O Ciclo Do Recife

Embed Size (px)

Citation preview

O Ciclo do Recife: anos 20Durante a dcada de 20, viu-se surgir no pas polos de cinema outros que Rio de Janeiro e So Paulo. Esses surtos produtivos, ocorridos em Campinas, Belo Horizonte, Cataguases, Porto Alegre, Pelotas e vrias outras cidades, foram chamados ciclos regionais. Dos ciclos regionais, o do Recife foi o mais expressivo em nmeros, embora haja divergncias sobre eles. Segundo Paulo Cunha (2010, p. 38), foram cerca 29 diferentes filmes rodados entre os anos de 1923 e 1931, entre naturaes e fices. J Luciana Corra de Arajo afirma a existncia de mais de 40 filmes de ambos os gneros e, sem apresentar uma lista compreensiva, enumera diversos naturaes ausentes da compilao de Paulo Cunha (ARAJO, L., 2012). Alguns projetos permaneceram inacabados e muitas pelculas se perderam, como ocorreu com a maior parte da produo brasileira da poca. Segundo Cunha, envolveu 17 diretores de um grupo de cerca de 40 pessoas e nove diferentes firmas produtoras (CUNHA, 2010, p. 90).Os naturaes foram filmes documentais e, nos do Ciclo, muitos deles foram encomendados pelo governo para propaganda. Na dcada de 20, o governo federal j havia utilizado o cinema como um aparato de criao de uma identidade moderna para o Brasil durante as comemoraes do centenrio da Independncia; em Pernambuco, o cinema tambm foi empregado nas comemoraes da Confederao do Equador e para propaganda durante o governo Srgio Lorto. Luciana Arajo (2012) conjectura que o governo no assumia oficialmente os gastos de propaganda, sendo mesmo exibido interttulo em Veneza Americana (1925) que, aps elogio dos administradores, negava o apoio financeiro.Os filmes de enredo, como eram conhecidas poca as fices, tiveram outra base econmica.Tendo sido comandado por pequeno-burgueses e proletrios (operrios, ourives, grficos, funcionrios de baixo escalo, comercirios), o Ciclo conseguiu convencer a elite recifense, sobretudo os comerciantes da cidade, no apenas a financiar, mas igualmente a participar, muitas vezes como meros figurantes, das produes. Este vnculo entre jovens quase pobres ou remediados e a burguesia local deu ao Recife uma posio diferenciada no quadro da cultura urbana perifrica moderna. (CUNHA, 2010, p. 135)Essa aliana no transformou o cinema recifense em uma empreitada segura ou confortvel: a precariedade dos equipamentos, os riscos e as dificuldades financeiras sero constantes; mas permitiu que a paixo de algumas dezenas de jovens pelo cinema se transformasse em encenao da modernizao da cidade.A maior inspirao para as fices do ciclo foram os populares filmes norte-americanos, que serviram de modelo para quase todas as histrias pernambucanas. Em alguns casos, o decalque, evidente para qualquer frequentador de cinema, era pintado com cores locais, como em Aitar da Praia (1925). Do ponto de vista artstico, tiveram como objetivo o entretenimento e o sucesso de pblico. Apesar do uso recursos como a superimpresso e o flashback, no tentou-se experincias estticas ousadas, como fizeram as vanguardas artsticas dos anos 20 e mesmo cineastas como Humberto Mauro (Brasa Dormida, 1928), no Ciclo de Cataguases, ou Mrio Peixoto, de Limite (1931). Enquanto o cinema de So Paulo e Rio de Janeiro seguia a linguagem contempornea da principal produo comercial mundial, os filmes de fico do Ciclo ainda empregavam a gramtica visual da dcada de 1910, em desuso no mesmo cinema que tentam emular. J os naturaes da Pernambuco-Film, da dupla italiana Ugo Falangola e J. Cambieri, lanam mo de recursos tcnicos e estticos mais singulares, como colorao de pelcula e inverso de planos.Em A Filha do Advogado (Aurora-Film, 1925 e 1927), um dos cenrios utilizado um moderno palacete recifense, segundo Cunha emprestado pela tradicional famlia Bandeira e situado na Avenida Rosa e Silva (2010, p. 114). Os novos palacetes eram um dos ndices de modernidade que a burguesia da cidade passou a adotar a partir das transformaes urbanas pela qual passou Recife na dcada de 20, sob batuta do governador Srgio Lorto.Comment by Saskia: Perguntar para Z se ele saberia onde est o prdio agoraA modernizao do Recife aconteceu em dois perodos: no primeiro, entre 1909 e 1915, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito implantou os modernos sistemas de esgoto e gua da cidade (projeto concludo apenas em 1918) ao mesmo tempo em que foram feitas as to aguardadas obras atualizadoras do Porto do Recife e a arrasadora reforma do centenrio Bairro do Recife, cuja arquitetura colonial foi posta abaixo para que fossem singradas novas e largas avenidas (ARAJO, R., 1996; MOREIRA, 1994).No segundo perodo, o governo Srgio Lorto (1922-1926) dedicou-se construo do monumental Parque do Derby, a uma nova reforma do Porto e abertura da Avenida Beira-Mar e outras ao sul da regio porturia, que alargou os limites da cidade para as regies do Pina e Boa Viagem, fazendo surgir um novo acesso praia para a populao recifense no que antes era um coqueiral habitado esparsamente por pequenas comunidades de pescadores. Em concertao com o governo do estado, a prefeitura da cidade dedicou-se a projetos menores, nomeadamente o aformoseamento de praas em pontos importantes dos limites da rea urbanizada e obras nas vias de ligao do ncleo central com as freguesias suburbanas, como Madalena e Encruzilhada, propiciando a expanso da malha urbana (MOREIRA, 1994).Este governo foi, alm de contemporneo do Ciclo do Recife, relevante financiador do surto, atravs de suas encomendas. Talvez no a toa, os anos de 1925 e 1927, ao final e logo aps do governo Lorto, foram o auge da produo do Ciclo (CUNHA, 2010, p. 39). Seu conjunto de intervenes na cidade foi, como o do perodo de 1909-1915, um exemplo tpico do urbanismo ento praticado no Brasil nas primeiras dcadas do sculo XX. Nessa poca, deu-se importncia criao de novas reas para a expanso controlada da cidade, alargamento de vias, abertura de avenidas para a circulao interna da cidade em veculos, embelezamento de praas e reas centrais (melhoramento) inspiradas na Paris de Haussman, obras de atualizaes dos portos e higienizao da cidade. Esta ltima era realizada por trs frentes: a implantao de sistemas de gua e esgoto; reformas arquitetnicas que permitissem a circulao do ar e o contato com o sol nas moradias e ruas, que de acordo com a arquitetura colonial brasileira eram tipicamente apertadas e abafadas; e, por fim, o combate insalubridade identificada pobreza, atravs das moradias precrias (mocambos em regies pantanosas, sobrados super-habitados) (LEME, 1998; MOREIRA, 1994; VILLAA, 1999).Esta pliade de vias de atuao era originada de diferentes aportes ideolgicos, mas reforavam-se mutuamente num projeto de modernidade. As obras porturias tinham como objetivo a adequao das vias de escoao da produo brasileira, numa poca em que os avanos tecnolgicos nas embarcaes havia tornado antiquados muitos portos brasileiros, como o de Recife. O advento dos bondes a burro, depois eltricos, e do carro vieram-se unir necessidade de circulao do ar na demanda por largas e retilneas avenidas, pois a teoria dos miasmas da qual era adepta a classe cientfica da poca (e que viria a ser superada pela teoria microbiana) creditava tambm aos fluidos estagnados a origem de molstias. A sempre presente influncia cultural francesa fazia da Paris reformada, moderna, no mais medieval, o modelo de referncia para os ares europeus do qual deveriam ser dotadas as cidades modernas, mesmo ao sul do Equador. Essa nova arquitetura era formada por largas avenidas que substituram as ruelas medievais francesas e coloniais brasileiras. E numa cidade moderna no havia lugar para o proletariado urbano nas regies centrais, sendo as reformas e o medo das pestes que assolavam vrias cidades brasileiras eram as alegaes oficiais para o higienismo praticado poca. A modernidade era uma ideologia do progresso, da superao do antiquado, pobre e sujo passado colonial brasileiro para uma prspera e hygienica civilizao, o que passava necessariamente pela reformulao de suas bases fsico-materiais na cidade.A partir do XIX se desenvolver no Recife um discurso organicista sobre a cidade, descrito com ateno por Joel Outtes em sua dissertao de mestrado (1991). Suas bases remontam a sculos anteriores e influncias de teorias e prticas mdicas estrangeiras, havendo um precoce exemplo de sua execuo na regio ao fim do sculo XVII, na luta do Marqus de Montebelo contra a febre amarela. Este iderio bebe da medicina social, de carter preventivo e de proteo dos sos em oposio cura dos doentes, e transforma a ao sobre a cidade numa forma de higienizao passvel de evitar a reproduo de doenas. A metfora da cidade enquanto corpo biolgico a partir do sculo XIX trar como consequncia a penetrao do saber mdico no poder pblico. Do mesmo discurso emergem duas submetforas importantes: a das doenas da cidade e da cidade doente, associada cidade colonial, e a dos mdicos da cidade, os sanitaristas e urbanistas.Da surgir uma forma de planejamento urbano totalizante e normativa: A medicina social quer conhecer, prever e controlar as quinas e esquinas do meio ambiente construdo. (OUTTES, 1991, f. 20). Na passagem para o sculo XX, em reao transformao da economia escravocrata para capitalista, a medicina social ser instrumentalizada pelo poder estatal afim de garantir no s a salubridade fsica e moral da populao, mas a produtividade das massas trabalhadores para o capital.Os palacetes que vieram a povoar Derby, Rosa e Silva, Rui Barbosa e Beira-Mar (atual Boa Viagem), como aquele que figura em A filha do Advogado, foram um elemento entre outros que a burguesia recifense adotou como parte de seu novo estilo de vida moderno, destacando-se tambm o carro. Este conjunto de obras foram do interesse de uma parcela da burguesia local, geralmente oriunda das atividades comerciais, que aos poucos se desloca para os subrbios, vidas pelo new way of life destes aprazveis locais. Principalmente depois que as condies bsicas foram lanadas e que o automvel redimensionou a noo de distncia do sculo XIX. [...] Estes novos espaos se tornaram o local propcio para manifestaes civis e de atividades caractersticas da modernidade to almejada. (MOREIRA, 1994, p. 136).Muitos desses novos, modernos espaos aparecem de algum modo em filmes do Ciclo: a praia de Boa Viagem e a Avenida Beira-Mar (Veneza Americana, 1925; As Grandezas de Pernambuco, 1926); a Exposio Geral de Pernambuco em 1924 no recm-construdo Derby (Veneza Americana); o novo porto (Veneza Americana); as ruas comerciais centrais e seu movimento de pessoas e carros (Veneza Americana, A Filha do Advogado); as novas avenidas do Bairro do Recife; os palacetes (Aitar da Praia, 1925; A Filha do Advogado).Para Paulo Cunha, o ethos central do Ciclo do Recife foi a encenao do fenmeno da modernidade burguesa dos anos 20 em Recife. Havia, no Recife, um novo modo de querer ser. De desejar se vestir, habitar, trabalhar, se movimentar como na metrpole , no para se legitimar, mas para fingir se esquecer do provincianismo e adotar as formas da vida cosmopolita. (CUNHA, 2010, p. 82). Esse projeto de modernidade inclui a representao visual a partir das imagens tcnicas (a fotografia e, posteriormente, o cinema), criadas e disseminadas a partir da Frana.O que as imagens tcnicas revelam em primeiro lugar que a questo perifrica no era a de ser igual ao outro, mas sim a de ser o outro. Melhor dizendo: eliminar a alteridade pela incluso total do padro visual hegemnico. Contra a dualidade da tenso centro-periferia, contra o binarismo do conflito moderno-tradicional, a cidade se pretende simplesente outra, mas outra em si mesma. Mais do que negociar com a alteridade que uma forma de construo social , o Recife vai negociar diretamente com a exterioridade ou seja, com aquilo que dado como uma outra geografia, uma outra lngua, uma outra histria. O que ocorre uma forma muito precisa de apropriao, que comea com um apagamento do passado. (CUNHA, 2010, p. 63).A adoo do projeto moderno teve como requisito a imolao do mundo barroco do qual Recife se gabava de ter sido centro. Como explica Ana Rita S Carneiro, o Recife colonial que deve sucumbir para reverter o processo de decadncia econmica da regio (CUNHA, 2010, p. 39). Assim, enquanto se promovia a morte e ressurreio da cidade fsica, o cinema se prestava fabulao imagtica e narrativa necessria construo do novo imaginrio moderno. A mise en moderne dos filmes do Ciclo foi uma tentativa de autocolonizao do imaginrio que permitisse a transformao em seu ideal de metrpole do centro do Ocidente e no de sua periferia, ascender constelao do cosmopolitismo.O desejo recifense de ser uma grande cidade europeia nos trpicos no novo: A experincia estrangeira como uma mitificao, a ser imitada talvez no tenha sido bem aquilatada at a atualidade (PONTUAL, 2005, p. 31). Mas essa histria de mitificao no uma de continuidade. Virgnia Pontual situa o sculo XIX como aquele onde A Europa civilizada, do liberalismo, do mercantilismo, das luzes, da moda impe-se como referncia maior (2005, p. 32), vindo a substituir a imagem de cidade barroca cujo modelo era Portugal. nesse sculo que precedente que as influncias inglesas e francesas iro se estabelecer como marcantes, com a vinda das misses francesas e sua atuao importante nos melhoramentos urbanos do Recife realizados nesse sculo, marcados pelo neoclassicismo e j no mais pelo barroco.O impacto dessa mudana de paradigma j sentido na tradio imagtica da cidade. A partir de 1840 surgem os primeiros lbuns retratando a fisionomia da cidade [...] [que] informam um Recife ora majestoso ora buclico, diverso dos relatos dos viajantes (PONTUAL, 2005, p. 31). Enquanto muitos viajantes do conta da sujeira da cidade, ela aprendia a se retratar cada vez mais distante de sua realidade e mais prxima de sua idealidade.Da direta influncia francesa resultam obras no Porto, inovaes nos servios de saneamento e a obra do Teatro Santa Isabel, criada pelo arquiteto francs Louis Lger Vauthier. Vauthir chega a Pernambuco em 1840, vindo a convite do governador Francisco do Rego Barros, mais tarde nomeado Conde da Boa Vista, e aqui assume a Repartio de Obras Pblicas. Nessa poca, a construo do Teatro de Santa Isabel, em estilo neoclssico, e o Mercado de So Jos, todo em ferro, iro marcar a renovao da imagem da cidade, ocupando lugar de destaque na iconografia do Recife da em diante e marcando o advento do moderno: a concepo mais forte que se impe, sobrepondo-se s concepes barrocas do setecentos (PONTUAL, 2005, p. 34), concepes essas que continuaram existindo na configurao da cidade. A converso ao credo do modernismo foi uma tentativa de salvao. Sem nunca ter se recuperado plenamente da crise no sculo XVII, o complexo agroexportador de acar nordestino do qual Recife era o centro continuava seu declnio, enquanto outras regies do pas conheciam novos impulsos econmicos graas ao aumento da demanda de outros insumos primrios como o caf e a borracha pelos pases centrais do sistema capitalista. Na segunda metade do sculo XIX, aportaram no Brasil ideologias europeias, dentre as quais se destacaram o liberalismo e o positivismo. A fermentao dessas ideologias, especialmente o positivismo, fez disseminar o iderio de uma Regenerao Nacional: uma completa reforma moral da sociedade brasileira baseada no progresso e na cincia para findar a imagem de uma sociedade e de suas cidades marcadas pelo signo da imundcie, da disfuncionalidade, da promiscuidade e da pavorosa concentrao das massas nos centros (MOREIRA, 1994, f. 53). O avano do capitalismo europeu e norte-americano em direo Amrica do Sul em busca de matrias primas e mercado consumidor de seus produtos, com forte penetrao britnica no Brasil colaborou, junto com esses ideais, para a desagregao da antiga sociedade colonial. nesse contexto ideolgico de rupturas e de declnio irreparvel ta antiga ordem que Pernambuco decide modernizar para salvar-se ao menos do declnio econmico.O projeto moderno recifense como exposto nos filmes do Ciclo do Recife tem naturalmente suas particularidades, o que o diferencia ainda mais de seus correspondentes no Brasil e na Europa, como o cinema de So Paulo e o da Repblica de Weimar. Na opinio de Cunha, o Ciclo do Recife, ao mesmo tempo em que pe em cena o personagem baudelaire-benjaminiano do flneur que passeia pelas agitadas ruas do centro da cidade, paradoxalmente, [...] parece tambm um movimento de oposio frontal ao anonimato progressivo ao qual a cidade moderna condena seus cidados; os filmes seriam um recurso encontrado pela multido solitria para criar uma poesia visual que a liberasse do apagamento. (2010, p. 75).A Berlim dos anos 20 foi palco de muitos dos filmes pertencentes ao gnero conhecido como city film, que, segundo Barbara Mennel, thematize urbanity, especially the periods understanding of the dangers and pleasures of modern urban life: crime, anonymity, a loosening of morality, unemployment, and class struggle on the one hand, and movement, speed, entertainment, and liberated erotics on the other. (MENNEL, 2008, p. 23)[footnoteRef:1]. [1: tematizam a urbanidade, especialmente a compreenso do perodo sobre os perigos e prazeres da vida urbana moderna: crime, anonimidade, um afrouxamento da moral, desemprego e luta de classes, de um lado; e movimento, velocidade, diverso e liberdade sexual, de outro. (traduo nossa).]

Jean-Claude Bernardet (1980) aponta que, no cinema brasileiro da dcada de 20, a cidade foi retratada de duas formas antagnicas e igualmente ingnuas: numa, a cidade parece encarnar a perdio e a decadncia moral para os puros seres vindos do campo; noutra, uma euforia diante da urbanizao galopante (BERNARDET, J-C., 1980, p. 146) prevalece nas telas e a cidade vista como progresso ou espao de libertao.Dos filmes recifenses, podemos dizer que se detiveram apenas na idealizao da cidade, sem os esteretipos negativos do cinema brasileiro ou mesmo as nuances ticas do city film. No h referncias ao conflito de classes no espao urbano, que no Brasil levaram s greves gerais de 1917 e 1919, das quais participou Pernambuco[footnoteRef:2]; pobreza urbana, com seus mucambos que se multiplicavam; nem violncia urbana, seja a criminalidade comum (furtos, roubos), seja aquela ligada aos marcantes confrontos polticos levantes militares, confrontos entre faces rivais e assassinatos polticos , episdios nada infrequentes no Pernambuco das primeiras dcadas do sculo XX. Das mazelas sociais, apenas a doena figurou com clareza em um filme de fico, publicitrio: Um ato de humanidade (1925) mostra um jovem sifiltico que mora nas ruas e curado por um remdio milagroso que vem a ser o produto a ser vendido. Tambm ao menos um natural, Pela Sade (1924), se refere diretamente s obras sanitrias do perodo Lorto.Comment by Saskia: Falar do movimento operrio [2: J em relao ao ambiente rural, Revezes... (1927) pe em cena o confronto de uma comunidade contra um violento coronel no Agreste pernambucano, mas mesmo em relao ao campo o tpico parece ser uma exceo.]

Podemos creditar essas notveis ausncias e os contrastes em relao a outros filmes da poca, que configuram uma posio de acriticismo, distncia entre o projeto de imagem e a realidade, dose de utopia da ambio moderna em Pernambuco, que pretendia assentar as bases de um modo de vida importado sobre uma realidade provinciana que se procurou dissimular. As fices do Ciclo foram quase todas melodramas, onde figuravam lutas corporais, traies e mesmo assassinatos. Para Paulo Cunha, estes eventos passaram a abrigar os riscos e medos da aventura moderna, num modo conveniente ao melodrama burgus. o risco era uma forma particular de lidar com a modernizao perifrica. Por isso, o medo servia tambm como uma figurao. (CUNHA, 2010, p. 92).Coube ao campo o papel de ambiente de violncia, de vulnerabilidade que na cidade foi sublimado. Os ciclos regionais brasileiros contam com ttulos que enaltecem o campo, o que no ocorre no Ciclo do Recife.A julgar pelas cpias preservadas e pelas sinopses, nos filmes de enredo pernambucanos no iremos encontrar a exaltao do campo enquanto espao idlico, reduto da simplicidade e dos valores mais elevados. Enquanto Revezes... e Sangue de irmo reforam a violncia de um mundo historicamente fundado na figura da autoridade e na desigualdade de classes, filmes como Jurando vingar e Aitar da Praia, mesmo exibindo um campo economicamente lucrativo e as atraentes belezas naturais do litoral, respectivamente, acabam por enaltecer o espao urbano, mais precisamente a cidade do Recife, onde todos desejam viver. O lugar do progresso e da modernidade to desejados a cidade. (ARAJO, L., 2013, p. 21)A viso da cidade como progresso, futuro e destino no deixam de remeter ao pensamento de Voltaire, tal como colocado por Schorske (1998). Em sua tipologia, Voltaire faz parte do primeiro grupo, o dos filhos do Iluminismo que viam a cidade como virtude. Para o filsofo francs que elegeu Londres como nova Atenas, industry and pleasure era o que distinguia a cidade e juntas formavam civilization (SCHORSKE, 1998, p. 38). O espao urbano era o ambiente propcio para o progresso, a liberdade, o refinamento de seus indivduos e a vida do conforto do rico aristocrata cuja presena, contrastante com a pobreza que lhe cerca, serviria de exemplo edificador a estimular a ascenso social.Comment by Saskia: O caminho natural, para Voltaire, do campo para a cidade, como em Aitar da Praia, onde os protagonistas Cra e Aitar reencontram-se e retomam sua histria de amor interrompida por intrigas anos atrs, na poca em que viviam numa remota comunidade de pescadores. Ambos encarnam a perfeita asceno social: depois de sados da praia, ressurgem como perfeitos burgueses citadinos em Recife. Numa desconcertante semelhana com o rico urbanita de Voltaire (the spendthrift aristocrat pursuing a life of ease in the city, a true child of the pleasure principle[footnoteRef:3]; SCHORSKE, 1998, p. 39), para Aitar [3: o aristocrata perdulrio que levava uma vida de cio na cidade, um verdadeiro filho do princpio do prazer, - traduo de Pedro Maia Soares: Pensando com a histria (Cia. das Letras, 2000).]

a modernizao implica em mudana de classe e, consequentemente, abandono do trabalho braal ou de qualquer trabalho. No palacete, o momento de lazer de Aitar e seus anfitries aproxima-se do abatimento, com todos eles sentados, sem outra ocupao alm de ler jornais e revistas. (ARAJO, L., 2013, p. 20)Essa viso da modernidade parece em tudo condizente com a modernizao urbanstica posta em prtica. Mas se o cinema recifense estava com ela alinhado, o mesmo no se pode dizer de parte de outros artistas. Vrios homens de letras da poca demonstraram posies divergentes em relao s obras, de ambiguidade crtica mordaz. A perda irremedivel do patrimnio arquitetnico e urbanstico da cidade comoveu alguns artistas, escritores e literatos que proferiram crticas (MOREIRA, 1994, f. 101). Uma incipiente pesquisa nos revela alguns nomes de maior e menor expresso a se pronunciarem, poca ou mesmo anos depois, ao verem as transformaes: Mrio Sette[footnoteRef:4], Policarpo Feytosa[footnoteRef:5], Gilberto Freyre[footnoteRef:6], Joaquim Cardozo[footnoteRef:7]. Mesmo Saturnino de Brito tambm critica o estilo terra arrasada da reforma levada a cabo no Recife como nos conta Roberto Arajo (1996, f.79-80), o que chega a surpreender, visto que o objetivo final das reformas era precisamente o de substituir a arquitetura antiga da cidade, insalubre, por um novo traado de acordo com o que preconizava o prprio sanitarista.Comment by Saskia: Consultar ArruarComment by Saskia: Consultar 2 Recifes [4: Mrio Sette (1886-1950) foi jornalista e cronista recifense; crticas destruio do patrimnio podem sem encontradas em seu livro Arruar: Histria pitoresca do Recife Antigo, de 1932.] [5: Policarpo Feytosa era pseudnimo de Antnio Jos de Melo e Souza (1867-1955), jornalista e poltico potiguar, ex-presidente do Rio Grande do Norte. Crticas nova arquitetura ecltica da cidade e seus automveis esto presentes em Dois Recifes e sessenta anos no meio, publicado em 1945.] [6: Um apanhado das crticas que fez o historiador, antroplogo e socilogo Gilberto Freyre (1900-1987) modernidade recifense e seu desprezo pelas tradies pode ser encontrado em PALLARES-BURKE (2014).] [7: Joaquim Cardozo (1897-1978) foi ao mesmo tempo poeta e engenheiro, exercendo tambm a profisso de professor universitrio. A ideologia dominante de sua profisso no o impediu de publicar, em 1924, durante administrao de Lorto, um poema crtico das transformaes da cidade, na Revista do Norte (Ano II, 2 quinzena, novembro de 1924), reproduzido em Melo, 2000, f. 52-3.]

A cidade do Recife chegara ao fim de seu primeiro surto cinematogrfico completamente remodelada: um moderno porto, novas avenidas, bondes eltricos, palcios e palacetes em estilo ecltico, uma praia urbana, perda de grande parte da arquitetura tradicional do Bairro do Recife, maior integrao com as regies suburbanas, expanso dos bairros centrais, aumento de seu parque industrial, praas e largos revitalizados. E tambm um enorme inchao populacional graas no s ao crescimento vegetativo, mas migrao para a cidade de mo de obra campesina dispensada graas ao processo de modernizao mecnica do complexo agroindustrial o nmero de habitantes aumentou de 238 mil em 1920 para o nmero estimado de 290 mil em 1930 (MOREIRA, 1994, f. 142). Aumenta tambm o nmero de mocambos em vrias reas da cidade.Disse Lewis Mumford: A poltica sem dvida possui muito de teatro. Na poltica os ingredientes que resultam no teatro esto presentes: o cenrio, o pblico e no esqueamos: o ator... (MUMFORD apud MELO, 2000, f. 73). Alclia de Albuquerque e Melo aplica o pensamento de Mumford a o teatro urbano, onde a cidade o palco no qual o governante, enquanto ator, exibi-se audincia citadina.Imaginamos que essa uma anlise precisa da relao poltica numa democracia razoavelmente ampla, mas transpondo da Recife dos anos 30 analisada por Alclia a Recife dos anos 20, cremos ser ainda mais exato analisar que atores e audincia eram indistintos no contexto suprapoltico do movimento cultural que grassava a poca, onde tanto os governos estaduais como a burguesia citadina trabalharam o palco urbano como espao de autoencenao do espetculo da modernidade perifria. Assim, a modernizao do Recife fora tambm uma questo de (auto)imagem:Era preciso que se produzisse a imagem de uma cidade higienizada e organizada, como uma estratgia para rever o processo de decadncia econmica em que se encontravam a cidade e a regio. Era patente que a cidade portuguesa colonial no atraa mais investimentos; era preciso mostrar uma cidade moderna. (MOREIRA, 1994, f. 163).Conjectura Fernando Moreira que aceitvel a hiptese de que as elites no apenas adotavam uma posio pragmtica visando aos benefcios e lucros advindos da modernizao urbana, mas que tambm estavam seduzidas pelo fascnio proposto pela modernidade (1994, f. 164). Em texto posterior, afirma que a reforma do bairro do Recife j era acalentada desde a metade do sculo anterior, mas s tornaram-se plausveis quando foram geradas condies mais propcias com a prpria euforia do movimento ideolgico de modernizao nacional e com a Reforma Passos no Rio de Janeiro (MOREIRA, 1999, p.143).Lucila Bernardet, sobre o Ciclo, se surpreende com a dificuldade de explicar sua existncia:No vemos [...] histria ou explicao mais cientfica ou lgica para o surgimento de filmes de enredo, com as caractersticas que teve (depois do momento inicial mais ou menos obscuro, uma sbita consolidao e consagrao ampla e relativamente duradoura, e afinal um declnio e definhamento discreto at a silenciosa extino). A impresso que tem a de que, de repente, se alastrou uma espcie de febre de fazer cinema de enrede, uma cineastite aguda e contagiosa. Esta aliou-se a uma outra febre, de uma espcie de me-ufanismo-de-minha-provncia, generalizada em Pernambuco na poca. (RIBEIRO, 1970, p. 70-1) Durante a dcada de 20, houve, assim cremos, uma convergncia ideolgica entre as imagens tcnicas e as imagens urbansticas: a criao de ambas foi em boa medida catalisada pela aspirao ao modo de vida moderno.O Ciclo do Recife conheceu o fim em 1931, com a chegada do cinema sonoro sincronizado. A novidade esttica dos filmes falados estrangeiros elevou o j alto padro da concorrncia alm das precrias possibilidades de produo em Recife, que no pde atualizar-se dado o alto custo da nova tecnologia audiovisual, proibitiva para um sistema produtivo diletante como eram os ciclos regionais em geral.