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05/04/2010 O CASO DOS NIÑOS DE LA CALLE A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao seqüestro, tortura e morte de cinco meninos de rua na Guatemala, em 1994. Roberta Candeia Gonçalves Mestrado em Direitos Humanos/UFPB O papel que as políticas de proteção aos Direitos Humanos, principalmente no que toca aos Direitos da Criança, tem grande impacto social e demanda extrema atenção das autoridades internacionais no continente americano, o qual ostenta o inglório histórico de repetidos abusos contra crianças em todos os Estados. Nessa esteira, tem-se o Caso Villagrán Morales, ou o Caso dos Meninos de Rua, contra o Estado da Guatemala, cuja sentença, de 19 de novembro de 1994, tratou sobre o seqüestro, tortura e morte de cinco jovens por Agentes da Policia Nacional Guatemalteca, denunciado pela Casa Alianza e CEJIL à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e submetido à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para sentença, a partir de onde se formulou o documento, mais tarde divulgado para o mundo. Este documento contém os procedimentos específicos, o estudo e o deslinde do caso apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sessão, ocorrida em 19 de novembro de 1999, foi composta em plenário pelos Juízes Antônio A. Cançado Trindade (Presidente), Máximo Pacheco Gómez (Vice- presidente), Hernán Salgado Pesantes, Oliver Jackman, Alirio Abreu Burelli e Carlos Vicente de Roux Rengifo, para decidir, de acordo com os arts. 55 e 57 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso “Villagrán Morales” ou dos Meninos de Rua. A extensa decisão conta, preliminarmente, com as listagens de estilo, seguidas dos permissivos legais de formação e competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar o caso em comento, a introdução da causa – sujeitos, objeto e qualificação legal da denúncia -, bem como histórico procedimental adotado pela Comissão e, em seguida, pela Corte, o qual conta, entre outros, com a colheita de informações sobre o caso no país de origem da denúncia, bem como do exercício de resposta e outras intervenções nos autos pelo Estado da Guatemala, ademais das audiências realizadas no curso daquela instrução probatória. Neste aspecto, a sentença despende os seguintes três capítulos detalhando os muitos aspectos referentes à prova, tanto no que tange a produção das provas documentais acostadas ao caso, como ainda diversos testemunhos dados à Corte, alguns deles bastante contundentes ao detalhar a brutalidade dos crimes. Uma vez que o Estado da Guatemala, apontou-se, incorreu na violação dos arts. 1º (Obrigação de Respeitar Direitos), 4º (Direito à Vida), 5º (Direito à Integridade Pessoal), 7º (Direito à Liberdade Pessoal), 8º (Garantias Judiciais) e

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05/04/2010 O CASO DOS NIÑOS DE LA CALLE A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao seqüestro, tortura e

morte de cinco meninos de rua na Guatemala, em 1994.

Roberta Candeia Gonçalves Mestrado em Direitos Humanos/UFPB

O papel que as políticas de proteção aos Direitos Humanos, principalmente no que toca aos Direitos da Criança, tem grande impacto social e demanda extrema atenção das autoridades internacionais no continente americano, o qual ostenta o inglório histórico de repetidos abusos contra crianças em todos os Estados. Nessa esteira, tem-se o Caso Villagrán Morales, ou o Caso dos Meninos de Rua, contra o Estado da Guatemala, cuja sentença, de 19 de novembro de 1994, tratou sobre o seqüestro, tortura e morte de cinco jovens por Agentes da Policia Nacional Guatemalteca, denunciado pela Casa Alianza e CEJIL à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e submetido à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para sentença, a partir de onde se formulou o documento, mais tarde divulgado para o mundo. Este documento contém os procedimentos específicos, o estudo e o deslinde do caso apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sessão, ocorrida em 19 de novembro de 1999, foi composta em plenário pelos Juízes Antônio A. Cançado Trindade (Presidente), Máximo Pacheco Gómez (Vice-presidente), Hernán Salgado Pesantes, Oliver Jackman, Alirio Abreu Burelli e Carlos Vicente de Roux Rengifo, para decidir, de acordo com os arts. 55 e 57 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso “Villagrán Morales” ou dos Meninos de Rua. A extensa decisão conta, preliminarmente, com as listagens de estilo, seguidas dos permissivos legais de formação e competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar o caso em comento, a introdução da causa – sujeitos, objeto e qualificação legal da denúncia -, bem como histórico procedimental adotado pela Comissão e, em seguida, pela Corte, o qual conta, entre outros, com a colheita de informações sobre o caso no país de origem da denúncia, bem como do exercício de resposta e outras intervenções nos autos pelo Estado da Guatemala, ademais das audiências realizadas no curso daquela instrução probatória. Neste aspecto, a sentença despende os seguintes três capítulos detalhando os muitos aspectos referentes à prova, tanto no que tange a produção das provas documentais acostadas ao caso, como ainda diversos testemunhos dados à Corte, alguns deles bastante contundentes ao detalhar a brutalidade dos crimes. Uma vez que o Estado da Guatemala, apontou-se, incorreu na violação dos arts. 1º (Obrigação de Respeitar Direitos), 4º (Direito à Vida), 5º (Direito à Integridade Pessoal), 7º (Direito à Liberdade Pessoal), 8º (Garantias Judiciais) e

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25 (Proteção Judicial), da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), a sentença define, especificamente, o teor desta violação e seus fundamentos jurídicos, a defesa do Estado e o conteúdo das alegações finais. Durante os capítulos supracitados, a Corte enumera as fortes e vultosas evidencias da ocorrência daqueles fatos imputados como violação aos artigos da Convenção, as quais traçam a estarrecedora imagem do ocorrido com aqueles menores, inclusive com a descrição da abdução e morte de Anstraum Aman Villagrán Morales, que ocorreu em via pública, conquanto seus homicidas “...sem

ocultar seus rostos, andando com parcimônia, à vista de várias pessoas, até o ponto

em que, depois de haver matado a vitima, permaneceram nas redondezas consumindo cerveja e antes de se retirar definitivamente do local, regressaram às

imediações do cadáver e ameaçaram as eventuais testemunhas”. Ante todo o discutido durante a sessão, tendo em vista, ainda, que o Estado da Guatemala foi totalmente inerte ante a prevenção, repressão e condenação do caso, a Corte, então, decidiu, por unanimidade, condenar aquele pais às violações aos tratados internacionais imputadas, ficando a Guatemala obrigada a construir um centro de assistência ao menor com uma placa contendo os nomes das vitimas, indenizar os familiares das vitimas e investigar e punir os responsáveis por aqueles atos de violência, além de adotar, em seu sistema jurídico nacional, normas de direitos humanos necessárias para cumprir tais obrigações. É válido ressaltar que, neste caso, além da comissão e da corte, houve a participação de outras entidades, como a Anistia Internacional, por exemplo, e foram utilizados, como base teórica, as Convenções Americana e Européia de Direitos Humanos, a Convenção contra a Tortura e a Convenção sobre os Direitos da Criança, a qual integrou a fundamentação jurídica do caso uma vez que os jovens eram menores de idade à época em que foram imprimidas as violações. A utilização desta convenção foi devida, assim, à interpretação dada pelos juízes durante o julgamento a uma norma de tratado internacional e denota a tendência teleológica da interpretação e adequação no Direito Internacional, a qual quer engajar a Lei Internacional em aspectos mais alem da mera letra da lei, mas também ater-se a questões como a intenção dos países subscritores de um tratado e o sentido particular que cada um deles alcança quando cotejado com a realidade de um Estado ou grupo de Estados. Como essa teoria moderada de interpretação quer ressaltar, nenhum viés (seja ele formalístico ou finalístico) deve ser completamente descartado no desempenhar desta tarefa. Com bases neste entendimento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também imputou o Estado da Guatemala na violação do art. 19 da Convenção Americana, qualificado como a proteção dos direitos da criança, inclusive porque, ressaltou a Corte em suas alegações, a Guatemala estava obrigada, por força do art. 18, letra “b” da Convenção de Viena Sobre os Direitos dos Tratados1, a não realizar quaisquer atos que ponham em risco de violação ou que violem as normas de tratado por ela anteriormente firmado, neste caso, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de junho de 1990, anterior ao caso e, portanto, aplicável segundo as normas de eficácia temporal da Lei Internacional.

1 Além da vinculação ao princípio do pacta sunt servanda, um dos corolários da Convenção de Viena.

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Ainda, a Corte adota neste juízo a vertente teórica da interpretação dos tratados internacionais de acordo com o contexto2 em que palavras, expressões ou inclusive definições aparecem no caso particular, senão vejamos: ainda que tipificada a violação do art. 19 do Pacto de São José da Costa Rica, este dispositivo não define o alcance da palavra “criança”. A Convenção sobre os Direitos da Criança, por sua parte, define “criança” como todo ser humano que não haja completado 18 anos, da mesma forma que a lei da Guatemala, mas com a exceção de menor que, “en virtud de la ley que le sea aplicable, haya alcanzado antes la

mayoría de edad” (pár. 188). Valendo-se da interpretação positiva dos tratados internacionais (aquela que prioriza palavra a palavra em seu sentido literal), só se enquadrariam na definição de “criança” três dos cinco jovens torturados e mortos; ocorre que a Corte, para definir a menoridade legal para o caso concreto, levou em conta as noticias públicas que emanavam desde a Guatemala, nas quais se relatava a contumácia e violência dos crimes praticados por oficiais da policia nacional, cometidos contra menores nas ruas, comumente seqüestrados, torturados e mortos, o que gerou uma verdadeira situação de risco constante a todos os jovens que perambulavam pelas ruas à época: ante tal panorama, a Corte instituiu o termo “Niños de la Calle” (Meninos de Rua) para denotar a abrangência da aplicação das leis de proteção às crianças contidas nos tratados internacionais, notadamente a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em seu art. 19. Esta a razão para o surgimento do termo “El Caso de los Niños de la

Calle”, pelo qual é mais conhecido nacional e internacionalmente este julgamento. É também o matiz primeira que reveste o presente caso com importância crucial para o estudo e consolidação dos métodos de interpretação de tratados internacionais, porquanto o método então utilizado encontra-se solidamente fundamentado no corpo do documento sentencial produzido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (pár. 178-198). Neste caso, a interpretação utilizada é a que sustenta maior chances de êxito, inclusive aquela que mas faz sentido aos olhos do senso comum, notadamente quando se leva em conta que os tratados internacionais, assim como a Lei de forma ampla, deve ser mais que uma pedra fria, senão um organismo vivo, aspirador das vastas realidades, capaz de gerar soluções eficientes a todas as multifaces da realidade, as quais devem ser igualmente compreendidas pelos Direitos Humanos e suas políticas. O caso dos Meninos de Rua, ademais de culminar na condenação de um Estado-Nação pela prática de abusos e violação aos Direitos Humanos, muito embora uma condenação modesta para o teor hediondo dos crimes, consolida-se como uma vitória de um modelo progressista de interpretação dos tratados internacionais, de bases teleológicas, engajado na ampliação do escopo da proteção à dignidade humana, ex aequo et bono, mesmo em casos contingentes ou de solução mais subjetivista.

2 “A treaty shall be interpreted in good faith in accordance with the ordinary meaning to be given to the terms of the treaty in the context and in the light of its objects and purposes”, apregoa o art. 31, da Convenção de Viena, ainda que, por “contexto”, o texto legal queira tartar de outros documentos escritos dos países subscreventes, tal o preâmbulo e anexos do tratado, documentos oficiais, tratados firmados anteriormente ou outra sorte de documento escrito em consenso com as nacoes participantes que possam servir de esclarecimento sobre termos e sentidos, mas não trata, direta ou indiretamente, da utilizacao de conceitos e significados especificos de uma regiao ou do câmbio ou exasperação do sentido de palavras ou expressões em virtude de contingências históricas, sociais ou políticas.

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Ressalte-se, por fim, que a beleza da sentença prolatada pela Corte concentra-se em seu adendo final, no voto dos Juízes Cançado Trindade e Abreu Burelli, quando, ao discorrer sobre o direito à vida e a iminência forçada da morte, aduzem que a vida humana merece uma interpretação sensibilíssima ao substratum da lei, suas virtudes morais juntamente com sua ordem dogmática, no sentido de que as normas internacionais de Direitos Humanos e sua interpretação evoluam junto com as sociedades, sensíveis às suas demandas mais humanas e mais necessárias.