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O CLARO ESPELHO DO MUNDO Reflexões sobre ética e estética em Schopenhauer Por Eduardo Carli de Moraes I. UMA FILOSOFIA EM QUE A VONTADE É RAINHA O conhecimento, em geral, tanto racional como puramente intuitivo, procede, pois, da vontade e pertence à essência dos graus mais altos da sua objetivação. (…) Originariamente ligado ao serviço da vontade e ao cumprimento dos seus desígnios, ele permanece quase continuamente pronto a servi-la; é assim em todos os animais e em quase todos os homens.” ARTHUR SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação, 2º Livro.

O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

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O CLARO ESPELHO DO MUNDO

Reflexões sobre ética e estética em Schopenhauer

Por Eduardo Carli de Moraes

I. UMA FILOSOFIA EM QUE A VONTADE É RAINHA

“O conhecimento, em geral, tanto racional como puramente intuitivo,

procede, pois, da vontade e pertence à essência dos graus mais altos

da sua objetivação. (…) Originariamente ligado ao serviço da vontade e

ao cumprimento dos seus desígnios, ele permanece quase

continuamente pronto a servi-la; é assim em todos os animais e em

quase todos os homens.”

ARTHUR SCHOPENHAUER.

O Mundo Como Vontade e Representação, 2º Livro.

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Clément Rosset, em sua obra Schopenhauer: Filósofo

do Absurdo, enfatiza a importância histórica do autor de O

Mundo Como Vontade e Representação, destacando que a

primazia concedida à Vontade, e não à Razão, está entre as

inovações que tornaram o filósofo uma figura de tamanha

influência sobre a posteridade.

Rosset considera Schopenhauer como um precursor

de grandes correntes de pensamento posteriores a ele, tendo influenciado os

rumos da psicanálise freudiana, do procedimento “genealógico” nietzschiano,

do existencialismo francês, dentre muitos outros pensadores e artistas:

“Son influence est néanmoins sensible chez certains

penseurs du XXe siècle: par exemple chez Cioran; chez

Georges Bataille qui lui emprunte sans le savoir, dans

L’Érotisme, plusieurs de ses thèmes fondamentaux; enfin

dans tout le courant dit ‘existentialiste’ qui lui

emprunte, toujours sans le savoir, les thèmes de la

facticité et de l’absurdité de l’existence. Ainsi La nausée

de Sartre pourrait-elle être consideré comme une sorte

de roman de jeunesse de Schopenhauer.”1

Elenca ainda as influências e reverberações que Schopenhauer exerce

nas obras de pensadores e literatos como Marcel Proust, Henri Bergson e

Jorge Luis Borges. Apesar do imenso impacto que exerce, em especial sobre o

século XX, Schopenhauer é considerado por Rosset como um pensador que, de

modo semelhante à Nietzsche, foi um “inatual”, estrangeiro a seu tempo, uma

vez que rompeu com um certo culto ao racionalismo então dominante:

“Schopenhauer est un philosophe inactuel, étranger à

son temps. (…) La philosophie de Schopenhauer surgit à

une époque òu la foi en une raison directrice et

ordonnatrice de toutes choses, loin de s’affaiblir, s’est 1 ROSSET, Clément. Écrits Sur Schopenhauer. Préface. Pg. 6. Paris: PUF, 2001.

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presque exacerbée au travers du grand espoir que le

XVIIIe siècle avait attaché au développement du

rationalisme, pour abourtir aux constructions de Hegel

qui voit dans le devenir du monde la réalisation

progressive de l’Esprit absolut, au point d’assimiler

réalité et rationalité.” 2

Prenunciando o que dirá Freud, Schopenhauer sublinha com recorrência

que os conceitos racionais possuem uma existência secundária, derivada,

dependente da Vontade. “Em regra geral, o conhecimento permanece sempre

a serviço da vontade, do mesmo modo que ele nasceu para este destino e está,

por assim dizer, implantado sobre a vontade como a cabeça está sobre o

tronco”.3

É o que Jair Barboza também destaca, ao dizer que “é chegada a vez do

sentimento ganhar um inédito estatuto, selando aquilo que pode ser

considerado como um mérito de Schopenhauer na história da filosofia e que

tanta influência exerceu sobre a psicanálise: o primado da vontade sobre o

intelecto.”4 É o que o psicanalista Sándor Ferenczi (1873 – 1933) também

aponta: “As verdades da psicanálise são inteiramente compatíveis com uma

filosofia que vê a essência e origem do universo num ímpeto cego [Vontade],

não inteligente e não moral, como Schopenhauer o concebe.”5 Como também

frisa Anatol Rosenfeld, que prefaciou o excerto dos Parerga e Parelipomena

publicado no Brasil como “Metafísica do Amor, Metafísica da Morte”:

“Freud sempre negou ter lido Schopenhauer, mas a

influência indireta, através de múltiplos canais

subterrâneos, é tão evidente que não é preciso insistir

2 ROSSET, Clement. Schopenhauer, philosophe de l’absurde. Paris: Presses

Universitaries de France (PUF), 1967.3 SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. Rio de Janeiro:

Contraponto. 2ª ed, 2004. Trad. M. F. Sá Correia. Livro III, #33, pg. 186.4 BARBOZA, Jair. A Metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Editora

Humanitas – FFLCH-USP, 2001. Pg. 33.5 FERENCZI. Psicanálise I. In: Obras Completas. São Paulo: Martins Fontes, 1991. P.

216.

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nisso. É a obra de Schopenhauer que pela primeira a vez

focalizou sistematicamente a atenção nos fenômenos

sexuais, inspirando com isso um exército de pensadores

e autores, de Freud a Weininger, de Forel a D. H.

Lawrence. (…) Toda a teoria freudiana de que o impulso

sexual é a raiz inconsciente do nosso comportamento –

representando o consciente uma crosta superficial – é de

origem schopenhaueriana. A suposição freudiana da

preponderância do irracional e inconsciente sobre o

racional e consciente – base da metafísica de

Schopenhauer – tornou-se, desde então, um lugar

comum e pode-se dizer que o nosso tempo, no seu

pessimismo quanto à capacidade do “homo sapiens” de

guiar-se pelo intelecto e pela razão, é tributário direto

ou indireto da concepção de Schopenhauer, e o

comportamento atual da humanidade parece ser um

único, gigantesco esforço destinado a provar a

metafísica do grande pessimista.”6

Uma dificuldade comum que o leitor de Schopenhauer tende a enfrentar

ao se defrontar com seu conceito de Vontade é o fato deste transcender a

esfera humana. A Vontade de que fala Schopenhauer não é privilégio humano,

nem mesmo está presente exclusivamente nos animais, mas é vista como a

essência de todos os fenômenos, inclusive os vegetais e minerais. Esta

Vontade “anima” todas as forças e energias

presentes no conjunto da natureza. É o que

Aramayo explica, frisando que ao utilizar o

termo “Vontade”,

“Schopenhauer utilise seulement la

meilleure des dénominations possibles,

puisque notre vouloir humaine

n’embrasse pas tout le domaine de la

6 ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. Editora Perspectiva, Coleção Debates.

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volonté au sens large du terme. La volonté recouvre em effet non

seulement les volitions humaines, mais en outre les appétits

animaux et toutes les forces ou énergies qui animent l’ensemble de

la nature.”6

Portanto, é essencial que nos desembaracemos da noção comum de vontade

que possuímos, ou seja, a concepção do senso comum que vê na vontade uma

espécie de motivo consciente que impele para a ação. Em outras palavras,

não devemos limitar o conceito de vontade a um desejo humano do qual nos

apercebemos consciontemente e que pode, se não for contraposto por um

interdito ou outro desejo mais forte, conduzir-nos à busca por sua satisfação.

A Vontade que Schopenhauer têm em mente não possui como um de seus

atributos essenciais a consciência, de modo que esta Vontade pode operar (e

de fato opera) de modo “cego” e “inconsciente” em várias de suas

manifestações. Deste modo, haveria uma espécie de “Inconsciente Cósmico”

(no sentido de um Cosmos Inconscientemente Desejante), do qual a vontade

consciente e inconsciente dos seres humanos não passaria de um exemplar,

uma manifestação, uma objetivação:

“…a Vontade Cósmica tem o hábito de abandonar a

eterna noite da inconsciência e despertar para a vida

como uma vontade individual, para retornar mais tarde

à sua inconsciência originária depois de ter sonhado o

pesadelo da vida.”7

De modo que Schopenhauer concede o conceito de Vontade como a

“chave” para a decifração de todos os enigmas do mundo, comparando sua

filosofia à cidade de Tebas, cujas mil portas conduziam ao mesmo centro.

II. ÉTICA DA COMPAIXÃO

O reconhecimento da essência comum compartilhada por todos os

fenômenos do Universo conduz à uma noção ética baseada na “unidade da

7 ARAMAYO. Op cit. P. 19.

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vida” por detrás de suas diferentes manifestações. De modo que, segundo uma

célebre e eloquente imagem de Schopenhauer, o carrasco que faz mal à sua

vítima está fazendo mal a si mesmo, já que fere no outro a mesma essência

que carrega em si.

“Les différences entre la victime et son bourreau

n’existent que sous le principe d’individuation, c’est-à-

dire dans le temps. Mais lorque se dissipe ce que la

sagesse indienne apelle le voile de Maya, la vision de ces

apparences s’évanouit et on reconnaît alors que tous les

phénomènes du monde sont la manifestation d’une seule

et unique essence comunne dont tous identiquement

procèdent.”8

O apelo à noção de véu de Maya, uma espécie de correlato hindu da

Caverna de Platão, é constante em Schopenhauer. Quando o sujeito vence a

ilusão de se considerar como um indivíduo separado do resto, e supera as

considerações ditadas pelo princípio de razão, mergulhando numa intuição

imediata que o constitui como “espelho do mundo”, adquire um conhecimento

direto da identidade da vontade em todos os seus fenômenos. E isto possui

consequências éticas muito importantes, tornando o sujeito capaz de “fazer

sua a miséria do mundo inteiro”, como explica o filósofo no seguinte trecho:

“Quando o véu de Maya, o princípio de individuação, se

levanta diante dos olhos de um homem, a ponto de este

homem já não fazer uma distinção egoísta entre a sua

pessoa e a de um outro, quando ele participa tanto nas

dores do outro como se fossem suas, e assim chega a

ser, não só muito caridoso, mas completamente pronto a

sacrificar a sua pessoa, se pode com isso salvar a de

muitos outros, então é evidente que este homem, que

em cada ser reconhece a si mesmo no que tem de mais

íntimo e mais verdadeiro, considera também as dores

8 ARAMAYO. Op Cit. P. 21.

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infinitas de tudo aquilo que vive como sendo as suas

próprias dores, e assim faz sua a miséria do mundo

inteiro. Daí em diante, nenhum sofrimento lhe é

estranho. Todas as dores dos outros (…) pesam sobre o

seu coração como se fossem suas.”9

O filósofo romeno Cioran (1911-

1995), cuja obra possui uma alta carga de

influência de Schopenhauer, enxergou

muito bem o quanto sofreria

descomunalmente um homem que

possuísse uma “sensibilidade ao

sofrimento” e uma “aptidão para a

piedade” extraordinárias. Mas destaca

muito bem o estado de exceção que

representa uma tal capacidade de

empatia, destacando o quanto o egoísmo

e a tirania do princípio de individuação

representam regras raramente superadas:

“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante

de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser

contemporâneo de todas as penas e de todas as

angústias de um instante qualquer, esse – supondo que

tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a

maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil

imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder

ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de

nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é

porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores;

as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de

ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm

suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada

9 SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. Op Cit. Livro IV, #68,

pg. 397.

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sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou

ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a

única constante na versatilidade de nossos

sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos.

Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de

agonias que se arrastam em torno de nós, todas as

vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos

corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos

uma memória milagrosamente atual que conservasse

presente a totalidade de nossas penas passadas,

sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas

deficiências de nossa imaginação e de nossa

memória.”10

10 CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição (Précis de Décomposition). Tradução de

José Thomaz Brum. Editora Rocco. Página 34.

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III. DESEJO E SOFRIMENTO

Ecoando a mensagem de Buda, Schopenhauer, após constatar a

onipresença da Vontade como coisa-em-si de todos os fenômenos, irá

constatar o caráter cego e sem fundamento desta Vontade, chegando à

conclusão de que o sofrimento humano, em todas as suas formas, é decorrente

de nossa submissão, equiparada aos sofrimentos de personagens míticos como

Íxion e Sísifo, à procissão infindável de desejos, cujas satisfações particulares

não conduzem jamais à nenhuma felicidade duradoura. Chegando às raias

da misantropia, de um desprezo quase generalizado pelas “massas” e seus

modos de pensar, proceder e existir, diz o filósofo:

“Na verdade, custa a crer a que ponto é insignificante,

vazia de sentido, aos olhos do espectador estranho, a

que ponto é estúpida e irrefletida, para o próprio ator, a

existência que a maior parte dos homens leva: uma

espera tola, sofrimentos estúpidos, uma marcha

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titubeante através das quatro idades da vida, até esse

termo, a morte, na companhia de uma procissão de

idéias triviais. Eis os homens: relógios; uma vez

montados, funcionam sem saber por quê.” 11

De modo que Schopenhauer, levando ao ápice seu “pessimismo”, chega

a sugerir que a existência da maioria dos humanos não passa de um pêndulo

oscilando entre o sofrimento e o tédio. O seguinte trecho é uma boa síntese

destas idéias:

“Todo querer procede de uma necessidade, isto é, de

uma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação

põe-lhe um fim; mas, para cada desejo que é satisfeito,

dez pelo menos são contrariados; além disso, o desejo é

demorado, e as suas exigências tendem para o infinito; a

satisfação é curta, parcimoniosamente medida. Mas este

contentamento supremo é apenas aparente: o desejo

satisfeito cede lugar em breve a um novo desejo; o

primeiro é uma decepção ainda não reconhecida. A

satisfação de nenhum desejo pode conseguir

contentamento durável e inalterável. É como a esmola

que se lança a um mendigo: ela salva-lhe hoje a vida

para prolongar a sua miséria até amanhã. – Enquanto a

nossa consciência está preenchida pela nossa vontade,

enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo,

pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz

nascer, enquanto somos súditos do querer, não existe

para nós nem felicidade duradoura, nem repouso.”12

Porém, o pessimismo schopenhauriano não é absoluto, nem o labirinto

que ele pinta com tintas tão sombrias é irremediável e sem saída. Novamente

ecoando os ensinamentos orientais que tanto apreciava, o filósofo sugere que

há sim um modo de se libertar do jugo do desejo e seu séquito de sofrimentos

11 SCHOPENHAUER, op cit, pg. 338.12 Idem, pg. 206.

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e aborrecimentos. A dissolução do eu, de que tão frequentemente falam

muitas escolas do budismo, re-aparece em Schopenhauer, que concebe a

“salvação” ou o Nirvana nos termos de uma superação do “princípio de

individuação”. É justamente o princípio de individuação, a afirmação de um

“ego” separado do cosmos, que funcionaria como um véu de Maia, apartando

o homem da percepção da unidade de essência entre todos os fenômenos.

Portanto, para o “Samsara” da dor e do tédio, que Schopenhauer descreve

como sendo consubstanciais à ditadura do desejo, haveria um “Nirvana” de

quietude e repouso, estado em que o desejo se cala e o sujeito se faz

contemplação cristalina do cosmos.

“…a supressão espontânea e total, a negação do querer,

o verdadeiro nada de toda vontade, em resumo, esse

estado único em que o desejo se detém e se cala, em que

se encontra o único contentamento que não se arrisca a

passar, esse único estado que liberta de tudo… eis o que

chamamos o bem absoluto… eis onde vemos o remédio

radical e único para a doença, enquanto que todos os

outros bens são puros paliativos, simples calmantes.”13

13 SCHOPENHAUER, op cit, pg. 380.

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IV. A IMPORTÂNCIA DA ARTE EM SUA RELAÇÃO COM A

VONTADE

A constatação da quase universal submissão do conhecimento aos

interesses e impulsos da Vontade, de que tratamos há pouco, não impede que

o filósofo considere a possibilidade de uma “libertação” deste jugo: “em

alguns homens o conhecimento pode subtrair-se desta escravidão, rejeitar

este jugo e permanecer puramente ele mesmo, independente de todo alvo

voluntário, como puro e claro espelho do mundo: é daí que procede a arte.” 14

A arte possui para Schopenhauer o poder de suprimir, ainda que por um

tempo limitado, esta submissão do conhecimento à vontade. Na experiência

estética consumada, o sujeito, absorvido em contemplação profunda, vivencia

várias “modificações” notáveis: antes dominado pelo querer, torna-se “sujeito

puro do conhecer”, isento de vontade; o princípio de individuação, que causa a

ilusão da individualidade, torna-se inoperante, de modo que “nos esquecemos

de nossa individualidade, da nossa vontade, e só subsistimos como puro

sujeito, como claro espelho do objeto, de tal modo que tudo se passa como se

só o objeto existisse, sem ninguém que o percebesse, que fosse impossível

distinguir o sujeito da própria intuição e que ambos se confundissem no

mesmo ser.”15

Schopenhauer procura descrever o modo como, através da arte, é

possível uma superação da dualidade sujeito-objeto, característica do mundo

14 SCHOPENHAUER. Op. Cit. Livro II, #27, pg. 161.15 Idem. Livro III, #34, p. 187.

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como representação. Quando atinge o estado de contemplação profunda que

caracteriza a experiência estética, o sujeito, que antes “enxergava” uma clara

distinção entre si mesmo e os objetos representados, passa a “confundir-se”

com eles, constituir com eles uma unidade, percebendo a unidade de essência

que os une: a vontade. “A vontade é uma só e idêntica no objeto contemplado

e no indivíduo que ao elevar-se a esta contemplação toma consciência de si

mesmo como puro sujeito; ambos, por conseguinte, se confundem, visto que

eles são, em si, apenas a vontade que se conhece a si mesma”16 (L3, 34, p

189).

É o que Jair Barboza expõe nos seguintes termos:

“Doravante não se trata mais do conhecimento

individual, comum, cotidiano, brotando do intelecto-

lanterna, correlato do princípio de razão em conluio com

a vontade individual, mas sim do conhecimento estético,

independente do princípio de razão, ocupado com aquilo

que sempre é e nunca vem-a-ser. (…) O conhecimento,

que originariamente era mekané, servidor da vontade,

passa a ser desinteressado e a vontade é negada, já que

com a supressão da individualidade a vontade renuncia

aos fins desejáveis de serem atingidos, logo, os motivos

não têm mais eficácia sobre ela.” “Resta tão-só uma

unidade entre contemplador e contemplado, a ser

considerada como mais um dentre os reflexos da

unidade cósmica.”12

A experiência estética, pois, é descrita como um

momento beatífico, de iluminação, em que um eu

antes carregado de desejos e interesses pessoais

torna-se um neutro e límpido “sujeito puro do

conhecer”. É o que Barboza exprime: “Indiferente

é se se está num paço real ou num calabouço, se

16 Idem. Livro III, #34, p. 189.

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quem olha é um rei ou um prisioneiro. A impessoalidade do instante é total. O

olho que vê não é de um particular, mas o ‘claro olho cósmico’… Este estado

estético é plenamente reconfortante: ao contemplar uma árvore, o claro olho

cósmico não procura sua explicação, deixa-a tranquilamente diante de si,

perde-se na sua imagem, fruindo-a…”

Não seria despropositado, tendo isto em mente, sugerir que um poeta

como Alberto Caeiro, alter-ego de Fernando Pessoa, seja uma espécie de eu-

lírico que encarna em algumas de suas poesias a vivência estética descrita por

Schopenhauer. Em um poema clássico como “O Guardados de Rebanhos”, de

1911-1912, Caeiro enfatiza sua libertação do jugo da Vontade (“não tenho

ambições nem desejos / ser poeta não é uma ambição minha…”), manifesta

desprezo pela “racionalidade” (“pensar incomoda como andar à chuva”;

“pensar é estar doente dos olhos”), e descreve um “olhar nítido como um

girassol” só alcançável por aquele que atinge um “pasmo essencial”.

“O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele

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(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a demais por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar…”

ALBERTO CAEIRO 17

V. TODA COISA PODE SER BELA

O conceito de “belo”, para Schopenhauer, engloba tudo aquilo, seja na

arte ou na natureza, capaz de fazer com que seu espectador adentre um

estado contemplativo em que ele escape à ditadura do querer e da

individuação. Por esta razão, como aponta Clément Rosset, pode “tornar-se

belo qualquer objeto, assim que deserta o domínio daquilo que interessa à

vontade para unir-se aos objetos da pura contemplação, dos quais se

desinteressa a vontade”18. Doutrina estética que vincula a experiência do belo

ao desinteresse passional – e severamente criticada por Nietzsche, por

exemplo, que via na arte não um dormitivo mas um tonificante da vontade de

potência. A ruptura entre Schopenhauer e Nietzsche aprofunda-se ainda mais

quando nos damos conta do quanto o autor de O Mundo Como Vontade E

Representação prossegue, a despeito de seu ateísmo, fiel a uma epistemologia

de raiz platônica:

17 CAEIRO, Alberto. Poemas Completos. Ed Martin Claret, Pg 34.18 ROSSET, Clément. Remarques Sur L’Esthétique de Schopenhauer. In: La Raison

Devoulée – Études Schopenhauriennes. Paris: J. Vrin, 2005.

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“Encontramos na contemplação estética dois elementos

inseparáveis: o conhecimento do objeto considerado,

não como coisa particular, mas como idéia platônica,

isto é, como forma permanente de toda uma espécie de

coisas; depois a consciência, aquele que conhece, não

como indivíduo, mas como puro sujeito que conhece,

isento de vontade.”19

A admiração de Schopenhauer pelos pintores flamengos de naturezas

mortas, que frequentemente representavam cenas domésticas “banais” em

seus quadros, explicita que o filósofo acreditava que até mesmo os objetos

mais “insignificantes” de nosso cotidiano poderiam se tornar belos, caso um

gênio soubesse enxergar neles suas Idéias (no sentido platônico) e fixá-las em

sua obra, tornando-as acessíveis aos demais humanos.

Além disso, o sereno estado de ânimo que foi imprescindível a estes

pintores para que pudessem retratar em tantas minúcias e com tamanho

cuidado os objetos que pintaram é testemunho de um proeminência do

intelecto sobre a vontade que Schopenhauer considera admirável. Talvez não

haja tanta distância entre esta noção schopenhauriana e aquilo que sugeriu

Merleau-Ponty quando refletiu sobre Cézanne: “artista é aquele que fixa e

torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem

saber.”20

Vale notar que esta definição da beleza parte muito mais dos efeitos

gerados no espectador do que das qualidades inerentes ao objeto. Pode ser

julgado “belo” todo objeto, artístico ou natural, capaz de “despertar” naquele

que o observa um estado contemplativo, de intuição pura, durante o qual se

calam temores e esperanças, ânsias e preocupações. Rosset sugere até mesmo

que algo criado com funções meramente utilitárias, e que é utilizado em nosso

cotidiano por seu valor de uso, sem ter sido concebido como portador de um

“valor estético”, possui uma certa “potencialidade” para gerar este estado

contemplativo que Schopenhauer vincula ao objeto belo. Deste modo, seria

19 SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade E Representação. L3, #38, pg. 205.20 MERLEAU-PONTY. A dúvida de Cézanne. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Pg. 120.

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possível enxergar na obra de um artista como Marcel Duchamp (1887-1968)

um preceito schopenhauriano posto em prática. É o que Rosset aponta:

“Il n’y a donc pas de différence fondamentale entre un

objet conçu em fonction d’une finalité esthétique et un

objet fabriqué em fonction d’une finalité utilitaire ou

comerciale. Quand il expose un séchoir à bouteilles, une

roue de bicyclette ou un urinoir, Marcel Duchamp ne se

doute certainement pas qu’il met ainsi em pratique un

précepte de l’esthétique de Schopenhauer.”16

A arte funcionaria, pois, como um calmante da vontade, uma Maracujina

do desejo, estando aí o maior de seus méritos. Clément Rosset diz:

“L’art agit comme un calmant: il possède, à la manière

d’une potion magique, telle celle mise au point par le

druide Panoramix dans les aventures d’Astérix, le

pouvoir de rendre l’homme invincible, capable de

triompher un moment des tortures psychologiques qui

jallonent son existence d’être vivant et soufrrant.”17

O apelo à poção de Panoramix, por parte de Rosset, indica bem outra

característica essencial deste calmativo ou anestesiante que é a arte segundo

Schopenhauer: seu caráter efêmero. A experiência estética, tal qual o efeito

da poção, logo se desfaz — e logo recomeça o Samsara da vida comum. A arte

representaria, pois, um “oubli momentané des peines”, na expressão de

Rosset (op cit, p. 143). Cabe fazer a ressalva de que para um pensador como

Nietzsche, em sua crítica ao que considerava como uma postura “niilista” de

Schopenhauer, a arte não será concebida em função de suas capacidades de

“acalmar a vontade” e nos fazer esquecer de nossas penas por alguns

momentos. Para Nietzsche, a arte é tonificante, tem potencial de exaltar a

vontade de potência, e a própria vida faz bem em justificar-se como obra-de-

arte.

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VI. A FIGURA DO GÊNIO

Como vimos, para Schopenhauer uma obra-de-arte seria admirável em

proporção de sua capacidade de nos fazer escapar às garras tiranas do

interesse pessoal e da vontade individualizada. O gênio, capaz de criar as mais

potentes das obras-de-arte, não deixa de ser um professor de resignação, um

mestre a guiar a humanidade no caminho do conhecimento intuitivo e da

renúncia à vontade tirânica . Por isso Jair Barboza sugere que “o gênio é o

correlato do asceta, como toda genuína vivência do belo é um momento

beatífico, de iluminação.” 21

Estabelecendo uma cisão entre o conhecimento racional e o

conhecimento “intuitivo”, Schopenhauer descreve através de vivas metáforas

as diferenças entre estes:

“O primeiro [o conhecimento racional] assemelha-se a

21 BARBOZA, Jair. A Metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Editora Humanitas – FFLCH-USP, 2001. Introdução. Pg. 9.

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uma violenta tempestade que passa, sem que se lhe

conheça nem a origem nem o fim, e que curva, agita,

arranca tudo no seu caminho; a segunda [a

contemplação] é o calmo raio de sol que fura as trevas e

desafia a violência da tempestade. O primeiro é como a

queda das gotas inumeráveis e impotentes que numa

cascata mudam sem cessar e não têm um instante de

repouso; a segunda é o arco-íris que paira tranquilo

acima deste tumulto desenfreado.”22

O homem que Schopenhauer concebe como “gênio” não possuiria um

talento especial para o raciocínio lógico e as inferências racionais, mas sim

para a contemplação ou intuição das idéias eternas:

“É apenas através desta contemplação pura e

completamente absorvida no objeto que se concebem as

idéias; a essência do gênio consiste em uma

preeminente aptidão para esta contemplação; ela exige

um esquecimento completo da personalidade e das suas

relações; assim, a genialidade é apenas a objetividade

mais perfeita, isto é, a direção objetiva do espírito,

oposta à direção subjetiva que termina na

personalidade, isto é, na vontade. Por conseguinte, a

genialidade consiste em uma aptidão para se manter na

intuição pura e aí se perder, para libertar da sujeição da

vontade o conhecimento que lhe estava originariamente

submetido; o que se resume em perder completamente

de vista os nossos interesses, a nossa vontade, os nossos

fins: devemos, durante um tempo, sair inteiramente da

nossa personalidade, ser apenas o puro sujeito que

conhece, olhar límpido do universo inteiro…”23

Nesta capacidade extraordinária de se furtar aos desiderata da vontade

pessoal se encontra uma das características principais do gênio, capaz de uma

22 SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. L3, #36, p. 195-96.23 Idem.

Page 20: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

“intuição objetiva” que o homem comum raramente consegue conquistar:

“O homem comum, esse produto industrial que a

natureza fabrica à razão de vários milhares por dia, é

incapaz, pelo menos de uma maneira contínua, desta

percepção completamente desinteressada, sob todos os

pontos de vista, que constitui a contemplação… ele só

pode fazer incidir a sua atenção sobre as coisas na

medida em que elas têm uma certa relação com a sua

própria vontade.”24

Poderíamos dizer, pois, que o gênio possui um intelecto “emancipado”

em relação à vontade “narcísica”. Em linguagem freudiana, poderíamos dizer

que gênio é aquele que, ao invés de ser conduzido cegamente, como uma

marionete, pelos ditados de sua libido, consegue dominá-la, refreá-la e

sublimá-la, tornando-se senhor desta “vontade cega”, que provêm das

profundezas de seu inconsciente, e que é exemplar particular de uma Vontade

natural una, que se manifesta em miríades de formas no universo. Alçando-se

acima do interesse pessoal e dos desejos mesquinhos de “Vossa Majestade, o

Eu”, o gênio é aquele capaz de dissolver sua personalidade própria, tornando-

se o “claro espelho do mundo” de que fala Schopenhauer. “O gênio:

esquecimento dos interesses, dissolução no intuir” — é como o define Jair

Barboza25

Schopenhauer não concebe o homem de gênio, porém, como num estado

constante de “contemplação pura”; esta vem em marés, por assim dizer, e é

por esta razão, sugere o filósofo, que muitos acreditam numa inspiração que

os tomasse tal como uma possessão. A estética schopenhaueriana nos leva a

pensar que isto não passa de superstição e que a diferença do gênio em

relação ao homem comum é a maior aptidão e frequência com a qual o gênio

consegue alçar-se acima dos ditados de sua vontade e experenciar o mundo

através de uma intuição cristalina, tornando-se sujeito puro do conhecimento.

24 Idem.25 BARBOZA. Op cit. Pg 70.

Page 21: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

VII. MISTICISMO?

É sabido que Schopenhauer conhecia a fundo as filosofias orientais, em

especial o budismo e o hinduísmo, chegando a citar em muitos pontos de seu

percurso textos como os Upanixades, os Vedas e outros textos fundadores das

“religiões” da Índia e adjacências. Talvez por isto seja possível sugerir que há

um certo tropismo para uma concepção “mística” de inspiração oriental em

Schopenhauer. Alguns dos principais estudiosos e divulgadores da sabedoria

oriental no Ocidente, como Aldous Huxley e Joseph Campbell, possuem

formulações que soam muito aparentadas àquelas de Schopenhauer.

Huxley, que deixou minuciosos relatos de suas

experiências estéticas e místicas, inclusive relatando

sua percepção musical e intuitiva sob o efeito de

substâncias como a mescalina e o LSD, também

sugeria que a “Iluminação” consistia numa

superação da dualidade entre sujeito e objeto —

exatamente o processo que Schopenhauer sustenta

ocorrer na experiência estética: “a consciência

mística mais alta só surge quando se está livre do

conhecido, quando não há meta em vista, por mais

intrinsecamente excelente que seja, mas sim

abertura pura”, sugere Huxley. A abertura das

portas da percepção, a superação da dualidade sujeito-objetivo, são duas faces

da mesma moeda. Não seria absurdo supor que há um íntimo parentesco

entre a “intuição desinteressada” de Schopenhauer e a “abertura pura” à qual

Huxley se refere. Este último comenta ainda que esta experiência estética-

mística de “transcender a dualidade” ocorre através da

“des-subjetificação daquele que percebe, que não vê

mais o mundo exterior com desejo ou aversão, não julga

mais automática e irrevogavelmente, não é mais um ego

Page 22: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

emocionalmente carregado, mas descobre ser um

elemento na realidade dada, que não é um negócio de

objetos e sujeitos, mas uma unidade cósmica de amor.”26

Já Alan Moore, uma das mentes mais brilhantes hoje operantes na

cultura popular, auto-declara-se um “xamã” e soa altamente schopenhaueriano

quando declara:

“When we are doing the will of our true Self, we are

inevitably doing the will of the universe. (…) Every

human soul in is fact one human soul. It is the soul of

the universe itself and as long as you are doing the will

of the universe, then it is impossible to do anything

wrong.” 27

É sabido também que Schopenhauer conquistou entre literatos, poetas,

romancistas e pintores uma admiração rara, influenciando muitas obras que

estão fora do domínio propriamente filosófico. É o que destaca Anatol

Rosenfeld: “A concepção estética do filósofo de Frankfurt empolgou gerações

de autores e artistas e o conceito particular do gênio, como foi concebido por

ele, encontrou ainda recentemente expressão num romance de Thomas Mann

(Dr. Fausto), o autor dos Buddenbrooks, obra em que O Mundo como Vontade

e Representação desempenha um papel decisivo”21.

O escritor italiano Italo Svevo (1861-1928) confessou abertamente que

seu primeiro romance, Una Vita, “foi inteiramente feito à luz da teoria de

Schopenhauer” 23, de modo análogo à inspiração freudiana que “regeu” a

redação de A Consciência de Zeno. O autor argentino Jorge Luis Borges, por

exemplo, escreveu belíssimas palavras de reflexão sobre a questão do sonho

em Schopenhauer, filósofo que apreciava muito a fórmula de Caldéron “a vida

é um sonho”:

“Si le monde est le rêve de quelqu’un, s’il y a en ce

26 HUXLEY, Aldous. Moksha – textos sobre Psicodélicos e a Experiência Visionária (1931-1963). Organizado por Michael Horowitz e Cynthia Palmer. Ed. Globo, 1983, pg. 108-111.

27 MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Documentário inglês de Dez Vylenz e Moritz Winkler.

Page 23: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

moment quelqu’un qui est em train de nous rêver et qui

rêve l’histoire de l’univers, alors l’anéantissement des

religions et des arts, l’incendie général des

bibliothèques n’importent guère plus que la destruction

des meubles d’un rêve. L’esprit qui une fois les a rêvés

les rêvera de nouveau; tant que l’esprit rêvera, rien ne

sera perdu. La conviction de cette vérité, que l’on dirait

fantastique, a fait que Schopenhauer a comparé

l’histoire à un kaléidoscope òu les figures changent,

mais non les morceaux de verre, à une éternelle et

confuse tragi-comédie òu les rôles et les masques

changent, mais non les acteurs.”28

28 BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones.

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O pessimismo Schopenhaueriano expressa-se com frequência através de

uma comparação da condição humana com a de personagens míticos

condenados pelos deuses do Olimpo grego a terríveis punições infindáveis –

Sísifo que rola sua pedra para o topo da montanha, só para vê-la despencar

novamente, tendo que reiniciar o ciclo de trabalho (que não leva a nada), ou

as Danaides enchendo de água seus baldes furados, são considerados como

boas descrições do destino humano. Doutrina filosófica impregnada de

melancolia, e que talvez possa ser diagnosticada por muitos psicanalistas

como fruto de uma mente em batalha contra a depressão, a obra de

Page 25: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

Schopenhauer ainda assim fornece-nos amplo material de reflexão sobre ética

e estética, misticismo e sabedoria – e este artigo pretende ser nada mais do

que uma introdução a um vasto mundo.

Para concluir, destaco que Schopenhauer considera que nenhuma

felicidade absoluta é obtenível, já que a gangorra entre o sofrimento e o tédio

constitui a gema do pesadelo da vida, só restando-lhe sugerir como uma via de

liberação a negação da vontade, considerada como produtora de tamanho

sofrimento; trata-se de uma espécie de budismo-niilista (há outros budismos,

bem mais alegres, bem mais zen...), assim descrito por Clément Rosset:

“Rien ne peut faire que la volonté arrête de vouloir sans

cesse, car nulle satisfaction ne parvient à remplir

définitivement ce tonneau des Danaïdes qu’est notre

vouloir inépuisable. Il est impossible de trouver un bien

absolu, un bien qui ne soit pas provisoire, et le seul bien

suprême est la complète négation de la volonté qui

décide de se supprimer elle-même par la voie de

l’ascétisme, em cessant de vouloir, afin de se libérer de

la souffrance qui domine le monde.”29

O “pessimismo” de Schopenhauer, pois, não é tão desolador e

desesperante quanto possa parecer, uma vez que uma estreita porta rumo a

uma beatitude possível permanece sugerida pelo filósofo. É como se renunciar

à busca pela felicidade perfeita fosse o único meio de nos aproximarmos de

uma felicidade limitada; não uma felicidade positiva e “colorida”, composta

por infindos prazeres e deleites, mas uma felicidade que estaria mais num

repouso d’alma, numa ataraxia imperturbável, numa tranquilidade búdica.

A experiência estética representaria, na “jornada espiritual” que conduz

a esta beatitude possível, um caminho e uma escola. Segundo Schopenhauer,

através da contemplação de uma obra de arte, conseguimos nos alçar acima

da dolorosa tirania do desejo, nos tornando “sujeitos puros” do conhecer, sem

temores nem preocupações, experimentamos alguns dos instantes mais felizes

29 ARAMAYO. Op Cit. Pg. 21.

Page 26: O Claro Espelho Do Mundo - Reflexões Sobre Ética e Estética Em Schopenhauer

que são acessíveis aos seres humanos. Decerto que são provisórias estas

delícias, mas o que não é provisório a não ser a eterna movência da Vontade

em sua miríade de diversas encarnações? A experiência estética consumada,

quando sujeito e objeto “fundem-se” e deixam de existir em separado,

constitui uma espécie de “modelo” de experiência a que devemos aspirar, em

que o eu, comumente escravo de sua vontade isolada e narcísica, abre-se ao

mundo e descobre fora de si a mesma essência que carrega dentro de si – a

Vontade. Ao transcender o separatismo de sua indivuação egóica, o sujeito que

rasga o véu de Maya e descobre a unidade da Vida, unida pela Vontade, torna-

se o “espelho sereno do mundo” — condição à qual o filósofo convida

incessantemente seu leitor a procurar realizar.

Eduardo Carli de Moraes

http://www.acasadevidro.com

[email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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216.

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