o campo, que nunca tinham sidoengraxados.

— Quer dizer que, mal chegou a Londres, saiu logo para comprar sapatospara andar no campo?

— Fui fazer várias compras. O dr. Mortimer teve a gentileza de meacompanhar. Já que vou ser o proprietário de Baskerville, tenho de andarvestido em condições, já que no oeste americano me tornei um poucodescuidado. Além da roupa de cerimônia e de uso corrente, comprei essessapatos para o campo, que me custaram o equivalente a seis dólares, e umdeles foi roubado antes que tivesse oportunidade de estrear o par!

A expressão de Holmes era enigmática quando respondeu:

— Realmente, um só sapato parece um roubo inútil. Concordo com odr. Mortimer: esse sapato aparecerá logo.

O baronete pareceu impaciente.

— Creio que já falei bastante sobre o pouco que sei. Já é tempo de mecontarem o que se passou...

— Tem razão — concordou Holmes. — Acho que seria melhor o dr.Mortimer contar a sua história.

O cientista tirou os papéis do bolso e expôs o caso, como já tinha feitonaquela manhã. Ouvindo com a máxima atenção, sir Henry soltava, de vezem quando, uma exclamação de surpresa.

— Parece que recebi uma herança perigosa — considerou o baronete,quando o médico terminou a longa narrativa. — Já ouvi falar dessa históriado cão-fantasma nos meus tempos de menino. Era a lenda predileta da

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família, embora eu nunca a tivesse levado muito a sério. Quanto à mortede meu tio, me sinto confuso, e parece, sr. Holmes, que o senhor ainda nãodecidiu se é assunto para um policial ou para um padre.

— É verdade...

— E agora surge essa carta que enviaram para o hotel... certamente fazparte do mesmo quadro...

— Parece que alguém sabe melhor do que nós o que se passa no pântano— observou Mortimer. — Alguém que, no fundo, não lhe quer mal, porisso o avisa do perigo.

— Ou talvez queira me afastar de Baskerville no seu próprio interesse— objetou o baronete.

— Também é possível — admitiu Holmes. — Estou-lhe muito grato,dr. Mortimer, por ter me apresentado um problema com tantos aspectosinteressantes. Agora, temos de decidir se convém ou não que sir Henry vápara Baskerville.

— Por que diabo eu não iria?

— Parece existir um certo perigo.

— Refere-se a esse diabólico inimigo da família ou a uma intervençãode seres humanos?

— É o que teremos de averiguar.

— Seja como for, estou decidido a ir para as minhas terras. Não hádemônio do Inferno, nem homem na Terra que possa me impedir de tomarposse do lar dos meus antepassados. Pode considerar, sr. Holmes, estaresposta como sinceramente sentida.

Franzindo as sobrancelhas, com uma expressão resoluta, sir Henry aindaacrescentou:

— Contudo, gostaria de refletir durante uma hora. São onze e meia evou regressar ao hotel. Suponho, sr. Holmes, que o senhor e o dr. Watsonaceitam almoçar conosco às duas horas... Poderei, então, lhes comunicar aminha decisão definitiva.

— Está bem para você, Watson? — sondou o meu amigo.

— Perfeitamente.

— Nesse caso, sir Henry, pode contar conosco. Quer que chame umcoche?

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— Prefiro ir a pé, pois este assunto me deixou um pouco perturbado.

— Faço-lhe companhia com prazer — ofereceu-se Mortimer.

— Obrigado. Encontro vocês às duas horas, no hotel. Até logo.

Ouvimos os passos dos nossos visitantes descendo a escada e a porta dafrente se fechar. Num instante, Sherlock Holmes se transformou de calmopensador em homem de ação.

— Depressa, Watson! O seu chapéu! Não temos um minuto a perder.

Correu ao quarto e, segundos depois, reapareceu já vestido para sair.Descemos as escadas correndo e já na rua vimos Mortimer e Baskerville auns duzentos metros à nossa frente, em direção à Oxford Street.

— Quer que eu corra e lhes peça para esperar? — propus.

— De jeito nenhum, caro Watson. Estou imensamente satisfeito com asua companhia, caso você se satisfaça com a minha. Na realidade, está umabela manhã para um passeio a pé — apressou o passo até termos reduzido àmetade a distância que nos separava. Agora, a cem metros deles, percorríamosa Oxford Street e depois a Regent Street. A certa altura, os nossos visitantespararam para olhar para uma vitrine e logo Holmes me deteve para fazer omesmo na loja mais próxima. No instante seguinte, soltou uma exclamaçãode alegria. Seguindo o seu olhar, avistei um coche que, no lado oposto darua, andava lentamente atrás de Mortimer e Baskerville.

— Aquele é o nosso homem, Watson! Venha! Vamos dar uma olhada nosujeito.

Nesse momento, um par de olhos perspicazes, por cima de uma barbanegra, viraram-se para nós através da janela do coche. No mesmo instante,a janela se abriu e o homem falou qualquer coisa ao cocheiro, que meteu ocavalo a galope pela Regent Street.

Holmes olhou ansiosamente ao redor, procurando um coche, mas nãohavia nenhum disponível. Então, correu em perseguição ao sujeito pelomeio do tráfego, mas a dianteira que o coche nos levava já era grande edepressa o perdemos de vista.

— Droga! — exclamou Holmes, saindo da vaga de trânsito. Estavaofegante e pálido de desapontamento.

— Que pouca sorte, Watson! E que idiotice a minha! Se você é umcronista honesto, também deve anotar este meu desastre, para contraporaos meus sucessos.

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— Quem era o homem?

— Não faço idéia.

— Um espião.

— Pelo que sabemos, não há dúvida que sir Henry tem sido espiadodesde que chegou a Londres. De que outra maneira poderiam ter descobertoque se instalou no Northumberland Hotel? Se puderam segui-lo no primeirodia da sua estada aqui, nada os impede de continuarem a segui-lo. Deve terobservado, Watson, que, enquanto Mortimer lia a lenda do cão, meaproximei por duas vezes da janela da sala.

— Sim, reparei nisso.

— Queria ver se algum “vagabundo” nos espiava, mas estamos lidandocom um homem astuto. Quando os nossos amigos saíram, quis segui-losimediatamente para ver se descobria o invisível perseguidor, mas ele teve aastúcia de arranjar um coche para poder ir atrás deles, ou mesmo à suafrente, sem ser notado, podendo até prosseguir na sua perseguição, casoeles também utilizassem qualquer transporte. Contudo, esse método teveum inconveniente...

— Deixou o perseguidor à mercê da indiscrição do cocheiro...

— Exatamente.

— Que pena, não termos anotado o número do coche!

— Por mais tolo que eu tenha sido, meu caro Watson, não vai pensarque eu tivesse deixado escapar uma precaução tão elementar! É o 2704.Porém, por agora, isso de nada vale.

— Não sei o que mais poderíamos ter feito...

— Ao ver o coche, eu deveria ter ido imediatamente na direção oposta.Então, poderia ter alugado outro para segui-lo a uma distância conveniente,ou ir até o hotel e esperar lá pelo perseguidor. Poderíamos imitar o seujogo, a fim de ver para onde ele seguia. Em vez disso, manifestamos umaansiedade indiscreta que o homem soube aproveitar... e o perdemos devista.

Caminhávamos devagar, de maneira que sir Henry e o dr. Mortimer játinham desaparecido.

— Agora, já não interessa irmos atrás deles. O perseguidor não se atreveráa voltar. Temos de arranjar outros trunfos e jogá-los com destreza. Vocêseria capaz de reconhecer o homem do coche?

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— Só poderia reconhecê-lo pela barba.

— Eu também, mas provavelmente era falsa. Vamos entrar aqui, Watson.

Entrou num escritório de mensageiros, onde foi recebido amavelmentepelo gerente. Holmes cumprimentou-o.

— Vejo, Wilson, que não se esqueceu do caso em que tive a oportunidadede ajudá-lo.

— Claro que não, sr. Holmes! O senhor salvou minha reputação e, talvez,a vida!

— Ora, o meu amigo está exagerando. Lembro-me de que, entre os seusempregados, havia um moço de recados chamado Cartwright que semostrou bastante hábil durante as investigações.

— Sim, senhor. Esse rapaz ainda trabalha aqui.

— Quer chamá-lo? E agradeceria se me trocasse esta nota de cinco libras.

À chamada do gerente, apareceu um rapaz de rosto vivo, cerca de catorzeanos. Olhou fixamente para o detetive.

— Deixe-me ver a lista dos hotéis — pediu Holmes.

— Obrigado! Agora, Cartwright, aqui estão os nomes de vinte e trêshotéis nas imediações de Charing Cross. Está vendo?

— Sim, sr. Holmes.

— Vá dar uma volta por todos eles.

— Sim, senhor.

— E, em cada hotel, começará por dar um xelim ao porteiro. Aqui temvinte e três xelins.

— Sim, senhor.

— Dirá aos porteiros que deseja revistar os cestos dos papéis de ontem,com o pretexto de que se perdeu um telegrama importante e que omandaram à procura dele. Compreende?

— Sim, sr. Holmes.

— Porém, o que vai procurar é um exemplar do Times, cuja páginacentral foi recortada à tesoura. É uma página igual a esta... Está vendo?Será capaz de reconhecê-la?

— Certamente.— Nesses hotéis, o porteiro da entrada principal mandará chamar o

porteiro do fundo, de maneira que você terá de dar a este outro xelim.

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Portanto, aqui tem mais vinte e três xelins. Decerto, vão dizer por vezes queo lixo de ontem já foi jogado fora, ou queimado. Mas pode dar sorte eencontrar a página do Times. Embora as chances sejam poucas, não devedesistir da sua busca. Aqui tem dez xelins para casos de emergência. Depois,mande-me um telegrama para a Baker Street, antes da noite, relatando-meos resultados das suas pesquisas.

E agora, Watson, só nos resta descobrir, por telegrama, a identidade dococheiro do trem 2704. Entretanto, podemos ir visitar as galerias de pinturada Bond Street, e ainda chegaremos a tempo de almoçar no Northumberland.

CAPÍTULO 5 – TRÊS FRACASSOS

Q uando queria, Sherlock Holmes tinha o extraordinário poderde se afastar de um assunto preocupante. Durante duas horas,pareceu esquecer o estranho caso em que nos achávamos

envolvidos e se interessar exclusivamente pelos quadros dos mestresflamengos. Embora pouco entendesse do assunto, desde que saímos dagaleria até que entramos no hotel, limitou-se a falar de arte.

— Sir Henry Baskerville está lá em cima, à sua espera — informou orecepcionista. — Pediu que os conduzisse logo que chegassem.

— Posso dar olhada pelos registros do hotel? — solicitou Holmes.

Percebi que o recepcionista conhecia o meu amigo, pois se prontificou aatendê-lo:

— Oh!... Certamente!

O livro das entradas nos indicou que dois nomes tinham sido registradosapós o de Baskerville. Um deles era um tal Theophilus Johnson e família,de Newcastle; o outro, uma tal de sra. Oldmore e dama de companhia, deHigh Lodge, Alton.

— Creio que conheço este sr. Johnson — observou Holmes aorecepcionista. — Não se trata de um advogado de cabelos grisalhos, quemanca um pouco?

— Oh, não senhor! Este sr. Johnson é proprietário de uma mina decarvão e pessoa muito ativa; não deve ser mais velho que o senhor, sr.Holmes.

— Tem a certeza disso?

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— Absoluta. Há vários anos que é cliente deste hotel e todos oconhecemos perfeitamente.

— Bem, não insisto, já que é assim! E a sra. Oldmore? O seu nometambém não me é estranho! Desculpe a minha curiosidade, mas, às vezes,ao visitarmos um amigo num hotel, deparamos com outro...

— Sim, é natural. Sra. Oldmore é uma senhora inválida, cujo marido,há tempos, foi prefeito de Gloucester. Hospeda-se sempre aqui, quandovem a Londres.

— Obrigado. Parece que não a conheço.

Ao subirmos as escadas, Holmes inclinou-se para mim e murmurou:

— Com estas perguntas, Watson, ficamos sabendo que as pessoas tãointeressadas em sir Henry não estão hospedadas neste hotel. Isto significaque, embora ansiosas por segui-lo, têm também o cuidado de não ser vistas.É muito sugestivo...

— É? Sugere o quê?

— Sugere que... Olha! O que é isso?

Ao chegarmos ao topo da escada, deparamos com sir Henry, vermelhode raiva, segurando um sapato velho, cheio de pó. Estava tão furioso que,ao falar, apresentava a nítida pronúncia do oeste americano ainda maisacentuada do que a que tínhamos ouvido de manhã.

— Parece que andam brincando comigo, neste hotel! Mas estão muitoenganados a meu respeito! De brincadeira, já chega. Se esse criado nãoconseguir encontrar o meu sapato, armo uma confusão dos diabos! Destavez, sr. Holmes, foram longe de mais!

— Ainda procurando o sapato?

— Certamente, e hei de encontrá-lo!

— Mas... não me falou num sapato de sola, novo?

— Isso foi antes. Agora se trata de um sapato velho, preto!

— Quer dizer que...

— Quero dizer que eu só tinha três pares de sapatos: os de sola, novos,os pretos, já bastante usados, e estes de vitel, castanhos que trago nos pés.Ontem à noite, levaram um dos de sola e hoje roubaram-me um dos pretos!

Virou-se para um criado alemão que surgira naquele instante e inquiriu:

— Então? Já o encontrou?

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— Não, senhor! Perguntei a todo o mundo aqui no hotel, mas ninguémsabe como isso aconteceu!

— Pois bem, ou esse sapato aparece até o fim da tarde, ou saio destaespelunca.

— Há de aparecer, senhor! Queira ter um pouco de paciência.

— Então, trate disso. Parece que caí numa toca de ladrões!... Desculpe,sr. Holmes, por incomodá-lo com uma ocorrência tão insignificante...

— Acho que tem razão em se incomodar com isso.

— Leva o caso a sério?

— Certamente. Como explica um caso tão estranho?

— Nem procuro explicação. É a coisa mais estranha que me aconteceu!Que pensa o senhor desta brincadeira de mau gosto?

— Talvez se insira no conjunto de eventos em que todos se mostrammuito complexos. Entre os quinhentos casos que investiguei, talvez este damorte de seu tio seja o mais obscuro. Mas já temos alguns fios de meadasque nos dão uma esperança de descobrirmos a verdade.

O almoço foi agradável e pouco falamos do assunto que ali nos reuniu.Na saleta privativa para onde depois nos retiramos, Holmes perguntou asir Henry quais eram as suas intenções.

— Estou decidido a ir para o solar de Baskerville.

— Quando?

— No fim da semana.

— Considero essa sua decisão acertada — apoiou Holmes. — Tenhocerteza de que aqui em Londres está sendo seguido e que, no meio demilhões de pessoas, será difícil descobrir quem o persegue e com queobjetivo. Se as intenções dos seus perseguidores são maléficas, sir Henry,não estaríamos em condições de protegê-lo. Sabia, dr. Mortimer, que hojede manhã foram seguidos logo após terem saído de minha casa?

Mortimer sobressaltou-se:

— Seguidos? Por quem?

— Infelizmente, não posso informá-lo. Conhece, em Dartmoor, algumhomem que tenha a barba negra e cerrada?

— Não... A não ser Barrymore, o mordomo de sir Charles.

— Onde se encontra esse Barrymore?

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— Tomando conta do solar.

— Temos de verificar se está realmente lá, ou se veio a Londres.

— Como poderemos saber?

— Por telegrama. Quer me passar esse impresso? Vou redigir umapergunta simples: “Tem tudo preparado para receber sir Henry?”

“Envie esta mensagem para sr. Barrymore, Solar de Baskerville... Qual éo posto de correio e telégrafo mais próximo?... Grimpen. Perfeito. Entãoenvie o telegrama para Grimpen, mas com a seguinte recomendação:

O telegrama tem de ser entregue pessoalmente ao sr. Barrymore. Se este estiverausente, o telegrama será devolvido imediatamente a sir Henry Baskerville,Northumberland Hotel, Londres.”

Desta maneira, ficaremos sabendo se Barrymore está ou não no solar.Pode explicar melhor, dr. Mortimer, quem é esse Barrymore?

— É filho do velho caseiro, já falecido, e sir Charles lhe atribuiu asfunções de mordomo. Há, pelo menos, quatro gerações que os Barrymoretrabalham para os Baskerville. Segundo consta, tanto ele como a mulhersão de toda a confiança.

— Naturalmente, quando o solar está desabitado, devem levar uma vidaboa. Esse mordomo recebeu alguma coisa pela morte de sir Charles?

— Ele e a mulher receberam quinhentas libras cada um.

— E estavam a par desse testamento, antes da morte do patrão?

— Sim. Sir Charles gostava de falar das cláusulas do testamento.

— Eis um hábito pouco saudável para um velho rico! Espero que nãosuspeite de toda a gente que recebeu herança de sir Charles — ironizouMortimer. — Eu próprio recebi mil libras.

— Sim?... E houve mais contemplados?

— O meu amigo fez vários donativos, menores, a diversas pessoas, eoutros, mais vultosos, a instituições de caridade... Mas o grosso da fortunaficou para sir Henry.

— E de quanto é essa fortuna?

— Setecentas e quarenta mil libras.

Holmes ergueu as sobrancelhas, admirado.

— Não imaginava que fosse tanto.

— Realmente, sir Charles tinha fama de ser rico, mas nunca supusemosque possuísse uma tão grande fortuna. O total quase chegava a um milhão.

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— É, na verdade, uma parada que pode tentar qualquer aventureiro afazer um jogo desesperado. Dr. Mortimer, suponhamos que aconteçaqualquer coisa a sir Henry... Desculpe-me esta desagradável hipótese... Setal sucedesse, quem seria o herdeiro?

— Como Rodger Baskerville, irmão mais novo de sir Charles, morreusolteiro, a herança iria para os Desmond, primos afastados dos Baskerville.James Desmond é um clérigo idoso, que vive em Westmorland.

— Esses pormenores são muito interessantes. Conhece pessoalmente sr.Desmond?

— Encontrei-o uma vez, quando fui visitar sir Charles. É um pastorreligioso, muito respeitável, que leva uma vida santa. Lembro-me de querecusou a doação que sir Charles pretendia lhe fazer.

— E esse homem, tão santo, seria o único herdeiro dessa fortuna?

— Certamente. Herdaria o solar e a propriedade que está vinculada aele, e também o dinheiro, a menos que o atual proprietário fizesse novotestamento, em outros termos.

— E o senhor já fez testamento, sir Henry?

— Ainda não, sr. Holmes. Não tive tempo, pois só ontem soube dosacontecimentos, mas acho que o dinheiro deve pertencer a quem herdar apropriedade. Era essa a vontade de meu tio. De que outra maneira poderiao solar ser restaurado? Casa, terra e dinheiro devem permanecer juntos.

— Perfeitamente! Concordo com o senhor ao declarar que deseja ir parao Devonshire, sem demora. Baskerville precisa do senhor, mas convémtomar uma precaução. Não deverá ir só.

— O dr. Mortimer vai comigo...

— Mas o dr. Mortimer tem de tratar dos seus pacientes, e a sua casa ficaa vários quilômetros de Baskerville. Por muito boa vontade que tenha,talvez não possa ficar junto com o senhor. Não, sir Henry. O senhor precisater sempre a seu lado uma pessoa de confiança.

— Está disponível para vir comigo, sr. Holmes?

— Só num caso extremo poderei ir em seu auxílio, pois tenho a minha vastaclientela e recebo chamadas constantes, de todo o lado, por isso é impossíveldeixar Londres. Agora mesmo, um dos nomes mais respeitados da Inglaterraestá sendo manchado por um chantagista e parece que só eu poderei evitar oescândalo. Como vê, é impossível eu ir para Baskerville neste momento.

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— Nesse caso, quem me recomenda?

Holmes colocou a mão sobre o meu ombro.

— Se o meu amigo estiver disposto a ir, será um ótimo parceiro numasituação de perigo. Ninguém melhor do que eu poderá afiançá-lo.

A proposta me apanhou de surpresa e, antes que tivesse tempo pararesponder, Baskerville apertou minha mão e sacudiu-a calorosamente.

— É muito gentil de sua parte, dr. Watson — exultou. — Está a par detodo o assunto e, se quiser me acompanhar ao solar, fico-lhe imensamentegrato.

A expectativa da aventura sempre me fascinou, e senti-me lisonjeadocom as palavras de Holmes e com o entusiasmo que o baronete tãoprontamente manifestou.

— Terei muito gosto em acompanhá-lo — respondi. — É uma ótimamaneira de empregar o tempo.

— Não deixe de me mandar relatórios pormenorizados — recomendouHolmes. — Quando o momento crítico se aproximar, direi como deveráagir. Espero que, neste sábado, já esteja tudo preparado.

— Concorda, dr. Watson? — indagou sir Henry.

— Perfeitamente.

— Então, no sábado, a menos que o avise do contrário, podemos nosreunir na estação de Paddington, para tomarmos o trem das dez e meia.

Já estávamos de pé, para sairmos, quando o baronete soltou umaexclamação de alegria. Num dos cantos do quarto, havia um armárioentreaberto e, à vista, um par de sapatos.

— Aqui está o sapato de sola que andava perdido!

— É estranho — comentou Mortimer. — Antes do almoço, revistei oquarto cuidadosamente e esse par ainda estava incompleto!

— E eu também já o tinha passado a “pente fino” — afirmou Baskerville.

— Nesse caso, durante o nosso almoço, o criado repôs o sapato no seulugar.

Quando foi chamado, o criado alemão jurou que nada sabia sobre oreaparecimento do sapato, e nada mais pudemos apurar.

Além da triste ocorrência do falecimento de sir Charles, tinha-severificado, no período de dois dias, uma série de incidentes, desde o

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recebimento da mensagem ao espião barbudo, ao desaparecimento do sapatonovo e depois do velho e, finalmente, o reaparecimento do primeiro. Aoregressarmos de coche à Baker Street, Holmes se mantinha calado e, pelasua expressão grave, de sobrancelhas carregadas, eu sabia que se achavaocupado em conceber um quadro no qual fosse possível encaixar, comonum quebra-cabeça, todos os episódios estranhos e aparentementedesconexos. Chegando em casa, ficou até tarde sentado na sua poltrona,fumando, pensativo. Depois, ainda antes do jantar, chegaram doistelegramas. O primeiro anunciava: “Acabo ser informado. Barrymore estáno solar Baskerville.”

O segundo telegrama informava:

“Fui 23 hotéis. Lamento não conseguir encontrar páginas Times.Cartwright.”

— Assim se quebram duas pontas das minhas meadas — resmungouHolmes. — Nada é mais estimulante do que um caso em que tudo seapresenta adverso. Temos, meu caro Watson, que procurar uma outra pista.

— Resta o cocheiro que transportou o homem da barba — lembrei.

— Já telegrafei para o registro municipal indicando o número do coche,e aguardo que me informem o nome e endereço do cocheiro...

Nesse momento, tocaram a campainha...

— ...Talvez venha aí a resposta à minha indagação...— concluiu.

O toque da campainha correspondeu a algo mais satisfatório do queuma simples mensagem, pois entrou um indivíduo de aspecto rude queera, evidentemente, o cocheiro, em pessoa.

Este proferiu. exaltado:

— Recebi um recado da gerência informando que um senhor, nestacasa, andava perguntando quem conduzia o coche 2704. Ando com essecarro há sete anos e nunca houve a menor queixa contra mim. Vimdiretamente da estação para cá para perguntar, cara a cara, que tem o senhorcontra o meu serviço.

— Nada tenho contra o senhor — serenou-o Holmes. — Pelo contrário,tenho aqui meio soberano para lhe oferecer se quiser me responder comfranqueza.

— Nesse caso, estou com sorte — entusiasmou-se o cocheiro, sorrindo.— Que o senhor deseja saber?

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— Antes de mais nada, qual o seu nome e endereço, para o caso detornar a precisar do senhor.

— Sou John Clayton e moro no número 3 da Turpey Street, em Borough.O meu coche estaciona, habitualmente, diante do Shipley’s Yard, junto daestação de Waterloo.

Sherlock Holmes tomou nota e propôs:

— Agora, Clayton, fale-me do passageiro que hoje, às dez da manhã,veio espiar esta casa e depois esteve seguindo dois senhores que saíramdaqui.

O homem ficou surpreso e embaraçado.

— Bem... Creio que não adianta mentir, porque o senhor parece estarinteirado do assunto... O meu passageiro explicou que era detetive erecomendou-me que não falasse dele a pessoa alguma.

— Este caso é muito sério, Clayton, e você ficará em maus lençóis setentar nos esconder a verdade. O seu passageiro declarou ser detetive?

— Sim, senhor.

— Quando ele declarou isso?

— Quando me pagou, no momento de descer.

— Acrescentou mais alguma coisa?

— Sim. Disse-me como se chamava.

— Essa é boa! — admirou-se Holmes. — Cometeu uma imprudência!Como disse ele que se chamava?

— Sr. Sherlock Holmes.

Nunca vi o meu amigo tão desconcertado como naquele momento.Emudeceu, durante alguns momentos, mas logo desatou a rir.

— Golpe de mestre, Watson, golpe de mestre! — reconheceu. — Essetipo joga tão bem quanto eu. Então, disse se chamar Sherlock Holmes, hem?

— Sim, senhor.

— Perfeito! Onde ele apanhou o seu coche e que mais aconteceu?— Subiu às nove e meia em Trafalgar Square e ofereceu-me dois guinéus

para eu ficar ao seu serviço, durante todo o dia, sem fazer perguntas.Concordei e fomos para o Northumberland Hotel, onde esperamos quesaíssem dois senhores e tomassem um coche, diante do hotel. Então, osseguimos até aqui.

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Parece que o meu passageiro sabia o que estava acontecendo, pois paramosno fim da rua e esperamos uma hora e meia. Depois, quando os dois senhorespassaram por nós, mandou-me segui-los devagar até a Regent Street.

No meio da Regent Street, o meu passageiro abriu a janela e mandouseguir para a estação de Waterloo o mais depressa possível. Chicoteei a éguae chegamos lá em dez minutos. Foi então que me pagou os dois guinéus e,antes de entrar na estação, virou-se para mim e disse: Talvez lhe interessesaber que teve hoje como passageiro Sherlock Holmes.

— E não tornou a vê-lo, depois disso?

— Nunca mais o vi depois de ter entrado na estação.

— Muito bem. Diga-me agora como descreveria o sr. Sherlock Holmes?

O cocheiro coçou a cabeça.

— Bem... Não é um cavalheiro fácil de descrever. Aparentava uns quarentaanos, era pálido e talvez alguns centímetros mais baixo do que o senhor...Estava muito bem vestido e usava barba preta, cortada em quadrado. Não seiexplicar mais do que isto.

— Qual era a cor dos olhos?

— Não reparei.

— Muito bem. Aqui tem meio soberano e fica outro à sua espera para ocaso de conseguir me trazer mais informações. Boa noite, Clayton.

— Boa noite, senhor, e muito obrigado.

O homem saiu satisfeito e Holmes, virando-se para mim, sorriu aborrecido.

— Lá se quebrou a nossa terceira ponta da meada! Ficamos no mesmoponto em que estávamos. Um tipo astuto! Conhecia a nossa casa, já sabiaque sir Henry me consultou, reconheceu-me no meio da Regent Street,calculou que eu anotaria o número do coche e que iria procurar o cocheiro,de maneira que lhe transmitiu este recado. Garanto-lhe, Watson, que, destavez, temos um adversário audacioso e digno de nós. Acabo de ser derrotadoem Londres, mas espero ter melhor sorte no Devonshire. Contudo, não estoutranqüilo quanto à segurança em Baskerville.

— Tem medo de que aconteça alguma coisa a sir Henry?

— E a você, Watson. Este caso é realmente perigoso e, quanto mais oanaliso, menos me agrada. Sim, meu caro amigo, deixo-o ir, mas lhe juroque ficarei mais satisfeito quando o vir de regresso, são e salvo, à nossaBaker Street.

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CAPÍTULO 6 – O SOLAR DE BASKERVILLE

No dia marcado, sir Henry e o dr. Mortimer estavam prontospara partir e, conforme tínhamos combinado, tomamos o trempara o Devonshire. Sherlock Holmes me acompanhou à estação

e me fez as últimas recomendações:

— Não quero, meu caro Watson, lhe sugerir teorias ou lhe inculcarsuspeitas. Pretendo apenas que me faça, da maneira mais completa, o relatóriodos fatos que presenciar. Pode deixar as conclusões por minha conta.

— Que espécie de fatos?

— Tudo quanto possa se relacionar, mesmo indiretamente, com o caso;principalmente, as relações entre Baskerville e os seus vizinhos; tambémqualquer novo aspecto acerca da morte de sir Charles. Eu próprio tenhofeito, ultimamente, algumas investigações nesse sentido, mas receio que osresultados se mostrem negativos. Uma coisa, porém, parece certa: esseclérigo, o sr. James Desmond, presumível herdeiro imediato, é um velhoteafável, de maneira que não pode ser o autor da perseguição quepresenciamos.

Creio que podemos eliminá-lo das nossas suspeitas hipotéticas. Resta-nos averiguar cuidadosamente o comportamento e identidade das pessoasque vivem no pântano, em redor do solar.

— Não seria prudente nos livrarmos do casal Barrymore?

— De maneira alguma. Se o marido e a mulher estiverem inocentes,seria uma injustiça. Em contrapartida, se forem culpados, perderíamos aoportunidade de desmascará-los.

Ambos continuam na nossa lista de suspeitos. Temos também, no solar,um cavalariço e, no pântano, dois fazendeiros e temos o dr. Mortimer,embora eu me incline a considerá-lo absolutamente honesto, e ainda amulher dele, de quem nada sabemos. Depois, temos o naturalista, o sr.Stapleton, e a irmã que, segundo consta, é uma jovem muitíssimo atraente.

Resta-nos ainda o sr. Frankland de Lafter Haff, que constitui, para nós,um fator inteiramente desconhecido, e mais dois ou três vizinhos deimportância relativa. De qualquer modo, todos eles devem ser alvo da suaatenta observação.

— Farei o melhor que puder...

— Está levando uma arma com você, não é verdade?

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— Sim. Achei que devia levar o revólver...

— Conserve-o noite e dia em seu poder e nunca deixe de tomar asdevidas precauções.

Mortimer e sir Henry já tinham reservado lugares no vagão de primeiraclasse e nos aguardavam na plataforma da estação. Respondendo a Holmes,Mortimer informou:

— Nada de especial aconteceu e posso jurar que não fomos seguidos,durante estes dois dias. Andei sempre atento a essa possibilidade.

— Andaram sempre juntos?

— Exceto ontem à tarde, quando vim à cidade; reservo sempre um diapara me distrair um pouco... de maneira que passei a tarde no SurgeonsCollege Museum.

— Quanto a mim — interveio o baronete — , fui passear pelo parque,mas não tive o menor aborrecimento.

— Foi uma imprudência — censurou Holmes, preocupado. — Suplico-lhe, sir Henry, que não volte a sair só, pois corre um grande risco...Conseguiu descobrir o outro sapato preto?

— Creio que esse está irremediavelmente perdido.

— Eis um pormenor interessante! Então, adeus! — despediu-seHolmes, quando o trem começou a rodar ao longo da plataforma e,acompanhando-o ainda, alguns passos, acrescentou: — Lembre-se de umdos conselhos da lenda: evite atravessar o pântano durante as horas tenebrosasem que os poderes do mal estão exaltados.

Quando, momentos depois, tornei a olhar paraa plataforma já bastantedistanciado, ainda vi o vulto de Holmes, alto e austero, olhando na nossadireção.

A viagem foi rápida e agradável. Procurei conhecer mais intimamenteos meus companheiros e brinquei um pouco com o cão do dr. Mortimer.Horas depois, a terra cinzenta tornou-se avermelhada, o tijolo dasconstruções foi substituído por blocos de granito e apareceram as primeirasvacas pastando em cerrados de árvores altas, onde a erva e a vegetaçãoindicavam um clima que, embora úmido, tornava a terra muito maisfértil.

O jovem Baskerville observava a paisagem pela janela e acabou porsoltar exclamações de prazer, ao reconhecer o cenário familiar doDevonshire.

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— Tenho viajado muito pelo mundo, dr. Watson, desde que saí daqui,mas nunca encontrei um lugar que se comparasse a este! — comentou,extasiado.

— E eu nunca encontrei um nativo do Devonshire que não elogiasse ocondado em que nasceu! — ironizei.

O dr. Mortimer sentenciou:

— Depende sempre da etnia do nativo e da região que foi seu hábitat. Onosso amigo aqui possui a cabeça arredondada dos celtas, que corresponde aoentusiasmo e dom de fidelidade dessa etnia à terra do seu clã. Mas o senhor, sirHenry, ainda era muito jovem quando saiu de Baskerville, não é verdade?

— Sim. Deixei o Devonshire na ocasião da morte de meu pai, e nuncative oportunidade de visitar Baskerville, pois vivíamos na costa sul. Depois,parti para a América e instalei-me lá na casa de um amigo da família... Paramim, o solar constitui uma novidade tão grande como para o dr. Watson,e confesso que estou curioso por ver o pântano.

— Eis um desejo bem fácil de satisfazer — disse Mortimer, apontandopela janela da carruagem.

Acima dos quadriláteros verdes do pântano e da pequena elevação deum bosque, erguia-se um morro cinzento e melancólico, de cristaestranhamente recortada, tão impreciso como um cenário maravilhoso.

Durante algum tempo, sir Henry contemplou a paisagem e notei, no seurosto, quanto para ele significava aquele lugar onde os varões do seu sanguetinham vivido ao longo de séculos, deixando tão profundos vestígios. Alificou sentado, no seu traje de tweed, no canto do prosaico vagão. Apesar donotório sotaque americano, o seu rosto bronzeado e expressivo indicava serum verdadeiro descendente daquela longa linhagem de homens impetuosos,ardentes e dominadores. Adivinhava-se, na sua expressão, de olhos castanhose sobrancelhas espessas, um certo orgulho e, sobretudo, energia e bravura.

Se, nesse pântano assustador, nos aguardasse um perigo mortal, ali estavaum indivíduo com o qual poderíamos nos aventurar a correr qualquer risco,na certeza de que se portaria com coragem.

O trem parou numa minúscula plataforma, onde descemos. Para alémde uma cerca baixa, nos aguardava uma carruagem puxada por uma parelhade cavalos. Parecia que a nossa chegada constituía um acontecimento raro,visto que o guarda da plataforma e dois bagageiros logo nos rodearam paratransportar as malas.

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Era um lugarejo simples e tranqüilo, mas fiquei admirado ao ver, juntodo portão, dois homens de uniforme escuro, apoiados a curtas carabinas,que nos fitaram atentamente quando passamos.

O cocheiro, de rosto enrugado e bronzeado, saudou sir Henry e, embreve, seguíamos velozmente pela estrada larga. Víamos pastos e casas velhas,de altas laterais, espiando-nos através da folhagem. E, por detrás da paisagempacífica, avistava-se a curva sombria e ameaçadora do pântano, apenasentremeada pelo sinistro recorte dos montes.

A carruagem entrou numa estrada lateral e atravessamos os atalhoscalcados por milhares de rodas, vendo-se de ambos os lados penhascoscobertos de musgo úmido, e sarças esparsas brilhavam aos últimos raiosde sol.

Passamos por uma ponte de granito e contornamos um riacho ruidosoque corria, rápido e espumante, por entre rochas escuras. Tanto a estradacomo o riacho enveredavam por um vale coberto de abetos e de carvalhosatrofiados.

A cada curva do caminho, sir Henry soltava uma exclamação de prazer,fazendo numerosas perguntas. A seus olhos, tudo parecia belo, mas eunotava, na paisagem, a marca de um outono que terminava com folhasamarelas atapetando as veredas e esvoaçando à passagem da carruagem.

O ruído das rodas diminuiu quando entramos numa zona coberta devegetação apodrecida: imagem triste que a natureza oferecia ao herdeiro deBaskerville, na ocasião do seu regresso ao condado dos antepassados.

— Olha! — exclamou Mortimer. — Que é isso?

Sobre uma elevação coberta pela vegetação, via-se um soldado, que maisparecia uma estátua, com a carabina apoiada no antebraço. Compreendique se estava montando guarda na entrada por onde passávamos.

— O que é, Perkins? — inquiriu Mortimer.

O cocheiro virou-se para nós, e elucidou:

— Fugiu um preso de Princetown, senhor. Há três dias que anda por aí.Os guardas vigiam todas as estradas e todas as estações, mas ainda nãoconseguiram prender o homem. Os fazendeiros têm razão para se mostrarempreocupados... e recusam-se a cooperar...

— Mas é costume as autoridades oferecerem cinco libras a quem derinformações...

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— Sim, senhor, mas cinco libras são muito pouco, comparado ao riscode ficar com a garganta cortada. Este condenado não é como os outros,pois não vacila perante coisa alguma.

— Quem é ele?

— Selden, o assassino de Notting Hill.

Lembrava-me do caso, pois fora um dos que tinham despertado ointeresse de Holmes, pela ferocidade do crime e brutalidade que caracterizaratodos os atos do malfeitor. A comutação da pena de morte em prisãoperpétua resultara de certas dúvidas quanto à sua sanidade mental.

Diante de nós, o pântano fazia-nos emudecer. Num recanto daquelaplanície desolada, encontrava-se um monstro, escondido numa toca comoum animal selvagem, com o coração raivoso contra a humanidade quesentenciou a sua segregação. Só faltava isto para completar o cenáriosombrio. Mesmo sir Henry permaneceu silencioso, aconchegando mais osobretudo ao corpo.

Tínhamos deixado para trás as terras férteis onde os raios oblíquos dosol poente transformavam os ribeiros em filetes de ouro, resplandecendoatravés da terra vermelha que os arados haviam revolvido.

À nossa frente, a estrada tornava-se mais escura e bravia, com rampasrubras e cor esverdeada, incrustadas de pedregulhos.

De vez em quando, passávamos por uma casa de granito, sem qualquerfolhagem de trepadeira alegrando a fachada. De súbito, vimos uma depressãode terreno, em forma de taça, salpicada de abetos e pequenos carvalhos,quebrados e retorcidos pela fúria do vento e do tempo. Duas torres, altas eestreitas, erguiam-se acima da copa rala das árvores. Então, o cocheiroapontou com o chicote:

— O solar de Baskerville.

Sir Henry soergueu-se do banco e olhou para a casa, com os olhosbrilhantes e o rosto corado. Minutos depois, atravessávamos os portões deferro forjado, com volutas fantásticas, ladeados por pilares cobertos de líquene arrematados por cabeças de javali, timbre das armas dos Baskerville.

A portaria era uma ruína de granito escuro, com vigas rompendo afachada descamada; porém, defronte, via-se um novo edifício, embora aindainacabado: o primeiro fruto do ouro africano de sir Charles.

Atravessamos a avenida, onde o ruído das rodas foi novamenteamortecido pela folhagem morta e onde as copas das velhas árvores

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formavam um túnel sobre as nossas cabeças. Ao ver a casa, que brilhavacomo um fantasma no fim da avenida, sir Henry não pôde disfarçar umestremecimento.

— Foi aqui? — inquiriu.

— Não, senhor — respondeu Perkins. — Foi na alameda dos teixos,que fica do outro lado.

Olhando em redor, o jovem herdeiro comentou:

— Não é de admirar que o meu tio previsse que algo de mau pudesse vira acontecer... num lugar como este! É realmente assustador. Dentro de seismeses, farei com que instalem aqui uma fileira de candeeiros e, então,ninguém reconhecerá esta alameda com lâmpadas de mil velas Swan &Edison diante da fachada.

A avenida alargava-se próxima ao pântano e a casa erguia-se, agora,defronte de nós. À luz crepuscular, vi que a fachada era um bloco pesadode onde se projetava o portal saliente. Toda a fachada estava coberta dehera, com manchas mais claras nos pontos onde uma janela ou um brasãorompiam o fundo escuro.

Neste bloco central, erguiam-se as antigas torres gêmeas, com ameias eseteiras. A direita e à esquerda das torres, estendiam-se alas mais recentes,de granito escuro. Através das janelas fortemente gradeadas, escoava-se umaluminosidade tênue e, pela esguia chaminé que se erguia do telhadoinclinado, subia uma nuvem de fumaça.

— Seja bem-vindo, sir Henry! Bem-vindo ao solar de Baskerville!

Um homem, surgindo da sombra do pórtico, viera abrir a portinhola dacarruagem. Destacando-se no clarão amarelo do átrio, via-se um vulto demulher. Também esta se aproximou e ajudou o homem a carregar as malas.

— Não se importa, sir Henry, que eu vá diretamente para casa? —perguntou Mortimer. — Minha mulher está à minha espera...

— Não quer ficar para jantar, doutor?

— Não, sir Henry. Tenho certamente trabalho à minha espera. Gostariade lhe mostrar o solar, mas Barrymore é melhor guia do que eu. Até logo.Se precisar de mim, não hesite em mandar chamar-me, a qualquer hora dodia ou da noite.

Quando o baronete e eu entramos no átrio, fechando-se a pesada portaatrás de nós, encontramos uma bela sala espaçosa, de pé-direito alto, com

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grandes vigas de carvalho, no teto, enegrecidas pelo tempo. Na grandelareira antiga, crepitavam grossas achas de lenha. Fomos aquecer as mãos,pois nos sentíamos gelados após o longo percurso de carruagem. Depois,olhamos em redor e vimos a janela alta de vitrais, painéis de carvalho, ascabeças de veado, as armas brancas e armaduras, nas paredes, tudofoscamente desbotado, à luz débil do candelabro central.

— Tal como eu imaginei — proferiu sir Henry. — O típico lar de umafamília antiga. Pensar que, nesta mesma sala, durante quinhentos anos,viveram os meus antepassados!

Notei que o seu rosto bronzeado se iluminou com um entusiasmo juvenil.Barrymore, que tinha ido levar as nossas malas para os quartos, já regressava eestava agora diante de nós, com a atitude respeitosa de um servente bem formado.Era um indivíduo alto, de feições muito corretas, embora muito pálidas, usandoa barba negra, aparada em quadrado, e tinha maneiras distintas.

— Vossa Senhoria deseja que sirva o jantar?

— Já está pronto?

— Dentro de poucos minutos. Os senhores encontrarão água quentenos quartos. Minha mulher e eu, sir Henry, teremos muito gosto em ficarcom Vossa Senhoria, até que o serviço do solar esteja reorganizado. Contudo,esta casa é muito grande e vai exigir muitos criados... em condições normais.

— Que quer dizer com “condições normais”?

— Quero dizer, senhor, que sir Charles levava uma vida muito retirada,de maneira que minha mulher e eu bastávamos, nessas circunstâncias, paradar conta do serviço. Porém, Vossa Senhoria vai, decerto, querer recebervisitas e então será necessário ampliar o serviço.

— Quer dizer que você e a sua mulher pretendem ir embora?

— Sim, mas apenas quando for da conveniência de Vossa Senhoria.

Por instantes, sir Henry mostrou-se perplexo.

— Mas a sua família, Barrymore, tem vivido aqui há várias gerações!...Seria difícil começar a minha vida no solar, quebrando essa velha tradição!

— Também penso assim, sir Henry, e o mesmo sucede com minhamulher, mas, se Vossa Senhoria me permite falar francamente, éramos muitodedicados a sir Charles, e o seu falecimento nos causou um profundo pesar,fazendo com que o solar se tornasse penoso... Creio que jamais teremostranqüilidade em Baskerville.

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— Nesse caso, que pretendem fazer?

— Pensamos em nos estabelecer com um pequeno negócio. Agenerosidade de sir Charles franqueou-nos essa oportunidade. Agora, talvezconvenha que só acompanhe os senhores aos seus quartos...

Uma galeria quadrangular corria por cima do vestíbulo com acesso porduas escadas. Daquele ponto central, partiam dois corredores, ao longodas duas alas do edifício. Todos os quartos davam para esses corredores.

As alas pareciam muito mais modernas do que a parte central do solar eos numerosos candelabros conseguiam atenuar a sombria impressão queeu tive na chegada.

Contudo, a sala de jantar que dava para o vestíbulo, embora vasta, eraum aposento melancólico, quase triste. Alongava-se com um estrado, aofundo, onde os convidados se sentavam, separados da parte mais baixa,reservada aos seus dependentes.

Num dos extremos, havia uma galeria destinada aos músicos e, sobre asnossas cabeças, viam-se vigas negras de um teto enegrecido pelo fumo de antigastochas. É possível que, com estas a iluminá-lo e com o estridor hilariante dosbanquetes, o ambiente noutras eras tivesse sido mais acolhedor. Porém, agora,só com dois cavalheiros vestidos de preto, sentados sob o pequeno circo de luzprojetado pela lâmpada velada, era deprimente. Instintivamente, a nossa vozquase se reduzia a um murmúrio e nos sentíamos oprimidos.

Uma galeria de quadros, representando antepassados, com grandevariedade de trajes, desde o isabelino ao peralvilho da Regência, intimidava-nos com a sua silenciosa companhia. Falamos pouco, e eu, pelo menos,fiquei satisfeito quando a refeição terminou e pudemos ir para a ala modernaa fim de fumarmos um cigarro.

— Não me parece um lugar muito alegre — comentou o baronete. —Com certeza acabaremos por nos habituar, mas sinto-me desnorteado!Não me admiro que meu tio se sentisse assustado ao viver isolado numcasarão como este. Em todo o caso, dr. Watson, se lhe convier, podemosnos deitar cedo. Talvez, amanhã, tudo nos pareça mais alegre.

Antes de deitar-me, afastei as cortinas da janela e olhei para fora. Orelvado se estendia diante da porta da entrada. Mais além, vi dois gruposde árvores que gemiam e balançavam ao vento que começava a soprar. Ameia-lua surgiu por entre nuvens velozes. Para lá das árvores, avistei penedosirregulares e a longa curva do pântano.

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Estava cansado, mas apesar disso mantinha-me acordado, revirando-mena cama sem conseguir conciliar o sono. A não ser a badalada esporádicade um relógio, reinava um silêncio absoluto em toda a casa. Contudo, jáno meio da noite, ouvia-se distintamente um som inconfundível. Era umsoluço de mulher vivamente emocionada. Sentei-me na cama, para melhorescutar. Não havia dúvida de que os soluços provinham do interior dosolar. Esperei durante meia hora, com os sentidos alerta, mas nada maisouvi, a não ser o ruído do relógio e o barulho da hera, na fachada fronteira.

CAPÍTULO 7 – OS STAPLETON DA MERRIPIT

COTTAGE

A suave frescura da manhã seguinte conseguiu apagar a soturna impressão da véspera. Sentados à mesa do café, sir Henry e eu vimos o sol penetrar pelas janelas gradeadas e nem parecia

estarmos na mesma sala que, na noite anterior, parecia tão agressiva.

— Creio que a culpa é nossa e não da casa — observou o baronete. —Estávamos cansados da viagem, de maneira que encaramos tudo sob um prismalúgubre. Agora, que já nos achamos descansados, tudo nos parecerá mais jovial.

— Contudo, não se tratou apenas de imaginação minha — objetei. —Não ouviu, sir Henry, uma mulher soluçando no meio da noite?

— Na verdade, quando estava meio adormecido, pareceu-me ouvirqualquer coisa desse gênero, mas o ruído não se repetiu e julguei ter sonhado.

— Pois eu o ouvi distintamente e tenho a certeza de que eram soluçosde mulher.

— Vamos verificar isso imediatamente — tocou a campainha e perguntoua Barrymore se poderia nos dar uma explicação para os soluços que tínhamosouvido.

— Só há duas mulheres, nesta casa, sir Henry — respondeu o mordomo.— Uma é a criada que dorme na outra ala. A outra é minha mulher, eposso garantir que não foi ela.

Verifiquei que Barrymore havia mentido, quando, depois do café,encontrei a mulher dele no corredor com a luz batendo-lhe no rosto. Eraalta, imponente, de feições graves e boca firme, mas tinha as olhos vermelhosde choro e me olhou de relance por entre as pálpebras inchadas. Foi portantoela quem chorou no meio da noite, e o marido devia saber, embora tivesse

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preferido se arriscar a ser desmentido. Em torno daquele homem atraente,de barba negra, pairava uma atmosfera de mistério e tristeza. Foi ele quemdescobriu o corpo de sir Charles e, ao acreditarmos na versão da morte dovelho, dependíamos da sua palavra. Seria possível que Barrymore fosse omesmo homem que tínhamos visto no coche, na Regent Street? A barbapodia ser a mesma. O cocheiro tinha-nos descrito um homem mais baixo,mas a sua impressão podia ser errônea. Para esclarecer essa dúvida, a primeiracoisa a fazer seria interrogar o empregado do telégrafo de Grimpen eaveriguar se o telegrama foi realmente entregue ao próprio Barrymore. Fossequal fosse a resposta, teria pelo menos alguma matéria a relatar a SherlockHolmes. Como sir Henry tinha numerosos documentos para examinar, aocasião se tornou propícia a essa minha diligência. Fiz uma agradávelcaminhada de quatro quilômetros, ao longo das árvores que me separavamdo pântano, e cheguei a um lugar onde sobressaíam dois prédios de maiorestrutura: a estalagem e a casa do dr. Mortimer. O telegrafista, que tambémera o comerciante da aldeia, confirmou ter sido o telegrama entregue aBarrymore.

— Quem o levou?

— Meu filho... Foi você, James, que entregou o telegrama, em Baskerville,ao sr. Barrymore, não é verdade?

— Sim, pai.

— Entregou em mãos?

— Não, pai. Ele estava no sótão, de maneira que entreguei a mensagemà sra. Barrymore.

— Mas a mulher certamente o levou ao marido — resmungou ocomerciante, num tom impertinente. — Se o sr. Barrymore não recebeu otelegrama, compete a ele reclamar.

Parecia inútil insistir, mas se tornava evidente que não tínhamos provasde que Barrymore não tivesse ido a Londres, na véspera. Se foi o mordomoquem seguiu sir Henry, que sinistro plano tramava? Foi ele o último a versir Charles vivo... Se decidiu espiar o sobrinho... que interesse teria emperseguir a família Baskerville? Lembrei-me do estranho aviso feito comrecortes de jornal. Seria obra sua ou de alguém que procurava acabar comseus planos?

O único motivo concebível já tinha sido sugerido por sir Henry: se oproprietário do solar fosse afastado da região, o casal Barrymore poderia

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gozar de uma vida tranqüila e confortável. Porém, esse motivo era absurdodemais para explicar o plano complexo que parecia tecer uma rede invisívelem redor do baronete.

Ao voltar para casa, desejava que Holmes se libertasse dos seus afazeres eviesse me aliviar da responsabilidade que pesava sobre os meus ombros. Desúbito, os meus pensamentos foram interrompidos por passos apressadosque me seguiam e por uma voz que pronunciava o meu nome.

Virei-me, esperando ver o dr. Mortimer, mas me surpreendi ao depararcom um estranho. Era um homem baixo, magro, de rosto barbeado, entreos trinta e os quarenta anos, de terno escuro e chapéu de palha. Trazia noombro uma caixa de folha de estanho para acondicionar espécimes debotânica e, numa das mãos, uma rede com cabo para caçar borboletas.

— Espero que me desculpe o atrevimento, dr. Watson, mas, aqui nopântano, somos pessoas simples e não esperamos por apresentações formais...Talvez o senhor já tenha ouvido falar do meu nome pelo nosso amigocomum, dr. Mortimer... Sou Stapleton, da Merripit Cottage.

Como sabia que Stapleton era naturalista, repliquei:

— Essa rede e a caixa já me teriam elucidado, mas... como é que mereconheceu?

— Eu estava na casa de Mortimer, quando o senhor passou junto daporta e ele o apontou, da janela do consultório. Como seguimos pelo mesmocaminho, pensei que poderia alcançá-lo e me apresentar. Espero que sirHenry não esteja muito cansado com a viagem...

— Está bem, obrigado.

— Após a trágica morte de sir Charles, receávamos que o novo baronetese recusasse a vir viver aqui. Não era de esperar que um homem jovem erico quisesse se enterrar num lugar como este, e desejá-lo seria quase egoísmode nossa parte, mas a verdade é que a sua presença significa muito para agente daqui. Espero que sir Henry não seja supersticioso...

— Não creio que o seja.

— Naturalmente, o senhor já conhece a lenda do cão que persegue afamília dele...

— Sim, já me contaram.

— É extraordinária a credulidade dos camponeses da região! Qualquerdeles é capaz de jurar que viu essa tal fera!

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O homem sorria, mas pelos seus olhos percebi que levava o caso a sério.

— A história causou uma grande impressão a sir Charles e não duvidoque isso o tenha matado tão tragicamente — prosseguiu Stapleton,animadamente. — Os seus nervos estavam já tão abalados que bastaria oaparecimento de qualquer cão para exercer o mesmo efeito fatal sobre o seucoração enfermo. Creio que, na sua última noite na alameda, viu realmentequalquer animal corpulento. Confesso que já receava que lhe acontecesseuma desgraça, pois gostava muito do velho e sabia que estava prestes asofrer um ataque cardíaco.

— Como soube dessa enfermidade?

— Pelo meu amigo Mortimer.

— Acha então que um cão perseguiu sir Charles e que, por esse motivo,morreu de medo?

— O senhor tem alguma explicação mais natural?

— Ainda não cheguei a conclusão alguma.

— E o sr. Sherlock Holmes?

Fiquei perplexo, mas a expressão de Stapleton provava-me que não tevea intenção de me surpreender.

— É inútil, dr. Watson, fingirmos ignorar quem é o senhor, visto quenão teria podido tornar Holmes célebre, sem ficar identicamente famoso.Quando Mortimer me disse o seu nome, não pôde negar sua identidade.Ora, se o senhor veio para cá, isso deve significar que Holmes também seinteressa pelo caso e, naturalmente, senti curiosidade de conhecer o seuponto de vista.

Tínhamos chegado à entrada de uma vereda de erva que saía da estradae penetrava no pântano. Tinha, à direita, um morro íngreme, que, pelasrochas espalhadas, indicava ter sido uma antiga pedreira. Ao longe, erguia-se uma nuvem de fumaça.

O meu dever era me manter ao lado de sir Henry, mas me lembrei daquantidade de papéis que lhe enchiam a escrivaninha e sabia que nesseassunto não poderia ajudá-lo. Por outro lado, Holmes recomendou queobservasse o comportamento dos moradores do pântano. Aceitando oconvite de Stapleton, entramos na vereda.

— Veja como este pântano é um lugar maravilhoso — apreciou o meuparceiro, apontando para os montes ondulados e verdejantes, com as suas

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cristas de granito, em recortes fantásticos. — Nunca me canso de olharpara ela! Não é possível imaginar os segredos que guarda, vasta e misteriosa!

— Parece conhecê-la bem...— sondei.

— Estou aqui há apenas dois anos, de maneira que os meus vizinhosdevem me considerar um recém-chegado, mas o interesse pela botânica melevou a explorar todos os recantos, e creio que poucos homens a conhecemtão bem como eu.

— É assim tão difícil explorá-la?

— Não é tarefa para qualquer um. Por exemplo, aquela grande planura,ao norte, com os estranhos penedos incrustados nos montes... Nota nelesalguma coisa extraordinária?

— Parece-me um ótimo lugar para cavalgar.

— Pois isso já custou a vida de muito cavaleiro... e até peões têmdesaparecido ali, para sempre. Vê aqueles pontos verdes, brilhantes, quesurgem por todo o lado?

— Sim... Parecem zonas muito férteis.

— Pois trata-se do grande pântano de Grimpen. Ali, um passo em falsoé a morte certa para homem ou animal. Ainda ontem vi um potro se afundarnaquele local. Durante algum tempo, a cabeça do animal ainda se mantevefora da lama, mas acabou por ser sorvida pelo lodo movediço. Mesmodurante a seca, é perigoso atravessar o atoleiro mas, depois destas chuvas deoutono, torna-se um sorvedouro terrível. Apesar disso, sou capaz deatravessá-la e regressar, são e salvo... Olhe... Lá está outro potro sedebatendo...

Vi realmente um vulto se agitando convulsivamente, no meio dos juncosverdes: um pescoço se contorcendo desesperadamente. Depois, ouvi umrelincho angustiado que ecoou pela planície. Fiquei horrorizado, mas osnervos do meu parceiro pareciam mais fortes do que os meus.

— Mais um que se perdeu — comentou. — O lamaçal o tragou, talcomo costuma acontecer, quase de dois em dois dias. Os animaizinhos sesentem tentados a ir para lá por causa da frescura do pasto e acabamafundando. Este atoleiro de Grimpen é na verdade um lugar perigosíssimo.

— E o senhor consegue atravessá-lo?

— Descobri duas ou três trilhas de piso firme, por onde um homem ágilpode passar.

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— Mas por que motivo se empenhou em explorar o pântano?

— Porque naqueles montes isolados, como ilhas verdes, posso encontraras plantas e borboletas que procuro.

— Gostaria de me aventurar um dia até lá... — comentei.

— Nem pense nisso! Não quero me sentir responsável pela sua morte!Asseguro-lhe que não teria a mínima chance de sair dali vivo! Mesmo eu sóconsigo me orientar porque conheço algumas trilhas naturais...

Subitamente, ecoou uma espécie de uivo triste pela planície. De ummurmúrio surdo, se transformou num verdadeiro rugido, para logo diminuircomo uma espécie de soluço.

— Que raio é aquilo? — espantei-me.

— Os camponeses dizem ser o cão de Baskerville, chamando sua presa.Já ouvi este uivo mas nunca assim tão forte.

Olhei para o centro do pântano, mas nada vi entre os juncos, a não serum par de corvos, grasnando a nossa retaguarda.

— O senhor, sr. Stapleton, é um homem culto, portanto não deveacreditar em tal disparate. Na sua opinião, qual é a causa desse estranhoruído?

— Bem... Já alguma vez ouviu o grito do algarvão?

— Nem sei o é que isso.

— É um pernalta, agora quase extinto na Inglaterra. Mas, como nopântano tudo é possível, talvez tenhamos acabado de ouvir o grito de umdos últimos algarvões da ilha.

— É o uivo mais horrível que ouvi até hoje! — confessei.

— De fato, o pântano é um reduto misterioso que nos desperta a crençaem seres malignos sobrenaturais. Que me diz daquela encosta, ali adiante?

— São currais de ovinos ou caprinos?

— Não, meu caro doutor. São ruínas, onde moraram os nossos ancestraispré-históricos. O homem neolítico habitava o pântano e, como depois deleninguém mais se atreveu a ocupá-la, podemos encontrar aí os seus utensílios,tal como os deixou. Se se der ao trabalho de visitá-las, poderá ver o fornode pedra onde defumavam os alimentos, para conservá-los.

— Mas é quase uma vila, pelo número de construções! — admirei-me— Como viviam esses neolíticos?

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— Pastoreavam gado nas encostas e pescavam nos cursos de água, antes dese formar o pântano, com o decorrer dos séculos. Nesse período, quando aarma de bronze substituiu o machado e as pontas de flecha de sílex dopaleolítico, começaram a extrair o estanho e o cobre e a fundi-losconjuntamente. Olhe para aquela fossa, do lado oposto. É uma escavaçãopara fundição de estanho. Poderá, dr. Watson, encontrar muita coisa singularneste pântano, mas nunca se aventure nela sozinho... Olha! Queira desculpar-me um momento... Não há dúvida de que se trata de uma cyclopides!

Uma pequena mosca ou borboleta esvoaçara à nossa frente e logo, commuita energia, Stapleton correu atrás dela. Vi o inseto se dirigir para oimenso atoleiro, mas o naturalista não vacilou um instante e, saltando demoita em moita, sacudia no ar a sua rede. Nos seus movimentos bruscos eziguezagueantes, também ele parecia uma mariposa.

Estava admirando a destreza dele, quando ouvi passos do lado da estrada.

Vinham da direção da casa onde eu vi fumaça na chaminé, a MerripitCottage, que a curva do pântano ainda ocultava. Virei-me e vi se aproximaruma mulher, certamente a srta. Stapleton, cuja beleza já me tinham elogiado.

Não podia haver maior contraste entre irmão e irmã, pois o naturalistatinha cabelos claros e olhos cinzentos, enquanto ela era morena, de umtom bronzeado, verdadeiramente raro entre as mulheres inglesas.

Alta, fina e elegante, tinha um rosto orgulhoso e tão regular, nas suaslinhas perfeitas, que pareceria impassível, se não fosse a vivacidade dos seusolhos negros e a expressão sensual dos seus lábios carnudos. Era realmenteuma estranha aparição naquele deserto de vida humana.

Tinha os olhos postos no irmão, mas, vendo que eu me virava para ela,veio ao meu encontro. Tirei o chapéu para me apresentar, quando as suaspalavras me detiveram.

— Volte imediatamente para Londres! — proferiu. — Imediatamente!

Não pude deixar de encará-la, surpreendido. Os seus olhos luziam ebateu o pé no chão, impaciente.

— Por que motivo quer que eu volte para Londres? — sondei.

— Não posso explicar — respondeu num murmúrio. — Mas, pelo amorde Deus, faça o que lhe peço. Nunca mais venha à charneca e regresse aLondres, logo que possa.

— Mas... acabei de chegar...

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— Santo Deus, homem! Não percebe que estou lhe avisando, para seubem? Agora, silêncio... Meu irmão vem aí! Por favor, não mencione uma sópalavra do que lhe disse...

E, em voz alta, continuou:

— ...Quer fazer o favor de apanhar aquela orquídea? Temos lindas floresno pântano, mas, evidentemente, já é muito tarde para o senhor poderapreciá-las...

Stapleton abandonara a perseguição e regressava, vermelho e ofegante.

— Olá, Beryl — saudou, e pareceu-me que o seu tom não foi muitocordial.

— Olá, Jack! Parece estar sem fôlego!

— Estava correndo atrás de uma cyclopides. É rara, especialmente no fimdo outono. Que pena, tê-la deixado escapar!

Stapleton falava despreocupadamente, mas os seus olhos claros passavamvivamente do rosto da irmã para o meu.

— Vejo que já se apresentaram — concluiu.

— Sim — respondeu ela. — Estava dizendo a sir Henry que já é muitotarde para poder apreciar as belezas do pântano.

— Quem supôs que eu era — perguntei, sorrindo do engano.

— Bem... pensei que fosse sir Henry Baskerville!

— Não sou, não — retifiquei. — Sou apenas um amigo de sir Henry...dr. Watson, para servi-la, srta. Stapleton.

O rosto da jovem ruborizou-se.

— Houve um mal-entendido...

— Vejo que não tiveram muito tempo para conversar — observou oirmão, sempre com o mesmo olhar interrogativo, embora mais atenuado.

— Falei como se o dr. Watson morasse aqui, em vez de ser um visitantetemporário. Portanto, pouco lhe importarão as muitas variedades de orquídeasdo pântano. Quer dar-nos o gosto de vir até a nossa Merripit Cottage?

Uma curta caminhada nos conduziu à residência isolada que devia tersido, outrora, nos tempos prósperos, a casa de um abastado negociante degado, pois tinha um largo pátio no fundo, com cavalariças, estrebaria eampla vacaria. Foi transformada em residência moderna, cercada por umpomar cujas árvores, tal como os do pântano, estavam bastante atrofiadas.

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Fomos recebidos por um criado velho, criatura estranha de casaco cinzento,que parecia condizer com a parte antiga da casa. A parte nova tinha salasamplas, elegantemente mobiliadas, decerto ao gosto da dona da casa.

Ao olhar para a planície, através da janela, não pude deixar de pensar nomotivo que teria induzido um homem tão culto e uma mulher tão bela aviverem num lugar tão isolado.

— Isto aqui é um lugar estranho, não é verdade? — comentou Stapleton,como se tivesse adivinhado os meus pensamentos. — Mas, apesar disso,Beryl e eu nos sentimos felizes, não é, irmãzinha?

— Muito felizes — respondeu ela, embora o seu olhar não exprimisseessa convicção.

— Tive uma escola, no norte — explicou o naturalista —, mas, para umhomem do meu temperamento, essa ocupação era rotineira demais, edesinteressante. Só o privilégio de conviver com gente jovem e de ajudar adesenvolver os seus jovens cérebros, moldando-os ao nosso caráter e aosnossos ideais, compensava essa rotina mecânica. Contudo, houve umaepidemia, e morreram três dos meus alunos. Nunca me conformei comisso e parte do meu capital ficou irremediavelmente comprometida. Maistarde, apesar da tristeza que me causou a perda dos rapazes, cheguei a meregozijar com o meu infortúnio, visto que o meu gosto pela botânica e pelazoologia veio encontrar aqui um campo de trabalho ilimitado. Minha irmãtambém ama a natureza, principalmente as flores... Estou lhe falando disto,dr. Watson, porque vi a maneira como contemplava a planície...

— Realmente, achei o lugar muito monótono... embora talvez menospara o senhor, do que para sua irmã.

— Nunca o acho monótono — apressou-se ela a intervir.

Mas o seu olhar a desmentia.

— Temos os nossos livros, os nossos estudos — justificou o irmão —, etambém vizinhos muito interessantes. No seu ramo, o dr. Mortimer é muitoculto. O pobre sir Charles, pelo seu lado, era um companheiro agradável...Nos conhecíamos bem e tenho sentido a sua falta, mais do que sou capazde exprimir... Acha que seria indiscreto da minha parte ir, ainda hoje, desejarboas-vindas a sir Henry?

— Estou certo de que ele ficaria encantado...

— Então, dr. Watson, ficaria grato se o avisasse da minha visita. Talvez,de certo modo, possamos facilitar-lhe a vida, até que se habitue a esta região.

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Ah! já que está aqui, dr. Watson, quer ver a minha coleção de lepidópteros?Creio que seja a mais completa do sudoeste da Inglaterra. Após tê-laexaminado, o almoço deverá estar pronto para ser servido.

Sentia-me ansioso por voltar para junto de sir Henry. A melancolia dopântano, a morte do infeliz potro e o grito estranho que foi associado à lendade Baskerville tinham-me entristecido. A essas impressões, mais ou menosvagas, sobrepunha-se o aviso da srta. Stapleton, feito com tanta intensidadeque eu não podia duvidar de que ela teria uma séria razão para transmiti-la.

Recusei o insistente convite para almoçar e meti-me a caminho deBaskerville, seguindo pela mesma vereda por que viera. No entanto, haviadecerto um atalho, visto que, antes de chegar à estrada, tive a surpresa dever a srta. Stapleton à minha espera, atrás de uma rocha.

— Cansei de correr para alcançá-lo, dr. Watson — disse, cansada peloesforço da carreira. — Nem tive tempo de pôr o meu chapéu... Não possome demorar, pois não quero que meu irmão dê pela minha ausência... Oalmoço está quase pronto... Vim dizer-lhe que lamento o estúpido engano...Pensei que o senhor fosse sir Henry... Por favor, esqueça as minhas palavrasque não se relacionavam com o senhor...

— Mas não posso esquecê-las srta. Stapleton — retorqui. — Sou amigode sir Henry e me interesso muito por ele. Por que deseja, tão ansiosamente,que o proprietário de Baskerville volte para Londres?

— Creio que se trata de um mero capricho feminino... Nem eu mesmacompreendo, muitas vezes, a verdadeira razão daquilo que digo ou faço...

— Custa-me a acreditar que assim seja, srta. Stapleton. Lembro-me daemoção da sua voz e da expressão dos seus olhos... Por favor, seja francacomigo. Conte-me o que sabe e eu prometo transmitir o seu aviso a sir Henry.

Pelo rosto da jovem passou uma sombra de dúvida. Hesitou, mas acaboudizendo:

— Não queira dar um valor exagerado ao que eu lhe disse... sir Charlesestava profundamente impressionado com a maldição que pesava sobre asua família e, quando a tragédia ocorreu, fiquei naturalmente muitoperturbada... Agora, que soube que um outro membro da mesma famíliavinha morar para Baskerville... Bem... Achei que devia avisá-lo do perigoque corre... Foi tudo quanto quis dizer...

— Mas que perigo?

— Não conhece a lenda do cão?

— Não posso dar crédito a essas fantasias...

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— Mas eu acredito nelas... Se o senhor tiver alguma influência sobre o novobaronete, afaste-o do solar... O mundo é vasto e ele possui uma grande fortuna.Por que não vai gozá-la longe daqui, protegido do perigo que o ameaça?

— Para convencê-lo a afastar-se daqui, preciso saber de que perigo setrata, já que não é suficiente essa lenda criada por espíritos imaginativos.Haverá outro perigo, mais concreto?

— Nada mais posso lhe dizer, doutor...

— Se apenas queria me avisar desse risco diabólico, por que motivo secalou, assustada, receando que seu irmão a ouvisse?

— Porque o meu irmão pretende que o solar permaneça habitado, parabem dos pobres da região... Ficaria furioso, se soubesse que eu tentei induzirsir Henry a partir... Agora, tenho que ir embora, para que Jack não dê pelaminha falta... Ai de mim, se desconfia... Adeus!

Virou-se e partiu, desaparecendo por entre as rochas esparsas. Quanto amim, prossegui a caminho de Baskerville, com um vivo sentimento de apreensão.

CAPÍTULO 8 – PRIMEIRO RELATÓRIO DO DR.

WATSON

Passarei a seguir o curso dos acontecimentos, transcrevendo as cartasque dirigi a Sherlock Holmes e que tenho sobre a mesa, à minhafrente. A este conjunto falta uma página, mas, mesmo assim, exprime

com maior precisão o meu estado de espírito, na ocasião vivida, do que se eufizesse um relato de memória, apesar de estar convencido de que ainda recordotudo com clareza.

Solar de Baskerville, 13 de outubro

Meu caro Holmes,

Os meus telegramas e cartas anteriores informaram-no de tudoquanto ocorreu neste lugar esquecido de Deus.

Quanto mais nos demoramos neste local, mais o espírito dopântano nos invade a alma, com o sombrio encanto e melancolia dasua imensidão. Quando penetramos no pântano, sentimos ter

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deixado para trás os padrões da moderna Inglaterra e que, por todoo lado, está presente o trabalho do homem pré-histórico. Rodeiam-nos os lares dessa gente remota e os seus túmulos, altos monumentosque, segundo consta, tiveram função de templos.

Ao olharmos as casinhas de pedra cinzenta, incrustadas nos morros,sentimos ter deixado para trás a nossa era e, se víssemos um homemsurgindo, encurvado, peludo como um animal selvagem, de umadas portas baixas, poderíamos considerar a sua presença, nesse ermo,mais natural do que a nossa.

Como explicar que tanta gente tenha vivido, durante tantosséculos, num local tão árido? Imagino que se trata de um povoprimitivo, pacífico, escorraçado de melhores lugares e forçado aaceitar este espaço que os outros desprezavam.

Contudo, meu caro Holmes, nada disto tem a ver com a missãode que me incumbiu e certamente pouco interesse despertará no seuespírito prático. Lembro-me da sua total indiferença pelo fato de oSol girar em torno da Terra e, portanto, passemos aos fatosrelacionados com sir Henry Baskerville.

Se nos últimos dias não enviei relatório algum, isso deveu-se anada ter sucedido de relevante. Porém, agora ocorreu algo interessanteque adiante mencionarei. Para começar a pô-lo a par de outrasocorrências, entre as quais a do preso que fugiu de Princetown e aquem eu mal me referi. Acredita-se agora que tenha conseguidoescapar definitivamente, o que não deixa de constituir um alíviopara o povo do distrito. Já faz quinze dias que fugiu, sem que pessoaalguma o tivesse visto.

É inconcebível que tenha podido permanecer no pântano todoeste tempo. Quanto a ter encontrado um esconderijo, seria plausível,visto que qualquer das remotas casas de pedra lhe daria abrigo, masnão teria com que se alimentar, a menos que matasse um carneirodos que pastam nos campos. De qualquer modo, os fazendeiros,partindo do princípio de que se afastou para longe, já dormemtranqüilos.

Aqui no solar, somos quatro homens válidos, bem capazes de nosdefender, mas confesso estar apreensivo em relação aos Stapleton, jáque se encontram a quilômetros de distância, sem qualquer auxílio.

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Vivem apenas com um velho criado e uma criada, e o naturalistanão é muito forte. Ficariam à mercê de qualquer bandido, comoesse de Notting Hill, se ele entrasse em sua casa.

Tanto sir Henry como eu ficamos preocupados com isso esugerimos que o cocheiro Perkins passasse a dormir lá, mas Stapletonopôs-se à nossa sugestão.

A verdade é que o nosso baronete começa a manifestar um especialinteresse pela vizinha, o que não é de admirar, já que o lugar é vazioe, para um homem tão ativo, o tempo custa a passar. Além disso, ajovem Beryl Stapleton é realmente fascinante. Possui algo de exótico,frio e pouco emotivo. O sr. Stapleton exerce uma grande influênciasobre a irmã, que não desvia o olhar quando ele fala e que, quandose exprime, parece sondar receosamente a sua aprovação. Esperoque Stapleton seja bom para ela, embora a sua expressão pareçaindicar tratar-se de um homem de temperamento austero e talvezbrutal. Seria, para você, um interessante objeto de estudo.

No primeiro dia, Stapleton veio visitar o solar e, no dia seguinte,insistiu em nos mostrar o local onde teve origem a lenda do cruelHugo Baskerville. Fizemos uma excursão de alguns quilômetros,através do pântano, a um lugar tão lúgubre que, só por si, poderiater inspirado essa história da maldição.

Entre penedos, deparamos com um pequeno vale onde se erguemduas grandes pedras, tão afiladas nos topos que parecem garras deuma fera monstruosa.

Como correspondessem exatamente ao cenário da tragédia, sirHenry mostrou-se muito interessado e, por mais de uma vez, sondouStapleton acerca da possibilidade de uma intervenção sobrenaturalna vivência humana.

Cautelosamente, Stapleton falou de casos semelhantes, em quevárias famílias haviam sofrido influências maléficas, e pareceucompartilhar da crendice popular.

No regresso, almoçamos em Merripit, onde sir Henry conheceu ajovem Stapleton, mostrando-se, desde logo, atraído por ela, e mepareceu que esse sentimento era recíproco. Contudo, o olhar donaturalista exprimia reprovação. Na realidade, se a irmã se casasse,ele passaria a viver terrivelmente isolado, mas, por outro lado, seria

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extremamente egoísta de sua parte opor-se a um casamento tãobrilhante. Mas a verdade é que se empenhou em que os dois nuncase encontrassem a sós.

Pensando nisto, destaco que, se sir Henry se apaixonar, será muitodifícil, meu caro Holmes, seguir as suas instruções de nunca o deixarsó. Se as cumprir, arrisco-me a desagradar ao nosso baronete. Paraser exato, na quinta-feira passada, o dr. Mortimer almoçou conoscono solar. Esteve pesquisando um túmulo, em Long Down, edescobriu um crânio do período neolítico que o deixou encantado.Mais tarde, apareceram os Stapleton e, a pedido de sir Henry,Mortimer levou-nos ao local onde aconteceu a tragédia da noitefatídica.

Foi um passeio lúgubre pela alameda de teixos, ao fundo da qualse encontra uma estufa em ruínas. A meio do caminho vê-se o portãobranco, de madeira, junto do qual o velho acendeu o cigarro.

Lembrei-me da sua teoria acerca do caso e imaginei que o velho,olhando para a planície que se estende em frente, viu surgir dopântano a criatura que o aterrorizou e o levou a fugir correndo, atécair morto de pavor ou de exaustão.

Mas que diabo terá visto ele, antes de tombar sob o túnel dearvoredo? Um mero cão pastor ou um ser espectral, monstruoso?

Será que Barrymore sabe mais do que quis relatar? Apesar de tudoparecer muito vago, paira no meu espírito a sombra de um crime.

Depois de lhe escrever, tive ocasião de conhecer outro vizinho:o sr. Frankland, de Lafter Hall, que vive a cerca de quatroquilômetros ao sul do solar. É um homem idoso, de cabelo branco,rosto vermelho e expressão colérica, que tem a paixão dosprocessos jurídicos em que gastou parte da sua fortuna. Brigapelo mero prazer de brigar e toma qualquer partido nas disputas,pelo que deve ter aprendido que isso é um brinquedo caro. Orafecha uma estrada considerada legalmente como serventia públicae desafia a autoridade paroquial a forçá-lo a abri-la novamente,ora se atreve a derrubar, pessoalmente, o portão de acesso a umapropriedade, alegando ter existido ali, em tempos remotos, umapassagem pública, e incita o proprietário a mover-lhe um processopor transgressão.

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Frankland é entendido em Direito Civil e de Propriedade e tantoaplica os seus conhecimentos em defesa dos interesses dos aldeões deFernworthy, como contra eles. Por esse motivo, ora o transportam nosombros, triunfalmente, pelas ruas da aldeia, ora queimam a sua imagem.

Recentemente, consta que está implicado em sete processosjudiciais que, provavelmente, acabarão com o que resta da suafortuna, esgotando seu o veneno e tornando-o inofensivo. Tirandoa sua mania por pleitos legais, é um homem bondoso e bem-humorado e apenas me refiro à sua pessoa porque o meu amigo mepediu que descrevesse todas as pessoas que cercam o nosso baronete.

Como é astrônomo amador, Frankland possui um bom telescópio,com o qual, do telhado da sua casa, consegue abranger toda a planíciee pode, assim, durante o dia, procurar o bandido que anda por aqui.Mais ainda, consta que pretende processar o dr. Mortimer, por esteter aberto um túmulo sem autorização do mais próximo parente dodefunto. Ora, trata-se de um túmulo, situado em Long Down, ondeMortimer descobriu um crânio da Idade da Pedra. Portanto, estesujeito contribui para que a nossa vida não decorra monotonamente,aliviando-nos a tensão.

Finalmente, depois de lhe ter falado do foragido, dos Stapleton, deMortimer e do cômico Frankland de Lafter Hall, passo a me referir maisparticularmente aos Barrymore e aos acontecimentos da noite passada.

Em primeiro lugar, mencionarei os telegramas que expediu comoteste, para se certificar de que Barrymore se encontraria realmenteno solar.

Segundo o testemunho do telegrafista, esse teste ficou invalidadoe não temos qualquer outra prova. Relatei o sucedido a sir Henry eeste interrogou logo o mordomo, que confirmou ter recebido asmensagens, esclarecendo não lhe terem sido entregues pessoalmentepelo rapaz, mas por sua mulher que levou as mensagens ao sótão.Esclareceu ainda que ditou a resposta à sra. Barrymore e que estadesceu para redigi-la.

Mais tarde, o mordomo voltou ao assunto, dizendo não tercompreendido bem o objetivo do interrogatório da manhã eperguntado se teria desagradado o patrão por qualquer erro cometido,mas sir Henry tranqüilizou-o e lhe ofereceu parte do seu antigo guarda-roupa, pois as novas encomendas de Londres já tinham chegado.

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A sra. Barrymore tem sido alvo do meu interesse. É uma mulherpesada, sólida, de espírito aparentemente limitado, respeitável einclinada para o puritanismo. Não se pode imaginar pessoa menosemotiva.

Lembrei-me de, na primeira noite, tê-la ouvido soluçar, e no diaseguinte ter notado na sua expressão indícios de que tivesse chorado.Portanto, estou convencido de que algo lhe amargura a alma. Nãosei se tem algum remorso, ou se o marido a tiraniza. Creio queBarrymore tem um caráter singular e duvidoso, e a ocorrência danoite passada fez com que as minhas suspeitas se concretizassem...Mas talvez não se trate de um fato importante.

Como sabe, o meu sono é leve e, desde que vigio esta casa, tornou-se ainda mais leve. Na noite passada, por volta das duas da madrugada,acordei com passos furtivos diante do meu quarto. Levantei-me e fuiespiar pela porta, que entreabri sem ruído, e vi a sombra de um homem,de pijama e descalço, que avançava silenciosamente pelo corredor. Asua atitude era evidentemente suspeita.

Esperei que virasse a esquina dessa galeria e o segui, podendo verque o vulto entrou num quarto. Ora, esses quartos do corredor estãodesocupados e sem mobília. Pela imobilidade da luz, pareceu-meque o indivíduo permanecia imóvel e fui espiá-lo.

Barrymore estava agachado junto da janela, com a vela quase todacolada à vidraça, e olhava atentamente a planície. Depois soltou umgemido abafado e apagou a vela.

Regressei, sem ruído, ao meu quarto e, segundos depois, tornei aouvir os passos furtivos. Mais tarde ainda, depois de ter outra vezadormecido, fui novamente acordado pelo ruído de uma chaverodando numa fechadura, mas não descobri de onde provinha o som.

Não sei o que isto possa significar, mas teremos de averiguar omistério que envolve esta casa. Como só me pediu que revelassefatos, não quero entediá-lo com as minhas teorias.

Hoje de manhã relatei a ocorrência a sir Henry, e planejamosuma próxima ação, baseada nas minhas observações de ontem à noite.Por agora é tudo, mas creio que o meu próximo relatório terá maiorinteresse.

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CAPÍTULO 9 – SEGUNDO RELATÓRIO DO DR.

WATSON

UMA LUZ NO PÂNTANO

Solar de Baskerville, 15 de outubro

Meu caro Holmes,

Se, na minha carta anterior, o deixei sem notícias de vulto,reconhecerá agora que estou recuperando o tempo perdido e que osacontecimentos se sucedem rapidamente.

Acabei o meu relatório de anteontem com a ação de Barrymore àjanela de um dos quartos e tenho aqui uma resma de folhas cujoteor o surpreenderá, já que os fatos tomaram um rumo muitoimprevisível.

Na manhã seguinte, antes do café, percorri o mesmo corredor efui examinar, à luz do dia, o quarto onde surpreendi Barrymore devela acesa. A janela por onde espiava é a que apresenta melhorvisibilidade para o pântano, pois uma abertura na ramaria das árvoresfronteiras nos permite olhar diretamente para a planície, o que nãoacontece nas outras.

Portanto, concluí que o mordomo a escolheu devido a essaparticularidade, a fim de poder procurar alguma coisa ou secomunicar com alguém que estivesse no pântano. Naturalmente,pensei que se tratasse de um enredo amoroso, o que justificaria osseus movimentos furtivos e também a inquietação da mulher. Já odescrevi como sendo um homem atraente, muito capaz de enfeitiçarqualquer camponesa, e como o ouvi sair depois de eu ter regressadoao quarto, admiti que tivesse um encontro clandestino.

Seja qual for a explicação do comportamento de Barrymore, acheique não devia arcar com a responsabilidade de guardar segredo etransmiti a ocorrência a sir Henry, quando após o café, o procureino escritório. Ficou menos surpreendido do que eu esperava econfirmou:

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— Já sabia que Barrymore andava à noite pelo corredor, mais oumenos à hora a que o meu amigo o seguiu. Ouvi-o passar, pelomenos, há duas ou três noites consecutivas.

— Talvez o faça todas as noites.

— Nesse caso, podemos tentar surpreendê-lo, em flagrante —sugeriu. — Não seria o que Holmes faria, nas mesmas circunstâncias?

— Certamente, mas nos arriscamos a que nos ouça... — adverti.

— Tomaremos as nossas precauções. Esta noite, ficaremos sentadosno meu quarto, aguardando a sua passagem pelo corredor.

Era evidente que considerava essa ação como uma compensaçãopara a vida sedentária que levava no solar, apesar de já ter entradoem contato com um arquiteto e um empreiteiro de Londres, paraum projeto de grandes mudanças que, em breve, se iniciarão.Entretanto, vieram decoradores e tapeceiros de Plymouth, pois onosso baronete não quer poupar esforços para restaurar a antigagrandeza da família. Quando a casa estiver remobiliada e confortável,só lhe faltará uma esposa, para ficar completa.

Particularmente, confidencio-lhe que tal hipótese já se aproxima,visto que raras vezes tenho visto um homem tão fascinado por umamulher, como sir Henry pela nossa encantadora vizinha, a srta.Stapleton. Mas as águas do amor nem sempre são tão mansas epropícias como desejam os namorados, e ainda hoje a sua superfíciefoi agitada por uma onda inesperada, que deixou o nosso baronetedesolado.

Depois da nossa combinação acerca de Barrymore, pegou o chapéupara sair e, obviamente, fiz o mesmo, mas vi-o hesitar, confuso.

— O senhor também vem, doutor?

— Certamente, se pretende ir à charneca.

— Bem... é essa a minha intenção...

— Lamento me intrometer, sir Henry, mas bem sabe quais são asinstruções que recebi de Holmes, a esse respeito.

Com um sorriso cordial, pôs-me a mão no ombro e objetou:

— Apesar da sua sabedoria, o sr. Holmes não pôde prever certoseventos afetivos que se verificam após a minha chegada... Sei que o

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doutor me compreende e, certamente, não tem vocação para serdesmancha-prazeres... Preciso sair só...

Senti-me numa posição embaraçosa e, antes de tomar umaresolução, ele já tinha pegado a bengala e partido em direção àalameda.

Censurei-me intimamente por ter cedido àquela solicitação eimaginei como ficaria constrangido, se tivesse de lhe confessar,Holmes, que por minha culpa, sir Henry fora vítima de uma desgraça.Portanto, na esperança de conseguir alcançá-lo, saí prontamente emdireção à Merripit Cottage.

Segui pela estrada o mais depressa possível até chegar a umabifurcação na planície, sem vislumbrar sir Henry e, para não errar,subi a uma pequena colina. Logo o avistei, a cerca de trezentos metros,na companhia de uma jovem. Era a srta. Stapleton, com quem eledevia ter marcado esse encontro. Conversavam animadamente efiquei observando-os, de longe. Não queria ser indiscreto, mastambém não podia perdê-lo de vista. Apesar disso, se algum perigoviesse a ameaçá-lo, achava-se muito longe para que eu pudessesocorrê-lo. Mas que mais poderia fazer, dadas as circunstâncias?

A certa altura, quando o par estava absorto na sua conversa,verifiquei que não era a única testemunha do encontro. Vi, de relance,uma rede de caçar borboletas, naturalmente segurada por Stapleton,que se achava muito mais perto deles do que eu.

Nesse momento, sir Henry puxou a jovem para si, e ela, emboranão lhe resistisse, desviou a cabeça, evitando o beijo e olhando parao local onde se achava o irmão. Este correu para ambos, que logo sesepararam. Estava colérico, enquanto sir Henry parecia dar-lheexplicações. O naturalista acabou se acalmando um pouco e se afastoucom a irmã, deixando o baronete cabisbaixo, aparentemente infeliz.

Desci a colina e fui ao seu encontro, achando-o desolado e, aomesmo tempo, furioso.

— Olá, Watson! Como diabo veio parar aqui?... Não me digaque veio atrás de mim...

Expliquei-lhe que a minha missão era cuidar da sua segurança eque, embora de longe, assisti a toda a cena. A sua indignação diminuiue, perante a minha franqueza, acabou rindo.

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— Julguei que, neste ermo, pudéssemos encontrar uma certaprivacidade, mas parece que toda a região presenciou o meu namoro.Que lugar reservou para o espetáculo?

— Estava lá adiante, naquela colina.

— Na “galeria”, hem?... Pois o irmão estava bem à frente, na“platéia”! Viu-o correr para nós? Não ficou com a impressão de queo sujeito é doido?

— É possível.

— Eu o julgava um homem normal, mas a partir de hoje creioque estaria melhor enfiado numa camisa-de-força! Você já meconhece, Watson, há algumas semanas. Com franqueza, acha quetenho algum defeito que me impeça de vir a ser um bom maridopara a mulher que amar?

— Claro que não.

— Nesse caso, o que ele tem contra mim? Nunca fiz mal, fosse aquem fosse, mas o sujeito não quer que eu me aproxime da irmãdele. É verdade que só a conheço há pouco tempo, mas os olhosdaquela mulher e tudo o mais que vejo nela me enfeitiçaram.Concordou alegremente em se encontrar comigo, mas não me deixoufalar de amor, pois parece obcecada em me mandar embora, paralonge daqui. A certa altura, tive oportunidade de desabafar e a pediem casamento. Ora, foi nesse preciso momento que o irmão entrouem cena, pálido de raiva, como um louco furioso.

Afiancei-lhe ter a intenção de pedir a mão da srta. Stapleton, casoela me aceitasse para marido, mas isso não melhorou muito a situaçãoe, como você presenciou, pegou-lhe um braço e levou-a cominesperada estupidez. Você consegue entender uma atitude destas,Watson?

Confessei-me perplexo. A fortuna, o título, a juventude, o aspectoatraente e a boa índole de sir Henry só abonavam em seu favor. Eraincompreensível que Stapleton se opusesse ao namoro do baronetecom a irmã, sobretudo depois da proposta de casamento.

Contudo, nessa tarde, o homem apareceu no solar para sedesculpar da sua grosseria e, após uma longa conversa particularcom sir Henry, acabou por nos convidar para jantar na MerripitCottage, na próxima semana.

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— Deu-lhe alguma explicação válida para o seu estranhoprocedimento? — sondei.

— Sim, mas continuo pensando que não regula bem. Disse que airmã é tudo quanto possui na vida e lhe parece insuportável a idéiade poder vir a se separar dela. Compreende que os seus sentimentossão realmente egoístas e reconhece que se comportouvergonhosamente. A certa altura, concedeu:

— Se tiver de perdê-la, ao menos que a deixe confiada aos cuidadosde um vizinho, como sir Henry. Mas foi um golpe terrível para mime preciso de algum tempo para me habituar à idéia de uma separação.Entretanto, durante três meses, consentirei que cultive a amizade deminha irmã, mas não em termos amorosos.

Como vê, meu caro Holmes, um dos mistérios deste lamaçal emque patinhamos já está esclarecido.

Passo agora a esclarecer outra ponta da meada, que tambémdesenredei eficientemente, pelo que creio merecer o seu aplauso.Refiro-me aos soluços de mulher e às deslocações noturnas deBarrymore à janela que dá para o pântano. Esclarecemos esse outromistério, numa noite, ou melhor, em duas, embora a primeira fosseimprodutiva, pois fiquei no quarto de sir Henry, até as três da manhã,sem que nada acontecesse... e acabamos adormecendo nas poltronas.

Na noite seguinte, ficamos fumando na penumbra, com o mesmointeresse de um caçador à espera de que a presa caia na armadilha. Acerta altura, quando já começávamos a ficar desiludidos, ouvimospassos furtivos no corredor.

O baronete abriu suavemente a porta e saímos, silenciosos, emperseguição de Barrymore, que voltou a entrar no quarto vazio daala oeste. Apesar de avançarmos descalços, o sobrado rangia,parecendo-nos impossível que o mordomo não percebesse a nossaaproximação.

Acabamos por surpreendê-lo, agachado junto da janela, com avela acesa na mão, tal como eu o já o vira anteriormente.

Não tínhamos combinado qualquer plano de ação, mas o baroneteé um jovem com iniciativa e avançou pelo quarto adentro, de maneiraque Barrymore deu um salto de espanto e virou-se para nós, brancocomo a cal e com a respiração ofegante.

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— Que está fazendo aqui, Barrymore? — inquiriu sir Henry.

— Na...da senhor! — titubeou, e a sua agitação era tão forte quemal conseguia articular as palavras. — Fui apenas... veri... verificarse a janela estava bem fechada... Faço... faço isso todas as noites...

— Em todas as janelas deste segundo piso... tão alto?

— Bem... Verifico sempre todas as janelas. Receio que...

— Ouça, Barrymore — cortou sir Henry, severamente —, sabemosque está mentindo. Conte-nos já o que costuma vir olhar desta janela.

O mordomo ficou desarmado e aflito.

— Não me pergunte, senhor. Juro a Vossa Senhoria que estesegredo não me pertence e não poderei divulgá-lo.

Decidi então intervir e, pegando a vela que Barrymore deixou nopeitoril, comecei a fazer com ela sinais para fora.

Para lá do negrume do denso copado das árvores, avistava-se opântano, mais claro, banhado pelo luar que rompia as nuvens. Então,avistei uma pequena luz amarela, na zona plana, a distância.

— Lá está! — gritei.

— Não! Não é nada!... — lamuriou o mordomo.

— Veja, Watson! A outra luz também se move, em resposta aoseu sinal.

E virando-se para Barrymore:

— Então, seu miserável, ainda o nega? Vamos, fale! Queconspiração é esta e quem é o seu cúmplice?

A expressão do mordomo se alterou, tornando-se desafiadora.

— Nada tenho a dizer! Este assunto só a mim diz respeito.

— Nesse caso, sairá imediatamente desta casa.

— Muito bem, senhor. Se essa é a vontade de Vossa Senhoria,paciência! Só resta me conformar!

— Devia ter vergonha, Barrymore! A sua família tem vivido coma minha há mais de cem anos, sob este teto, e o senhor atreve-se aconspirar contra mim!

— Não! Nunca contra Vossa Senhoria!

Não foi o mordomo, mas uma voz feminina que pronunciou estafrase.

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Na porta, via-se a pesada figura da sra. Barrymore, de saia e lenço,intensamente emocionada.

— Temos de partir, Elisa — avisou o marido. — É o fim... Podeir arrumar as nossas coisas.

— Oh, John, John! A culpa foi minha! Sou a culpada de tudo, sirHenry! O John só se comprometeu por minha causa, porque eupedi.

— Então fale. Que significa tudo isto?

— O meu irmão está morrendo de fome, no pântano. Nãopodemos deixá-lo acabar dessa maneira, praticamente à nossa porta!Os sinais da vela indicam que ele pode dirigir-se a um localcombinado, para recolher a comida que John lhe leva.

— Quer dizer que o seu irmão é o...

— ...o preso que se evadiu, senhor. É Selden, o criminoso.

— É a verdade — confirmou o mordomo —, mas o segredo nãoera meu e, por isso, me recusava a contá-lo... Mas, como vê, nuncaconspirei contra Vossa Senhoria.

Era aquela a explicação das expedições furtivas de Barrymore.Olhamos para a mulher, atônitos, pois custava a crer que o maiscélebre assassino do país tivesse o mesmo sangue que aquelarespeitável mulher.

— O meu sobrenome de solteira é Selden — declarou esta. —Ele é o meu irmão mais novo, que foi muito mimado e se convenceude que podia fazer tudo o que quisesse. Começou a andar com máscompanhias, arrastou o nosso nome para a lama, e, dessa maneira,contribuiu para a morte de nossa mãe. Tornou-se um criminoso,mas para mim nunca deixou de ser o irmãozinho de caracóis, dequem cuidei quando era pequeno. Deus permitiu que ele escapasseda forca e que fugisse da prisão. Uma noite, arrastou-se até aqui,morto de fome, suplicando-me que o auxiliasse, pois encontrava-seescondido no pântano... Então, pedi a John que me ajudasse... quelhe levasse, sempre que possível, um pouco da nossa comida.

Notava-se, pelo tom ardente da mulher, que estava sendo sincera.

— Isto é verdade, Barrymore — inquiriu sir Henry.

— Sim, senhor.

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— Bem... Não posso censurar a decisão de ter ajudado sua mulhere respeitado um tão dramático segredo. Esqueça o que eu disse e vãoambos para o seu quarto. Amanhã decidirei o que devemos fazer.

Depois de eles saírem, olhamos pela janela que sir Henry abrira,deixando penetrar o vento frio da noite. O ponto de luz amarelacontinuava a brilhar no pântano.

— Não sei como esse homem tem coragem... — observou obaronete. — A que distância calcula você que ele se encontre?

— Creio que perto de Cleft Tor.

— Nesse caso, está a mais de dois quilômetros.

— Talvez menos...

— Que diabos, Watson, vou até lá capturá-lo...

Essa idéia também me ocorreu, já que aquele bandido em liberdadeera um perigo para a comunidade. Teria de voltar para a prisão. Oseu temperamento brutal podia levá-lo a assassinar mais alguém e aassaltar a casa de qualquer um dos nossos vizinhos... Certamente, sirHenry, ao propôr-se prendê-lo, pensava no terrível perigo queameaçava Beryl Stapleton.

— Vou com o senhor — decidi.

— Nesse caso, vá buscar o seu revólver e calce as botas de campo.Não podemos nos demorar, caso contrário, ele apagará a vela e seesconderá nas trevas.

Cinco minutos mais tarde, atravessávamos as moitas, por entre asfolhas que o vento fazia cair, nessa noite fria de outono, que cheiravaa umidade e a plantas putrefatas. A lua só de vez em quando rompiaas nuvens e um nevoeiro gelado começara a se formar.

— Também está armado? — indaguei.

— Trago esta arma de caça — disse sir Henry, fustigando o arcom ela.

— Temos de saltar em cima dele, de surpresa, pois consta que éum tipo extremamente violento. Devemos acabar logo com qualquerresistência.

— Certamente, Watson... Que diria o sr. Holmes, se soubessedesta expedição, “às horas em que os poderes do Mal andamexaltados”?

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Mal acabara de pronunciar esta pergunta irônica, ergueu-se nomeio da planície, como que em resposta, o uivo horrível que eu játinha ouvido à beira do pântano de Grimpen.

— Santo Deus! — espantou-se o baronete. — Que diabo é aquilo,Watson?

— Não sei ao certo. Já o ouvi uma vez...

— Foi um uivo de lobo... ou de cão...

Senti um arrepio, pois o tom de voz do baronete denunciava terror.

— Que pensam os habitantes da região, quando ouvem este urropavoroso?

— Pouco importa o que pensam... São gente ignorante...

— Que dizem eles, Watson?

Hesitei mas não quis mentir.

— Que é o uivo do cão de Baskerville.

— De onde vem esse som?

— Creio que do atoleiro de Grimpen. Estava com Stapleton, daprimeira vez que o ouvi, mas ele o atribuiu a uma ave pernalta, oalgarvão.

— Pois eu estou certo de se tratar do uivo de um cão. Veja, Watson!Não sou um covarde, mas repare como minhs mãos se gelaram.Estou pensando na morte de meu tio e nas pegadas do cão, perto docadáver...

— Não acha melhor regressarmos ao solar? — sugeri.

— Não, diabos! Viemos aqui para caçar um assassino. Mesmo queesse cão do inferno venha atrás de nós, temos o dever de ir diante.

Prosseguimos lentamente, tropeçando, sempre com a luz amarelana nossa frente. Por fim nos aproximamos o suficiente para vermosuma vela, protegida do vento, entre duas rochas. Um penedo ocultavaa nossa aproximação.

— Ele deve estar perto da vela. Tentemos descobri-lo.

Mal eu pronunciara estas palavras, vimos o fugitivo abrigado numafenda de um rochedo, sujo de lama, com a barba e os cabelosimundos, num rosto diabólico, quase animalesco, de homemanimado pelas mais vis paixões. Olhava ferozmente para um e outrolado, como uma fera acossada que pressentisse os passos do caçador.

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Algo lhe havia despertado suspeitas: talvez o fato de não termosfeito qualquer sinal convencionado entre ele e Barrymore. Antesque fugisse, lancei-me para a frente, logo imitado por sir Henry,mas o assassino blasfemou e atirou-nos uma pedra, que felizmentefoi bater na rocha que momentos antes nos ocultava. De relance, vio seu vulto, atarracado e forte, fugir encurvado.

Corremos atrás dele, mas saltava entre as pedras como um cabritomontês. Era tão ágil que, em breve, a distância que o separava denós aumentou consideravelmente. Talvez eu o tivesse atingido comum tiro, mas me repugnava disparar contra um homem desarmado.

Depressa compreendemos que, apesar de bons corredores, nuncaconseguiríamos alcançá-lo. Já sem fôlego, paramos e sentamos sobreduas pedras, vendo-o desaparecer na noite.

Nesse momento, sucedeu uma coisa estranha e inesperada.Quando nos preparávamos para regressar ao solar, avistei sobre umpenhasco, recortado em silhueta no circo prateado da lua, o vultonegro de um homem que me pareceu muito alto e magro.

Pode crer, Holmes, que não se tratou de ilusão ótica. Tinha aspernas ligeiramente afastadas, os braços cruzados e a cabeça baixa,como que pensativo. Parecia o espírito daquele lugar pavoroso.

Decerto não podia ser Selden, que já estava muito longe. Aponteio vulto a sir Henry, mas ele logo se desvaneceu nas trevas. Sir Henrynão chegou a ver e limitou-se a observar:

— Deve ser um dos guardas que andam por aí em busca doevadido.

Talvez a explicação fosse essa, mas gostaria de ter verificado ofato. Hoje, pretendemos comunicar à diretoria da penitenciária dePrincetown a ocorrência que relatei, porém lamento não ter podidoprender Selden.

Talvez, meu caro Holmes, muito do que lhe tenho contado nãotenha a menor importância, mas você me encarregou de transmitir-lhe todos os pormenores das nossas ações... e cabe a você selecioná-los. Não há dúvida de que já fizemos alguns progressos, aodesvendarmos o segredo do casal Barrymore. É possível que o meupróximo relatório contribua para esclarecer o, até agora, inescrutávelmistério do pântano. Contudo, bem melhor seria que o meu amigopudesse vir para junto de nós.

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CAPÍTULO 10 – EXTRATO DO DIÁRIO DO DR.

WATSON

Até agora, tenho relatado os fatos, baseado nos relatórios que envieia Sherlock Holmes, mas cheguei a uma fase da narrativa em queme vejo forçado a abandonar este método e a passar ao diário

que, nessa altura, tive o cuidado de redigir.

Prosseguirei, portanto, a partir da manhã seguinte à nossa fracassadacaçada ao criminoso.

16 de outubro

Dia feio e nublado. O solar está cercado de nuvens que, de vez emquando, se esfiapam e entreabrem para nos mostrar as lúgubres curvasdo pântano, os riachos como veias de prata serpeando nas encostas e asrochas polidas e molhadas que brilham à luz do sol. Um sentimento demelancolia reina, tanto no exterior como dentro de casa. Desde ontemque o baronete se mostra sombrio e eu pressinto um perigo que não seidefinir, mas para o qual contribui grandemente o uivo pavoroso que játive ocasião de ouvir, por duas vezes. Não acredito que se trate de umfenômeno sobrenatural, pois não é admissível que um cão fantasmadeixe vestígios materiais, como pegadas, e solte uivos atroando os ares.O meu bom senso me impede de acreditar nessa fantasia, embora tantoStapleton como o próprio Mortimer se mostrem inclinados a admiti-la,como quaisquer camponeses incultos que chegam a descrever o cãodiabólico expelindo fogo pela boca e pelos olhos. Holmes não acreditariaem tal tolice, eu concordo com seu raciocínio positivista. Contudo, nãoposso negar o fato de ter ouvido o horrível uivo, o que me leva a suporque anda por aí um cão enorme, no pântano. Mas de que se alimenta epor que motivo só é visto de noite?

Além do cão, deparamos com o fator humano: o homem da barbaque, em Londres, seguiu de coche sir Henry e Mortimer. E vimos umacarta, que tanto podia ter sido enviada, como aviso, por um amigoquanto por um inimigo. Neste último caso, onde é que ele está? EmLondres... ou seria o homem cujo estranho vulto vi ontem, sobre openhasco, no pântano?

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Apenas o vi de relance, mas fiquei com a impressão de que eramais alto do que Stapleton e mais magro do que Frankland. Quantoa Barrymore, o tínhamos deixado no solar e, com certeza, não teriacorrido atrás de nós. Se há realmente alguém que nos persegue desdeLondres, devo dedicar todas as minhas faculdades a descobri-lo e apegá-lo.

Estive para contar esta minha decisão a sir Henry, mas achei melhoragir sozinho, já que o vejo silencioso e distraído.

O caso de a srta. Stapleton afligiu-o e o uivo que ouviu nopântano deve ter lhe perturbado os nervos. Portanto, para nãoaumentar as suas preocupações, tentarei alcançar sozinho o meuobjetivo.

Hoje, depois do café matinal, Barrymore pediu para falar com sirHenry e, durante algum tempo, estiveram fechados no escritório.Do salão de bilhar, onde me sentei, ouvi vozes, por vezes num tomexaltado, e quando o baronete abriu a porta, comunicou-me:

— Barrymore considera injusto perseguirmos Selden, já que foiele quem, confiadamente, nos contou o segredo.

De pé, diante de nós e muito pálido, o mordomo articulou:

— Peço desculpas... a Vossa Senhoria, pois receio ter-meexcedido... Mas a verdade é que, quando vi os senhores voltando demadrugada, compreendi que tinham ido atrás de Selden. Ora, odesgraçado já tem sofrido muito e muito terá que sofrer, sem queseja necessário sair em seu encalço mais gente com quem lutar.

— Se você nos tivesse contado os fatos espontaneamente, o casoseria diferente, mas a verdade é que foi sua mulher quem se viuforçada a nos pôr a par do que se passava, quando ameacei despedi-los.

— Mas não pensamos que Vossa Senhoria fosse se aproveitar danossa confissão para...

— ... cumprir com a minha obrigação. Esse homem é umaameaça pública e não se deterá perante coisa alguma... Ora, hácasas isoladas, nesta região... Por exemplo, a Merripit Cottage, ondeapenas o sr. Stapleton poderá defender a irmã... e nem sempre estálá para protegê-la. Enquanto o seu cunhado não for preso, ninguémestará seguro...

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— Ele não assaltará casa alguma, nesta região. Posso lhe garantir,senhor, que dentro de poucos dias tudo estará pronto para que elesiga para a América do Sul. A polícia já desistiu das buscas no pântano.Por isso, suplico a Vossa Senhoria que não ponha os guardas no seuencalço. Deixem-no sossegado até poder embarcar. Se fordenunciado, minha mulher também fica comprometida... edifamada. Suplico-lhe, senhor, que nada transmita à polícia.

— Qual é a sua opinião, Watson?

Encolhi os ombros.

— Se ele sair do país, será um alívio para quem paga impostos —respondi.

— Mas e se ele, antes de partir, decidir assaltar mais alguém?

O mordomo interveio, esforçando-se por manter-se calmo:

— Selden nunca faria uma coisa dessas, senhor! Já lhe fornecemostudo de que precisa. Se cometesse agora um crime, denunciaria oseu esconderijo e estaria perdido!

— Isso parece-me lógico. Muito bem, Barrymore...

— Deus o abençoe, senhor! Minha mulher morreria de desgosto,se ele voltasse a ser preso... por nossa culpa.

— Que me diz, Watson? Ficamos na situação de cúmplices deum criminoso! Porém, depois do que ouvi... Muito bem, Barrymore,pode se retirar.

O mordomo agradeceu e ia saindo, mas após uma breve hesitaçãodeclarou:

— Vossa Senhoria tem sido tão generoso para conosco, quegostaria de poder retribuir de qualquer modo... Sei de um fato quenão relatei a ninguém... e do qual só tive conhecimento depois doinquérito... Trata-se ainda da morte de sir Charles...

O baronete e eu ficamos de pé.

— Sabe como ele morreu?

— Isso não sei, senhor.

— Então, que sabe a esse respeito?

— Soube que sir Charles, àquela hora, se dirigia para junto doportão a fim de se encontrar com uma mulher.

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— Com uma mulher?... O meu tio?

— Sim, senhor.

— Que mulher?

— Desconheço o nome, senhor, mas sei que as suas iniciais são L. L.

— Como descobriu isso?

— Sir Charles recebia muitas cartas, pois, sendo um homeminfluente e generoso, muita gente o procurava para pedir auxílio.Nessa manhã, só tinha vindo uma carta. Fora expedida de CoombeTracy, e o endereço fora redigido com uma grafia tipicamentefeminina. Isso chamou minha atenção...

— Diga o resto, Barrymore. Por que motivo essa grafia lhedespertou a atenção?

— Porque, no dia seguinte ao inquérito, ao limpar o escritório,minha mulher encontrou cinzas de uma carta no fundo da lareira.Estava praticamente queimada, exceto uma extremidade em queainda se podia ler... talvez em post-scriptum: “Por favor, se for umverdadeiro cavalheiro, queime esta carta e esteja junto do portão, àsdez horas. Logo abaixo, figuravam as iniciais ‘L.L.’.”

— Guardou esse pedaço de papel?

— Não, senhor, porque, como estava meio carbonizado, logo sedesfez ao ser manuseado.

— E o meu tio recebeu outras cartas com a mesma grafia?

— Nunca prestei muita atenção à correspondência de sir Charles.Só reparei nessa carta por ser a única que ele recebeu na manhã datragédia.

— E não faz idéia de quem seja essa senhora que se assina “L.L.”?

— Não, senhor, mas, se conseguíssemos descobri-la, talvezpudéssemos elucidar mais alguma coisa acerca da morte de sirCharles.

— Não compreendo, Barrymore, por que motivo me ocultouesse fato! — censurou sir Henry.

— Porque, tanto minha mulher como eu gostávamos muito desir Charles e não pensamos que fosse conveniente desenterrar umassunto, talvez muito pessoal, que de resto, não poderia ressuscitá-lo. Tratava-se de uma senhora envolvida no caso...

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— Receou prejudicar a reputação do seu falecido patrão?

— Bem, naquela altura, pensei que não haveria vantagem emrevelar esse assunto... mas como o senhor tem sido tão bom paranós... achei que talvez tivesse interesse em estar a par desse fato...

— Muito bem, Barrymore, pode se retirar.

Depois de o mordomo sair, sir Henry me consultou:

— Que pensa, Watson, deste novo aspecto do caso?

— Que ainda o torna mais obscuro.

— Sim... mas se descobríssemos quem é esta “L. L.”, talvez algumacoisa mais se esclarecesse... Que devemos fazer?

— Contar o fato a Holmes, imediatamente. Se considerar estacarta uma pista digna de interesse, talvez se decida a aparecer poraqui — vaticinei.

Fui para o meu quarto e incluí esta nova pista no meu relatóriopara Holmes. Este devia andar muito ocupado, visto que os seusbilhetes da Baker Street eram brevíssimos e raros, sem o mínimocomentário às informações que eu enviava. Provavelmente, o casoda chantagem continuava lhe absorvendo todo o tempo, mas tinhauma esperança de que este novo fator lhe renovasse o interesse porBaskerville, e eu bem desejava que ele estivesse lá.

17 de outubro

A chuva continuou a cair, durante todo o dia, escorrendo pelasgoteiras e fazendo sussurrar a hera da fachada. Pensei no fugitivo,escondido no pântano, e naquele outro vulto que, à contraluz dalua, tanto me impressionou. Estaria também, sob o dilúvio, esseincógnito vigilante das sombras?

À tarde, vesti uma capa e fui à charneca, com a chuva batendo nomeu rosto e o vento a zunir-me nos ouvidos. Que Deus ajudasse osque andavam pelo grande pântano de Grimpen, naquela altura emque a própria terra firme se transformava num imenso charco!

Subi o penhasco negro onde, duas noites antes, avistei o vultosolitário e dali lancei o olhar pela planície desoladora. A chuva, emrajadas, varria a superfície da terra avermelhada, e nuvens muito

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baixas pairavam sobre as encostas dos montes. À minha esquerda,no vale distante, erguiam-se, acima do arvoredo as estreitas torresdo solar de Baskerville. Eram os únicos sinais visíveis de vida humana,além das casinhas da aldeia pré-histórica e, em parte alguma,encontrei vestígios do observador solitário.

No meu regresso, deparei com o dr. Mortimer, cujo coche acabavade sair da estrada de Foulmire Farm.

Mortimer, que tem sido muito atencioso conosco, visitandoo solar diariamente, insistiu em me trazer aqui. Estavapreocupado com o seu cão que foi para o pântano e nunca maisvoltou. Tentei animá-lo, embora me lembrasse do potro que viser tragado pelo lodo movediço de Grimpen. Para mudar deconversa, sondei:

— Praticamente, Mortimer, você conhece quase toda a gente dasredondezas, não é verdade?

— Creio que conheço todos os habitantes.

— Sabe, porventura, se há alguma mulher cujas iniciais sejam“L.L.”?

Após refletir alguns segundos, respondeu negativamente eacrescentou:

— Evidentemente, há por aí alguns ciganos que desconheço...mas, entre os fazendeiros e aldeões, ninguém tem essas iniciais...

Fez uma pausa e reconsiderou:

— A não ser que se trate de Laura Lyons, mas essa não é daqui,pois reside em Coombe Tracy.

— Quem é essa senhora? — indaguei, dissimulando o meuentusiasmo.

— É a filha de Frankland.

— Do maluco por demandas jurídicas?

— Exatamente. A jovem se casou com um artista francês, Lyons,que veio pintar no pântano. Mas o sujeito era um lunático e aabandonou. Segundo consta, não foi o único culpado, porque opai, furioso por eles terem se casado sem o seu consentimento, cortourelações com a filha. A pobre moça tem sofrido bastante...

— De que vive ela?

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— Creio que o velho lhe dá alguma coisa, mas deve ser umaninharia, visto que está em má situação financeira, devido aos gastoscom os tribunais. Várias pessoas têm tentado ajudá-la a ganhar avida honestamente. Stapleton e sir Charles apoiaram-na muito e eutambém contribuí... Laura abriu um pequeno escritório dedatilografia...

Como era de esperar, Mortimer quis saber o motivo do meu interesse,mas não me abri muito. Amanhã de manhã, irei a Coombe Tracy etentarei falar com essa Laura Lyons. Parece que adquiri alguma astúcia,visto que, quando Mortimer me fez algumas perguntas indiscretas, melembrei de perguntar de que tipo era o crânio de Frankland. Destamaneira, durante o resto do percurso até o solar, só falou de craniologia.Bem se vê que tenho convivido com Sherlock Holmes!

Neste dia, moroso e melancólico, só tenho outro incidente amencionar: a minha recente conversa com Barrymore, que meforneceu um novo trunfo a jogar oportunamente.

Depois do jantar, Mortimer e sir Henry decidiram jogar o écarté (2).Fiquei sozinho na biblioteca, onde o mordomo me trouxe o café eaproveitei para fazer algumas perguntas.

— O seu cunhado já partiu ou continua a vaguear pelo pântano?

— Não sei, senhor, mas espero que já tenha partido, pois só noscausou aflições. Há três dias que não tenho notícias dele.

— Esteve com ele, nessa ocasião?

— Não estive, mas a comida desaparecia do lugar habitual.

— Nesse caso, ainda deve andar por lá.

— É possível, a menos que outra pessoa tenha levado a comida...

Fiquei suspenso, com a chávena a caminho da boca, e fiteiBarrymore atentamente.

— Outra pessoa?... Sabe que há um outro homem vagueandopelo pântano?

— Sim, senhor.

— Você o viu?

(2) jogo entre dois parceiros, com 32 cartas.

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— Não, senhor, mas Selden me falou dele. Também andaescondido, mas não é um fugitivo da penitenciária. Confesso, dr.Watson, que não estou gostando destas ocorrências...

— São realmente estranhas, e o meu interesse no caso reflete apenasos interesses do seu patrão. Diga-me, francamente, Barrymore, quemais o preocupa?

Barrymore hesitou, quer porque estivesse arrependido do seuimpulso para um tal desabafo, quer porque tivesse dificuldade em seexprimir.

— Aquelas idas e vindas do desconhecido... Receio que essehomem esteja projetando qualquer coisa contra o meu patrão que,certamente, estaria mais protegido em Londres do que aqui.

— Mas por que se alarma dessa maneira?

— Apesar das conclusões do delegado da Justiça, acerca da morte desir Charles, a verdade é que a origem da tragédia não ficou esclarecida...Os uivos diabólicos que ecoam no pântano fazem com que já ninguémouse penetrar nela de noite nem que lhe paguem. Esse homem, queanda por lá, deve constituir uma ameaça para sir Henry... paraBaskerville... e creio que me sentirei aliviado no dia em que outros criadosvierem nos substituir, a mim e a minha mulher, no serviço do solar.

— Que disse Selden a respeito desse desconhecido que viuescondido no pântano?

— Selden é um homem avesso a prestar informações, pois é muitoreservado. Limitou-se a dizer que o viu, duas ou três vezes, e quenão se tratava de um rústico, ou foragido da Justiça, mas de umcavaleiro, muito ágil e ginasticado, alto, magro e trajadoadequadamente para andar no campo e se proteger da intempérie.

— Onde é que ele se abriga?

— Numa das casas daqueles homens antigos.

— Como consegue se alimentar?

— Há um rapaz que lhe leva comida, numa espécie de bornal.Parece que, às vezes, se desloca a Coombe Tracy, ou, pelo menos,parte nessa direção.

— Está bem, Barrymore. Talvez em outra ocasião voltemos a falarneste assunto.

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Depois de o mordomo sair, contemplei pela janela as nuvens deslizandovelozmente e o vento sacudindo a ramaria do parque. Se a noite já eraameaçadora para um ser humano abrigado numa casa, como se sentiriamaqueles dois homens que se ocultavam naquele local tenebroso de penedose pântanos?

Que ódio poderia mover alguém a encarar um tempo tão agreste, sópara vigiar o solar, e qual seria o seu misterioso objetivo?

Estou realmente decidido, antes que termine o dia de amanhã, a exploraro coração do pântano, em busca de uma explicação.

CAPÍTULO 11 – O HOMEM NO PENHASCO

O texto anterior ao meu diário abrangeu o período que antecedeu o dia 18 de outubro, data em que os estranhos acontecimentos começaram a convergir para o terrível desenlace. De tal maneira

esses incidentes se gravaram na minha memória, que poderei relatá-los, sem recorrera quaisquer notas.

No dia seguinte, verificaram-se dois fatos de primordial importância: LauraLyons realmente havia escrito uma carta, marcando um encontro com sir Charlesno lugar e hora em que ele morreu, e não havia dúvida de que um desconhecidose escondia na aldeia neolítica do pântano.

Na noite anterior, não tive oportunidade de contar ao baronete o que Barrymoreme comunicou sobre Laura Lyons, porque Mortimer permaneceu até tardejogando o écarté com ele. Mas, durante o café da manhã seguinte, informei-odessa ocorrência e lhe perguntei se estaria interessado em me acompanhar aCoombe Tracy.

A sua primeira reação foi vir comigo; contudo, depois de refletirmos, concluímosque talvez eu obtivesse melhores resultados se fosse sozinho visitar Laura Lyons.

Ao chegar a Coombe Tracy, desci da carruagem e mandei Perkins dar descansoaos cavalos. Não tive dificuldade em encontrar a residência da filha de Frankland,bem no centro da aldeia.

Quando entrei na sala de recepção, deparei com uma senhora sentada diantede uma máquina de escrever. Levantou-se, animadamente, para dar-me as boas-vindas, como se eu fosse um presumível cliente ou alguém já seu conhecido. Aonotar que eu era um estranho, sua expressão sombreou-se e perguntou qual erao motivo da minha visita.

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Era uma mulher realmente bela, de cabelo castanho e pele morena a quepequeninas sardas não deixavam de dar certa graça; os seus lábios eramsensuais, mas, observando-a bem, notei que por vezes contraía-os numaexpressão de dureza que correspondia à agudez do seu olhar.

Ao encará-la, apreciando sua indiscutível beleza, ainda não tinha medado conta da dificuldade da minha missão. Depois de me apresentar,preambulei:

— Tenho o prazer de conhecer seu pai — mas logo compreendi teroptado por uma introdução desastrosa.

— Entre mim e meu pai nada existe de comum — replicou duramente.— Nada lhe devo e não tenho motivo para considerar meus amigos aquelesque invocam a amizade. Se não fosse o generoso auxílio do falecido sirCharles Baskerville e de mais alguns nobres corações, raros, eu teria morridode fome, sem que isso pudesse perturbar o egoísmo de meu pai.

— Bem... Não vim falar-lhe de seu pai, mas de sir Charles.

— Que quer que lhe diga a seu respeito? — indagou, tateandonervosamente as teclas da máquina, mas sem as apertar.

— Conhecia-o bem, não é verdade, minha senhora?

— Sim. Repito que apenas sobrevivi graças à sua generosidade.

— Correspondia-se com ele?

— Não compreendo o objetivo das suas perguntas... — retorquiu,asperamente.

— Procuro evitar um escândalo, minha senhora.

Laura Lyons empalideceu, e seus olhos exprimiram desafio.

— Que mais perguntas tem a me fazer?

— Desejava que me confirmasse ter-lhe escrito uma carta...

— Sim, escrevi-lhe algumas vezes.

— Lembra-se em que datas lhe escreveu?

— Já não me recordo.

— Encontrou-se com ele em algum lugar?

— Sim, aqui, em Coombe Tracy, quando teve a bondade de me visitar, masgenerosamente preferia fazer o bem discretamente, evitando mostrar-se...

— Como ele tomou conhecimento dos seus problemas, minha senhora,se tão pouco se viam e se tão raramente lhe escrevia?

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— O sr. Stapleton teve a atenção de lhe contar a minha triste situaçãofinanceira.

— E, então, minha senhora, escreveu um bilhete a sir Charles, marcandoum encontro na alameda dos teixos?

Corou, encolerizada.

— É uma pergunta impertinente, senhor!

— Talvez, minha senhora, mas as circunstâncias me forçam a insistir.

— Nesse caso a minha resposta é não!

— Receio que a sua memória esteja lhe traindo, minha senhora —persisti. — Posso mesmo citar um trecho dessa carta: Por favor, se forrealmente um cavalheiro, queime esta carta e esteja junto ao portão, às dezhoras. Não foi, mais ou menos, este o teor do final da sua carta?

— Vejo que já não existem cavalheiros, neste mundo!

— Está sendo injusta para com sir Charles, minha senhora! Ele teve ocuidado de queimar a carta que, contudo, não ficou inteiramente reduzidaa cinzas, de maneira que, apesar de praticamente destruída, ainda delarestou um pequeno pedaço, meio carbonizado, mas legível. Confessa queescreveu essa carta?

— Sim, escrevi...

Então Laura Lyons desabafou, numa torrente de palavras:

— ... Escrevi-a e não tenho motivo para me envergonhar. Suplicava-lheque me ajudasse e pensei que, se pudéssemos conversar pessoalmente,melhor compreenderia a minha situação. Foi por esse motivo que marqueiaquele encontro.

— Mas por que escolheu aquela hora?

— Porque acabava de saber que ele ia partir para Londres, no dia seguinte,talvez por muito tempo... E também porque não foi possível ir falar comele mais cedo...

— Qual o motivo desse impedimento?

— É um assunto íntimo que não posso divulgar.

— E foi a esse encontro?

— Não! Não me foi possível comparecer.

Insisti neste ponto, mas não obtive qualquer outra resposta. Entãoargumentei:

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— Compreende, minha senhora, que se eu solicitar a intervenção dapolícia, ficará seriamente comprometida? Se está realmente inocente, porque negou no início ter escrito essa carta a sir Charles?

— Receei que alguém chegasse a conclusões errôneas... Não quis meenvolver num escândalo.

— Por que pediu a sir Charles que queimasse a carta?

— Se a leu, deve saber o motivo.

— Só li o post-scriptum, de maneira que insisto na pergunta: qual arazão da destruição da carta?

Só relutantemente cedeu às minhas insistências e confidenciou:

— A minha vida tem sido uma constante perseguição, por parte demeu ex-marido... um homem odioso. A lei britânica está do lado dele, etodos os dias receio que me force a voltar para junto dele. Quando escrevia sir Charles, tinha a intenção de poder recuperar a minha liberdade, pormeio de um divórcio, desde que ele pudesse me auxiliar nas despesas doprocesso. Pensei que, se sir Charles me escutasse pessoalmente, concordariaem contribuir para que eu reencontrasse alguma tranqüilidade de espírito.

— Nesse caso, por que não compareceu à entrevista?

— Porque esse auxílio me veio de outra pessoa.

— Mas não seria correto, de sua parte, minha senhora, ter escrito a sirCharles explicando a razão do seu não comparecimento?

— Não tive oportunidade de fazê-lo, já que no dia seguinte li a notíciada sua morte.

A justificação era coerente, e Laura Lyons não caíra em contradição. Aúnica diligência que me restava era verificar se, realmente, ela instauraraum processo de divórcio litigioso, por ocasião da tragédia.

Se a sra. Lyons tivesse ido a Baskerville, teria sido obrigada a alugar umcoche e não seria possível que regressasse a Coombe Tracy antes damadrugada. Ora, seria impraticável manter um encontro secreto nessascircunstâncias.

Tudo indicava que a filha de Frankland falava a verdade e, novamente, aminha missão achou-se perante um obstáculo intransponível.

Porém, quanto mais me lembrava da expressão a sra. Lyons, mais meconvencia de que ela me escondeu alguma coisa. Por que ficou tão pálida,se recusando a dizer a verdade, antes que eu conseguisse persuadi-la?

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Como não pude progredir nesse sentido, decidir seguir a outra pistaque parecia partir das casas neolíticas.

Barrymore limitou-se a declarar que o tal desconhecido se escondia numadas ruínas daquele sítio. Ora, havia centenas de casinhas daquele gênero,circulares, espalhadas pelo montes, mas eu já tinha visto o homem no topode Klake Tor, de maneira que iniciaria por aí minha busca, antes de explorara aldeia pré-histórica.

Se o homem se encontrasse dentro de uma das arcaicas habitações, eu oobrigaria a confessar, nem que fosse sob a ameaça do revólver, por quemotivo nos perseguia há tantos dias. Em Londres, na Regent Street,conseguiu fugir de Holmes. Seria, para mim, um belo triunfo desmascará-lo, depois de meu mestre ter fracassado.

Desde o início a sorte não estava do nosso lado, mas finalmente veio emmeu auxílio na pessoa do sr. Frankland, que encontrei junto ao portão doseu jardim que dava para a estrada real, por onde eu ia passando.

— Bom dia, dr. Watson! — saudou, com bom humor. — O senhorprecisa dar um pouco de descanso aos cavalos. Entre, beba um copo devinho e venha me felicitar.

Desde que eu soube da maneira como ele tratava a filha, antipatizei-mecom aquele velho de suíças e cara vermelha, mas era conveniente aproveitara ocasião para mandar Perkins regressar ao solar com a carruagem.

— É o maior dia da minha vida — exultava Frankland. — Consegui matardois coelhos com uma cajadada, ou melhor, com duas cajadadas! Fiz com queesta gente se capacitasse de que a Lei foi escrita para ser respeitada. Conseguique o caminho através do parque do velho Middleton voltasse a ter serventiapública, ainda que passe a cem metros da porta de sua casa e que as autoridadesfechassem o bosque onde essa “malta” de Fernworthy ia “armar” piqueniques,como se a lei da propriedade privada fosse letra morta! Duas causas ganhas,dr. Watson! Nunca tive dia mais feliz na minha vida, desde que apanhei sirJohn Morland em transgressão, caçando em seu próprio pasto.

— Como conseguiu isso?

— Consulte o processo, que vale a pena: “Frankland versus Morland —Tribunal da Corte da Rainha”. Período proibido é período proibido, mesmoem terras privadas, pois foi criado para proteção das espécies cinegéticas!Custou-me 200 libras, mas consegui uma sentença a meu favor.

— E teve alguma vantagem nessa decisão judicial?

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— Eu?... De maneira alguma. Sinto orgulho em poder afirmar que,como sempre, apenas agi por dever cívico. Não duvido que essa gente deFernworthy fique danado comigo e torne a queimar a minha imagem. Daoutra vez, fiz queixa à polícia do condado, mas os agentes não souberamcobrar essa exibição vergonhosa. Agora, esta nova causa vai chamar a atençãodo público para o respeito devido à Lei, e eles acabarão por se arrepender...

— Arrepender-se... de quê? — estranhei.

O velho fez uma careta malandra.

— Porque, se eu quisesse, podia informá-los de uma coisa que andamloucos para saber...

Eu já pensava numa maneira de escapar à tagarelice daquele velho quequase se arruinou com a mania dos processos judiciais, mas ainda indaguei:

— Refere-se a caçadores furtivos?

— Caça mais graúda do que essa, meu amigo. Refiro-me ao assassinoque anda no pântano.

Sobressaltei-me.

— Sabe onde ele está?

— Não sei precisamente onde se encontra, mas poderia ajudar a políciaa prendê-lo, pois bastaria seguir quem lhe leva a comida.

— Mas, como sabe que lhe levam mantimentos no pântano?

— Porque vi o portador, com os meus próprios olhos.

— Ah, sim? Como aconteceu isso?

— Vejo-o todos os dias, lá do meu telhado, com o telescópio. É umrapazote, dos seus treze a quinze anos, que passa sempre na mesma hora. Aquem irá ele levar comida, no pântano, a não ser ao foragido da justiça?

Barrymore informou que o desconhecido era servido por um rapaz.Portanto, Frankland estava na pista daquele e não na do assassino. Finginão acreditar para levá-lo a entrar em pormenores.

— E não será simplesmente o filho de um pastor, que leva o almoço ao pai?

A menor contradição enfurecia o velho. Fitou-me iradamente e as suassuíças estremeceram.

— Que pastor!... Está vendo o Black Tor?... Vê o monte mais adiante? Éa parte mais pedregosa do pântano. Acha que um pastor iria levar para láo seu rebanho? Como vê, a sua sugestão é totalmente absurda!

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Desculpei-me brandamente, alegando não conhecer os fatos, eFrankland se acalmou. Convinha-me induzi-lo a me fazer novasconfidências.

— E viu esse rapaz várias vezes?

— Certamente... duas vezes por dia... Olhe, dr. Watson... Ou os meusolhos me enganam, ou estou vendo alguém se movendo naquela encosta...Venha... — convidou Frankland, correndo pela escada acima. — Vai vercom os seus próprios olhos.

Tinha um telescópio formidável instalado sobre um tripé e, depois deregulá-lo na direção devida, soltou um grito de satisfação.

— Depressa, dr. Watson. Olhe antes que ele desapareça.

Vi, realmente, um garoto com um embrulho nos ombros, subindolentamente o monte. Ao chegar ao topo, olhou para trás como se receasseser seguido.

— Então? Tinha ou não tinha razão? — exultava o velho. — Bastavauma palavra minha e até um guarda rural o caçaria, mas de mim...compreende, dr. Watson?... nem um “pio”! Trataram-mevergonhosamente!... O quê?... já vai embora, doutor?... Não quer esvaziaruma garrafa para celebrar este grande dia?

Eu me despedi e consegui ainda dissuadi-lo de me acompanhar ao solar.Depois de sair e enquanto pensei que os seus olhos me seguissem, continueiao longo da entrada. Numa curva do caminho, enveredei pelo pântano.

O sol morria, quando atingi o topo do monte. Pairava uma tênue neblinasobre a linha do horizonte, onde sobressaíam as formas fantásticas de Bellivere de Vixen Tor. Na planície, tudo estava mudo e quieto. Uma grande ave,talvez uma gaivota, cortou o céu. Parecia que ela e eu éramos os únicosseres vivos naquele cenário deserto. A solidão e a urgência da minha missãome causavam uma sensação de frio na alma.

Não via o garoto em parte alguma, mas avistei ao longe uma casinhaque conservava um resto de telhado rudimentar, decerto improvisado porum caçador. Alegrei-me, pois devia ser ali que o desconhecido se ocultava.Finalmente, ia desvendar o seu segredo.

Aproximei-me cautelosamente e verifiquei que a cabana estava sendoutilizada como habitação, pois a entrada apresentava numerosas pegadasde dias recentes. A porta estava semidestruída pelo tempo. Andaria o

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desconhecido pelo pântano, ou estaria lá dentro à minha espreita. Senti osnervos vibrarem de emoção, joguei fora o cigarro que fumava e aperteifirmemente a coronha do revólver. Então, avancei para a portaresolutamente. A casinha estava vazia.

Mesmo assim, não segui uma pista falsa, pois encontrei dois cobertorese uma capa de oleado estendidos sobre a laje onde, antigamente, se deitarao homem neolítico. Ainda havia cinzas num fogão rústico. Viam-seutensílios de cozinha, um balde com alguma água e uma pilha de latas deconserva, já vazias. Quando os meus olhos melhor se adaptaram à escuridão,vi ainda, num canto, um copo de metal e uma garrafa de brandy. No meiodo recinto, sobre uma espécie de mesa de pedra, achava-se um saco,provavelmente aquele que eu vi nos ombros do rapaz.

Revistei-o e encontrei um pão, uma lata com língua em conserva e outrasduas de compota de pêssego. No fundo, estava um papel, com qualquercoisa escrita. Sobressaltei-me, ao ler:

“O dr. Watson foi a Coombe Tracy”.

Com o papel entre os dedos, fiquei meditando no significado de tãocurta mensagem. Afinal, o misterioso indivíduo andava me perseguindo...a mim, e não a sir Henry. Mandou um cúmplice, provavelmente o rapazque eu vira pelo telescópio... e ali estava o seu relatório.

Revistei a cabana mais rigorosamente, mas nada descobri de importantea não ser que o seu habitante esporádico tinha hábitos espartanos, abstendo-se de qualquer conforto. Quando olhei para o teto destroçado, lembrei-medas chuvas e compreendi que o objetivo que o trouxe para aquele localinusitado devia ser, para ele, de uma importância fundamental.

Jurei não sair dali antes de desvendar o mistério.Lá fora, o sol poente manchava o céu de ouro e púrpura. Os seus raios oblíquos

projetavam sombras nos pontos de Grimpen. Ao longe, avistavam-se as torres dosolar de Baskerville. Entre este e a aldeia de Grimpen, que se adivinhava pelafumaça das lareiras, situava-se Merripit Cottage de Jack Stapleton.

Tudo à minha volta parecia tranqüilo, mas o meu espírito não compartilhavada paz da natureza sob o dourado crepuscular. Estremeci ao pensar no momentoque não tardaria e esperei, sentado a um canto escuro, a chegada do desconhecido.

Finalmente, ouvi seus passos: som de calçado sem carda, num andarcompassado. Enfiei a mão no bolso, onde tinha o revólver, pronto a dispararse fosse preciso, e me inclinei para a sombra, de maneira a não ser visto,antes de vê-lo entrar.

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Uma pausa mais demorada me indicou que o desconhecido parou dianteda casinha. Depois, subitamente, uma sombra obscureceu a entrada.

— Uma bela tarde, meu caro Watson! — saudou uma voz muito minhaconhecida. — Talvez se sinta mais confortável aqui fora do que aí dentro.

CAPÍTULO 12 – MORTE NO PÂNTANO

Por alguns momentos fiquei com a respiração suspensa, mal podendoacreditar no que ouvia. Depois, senti que o fardo daresponsabilidade se aliviou dos meus ombros.

Aquela voz fria e incisiva só podia pertencer a um homem:

— Holmes! — exclamei, entusiasmado.

— Venha e tenha cuidado com esse revólver.

Lá estava ele, agora sentado numa pedra, com um brilho divertido nosolhos cinzentos, pousados no meu rosto pasmo. Pareceu-me mais magro emais queimado do sol. Com o seu terno de fazenda e o seu boné habitual,lembrava um turista em viagem e, graças ao seu amor pela limpeza, estavatão asseado e bem barbeado, como se passeasse em Londres.

— Nunca senti maior prazer em ver uma pessoa — exultei.

— Nem maior espanto, hem?

— Sim, confesso que não esperava vê-lo aqui.

— Pois a surpresa não foi só sua, Watson. Nunca imaginei que descobrisseo meu esconderijo, nem que viesse me esperar aqui a não ser quando chegueia alguns metros da porta.

— Viu as minhas pegadas?

— Não, meu caro Watson, o chão pedregoso não permitiria reconhecerpegada alguma, mas, se você pretende despistar alguém, precisa mudar demarca de cigarros; encontrei uma ponta de Bradoley da Oxford Street, e isso odenunciou. Deve tê-lo jogado fora, quando decidiu entrar nesta casinha.

— Exatamente.

— E, como conheço a sua admirável tenacidade, admiti que estivesseemboscado, com o revólver em punho, à espera do ocupante da fortaleza.Pensou, realmente, que eu seria o criminoso?

— Bem... Estava decidido a descobrir quem era o ocupante.

— Excelente, Watson! Como conseguiu me localizar? Decerto pôde me

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ver, quando vocês dois perseguiram o condenado. Por imprudência, deixeia lua erguer-se atrás de mim...

— Sim. Era você, naquela ocasião...— E, depois disso, revistou todos os casebres.— Não, mas viram o seu abastecedor... e eu próprio também avistei o

rapaz. Isso me indicou a pista...— Provavelmente, foi o velho com o telescópio inspecionando as

redondezas. Quando, pela primeira vez, vi aquela luz brilhando no telhadoda casa, não percebi que era uma lente.

Holmes espreitou dentro da casa neolítica e entrou.— Vejo que Cartwright trouxe mantimentos... Que bilhete é este?...

Quer dizer que você foi a Coombe Tracy?— Fui.— Falar com Laura Lyons?— Exatamente.— Muito bem. Pelo que vejo, a nossa investigação tem ido em linhas

paralelas e, quando confrontarmos os resultados, espero desvendar o casodefinitivamente.

— Alegro-me imensamente por vê-lo aqui, Holmes... Mas, como veioparar aqui e o que anda fazendo? Pensei que ainda estivesse na Baker Street,ocupado no caso da chantagem.

— Foi o que pretendi que se pensasse.— O quê, Holmes! Você se utiliza dos meus préstimos, mas não confia

na minha pessoa? — espantei-me, desiludido. — Pensei que lhe merecessemaior consideração!

— O meu caro amigo, neste caso, teve uma ação de incalculável valor, epeço-lhe que me perdoe se o enganei, mas foi por avaliar o perigo que vocêcorria que apressei a minha vinda. Se eu estivesse junto de você e de sirHenry, o meu ângulo de visão dos problemas seria idêntico ao seu e aminha presença no solar alertaria o nosso poderoso inimigo. Emcontrapartida, vindo para cá, pude me movimentar em plena liberdade,constituindo um fator desconhecido com que ele não conta, pronto a atuarno momento crítico.

— Mas por que motivo não me comunicou esse segredo?— Nada adiantaria que você conhecesse o meu plano, e poderia prejudicá-

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lo, se porventura se lembrasse de querer comunicar-se comigo ou trazeralgo para o meu conforto. Você está sob vigilância do nosso inimigo, nãoesqueça! Correríamos um risco desnecessário. Por isso, preferi trazer comigoo rapaz que trabalha no Express, lembra-se? O jovem Cartwright temcuidado das minhas simples exigências: um bocado de pão e um colarinholavado. De que mais precisa um homem? Além disso, me auxiliou commais um par de olhos e umas pernas ligeiras.

— Quer dizer que os meus relatórios têm sido inúteis?Holmes tirou do bolso um maço de papéis.— Aqui os tem, meu caro amigo, e bem manuseados. Foram-me

utilíssimos e devo felicitá-lo pela sua inteligência e pelo zelo demonstradonum caso tão complexo.

Eu ainda me sentia magoado, mas o elogio de Holmes suavizou o meudespeito, tanto mais que reconhecia que ele tinha razão.

— Agora, Watson, queira me contar como foi a sua visita a Laura Lyons.Já esperava que fosse entrevistá-la, pois é a única pessoa que pode nos interessar,em Coombe Tracy. Se você não tivesse ido lá hoje, eu a visitaria amanhã.

O sol já havia se escondido, e as sombras invadiam a planície. Entramosna casinha para nos abrigarmos, e ali sentados, ao lusco-fusco, narrei aconversa que tive com a sra. Lyons.

Quando terminei, Holmes apreciou:— Foi uma investigação muito importante. Eliminou uma lacuna que

eu ainda não consegui preencher. Provavelmente, já sabe que existe umagrande intimidade entre essa senhora e Stapleton...

— Não, não sabia disso.— Encontram-se e escrevem-se com freqüência. Parece que existe um

entendimento afetivo entre eles. Talvez isso constitua uma arma para eupoder afastar a mulher dele.

— Mulher dele? Stapleton é casado?— Em troca das informações que me deu, Watson, dou-lhe esta, que

para sua reação surpreendeu-o: a jovem que tem se passado por irmã deStapleton é, na realidade, sua mulher.

— Santo Deus, Holmes! Tem certeza disso? Como é que Stapletonpermitiu que sir Henry se apaixonasse por ela?

— A paixão de sir Henry só poderia prejudicá-lo, visto que Stapleton

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teve o cuidado de proibir que falassem de amor. Posso garantir que a jovemé mulher dele e não sua irmã.

— Nesse caso, com que intenção o homem forjou essa fraude?— Porque, para atrair o baronete, teve de apresentá-la como se ela ainda

fosse livre.— Então, foi ele quem nos perseguiu, em Londres?— É assim que interpreto o enigma.— Portanto, o aviso dirigido a sir Henry partiu dela e não dele?— Exatamente. Uma pequenina tesoura de lâminas curvas é um utensílio

feminino.— Tem certeza, Holmes?... Está certo de que a jovem é realmente mulher

de Stapleton?— Absoluta. Ele mesmo se revelou a você ao lhe falar sobre sua

vida. Foi, realmente, professor e proprietário de uma escola no norteda Inglaterra, conforme investiguei nos serviços escolares. Houve umcaso de intoxicação alimentar, e não epidemia, que terminou emtragédia, e o responsável fugiu com a mulher. Embora, nessa altura,tivessem outro sobrenome, a sua sinalética correspondia à dosStapleton. Bastou-me saber que ele era apaixonado por entomologia,para identificá-lo.

— Mas então, se ele é casado, qual o papel de Laura Lyons, em todo esteenredo?

— Esse ponto foi praticamente esclarecido com a sua investigação,Watson. Essa senhora está convencida de que Stapleton é solteiro epretende desposá-la.

— Mas vai ficar tremendamente desiludida.— Por isso temos de visitá-la, o quanto antes. Quando souber a verdade,

poderá tornar-se nossa aliada. E agora, Watson, não acha que deixou sirHenry desprotegido por muito tempo? O seu posto é no solar de Baskerville.

A noite caía e, no céu rubro-violeta, algumas estrelas começavam a luzirsobre o pântano.

Levantei-me, prestes a partir, e ainda perguntei:— Mas que será que pretende esse Stapleton?— Não posso ainda lhe expor todos os pormenores, mas desde já lhe

afirmo que o objetivo desse indivíduo é o assassinato, a sangue-frio, de sir

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Henry. E só poderemos detê-lo se a nossa intervenção preceder o seu golpeinfame. Dentro de um dia ou dois, terei provas suficientes para eliminá-lo.Até lá, Watson, trate de protegê-lo, como uma fêmea protege a cria. A suadiligência de hoje está bem justificada, mas preferia que o não tivesseabandonado por tanto tempo.

Nesse momento, um grito prolongado cortou o silêncio dos campos.— Santo Deus! — exclamei, estarrecido. — Que foi isso?Holmes também se ergueu, observando a escuridão. O terrível grito soou

novamente, agora, mais perto de nós.— Consegue localizá-lo, Watson?— Creio que veio dali.O brado de pavor e angústia repetiu-se, como se o seu autor corresse na

nossa direção.— Não, Watson; o grito vem dali...Neste momento, um outro som chegava aos nossos ouvidos: um

medonho rosnar intermitente, num tom crescente.— O cão! — exclamou Holmes. — Corramos, Watson, antes que seja

tarde demais!Saímos em disparada pelo terreno acidentado, e ouvimos um derradeiro

grito desesperado.— O cão alcançou-o antes de nós! — proferiu Holmes, raivosamente.

— Você não devia ter abandonado sir Henry!... já não conseguiremos salvá-lo!O silencio sucedeu a um pavoroso ruído de luta. Depois, ainda ouvimos

um gemido rouco logo seguido do som de um corpo que tombava comviolência, no solo.

— Ali, à nossa esquerda!Corremos ofegantes e vimos um vulto estendido no chão. Quando nos

aproximamos, deparamos com um homem caído de bruços, com o corpodisformemente contorcido. Apesar da escuridão, reconhecemos o traje detweed de sir Henry, que já tínhamos visto em Londres, quando nos visitouna Baker Street. Para melhor identificar a vítima, Holmes acendeu umfósforo e apalpou-lhe a roupa, úmida do nevoeiro. Em volta do crânioesmagado do homem, alargava-se uma poça de sangue.

O fósforo apagou-se e Holmes soltou um rugido de desalento.— Miserável! — exclamei. — Nunca me perdoarei por ter abandonado

o nosso amigo à mercê do destino!

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— Maior culpa foi a minha, Watson! É o maior desastre da minha carreira!Mas como poderia adivinhar que sir Henry, apesar de todas as minhasadvertências, viria se aventurar no pântano?

— E Stapleton? Onde é que ele está?

— Hei de fazer com que pague com juros o seu crime! — jurou Holmes. —Sir Charles morreu de pavor; na fuga desesperada, caiu de um rochedo.Mas temos de provar quem provocou estas duas mortes aparentementeacidentais. Por mais esperto que seja este diabólico assassino, hei de caçá-loantes que passe mais um dia!

Permanecemos ao lado do corpo mutilado, amargurados pelo irreparáveldesastre que anulou todos os nossos esforços. A lua rompeu as nuvens esubimos ao rochedo de onde caiu o baronete. Ao longe, avistamos uma luzfixa, na direção de Grimpen. Provinha, certamente, da Merripit Cottage.Soltando uma blasfêmia, ergui o punho e propus, exaltado:

— Por que não vamos caçar Stapleton, imediatamente?

— Ainda não temos provas concretas que concluam este caso — objetouHolmes. — Se nos precipitarmos, talvez esse bandido astuto ainda consigaescapar. Amanhã me esforçarei para que ele caia numa armadilha,definitivamente. Agora, só nos resta prestar os últimos serviços ao nosso amigo.

Tornamos a descer para junto do vulto, e Holmes, debruçando-se, tocou-lhe no rosto. Então, pareceu enlouquecer.

Erguendo-se, começou a rir e a saltar. Depois, apertou minha mãoefusivamente. Já não era o Holmes frio e comedido, mas um demente, possesso.

— O homem tem barba, Watson! Tem barba!

— Barba?

— Sim. Não é o baronete!... É o meu vizinho do pântano, o condenado!

Febrilmente, viramos o corpo e a barba úmida ficou apontada para alua. Não havia dúvida de que a testa abaulada e os olhos encovados eramdo mesmo indivíduo que sir Henry e eu tínhamos visto, na fenda dorochedo, alumiado pela vela: Selden, o assassino.

Tudo se esclareceu imediatamente. Lembrei-me de que o baronete mecontou ter oferecido os seus trajes e calçados usados a Barrymore. Decerto,o mordomo deu-os a Selden para ajudá-lo na fuga. Expliquei a ocorrênciaa Holmes, que logo concluiu:

— Nesse caso, a roupa e os sapatos foram a causa da sua morte.Deram para o cão farejar uma peça de roupa ou um sapato... com

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certeza o que foi roubado no hotel, para que o animal o perseguisse. Sónão percebo como foi que Selden, na escuridão, percebeu que a feravinha no seu encalço.

— Ouviu-o correr ou rosnar — sugeri.

— Um homem acostumado ao perigo e de ânimo endurecido, comoSelden, não entraria dessa maneira em pânico, a ponto de gritartresloucadamente, arriscando-se a ser capturado. Como ele teve, a distância,a noção de que o animal o perseguia e por que se apavorou tão alucinadamente?

— Não sei. Na minha opinião, o maior mistério reside no fato de essecão andar à solta. Stapleton nunca o larga à noite. Se o fez, foi por pensarque sir Charles se achava no pântano.

Holmes não comentou a minha sugestão e, debruçando-se sobre o cadáverde Selden, declarou:

— Não podemos abandonar o corpo deste desgraçado aos corvos e àsraposas.

— Podemos guardá-lo num dos casebres, até informarmos a polícia.— Certamente...Curvamo-nos para transportá-lo, mas Holmes parou, apontando para a

planície.— Aí vem ele, Watson, com a sua incrível audácia! Não diga uma palavra

sobre nossas suspeitas, para não o alertarmos!O vulto aproximava do ponto onde nos encontrávamos, e vi a ponta

incandescente do cigarro. Ao luar, distingui o caminhar um pouco saltitantedo naturalista. Por momentos, parou ao ver-nos, mas logo prosseguiu diretopara nós.

— Olá... dr. Watson?... Nunca pensei encontrá-lo no pântano, a umahora destas!... Mas... que é isto? Uma pessoa ferida? Não me diga que é onosso amigo sir Henry?

Correu para o vulto, debruçou-se sobre ele e soltou uma exclamaçãoofegante. O cigarro caiu-lhe dos dedos.

— Quem... quem é este homem? — inquiriu, pasmo.— Selden... O assassino que fugiu de Princetown.Muito pálido, mas conseguindo dissimular o desapontamento, olhou

para Holmes e para mim e balbuciou:— Que coisa... que coisa horrível! Como morreu este homem?— Parece ter fraturado o crânio e o pescoço ao cair desse penhasco.

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Quando o meu amigo e eu passávamos pelo pântano, ouvimos seu grito...— Também ouvi os gritos e até pensei que se tratasse de sir Henry.

Ora, Stapleton não correu na nossa direção. Supunha que fosse sir Henry,de quem se dizia amigo; isso explicaria o seu vagar. Mas não acheiconveniente “levantar essa lebre” e limitei-me a estranhar:

— Por que pensou que fosse sir Henry, sr. Stapleton?

— Porque lhe tinha sugerido que viesse visitar-nos. Como não apareceu,fiquei um pouco apreensivo e, ao ouvir os gritos, me alarmei.

Olhou novamente para Holmes e indagou:

— Além dos gritos, ouviram mais alguma coisa?

— Não — respondeu Holmes.

— E o senhor?

— Também não.

— Nesse caso, por que nos faz essa pergunta?

— Bem... Devem estar a par das histórias que os camponeses têm andadoespalhando acerca de um cão-fantasma que uiva à noite, no pântano...Como explicam a morte deste desgraçado?

— Deve ter se assustado... Decerto receou que alguém viesse capturá-lo.Correu, tropeçou e caiu do penhasco.

Stapleton pareceu aliviado e suspirou:

— Coitado... Sim... é natural... E o sr. Holmes, que pensa a este respeito?

Com uma reverência, o meu amigo apreciou:

— Vejo que é rápido em identificar uma pessoa estranha.

— Bem... desde que o dr. Watson veio para Baskerville, todos temosestado à sua espera. Chegou a presenciar a tragédia?

— Sim, mas tenho de regressar a Londres, ao romper da manhã. Creioque o testemunho do meu amigo será suficiente no inquérito.

— Ah! Vai voltar para Londres... E esta sua visita lhe permitiu vislumbrarqualquer explicação para as ocorrências que nos têm deixado perplexos?

Encolhendo os ombros, Holmes mostrou-se modesto.

— Nem sempre se consegue obter o almejado sucesso. Um investigadortem de basear-se em fatos e não em lendas. Este caso ainda não meapresentou uma face satisfatória.

Virando-se para mim. Stapleton declarou:

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— Não sugiro que levem o cadáver para minha casa, porque minhairmã certamente ficaria assustada. Creio que o melhor é tapar seu rosto edeixá-lo aqui até amanhã.

Concordamos e recusamos a hospitalidade que ele nos ofereceu.Deixamos Stapleton voltar para casa, sozinho, e regressamos a Baskerville.Atrás de nós ficou o vulto escuro que o luar prateava.

— Aquele homem — comentou Holmes — tem realmente um sangue-frio formidável e conseguiu disfarçar a sua decepção quando percebeu quea vítima não era sir Henry, como tanto desejava.

— Foi mau ele tê-lo visto, Holmes.

— Sim, em parte, mas não podia ser evitado.

— Esta ocorrência irá alterar os planos de Stapleton?

— Ficará mais cauteloso... ou poderá precipitar os acontecimentos,desesperadamente. Como a maioria dos criminosos inteligentes, devepecar por excesso de autoconfiança e pensar que nos iludiucompletamente.

— Por que não vamos prendê-lo, imediatamente?

— Você, meu caro Watson, nasceu para homem de ação, sempreimpulsionado pela energia física, por instinto. Mas, mesmo que esta noite,por hipótese, o prendêssemos, de que nos adiantaria isso? Ainda nadapodemos provar contra ele. A diabólica astúcia desse homem reside emnão agir diretamente, nem por intermédio de um ser humano, mas simpela intervenção de um enorme cão que não levaria juiz algum a pôr acorda em torno do pescoço do dono.

— Mas temos o caso de sir Charles...

— Ririam de nós, em pleno tribunal. O velho baronete foi encontradomorto, sem o mínimo sinal de violência. Todos sabemos que morreu desusto, mas onde estão as pegadas do cão? No relatório policial não háqualquer referência a marcas no solo. Todos sabemos que sir Charles jáestava morto, quando o cão se aproximou... e os cães não atacam cadáveres.Não estamos ainda em condições de provar coisa alguma.

— E hoje? Pelo menos, testemunhamos a morte de Selden.

— Mas nem sequer vimos o cão, e o que ouvimos não justifica o fato deo condenado ter caído do penedo. É essencial descobrirmos o motivo.

— Que podemos fazer para isso?

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— Resta-nos esperar que Laura Lyons nos auxilie, quando souber da verdadeiraidentidade e das intenções de Stapleton. Arquitetei um plano, mas ainda é cedopara falar nele.

Nada mais disse, e foi mergulhados nos nossos pensamentos que chegamosaos portões de Baskerville.

— Entra também, comigo? — perguntei.

— Sim, visto que não há razão para me esconder. Stapleton já me viu. Agora,meu caro Watson, nada diga a sir Henry a respeito do cão. É preferível que elepense que Selden morreu acidentalmente. Dessa maneira, não ficará com osnervos abalados, e convém que esteja calmo e capaz de suportar, o melhor possível,a prova que terá amanhã, quando for jantar com os Stapleton, conforme vocêreferiu no relatório.

— Também fui convidado — lembrei.

— Mas arranje uma desculpa para que ele vá só. Estamos atrasados para ojantar, mas estamos prontos para uma ceia.

CAPÍTULO 13 – ARMANDO A REDE

Ao ver Sherlock Holmes, sir Henry ficou mais alegre do queadmirado, pois naqueles últimos dias muitas vezes desejou queele viesse de Londres. Estranhou, naturalmente, que o meu amigo

não trouxesse bagagem, e ambos tivemos de lhe fornecer a roupa necessária.Depois, enquanto ceávamos, explicamos ao baronete a ocorrência dessa noite,sem falarmos na culpabilidade de Stapleton.

Antes de sentar-me à mesa, relatei a Barrymore a morte de Selden. Emborapara este a notícia devesse constituir um alívio, a mulher chorou amargamente,com a cara imersa no avental.

No fim da ceia, sir Henry informou:— Estive trabalhando em casa o dia inteiro e mereço parabéns, pois,

cumprindo a minha promessa a Watson, não saí sozinho, embora tivesse recebidoum convite de Stapleton para ir à Merripit Cottage. Perdi uma noite animada.

— Não duvido que o fosse — replicou Holmes, secamente.— Talvez não saiba que estivemos lamentando a sua morte.— Que me diz? — admirou-se o baronete.— Barrymore deu algumas das roupas que o senhor lhe ofereceu ao cunhado.

Quando a polícia investigar o caso, o seu mordomo é capaz ter problemas.

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— Não é provável, pois as roupas que lhe dei não tinham qualquer marca.— Ainda bem, porque, tanto ele como nós, calando-nos acerca de Selden,

não estávamos agindo de acordo com a lei. Os relatórios de Watson, nesseponto, são realmente muito comprometedores.

— E quanto ao nosso caso? Já conseguiu progredir alguma coisa? Watsone eu não temos avançado muito.

— Creio que, dentro de pouco tempo, estarei em condições de esclarecê-lo totalmente, mas há alguns pormenores que precisam de ser esmiuçados.

— Passamos por uma experiência desagradável, como Watson já lhedeve ter contado. Ouvimos o cão no pântano, e não se trata de uma merasuspeita. Familiarizei-me com os uivos dos cães e dos coiotes, no oesteamericano, e sei reconhecê-los quando os ouço. Se o senhor for capaz deconter este, jurarei que é o maior detetive do mundo!

— Não só poderei contê-lo, mas até acorrentá-lo, se o senhor se dispusera me ajudar.

— De que maneira?— Terá de me obedecer cegamente, sem perguntar os motivos.— Pode contar comigo.

— Se agir dessa maneira, creio que todo o enigma será solucionado, deuma vez para sempre.

Subitamente Holmes calou-se, ficando absorto, olhando para aparede.

— O que foi ? — estranhou sir Henry.Quando Holmes olhou para nós, parecia emocionado. Apontando para

os retratos a óleo, suspensos da parede, comentou:— Tem uma bela coleção de quadros. Embora Watson me critique,

dizendo que eu nada entendo de arte, a verdade é que sou um apreciadorde retratos antigos.

— Alegro-me muito com isso — replicou sir Henry —, embora euentenda mais de cavalos e novilhos do que de telas a óleo. Não pensei queo senhor ainda tivesse tempo para dedicar-se à arte.

— Sei distinguir as boas obras. Poderia afiançar que aquela senhorade vestido azul foi pintada por Kneller e que o cavalheiro de perucabranca deve ser da autoria de Raynolds. São retratos de família, não éverdade?

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— Sim, todos eles foram meus ancestrais.— Sabe o nome deles?— Barrymore deu-se ao trabalho de me dizer.— Quem é aquele oficial de Marinha, com os óculos de ver ao longe?— É o contra-almirante Richard Baskerville, que serviu sob as ordens

de Rodney, nas Índias ocidentais. O que está no quadro ao lado, de casacaazul e um rolo de papel na mão, é William Baskerville, que foi presidenteda Câmara dos Comuns, no tempo de Pitt.

— E aquele, com gibão de veludo negro, gola e punhos de renda?— Sobre esse, sr. Holmes, o senhor tem realmente o direito de ser

informado: é o causador da desgraça da nossa família, o infame Hugo, quedeu origem à lenda do cão de Baskerville. Dificilmente poderemos nosesquecer dele.

Olhei interessado para o retrato, de meados do século XVII, e Holmesexclamou:

— Santo Deus! Parece um cavalheiro calmo, brando, mas não há dúvidade que o pintor o representou com uma expressão maligna no olhar.Contudo, pela narrativa, tinha-o imaginado mais forte e orgulhoso.

— Mas não pode haver dúvida quanto à autenticidade da tela. No verso,está datada de 1647.

Pouco mais se falou e, enquanto sir Henry permaneceu na nossacompanhia, Holmes parecia atraído pelo retrato de Hugo. Passamos à salade bilhar e, só depois de o baronete ter subido para o quarto, o meu amigopegou um candelabro e me arrastou para a sala dos banquetes.

Iluminando a parede, indagou:— Nota alguma coisa de especial nesse retrato, Watson?Examinei mais atentamente o largo chapéu de plumas, os cabelos

ondulados, a gola branca com um friso rendado, a espada de copos e orosto alongado, severo. A sua atitude era tranqüila, mas, efetivamente, oolhar era frio, intolerante.

— Parece com alguém que você conheça, Watson?— Tem ligeiras semelhanças com sir Henry, especialmente no queixo.— Sim... talvez alguma semelhança, mas pouco acentuada. Agora, espere

um momento e repare...Subiu numa cadeira e, passando o candelabro para a mão esquerda, tapou

com o braço direito, encurvado, o chapéu e os cabelos.

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— Minha nossa! — exclamei, admirado.O rosto de Stapleton realçara-se do quadro.— Está percebendo, Watson? Os meus olhos estão mais treinados a

examinar rostos do que adornos. Uma das primordiais qualidades de uminvestigador é poder identificar alguém, mesmo através de um disfarce.

— É extraordinário! Diria, realmente, que é um retrato de Stapleton!— Estamos diante de um interessante caso de atavismo, Watson. Estamos

agora prestes a apanhá-lo na nossa rede, tão impotente como uma das suasborboletas. Pregado a um cartão, com um alfinete, poderá fazer parte danossa coleção da Baker Street.

Holmes soltou uma das suas raras gargalhadas que, geralmente, eram demau agouro para alguém.

No dia seguinte, acordei cedo, mas Holmes foi mais madrugador, poisjá voltava pela alameda.

— Vamos ter um dia frutífero — disse, esfregando as mãos, radiante porpoder passar à ação. — As redes já estão armadas e só falta puxar. Antes do fimdo dia, teremos a presa enroscada nas malhas, a menos que consiga furá-las.

— Já esteve no pântano?— Fui a Grimpen expedir um telegrama para Princetown, informando

a polícia da morte de Selden. Ninguém será incomodado por cumplicidade.Também mandei avisar o jovem Cartwright para que não ficasse à minhaespera, como um cão fiel pelo seu dono, na porta da casinha de pedra.

— Qual o próximo passo a dar?— Falar com sir Henry... Aí vem ele!— Bom dia, Holmes! — saudou o baronete. — Parece um general com

o seu mestre-de-campo, planejando uma batalha.— É precisamente essa a situação. Watson estava me pedindo instruções.— E eu também estou.— Muito bem. Creio que se comprometeu a ir jantar com os Stapleton...— Exatamente, e espero que os meus amigos me façam companhia.

Eles são muito hospitaleiros e por certo apreciariam a vossa presença.— Infelizmente, Watson e eu temos de ir a Londres.

— A Londres?

— Na situação presente, convém-nos investigar alguns pormenores, nacapital.

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O baronete mostrou-se decepcionado.

— Tinha esperança de que o senhor me acompanhasse neste caso, até ofim. Quando se vive só, o solar e o pântano são lugares desoladores.

— Tem de confiar em mim, sir Henry — retorquiu Holmes —, e fazerprecisamente o que lhe digo. Por favor, transmita aos seus amigos da MerripitCottage que teríamos muito gosto em acompanhá-lo, mas que negóciosurgentes exigem a nossa presença em Londres. Em breve estaremos de voltaao Devonshire. Não se esqueça de dar este recado.

Pela expressão do baronete, percebi que o nosso abandono o magoava.— Quando partem? — inquiriu.— Logo após o café. Watson deixará aqui as malas, como prova de que

a sua demora não será longa. Tomaremos o trem em Coombe Tracy...Watson, faça o favor de escrever um bilhete a Stapleton, justificando a suafalta ao jantar.

— Não me agrada muito ficar aqui sozinho — confessou o baronete. —Tenho vontade de acompanhá-los até a cidade.

— Não, sir Henry. Agora, o seu posto é em Baskerville. Prometeu cumpriro que eu lhe sugerisse e convém que vá na sua carruagem até a MerripitCottage. Quando chegar lá, mande Perkins de volta ao solar. Desta vez,convém que saibam que voltará a pé, pelo pântano.

— Pelo pântano? — espantou-se o baronete. — Mas o senhorrecomendou-me sempre que não o fizesse!

— Desta vez, não há perigo. Confio nos seus nervos e na sua coragem; éimprescindível que siga as minhas instruções. Contudo, se preza a vida,não se afaste do caminho entre a Merripit Cottage e a estrada de Grimpen.Regresse ao solar diretamente, sem nunca penetrar no pântano.

— Seguirei as suas instruções.Embora, na noite anterior, tivesse ouvido Holmes anunciar a Stapleton

que partiria na manhã seguinte, aquele programa deixava-me aflito, assimcomo o seu pedido para acompanhá-lo. Porém, competia-me obedecer semdiscussão, e nos despedimos do nosso amigo.

Duas horas depois, estávamos em Coombe Tracy e mal chegamos àestação de trem, Holmes mandou o cocheiro regressar a Baskerville.

Na plataforma da estação, vimos Cartwright, que perguntou a Holmes:— Tem ordens a dar-me, senhor?— Sim, meu rapaz. Tome o trem para Londres e, quando chegar lá,

expeça um telegrama dirigido a sir Henry Baskerville pedindo-lhe, em meu

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nome, o favor de me enviar, por correio registrado para a Baker Street, ocaderno de apontamentos que, por esquecimento, deixei no solar.

— Sim, senhor.— Agora, faça o favor de perguntar na estação se veio alguma mensagem

para mim.Momentos depois, Cartwright reapareceu, entregando um papel a

Holmes, no qual seria:

“Recebi telegrama Ponto Chego aí cinco quarenta com mandadode prisão em branco Ponto Lestrade.”

— Eis a resposta ao meu telegrama desta manhã — elucidou Holmes. —Lestrade é um bom profissional e talvez venhamos a precisar da suacolaboração. Agora, Watson, não percamos tempo. Vamos visitar essaformosa senhora, já sua conhecida, a sra. Laura Lyons.

Agora, o plano se esclarecia. Holmes usou o baronete para convencerStapleton de que tínhamos partido para Londres.

A sra. Lyons estava no escritório, e Sherlock Holmes iniciou a entrevistacom uma franqueza que a surpreendeu.

— Estou investigando as circunstâncias da morte de sir CharlesBaskerville. O meu amigo Watson transmitiu-me o que a senhora lhe contoue também aquilo que preferiu ocultar.

— Que foi que lhe ocultei? — indagou ela, num tom de desafio.— Ocultou a relação entre o fato de ter pedido a sir Charles que a

esperasse junto do portão, às dez horas da noite, e o fato de ele ter morridoprecisamente nesse local e a essa hora.

— Não existe qualquer relação entre esses fatos. Foi pura coincidência.— Uma coincidência realmente extraordinária, a menos que descubramos

a referida relação. Vou ser franco, minha senhora, e não lhe oculto que amorte de sir Charles foi assassinato e que procuramos obter provas daculpabilidade tanto do sr. Stapleton como de sua mulher.

— Sua mulher? — espantou-se a sra. Lyons, erguendo-se da cadeira.— Já não constitui segredo algum: a mulher que passava por irmã de

Stapleton é, na realidade, sua esposa.As unhas rosadas de Laura Lyons cravaram-se nos braços estofados do

sofá e se tornaram lívidas do esforço que empregava.

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— Jack não é casado! Prove que Beryl Stapleton é sua mulher — desafiou.— Se isso é realmente verdade... Se conseguir prová-lo...

Os seus olhos continham uma ameaça mais eloqüente do que as palavras.

Tirando uns papéis do bolso, Holmes exibiu-as, especificando:

— Aqui tem um retrato do casal, tirado em York, há quatro anos. Comovê, no verso, está escrito “sr. e sra. Vandeleur”, mas a senhora não terádificuldade em reconhecê-los. E aqui tem também três descrições, assinadaspor testemunhas idôneas, da sinalética dos Vandeleur que, em St. Oliver,possuíam uma escola particular.

Quando Laura Lyons ergueu os olhos dos documentos, o seu rostoapresentava um sinal de desespero.

— Valha-me Deus, sr. Holmes! — exclamou. — Esse homem prometeuse casar comigo se eu me divorciasse de meu marido. Mentiumiseravelmente! Pensei que me amasse, mas vejo que apenas fui uminstrumento nas suas mãos. Já não lhe devo fidelidade alguma, já que nãome foi fiel. Não me compete protegê-lo do crime que cometeu. Quero quesaiba, sr. Holmes, que, quando escrevi o bilhete a sir Charles, nunca penseique essa mensagem poderia lhe causar algum mal, já que ele se mostrou omeu melhor amigo. Agora pode me perguntar o que quiser.

— Acredito piamente na sua inocência, minha senhora. O relato dosacontecimentos será penoso... Peço-lhe que me corrija, se eu me enganar. FoiStapleton quem lhe sugeriu que enviasse aquele bilhete?

— Sim. Ele próprio me ditou.

— Convenceu-a de que sir Charles não deixaria de contribuir para asdespesas do seu divórcio?

— Exatamente.

— Depois de a mensagem ter sido enviada, Stapleton aconselhou-a anão ir se encontrar com sir Charles?

— Confessou ficar ferido no seu amor-próprio, se um outro homem medesse dinheiro para tal fim e que, embora não fosse rico, estava disposto agastar tudo quanto possuía para remover os obstáculos que nos separavam.

— É um homem muito coerente consigo próprio. E a senhora, sra.Lyons, nada soube da tragédia, até ter lido a notícia no jornal?

— Não. Não sabia de nada.

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— E Stapleton a fez jurar que nada diria sobre o encontro com sir Charles,para não ficar envolvida no inquérito?

— Jack explicou-me que a morte foi misteriosa e que poderiam suspeitarde mim. Chegou a me amedrontar para que ficasse calada.

— E não teve suspeitas?

Laura Lyons baixou os olhos e confessou:

— Tive, sim... Mas se ele me tivesse sido fiel, eu saberia me calar...

— Pois bem, pode dar graças a Deus por ter escapado das garras de umhomem assim. Ainda está viva, quase por milagre... Só porque agora nãoconvém a Stapleton a ocorrência de uma nova tragédia nesta região. Podeestar certa, minha senhora, de que tem andado à beira de um precipício,pois sabe demais. Agora, nos despedimos desejando-lhe felicidades... Éprovável, sra. Lyons, que, muito em breve, tenha notícias nossas.

Enquanto esperávamos o trem, Holmes confidenciou-me:

— As dificuldades têm sido gradualmente superadas, e o nosso inquéritoestá prestes a terminar. Será considerado um dos mais sensacionais casos-crime dos tempos modernos. Os estudiosos de criminologia não deixarãode recordar um incidente análogo, em Gordno, na Rússia, em 1866, enaturalmente o caso Anderson, recentemente ocorrido na Carolina doNorte. Contudo, nenhum deles se compara ao enigma de Baskerville, dadaa astúcia do criminoso. Espero, Watson, conseguir esclarecê-lo ainda hoje,antes de nos deitarmos.

O trem rápido de Londres entrou na estação entre rugidos e jatos de vapor,e vimos descer da primeira classe um homem baixo, entroncado e rijo, que sedirigiu a nós. Pela maneira como Lestrade olhou para Holmes, adivinhava-sequanto o admirava, pelo muito que com ele aprendeu desde que tinhamtrabalhado juntos, embora, de início esse policial prático reagisse sarcasticamenteàs teorias do raciocinador. Cumprimentamos Lestrade, e ele indagou:

— É um bom caso?

— O maior que me apareceu em muitos anos — anunciou Holmes. —Temos apenas duas horas antes de entrarmos em ação. Vamos jantar. Depois,Lestrade poderá lavar os seus pulmões desse nevoeiro de Londres e enchê-los com amplas golfadas deste ar puro de Dartmoor. Nunca esteve lá? Poisbem, creio que nunca esquecerá esta sua primeira visita. Depois do jantar,alugamos um coche e partimos para Baskerville.

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CAPÍTULO 14 – O CÃO DE BASKERVILLE

Um dos defeitos de Sherlock Holmes, se é que a isso se possachamar defeito, era recusar-se a contar totalmente os seus planosantes do momento crucial da execução. Decerto, isto se deve ao

seu gênio dominador, que apreciava dirigir as investigações e surpreender, numaapoteose, quantos o rodeavam. Contudo, tal costume irritava naturalmente osseus colaboradores. Eu próprio sofria com isso, mas nunca o senti tanto, comonessa noite em que avançávamos na escuridão.

Finalmente íamos realizar a nossa última arrancada para obter a provadefinitiva. Eu apenas podia fazer conjecturas sobre os seus planos, e os meusnervos vibravam antecipadamente, quando o vento frio que nos castigava orosto e o negrume que se estendia de cada lado da vereda nos indicavam queatravessávamos o pântano.

A presença do cocheiro só nos permitia falarmos de assuntos triviais, emboranos sentíssemos tensos pela emocionante expectativa.

Após esse constrangimento, senti algum alívio ao passarmos pelo portão dacasa de Frankland, já perto de Baskerville e do campo de ação.

Depois de pagarmos ao cocheiro e de este ter partido na direção de CoombeTracy, entramos no caminho de Merripit Cottage.

— Está armado, Lestrade? — perguntou Holmes.O detetive ergueu os olhos para o meu amigo e respondeu sorrindo:— Enquanto eu tiver calças e um bolso nelas, trago sempre um protetor

dentro dele.— Ainda bem! Watson e eu também estamos preparados para qualquer

emergência.— Tem-se mostrado muito reservado sobre o caso, sr. Holmes. De que jogo

se trata?— De um jogo de espera.— Puxa! O campo de jogos não é muito alegre — comentou Lestrade,

olhando os tristes montes de Grimpen, sob o imenso véu de nevoeiro que noscobria. — Vejo ali as luzes de uma casa.

— É a Merripit Cottage, fim da nossa jornada. Peço que não façam ruído efalem o menos possível, em voz baixa.

Quando nos achávamos a trezentos metros, Holmes deteve-nos.— Convém ficarmos aqui. Aquelas rochas, à direita, servem-nos de proteção.— Começa a espera?

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— Sim. É uma emboscada. Você, Lestrade, enfie-se nessa abertura. Quantoa você, Watson, que já conhece a casa, sabe qual é a localização dos quartos?

— Mais ou menos.— Que janelas são aquelas, gradeadas e mal iluminadas, que dão para

este lado?— Acho que são as da cozinha.— E aquela outra, com a forte luz acesa?— Essa é a sala de jantar.— As persianas estão levantadas. Como conhece melhor o terreno, vá

até lá e veja o que eles estão fazendo, mas não deixe que percebam!Na ponta dos pés, aproximei-me do muro baixo que rodeava o pomar

de árvores atrofiadas. Pela sombra, atingi um ponto de onde podia espreitaratravés das vidraças.

Só sir Henry e Stapleton se achavam na sala, sentados à mesa redonda,de perfil para mim. Diante de copos de vinho e xícaras de café, ambosfumavam charutos.

O naturalista falava animadamente, mas o baronete, pálido, pareciadistraído.

Stapleton ergueu-se e saiu da sala, enquanto sir Henry enchia de novo ocopo e se reclinava na cadeira, fumando. Ouvi o ruído de uma porta e osom de passos no chão lajeado, que seguiam do lado oposto do muro juntodo qual me achava. Espreitei por cima deste e vi o naturalista dirigir-se auma barraca de madeira, no fundo do pomar. Entrou lá dentro e ouvi umruído estranho. Não demorou mais de um minuto. Fechou a barraca evoltou à sala, para junto do baronete.

Achei oportuno ir contar o que vi aos meus companheiros.— A jovem não estava lá? — estranhou Holmes.— Não.— Mas não há outra luz acesa, a não ser na cozinha...O nevoeiro que cobria os pântanos de Grimpen aproximava-se de nós,

em fiapos de neblina. A lua ainda brilhava, com contornos bem definidos.Holmes resmungou:— Esta névoa pode frustrar os nossos planos. Já são dez horas. Convinha

que sir Henry saísse, antes que o nevoeiro nos cubra completamente. Vamosretirar-nos um pouco mais para cima, naquela elevação. Se ele não sairdentro de quinze minutos, já nem conseguiremos ver as próprias mãos.

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Subimos até uma distância de quinhentos metros, e Holmes considerou:— Não podemos nos afastar mais, para que ele não seja atacado fora do

nosso alcance.Ajoelhou, pôs o ouvido no chão e animou-se:— Creio que aí vem ele.Então, começamos a ouvir passos que se aproximavam. Em breve, o

baronete subia a rampa que passava por detrás do local onde nos achávamos.— Atenção — recomendou Holmes, ao mesmo tempo que engatilhava o

revólver.Ouvimos nesse momento o som de patas a menos de cinqüenta metros.

Olhamos nessa direção, numa tensa expectativa. Lestrade soltou um grito depavor e apertei, na mão, a coronha do revólver. Foi a minha vez de avistaruma coisa horrível, que avançava para nós saindo da névoa densa.

Eu nunca vira um cão daquele tamanho nem com aquele aspecto medonho.Parecia que a sua face chamejava e todo o pêlo tinha um brilho de chamas.Vimos então o cão galopar atrás do nosso amigo.

Holmes e eu disparamos as armas, ao mesmo tempo. O monstro soltouum rugido pavoroso que nos indicou ter sido atingido. Logo corremos paraalcançá-lo, mas ele continuava a avançar para sir Henry. Este, de mãos erguidas,parou horrorizado, fitando o animal que o perseguia.

Contudo, o urro da fera provou que ela era vulnerável e que, portanto,poderia ser morta. Corremos e ainda vi o cão saltar sobre o baronete,impotente, petrificado. O animal procurava fixar as enormes presas na gargantado nosso amigo, quando Holmes acertou o lombo com os restantes cincotiros do seu revólver.

O monstro, com uma reviravolta, caiu no chão de patas para o ar, aindaestrebuchando raivosamente. Alcancei-o e encostei-lhe o cano da minha armana cabeça, mas não precisei de disparar, pois estava morto.

Sir Henry caíra no chão e mantinha-se inerte. Alarguei-lhe o colarinho,enquanto Holmes se regozijava por termos chegado a tempo. Lestrade, tirandodo bolso traseiro da calça um frasco com conhaque, deu-lhe alguns goles.

— Meu Deus! — exclamou sir Henry. — Que coisa diabólica era aquela?— Seja o que for — sossegou-o Holmes —, já está morta. Acabamos, de

uma vez para sempre, com o fantasma de Baskerville.O cão tinha o tamanho de uma pequena leoa, misto de alão de caça e de

mastim de guarda. Mesmo morto, os seus olhos cruéis estavam rodeados deum círculo de fogo, assim como o focinho. Passei a mão por ele e, ao retirá-la, meus dedos mostravam-se fosforescentes.

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— Uma fórmula bem escolhida — observou Holmes, cheirando o pêlodo enorme animal. — Este produto não tem qualquer odor que pudesseprejudicar-lhe o faro.

Virando-se para sir Henry, acrescentou:— Desculpe-nos por tê-lo exposto a tal pânico. A névoa nos impediu de

agir mais prontamente.— Os senhores salvaram minha vida — reconheceu o baronete. —

Dêem-me mais um gole de conhaque e ficarei pronto para tudo. Agora,que pretendem fazer?

— Deixá-lo aqui, pois não deve estar em condições de agüentar novasemoções. Se quiser, um de nós poderá acompanhá-lo ao solar.

Lívido, sir Henry sentou-se numa rocha e escondeu o rosto entre asmãos.

— Infelizmente — continuou Holmes, enquanto nos dirigíamos para aMerripit Cottage —, depois de ouvir os tiros, Stapleton deve ter fugido,mas convém fazermos uma busca na casa para nos certificarmos.

Como a porta estivesse aberta, entramos e revistamos todas as divisões,uma por uma, perante o espanto do velho criado. Só no piso superiorencontramos um dos quartos fechado.

— Tem alguém lá dentro — avisou Lestrade, que escutara à porta. —Arrombemos isto.

Com o tacão do sapato, Holmes deu uma formidável pancada na porta,logo acima da fechadura; aquela escancarou-se, e os três, de revólver empunho, entramos atropeladamente no aposento.

Era uma espécie de museu, com as paredes cobertas com caixas de tampade vidro, cheias de borboletas e outros insetos: a distração daquele gêniocriminoso. Tinha uma viga central, vertical, para suporte do centro doteto, onde vimos, à luz do candeeiro, um vulto amarrado com lençóis. EraBeryl Stapleton, que nos olhava com horror e vergonha.

Ao desamarrá-la, notei que tinha um vergão no pescoço, feito por umcavalo-marinho (3). A jovem caiu nos meus braços.

— Que patife! — murmurou Holmes. — Dê-lhe um pouco do seu conhaque,Lestrade... Esteja descansada, minha senhora, que ele não há de escapar.

(3) bengala feita de pele de hipopótamo

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— Graças a Deus que vieram! Vejam como o miserável me tratou.

E, arregaçando as mangas, a sra. Stapleton mostrou os braços cobertosde vergões e equimoses, algumas sangrentas.

— Não só me torturava, como me mantinha num estado de constantepavor. Destruiu-me moralmente e corrompeu-me a alma. Suportei maus-tratos e solidão, porque estava convencida de que ele me amava... Mas,agora, já sei que até nisso fui enganada. Apenas servi de instrumento paraos seus abomináveis desígnios!

Rompeu a soluçar.

— Diga-nos — pediu Holmes —, onde poderemos encontrá-lo? Se oapoiou no mal, reabilite-se nos ajudando a capturá-lo.

— Só pode ter fugido para um único local... Para uma mina de estanho,numa espécie de ilha, no centro do atoleiro de Grimpen. Era ali que costumavaguardar o cão, e construíra um refúgio para o caso de estar em perigo.

O nevoeiro já alcançara Merripit, mostrando-se compacto através da janela.

Erguendo o candeeiro, Holmes apontou para fora, e a sra. Stapletondeclarou:

— Esta noite, ninguém poderá orientar-se nos pântanos. Talvez eleconsiga entrar no atoleiro, mas não poderá sair de lá. O caminho foi marcadopor meio de umas canas... Se eu hoje tivesse podido arrancá-las, os senhoreso teriam à vossa mercê.

Era evidente que, até o nevoeiro se dissipar, seria impossível perseguir oassassino. Lestrade ficou tomando conta da sra. Stapleton e da casa, enquantoHolmes e eu acompanhamos sir Henry ao solar.

O baronete estava desolado por saber que os Stapleton eram casados ea emoção daquela noite deixou-o febril, de maneira que, ao amanhecerdo dia seguinte, deixamos o dr. Mortimer à cabeceira do seu leito. Ambosiriam dar uma volta ao mundo e, no seu regresso, certamente o baronetese sentiria forte e alegre, para gozar os benefícios da propriedade queherdou.

Chego, agora, à breve conclusão desta narrativa. Na manhã seguinte àmorte do cão, o nevoeiro levantou e Beryl Stapleton nos conduziu, atravésdos pântanos, na pista do marido.

Várias canas estavam cravadas aqui e ali, em ziguezague, marcando trilhaentre as poças fétidas e os juncos viscosos, numa atmosfera viciada deputrefação. Ali, um passo em falso seria morte certa.

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Uma só vez notamos vestígios de alguém ter passado por lá, antes denós. Holmes viu um objeto, a distância, e teve de mergulhar, até a cinturapara conseguir recolhê-lo. Era o sapato preto que tinham roubado desir Henry, no hotel.

— Foi atirado lá por Stapleton, na fuga — observei.

— Certamente. Deu-o para o cão farejar para que perseguisse onosso amigo. Quando ele ouviu os tiros, fugiu e conservou o sapato namão, para só se desfazer dele onde ninguém viesse a encontrá-lo.

Saímos do lamaçal, onde nos seria impossível detectar pegadas, ealcançamos terra firme, mas também não as vimos. Teria o assassinosido sorvido pelo lodo movediço do pântano, que ele se atreveu aatravessar, à noite, com nevoeiro cerrado?

Na espécie de ilha, que fora uma antiquíssima mina de estanho,encontramos vários utensílios da arcaica exploração. Nas ruínas dascabanas desses mineiros de outros tempos, nada havia especial, comexceção de uma delas, onde encontramos uma forte corrente, comgrampo de prisão para coleira e grande quantidade de ossos. Foi ali queviveu o cão-fantasma. Junto desses ossos, bem esburgados, achava-setambém um esqueleto, ainda mal descarnado, com pedaços de pele depêlo castanho.

— Um cão! — exclamou Holmes. — Um cachorro de pêlo crespo!O nosso amigo dr. Mortimer nunca mais verá o seu querido animal.Stapleton tinha de esconder aqui o enorme alão, para que os uivos nãodenunciassem a sua existência na Merripit Cottage. Só o levaria paracasa em situações de emergência, como sucedeu ontem, e certamente,na noite da morte de sir Charles. A lenda do cão de Baskerville serviuperfeitamente para o seu objetivo, tanto mais que os habitantes da região,não ousando entrar no pântano, estavam impossibilitados de descobrirque o alão era um animal natural; assim, a sua imaginação levou-os aacreditar no cão-fantasma.

— Tal como lhe disse, em Londres, meu caro Watson, nunca tivemosinimigos mais perigosos do que este que, decerto, o atoleiro de Grimpensorveu para a sua pestilenta profundeza.

E, ao proferir este epitáfio, Holmes apontou para os pântanosverdejantes, de enganosa beleza, que se estendiam até as vertentesvermelhas do pântano.

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CAPÍTULO 15 – RETROSPECÇÃO

Numa noite fria e nevoenta de fins de novembro, estávamosHolmes e eu sentados à lareira, na nossa saleta da Baker Street.Depois do trágico epílogo da nossa estada no Devonshire, o meu

amigo investigou dois casos de grande importância. No primeiro, desmascaroua infame conduta do coronel Upwood, em relação a um escândalo de jogo noNonpareil Club; no segundo, provou a inocência da infeliz madameMontpensier, injustamente acusada do assassinato da sua enteada, mademoiselleCarère, que, seis meses mais tarde, apareceria viva e casada, em Nova York.

Como Holmes se achava contente com o sucesso de tão importantesinquéritos, consegui induzi-lo a confidenciar-me os pormenores, ainda nãorevelados, do caso Baskerville.

Ao espírito lógico do meu amigo repugnava abstrair-se de um problemaatual, para reavivar reminiscências de ações passadas.

Acidentalmente, sir Henry e o dr. Mortimer encontravam-se em Londres,prestes a partir para a longa viagem que foi recomendada ao baronete pararestabelecimento da sua depressão nervosa. Naquela tarde, tinham vindonos visitar e, naturalmente, falamos do caso.

— Para Stapleton — discorreu Holmes —, o curso dos eventos foi simplese direto, mas para nós, que ignoramos o móbil dos seus atos, mostrou-seextremamente complexo.

Em relação a você, meu caro Watson, desfruto da vantagem de terconversado duas vezes com a sra. Stapleton após os dramáticosacontecimentos. Tudo ficou esclarecido e, se estiver interessado, podeencontrar na letra B do meu arquivo algumas notas referentes ao caso.

— Preferia que me relatasse, resumidamente.

— Bem... Não posso garantir que a minha memória retenha ainda todosos pormenores. Um advogado que estudou uma causa e é capaz de debatê-la, sem o menor deslize, com um casuístico oponente, pode esquecer-sedela ao cabo de duas semanas em que se embrenhou nas premissas de outroprocesso. Identicamente, cada um dos meus casos sobrepõe-se aos anteriorese, por exemplo, o inquérito sobre a mademoiselle Carère fez enfraquecerem-se as minhas recordações do caso Baskerville.

Por sua vez, um novo enigma que venha ocupar o cérebro tenderá aapagar os pormenores destes meus últimos inquéritos dos casos Upwood e dabela francesa.

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Quanto ao cão de Baskerville, vou narrar-lhe aquilo de que me lembro e talvezvocê possa sugerir-me algum fato que eu tenha esquecido ou omitido.

A minha investigação, sobretudo após ter observado o retrato de HugoBaskerville, provou que Stapleton era, sem nenhuma dúvida, um parente de sirHenry. Verifiquei que se tratava do filho de Rodger, irmão mais novo de sirCharles... aquele que, devido à sua má reputação, se viu forçado a fugir para aAmérica do Sul, onde, erroneamente, pensou-se que havia morrido solteiro.

Na realidade, Rodger casou-se na Costa Rica e teve um filho, John (4) Baskerville,que veio a desposar Beryl Garcia, uma das mais belas jovens daquele país. Contudo,tendo enriquecido com uma considerável verba pública, mudou o sobrenomepara Vandeleur e fugiu para a Inglaterra, onde montou uma escola, a leste doYorkshire.

Esta idéia surgiu após ter conhecido um professor, a bordo do navio que ostrouxera. O professor Fraser era um excelente pedagogo, mas estava tuberculoso.Enquanto viveu, a escola obteve notável êxito, mas depois da sua morte, sob agerência única de John Vandeleur, esse estabelecimento de ensino foi decaindogradualmente e, após um caso de intoxicação alimentar que vitimou alguns alunos,verificando-se dois óbitos, ficou mal-afamado.

Então, os Vandeleur decidiram instalar-se em outra região. Com o que lherestava da fortuna, ilegitimamente adquirida, John mudou-se para o sul daInglaterra, dedicando-se lá à entomologia, ciência que já era a sua paixão e emque se tornara perito. No British Museum fui informado de que ele não só erauma autoridade na matéria, mas também que o nome Vandeleur foi atribuído aum inseto raro que ele descobriu no Yorkshire.

Por esta época, John Baskerville, pseudo Vandeleur, começou a investigar asua origem familiar e descobriu que apenas duas vidas se interpunham entre elee os bens dos Baskerville.

Embora, inicialmente, os seus planos ainda fossem vagos, resolveu, por umaquestão de segurança, tornar a mudar de nome, e, quando se mudou para oDevonshire, os Vandeleur já se chamavam Stapleton. Como as intenções deJohn já eram criminosas, fez a mulher se passar por sua irmã no intuito de utilizá-la como isca nas relações com sir Charles. Com esse objetivo, instalou-se perto dosolar. Familiarizou-se com os vizinhos mais notáveis e dispôs-se a utilizar todos osmeios para se apoderar de Baskerville.

Quando sir Charles lhe contou a lenda do cão-fantasma, planejou a própriamorte. Veio a saber, por meio do dr. Mortimer, que o tio sofria do coração e queuma forte comoção o mataria. Soube também que o velho baronete eradoentiamente supersticioso, acreditando na lenda sinistra.

(4) Jack (nome anteriormente dado a Stapleton) é a forma popular de John (N. do T.)

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A imaginação engenhosa de John Baskerville, agora Stapleton e familiarmenteconhecido por Jack, montou um plano para eliminar o tio, sem que o crime lhepudesse ser atribuído. E logo começou a preparar a sua execução.

Enquanto qualquer criminoso vulgar se satisfaria com o emprego de um cãoferoz, o naturalista teve o rasgo genial de criar um monstro diabólico. Dirigiu-sea Londres e, no estabelecimento zoófilo Ross and Mangles, da Fulham Road,adquiriu o mais descomunal e mais selvagem cão que lá se encontrava, resultantedo cruzamento de pastor-alemão com grand-danois.

Transportou o animal, discretamente, pela linha de North Devon, evitandodessa maneira passar por Coombe Tracy. Teve de fazer uma longa e arriscadacaminhada, através dos pântanos de Grimpen, para levá-lo para a Merripit Cottage.Nas suas excursões para capturar insetos, explorou cuidadosamente o atoleiro e,para que a presença do cão não provocasse comentários, arranjou-lhe umesconderijo na antiga mina de estanho, e ali o manteve, aguardando umaoportunidade propícia.

Mas estava demorando muito. Era difícil, à noite, atrair o velho tio à charneca,e as suas várias tentativas para surpreendê-lo com o animal fracassavam. Numadessas excursões, em que o tinha largado, já devidamente transformado emmonstro, por meio do genial produto fosforescente, o animal foi visto porcamponeses, que logo reavivaram a lenda do cão diabólico.

Stapleton contava com a colaboração da mulher para atrair sir Charles aodesastre fatal, mas estava relutante em usar a generosidade do velho para atraí-loa uma morte horrível. Nem as terríveis ameaças, nem as agressões físicasconseguiram fazê-la mudar de idéia, recusando-se a ajudar o marido naconsumação do seu crime. Assim, Stapleton viu os seus planos fracassarem.

Então, entreviu nova oportunidade quando sir Charles, que lhe manifestavasincera simpatia, lhe pediu que servisse de intermediário no seu caridoso auxílioà infeliz sra. Lyons, filha rejeitada de Frankland que fora abandonada pelo marido.

Fazendo-se passar por solteiro, Stapleton soube se insinuar no espírito da pobresenhora e, ganhando a sua estima, foi adquirindo sobre ela uma crescenteinfluência. Por fim, convencendo-a de que estava profundamente apaixonado,pediu-a em casamento caso ela obtivesse o divórcio.

Entretanto, quando soube que sir Charles, dominado pela superstição eapavorado com os rumores que corriam sobre o cão lendário, decidiu ir paraLondres a conselho do dr. Mortimer, receou que os seus planos se frustrassem edecidiu agir imediatamente, antes que a vítima fugisse.

Portanto, insistiu com a sra. Lyons, para que esta escrevesse uma carta a sirCharles, implorando-lhe um encontro, no pântano, na véspera da partida paraLondres. Finalmente, com um argumento convincente, impediu-a de comparecere promoveu, assim, a almejada oportunidade.

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Ao voltar de Coombe Tracy, foi buscar o cão na mina de Grimpen, trouxe-opelo pântano à Merripit Cottage e aí untou-o com o produto fosforescente. Emseguida, levou-o para perto do portão onde o tio aguardava a sra. Lyons.

Atiçada pelo dono, a fera pulou a cerca e perseguiu o velho ao longo da alamedados teixos. Devia ter sido um espetáculo pavoroso esse monstro negro, soltando“fogo”, pelas faces e pelos olhos, no encalço da vítima. Sir Charles tomboumorto com uma síncope no extremo da alameda e, como o cão correu pela trilhagramada, não deixou vestígios de pegadas no solo, a não ser quando se aproximoudo cadáver, não chegando a se aproximar muito, porque os cães não atacam umhomem que já esteja morto. Só aí deixou as marcas observadas pelo dr. Mortimer.

Stapleton, então, chamou o cão e reconduziu-o à mina de Grimpen. Dessamaneira, o mistério deixou as autoridades perplexas e alarmou toda a região,fazendo com que, finalmente, o caso nos fosse confiado.

Essa diabólica astúcia tornava praticamente impossível provar a culpa doverdadeiro assassino de sir Charles, tanto mais que o único cúmplice jamais poderiatraí-lo e também porque a natureza inconcebível do composto fosforescente maisfomentava a crença popular numa intervenção fantasmagórica.

As duas mulheres relacionadas com o caso, Beryl Stapleton e Laura Lyons,suspeitaram de que se tratava de uma intervenção homicida. A primeira já sabiaque o marido planejava eliminar o tio e conhecia a existência do cão; a segunda,embora ignorasse a intenção do falso noivo, o seu motivo para o crime e aintervenção do animal para praticá-lo, ficou alarmada com a coincidência de sirCharles ter morrido precisamente no local e na hora da entrevista que marcou,por sugestão de Stapleton, e que foi, por este, oportunamente cancelada.

Talvez Stapleton ignorasse a existência de um primo, herdeiro mais próximodo falecido tio comum e que, naquela altura, residia no Canadá. Deve ter tidoconhecimento desse fato através do dr. Mortimer. Este, naturalmente, duranteuma conversa ocasional com o naturalista, pode ter-lhe contado sobre o próximoembarque de sir Henry para a Inglaterra, ou, mais tarde, a necessidade de ir aLondres, esperá-lo.

A primeira idéia de Stapleton foi liquidar o primo, em Londres, antes que esteviesse se instalar no Devonshire. Contudo, como já não confiava na mulher, quese recusara a colaborar na armadilha para matar o velho, não ousou deixá-la sópor muito tempo, na Merripit Cottage. Por isso, levou-a consigo para a capital.

Tive o cuidado de investigar que se hospedaram no Mexborough Private Hotel,na Craven Street, que foi um dos visitados por Cartwright, quando procurava otal jornal.

Mantendo a mulher presa no quarto do hotel, disfarçou-se com uma barbapostiça, que colou no rosto com uma espécie de grude. Seguiu o dr. Mortimer aténossa casa e, depois, até o Northumberland Hotel. Beryl Stapleton tinha tanto

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medo do marido que não se atreveu a avisar o homem cuja vida sabia que estavaem perigo, por meio de uma carta redigida com a própria grafia. Por isso, adotouo método das letras recortadas daquele artigo de uma das páginas centrais doTimes do próprio dia, provavelmente o único jornal que tinha à mão. Para tal,serviu-se da sua tesourinha de unhas e da espécie de grude com que Stapletoncolou a barba postiça. Depois, disfarçando a letra para escrever o endereço nosobrescrito, pediu a uma mulher que passava na rua o favor de postar, no correio,a carta que lhe lançou pela janela, juntamente com uma moeda compensadora.Essa mensagem chegou às mãos do baronete e foi o primeiro aviso do perigo quecorria.

Para que o cão pudesse perseguir sir Henry, no momento oportuno, tornava-se imprescindível a Stapleton obter uma peça de roupa ou, de preferência, umsapato da futura vítima. Deve ter subornado um dos criados do hotel, com umpretexto qualquer, para furtar um dos sapatos daquele hóspede. Para seu azar, osapato furtado era novo, ainda não impregnado do odor característico e pessoalde sir Henry. Então, teve de mandar furtar outro sapato, de outro par, já usado,devolvendo o primeiro.

Este incidente foi, para mim, muito elucidativo, porque quanto mais grotescoé um pormenor, mais merece ser analisado... e este pormenor do sapato velhosugeriu-me a existência de um cão, não fantasma, mas bem real, ao qual seriadado aquele objeto para farejar.

No dia seguinte, quando da visita dos nossos amigos, procurei ver se eramseguidos, o que se confirmou. Entretanto, estranhei que o homem que os seguiajá conhecesse a nossa casa e o meu nome. Isso me levou a pensar que a sua carreiracriminosa talvez não se tivesse restringido a Baskerville. Podia ter-se estendido aoutras regiões.

Averigüei que, nos últimos três anos, tinham ocorrido quatro grandes roubosna região oeste, sem que o criminoso tivesse sido preso. O último assalto, efetuadoem maio, em Folkstane, causou sensação pelo sangue-frio com que o ladrãomascarado assassinou um dos criados.

Não há dúvida de que Stapleton, após ter perdido a escola, teve de restabeleceras suas já anêmicas finanças, tornando-se assim um homem cada vez mais perigoso.

Apesar da sua audácia, tinha a esperteza da prudência e, sabendo que eu meencarregara do caso, preferiu deixar Londres e ir aguardar o primo em Dartmoor.

Neste ponto da narrativa, senti-me impelido a interromper o meu amigo:

— Um momento, Holmes! Reconheço que você explicou os fatos comexatidão, exceto um: como poderia um cão daquele tamanho, que devia consumirgrande quantidade de alimentação, sobreviver naquela casinha tão pequena deGrimpen, durante a estada do seu dono em Londres?

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— Também investiguei esse enigma. Stapleton tinha um confidente e cúmplice,que já o havia auxiliado nos assaltos anteriores, apesar da sua avançada idade. Essevelho criado, que encontramos na Merripit Cottage, desapareceu logo a seguir.Chama-se Antony, nome pouco comum na Inglaterra, enquanto Antônio já écomum nos países hispânicos e hispano-americanos. Notei que, tal como a sra.Stapleton, falava bem o inglês mas com notória pronúncia espanhola. Viera daCosta Rica com os patrões e se manteve ao seu serviço quando, com o falso nomede Vandeleur, tinham a escola perto do Yorkshire.

Naturalmente, na ausência do patrão, tratava do cão que então estaria nabarraca da Merripit Cottage. Note, Watson, que esse velho criado não podiaignorar que Stapleton batia cruelmente na mulher, que a aterrorizava e que aamarrara no aposento transformado em museu, no dia em que revistamos a casa,conseguindo salvá-la.

Agora, Watson, deixe-me explicar a minha posição naquele momento. Talvezse lembre de que, ao analisar o papel do aviso que sir Henry recebeu e ao examinaras palavras coladas, procurei uma qualquer marca de fabricação...

— Lembro-me disso, perfeitamente!

— Pois bem, ao fazê-lo, tendo-o bem perto dos olhos, não notei marca algumamas percebi um ligeiro perfume, conhecido por “essência de jasmim branco”.Existem, atualmente, no mercado, setenta e cinco perfumes, e um especialistacriminólogo tem de saber distingui-los uns dos outros. Já várias vezes a soluçãode um caso dependeu da rápida identificação de um odor.

Esse perfume sugeriu-me a intervenção de uma dama e, então, a minha atençãoconvergiu para os Stapleton. Isso me levou a investigar a existência do cão, demaneira que antes de ir para o pântano, já sabia quem era o criminoso.

Cumpria-me vigiar Stapleton e, se eu estivesse com você, não poderia fazê-loeficazmente, pois a minha presença bastaria para pô-lo de sobreaviso. Portantotive de enganá-los, e a você também, meu caro Watson, fazendo-os julgar que meachava em Londres.

Não vivi tão desconfortavelmente como pôde pensar, pois instalei-me emCoombe Tracy e só ia para o pântano quando se tornava conveniente estar pertodo campo da ação.

Cartwright me acompanhou e, disfarçado de jovem camponês, muito meauxiliou, me levando mantimentos e roupa lavada... E quando eu vigiavaStapleton, Cartwright vigiava você, meu caro amigo, mantendo-me ao par detudo o que se passava.

Os relatórios que você expedia para a Baker Street eram logo remetidos paraCoombe Tracy. Um deles permitiu-me descobrir a identidade do casal, após umaoportuna investigação.

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Não há dúvida de que incidentes paralelos, como a fuga do condenado e a suarelação familiar com os Barrymore, me dificultaram o inquérito. Mas outrorelatório seu contribuiu para confirmar as conclusões a que eu já tinha chegado.

Quando você me descobriu no pântano, já eu tinha esclarecido o caso, masainda não tinha provas convincentes para um júri. Mesmo a morte de Selden,resultante da tentativa de Stapleton para assassinar sir Henry, não constituía provaconcludente. Tornava-se necessário apanhá-lo em flagrante e, para isso, teria deusar o baronete como isca.

Confesso que expô-lo daquela maneira ao perigo foi um expediente muitoarriscado... quase uma falha no meu processo de conduzir o caso... mas eu nãotinha outro meio de atingir o fim desejado.

Também o nevoeiro veio complicar a situação, e o terror que a cena do cão noscausou teve infelizes conseqüências para sir Henry, mas o dr. Mortimer assegurou-me que os efeitos seriam passageiros e que uma longa viagem o faria esquecer asemoções... e sobretudo a causa principal: a sua mágoa sentimental, já que o amorque o baronete sentia pela sra. Stapleton era realmente profundo. O saber-seenganado por ela teve, para ele, um efeito traumatizante.

Não há dúvida de que Stapleton exercia sobre a mulher uma enorme influência,quer com causa no amor antigo, quer pelo medo que lhe causava. Assim, a jovemesposa consentiu em passar por sua irmã... talvez também movida pela necessidadede apagar das suas vidas a identidade anterior de Vandeleur. Ora, uma vez mais,isto prova a cumplicidade de Antony, que sabia que eram casados, fazendo-sepassar por irmãos.

Contudo, a consciência de Beryl Garcia, agora Stapleton, embora não desejandodenunciar o marido, impeliu-a a tentar avisar sir Henry do perigo que corria. Poroutro lado, Stapleton era susceptível de sofrer ciúme e, apesar de fazer parte doseu plano que sir Henry namorasse sua mulher, afligia-se quando presenciavauma maior intimidade entre ambos.

Mesmo assim, consentiu que o baronete freqüentasse a Merripit Cottage.No dia decisivo, a sra. Stapleton virou-se contra o marido, acusando-o depremeditação... ainda mais que sabia que o cão já se encontrava na barraca dacasa... e estava a par da trágica morte do condenado. Seguiu-se uma cenaviolenta, em que ele, para dominá-la, mencionou poder trocá-la por umarival... Laura Lyons.

Esta nova ameaça transformou a fidelidade da mulher em ódio. Percebendoque ela o trairia, espancou-a a chicotadas e amarrou-a onde a encontramos paraimpossibilitá-la de prevenir sir Henry. Precisava que todos atribuíssem a mortedo baronete à maldição da família Baskerville.

Talvez, depois do fato consumado, tencionasse reconquistar a mulher. Porém,

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neste caso, deveria estar redondamente enganado, já que, pelo que sei, uma mulherde sangue espanhol não perdoa facilmente uma ofensa dessa natureza.

E agora, meu caro Watson, sem consultar as minhas notas, não julgo ser possíveldar-lhe mais pormenores sobre este estranho caso... Mas penso que o essencialficou devidamente explicado.

— Claramente, Holmes!... Parece-me, porém, que sir Henry não era pessoapara morrer de susto, como aconteceu ao tio, ao ver o cão fantasma — objetei.

— Talvez a presença do monstro não bastasse, mas o animal estava faminto, euma fera com fome, quando ataca, pode anular a resistência humana... Seriacapaz de liquidá-lo, cravando-lhe as presas na garganta.

— Não duvido, Holmes... Mas há um outro fator que me deixa perplexo: seStapleton pretendia reclamar a herança, como poderia explicar ter vivido tãoperto de Baskerville, com uma falsa identidade? Como poderia apresentar-secomo herdeiro sem levantar suspeitas e investigações?

— Esse argumento, Watson, é, de fato, pertinente, e não tenho meiosfundamentados que me induzam a uma conclusão exata. Só o passado e opresente me dizem respeito, não me competindo adivinhar o futuro.Contudo, a sra. Stapleton confidenciou-me ter o marido se referido a esseassunto: tinha considerado três vias hipotéticas para realizar os seus intentos.Poderia regressar à América do Sul e, daí, reclamar os seus bens, provandoa verdadeira identidade às autoridades locais. Dessa maneira, entraria naposse da fortuna, sem ter necessidade de regressar à Inglaterra. Poderiapermanecer em Londres, durante o período necessário, adotando umdisfarce; ou ainda, entregar a um cúmplice a sua documentaçãocomprovativa de que era John, filho de Rodger Baskerville, e estabelecê-locomo herdeiro. Depois receberia grande parte dos rendimentos. Decerto,arranjaria um meio de suprir as dificuldades.

E agora, meu caro Watson, após estas semanas de trabalho intenso, creioque merecemos, por uma noite, nos distrairmos um pouco. Tenho umcamarote para Les Huguenots. Já ouviu De Reske cantar? Se a idéia lheagrada peço-lhe que esteja pronto dentro de meia hora, para jantarmos noMarcini, antes de irmos para a Opera House.

FIM

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ÍNDICE

O CÃO DOS BASKERVILLE

CAPÍTULO 1 – SHERLOCK HOLMES .......................................................................... 5

CAPÍTULO 2 – A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLE .................................................. 11

CAPÍTULO 3 – O PROBLEMA ..................................................................................... 19

CAPÍTULO 4 – SIR HENRY BASKERVILLE ................................................................ 27

CAPÍTULO 5 – TRÊS FRACASSOS .............................................................................. 38

CAPÍTULO 6 – O SOLAR DE BASKERVILLE ............................................................. 47

CAPÍTULO 7 – OS STAPLETON DA MERRIPIT COTTAGE ................................... 55

CAPÍTULO 8 – PRIMEIRO RELATÓRIO DO DR. WATSON ................................... 65

CAPÍTULO 9 – SEGUNDO RELATÓRIO DO DR. WATSON .................................. 71

CAPÍTULO 10 – EXTRATO DO DIÁRIO DO DR. WATSON ..................................... 81

CAPÍTULO 11 – O HOMEM NO PENHASCO ............................................................ 89

CAPÍTULO 12 – MORTE NO PÂNTANO ..................................................................... 97

CAPÍTULO 13 – ARMANDO A REDE ......................................................................... 106

CAPÍTULO 14 – O CÃO DE BASKERVILLE ............................................................... 114

CAPÍTULO 15 – RETROSPECÇÃO ............................................................................ 120