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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO José Carlos Freire O Conceito de Estado na Filosofia Política de Antonio Gramsci São Paulo 2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFI A

MESTRADO ACADÊMICO

José Carlos Freire

O Conceito de Estado na

Filosofia Política de Antonio Gramsci

São Paulo

2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFI A

MESTRADO ACADÊMICO

O Conceito de Estado na

Filosofia Política de Antonio Gramsci

José Carlos Freire

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Ética e Política Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni

São Paulo

2010

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JOSÉ CARLOS FREIRE

O CONCEITO DE ESTADO NA

FILOSOFIA POLÍTICA DE ANTONIO GRAMSCI

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia na Faculdade de São Bento.

Data de Aprovação: ____/ ____/ ____

________________________________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Bruni – Faculdade São Bento

______________________________________________________________

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva – Faculdade São Bento

______________________________________________________________

Prof. Dr. Álvaro Gabriel Bianchi Mendez - Unicamp

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A Rosária e Lázaro,

meus primeiros orientadores

na dissertação da vida.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor José Carlos Bruni, pela participação e incentivo à pesquisa, pela

orientação cuidadosa, dialogal e provocativa.

Aos Professores Doutores Franklin Leopoldo e Silva e Álvaro Gabriel Bianchi Mendez,

pelas valiosas contribuições no Exame de Qualificação.

À Professora Doutora Rosemary Dore Soares, pela rica sugestão de bibliografia e

auxilio na definição do problema de pesquisa.

Aos amigos Jaime, Luciana, Gabriel e Oton, pelas sugestões ao projeto de pesquisa,

pelas correções e tradução do resumo.

Ao corpo docente e administrativo da Faculdade São Bento, em especial ao Professor

Djalma e à Nanci, que em momentos difíceis, foram para mim referência de segurança e

compreensão.

Aos amigos Cídio e Rosângela, pela partilha das angústias e das conquistas neste

percurso.

À amiga Fabíola, pelas inúmeras conversas e pela partilha do dia-a-dia de trabalho,

momentos que me introduziram, mais que a graduação em filosofia, no pensamento dialético.

Ao Programa de Apoio para o Desenvolvimento de Lideranças Católicas, pelo apoio

financeiro para o desenvolvimento desta pesquisa.

À Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, em especial ao Frei Mário

Tagliari, pelo inestimável apoio pessoal e institucional na indicação ao Prolic.

À Magnólia, pela co-autoria de vida.

Enfim, a tantas pessoas que contribuíram com a realização deste trabalho direta e

indiretamente. Muitas até sem saber a relevância acadêmica que ele representa, mas

conscientes da importância que ele toma em meio à minha trajetória de vida. Cada uma me

concedeu, do seu jeito, um incentivo indispensável para a finalização do trabalho. A vocês,

minha gratidão.

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RESUMO

FREIRE, José Carlos. (2010). O conceito de Estado na filosofia política de Antonio Gramsci.

Dissertação de Mestrado (Filosofia). São Paulo: Faculdade de São Bento.

Objetivamos com este trabalho estudar o conceito de Estado no pensamento político de

Antonio Gramsci, evidenciando o modo pelo qual este filósofo realiza a superação dialética

das teorias do Estado formuladas por Marx.

No primeiro momento, apresentamos os pressupostos teóricos de Gramsci que estão no

estudo sobre o Estado e a sociedade civil feito por Hegel e Marx. Constatamos que em Marx,

ao criticar a abordagem hegeliana, é acentuado o aspecto coercitivo do Estado, cuja função

primordial na sociedade burguesa é garantir a divisão de classes e a conseqüente exploração

dos trabalhadores.

No segundo momento, percebemos que Gramsci analisa, além do caráter coercitivo,

também o aspecto ideológico e cultural do Estado que está presente na sociedade civil,

considerada pelo filósofo italiano seu elemento constitutivo. Essa inovação de Gramsci

representa uma grande mudança na teoria do Estado que, dessa forma, é “ampliado” para

além de seu aparato repressivo e, conseqüentemente, coloca em pauta a discussão sobre a

revolução, agora não mais entendida como tomada violenta do Estado e sim como processo.

Para isso, Gramsci empreende uma releitura de Hegel, atualizando o marxismo para o

contexto italiano e internacional do início do século XX.

No terceiro momento do trabalho, debruçamo-nos mais detidamente sobre aquele que é

o nosso problema de pesquisa, a saber: se Gramsci seria ou não um autêntico marxista ou, dito

de outro modo, até que ponto ele teria se afastado de Marx ao propor uma atualização de sua

teoria do Estado.

Concluímos que a retomada crítica de Hegel feita por Gramsci ocorre sempre pela

mediação do marxismo e assim, enriquece e amplia o conceito de Estado de Marx na

articulação dialética entre sociedade civil e sociedade política.

PALAVRAS-CHAVE : Estado; sociedade civil; sociedade política; Gramsci.

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RIASSUNTO

FREIRE, José Carlos. (2010). Il concetto di Stato nella filosofia política di Antonio Gramsci.

Dissertazione di Licenza (Filosofia). San Paolo: Facoltà di São Bento.

Il nostro obiettivo con questo lavoro era di studiare il concetto di pensiero politico di

Antonio Gramsci, mostrando il modo in cui il filosofo compia un superamento dialettico delle

teorie avanzate da Marx.

In un primo momento, vi presentiamo le basi teoriche di Gramsci che riguardano lo

stato e la società civile, fatte da Hegel e Marx. Notiamo che Marx, nel criticare l'approccio

hegeliano, ha sottolineato l'aspetto coercitivo dello Stato, la cui funzione primaria nella

società borghese sarebbe quella di garantire la divisione di classe e il conseguente

sfruttamento dei lavoratori.

In secondo luogo, essa esamina Gramsci se si rese conto oltre del carattere coercitivo,

anche della condizione ideologica e culturale presente nella società civile, esaminata dal

filosofo italiano nelle sue componenti. Questa innovazione di Gramsci rappresenta un

importante cambiamento nella teoria dello Stato, dunque; esso è "esteso" al di là del suo

apparato repressivo e, di conseguenza, mette all'ordine del giorno la discussione della

rivoluzione, non è più percepita come violenta presa di controllo dello Stato e ma come un

processo. Per questo, Gramsci si impegna in una rilettura di Hegel e del marxismo per

l'aggiornamento del contesto italiano e internazionale del XX secolo.

Nella terza fase del lavoro, si studiano in modo più dettagliato su quello che è il nostro

problema di ricerca, vale a dire se Gramsci sia un vero marxista o, in altre parole, in che

misura sia stato lontano da Marx nel proporre un aggiornamento della sua teoria dello Stato.

Concludiamo che la ripresa della critica di Hegel fatta da Gramsci avviene sempre

attraverso la mediazione del marxismo e quindi arricchisce ed espande il concetto di Stato nel

rapporto dialettico di Marx tra società civile e società politica.

PAROLE CHIAVE: Stato, società civile, società política, Gramsci.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8

CAPÍTULO I – Pressupostos do conceito gramsciano de Estado........................ 14

1.1 Estado e Sociedade Civil em Hegel................................................................ 14

1.2 Estado e Sociedade Civil em Marx................................................................. 18

CAPÍTULO II – Estado e Sociedade Civil em Gramsci....................................... 27

2.1 O resgate da dialética...................................................................................... 30

2.2 O Estado “ampliado” de Gramsci................................................................... 34

2.2.1 Hegemonia.......................................................................................... 42

2.2.2 Guerra de movimento e guerra de posição......................................... 46

2.2.3 Estrutura e superestrutura................................................................... 49

2.2.4 Bloco histórico e revolução passiva................................................... 52

2.2.5 A releitura de Maquiavel.................................................................... 55

2.2.6 Reforma Intelectual e Moral – Senso comum e nova cultura............. 60

2.3 Releitura da teoria marxista da “extinção” do Estado.................................... 64

CAPÍTULO III – Gramsci e a filosofia política de seu tempo.............................. 70

3.1. A filosofia especulativa de Croce.................................................................. 72

3.2. O marxismo mecanicista de Bukharin........................................................... 75

3.3 Gramsci como marxista e leitor crítico de Hegel........................................... 80

3.4 Equívocos na leitura de Gramsci – o exemplo de Norberto Bobbio.............. 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 95

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INTRODUÇÃO

O pensamento de Gramsci (1891-1937) tem sido estudado em diversas áreas do

conhecimento, como a filosofia, a pedagogia e as ciências sociais, principalmente a partir do

colapso do socialismo soviético, fato que colocou em crise a via de tomada do poder para

implantação do comunismo, nos moldes da revolução russa de 1917. Neste contexto,

perguntas instigantes se apresentam à filosofia política, tais como “faz sentido falar em

revolução socialista?” ou então “cabe ainda discutir sobre o Estado em plena era de mercado

globalizado?”

Motivados por questões desse tipo ou por outras, grupos distintos – de comunistas a

social-democratas – lêem Gramsci. Esta possibilidade de interpretações tão variadas, entre

outros fatores, mostra a importância de se estudar sua obra com rigor e profundidade, para que

possamos, no caso de nossa pesquisa, mais bem compreender sua teoria do Estado. No caso

do Brasil, é notório o interesse pelos textos de Gramsci:

Do final dos anos 1970 aos dias atuais, o pensamento gramsciano passou a fazer parte da cultura brasileira, sendo efetivamente incorporado aos cenários acadêmico e político, contribuindo para a reflexão das contradições do capitalismo contemporâneo e suas manifestações em nossa realidade. Um pensamento que, mesmo sob o abalo de diversas conjunturas, tem resistido e mostrado sua atualidade, tanto na compreensão de nosso passado quanto das intrincadas questões do presente (SIMIONATO, 2003, p.278).

Os escritos de Gramsci mostram o esforço de atualização da teoria marxista, no

contexto europeu do início do século XX, o que muitas vezes foi tomado como reformismo ou

heterodoxia. Seus Quaderni del Cárcere, obra sobre a qual nos debruçamos, procuram

atualizar as concepções sobre a sociedade, a cultura e o Estado modernos, restabelecendo a

importância de uma dinâmica processual e dialética na construção do socialismo, tendo em

vista que o modelo de revolução russa de 1917 não só se mostrou complicado com o

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desenvolvimento do Estado bolchevique como também não se repetiu nos outros países,

sobretudo na Europa.

Nesse sentido, Gramsci analisou o caráter coercitivo do Estado, como em Marx e

Engels, e também o papel exercido pela “sociedade civil”, elemento considerado como

constitutivo do Estado. Tal proposta, longe de ser mero detalhe, representa uma grande

mudança na teoria do Estado que, nesse caso, “amplia-se” para além de seu aparato repressivo

e, conseqüentemente, coloca em pauta a discussão sobre a própria teoria da revolução, agora

não mais entendida como tomada violenta do Estado –– guerra de movimento –, mas sim

como processo – guerra de posição. A perspectiva teórica e prática sobre o qual Gramsci

trabalha é a da unidade-distinção entre sociedade política (ou Estado em sentido estrito) e

sociedade civil. Nesta segunda dimensão do Estado, ganha importância a luta político-

ideológica em torno do tema da hegemonia.

Disso decorre a importância e a relevância de nossa pesquisa: sendo Gramsci um

socialista e, portanto, tendo como ponto de partida a necessária superação da sociedade

capitalista, cabe aprofundarmos sua contribuição no estudo sobre o aparato estatal, uma vez

que sua teoria desenvolve e supera dialeticamente as teorias do Estado – e também a teoria da

revolução – formuladas pelos clássicos do marxismo.

Fator instigante nos estudos gramscianos é o debate intenso travado por ele com as

correntes hegemônicas da II Internacional Comunista e também com o neo-hegelianismo. Isso

o levou a cunhar expressões novas e ressignificar conceitos clássicos de Hegel e de Marx.

Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo estudar o conceito de Estado de

Gramsci. As partes de nosso trabalho se constituem em momentos ligados à produção teórica

de nosso autor. Lançaremos um olhar para seus os pressupostos, outro para sua obra

propriamente dita e um terceiro olhar para os seus interlocutores. Em outras palavras,

buscaremos apresentar as bases da reflexão gramsciana sobre o Estado e seus aspectos

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fundamentais, no confronto com as demais correntes da filosofia política de sua época,

inclusive sinalizando para a possibilidade de leituras equivocadas de Gramsci.

O nosso problema de pesquisa é fundamentalmente esse: teria Gramsci, ao empreender

uma revisão do marxismo, realizado um afastamento dos princípios marxistas e,

consequentemente, tornado-se um neo-hegeliano? O texto que evidencia nosso problema

situa-se no Quaderno 6:

É preciso distinguir a sociedade civil tal como é entendida por Hegel e no sentido em que freqüentemente emprega-se nestas notas (ou seja, no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre a sociedade inteira, como conteúdo ético do Estado) do sentido que lhe dão os católicos, para os quais a sociedade civil é, pelo contrário, a sociedade política ou o Estado em confronto com a sociedade familiar e a Igreja” (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.703, grifo nosso).

Veremos que a categoria gramsciana “sociedade civil” ocupa um lugar de importância

fundamental em seu arcabouço teórico, da mesma forma que em Marx. Daí o aspecto que

aprofundaremos: como um autor marxista pode lançar mão de Hegel para definir um conceito

basilar no desenvolvimento de sua filosofia política?

Dessa forma, estão assim constituídos os capítulos de nosso texto: no primeiro,

trataremos dos pressupostos teóricos daquele que veio se constituir como o conceito

gramsciano de Estado. Nesse caso, analisaremos a concepção de Estado e sociedade civil em

Hegel e depois em Marx.

No segundo capítulo, veremos como Gramsci resgatou a dialética como aspecto

indispensável no trato das questões políticas, colocando-se na perspectiva de continuidade

Marx e Engels. A discussão sobre os principais conceitos da filosofia política de Gramsci feita

neste capítulo busca apresentar o modo específico pelo qual o autor interpreta as

possibilidades e os desafios do marxismo no início do século XX.

Devemos fazer, no entanto, uma ressalva quanto à organização dos temas nesta parte de

nosso trabalho. Optamos por tomar o conceito de Estado “ampliado” em primeiro lugar e a

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partir dele desenvolver os demais. O pensamento de Gramsci, porém, não permite que

façamos um roteiro rigoroso numa hierarquia de temas. Soma-se a isto o contexto precário de

elaboração dos Quaderni, o que não deixa de lhes configurar um caráter fragmentário.

Dizendo de outro modo, a escolha pela organização temática da segunda parte é

arbitrária, pois os conceitos gramscianos são todos interdependentes. Qualquer opção por uma

ordem de temas será sempre relativa. Não foram poucas as vezes que, em nosso texto,

incorremos em uma aparente repetição, em função da teia de conceitos dos Quaderni1.

No terceiro capítulo, apresentamos o modo pelo qual Gramsci combate o neo-

hegelianismo de Benedetto Croce e o economicismo de Nicolai Bukharin.

Gramsci, assim, afirma um marxismo revigorado, não mais preso ao Manifesto de 1848

e, nem por isso, distante dele: o marxista italiano propõe, em seus Quaderni, como

pretendemos mostrar, uma leitura criativa, arejada e aberta do contexto nacional italiano e

internacional, dialogando com Hegel, sem dúvida, mas sempre mediado por Marx. É esta a

hipótese de resposta ao nosso problema de pesquisa.

Ainda na terceira parte, acenaremos brevemente para o risco de leituras equivocadas dos

textos gramscianos, com destaque para Norberto Bobbio, que muito influenciou e ainda

influencia os comentadores de Gramsci. Embora de modo breve, o que pretendemos nesta

parte é mostrar como uma abordagem distorcida e reducionista de Gramsci veio a corroborar,

inclusive, com a fragmentação ideológica de cunho neo-liberal que tomou conta da reflexão

sobre a sociedade civil nas ultimas décadas.

Vale dizer ainda algo de cunho metodológico. Embora se possa estudar Gramsci no

esforço de atualização de seu pensamento, não é este o propósito por nós colocado. Não

1 Guido Liguori usa a expressão “família de conceitos” que, no caso do termo ideologia, implica em considerá-la sempre relacionada a outros termos como religião, senso comum, linguagem etc. (2007, p.91). Acreditamos que essa observação possa ser universalizada a toda obra de Gramsci, como uma grande “família de conceitos” ou uma “rede conceitual”. É possível também apontar a retomada da dialética feita por Gramsci como razão para a inter-relação entre os termos, tomados quase sempre em pares conceituais: sociedade civil/política, passado e presente, velho e novo etc. (PRESTIPINO, 2001).

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obstante a imensa riqueza do pensamento de Gramsci para a atualidade, o que temos em vista

aqui, embora limitadamente, é aquilo que Baratta chama de “escavação genética e diacrônica”

dos textos gramscianos (2004, p.17). Segundo o mesmo autor, um trabalho desse tipo sobre

Gramsci não busca em primeiro lugar “uma atualização das suas categorias”, mas, sim,

“revisitá-las na sua dinâmica interna, reapropriando-se delas ou tornando-as disponíveis como

fermentos para uma análise do existente” (2004, p.17).

Quanto ao referencial teórico, temos como fundamento principal os Quaderni del

Carcere, na Edição Crítica de 1975, feita por Valentino Gerratana, secundariamente, as

Lettere dal Carcere, na Edição de 1947, organizada por Paolo Spriano. Pelo fato de os

Quaderni apresentarem uma gama de temas e áreas de pesquisa, delimitamos o nosso foco na

filosofia política, na qual o autor trabalha conceitos como o Estado, sociedade civil,

hegemonia, bloco histórico, entre outros. Teremos como apoio a edição brasileira dos textos

gramscianos compilados nos Cadernos do Cárcere (2002, 2002b, 2006, 2006b, 2007, 2007b)

e nas Cartas do Cárcere (2005, 2005b).

Essa base teórica nos obrigará, obviamente, a fazer referência ao pensamento de autores

como Hegel (2003), Marx (1985; 2003; 2005; 2005b), Marx/Engels (1988; 2008), Maquiavel

(2006; 2009), Bukharin e Benedetto Croce, com os quais Gramsci discute nos Quaderni.

Quanto aos comentadores de Gramsci, teremos, a referência de autores brasileiros como

Coutinho (1997; 2007; 2008; 2009), Soares (2000), Bianchi (2003; 2007), Restrepo (1990);

autores italianos como Bobbio (1982), Gruppi (2000), Semeraro (1999), Médici (2007),

Baratta (2004), Losurdo (2006) e Liguori (2006; 2007); e outros autores mais “clássicos”, não

obstante as limitações de abordagem, como Buci-Glucksmann (1980) e Portelli (1990).

No que tange à motivação de nossa pesquisa, ela se encontra fundada nesse ponto: o

risco existente de que uma descuidada abordagem sobre Gramsci pode nos levar a identificá-

lo como idealista, como um teórico das superestruturas. Seria, assim, um autor que não trata

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da revolução marxista ou, dito de outro modo, da construção do socialismo, mas sim de um

processo pacífico e tranqüilo, ao modo típico de ideologias neoliberais da

“comunicabilidade”, da “solidariedade”, das “pequenas ações” que atribuem a uma sociedade

civil despolitizada e separada do Estado a responsabilidade de “melhorias” do capitalismo.

Esta leitura, de modo algum, parece-nos condizer com o entendimento de Gramsci

sobre a construção da hegemonia das classes subalternas. Acrescente-se a isso o fato de que

os textos de Gramsci, nos círculos ideológicos neoliberais, são pouco lidos e quando o são,

isso ocorre de forma equivocada. Daí, mais uma vez, a necessidade de uma “escavação

genética” do texto gramsciano.

É por essa razão que julgamos importante mostrar de modo exemplificado na figura de

Norberto Bobbio uma interpretação que acarreta conclusões que deturpam o pensamento de

Gramsci. Se tomado de modo indevido, o marxista italiano aparece, no dizer de Bianchi,

como um “profeta da sociedade civil ‘organizada’ e um defensor da ‘conquista de espaços’ na

democracia” (BIANCHI, 2007, p.36). Seria um precursor da teoria do chamado “terceiro

setor”, como esfera isolada do Estado e do Mercado. Nada mais equivocado.

Assim, o presente trabalho, dentro de suas limitações, coloca-se na perspectiva segundo

a qual Gramsci não só se constitui de modo criativo como continuador de Marx, mas também,

e, sobretudo, como autor atual, cuja reflexão dialética atenta ao seu período histórico pode

contribuir, quase um século depois, para uma crítica à noção de Estado em nossos dias, quer

se apresente de modo instrumental a serviço da manutenção do poder das grandes potências

ou da consolidação dos chamados países emergentes, quer se apresente de modo fragmentado

na esquerda de influência neoliberal, que advoga o suposto papel de uma sociedade civil

autônoma e portadora da solução dos problemas, à revelia do Estado e do mercado.

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CAPÍTULO I

Pressupostos do conceito gramsciano de Estado

Consolidado pelos contratualistas, de modo especial Hobbes, em contraposição ao

estado de natureza, o conceito “sociedade civil” passou, gradativamente, a ser contraposto –

ou pelo menos articulado – ao de “Estado” (PEREIRA, 1998, p.17). Os dois termos

encontram em Hegel sua fundamentação mais elaborada.

O filósofo alemão propicia uma síntese entre o liberalismo de Adam Smith e Locke, o

coletivismo de Rousseau e o contratualismo de Hobbes e, desse modo, forma a base da

concepção de Estado sobre a qual Marx e Engels e, conseqüentemente, Gramsci farão a crítica

e a superação dialética (RESTREPO, 1990, p.2).

1.1 Estado e Sociedade Civil em Hegel

A filosofia de Hegel busca uma organização sistemática da ação do homem, que se

constitui como objetivações do espírito2. Para o filósofo alemão, a substância moral ou, como

poderíamos dizer, o espírito real de um povo (PEREIRA, 1998), constitui-se no movimento

que percorre diferentes momentos:

(a) o espírito moral objetivo imediato ou natural: a família. Esta substancialidade desvanece-se na perda da sua unidade, na divisão e no ponto de vista relativo; torna-se então: (b) Sociedade Civil, associação de membros, que são indivíduos independentes, numa universalidade formal, por meio das carências, por meio da

2 Embora não seja o propósito deste trabalho realizar uma detalhada análise do sistema filosófico hegeliano, devemos ressaltar a importância do processo histórico como seu elemento constitutivo e que influenciará definitivamente tanto seguidores quanto opositores de Hegel. Desse modo, cabe uma palavra sobre a chamada objetivação que, na articulação da filosofia política hegeliana, é compreendida, exatamente, como processo, como avanço do espírito que se dá na história, ou seja, como desenvolvimento que vai da subjetividade empírica (sujeito) à objetividade (Estado) e que representa o crescimento da liberdade do homem (HEGEL, 2003). Nesse sentido, Hegel aponta três graus dialéticos: o direito, a moralidade subjetiva e a moralidade objetiva (HEGEL, 2003, p.39-148). É nesta última que se encontra a finalidade da ação moral, determinada hierarquicamente na família, na sociedade civil e no Estado (HEGEL, 2003, p.149-318).

15

constituição jurídica como instrumento de segurança da pessoa e da propriedade, e por meio de uma regulamentação exterior para satisfazer as exigências particulares e coletivas. Este Estado exterior converge e reúne-se na (c) Constituição do Estado, que é o fim e a realidade em ato da substância universal, e da vida pública nela consagrada (HEGEL, 2003, p.148-149).

Para nosso estudo, destacam-se os momentos “b” e “c”. Compreendendo que toda ação

humana é movida por interesses, o que caracteriza e diferencia a sociedade civil do Estado é

exatamente o tipo de interesse (RESTREPO, 1990, p.2). A sociedade civil é marcada pelo

interesse particular; o Estado se refere ao interesse da coletividade.

É importante a afirmação feita por Hegel, quebrando a tradição jusnaturalista na qual

Estado e sociedade civil se confundem, que situa esta com um momento daquela (SOARES,

2000, p.75):

Quanto se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e da liberdade pessoais [leia-se jusnaturalismo], o interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado (HEGEL, 2003, p.217, acréscimo e grifo nossos).

Ao contrário, em Hegel, o Estado aparece como termo último do “Espírito Objetivo”,

isto é, como unificação dos seus momentos anteriores (família e sociedade civil). Desse

modo, no Estado, “a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um

direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais

elevado dever” (HEGEL, 2003, p.217, grifo nosso). Note-se que, enquanto no Estado do

jusnaturalista a participação se mostrava facultativa, no Estado hegeliano ela se constitui

como dever. No entanto, trata-se não de uma imposição, mas uma assimilação, o que, em

outras palavras, implica dizer que em cada momento, o “Espírito Objetivo” torna mais real a

liberdade, entendida como ação autoconsciente do homem (SOARES, 2000, p.75).

No entanto, o Estado hegeliano se coloca como projeto, ou melhor dizendo, será o

resultado do processo de universalização da sociedade civil de seu tempo. Cabe, pois, superar

o Estado moderno, surgido das revoluções burguesas, visto por Hegel, sobretudo em seus

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escritos juvenis, como carregado de conflito entre o público e o privado, o que Hegel

contrapõe à antigüidade clássica, com sua “bela eticidade” (COUTINHO, 1997, p.3), em que

o singular e o universal se harmonizavam e o governo era expressão de todos, sem a divisão

entre indivíduo e cidadão (SOARES, 2000, p.75).

Da situação de desagregação, de não-unidade, próprias do Estado moderno, decorre o

traço marcante de atomização dos indivíduos na sociedade civil. Tal aspecto leva cada um a

aspirar uma liberdade negativa, ou seja, como rejeição à totalidade (SOARES, 2000, p.77). A

sociedade civil oferece “o espetáculo da devassidão bem como da corrupção e da miséria”

(HEGEL, 2003, p.169). Daí a definição hegeliana do “sistema de carências”, característica

fundamental da sociedade civil (2003, p.173).

É necessário, portanto, que a sociedade civil se desenvolva até a totalidade e, assim, “o

princípio da particularidade transforma-se em universalidade pois só aí encontra a sua verdade

e a legitimação da sua realidade positiva” (HEGEL, 2003, 170). A chamada “universalidade”

será alcançada “quando os indivíduos determinarem o seu saber, a sua vontade e a sua ação de

acordo com um modo universal e se transformarem em anéis da cadeia que constitui o

conjunto” (HEGEL, 2003, p.170-171).

A liberdade, para Hegel, “realiza-se quando a pessoa individual supera seus interesses

particulares e reconhece o interesse universal como próprio espírito substancial, passando a

querer e a agir tendo em vista o universal como sendo seu fim último” (SOARES, 2000,

p.81).

A fim de garantir a passagem do nível da carência – o campo da necessidade – para o

Estado – o campo da liberdade, Hegel estabelece como meios a organização jurídica e

administrativa. No entanto, se pelo aspecto jurídico é possível passar da particularidade à

unidade isto ainda se dá de forma abstrata. Desse modo, a realização da unidade “constitui a

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missão da administração, primeiro como união relativa, depois, numa unidade concreta

embora limitada, a corporação” (HEGEL, 2003, p.202).

Portanto, aquilo que Hegel denomina por “sistema de carências” encontra solução no

aspecto jurídico-administrativo e, mais concretamente, por meio da necessária relação do

indivíduo com outrem. É neste ponto que podemos nos referir ao nível corporativo da

sociedade civil, elemento que será retomado, dialeticamente, por Gramsci. A corporação se

apresenta como forma de precaução contra as contingências do sistema de carências (HEGEL,

2003, p.173)3.

Para Hegel, a corporação se destaca como elemento fundamental da sociedade civil na

medida em que, levando os cidadãos4 a se interdependerem, liberta-os “da contingência da

opinião própria” e “os assegura e os ergue à dignidade de atividade consciente para um fim

coletivo (2003, p.214)5.

Tamanha é a importância da corporação para Hegel que se constitui, ao lado da família,

como “segunda raiz moral do Estado” (2003, p.214). Considerando que o fim da corporação é

limitado e finito, concluirá Hegel que “o domínio da sociedade civil conduz ao Estado” ou,

dito de forma detalhada, “através da divisão da sociedade civil, a moralidade objetiva

imediata evolui, pois, até o Estado, que se manifesta como seu verdadeiro fundamento” (2003,

p.215).

Encontram-se, então, intimamente articulados, os momentos da moralidade objetiva,

como forma de objetivação do espírito, já que “na sua intrinsecidade, a família desenvolve-se

3 Segundo Coutinho, Hegel toma o termo “corporações” de empréstimo ao mundo feudal; no entanto, já aponta para um fenômeno de associativismo que iria se generalizar, sobretudo na segunda metade do século XIX, principalmente sob a forma da organização dos trabalhadores em sindicatos (1997, p.8-9). 4 Entendendo “cidadão” no sentido hegeliano, como se observa na nota feita por ele às Modalidades das Carências e das suas Satisfações: “No direito, o objetivo é a pessoa. No ponto de vista moral abstrato, é o sujeito. Na família, é o membro da família. Na sociedade civil em geral é o cidadão [...]” (HEGEL, 2003, 174). 5 Segundo Hegel, os dois “princípios” da sociedade civil são, exatamente, a pessoa concreta e a universalidade (2003, p.167-168; grifos nossos). Cabe lembrar, com Rosenfield, que Hegel não separa estes dois elementos: o indivíduo (abandonado à sua sorte) e a corporação (no sentido medieval); ao contrário, estabelece uma permanente mediação entre eles, de modo que o indivíduo apareça sempre como “membro de” (2002, p.33). Segundo o autor, nesta acepção está ancorada toda a concepção de Estado e de eticidade de Hegel.

18

em sociedade civil, e o que há nestes dois momentos é a própria idéia do Estado” (HEGEL,

2003, 216).

Embora se deva ressalvar o aspecto evidentemente idealista do Estado hegeliano, que

Marx compreenderá como justificativa do Estado burguês, o que mais nos interessa para a

abordagem que faremos do conceito de Estado em Gramsci, é o elemento do coletivo, ou, dito

de forma mais apropriada, a universalidade presente no nível corporativo, na característica

associativa da sociedade civil:

Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, o destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal (HEGEL, 2003, p.217; grifos nossos).

Desse modo, em Hegel a corporação prefigura o Estado como finalidade ética de toda a

atividade social (RESTREPO, 1990, p.4). Por conseqüência, vale dizer, o Estado hegeliano

não aparece como algo exterior aos indivíduos, a lhes coagir – em Marx será essa, sobretudo,

a perspectiva; ao contrário, o “Estado ético” se mostra como princípio interno de ação que

dirige e dá forma à ação dos homens (RESTREPO, 1990, p.4)6.

1.2 Estado e Sociedade Civil em Marx

No Prefácio à Crítica da economia política escrito em 1859, Marx revela aquilo que

pode ser compreendido como ponto de partida de sua teoria política de maturidade. Ao

relembrar o período de 1842-1843, em que era redator da Gazeta Renana, Marx afirma, ao

deixar aquela função e dedicar-se mais intensamente ao estudo: “O primeiro trabalho que

6 Restrepo chega mesmo a afirmar que em Hegel há um retorno não só à concepção rousseauniana do Estado enquanto concreção da vontade geral, mas, de modo mais amplo, retoma-se a perspectiva de Platão e Aristóteles, para os quais o homem, como animal político, é, por excelência, um membro da polis (1990, p.4).

19

empreendi para esclarecer as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão da crítica da

Filosofia do Direito de Hegel” (MARX, 2003, p.4).

Deve-se observar que nos tempos da Gazeta Renana, Marx possuía um viés tipicamente

hegeliano, exemplificado no debate sobre o problema do roubo de lenha feito pela população

pobre da região7. Em defesa da população, proibida de recolher a lenha seca caída das

árvores, Marx apontava para o rebaixamento da universalidade do Estado e do direito ao nível

dos interesses privados (ENDERLE, 2005, p.15). Dito de outro modo, na perspectiva de Marx

daquele momento, era papel do Estado submeter os interesses particulares ao interesse

comum, isto é, o interesse do próprio Estado (ENDERLE, 2005, p.15).

É na crítica à filosofia do direito de Hegel que Marx estabelecerá, de fato, a ruptura com

a concepção hegeliana. Ele mesmo o expressa no Prefácio:

Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de “sociedade civil”; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política (MARX, 2003, p.4-5) 8.

Não cabe aqui o detalhamento de toda a crítica de Marx à filosofia do direito de Hegel.

Porém, um ponto se torna fundamental, quando Marx analisa a relação estabelecida por Hegel

entre Estado, sociedade civil e família. Toda a reflexão pode ser resumida nesta sentença de

Marx sobre o pensamento hegeliano: “A realidade não é expressa como ela mesma, mas sim

como uma outra realidade” (MARX, 2005, p.29). Acompanhemos brevemente a crítica

marxiana.

7 Ao fazer referência a este período, diz Marx no Prefácio: “Em 1842-1843, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), encontrei-me pela primeira vez na obrigação embaraçosa de dar minha opinião sobre o que é costume chamar-se os interesses materiais” (MARX, 2003, p.4). 8 Vale ressaltar que a teoria do Estado em Marx difere da de Hegel exatamente na medida em que o primeiro parte das condições materiais da existência enquanto o segundo parte da idéia. É o que se expressa na Ideologia Alemã: “Ao contrário da filosofia alemã [leia-se Hegel], que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam [...], mas partimos dos homens em sua atividade real” (MARX & ENGELS, 2008, p.19).

20

A família e a sociedade civil são, para Marx, pressupostos do Estado, elementos

propriamente ativos (MARX, 2005, p.30). Mas, segundo Hegel, elas são produzidas pela

Idéia real e “devem sua existência a um outro espírito que não é o delas próprio” (MARX,

2005, p.30).

Marx segue, nesse caso, o mesmo procedimento aplicado por Feuerbach à crítica da

religião, ou seja, a inversão da relação entre sujeito e predicado, para afirmar que em Hegel, o

sujeito é o Estado e o predicado é a sociedade civil, quando na realidade, é exatamente o

contrário (LIGUORI, 2007, p.43; MARX, 2005, p.38).9

O resultado do esquema hegeliano, segundo Marx, é a inversão dos papéis da sociedade

civil e família em relação ao Estado: “a condição torna-se o condicionado, o determinante

torna-se o determinado, o produtor é posto como produto de seu produto” (MARX, 2005,

p.30-31). Desse modo, o que Marx denuncia é a “ontologização da Idéia, com a conseqüente

desontologização da realidade empírica” (ENDERLE, 2005, p.19).

Em razão de tal desmitificação, Marx tomará a realidade em sua conflitividade.

Exemplo disso é que, enquanto para Hegel as classes mantém entre si uma

complementaridade, em Marx elas se definem por sua relação antagônica (RESTREPO, 1990,

p.5)10. O que Hegel vê como progresso de civilização do interesse particular, Marx vê como

luta de classes, ideologia e opressão (RESTREPO, 1990, p.5).

Neste ponto, podemos afirmar a originalidade de Marx na história das idéias políticas.

Pela primeira vez o Estado deixa de ser conceituado como entidade representativa de

9 Esta noção da sociedade civil como determinante do Estado, embora com uma concepção dialética, será mantida durante toda a obra de Marx (LIGUORI, 2007, p.43). A dialeticidade de Marx (e de Gramsci) é justamente o aspecto que Norberto Bobbio (1982) não considerou devidamente, conforme veremos na terceira parte do presente trabalho. 10 Vale lembrar que o conceito “classe” em Hegel e Marx assume contornos muito diferentes. Em Hegel, as classes são três: a substancial, formada pelos agricultores; a geral, constituída pela burocracia do Estado; e a intermediária ou dos industriais (HEGEL, 2003, p.212). Em Marx, como é sabido, as classes são fundamentalmente duas: a dos capitalistas (donos dos meios de produção) e a dos trabalhadores ou proletários (que possuem apenas a força de trabalho e a sua prole).

21

interesses gerais e passa a ser compreendido como vinculado a interesses de determinada

classe social, isto é, a classe dominante (GORENDER, 2008, p.30)11.

Tal compreensão decorre de outra: a de que não é o Estado que cria a sociedade civil,

conforme pretendia Hegel, mas, ao contrário, é a sociedade civil que cria o Estado. Este é

definido por Marx, na Ideologia Alemã, como “a forma pela qual os indivíduos de uma classe

dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de

uma época” (MARX & ENGELS, 2008, p.74).

Na mesma obra, a sociedade civil é definida por Marx como “o conjunto das relações

materiais dos indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças

produtivas” e, o que é ainda mais original: “a sociedade civil é a verdadeira sede, o verdadeiro

palco de toda a história” (MARX & ENGELS, 2008, p.33).

Nesse sentido, o Estado capitalista, em seu pretenso controle sobre a sociedade não

passa de uma ideologia, cuja fundamentação filosófica se encontra em Hegel. O Estado

idealizado, externo, atua sobre os homens e, obviamente, a serviço de uma classe. Segundo

Gorender, o processo de estranhamento do Estado como algo externo, pode ser assim

explicado:

A força multiplicada decorrente da cooperação entre os homens gera um poder social que adquire a forma do Estado e aparece a estes homens não como poder deles próprios, porém como poder alienado, à margem dos homens e fora do alcance do seu controle (GORENDER, 2008, p.21)

Assim, a classe que exerce o poder material econômico na sociedade é, ao mesmo

tempo, aquela que domina a mesma sociedade pelo aparato estatal. Dito de outro modo,

a função do Estado é precisamente a de conservar e reproduzir tal divisão [de classe], garantindo assim que os interesses de uma classe particular se imponham como o interesse geral da sociedade (COUTINHO, 2007, p.123-124).

11 Essa foi a grande descoberta de Marx e Engels no campo da teoria política, ou seja, “a afirmação do caráter de classe de todo fenômeno estatal” (COUTINHO, 2007, p.123)

22

Nesta perspectiva, a condição de funcionamento do Estado é que a política seja uma

esfera “restrita” e a “sociedade civil” seja uma esfera “despolitizada”, puramente privada, de

tal forma que a dominação de classe na esfera da sociedade civil seja legitimada na esfera

política (COUTINHO, 2008, p.20). Para Marx e Engels, “o poder político do Estado moderno

nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe

burguesa” (MARX & ENGELS 1988, p.68)12.

Na crítica de Marx e Engels, portanto, o Estado possui uma função determinada: a

garantia da propriedade privada e a divisão de classes; o Estado é, assim, um Estado de classe

(COUTINHO, 2008, p.19). Ora, esta função de classe é cumprida de forma organizada e

opressora: “o poder político é propriamente dito o poder organizado de uma classe para a

opressão de outra” (MARX & ENGELS, 1988, p.87, grifos nossos)13. Dessa forma, está

assim formulada a essência da concepção “restrita” do Estado: ele é a expressão direta e

imediata do domínio de classe (“comitê executivo”), exercido através da coerção (“poder de

opressão”) (COUTINHO, 2008, p.20).

A dominação burguesa, com sua inerente e permanente coerção, leva Marx e Engels a

compreenderem a luta de classes como guerra civil. Segue-se que “a guerra civil mais ou

menos oculta dentro da sociedade atual” permanecerá “até o momento em que ela explode

numa revolução aberta e o proletariado funda sua dominação com a derrubada violenta da

burguesia” (MARX & ENGELS 1988, p.77).

Desse modo, nos marcos da reflexão dos fundadores do marxismo, feita em 1848, a

superação do Estado capitalista, entendido, sobretudo em seu aparato repressivo, implica uma

explosão insurrecional, uma ruptura súbita e violenta com a ordem burguesa (COUTINHO,

2008, p.23).

12 Aqui está o que se convencionou chamar de Estado “restrito” em Marx, tomado na relação com o Estado “ampliado” de Gramsci. Voltaremos a este tema no segundo capítulo de nosso trabalho. 13 É o que Max Weber chamará de “monopólio da coerção e física e legítima” (WEBER, s.d., p.103).

23

Cabe, porém, uma advertência. A interpretação de vários autores, entre eles Bobbio

(1982), produziu uma leitura um tanto mecanicista de Marx, sobretudo ao confundir a

determinação da sociedade civil (a esfera econômica) em relação ao Estado (esfera político-

ideológica) como separação. Correu-se o risco – ainda presente – de compreender o conceito

marxiano de sociedade civil como pertencente unicamente ao momento da estrutura, o oposto

e separado da superestrutura estatal (LIGUORI, 2007, p.44).

Vale resgatar o texto marxiano, anterior ao Manifesto, sobre a Questão Judaica, escrito

em 1843-1844:

Bauer ignora a luta secular a que se reduz em última análise, a questão judaica, isto é, a relação entre o Estado político e suas premissas, sejam estes elementos materiais, como a propriedade privada, etc., ou elementos espirituais, como a cultura e a religião; desconhece a luta entre o interesse geral e o interesse particular, o divórcio entre o Estado político e a sociedade civil: deixa de pé estas antíteses seculares, limitando-se a polemizar contra sua expressão religiosa (MARX, s/d, p.21)

O texto evidencia que os “pressupostos” do Estado são tanto os elementos materiais

quanto os espirituais e culturais, o que contraria a visão de separação rígida ou de oposição

entre a estrutura e a superestrutura. Nesse caso, “estariam presentes na sociedade civil de

Marx tanto elementos estruturais quanto superestruturais, se bem que sejam centrais os

primeiros” (LIGUORI, 2007, p.44).

Isso implica dizer que Marx não se limita a “inverter” a relação hegeliana Estado-

sociedade, mas, em certa medida, discorda dessa oposição, que situa o político no Estado e o

econômico na sociedade civil. Marx não abre mão de uma visão dialética, ainda que, em seu

contexto, o acento seja dado ao caráter estrutural da sociedade civil.

Em outras palavras, “trata-se de tomar distância de uma leitura ‘mecanicista’ [...], de

uma concepção em que a determinação ‘em última instância’ de um dos termos (estrutura e

superestrutura) se torna determinação forte e imediata do outro nível de realidade”

(LIGUORI, 2007, p.45).

24

Com isso, queremos finalizar a primeira parte do nosso trabalho acenando para aspectos

presentes em Marx e Engels que serão, ao nosso olhar, retomados e desenvolvidos por

Gramsci.

Resguardando-se a dimensão dialética do pensamento dos autores do Manifesto,

podemos dizer que, embora seja a dimensão coercitiva o traço fundamental de sua teoria do

Estado, é possível perceber já em Marx e, ainda mais, no último Engels, sinalizações de uma

maior complexidade da tensão economia-política. Tomamos como referência aqui a

Introdução de Engels escrita em 1895 ao texto “As lutas de classes na França” de Marx de

1850. Engels discute justamente as novas configurações do Estado Capitalista que acabariam

por levar à necessidade de repensar as formas de luta até então empreendidas:

Mas a história também nos desmentiu revelando que era uma ilusão nosso ponto de vista daquela época. Ela ainda foi mais longe: não somente dissipou nosso erro de então, mas, igualmente, subverteu totalmente as condições nas quais o proletariado deve combater. É hoje em dia obsoleto sob todos os aspectos o modo de luta de 1848, e este é um ponto que merece ser examinado mais detidamente (MARX & ENGELS, vol. 1, s/d, p.97, grifos nossos).

Chama-nos a atenção a constatação de que o “modo de luta de 1848” estava vinculado

às “condições” daquele momento. Mudadas as condições, cabe “hoje em dia” uma nova

abordagem. Insistindo no fato de que a “história desmentiu” o modelo insurrecional de 1848,

Engels afirma que, naquele momento, “o estado de desenvolvimento econômico no continente

ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção

capitalista” (MARX & ENGELS, vol. 1, s/d, p.99), o que nos leva a considerar de modo

muito mais complexo a passagem do capitalismo ao socialismo.

É perfeitamente possível a ligação do texto de Engels com o Prefácio à obra “Para a

Crítica da Economia Política” escrito por Marx de 1859. Ali, Marx afirma que:

Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas

25

relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em via de aparecer (MARX, 2003, p.6, grifos nossos).

Como Engels, Marx enfatiza a necessidade de uma “observação atenta” às novas

“condições materiais”. O texto do Prefácio, como veremos mais adiante, é importante

referência para Gramsci, por apresentar de modo mais dialético que o Manifesto de 1848 a

passagem de uma formação social para outra, vista pelo autor dos Quaderni num registro de

longa duração14.

Gramsci terá em vista, no campo teórico, aquilo que Engels corajosamente alertava na

sua introdução ao texto de Marx “Crítica ao Programa de Ghota”, onde afirma que, pelo

contexto ter mudado, algumas passagens do texto de Marx “já não tinham razão de ser”

(MARX & ENGELS, vol. 1, s/d, p.206).

De volta à introdução de Engels ao texto marxiano “As lutas de classes na França”, cabe

recordar uma inquietante interrogação feita por ele, depois de tratar da mudança das

condições havida entre 1848 e 1895:

Quer dizer que, no futuro, a luta de ruas não desempenhará nenhum papel? Absolutamente. Significa apenas que, a partir de 1848, as condições se tornaram muito menos favoráveis para os combatentes civis, e muito mais favoráveis para as tropas. Um combate de ruas não pode, pois, ser vitorioso no futuro a não ser que esta inferioridade de situação seja compensada por outros fatores (MARX & ENGELS, vol. 1, s/d, p.106, grifos nossos).

Destacamos aqui, novamente, a advertência feita por Engels de que as condições

históricas são dinâmicas, a ponto de determinar novas estratégias. O fato de que tais

condições tenham se tornado “mais favoráveis às tropas” deixa entrever um importante

aspecto, que pretendemos tratar no estudo de Gramsci, a que o autor nomeia de revolução

14 A leitura crítica de Gramsci sobre a teoria marxiana e o desenvolvimento histórico de 1848 ao início do século XX o leva a afirmar, quando do estudo sobre Maquiavel, que, mais que este, Marx tinha “interesses vastos” em seus escritos e que, além disso, em Marx “está contido [...] in nuce o aspecto ético-político da política ou a teoria da hegemonia e do consenso, além da força e da economia (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1315).

26

passiva ou revolução-restauração o que, grosso modo, pode ser definido como transformação

a partir de cima, pela qual as classes dominantes modificam lentamente as relações de força.

No mesmo trecho, fica evidente a necessidade, por parte da classe trabalhadora, de

desenvolver “outros fatores”, já que a “luta de ruas” aparece como inviável,

circunstancialmente. Percebemos aqui uma ligação com o binômio guerra de

movimento/guerra de posição: a primeira seria a “luta de ruas”; a segunda, mais complexa,

como veremos, trata da luta pela hegemonia, categoria fundamental nos textos gramscianos.

Esta categoria parece-nos presente, ainda que não desenvolvida como em Gramsci, na

afirmação feita por Engels, na referida Introdução, onde afirma:

Passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes à frente de massas inconscientes (...) Mas para que as massas compreendam o que é necessário fazer, é mister um trabalho longo e perseverante (MARX & ENGELS, vol. 1, s/d, p.106, grifo nosso).

* * *

É sobre a base da teoria do Estado de Hegel, seguida da crítica de Marx e Engels, que

Gramsci desenvolverá sua perspectiva peculiar. Longe de ser uma ruptura com a reflexão

empregada por Marx e Engels desde 1848, o estudo sobre o Estado feito por Gramsci se

apresentará como um desenvolvimento dialético das teorias por eles formuladas.

O Estado, em Gramsci, constituir-se-á de forma “ampliada”. Tal compreensão é fruto de

um resgate empreendido pelo autor dos Quaderni da dialética na filosofia política do início do

século XX, no diálogo crítico com seus contemporâneos. É o que veremos no segundo

capítulo.

27

CAPÍTULO II

Estado e Sociedade Civil em Gramsci

A obra de Gramsci tem características peculiares. A primeira parte de seus escritos,

produzidos antes de ser preso pelo regime fascista em 1926, constitui-se de artigos diversos,

majoritariamente jornalísticos. A segunda, escrita já na prisão, constitui os Quaderni del

Cárcere – apontamentos feitos em cadernos escolares – e as Lettere dal Carcere –

correspondências do autor escritas também na prisão. Desse modo, os temas diversos sobre os

quais Gramsci reflete, encontram-se espalhados pelos 33 Quaderni e pelas Lettere15.

Os escritos gramscianos devem ser entendidos como elaboração permeada por uma vida

de intensa reflexão e militância16. O conceito de Estado foi, portanto, gerado no bojo de lutas

políticas que se concretizaram nos conselhos de fábrica na cidade de Turim, depois

reformulado pelo contato com a experiência russa e, por fim, ampliado e aprofundado nos

Quaderni (SCHLESENER, 2002, p.142). Contribuem, sem dúvida, para o processo de

reflexão de Gramsci no cárcere as mudanças na sociedade, os problemas do socialismo

bolchevique, os governos totalitários na Itália e Alemanha e a capacidade de sobrevivência do

capitalismo mesmo após a crise de 192917.

15 Como base de referência do texto gramsciano, tomamos a edição crítica de Valentino Gerratana, publicado pela Editora Einaudi no ano de 1975. Embora apresente problemas devido à organização temática, datação e numeração (ver observações de Nelson Coutinho em GRAMSCI, 2006, p.10-12), é esta a edição a que recorrem a maioria dos comentadores de Gramsci. Para facilitar a leitura, citaremos os Quaderni del carcere sempre a partir de sua edição crítica, adotando a seguinte nomenclatura: Autor, ano.volume da edição, caderno, página. Devemos ressaltar o excelente trabalho realizado pela Civilização Brasileira, sob os cuidados de Carlos Nelson Coutinho, que organizou a obra de Gramsci em 6 volumes em língua portuguesa. A esta edição recorremos em nosso trabalho, como apoio. 16As várias incursões teóricas de Gramsci, no período de 1921 a 1926, ganharão maior sistematicidade nos Quaderni. Isto explica a permanente revisão dos textos feita por Gramsci, com ampliações e reformulações (SCHLESENER, 2002, p.142). Nesse sentido, os Quaderni podem ser considerados a obra de maturidade de Gramsci. 17 Segundo Coutinho, a reflexão de Gramsci sobre o capitalismo propiciará a ele contribuir de forma “específica e original ao desenvolvimento e renovação do marxismo” (2007, p.63).

28

Em termos biográficos pode-se afirmar uma grande influência liberal no pensamento de

Gramsci, sobretudo nos anos de juventude. Tal influência cabe, fundamentalmente, a

Benedetto Croce e Giovanni Gentile (LOSURDO, 2006, p.13-33). Os dois ocupavam uma

posição de grande relevo no panorama cultural e filosófico italiano e através deles passava o

debate sobre Marx (LOSURDO, 2006, p.144).

A que se deve essa grande aproximação de Gramsci ao neo-hegelianismo? A questão

tem a ver com a história da Itália. Os dois filósofos neo-idealistas representam, na esteira de

Hegel, a afirmação da modernidade contra o conservadorismo católico, cujo aspecto mais

acabado se encontra no documento pontifício Syllabus18.

O hegelianismo é condenado no Syllabus como afirmação do poder do povo e do Estado

em relação a Deus, no desejo de modificar o ordenamento político e social segundo o arbítrio

do homem (LOSURDO, 2006, p.16). Dessa forma, a assimilação de muitos aspectos de Croce

e Gentile e, por conseqüência, uma aproximação de Gramsci a Hegel se deve ao combate ao

conservadorismo. O filósofo alemão, relido por Croce e Gentile aparece, em Gramsci como

defensor da consciência histórica, da possibilidade de mudança e da iniciativa humana livre

(LOSURDO, 2006, p.16).

A tomada de posição a favor de Hegel (e de Croce e Gentile) é, assim, uma tomada de posição a favor do moderno, e, no que diz respeito à Itália, a favor do Risorgimento, que significou a derrocada do Antigo Regime, o advento de um Estado nacional moderno e a derrota de um Estado clerical claramente ainda pré-moderno (recordem-se o poder temporal do papa, o caráter confessional das instituições, o gueto para os judeus) (LOSURDO, 2006, p.15)19.

18 O Syllabus errorum foi publicado pelo Papa Pio IX em 8 de dezembro de 1864 como um adendo da Encíclica Quanta Cura. No Syllabus, como ficou conhecido, Pio IX estabelecia uma lista de oitenta erros do “moderno liberalismo” considerados contrários aos dogmas católicos, tais como o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o socialismo etc. Uma versão virtual do texto está disponível em: http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9syll.htm. Acesso: 13 de janeiro de 2010. 19 Gramsci faz um longo estudo no Quaderno 19 sobre o Risorgimento, movimento de unificação da Itália ocorrido entre o início 1815 e 1870 (GRAMSCI, 1975.III, 1957-2078). Neste Quaderno Gramsci observa que “o Risorgimento só era possível em função de um enfraquecimento do Papado” (p.1963), evidenciando a polêmica que gerou a publicação do Syllabus.

29

Ressalte-se, no entanto, que o crédito conferido por Gramsci aos neo-hegelianos não se

configura como adesão absoluta: o valor de suas afirmações será sempre medido pela

contribuição que podem fornecer à compreensão dos problemas reais. É esse aspecto,

inclusive, que marcará, no momento da maturidade de Gramsci, a dura crítica ao neo-

hegelianismo, sobretudo Croce, presente nos Quaderni del carcere.

A posterior evolução de Gramsci o levará a considerar os dois grandes intelectuais neo-

idealistas não mais como defensores do moderno, mas como cúmplices do obscurantismo

antimoderno católico:

Croce e Gentile são assim submetidos a uma interpretação na qual não poderiam reconhecer-se. Quer dizer que mesmo quando se sente mais próximo deles, Gramsci constrói esta relação de proximidade de tal modo que, aos olhos dos dois autores por ele interpretados, apareceria apenas como a confirmação de uma estranheza recíproca radical (LOSURDO, 2006, p.17).

Valeria perguntar, no entanto: Por que razão Gramsci teria buscado em Croce e Gentile,

autores neo-hegelianos, elementos para o combate ao conservadorismo católico, vale dizer,

inversamente, para a defesa da modernidade? Não seria mais apropriado buscar tal

fundamentação na produção teórica do Partido Socialista? A explicação está na chamada

questão meridional 20.

A cultura do Partido Socialista da época não apenas não ajuda a resolver, mas também

não compreende a questão meridional, da qual faz uma leitura naturalista (LOSURDO, 2006,

p.18). Gramsci, nesse caso, se apóia na cultura neo-idealista que, ao enfrentar o problema do

atraso do sul italiano em relação ao norte, recusa uma leitura naturalista e metafísica, fixando-

se no terreno da história, ainda que sem vincular a questão meridional ao sistema capitalista

(LOSURDO, 2006, p.19).

20 A “Questão meridional” foi abordada por Gramsci em 1926 num texto inacabado em função de sua prisão no mesmo ano (GRAMSCI, 2004). A divisão entre o norte industrial da Itália em detrimento do sul atrasado é tomada como ponto de reflexão sobre a relação dialética de desenvolvimento e subdesenvolvimento e não de forma naturalista, como queria fazer crer a ideologia hegemônica na Itália, à qual até mesmo o Partido Socialista da época aderiu ao considerar a inferioridade do sul como “destino natural” (LOSURDO, 2006, p.18).

30

Desse modo, podemos concluir quanto aos primórdios de Gramsci que

Partindo do Risorgimento e das polêmicas contra o Syllabus, reivindicando a modernidade atacada pelo documento pontifício e defendendo Hegel, condenado enquanto moderno e liberal, fazendo constante referência a Croce e Gentile (naquele momento com posições solidamente liberais), assumindo tais posições, Gramsci começa de alguma maneira como liberal. O que não entra em contradição como vivo interesse por Marx, cuja interpretação é mediada pela leitura dos dois filósofos neo-idealistas (LOSURDO, 2006, p.23-24).

A articulação, inicialmente tranqüila e crescentemente problemática, entre Croce/Gentile

e Marx é garantida em Gramsci pela visão do liberalismo como sinônimo de uma

modernidade que pretende substituir as eternas leis naturais e divinas pela iniciativa histórica

do homem. A modernidade se configura como uma grande revolução contra o Syllabus e,

desse modo, o liberalismo, condenado pela cultura católica, carregaria dentro de si o

socialismo (LOSURDO, 206, p.27-28). Por isso, a grande marca do assim chamado “jovem

Gramsci” é a esperança de poder proceder com a filosofia de Croce e Gentile do mesmo modo

que Marx e Engels procederam em relação à filosofia clássica alemã: herdando-a e

incorporando-a.

É, pois, a partir de acontecimentos históricos cruciais, como a 1ª Guerra, a revolução

russa e o advento do fascismo que Gramsci irá, nos Quaderni, aprofundar e radicalizar a

crítica ao liberalismo e amadurecer a passagem ao comunismo. No entanto, um comunismo

situado historicamente, que nunca perde a consciência de sua herança, ou seja, o mundo

histórico da modernidade que teve em Hegel um ponto decisivo (LOSURDO, 2006, p.32-33).

2.1 O resgate da dialética

Deve-se ao caráter dialético do pensamento de Gramsci, a articulação criativa e crítica

entre Hegel e Marx, mediada pelo diálogo com Croce e com os intelectuais da Segunda

31

Internacional21. A dialética de Hegel aparece nos textos gramscianos como ponto de

referência privilegiado da filosofia da práxis: ela é a teoria da contradição, ou seja, reflexo das

contradições sociais que marcam o nascimento do mundo moderno (LOSURDO, 2006,

p.119). Em Hegel, “pela primeira vez, o valor da realidade se identifica absolutamente com

aquele de sua história: assim, na imanência hegeliana, reside ao mesmo tempo a fundação

capital de todo o historicismo moderno (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1243).

Se a filosofia de Hegel é importante no contexto da modernidade, “a filosofia da práxis é

uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1487) 22.

A filosofia da práxis, como o hegelianismo, é dialética por tratar do “devir histórico”

(PRESTIPINO, 2001), mas tem um caráter específico, em relação a Hegel por se tratar de um

devir concreto e não do Espírito objetivo (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1320).

Nesse sentido, Gramsci demonstra grande cautela no uso de expressões idealistas

“apropriadas” pela linguagem histórico-materialista ou “traduzidas” por ela (BARATTA,

2004, p.31). Não se trata de uma adoção dos termos do idealismo de Hegel sem mais. “A

filosofia da práxis”, diz Gramsci, “absorve a concepção subjetiva da realidade (o idealismo)

[...] o absorve e o explica historicamente, isto é, o ‘supera’ e o reduz a um seu ‘momento’”

(1975.II, Q.10, p.1244).

21 “Nos Quaderni, Gramsci elabora um conceito da dialética – e um uso semântico correspondente – polemizando com o neo-idealismo (crociano e gentiliano) e, também, com o sociologismo mecanicista (bukhariniano)” (PRESTIPINO, 2001). Remetemos ao estudo de Prestipino para um aprofundamento específico sobre o tema da dialética já que não é nosso propósito aqui, de forma alguma, exaurir o assunto. Tratamo-lo no sentido, apenas, de mostrar a relação criativa entre os conceitos gramscianos bem como o modo como ele entende a realidade política. 22 Cabe uma palavra sobre a chamada “filosofia da práxis”. O marxismo é assim nomeado por Gramsci ao longo dos Quaderni. Filologicamente, de acordo com Frosini (2002), a expressão não foi cunhada por Gramsci. Já havia sido usada por autores como Labriola, Gentile, Mondolfo e Capograssi. Em Gramsci, porém, ela tem um aspecto especial, de “retorno a Marx”, isto é, no combate às interpretações deterministas do marxismo bem como da filosofia de Croce. Em termos mais políticos, Gruppi argumenta que o uso freqüente do termo “filosofia da práxis” ocorre por prudência conspirativa, em razão do fascismo italiano, como também porque “concebe o marxismo como uma concepção que funda a práxis revolucionária transformadora e confirma na práxis a validade de suas próprias colocações” (2000, p.71-72).

32

Ocorre que, nas reformas neo-idealistas, como a de Croce, desaparecem as contradições

de modo que o hegelianismo se converte em “pura dialética conceitual” (GRAMSCI, 1975.II,

Q.7, p.806).

Gramsci, distanciando-se do neo-idealismo de Croce e do determinismo de Bukharin,

compreende o movimento social como “um campo de alternativas, como uma luta de

tendências” e, na fidelidade ao método dialético, considera que desfecho da luta “não está

assegurado por nenhum ‘determinismo econômico’ de sentido unívoco, mas depende do

resultado da luta entre vontades coletivas organizadas” (COUTINHO 2007, p.43)23.

Evidencia-se o importante papel desempenhando nos Quaderni pela categoria de

contradição objetiva (LOSURDO, 2006, p.118). Gramsci insiste nas “contradições históricas”

(1975.II, Q.11, p.1488), as “contradições sociais” (1975.II, Q.7, p.806) ou as “contradições

insanáveis” da “estrutura” (1975.III, Q.13, p.1580).

A superioridade da filosofia da práxis está no fato de ser livre do “elemento ideológico

unilateral e fanático”: ela é a “a expressão consciente dessas contradições”, ou seja, “a

consciência plena das contradições” (1975.II, Q.11, p.1487).

Enquanto as demais filosofias (ou ideologias) se voltam à “conciliação de interesses

opostos e contraditórios”, a filosofia da práxis é “a própria teoria de tais contradições”;

enquanto as demais são fugazes, já que “a contradição aflora após cada evento do qual foram

instrumentos”, a filosofia da práxis é a expressão das classes subalternas “que querem educar

a si mesmas na arte do governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive

as desagradáveis” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1320).

Em Gramsci, portanto, há uma dialética fundada na práxis, no agir histórico, não uma

reflexão meramente formal. Gramsci se distancia de Hegel, não obstante o uso do aparato

teórico hegeliano tomado “via-Marx”. Enquanto as dialéticas formais, como a de Croce,

23 Nesse particular, Coutinho propõe uma interessante aproximação da perspectiva da vontade coletiva de Gramsci com o conceito de “vontade geral” em Rousseau (2008, p.121-142).

33

dissolvem-se num caráter especulativo e formal, a filosofia da práxis vê a dialética na história

concreta.

Observe-se ainda que o critério de distinção entre um real saber histórico e uma

utopia/ideologia é exatamente este: considerar de modo correto as contradições objetivas

(LOSURDO, 2006, p.119). Segundo Gramsci, “de base utopista” se revelam a filosofia de

Croce e as “últimas filosofias” (numa provável referência a Gentile) que pretendem remover

as contradições do real (GRAMSCI, 1975.II, Q.7, p.886). Como recorda Germino (2003,

p.133), são diversos os momentos em que Gramsci, desde a juventude até o período do

cárcere, denuncia o pensamento utópico24.

Decorre do caráter dialético do pensamento de Gramsci a importância dada não só ao

aspecto econômico da sociedade capitalista, mas também ao político, ao cultural, ao

ideológico. Este último, sobretudo, é o que distancia o marxista sardo do neo-idealismo:

Completamente ignorada por Gentile, desfigurada de maneira vulgarmente materialista e portanto mais facilmente tornada odiosa e digna de uma denúncia apocalíptica por Croce, a categoria de ideologia desempenha um papel decisivo e constante no pensamento de Gramsci, que demonstra ter compreendido e assimilado o novo significado assumido pelo filosofar depois de Hegel e Marx (LOSURDO, 2006, p.151).

A partir da importância conferida ao aspecto cultural-ideológico Gramsci aprofunda o

conceito de hegemonia constituinte do processo histórico tanto quanto o elemento de coerção

aprofundado por Marx e Engels.

O conceito gramsciano de hegemonia – “valido para o passado e para o futuro – é

central para entender a possibilidade e o limite da dialética histórica” (PRESTIPINO, 2001)

de tal modo que se torna possível afirmar que a mais moderna filosofia da práxis consiste no

aprofundamento do sentido e do momento da hegemonia (GRAMSCI, 1947, p.224).

24 Losurdo recomenda, no entanto, cautela ao tratar da generalização feita por Gramsci da categoria “utopia”, por abranger “conteúdos bastante diversos e heterogêneos” (2006, p.119). O próprio Gramsci nos adverte sobre o “valor político” da utopia (1975.II, Q.11, p.1488). No mesmo ponto, o marxista italiano afirma, de forma contundente que também a filosofia da práxis pode degenerar em utopia, na medida em que foge “do atual terreno das contradições” e se abandona à contemplação do futuro “mundo sem contradições”.

34

Na imbricada trama Estatal do início do século XX, a história dialeticamente tomada se

mostra como equilíbrio cada vez maior entre coerção e consenso o que, longe de ser um

detalhe, configura-se como elemento de “ampliação” do Estado que abarca também a

sociedade civil.

Ao abordar o Estado de forma integral ou “ampliado”, Gramsci evidencia ainda mais

sua concepção dialética da política e da história. Passemos a este ponto.

2.2 O Estado “ampliado” de Gramsci

O conceito de Estado é renovado por Gramsci no contexto do marxismo a partir da

articulação entre sociedade política (que detém os mecanismos de repressão) e da sociedade

civil, compreendida em suas duas formas: como espaço de difusão da ideologia da classe

dominante, mediante seus aparelhos “privados” e, ao mesmo tempo, como lugar da atividade

econômica (BIANCHI, 2007, p.45)25. O Estado “propriamente dito”, e a “sociedade civil”

são, em Gramsci, dois momentos distintos, em relação dialética e, ao mesmo tempo,

constituem o “Estado ampliado” (LIGUORI, 2007, p.35-36).

Os termos “Estado” (ou sociedade política) e “sociedade civil” aparecem repetidamente

nos Quaderni de modo até mesmo distinto e autônomo, sendo o mais aconselhável, para a

compreensão da abordagem dialética de Gramsci tomar como referência o termo “Estado

ampliado” (LIGUORI, 2007, p.13).

Segundo este autor,

Gramsci tem uma concepção dialética da realidade histórico-social, em cujo contexto Estado e sociedade civil são entendidos num nexo de unidade-distinção, de modo que abordar um sem o outro significa negar a si mesmo a possibilidade de ler corretamente os Cadernos (2007, p.13)

25 Abordaremos tais “aparelhos” ao analisar, mais detidamente, o tema da hegemonia, no ponto 2.2.1.

35

Trataremos de modo específico, na terceira parte de nosso trabalho, sobre a crítica de

Gramsci a Benedetto Croce. No entanto, devemos dizer uma palavra neste ponto da reflexão

sobre a chamada “dialética dos distintos” croceana, à qual Gramsci empreenderá uma

superação, por se tratar de uma abordagem puramente verbal e especulativa (BIANCHI, 2007,

p.44; PRESTIPINO, 2001).

Em Croce, unidade e distinção do conceito são correlativas o que implica em retirar da

“distinção” o caráter de “negação” (BIANCHI, 2007, p.44). Gramsci não rejeita a idéia

croceana de que no interior de uma unidade seja possível encontrar distintos; o que ele rejeita

é a redução da dialética histórica a uma alternância de formas puras do conceito (BIANCHI,

2007, p.44; PRESTIPINO, 2001).

O resultado objetivo da “dialética dos distintos” de Croce é que o equilíbrio de forças

políticas se torna harmônico, complementar. Ao retirar da dialética a conflitividade, já que

suprimir a negação implica na reprodução infindável da tese que não é nunca superada pela

antítese (BIANCHI, 2007, p.44), Croce acaba por apresentar a política como campo isento de

luta: a dialética fragmentada em momentos complementares se reduz “a um processo de

evolução reformística, de ‘revolução-restauração’” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1328)26. A

“dialética dos distintos” é, na verdade, a-dialética (LIGUORI, 2007, p.35).

Desse modo, em Gramsci, a relação entre sociedade política e sociedade civil, como

voltaremos a tratar em breve, é sempre de unidade-distinção, de forma dialética, constituindo

dois planos que só podem ser separados metodologicamente, pois, na concretude dos fatos,

são unidos “organicamente” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1590).

Considerando o caráter eminentemente dialético do pensamento de Gramsci, é possível,

então, estabelecer o Estado “ampliado” como uma espécie de “conceito-mãe” dos demais que

26 Bianchi (2007, p.44) recorda que é por meio das categorias de unidade e distinção que Gramsci tematiza a “elaboração superior da estrutura em superestrutura” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1244), aspecto que mostra a passagem para a “sociedade regulada” (ou momento catártico) e a importância dos intelectuais, como abordaremos no item 2.3.

36

compõem sua filosofia política (LIGUORI, 2007, p.39). Através deste conceito, que articula

na unidade-distinção a sociedade civil e a sociedade política, será possível, em seguida,

compreender melhor a discussão de Gramsci sobre outros temas correlatos como hegemonia,

bloco histórico etc.

Em termos históricos e filológicos, coube a Christine Buci-Gluksmann (1980, p.126-

153) a fórmula “Estado ampliado” que passou a ser adotada entre os comentadores de

Gramsci. Segundo a autora, “ao lado do Estado em sentido estrito, Gramsci coloca o Estado

em um sentido amplo: o que ele chama de Estado integral” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980,

p.128).27

Ao analisar o processo de constituição da ordem social pós-Revolução Francesa,

Gramsci afirma que a burguesia “pôde apresentar-se como ‘Estado’ integral, com todas as

forças intelectuais e morais necessárias e suficientes para organizar uma sociedade completa

perfeita” (GRAMSCI, 1975, II, Q.6, &10)28. Tal afirmação nos leva a compreender que já na

consolidação da sociedade burguesa havia a articulação entre sociedade política e sociedade

civil.

Do mesmo modo, Gramsci se refere ao jacobinismo, que aparece como tentativa de

Unificar ditatorialmente os elementos constitutivos do Estado em senso orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil) em uma busca desesperada de apertar no punho toda a vida popular e nacional, mas aprece também como a primeira raiz do Estado laico moderno, independente da Igreja, que procura e encontra em si próprio, em sua vida complexa, todos os elementos de sua personalidade histórica (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.763)

27 Segundo Rita Médici, a grande contribuição de Buci-Glucksmann está no fato de ter identificado em Gramsci uma nova concepção de Estado (2007, p.33). 28 Há uma relação entre a afirmação de Gramsci e o Prefácio à Crítica da Economia Política de 1859 (BIANCHI, 2007, p.38).

37

Liguori aponta duas direções nas quais ocorre a “ampliação” do conceito de Estado nos

Quaderni: a primeira entre política e economia; a segunda entre sociedade civil e sociedade

política (2007, p.14-22).

Quanto à ampliação entre política e economia, Gramsci tem como pressupostos a

experiência do fascismo italiano, a União Soviética e o colapso da bolsa de Nova York:

acontecimentos distintos que apontam para uma relação mais íntima entre economia e

política. No entanto, ressalta Liguori, se estas esferas se apresentam de forma articulada isso

não significa que esteja invalidada a tese marxiana da determinação do econômico, já que

Gramsci não substitui a economia pela política (2007, p.14): “o Estado só pode ser concebido

como forma concreta de um determinado mundo econômico” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10,

p.1310).

Aliás, cabe ressaltar que na compreensão de Gramsci, o político redefine as próprias

relações com o econômico não por acaso, mas em decorrência da necessidade de o capital

superar as crises do início do século XX (LIGUORI, 2007, p.19).

No que tange à nova relação entre “sociedade política” e “sociedade civil”, a

compreensão de Gramsci tem ligação direta, segundo Liguori, também com o contexto

histórico, em plena mudança na passagem do século XIX ao XX.

É a partir da não-separação “ontológica de Estado e sociedade civil e de política e economia que Gramsci pode captar o novo papel que o político assume no século XX, seja em relação à produção econômica, seja – conseqüentemente – em relação à composição de classe da sociedade (LIGUORI, 2007, p.17).

Ressalta-se aqui a diferença entre a perspectiva articulada de Gramsci entre sociedade

civil e sociedade política e aquela, avinda do Manifesto Comunista de 1848, que reduz o

Estado ao aparelho coercitivo (BIANCHI, 2007, p.39). A novidade, por assim dizer, de

Gramsci, está na colocação do consenso como elemento constitutivo do Estado, no mesmo

nível de importância que a coerção já que “na política o erro acontece por uma inexata

38

compreensão daquilo que é o Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia)”

(GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.810-811). Em outra parte, no mesmo Quaderno, Gramsci já

afirmara que “na noção geral de Estado entram elementos que se reportam à noção de

sociedade civil (nesse sentido, pode-se dizer, que Estado = sociedade política + sociedade

civil, ou seja, hegemonia encouraçada de coerção)” (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.763-764).

Cabe ressaltar que ao “ampliar”29 o conceito de Estado, Gramsci tem sempre em mente

sua dimensão coercitiva, vale dizer, a identificação feita no Manifesto do Estado como comitê

dos interesses da burguesia (BIANCHI, 2007, p.39).

Deste modo, continua de pé, para Gramsci, que o modo de produção capitalista tem a

economia com seu “motor primeiro” e que a distinção entre Estado e sociedade civil

classicamente compreendida é só metodológica (LIGUORI, 2007, p.19). Veremos esse ponto

ao tratar mais detidamente sobre a hegemonia.

Na adoção da perspectiva de Buci-Glucksmann, Coutinho também estuda a teoria

“ampliada” do Estado (2008, p.14-79; 2007, p.119-143)30. Segundo o autor, o grande

“problema” sobre o qual a pesquisa de Gramsci se debruça nos Quaderni seria esse:

Por que, apesar da crise econômica aguda e da situação aparentemente revolucionária que existia em boa parte da Europa Ocidental ao longo de todo o primeiro imediato pós-guerra, não foi possível repetir ali, com êxito, a vitoriosa experiência dos bolcheviques na Rússia? (Coutinho 2007, p.83)

Ao responder a essa pergunta, Gramsci irá promover “um desenvolvimento original de

alguns dos conceitos básicos de Marx, Engels e Lenin”, a fim de apresentar uma “estratégia

de transição ao socialismo nos países mais desenvolvidos” (COUTINHO, 2007, p.83). Desse

modo, a “ampliação” do conceito de Estado estaria articulada à análise feita por Gramsci

29 Por se tratar de uma expressão adaptada aos escritos de Gramsci, optaremos por mantê-la sempre entre aspas. 30 O autor situa os conceitos de restrito e amplo a partir do método marxista de relação entre abstrato e concreto: “poderíamos dizer que uma concepção marxista do Estado é tanto mais ‘ampla’ quanto maior for o número de determinações do fenômeno estatal por ela mediatizados/sintetizados [...]; e que, vice-versa, será “restrita” uma formulação que, consciente ou inconscientemente, concentre-se no exame de apenas uma ou de relativamente poucas determinações da esfera político-estatal” (COUTINHO, 2008, p.14). É no plano histórico-ontológico (da realidade objetiva) que se distingue o Estado estudado por Marx-Engels (mais restrito) e aquele sobre o qual se debruça Gramsci (mais amplo).

39

dos limites e das possibilidades do socialismo na Itália e nos países desenvolvidos da Europa,

o que lhe teria possibilitado uma superação dialética da teoria revolucionária que predominou

na Rússia de 1917, que teve por premissa a concepção de Estado do Manifesto (COUTINHO,

2007, p.83).

Vale apontar as conseqüências da chamada “ampliação” do Estado para a teoria da

revolução ou, dito de outro modo, a passagem para o socialismo. Ao apontar a mudança

havida entre 1848 e o início do século XX, Gramsci afirma que:

No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas [...] (GRAMSCI, 1975.II, Q.7, p.866).

Não se trata, obviamente, de uma análise “geográfica”. Para Gramsci, “Oriente” e

“Ocidente” são tipos de formação econômico-social, determinados pelo peso que neles possui

a sociedade civil na sua relação com o Estado (COUTINHO, 2007, p.82).

No já referido Quaderno 13, Gramsci apresenta um panorama histórico da sociedade

entre 1848 e o início do século XX que nos permite visualizar a distinção entre o modelo de

revolução que o autor considera mais apropriada a seu contexto e aquele desenvolvido por

Marx e Engels na metade do século XIX. Isto nos parece importante no propósito de apontar o

que Gramsci apresenta de novo na sua teoria do Estado e em que medida este, no autor

italiano, aparece de forma mais “ampliada” que em Marx-Engels.

Para Gramsci, a proposta de “revolução permanente” apresentada em 1848 refere-se a

uma fórmula “própria de um período histórico em que não existiam ainda os grandes partidos

políticos de massa e os grandes sindicatos econômicos, e a sociedade ainda estava sob muitos

aspectos, por assim dizer, no estado de fluidez” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1566)31.

31 Como recorda Baratta, o impasse proveniente do interior do socialismo do início do século XX – sobretudo no debate de Lênin com Trotski – entre revolução em um só país ou a ou revolução permanente é o fator principal

40

Ocorre que, no período posterior a 1870, as relações de organização internas e

internacionais do Estado tornam-se mais complexas e robustas e isto se deve ao fato de que a

sociedade civil, no final do século XIX e início do XX, desenvolve-se como uma esfera de

mesma importância que o Estado.

Dessa forma, a concepção de um Estado “restrito” convergia, necessariamente, como

em Marx, para uma concepção de revolução “explosiva”, já que o aspecto coercitivo do

Estado se apresentava no primeiro plano da realidade. No caso de Gramsci, ao contrário, trata-

se de uma época histórica na qual já se efetivou uma “ampliação” do fenômeno estatal: a

esfera política “restrita”, apontada por Marx, “cede progressivamente lugar a uma nova esfera

pública ‘ampliada’, caracterizada pelo crescente protagonismo de amplas organizações de

massa” (COUTINHO, 2008, p.52-53)32.

Afirma-se, mais uma vez, a existência do

Que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados”) e o [plano] da “sociedade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico” (GRAMSCI, 1975.III, Q.12, p.1518-1519).

Gramsci chama a atenção para o fato de que a “identidade-distinção entre sociedade

civil e sociedade política, e, portanto a identificação orgânica entre indivíduos (de um

determinado grupo) e Estado” (1975.II, Q.8, p.1028) deva ser entendida não só de forma

lógica, como unidade dialética de opostos, mas como relação política entre Estado e

indivíduos (BARATTA, 2004, p.41).

Encontrar a efetiva identidade na aparente diversidade e contradição, e a substancial diversidade na aparente diversidade, é a mais delicada, incompreendida, mas essencial capacidade do crítico das idéias e do histórico do desenvolvimento social (GRAMSCI, 1975.III, Q.24, p.2268).

que levou Gramsci à reformulação do materialismo histórico e do comunismo (2004, p.56). O conceito de hegemonia será uma superação da proposta de revolução permanente. 32 É especificamente nesse ponto que Coutinho situa a “teoria marxista ampliada do Estado” feita por Gramsci, quando ganha destaque a “socialização da política” (COUTINHO, 2008, p.53).

41

Nesse sentido, como nos recorda Baratta (2004, p.42), a “sociedade civil” representa o

Estado considerado de baixo, ou seja, do ponto de vista dos indivíduos, enquanto a “sociedade

política” é o Estado visto do alto como “governo dos funcionários” (GRAMSCI, 1975.II, Q.8,

p.1020).

Se Gramsci aponta a importância da “sociedade civil” como momento superestrutural,

ou seja, como esfera de produção ideológica no mesmo grau de importância que a coerção

pela força por parte da “sociedade política”, isso não significa que se tratem de esferas

separadas. Para Gramsci, como já dissemos, “a distinção entre sociedade política e sociedade

civil [é] metodológica [e não] uma distinção orgânica” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1590).

Devemos, desse modo, concordar com Liguori, quando afirma que

É errado separar e contrapor sociedade e política, sociedade e Estado. Por isso, Gramsci ainda é importante: porque redefiniu o sentido da política, enriquecendo-a precisamente com o fato de que ela se confunde com a ação na sociedade, na fábrica, na cultura, em toda parte em que se jogue a partida do poder (LIGUORI, 2007, p.72).

Se é mais clara a identificação do que Gramsci chamou de “sociedade política” com o

Estado em sentido restrito – nos moldes do Manifesto de 1848 –, mais complexa – e aí está

um dos principais pontos de contribuição de Gramsci para a filosofia política – mostra-se a

definição de “sociedade civil”33 (BIANCHI, 2007, p.40).

Para uma melhor compreensão sobre a sociedade civil em Gramsci é necessário que

aprofundemos o conceito de hegemonia.

33 A definição é complexa “seja porque no texto gramsciano o conceito tem contornos bastante imprecisos; seja, porque não existe apenas uma definição para o termo; seja porque na linguagem política contemporânea o termo ‘sociedade civil’ foi incorporado fazendo, muitas vezes, referências ao próprio Gramsci, embora com um sentido diferente; seja por tudo isso, a confusão é grande” (BIANCHI, 2007, p.40). Na mesma linha, recorda-nos Baratta, que, em Gramsci, mostra-se fracassada qualquer tentativa de indicar ou descrever univocamente a realidade que deveria ser reproduzida ou expressa pelo conceito de “sociedade civil” (BARATTA, 2004, p.40). Ela pode significar o conjunto das superestruturas, o conjunto de estrutura e superestrutura, o aparelho hegemônico do Estado ou tudo isso junto.

42

2.2.1 Hegemonia

Como vimos, a esfera da “sociedade política” não se diferencia em muito da concepção

de Estado stricto sensu de Marx e Engels, ou seja, na sua dimensão de coercitiva, enquanto

força34.

A originalidade de Gramsci está na definição – que, exatamente por isso “amplia” o

conceito de Estado – do que ele entende por “sociedade civil”35. Por ela, Gramsci eleva a

importância política do que denominou de “conjunto de organismos designados vulgarmente

como ‘privados’” (GRAMSCI, 1975.III, Q.12, p.1518-1519), ou seja, o sistema escolar, as

igrejas, os partido políticos, as organizações profissionais, os meios de comunicação etc36.

Sendo assim, a conservação da dominação burguesa (e, conseqüentemente, a

possibilidade de sua superação) não é mais restrita a um “poder organizado para a opressão”,

como para Marx e Engels no Manifesto de 1848: “no âmbito da ‘sociedade civil’, as classes

buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para os seus projetos através

da direção e do consenso”, enquanto que, “por meio da ‘sociedade política [...] exerce-se [...]

uma dominação fundada na coerção” (COUTINHO, 2008, p.54).

A noção de Estado “ampliado”, incorporando o elemento da hegemonia, aparece

também nas Lettere dal Carcere37. Numa carta de setembro de 1931, Gramsci relaciona sua

compreensão de Estado com o conceito de intelectual. Diz o autor:

[...] eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente, é entendido como sociedade política (ou

34 Cabe ressalvar, uma vez mais, que o conceito aqui tomado não esgota toda a teoria marx-engelsiana do Estado. Trata-se, apenas, de destacar a formulação própria de 1848, quando do Manifesto do Partido Comunista, já que é esta a base referencial da análise de Gramsci sobre a revolução bolchevique na Rússia que, por sua vez, teve como modelo a teoria revolucionária do Manifesto. 35 Para Coutinho, “o conceito de ‘sociedade civil’ é o meio privilegiado através do qual Gramsci enriquece, com novas determinações, a teoria marxista do Estado” (2007, p.122). Ver também Liguori (2007, p.41). 36 Nesse sentido, há uma interessante abordagem de Gramsci sobre a escola, os jornais e a universidade (1975.II, Q.11, p.1394). 37 Com outro estilo em relação aos Quaderni, porém, como mesmo empenho, as Lettere apresentam também o esforço teórico de Gramsci em compreender as exigências do projeto socialista sob o regime fascista.

43

ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais (GRAMSCI, 1947, p.166).

A “descoberta” de tais organizações privadas, ou “aparelhos privados de hegemonia” é

o ponto de apoio para a teoria “ampliada’ do Estado em Gramsci (COUTINHO, 2007, p.126).

Estes aparelhos de hegemonia se somam aos “aparelhos coercitivos”, típicos do Estado em

sentido estrito (LIGUORI, 2007, p.21)38:

Além do referido texto do Quaderno 12, em que Gramsci fala dos “organismos

designados vulgarmente como ‘privados’”, há outras referências como a do Quaderno 6

(1975.III, p.801) em que fala do “aparato ‘privado’ de hegemonia” ou a do Quaderno 8 em

que usa o advérbio “vulgarmente” (1975.III, p.1020).

Para Liguori, estas indicações de aspas ou a ressalva do termo “vulgarmente”

demonstram que, para Gramsci, tais aparelhos hegemônicos apenas aparentemente são

“privados”, ou seja, fora do Estado: na verdade, eles fazem plenamente parte do Estado, o que

reforça a correta expressão “Estado ampliado” (2007, p.21).

Foge ao propósito deste trabalho analisar o debate contemporâneo sobre a sociedade

civil, o mercado e o chamado “terceiro setor”, em muitos casos baseado em Gramsci39. No

entanto, podemos apontar aqui um aspecto mais geral, como nos lembra Liguori:

Se os organismos da sociedade civil gramscianamente entendida fossem “privados” tout court, abrir-se-ia caminho para uma leitura “culturalista”, “idealista”, “liberal” de Gramsci, tendente a enfatizar a importância do “diálogo” ou da habermansiana “ação comunicativa”, vistos como desligados das relações de força: uma visão ingênua da democracia e da hegemonia (2007, p.21).

38 É necessário afirmar a grande diferença entre os “aparelhos privados de hegemonia” de Gramsci e os Aparelhos Ideológicos de Estado de Althusser. Se neste há uma primazia, vale dizer, uma supremacia do Estado, entendido como distinto da sociedade civil, “local” em que situa seus aparelhos, para Gramsci, ao contrário, o Estado é “integral”, ou seja, tanto o Estado (estrito) quanto a sociedade civil são atravessados pela luta de classes, isto é, pela disputa hegemônica de ideologias (LIGUORI, 2007, p.29). 39 Ver Montaño (2002) e Ramos (2005).

44

Na visão “ingênua”, a sociedade civil se apresenta como “arena livre em que os atores,

dialogando, criam o tecido conectivo da convivência democrática” (LIGUORI, 2007,p.31).

A observação precisa de Liguori aponta para os riscos de uma leitura equivocada dos

textos gramscianos. Veremos um exemplo disso na última parte de nosso trabalho, ao tratar

do comentador italiano Norberto Bobbio.

Portanto, a afirmação da sociedade civil como esfera de construção de consenso “não

suprime a instância repressiva, coercitiva da vida estatal, a sociedade política”, pois,

recordando uma vez mais, na realidade efetiva sociedade política e sociedade civil se

identificam no Estado (SOARES, 2000, p.104).

Do que foi dito, podemos afirmar que são dois os objetivos de Gramsci ao desenvolver

o conceito de hegemonia: “1) retirar do marxismo os elementos economicistas que o

impregnavam ao ser divulgado pelo movimento operário e 2) elevar a capacidade dessa teoria

de responder a novas questões propostas pelas mudanças históricas” (SOARES, 2000, p.63).

Desse modo, pode-se dizer que a hegemonia não é apenas política, mas também um

fato cultural, de concepção de mundo (GRUPPI, 2000, p.72-73). Hegemonia não é um dado

ou uma aquisição, mas um processo, uma realidade em movimento: é uma prática, antes de

ser uma teoria (BARATTA, 2004, p.218).

A hegemonia deve ser compreendida como articulada à esfera da produção e também

da reprodução social, ou seja, ela é a somatória de um conjunto de fatores nos campos

objetivo e subjetivo da correlação de forças entre as classes sociais (SIMIONATTO, 2003,

p.276).

Tais relações não se referem apenas à criação de uma nova forma de organização do

trabalho e do capital, mas também à formação de novos pactos e consensos entre capitalistas e

trabalhadores, já que o controle do capital não incide somente na extração da mais-valia, mas

45

implica, ainda, o consentimento e a adesão das classes à nova ideologia (SIMIONATTO,

2003, p.276).

Para Gramsci, a hegemonia, como projeto econômico, político e ideológico de

determinada classe se dá na história e, portanto, pode se formar e se dissolver, a depender da

correlação de forças de determinado momento – ou bloco – histórico. O termo “supremacia”

nos parece aquele que realiza a soldagem necessária entre força e consenso:

A supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social é dominante dos grupos adversários, que tende a liquidar ou a submeter, inclusive com a força armada, e é dirigente dos grupos afins e aliados. Um grupo social pode, ou mesmo deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental. É essa uma das condições principais para a própria conquista do poder. Depois, quando exerce o poder, e mesmo quando o mantém fortemente sob controle, torna-se dominante, mas deve continuar a ser dirigente (GRAMSCI, 1975.III. Q.19, p.2010-2011).

A chamada “supremacia” é, pois, a junção de domínio (controle) e hegemonia (direção

intelectual e moral). A hegemonia avança ou recua a depender da capacidade de direção

política, ideológica e moral daquela que até tal momento, era uma classe subalterna (GRUPPI,

2000, p.79)40.

A supremacia de um grupo social ou classe entra em crise quando, embora se mantenha

a dominação (força), desaparece a capacidade de ser dirigente (hegemonia). Desse modo, a

classe que detém o poder político, não sabe mais verdadeiramente dirigir, isto é, sua

concepção de mundo antes afirmada passa a ser rechaçada (GRUPPI, 2000, p.79). Nesse

momento de crise a classe subalterna (ou mesmo um partido) tem a oportunidade de indicar o

modo concreto de solução para os problemas da coletividade, de modo a alinhar em torno de

si uma nova proposta, que se pode tornar hegemônica (GRUPPI, 2000, p.79).

40 Acenamos aqui para uma questão pertinente: trata-se da possibilidade de que, em Gramsci, a dominação de uma classe sobre as subalternas seja inerente ao jogo político histórico. Em outras palavras, o projeto das classes subalternas (no capitalismo, majoritariamente formada pelos trabalhadores) não consistiria em pôr fim (extinguir) à relação de dominação de uma classe sobre outra, mas sim a de construir um novo “domínio”, isto é, a hegemonia das classes, hoje, subalternas. Isso implica uma reformulação da passagem do capitalismo ao socialismo. Pretendemos trabalhar desenvolver esse tema ao tratar da chamada “extinção” do Estado, na terceira parte do nosso estudo.

46

Aí se evidencia a distinção entre Marx e Gramsci, embora se trate de uma superação e

não de negação. Marx vê o momento revolucionário eminentemente como crise da estrutura

econômica.

Conservando firmemente o ensinamento de Marx, Gramsci dirige a sua atenção para um outro momento da crise revolucionária da sociedade; e o faz tanto mais quanto quer combater as visões vulgarmente deterministas do marxismo e orientar a atenção do movimento operário em direção de um momento até então negligenciado, o momento ideológico, cultural e moral. Em Gramsci, a crise revolucionária é vista, sobretudo a nível [sic] da superestrutura; é lida a nível [sic] da hegemonia e é concebida como crise de hegemonia. Essa crise envolve, porém, toda a sociedade, todo o bloco histórico [...]; a crise revolucionária é vista por Gramsci na totalidade do processo social (GRUPPI, 2000, p.79).

A “anatomia” da sociedade civil feita por Marx era, por assim dizer, o primeiro e

fundamental passo para fundamentar a explicação da revolução de modo científico e crítico,

rompendo com o idealismo. No entanto, em Gramsci se verifica um esforço por apresentar a

“anatomia” da totalidade da sociedade, não de modo idealista (como Croce) e nem de modo

mecanicista (como Bukharin), mas sim, compreendendo-a como processo de sucessíveis

blocos históricos de acordo com a hegemonia de classes determinadas (GRUPPI, 2000, p.80).

2.2.2 Guerra de movimento e guerra de posição

A conseqüência imediata da “ampliação” do conceito de Estado será a reformulação da

teoria da revolução socialista em Gramsci (COUTINHO, 2008, p.57-58). Nas chamadas

sociedades “orientais”, nas quais não se desenvolveu uma sociedade civil forte, a luta de

classe se trava com vistas à conquista e conservação do Estado por determinada classe; já nas

sociedades de tipo “ocidental”, há um equilíbrio entre “sociedade política” e “sociedade

civil”, o que implicará em se travar a luta de classe tendo como terreno prévio e decisivo os

aparelhos de hegemonia, isto é, a conquista do consenso da sociedade em torno de um projeto

47

alternativo ao hegemônico. Cabe, pois, passar da “guerra de movimento” à “guerra de

posição”. Vejamos.

Tal é a complexidade do Estado nas sociedades de tipo “ocidental” que Gramsci irá,

numa alusão à estratégia da guerra, apontar formas distintas de combate ao capitalismo: se em

1848 – vale dizer, também em 1917 – o Estado se apresentava majoritariamente como

“sociedade política”, a tomada do poder foi possível pela força, pela guerra de movimento; no

entanto, a abrangência da “sociedade civil” exigirá uma nova modalidade da luta de classes,

mais processual, na chamada guerra de posição. Por isso, afirmará Gramsci que “ocorre na

arte política o que ocorre na arte militar: a guerra de movimento torna-se cada vez mais guerra

de posição” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1566-1567).

Diz ainda o filósofo italiano:

A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais, seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para a arte política algo similar às “trincheiras” e às fortificações permanentes da frente de combate na guerra de posição: faz com que seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes constituía “toda” a guerra, etc. (1975.III, Q.13, p. 1567).

Ora, a concepção de “revolução explosiva”, própria de 1848, tinha lugar numa

concepção Estado “restrito”. Dessa forma, a guerra de movimento supunha a tomada do

Estado e esta era “toda” a guerra. No contexto das sociedades ocidentais avançadas do início

do século XX, com sua “estrutura maciça”, apelar para a guerra de movimento implicaria em

tomar apenas uma parte do Estado (a sociedade política), portanto, uma vitória “parcial”.

Cabe, pois, o uso da guerra de posição, isto é, a busca da hegemonia.

O modelo da revolução explosiva, adotado em 1917, quando da revolução bolchevique,

é lido nesta perspectiva por Gramsci. Segundo o filósofo italiano,

Ilitch [Lênin] havia compreendido a necessidade de uma mudança da guerra manobrada [ou de movimento], aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente e lhe parece ter sido este o

48

significado da fórmula da “frente única” [...] (GRAMSCI, 1975.II, Q.7, p.866), grifo nosso) 41.

A “frente única” aparece aqui como a referência de uma nova modalidade de

enfrentamento do capitalismo, numa visão de processo42. O motivo é que a revolução

socialista mundial – esperada nos anos 1918-1920 como algo iminente pelos bolcheviques –

mostrou-se mais complexa do que parecia (COUTINHO, 2007, p.47). Isso implica, na

perspectiva gramsciana, uma nova organização do ponto de vista prático para a construção do

socialismo; ao mesmo tempo, na perspectiva teórica, implica em repensar a revolução.

Chama-nos a atenção a perspicácia de Gramsci ao observar a mudança do contexto

histórico de Marx para o seu, no que têm de distintos e no que mantém de semelhanças. De

forma acertada, Gramsci observa que “a passagem da luta política de ‘guerra manobrada’ para

‘guerra de posição’ [...], na Europa, ocorreu depois de 1848” (GRAMSCI, 1975.III, Q.15,

p.1768).

Concordando com Liguori, podemos dizer que

A passagem do Manifesto [do Partido Comunista] aos Cadernos [do Cárcere] é, sob muitos aspectos, a passagem – para usar a linguagem gramsciana – do tempo da ‘guerra de movimento’ ao da ‘guerra de posição’, do tempo dos ‘assaltos frontais’ ao do ‘cerco recíproco’ e das ‘trincheiras e casamatas’ (LIGUORI, 2007, p.139).

Desse modo, ganha maior significação a afirmação do partido, compreendido como

intelectual coletivo, que unifica a teoria e a prática junto às massas; é ele que dirige o

41 É controversa a relação entre Gramsci e Lênin. Há autores que os situam em continuidade: para Gruppi, há uma retomada de Lênin nos textos de Gramsci, sobretudo no que se refere ao partido (2000, p.75); na mesma linha, Buci-Glucksmann afirma que os Quaderni devem ser lidos com uma “continuação do leninismo”, ainda que outras condições históricas (190, p.27). Para outros, como Médici, há uma distância considerável entre Gramsci e Lênin, de modo especial no tema da extinção do Estado. Há, ainda, autores em uma posição intermediária: segundo Ingrao, Gramsci “representou a mediação que encaminhou uma inovação com relação a Lênin, sem abandonar e jogar no lixo o patrimônio positivo contido no leninismo” (1970, p.31-32); para Coutinho, o desenvolvimento de Gramsci em relação a Lênin se expressa, sobretudo, no fato de ter incorporado, no estudo da sociedade capitalista de seu tempo, “novas determinações geradas pelo desenvolvimento histórico-social”, nas quais se situam, entre outras, a diferença entre as formações sociais de tipo oriental e ocidental, a teoria ampliada do Estado (2007, p.85-86). 42 A chamada “frente única operária” foi proposta em 1921 no III Congresso da Internacional Comunista, sob inspiração de Lênin (COUTINHO 2007, p.48). Tratava-se de uma proposta de aliança dos partidos comunistas com os demais partidos e sindicatos social-democratas russos, a fim de garantir a vitória do socialismo. Lênin afirma que a conquista do poder, relativamente fácil na Rússia, demandaria maior esforço nas sociedades ocidentais, o que determinaria um processo mais longo (LENIN, vol.2, 1979, p.499).

49

processo de disputa com a hegemonia burguesa, com vistas a constituir a hegemonia das

classes subalternas (GRUPPI, 2000, p.73).

Guerra de posição e guerra de movimento são, pois, categorias que exemplificam

estratégias de luta. Se, como apontado pelo último Engels, a luta operária exigia “outros

fatores” além da luta de rua, Gramsci apresenta uma proposta, a um tempo, original e

fundamentada na luta já histórica dos trabalhadores desde 1848.

Importa, agora, aprofundar um pouco o tema da relação entre estrutura e

superestrutura.

2.2.3 Estrutura e superestrutura

De antemão, cabe afirmar que Gramsci é mais bem compreendido se levarmos em conta

o caráter dialético de seu pensamento. De modo inversamente proporcional, tenderemos a

classificá-lo de modo equivocado tanto quanto nos esquecermos de tal caráter.

No final do primeiro parágrafo do Quaderno 13 Gramsci faz um questionamento

retórico: “Pode haver reforma cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da

sociedade, sem uma anterior reforma econômica e uma modificação na posição social e no

mundo econômico?”. A resposta implícita é negativa, obviamente. O motivo é esclarecido a

seguir:

É por isso que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1561).

Nota-se, em Gramsci, um esforço permanente de evitar a dissociação entre economia e

política, entre estrutura e superestrutura. A reforma intelectual e moral, mudança de

50

concepção de mundo, como veremos mais adiante, caminha junto com a alteração do modelo

de estrutura econômica.

A concepção dialética do marxista italiano pode ser percebida de forma ainda mais

incisiva no tratamento dado à função produtiva das classes sociais, presente no Quaderno 10,

intitulado La filosofia di Benedetto Croce43. Diz Gramsci:

É verdade que a conquista do poder e a afirmação de um novo mundo produtivo são indissociáveis, que a propaganda de uma coisa é também a propaganda de outra e que, na realidade, somente nessa coincidência reside a unidade da classe dominante que é, ao mesmo tempo, econômica e política [...] (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1360) .

Um pouco antes, Gramsci afirmara a necessidade de se evitar a compreensão

determinista do econômico sobre o político:

Se bem que seja certo que para as classes produtivas fundamentais (burguesia capitalista e proletariado moderno), o Estado não seja concebível mais que como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção, não é dito que a relação entre meios e fins seja facilmente determinável e assuma o aspecto de um esquema simples e óbvio à primeira vista (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1360)44.

A prudência metodológica de Gramsci se deve ao seu aspecto peculiar de observação do

contexto concreto de seu país, bem como do contexto internacional45. Segundo Bianchi, a

melhor prova disso é que a Itália do século XIX, país no qual as mudanças que se

43 Benedetto Croce é um dos principais interlocutores de Gramsci nos cadernos, por representar o autêntico neo-hegelianismo. Nesse sentido, comungamos com os autores que afirmam a superação feita por Gramsci idealismo croceano (SCHLESENER, 2002; SOARES, 2000; SEMERARO, 1999; BIANCHI, 2007 entre outros), como pretendemos mostrar ao tratar do “acerto de contas” de Gramsci com Croce no terceiro capítulo do presente trabalho. 44 Cabe ressaltar, como bem lembrou Bianchi (2007, p.36-37), a evolução ou, melhor dizendo, a constante depuração do pensamento de Gramsci no interior dos Quaderni. A passagem acima se configura como retomada de uma nota feita no primeiro Quaderno. Ali, Gramsci se restringia a afirmar que “para as classes produtivas (burguesia e proletariado moderno) o Estado não é concebível mais que como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção” (GRAMSCI, 1975.I, Q.1, p.132). Segundo Bianchi, a nova versão do texto, ampliado pela ressalva da complexidade entre meios e fins, “denota um esforço crescente do autor ao longo dos Quaderni com vistas a depurar o materialismo histórico de todo resíduo economicista” (BIANCHI, 2007, p.37). 45 Difícil aqui não notar a semelhança de perspectiva política entre Gramsci e Maquiavel, para quem a história deve ser observada como “mestra”, levando em conta o contexto particular e mais amplo. Para uma abordagem sobre história e política em Maquiavel ver Aranovich (2003) e Bignotto (1991; 2006).

51

processavam no Estado precediam a modernização econômica (BIANCHI, 2007, p.37) ou,

dito de outro modo, o político aparecia antes do econômico.

À luz da história, Gramsci critica radicalmente a visão economicista que compreende as

crises econômicas como antecipatórias de uma revolução (LOSURDO, 2006, p.181). Como

adverte o próprio autor dos Quaderni, “pode-se excluir que, por si mesmas as crises

econômicas produzam imediatamente eventos fundamentais”, o que se vê claramente no

exemplo da Revolução Francesa: “não se pode dizer que a catástrofe do Estado absoluto se

deveu a uma crise de empobrecimento” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1587).

É necessário, pois, reconhecer que as transformações econômicas não representam,

necessariamente, mudanças políticas ou, ao contrário, as transformações superestruturais

(políticas) nem sempre determinam mudanças estruturais (econômicas). Há certo

descompasso entre as mudanças ocorridas nas duas esferas, cuja adequação histórica se

encontra na unidade econômica e política da classe dominante (BIANCHI, 2007, p.38).

A realidade pode até ser dividida por questões didáticas (como em estrutura e

superestrutura), mas ela é sempre mais complexa e precisa ser compreendida com um

conjunto orgânico e dinâmico de relações de força (GRAMSCI, 1975, III, Q.13, p.1587;

SCHLESENER, 2002, p.142)46.

Dito ainda de modo mais incisivo, “não é verdade que a filosofia da práxis ‘separe’ a

estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como

intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco” (GRAMSCI, 1975.II,

Q.10, p.1300).

Uma observação, ainda, no que se refere ao tema da estrutura e superestrutura. Baratta

constata que “um avanço original de Gramsci em relação a Marx certamente não é o fato de

ter invertido a relação entre economia e cultura, mas o de ter aplicado a esta última conceitos

46 Somente desconsiderando esse caráter dialético de Gramsci se torna possível, num equívoco de interpretação, defini-lo como liberal. Voltaremos a este ponto ao tratar da leitura de Norberto Bobbio, na terceira parte de nosso trabalho.

52

e níveis de análises introduzidos por Marx no estudo do processo produtivo” (2004, p.147).

Isso implica dizer que Gramsci examina a estrutura da cultura, ou seja, estabelece de forma

significativa os nexos cultura-produção, ideologia-economia.

Esses nexos se apresentam de forma ainda mais evidente na categoria gramsciana de

bloco histórico.

2.2.4 Bloco histórico e revolução passiva

No intuito de demonstrar a articulação dialética entre estrutura e superestrutura,

Gramsci toma de Georges Sorel o conceito de “bloco histórico”:

Será que a estrutura é concebida como algo imóvel e absoluto, ou, ao contrário como a própria realidade em movimento? A afirmação das Teses de Feuerbach [de Marx], de que “o educador deve ser educado”, não coloca uma relação necessária da reação ativa do homem sobe a estrutura, afirmando a unidade do processo real? O conceito de “bloco histórico”, construído por Sorel, apreende plenamente esta unidade defendida pela filosofia da práxis (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1300-1301) 47.

O recurso retórico de que Gramsci lança mão nos serve para definir o modo como ele

entende a realidade e, por conseguinte, o conceito de bloco histórico: o homem “reage

ativamente sobre a estrutura”, numa “unidade do processo real”, portanto, ela não é imóvel e

estática como queriam os marxistas da II Internacional e nem como a pensava Croce: ela é “a

própria realidade em movimento”.

No conceito de bloco histórico Gramsci encontrou a possibilidade de captar a relação

entre estrutura e superestrutura como nexo dialético (SOARES, 2000, p.73). É preciso, para

formar um bloco histórico, que a estrutura e a superestrutura estejam ligadas organicamente

(PORTELLI, 1990, p.47). Trata-se de um conjunto complexo e contraditório, no qual “a

47 Vale apontar a advertência feita por Coutinho de que em Georges Sorel o conceito de bloco histórico se liga ao de “mito”, portanto, muito distinto do sentido adotado por Gramsci (GRAMSCI, 2006, p.482, nota 62). Sobre o sentido do “mito” soreliano, ver a própria definição que lhe dá Gramsci (1975.III, Q.13, p.1555-1556).

53

estrutura e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’” (GRAMSCI, 1975.II, Q.8,

p.1051). A sociedade (civil + política) em Gramsci é, então, vista como totalidade que deve

ser abordada em todos os seus níveis (GRUPPI, 2000, p.78).

Desse modo, quando Gramsci afirma não ser verdade “que a filosofia da práxis ‘separe’

a estrutura das superestruturas” e que, “ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das

mesmas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco”

(GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1300), está afirmando que a hegemonia deve envolver todos os

níveis da sociedade: a base econômica (estrutura), a política e a ideologia (superestruturas)

(GRUPPI, 2000, p.78).

Entendido desse modo, o bloco histórico se configura como categoria aplicável a

qualquer contexto, inclusive o burguês, o que implica dizer que a hegemonia é estabelecida

por uma classe, que consegue se mostrar fundamental durante todo um período histórico

(PORTELLI, 1990, p.74).

Outro aspecto a ser apontado trata do dado geográfico. Se um bloco histórico deve ser

compreendido como uma situação determinada em um período, a análise poderá se referir a

um local reduzido ou mais extenso:

Assim, a maior parte da análise gramscista do Risorgimento situa-se a nível [sic] da Itália, considerada como bloco histórico nacional; mas, para aprofundar essa análise, Gramsci estuda igualmente a evolução da Europa na mesma época, considerando aí o bloco histórico europeu (PORTELLI, 1990, p.74).48

Nesse sentido, a articulação entre o nacional e o internacional se constitui como ponto

importante já que, se a hegemonia de uma classe fundamental é a base da edificação do bloco

48 Numa carta de maio de 1932, Gramsci escreve: “Se uma história da Europa pode ser escrita como formação de um bloco histórico, ela não pode excluir a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, que são as premissas econômico-jurídicas do bloco histórico europeu, o momento da força e da luta” (GRAMSCI, 1947, p.227). Quanto ao Risorgimento, Gramsci o compreende como aspecto italiano de um desenvolvimento europeu mais geral, primeiro na época da Reforma, em seguida da Revolução Francesa e, por fim, do liberalismo (GRAMSCI, 1975.III, Q.19, p.1957-2078).

54

histórico, um bloco histórico localmente determinado pode ser a base da hegemonia de uma

classe também localmente determinada:

A formação do bloco histórico italiano sob a dominação da burguesia foi facilitada pela força hegemônica da burguesia sobre toda Europa, e pela prévia formação de um bloco histórico local estreitamente dirigido pela burguesia (PORTELLI, 1990, p.76).

Nessa altura, é importante considerar um aspecto. Se o bloco histórico pode ser

compreendido como o conjunto de elementos complexos e contraditórios que favorecem

determinada ideologia ou classe, ao se estabelecer um contexto revolucionário das classes

subalternas, ocorrerá, inevitavelmente, a reação das classes dominantes, quer seja dentro de

um bloco histórico quer seja na passagem para outro bloco histórico. Torna-se importante

considerar um conceito rico de Gramsci: a “revolução passiva”49.

Ao contrário de uma revolução popular, realizada a partir de baixo, uma revolução

passiva é feita “por cima”, ou seja, consiste numa reação conservadora à possibilidade de uma

transformação efetiva e radical proveniente “de baixo”. E para que isso ocorra de forma mais

efetiva, algumas demandas populares próprias de determinado contexto revolucionário são

satisfeitas, diminuindo a força popular. Ao falar da Itália, o que, em certo sentido pode ser

generalizado a outras revoluções passivas, Gramsci afirma que:

O fato histórico da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de ‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ‘restaurações progressistas’ ou ‘revoluções-restaurações’, ou, ainda, ‘revoluções passivas’ (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1324-1325).

São exemplos de revolução passiva o caso da reação européia à Revolução Francesa,

em que há a mescla de oposição às conseqüências mais radicais e introdução pelo alto de

49 Como em vários outros casos, Gramsci toma um termo de outro autor e lhe dá um significado original. Nesse caso, trata-se de uma expressão recolhida da obra do historiador italiano Vincenzo Cuoco (GRAMSCI, 1975.II. Q.10, p.1208;1324).

55

algumas conquista desta revolução (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1226-1229) e o caso do

fascismo na Itália, em que, segundo Gramsci:

Ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento “plano de produção”, isto é, teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p 1228)50.

Dissemos, anteriormente, que o resultado objetivo da “dialética dos distintos” de Croce

é, para Gramsci a legitimação de uma política conservadora, já que, na dialética croceana a

tese se prolonga, nunca sendo superada pela antítese (BIANCHI, 2007, p.44).

Se aplicarmos o mesmo esquema interpretativo ao tema da revolução passiva,

perceberemos que a “reação” conservadora das classes dominantes consiste em anular a força

da antítese (o movimento revolucionário), evitando-se a síntese de um novo bloco histórico.

Concluiremos, pois, com Gramsci que a revolução passiva é a

Expressão prática das necessidades da “tese” de se desenvolver integralmente, até o ponto de conseguir incorporar uma parte da própria antítese, para não se deixar “superar”, isto é, na oposição dialética somente a tese desenvolve, na realidade, todas as suas possibilidades de luta, até capturar os supostos representantes da antítese (GRAMSCI, 1975.III. Q.15, p.1768).

2.2.5 A releitura de Maquiavel

Tratando-se de política e Estado, Gramsci propõe, no Quaderno 13, uma releitura de

Maquiavel, tendo como perspectiva a necessidade de constituição, nos tempos em que vive, 50 Valeria aqui ao menos uma menção ao “Americanismo”, tema que não aprofundaremos, mas que foi trabalhado extensivamente por Gramsci no Quaderni 22, intitulado “Americanismo e Fordismo”. No início do referido quaderno, Gramsci propõe a interessante questão de se pensar o americanismo não apenas como modelo de acumulação, mas sim como ação de uma nação em franca expansão inserida numa “época” histórica de “revoluções passivas” (GRAMSCI, 1975.III. Q.22, p.2140). Tratar-se-ia, nesse caso, de uma universalização do conceito, aplicado não apenas a reações pontuais das classes dominantes de um país ou região, mas também como uma “época” de revolução passiva.

56

de um novo Estado, semelhante ao que Maquiavel propusera na Itália na passagem do século

XV ao XVI nas obras O Príncipe e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

Vale registrar, de antemão, que o Maquiavel de Gramsci é tido, acima de tudo, como

homem de seu tempo. E se é visto como “precursor da filosofia da práxis” (FROSINI, 2002),

estão consideradas as diferenças históricas. Vejamos a definição do próprio Gramsci:

Maquiavel escreveu livros de “ação política imediata”, não escreveu uma utopia em que se aspirasse a um Estado já constituído, com todas as suas funções e elementos constitutivos. Em sua elaboração [...] expressou uma concepção do mundo original, que também poderia ser chamada de “filosofia da práxis” ou “neo-humanismo”, na medida em que [...] opera e transforma a realidade (GRAMSCI, 1975.I, Q.5, p.657).

Nesse sentido, Maquiavel se distingue tanto dos utópicos antigos, de seu tempo, quanto

dos contemporâneos de Gramsci, já que seu “pensamento teórico e sua filosofia estão imersos

na concreta análise do presente” (FROSINI, 2002).

A apresentação que Gramsci faz do livro O Príncipe de Maquiavel começa com uma

caracterização reconhecida como clássica (KANOUSSI, 2003, p.140). Diz Gramsci: “O

caráter fundamental do Príncipe é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro ‘vivo’,

no qual a ideologia política e a ciência política fundem-se na forma dramática do ‘mito’”

(GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1555). No Príncipe, encontra-se a exemplificação histórica de

uma ideologia política que se apresenta “não como fria utopia nem como raciocínio

doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e

pulverizado para despertar e organizar sua vontade coletiva” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13,

p.1555)

O mito do Príncipe é a perspectiva do Estado (KANOUSSI, 2003, p.140), cuja primeira

tarefa é educar o povo, isto é, “criar um novo tipo ou nível de civilização” (GRAMSCI,

1975.III, Q.13, p.1570). Desse modo, Gramsci tenta destruir o uso reacionário que fazem de

Maquiavel tanto as culturas liberal e católica como a fascista e, desse modo, converte sua obra

57

de ciência política, no mito-Príncipe, em metáfora da política por excelência (KANOUSSI,

2003, 145).

O Príncipe aparece, então, como precursor da concepção de vontade geral, desafio que

se apresenta no início do século XX não mais em torno de uma pessoa, mas de um grupo, de

um coletivo:

O moderno príncipe, o mito-príncipe não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto, só pode ser um organismo, um elemento complexo de sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1558)51.

É nesse sentido que o partido político ganha importância estratégica na teoria política de

Gramsci, visto como organismo construído no desenvolvimento histórico, como “primeira

célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e

totais” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1558)52.

O partido político moderno se defronta com o desafio histórico de fundação de um novo

Estado, a mesma tarefa que Gramsci vê nos escritos maquiavelianos. Cabe realizar duas

tarefas primordiais para que se atinja o fim: conhecer as condições reais de desenvolvimento

de uma vontade coletiva nacional-popular53 e, articulado a isso, realizar uma análise histórica

da estrutura social do país em questão e as tentativas feitas através dos séculos para criar tal

vontade, com as razões de seus fracassos (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1559).

Gramsci vê a história pós-revolução francesa como uma constante luta entre forças

progressistas e reacionárias, de luta de constituição da vontade coletiva e a sua dissolução.

Nesse sentido, o retorno de Luis XVIII ao poder em 1815 e a conseqüente restauração

bourbônica na França é tido como fato histórico crucial: “Toda a história depois de 1815

51 Nesse particular, Coutinho propõe uma interessante aproximação da perspectiva da vontade coletiva de Gramsci com o conceito de “vontade geral” em Rousseau (2008, p.121-142). Num artigo recente, o autor se debruça demoradamente sobre o tema, propondo que nos Quaderni, Gramsci supera dialeticamente tanto o subjetivismo de Rousseau quanto o objetivismo de Hegel no tema da vontade coletiva (COUTINHO, 2009). 52 Segundo Gramsci, “o Príncipe [partido político] toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1561). 53 Trataremos sobre o “nacional-popular” no próximo ponto.

58

mostra o esforço das classes tradicionais para impedir a formação de uma vontade coletiva”

(GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1560).

Na constituição de uma vontade coletiva, o partido deverá se dedicar à questão da

reforma intelectual e moral, ou, dito de outra forma, de uma concepção de mundo. Antes,

porém, de tratar mais detalhadamente sobre o tema da “reforma intelectual e moral”, devemos

ressaltar o aspecto que, na leitura de Maquiavel feita por Gramsci aparece ainda como mais

importante que a metáfora do “moderno príncipe”: trata-se da criação e da conservação de

novos Estados, em outras palavras, a “grande política” (BIANCHI, 2007, p.47)54.

Maquiavel examina sobretudo as questões de grande política: criação de novos Estados, conservação e defesa de estruturas orgânicas em seu conjunto; questões de ditadura e de hegemonia em ampla escala, isto é, em toda a área estatal (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1564).

O tema que unifica a discussão sobre a interpretação histórica da obra de Maquiavel e a

apropriação e tradução de alguns conceitos para o âmbito do marxismo de Gramsci é, pois, a

criação e a conservação de novos Estados (BIANCHI, 2007, p.48).

Bianchi nos recorda (2007, p.48) uma alusão feita pelo autor dos Quaderni a Francesco

Guicciardini, contemporâneo de Maquiavel:

Afirma Guicciardini que para a vida de um Estado duas coisas são absolutamente necessárias: as armas e a religião. A fórmula de Guicciardini pode traduzir-se em várias outras fórmulas menos drásticas: força e consenso, coerção e persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil, política e moral (história ético-política de Croce), direito e liberdade, ordem e disciplina ou, com um juízo implícito de sabor libertário, violência e fraude (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.762-763).

Podemos dizer que a afirmação é comum a Guicciardini e a Maquiavel, já que aquele

comenta o texto maquiaveliano Discursos sobre a primeira Década de Tito Lívio (BIANCHI,

54 À “grande política” se contrapõem “as questões parciais e cotidianas” do exercício do poder, próprias da “pequena política” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1563-1564).

59

2007, p.48)55. Duas observações são importantes quanto à alusão dos dois autores ao binômio

armas-religião. Primeiramente, unifica-se “a condição do exercício do poder político (a

coerção, ‘as armas’) e a condição de legitimidade desse poder (a ‘religião’, ‘as leis’) criando

um nexo indissociável entre ambas”; e em segundo lugar “esta dupla fonte do poder político

se afirma, em seu caráter indissociável, como necessária em todas as formas de Estado”

(BIANCHI, 2007, p.48)56.

O Estado é constituído de elementos distintos, mas não separados ou, em outras

palavras, há uma relação em que cada um deles molda e reforça o outro sem que cheguem a se

anular (BIANCHI, 2007, p.49). A distinção entre “armas” e “religião” é chamada por Gramsci

de “dupla perspectiva” que se evidencia na metáfora do Centauro:

Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da ‘dupla perspectiva’ na ação política e na vida estatal. Vários são os graus através dos quais se pode apresentar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos. Mas eles podem se reduzir teoricamente a dois graus fundamentais correspondentes à natureza dúplice do Centauro maquiavélico, férica e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da ‘Igreja’ e do ‘Estado’), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1576)57.

O Centauro, metade homem, metade cavalo, aparece como imagem que unifica

consenso e força. Da mesma forma que no Centauro não pode existir o animal sem o homem,

no Estado também não pode existir força sem consenso. É necessário, contudo, considerar que

o consenso também não pode existir sem a força (BIANCHI, 2007, p.49), o que reforça a

necessidade de um tratamento sempre dialético à questão do Estado: “as duas naturezas do

55 Trata-se do texto no qual Maquiavel afirma que “a religião servia para comandar os exércitos e infundir ânimo na plebe, para manter os homens bons e fazer com que os culpados se envergonhem” e que “onde há religião facilmente se podem introduzir armas; e onde houver armas, mas não houver religião, esta com dificuldade pode ser introduzida” (MAQUIAVEL, 2006, p.50). 56 “Os principais fundamentos que devem ter todos os Estados, sejam novos, velhos ou mistos, são as boas leis e as boas armas” (MAQUIAVEL, 2009, p.131). 57 Gramsci se refere ao seguinte texto de Maquiavel: “Deveis, portanto, saber que são dois os gêneros de combate: com leis, outro com força. O primeiro é próprio do homem e o segundo dos animais. Mas porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo: portanto, a um príncipe é necessário saber usar bem o animal e o homem. Esta parte foi ensinada pelos escritores antigos aos príncipes secretamente, os quais escrevem como Aquiles, e muitos outros daqueles príncipes antigos foram alimentados pelo centauro Quíron, para que sob a sua disciplina os educasse [...]. Um príncipe tem de saber usar uma e outra natureza, e [...] uma sem a outra não é durável (MAQUIAVEL, 2009, p.177)

60

poder político, embora possuam tempos distintos, são coetâneas entre si” (BIANCHI, 2007,

p.50)58.

Desse modo, na leitura gramsciana, é reduzida a distância entre Marx e Maquiavel

(FROSINI, 2002)59, ainda que preservadas as diferenças históricas. De modo que a ciência

política de Maquiavel, no seu contexto, ofereça elementos elucidativos para o desafio atual

específico da filosofia da práxis, no que diz respeito à “grande política”, ou seja, a construção

de um “novo Estado”, a sociedade regulada.

Antes de tratar especificamente da sociedade regulada, cabe refletirmos, mais

detidamente, sobre um tema correlato, já mencionado várias vezes: a reforma intelectual e

moral proposta por Gramsci.

2.2.6 Reforma Intelectual e Moral – Senso comum e nova cultura

Como todos os conceitos da filosofia política de Gramsci, a chamada reforma intelectual

e moral não se constitui como categoria isolada. Ela se articula com a já referida revolução

permanente e com a mudança de contexto econômico-político:

Gramsci encara a hegemonia anti-capitalista pós-Lenine num Ocidente mais "avançado" já não como uma forma da revolução permanente, mas sim como uma sua "substituição". Por outras palavras, a “permanência” perdura, mas não a “revolução”, e a perdura sob a forma de uma reforma “intelectual e moral”, cujo conteúdo é a reforma econômica e social (PRESTIPINO, 2008).

Trata-se não mais de um “tempo dos golpes de surpresa”, como salientado por Engels na

Introdução às “Lutas de Classe na França”. Cabe, no contexto da sociedade civil amplamente

desenvolvida e politizada, construir um processo hegemônico de nova concepção de mundo:

58 Bianchi aprofunda, além do fato de serem coetâneas, também o aspecto da coextensão entre da força e do consenso, ou seja, se elas podem atingir com intensidades diversas os mesmos espaços da vida política (2007, p.50-55). 59 Frosini se refere ao parágrafo “Maquiavel e Marx”, no qual Gramsci afirma que “a inovação fundamental introduzida por Marx na Ciência política na comparação com Maquiavel é a demonstração que não existe uma ‘natureza humana’ fixa e imutável” (GRAMSCI, 1975.I, Q.4, p.430-431).

61

“a partir do momento em que existe um novo tipo de Estado, nasce [concretamente] o

problema de uma nova civilização” (GRAMSCI, 1975.I, Q.3, p.309).

É recorrente em Gramsci a analogia entre Reforma protestante e Renascimento. A

primeira tem um alcance popular e nacional; o segundo atinge apenas uma parte da

população. A Reforma é um “movimento de massa”, enquanto que o Renascimento

permaneceu “limitado a poucos grupos intelectuais” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1293)60.

A chamada “reforma intelectual e moral” seria, pois, uma espécie de síntese entre

Reforma (popular) e Renascimento (elite) ou, dito de outro modo, deveria ser nacional-

popular, termo que devemos analisar melhor.

Oriundo da reflexão sobre a cultura italiana, o nacional-popular (GRAMSCI,

1975.III,Q.21, p.2113-2120) é para Gramsci a literatura que satisfaz o gosto estético não só de

elites restritas, mas do maior número de leitores, operando uma mediação entre as exigências

de leitura mais qualificada e as demandas das camadas subalternas. Aplicado ao nível político,

o nacional-popular pode ser compreendido como o projeto que vai além dos interesses da

classe dominante, integrando os anseios das classes subalternas.

O nacional-popular é, portanto, o projeto político que torna a proposta das classes

populares hegemônica em toda a sociedade. Uma revolução esta fadada à falência, caso não

seja capaz de radicar-se na nação e de tornar-se nacional-popular (LOSURDO, 2006, p.32).

Desse modo, o importantíssimo tema da reforma intelectual e moral no esquema teórico

de Gramsci61, significa como ele mesmo diz, “criar o terreno para um novo desenvolvimento

60 Nesse ponto, é possível notar a influência do crítico literário italiano Francesco de Sanctis, autor que, para Gramsci, teria notado o “contraste” Reforma-Renascimento e que era “inimigo de todo movimento ou pensamento [de] caráter absolutista e privilegiado” (GRAMSCI, 1975.III, Q.23, p.2198). 61 Luciano Gruppi chega a afirmar que é esse o significado mais profundo da noção gramsciana de hegemonia: ela é “tal enquanto se traduz numa reforma intelectual e moral” (2000, p.72).

62

da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total

de civilização moderna” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1560)62.

O “novo tipo de Estado” em Gramsci é dialeticamente compreendido: está no horizonte

mais remoto (GRAMSCI, 1975.II, Q.7, p.882) e, ao mesmo tempo, é desafio atual, na

continuidade de acontecimentos que deram consistência à civilização burguesa (o

Renascimento, a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa com a conseqüente contra-

revolução de 1815). Portanto, o moderno príncipe deverá dar prosseguimento ao processo

histórico, vale dizer, não inventando uma cultura, mas elevando o nível intelectual e moral das

massas, papel esse da verdadeira filosofia de uma época (GRUPPI, 2000, p.78).

Nesse sentido, devemos ressaltar o elemento do senso comum. Para Gramsci, ele não se

constitui como um “inimigo a ser vencido”, devendo-se “instaurar com ele uma relação

dialética e maiêutica para que seja transformado e, ao mesmo tempo, se transforme, até a

conquista [...] de um ‘novo senso comum’, a que é necessário chegar no âmbito da luta pela

hegemonia” (LIGUORI, 2007, p.102).

O papel da filosofia da práxis é, pois, o de elaborar uma concepção nova, que parta do

senso comum, não para se manter presa a ele, mas para criticá-lo e depurá-lo, unificá-lo e

elevá-lo à visão crítica do mundo (GRUPPI, 2000, p.69). Gramsci tem diante de si “não só a

investigação cognoscitiva do real”, mas, sobretudo, a “tarefa de elaborar uma linha de ação

política que modifique as relações de força, reabra o confronto hegemônico e, portanto,

transforme o senso comum” (LIGUORI, 2007, p.107).

A filosofia da práxis é aquela que parte das contradições materiais da vida prática,

“levando em conta de todo modo o senso comum, as demandas que expressa, o nível de

62 Devemos afirmar, no entanto, a grande diferença entre Gramsci e Comte. Enquanto o primeiro acentua o aspecto político e dialético da reforma, o segundo destaca o aspecto moral, já que, para ele, a “progressão filosófica” que se precisa operar “primeiro nas idéias, para passar em seguida aos costumes e, por fim, às instituições [...] deve desenvolver-se cada vez mais por toda a parte, visto a necessidade crescente em que se acham agora colocados [os] governos ocidentais de manter, a grande custo, a ordem material no meio da desordem intelectual e moral” (COMTE, s/d, p.86, grifos nossos).

63

consciência das massas que indica” de modo a permitir “às classes subalternas uma nova

consciência de si” (LIGUORI, 2007, p.122)63.

Esclarecedora se mostra a contraposição feita por Gramsci entre a posição católica –

tomada como modelo de controle e de pensamento dogmático e a filosofia da práxis:

A posição da filosofia da práxis é antitética a esta posição católica: a filosofia da práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1384-1385).

A filosofia da práxis tem essa capacidade porque expressa os interesses, as

reivindicações e o papel histórico das classes subalternas “de assumir uma função dirigente e,

portanto, de construir não só novas relações políticas e estatais, mas também uma nova

cultura” (GRUPPI, 2000, p.72).

Vejamos como esta é definida por Gramsci:

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”, significa também, e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio filosófico”, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1377-1378)64.

São estes, então, os dois pontos fundamentais da reflexão gramsciana sobre o contexto

contemporâneo italiano – que, vale dizer, tem como referência a obra de ciência política de

Maquiavel: a “formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno

63 Devemos ressalvar, no entanto, que, como lembra Liguori, “em Gramsci não desaparece a convicção do papel que, de qualquer modo, cabe ao sujeito (coletivo) e à vontade (coletiva), mas ele apreende mais do que nunca o caráter inercial, passivo e subalterno de que está impregnado o senso comum”; ele é um ponto de partida, sim, mas que deve ser “mais eliminado do que conservado” (2007, p.123). 64 Vale mencionar aqui, ainda que não seja o foco de nossa pesquisa, a interessante abordagem de Gramsci sobre a filosofia, estendendo o adjetivo filósofo para além da restrição acadêmica e conferindo-lhe um caráter eminentemente prático, já que, para ele, “todos são filósofos” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1375).

64

Príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, a reforma intelectual

e moral” (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1561).

Cabe agora passar a um ponto pertinente à filosofia política depois de Marx: a extinção

do Estado. Percebemos em Gramsci um esforço evidente em discutir a construção de um novo

Estado (nova cultura, nova concepção de mundo), para o que faz um uso original de

Maquiavel. No entanto, vale perguntarmos: como ele aborda o espinhoso tema da “extinção

do Estado”? É o que discutiremos a seguir.

2.3 Releitura da teoria marxista da “extinção” do Estado

Um dos temas cruciais do marxismo clássico se refere à chamada “extinção do Estado”.

O raciocínio simples, partindo da concepção de Estado “restrito” de Marx é que, sendo ele

fruto da divisão de classes, uma vez tendo-se superado estas, aquele deixaria de existir.

Para entender o modo como o autor dos Quaderni entende a “extinção” do Estado,

devemos articular a reflexão com o tema da sociedade regulada. Antes, porém, uma

observação de cunho biográfico que tem grande relevância no plano teórico.

Gramsci é um autor e dirigente político que viveu “a tragédia da derrota do movimento

operário e da vitória do fascismo”, o que o obrigou a romper com as esperanças da rápida e

definitiva transição revolucionária para, ao invés disso, aprofundar a “análise do caráter

complexo e contraditório e da longa duração do processo de transformação política e social”

(LOSURDO, 2006, p.155).

Nas palavras do próprio Gramsci, a passagem do capitalismo à “sociedade regulada”, ou

seja, o comunismo, “durará provavelmente séculos” (GRAMSCI, 1975.II, Q.7, p.882).

Losurdo destaca uma ligação direta da percepção gramsciana com o processo de

distanciamento feito por Marx da teoria da revolução do Manifesto de 1848, situado em um

65

texto de particular importância a Gramsci: o Prefácio à obra Para a Crítica da Economia

Política de 1859 (GRAMSCI, 1975.III, Q.13, p.1579).

Eis o trecho que Gramsci tem como principal referência:

Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em via de aparecer (MARX, 2003, p.6).

A idéia de que “uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam

todas as forças produtivas que ela é capaz de conter” e a questão das “condições materiais”

soam como falência do modelo de revolução de 1848.

Isto posto, fica claro que a “extinção” do Estado seguirá em Gramsci um referencial

coerente com o restante de sua abordagem, ou seja, terá uma dinâmica mais processual que de

ruptura. Estamos aqui, por assim dizer, no fio da navalha: a linha tênue que distingue a

concepção gramsciana de comunismo (sociedade regulada) e a concepção liberal ou social-

democrata das conquistas graduais dentro da democracia burguesa. Vejamos.

Para Losurdo, Gramsci é o autor marxista que mais crítico se apresenta, no século XX,

em relação às tendências anarquistas e escatológicas (2006, p.215). O motivo é simples: fazer

coincidir o fim do domínio burguês com o fim do Estado enquanto tal é uma forma de

mecanicismo.

Dessa forma, não é de espantar que, “entre oscilações e contradições”, Gramsci tenha se

esforçado para redimensionar, reinterpretar ou colocar em discussão a tese da extinção do

Estado (LOSURDO, 2006, p. 216). Retomando Marx, Engels e Lênin, o autor dos Quaderni

empreende a busca da solução para o problema crucial do comunismo do início do século XX:

encontrar uma forma de organização da sociedade que, superando o antagonismo de classe,

elimine o aparato de repressão.

66

“O elemento Estado-coerção pode ser imaginado exaurindo-se enquanto se afirmam os

elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade

civil)” (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.764). Dessa afirmação e de outra em que o escritor do

cárcere considera que “na realidade efetiva, sociedade civil e Estado se identificam” (1975.III,

Q.13, p.1590) cabe concluir que a chamada “absorção da sociedade política na sociedade

civil” (GRAMSCI, 1975.I. Q.5, p.662) não nos autoriza a pensar na ausência de qualquer

forma de Estado, mas sim em outra forma de Estado, próprio da sociedade regulada.

Qualquer previsão de “como seria” tal Estado nos faria esbarrar no utopismo ou

idealismo. E, como lembra Germino, no conceito de sociedade regulada não há nada de

utópico (2003, p.134). E o que se poderia dizer, afinal, de tal sociedade? A essência, por

assim dizer, da sociedade regulada é a igualdade econômica (GERMINO, 2003, p.134). É o

próprio Gramsci que afirma não poder “existir igualdade política completa e perfeita sem

igualdade econômica” e o aspecto que caracteriza fundamentalmente os utópicos, para

Gramsci, é o de considerarem “possível introduzir a igualdade econômica com leis arbitrárias,

com um ato de vontade livre etc.” (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.693).

Cabe salientar que a sociedade “regulada” não pode ser confundida com o anarquismo,

com a ausência de quaisquer normas. A regulação se refere à superação da violência própria

de uma sociedade fundada no domínio de classe. Pode-se aqui fazer referência a Hegel: da

mesma forma que o Estado hegeliano se apresenta como superação do estado de natureza, a

sociedade regulada de Gramsci se apresenta como superação do Estado capitalista

(LOSURDO, 2006, p.218).

Resta ainda dizer que a sociedade regulada exige uma consciência popular elevada à

criticidade. Longe está Gramsci, ao propor a assim chamada “extinção do Estado”, entendida

nos moldes da sociedade regulada, de afirmar a rebeldia inconsistente das classes subalternas.

Para o autor dos Quaderni, “as frases de ‘rebeldismo’, de ‘subversivismo’, de ‘antiestatismo’

67

primitivo e elementar” são manifestações de “apoliticismo” (1975.III, Q.21, p.2108-2109) já

que a “escassa compreensão do Estado significa escassa consciência de classe” (1975.I, Q.3,

p.326).

Apenas uma compreensão ingênua do Estado e do poder pode vislumbrar no

subversivismo e no antiestatismo enquanto tal, um momento de emancipação (LOSURDO,

2006, p.225). Devemos, nesse caso, mencionar os intelectuais.

O processo de desenvolvimento da consciência das classes subalternas assume um

caráter complexo nos Quaderni e a pergunta fundamental de Gramsci pode ser assim

formulada:

De que modo dar ou dar de novo voz às classes subalternas, de que modo evitar que sejam ideológica e politicamente decapitadas nos momentos de mudança histórica, por causa do abandono dos intelectuais que a representaram e que pretenderam representá-las? (LOSURDO, 2006, p.267).

Para Gramsci, a formação de intelectuais acontece segundo processos históricos

concretos e, na sociedade capitalista, a tendência foi a de se formarem “camadas que,

tradicionalmente, ‘produzem’ intelectuais” e tais camadas “são as mesmas que, com

freqüência, especializaram-se na ‘poupança’, isto é, a pequena e média burguesia fundiária e

alguns estratos da pequena e média burguesia urbana” (1975.III, Q.12, p.1518).

O desafio do proletariado é, pois, o de produzir intelectuais “orgânicos”, ligados a ele

por múltiplos fios. Tais intelectuais, formados nas classes subalternas, atuam distintamente

dos intelectuais orgânicos das classes dominantes. Os interesses de uns e de outros serão de

mudança ou conservação, a depender das classes que representam (LOSURDO, 2006,

p.270)65

65 Os intelectuais orgânicos das classes subalternas ocupam papel importante no momento catártico: “Pode-se empregar a expressão ‘catarse’ para indicar a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens [...] A estrutura, de força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas” (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1244).

68

Para Semeraro, em Gramsci, a proposta da

Construção da hegemonia, considerada na ótica emancipatória das classes subalternas, conduz à ocupação dos espaços da sociedade civil e da sociedade política, levando à radicalização da democracia e à extinção do Estado capitalista (1999, p.91)

Há, pois, uma seqüência progressiva na reflexão gramsciana de distinção-identificação

entre sociedade civil e sociedade regulada (1999, p.93)66:

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo [...], da confusão entre sociedade civil e sociedade política [...]. Numa doutrina do Estado que conceba este como tendencialmente capaz de esgotamento e dissolução na sociedade regulada, o tema é fundamental (GRAMSCI, 1975.II. Q.6, p.763-764).

Tal situação, de sociedade regulada, implicará na liberdade e na participação, numa

realidade socializada e universalizada. Para alcançar tal “maturidade humana e social”, será

necessário manter alguma forma exterior de Estado (SEMERARO, 1999, p.93)67. A

instauração da sociedade regulada, portanto, não significa a eliminação de qualquer estrutura

política e social, mas a criação de “uma mais forte e complexa” (GRAMSCI, 1975.II. Q.9,

p.1111). Novamente, Gramsci se afasta da posição anarquista.

Podemos concluir, portanto, que, ao propor o reino da liberdade, Gramsci não quer

afirmar uma forma de liberalismo; do mesmo modo, ao propor a sociedade regulada, não

66 Segundo Coutinho, a nomenclatura “sociedade regulada” se deve à censura do regime fascista e, para melhor entendê-la, devemos adotá-la como sinônimo de “sociedade comunista sem classes” (2007, p.136). 67 A “extinção” do Estado, em muitos comentadores de Gramsci, aparece como tema polêmico, como no diálogo travado por Rita Médici (2007) com Buci-Glucksmann. Em seu texto, Médici se mostra reticente à aceitação sem mais da teoria da “extinção” do Estado. Semeraro tem uma posição mais dialética. Inicialmente, afirma que “a construção da hegemonia [...] conduz à ocupação dos espaços da sociedade civil e da sociedade política, levando à radicalização da democracia e à extinção do Estado” (1999, p.91), mas, logo em seguida, adverte que “quando se fala da dissolução do Estado [...] o objetivo é a superação do Estado nacional capitalista, portador de guerras e divisões; não a eliminação das instituições necessárias à convivência humana (1999, p.95-96). Coutinho também aborda o tema da “extinção” do Estado na perspectiva na “reabsorção da sociedade política na sociedade civil” (2007, p.135-143). Para o autor, ganha destaque na “sociedade (auto-)regulada” proposta por Gramsci o tema da divisão entre governantes e governados, cuja necessidade deve desaparecer (2007, p.138). Desse modo, a posição realista de Gramsci é, segundo Coutinho, a de que aquilo que se deve ser extinto não é propriamente o Estado, mas sim os mecanismos do Estado-coerção, da sociedade política, não devendo ser isso entendido como sociedade sem governo (COUTINHO, 2007, p.141). Esta posição, resguardado a dimensão dialética, parece-nos coerente com a perspectiva de Gramsci. Vale lembrar, no entanto, a ressalva feita por Bianchi ao argumento de Coutinho, segundo a qual, não se pode incorrer no risco de entender diminuição da coerção e aumento da liberdade como fórmula algébrica, além do que, perder-se-ia a dialética da unidade-distinção que caracteriza a formulação gramsciana (BIANCHI, 2007, p.46).

69

pretende encampar a idéia (utópica) de uma sociedade sem governo. Ela será livre, por ser

auto-regulada. É o que está presente na metáfora do Estado como “guarda-noturno”:

Na doutrina do Estado � sociedade regulada, de uma fase em que Estado será igual a Governo, e Estado se identificará com sociedade civil, dever-se-á passar a uma fase de Estado–guarda-noturno, isto é, de uma organização coercitiva em contínuo incremento e que, portanto, reduzirá gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas. E isso não pode fazer pensar num novo “liberalismo”, embora esteja por se dar o início de uma era de liberdade orgânica (GRAMSCI, 1975.II. Q.6, p.763-764).

* * *

Embora possamos considerar como evidente a filiação de Gramsci na teoria política

marxista, há, sem dúvida, o risco de se lê-lo como um teórico das superestruturas, distante de

Marx e, conseqüentemente, num viés liberal. Consideramos importante, nesse caso, frisar o já

referido embate de Gramsci com as correntes neo-hegelianas, em especial Croce, bem como a

crítica à concepção mecanicista da II e III Internacional Comunista, que encontra em

Bukharin seu principal expoente. É o que pretendemos acenar na terceira parte de nosso

trabalho.

70

CAPÍTULO III

Gramsci e a filosofia política de seu tempo

Ao longo dos Quaderni Gramsci estabelece um diálogo crítico com diversos autores.

Além daqueles que, por assim dizer, formam seu pressuposto teórico (Hegel, Marx, Engels,

Lênin e mesmo Trotski), estão autores contemporâneos com Antonio Labriola, Alessandro

Levi, Rodolfo Mondolfo, Achile Loria, Adelchi Baratono, Alfredo Poggi e Giovanni

Gentile68. Destacaremos, em nosso trabalho, dois autores: por agora, Benedetto Croce, na

crítica ao neo-idealismo, e, mais adiante, Nicolai Bukharin, na crítica ao marxismo

economicista.

São estas, exatamente, as duas correntes de pensamento com as quais Gramsci trava o

maior debate em seus Quaderni.69 Não se trata, portanto, de algum conflito com Bukharin ou

com Croce, mas sim, do que eles representam: o risco de deturpação da filosofia da práxis.

Esse risco se mostra, de modo especial, na relação entre teoria e prática, cuja unidade se

mostra como “um devir histórico e não um fato mecânico deduzido da ação das massas”

(BIANCHI, 2003, 186). Assim se expressa o próprio Gramsci:

Todavia, nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, o aprofundamento do conceito de unidade entre a teoria e a prática permanece ainda numa fase inicial: subsistem ainda resíduos de mecanicismo, já que se fala da teoria como “complemento” e “acessório” da prática, da teoria com serva da prática (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1386).

Além de Bukharin, no combate ao marxismo mecanicista, Gramsci tem em Benedetto

Croce outro interlocutor fundamental. A ele é dedicado o Quaderno 10. Podemos dizer que o

propósito de Gramsci é o de “acertar as contas” com o neo-hegelianismo croceano, fazendo-

68 De modo elucidativo, as idéias deste último, sintetizada em sua proposta de “filosofia do ato puro”, são chamadas por Gramsci de “idealismo atual” (GRAMSCI, 1975.II. Q.11, p.1370; ver também a observação de Nelson Coutinho em GRAMSCI, 2006, p.458, nota 8). 69 SOARES, 200, p.63-64.

71

lhe o mesmo que Marx e Engels fizeram, no seu tempo, com a filosofia de Hegel (SOARES,

2000, p.63)70.

Tal movimento teórico implicou na tentativa de libertar o conceito de historia “ético-

política” das cadeias ideológicas burguesas, vinculando-o às exigências apresentadas pelo

desenvolvimento histórico da luta de classes (SOARES, 2000, p.67).

É nesse sentido que ganha ainda mais importância o conceito de hegemonia. Ele

corresponde ao momento da história ético-política de Croce, contudo,

Enquanto o conceito croceano tem o objetivo de aniquilar o marxismo e manter as massas sob a direção burguesa, o conceito de hegemonia visa a desenvolver a capacidade analítica da filosofia marxiana e fornecer às classes subalternas elementos teóricos que lhes propiciem autonomia cultural para exercerem com competência a “arte de governar”, a política (SOARES, 2000, p.68)

Se, por um lado, a perspectiva economicista de Bukharin privilegia o objetivismo, o

neo-hegelianismo de Croce privilegia o subjetivismo, vendo apenas o momento ético-político

(SOARES, 2000, p.68). É que, como mostra Gramsci, a ausência de um enfoque dialético,

converte a distinção entre estrutura e superestrutura em uma separação concreta na realidade

(SOARES, 2000, p.69), o que torna possível dizer que uma determina a outra.

A solução do problema está, como vimos, no enfoque gramsciano da unidade entre

sociedade civil e sociedade política. Se é verdade que Gramsci leva em consideração as

análises de Hegel sobre o Estado, também é verdade que é com os horizontes sócio-políticos

de Marx que o faz (SEMERARO, 1999, p.130).

Ao contrário de Hegel, em Gramsci a sociedade civil não é etapa transitória para se

chegar ao Estado, como “processo contínuo e intrínseco da população” (HEGEL, 2003,

p.208), mas sim “um extenso e complexo espaço da moderna sociedade onde se travam os

70 A importância de Croce é apontada pelo próprio Gramsci, para quem o neo-hegeliano era “o maior pensador da Europa no momento” (GRAMSCI, 1975.IV, Q.10, p.2867) e o “herdeiro da filosofia clássica alemã” (GRAMSCI, 1975.II. Q.10, p.1234).

72

enfrentamentos ideológicos, políticos e culturais que definem a hegemonia dum grupo

dirigente sobre toda a sociedade” (SEMERARO, 1999, p.131).

O entendimento da sociedade civil em Hegel como o espaço de busca dos interesses

privados dos indivíduos e, no máximo, como transição ao Estado caracteriza a Filosofia do

Direito como obra de restauração (SEMERARO, 1999, p.134). Nessa perspectiva, os sujeitos

ativos da história apontados pela filosofia da práxis não passam, no caso de Hegel, de uma

plebe, marcada pela preguiça e dissipação, à qual resta alguma assistência da classe rica

(HEGEL, 2003, p.209).

No entanto, devemos considerar que o conhecimento que Gramsci possuía da obra de

Hegel nem sempre era tão consistente quanto o que tinha de Croce (BIANCHI, 2007, p.42;

SEMERARO, 1999, p.135)71. É a partir de Croce, portanto, uma espécie de novo Hegel, que

Gramsci se aproxima do hegelianismo para retirar do marxismo os traços liberais que vinha

ganhando (SEMERARO, 1999, p.136). No embate com Benedetto Croce a distância entre

Gramsci e o (neo)hegelianismo ganha contornos mais definidos.

3.1 A filosofia especulativa de Croce

Em Croce, a filosofia da práxis havia regressado ao nível da especulação e, portanto,

cabia a Gramsci resgatar toda a sua força original: “como a filosofia da práxis foi a tradução

do hegelianismo em linguagem historicista, assim a filosofia de Croce é, em forma muito

ampla, uma retradução em linguagem especulativa do historicismo realístico da filosofia da

práxis” (GRAMSCI, 1975.II. Q.10, p.1233 e 1271).

71Nem sempre as referências de Gramsci ao pensamento de Hegel são claras e precisas. “Essa fragilidade encontra explicação não apenas nas restritas condições de estudo no cárcere, mas também no fato de que seus conhecimentos da produção teórica de Hegel não eram tão consistentes como os que possuía de B. Croce” (SEMERARO, 1999, p.135).

73

Embora deva a Croce muitos de seus conceitos e categorias (SEMERARO, 1999,

p.142), Gramsci se distancia da abordagem do neo-hegeliano. Croce enrijeceu e absolutizou o

particular ou concreto, tornando-o um tipo de universal filosófico (BARATTA, 2004, p.110).

Desse modo, a história se torna o inefável, indiferente à experiência real. Distintamente,

Gramsci resgata o valor do empírico e do histórico.

Enquanto Croce toma o ethos coletivo como preexistente na história e cultura dos

povos, Gramsci reflete em termos de construção concreta, mediante a organização das classes

subalternas que lutam por suas liberdades e sua emancipação (SEMERARO, 199, p.142).

Croce acusava o marxismo de tomar a estrutura econômica como determinante da

sociedade, como uma espécie de “Deus oculto” (SEMERARO, 1999, p.142). Opondo-se a

isso, acentuava o aspecto ético-político da história.

Mas Gramsci observava que a interpretação ético-política da história, como vinha conduzida por Croce, se tornava instrumento de hegemonia ainda mais forte nas mãos do fascismo e das classes dominantes que agora podiam se impor sem recorrer à violência aberta, utilizando as formas demagógicas da persuasão (SEMERARO, 199, p.142).

Para Gramsci, “a filosofia da práxis criticará como indébita e arbitrária a redução da

história à pura história ético-política, mas não a excluirá. A oposição ente o crocismo e a

filosofia da práxis deve ser procurada no caráter especulativo do crocismo” (1975.II. Q.10,

p.1224).

Croce também ignora o fato de que o marxismo seja uma filosofia dinâmica e que, no

início do século XX, apresente-se distinto do de Marx de 1848. É o que enfatiza Gramsci

numa de suas cartas, de maio de 1932, mostrando que “o momento da ‘hegemonia’ ou da

direção cultural era sistematicamente revalorizado, em oposição às concepções mecanicistas e

fatalistas do economicismo (GRAMSCI, 1947, p.224).

O ético-político para Gramsci não tem um sentido vago e universalista, mas representa

a emergência da racionalidade política das novas forças sociais (SEMERARO, 1999, p.143):

74

A história ético-política, enquanto prescinde do conceito de bloco histórico no qual o conteúdo econômico social e a forma ético-política se identificam concretamente na reconstrução dos vários períodos históricos, não é nada mais que uma apresentação polêmica de um teorema mais ou menos interessante, mas não é história (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1237-1238)72.

A história, tida por Gramsci como horizonte das possibilidades de emergência das

classes subalternas na luta pela nova civilização, é totalmente desconsiderada por Croce.

Enquanto este propõe o conteúdo ético como imperativo da natureza ou uma decorrência de

uma história abstrata, Gramsci toma a chamada “reforma intelectual e moral” como expressão

criativa e concreta, não isenta de contradições, que surge das exigências de elevação das

classes subalternas à direção política da sociedade (SEMERARO, 1999, p.143).

O mesmo se aplica ao entendimento dos intelectuais. Estes são, para Croce, parte seleta,

construtores de ideologias para o governo de elites dominantes (GRAMSCI, 1975.II, Q.10,

p.1212); para Gramsci, eles são os responsáveis por “sentir as paixões elementares do povo,

compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação

histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história”, isto é, “com uma

concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada” (GRAMSCI, 1975.II,

Q.11, p.1505).

Croce descreve uma realidade que não condiz como efetivo movimento histórico

caracterizado por tensões, conflitos e perspectivas catastróficas: sua “realidade” é estabelecida

sobre um equilíbrio já definido (SEMERARO, 1999, p.146). A dialética, nesse sentido, torna-

se um processo de evolução reformística, a tal ponto que Gramsci chega a se perguntar sobre

Croce (também sobre Gentile): “será que eles não tornaram Hegel mais abstrato”?

(GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1317).

72 “O próprio conceito de história mais idealista e indefinido em Croce é tratado de maneira diferente em Gramsci, que o associa sempre às lutas e às contradições dos movimentos históricos reais” (SEMERARO, 199, p.143).

75

O resultado prático da perspectiva croceana é a omissão do momento da luta quando as

forças se contrapõem e um sistema ético-político se dissolve, enquanto outro se afirma a ferro

e fogo (GRAMSCI, 1975.II, Q.10, p.1227)73.

A tendência de Croce era, portanto, a de mostrar a expansão cultural ou ético-política

como sendo um fenômeno pacífico. O resultado é que, ao evitar tratar dos aspectos

conflitivos, das ações revolucionárias das massas populares e das contradições de classe,

Croce não percebeu a importância das “paixões das massas” (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.779-

781), o modo como elas poderiam se desenvolver; dessa forma, acabou por se tornar

partidário de políticas reformistas, exatamente quando na Itália, medidas vinham “pelo alto”

em doses ministradas pelas classes dirigentes (SEMERARO, 199, p.148).

Gramsci é, então, o antípoda de Croce e conseqüentemente do neo-idealismo. Mas

também combate as correntes deterministas do marxismo. Passemos, pois, à sua crítica a

Bukharin.

3.2 O marxismo mecanicista de Bukharin

Bukharin representa a perspectiva determinista desenvolvida pela II e III Internacional

comunista, segundo a qual a passagem ao comunismo deveria seguir uma lógica pré-definida,

colocando o problema como uma pesquisa de leis, de linhas constantes, regulares e uniformes,

de modo a garantir a previsibilidade dos acontecimentos históricos (GRAMSCI, 1975.II,

Q.11, p.1403)74.

O caráter mecanicista do marxismo contemporâneo a Gramsci é compreendido por ele

na dialética da história. Para o autor dos Quaderni, o elemento fatalista e mecânico presente

73 Vale dizer, uma vez mais, a importância do Prefácio à Crítica da Economia Política, aqui implícito. 74 Bukharin reduz, assim como já o fizera Achille Loria, as forças produtivas aos instrumentos técnicos (BIANCHI, 2003, p.185). Daí o caráter mecanicista de sua abordagem.

76

na evolução da filosofia da práxis tem razão de ser nas suas determinações históricas, ou seja,

no embate com a hegemonia burguesa que, no caso da Itália e Alemanha, ganharam contornos

totalitários sob o nazi-fascismo:

Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc.”. A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc. própria das religiões tradicionais (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1388).

A primeira crítica de Gramsci a Nicolai Bukharin, a partir do seu Ensaio Popular75, se

deve ao fato de o militante russo não ter tratado devidamente o senso comum. Gramsci

recorre a Marx, no qual se encontram “referências ao senso comum e à solidez de suas

crenças” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1400). Gramsci se refere aqui, com toda probabilidade,

aos seguintes trechos76:

É certo que a arma da crítica não pode substitui a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas (MARX, 2005, p.151, grifo nosso) O segredo da expansão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos [...] somente pode ser decifrado quando o conceito da igualdade humana já possui a consciência de uma convicção popular (MARX, 1985, p.62, grifo nosso)77

Para Gramsci, nestas afirmações de Marx está presente a afirmação da importância do

senso comum exatamente como ponto de partida para a constituição de uma nova cultura e de

uma nova filosofia (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1400). A filosofia da práxis, em Gramsci, é,

acima de tudo a crítica ao senso comum (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1383), que, como

vimos, aparece como ponto de partida a ser criticado e superado por uma nova concepção de

mundo.

75 Trata-se da obra A teoria do materialismo histórico. Manual popular de sociologia marxista, publicada em Moscou, em 1921. 76 Apoiamo-nos aqui na posição de Coutinho (GRAMSCI, 2006, p.461, nota 20). 77 Concordando com Coutinho, na observação feita na mesma nota, utilizamos aqui o termo “convicção”, no lugar de “crença” ou “preconceito”.

77

Uma segunda crítica feita ao Ensaio de Bukharin refere-se ao seu caráter pouco

dialético. Para Gramsci, ao militante russo escapam os conceitos de movimento histórico, de

devir e da própria dialética (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1401-1402).

Bukharin incide, segundo Gramsci, no dogmatismo e, por isso, numa forma ingênua de

metafísica:

A filosofia do Ensaio Popular (que lhe é implícita) pode ser chamada de um aristotelismo positivista, de uma adaptação da lógica formal aos métodos das ciências físicas naturais. A lei da causalidade, a pesquisa da regularidade, da normalidade, da uniformidade, substituem a dialética histórica (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1402-1403).

Em detrimento da história contraditória e complexa, Bukharin idolatra “o método dos

grandes números ou da estatística, tomado de empréstimo das ciências naturais” (GRAMSCI,

1975.II, Q.7, p.856). Tal como a filosofia especulativa de Croce, o cientificismo positivista de

Bukharin se afasta do terreno da experiência, dos fatos reais (BARATTA, 2004, p.110).

O militante russo também é criticado por Gramsci quanto ao modo como trata as

filosofias e os filósofos do passado, tidos como insignificantes.

Julgar todo o passado filosófico como um delírio e uma loucura não é apenas um erro de anti-historicismo, já que contém a anacrônica pretensão de que no passado se devesse pensar como hoje, mas é um verdadeiro resíduo de metafísica, já que supõe um pensamento dogmático válido em todos os tempos e em todos os países, através do qual se julga todo o passado (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1417)78

Como combate ao mecanicismo de Bukharin, Gramsci lança mão do referido Prefácio à

obra “Crítica da Economia Política” de Marx.. Gramsci se mostra admirado pelo fato de

Bukharin não ter sequer mencionado, em seu Ensaio, o Prefácio, “o que é bastante estranho,

tratando-se da fonte autêntica mais importante para uma reconstrução da filosofia da práxis”

(GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1441, grifo nosso).

Segundo Gramsci, expressões presentes no Prefácio como “grau de desenvolvimento

das forças materiais” ou “modo de produção da vida material”, embora importantes, não

78 Neste mesmo parágrafo, Gramsci apresenta a distância entre o Ensaio de Bukharin, no qual o passado é desvalorizado, e o Manifesto de Marx e Engels que toma as conquistas burguesas como pré-condições para o avanço do comunismo.

78

podem ser reduzidas à mera “metamorfose do instrumento técnico” (GRAMSCI, 1975.II,

Q.11, p.1440-1441). Trata-se, sem dúvida, de uma crítica de Gramsci ao reducionismo,

próprio da corrente que hegemonizou a Segunda Internacional (BIANCHI, 2003, p.185).

Além disso, e talvez mais importante, as duas proposições fundamentais do Prefácio –

segundo as quais, 1) a humanidade só se coloca tarefas que pode resolver e 2) uma formação

social não desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que ela

ainda comporta e novas relações de produção não tomam seu lugar antes que as condições

materiais destas novas relações tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade –

deveriam ter sido tomadas por Bukharin em toda a sua importância, já que “apenas nesse

terreno é possível eliminar qualquer mecanicismo e qualquer traço de superstição

‘milagrosa’” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1422).

Desse modo, a crítica gramsciana a Bukharin representa um esforço de recolocar a luta

histórica dos trabalhadores na perspectiva do embate ideológico, tão importante quanto a o

econômico (BIANCHI, 2003, p.186). A filosofia da práxis, em linguagem militar, apresenta-

se como a arma mais poderosa de combate, já que ela “contém todos os elementos

fundamentais para construir uma concepção de mundo total e integral” (GRAMSCI, 1975.II.

Q.11, p.1434). Se, na luta política e militar, pode ser conveniente a tática de atacar os pontos

de menor resistência para ganhar condições de combate, na frente ideológica, a derrota de

auxiliares e seguidores menores é basicamente insignificante; nesta última, é preciso lutar

contra os mais eminentes (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1423).

Cabe à filosofia da práxis, pois, uma tarefa unitária e não parcial, já que ela é chamada a

“vivificar uma organização prática integral da sociedade, ou seja, converter-se em uma total,

integral civilização” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1434). É por isso que se pode dizer do

embate entre o autor dos Quaderni e o autor do Ensaio Popular que não se trata de mera

crítica formal ou metodológica, já que a observação de Gramsci “ultrapassa uma crítica

79

intrafilosófica a Bukharin, para atingir a questão da hegemonia na construção do socialismo”

(BUCI-GLUKSMANN, 1980, p.271). Segundo a mesma autora, a crítica de Gramsci a

Bukharin “se entrelaça a um projeto radical de refundação da filosofia do marxismo” (1980,

p.273)79.

Tal refundação ou reconstrução, como resume Bianchi (2003, p.185-186), organiza-se

mediante a crítica e a superação a três fraturas no interior do marxismo do início do século

XX: a fratura entre filosofia, história e política; entre materialismo histórico e materialismo

dialético; e a fratura entre estrutura e superestrutura80.

É na perspectiva de superação dessas fraturas que Gramsci contribui para a reconstrução

de uma teoria marxista adogmática e antidogmática (BIANCHI, 2003, p.187).

* * *

Do exposto até então, podemos afirmar com segurança que Gramsci não se inscreve na

fileira do reformismo. Se assim o fosse, ele proporia não a mudança das condições materiais

de existência – pedra de toque da teoria e militância marxistas –, mas sim uma reforma do

pensamento e do comportamento humanos. Teríamos um Gramsci idealista, voltado para as

questões superestruturais apenas. Tampouco se identifica com o marxismo determinista do

início do século XX.

Vimos que a sociedade civil de Gramsci, como para Marx, é o verdadeiro palco da

história (MARX & ENGELS, 2008, p.33), tomada agora de forma dialeticamente articulada à

79 Nesse sentido, podemos dizer, em linguagem metafórica, que a dialética, retomada por Gramsci, é novamente “alargada”, depois do “estreitamento” feito por Marx, em razão de seu foco na crítica da sociedade burguesa. Em Hegel, a aplicação da dialética na política é “larga” porque se refere a um Estado abstrato; em Marx ela é “estreitada” por seu foco na sociedade civil como “mundo infernal das relações burguesas” (SEMERARO, 1999, p.131). O que o determinismo mecânico de Bukharin faz é “estreitar” ainda mais o marxismo, tornando-o “filosofia ingênua da massa” (GRAMSCI, 1975.II, Q.11, p.1388). Ressalte-se, uma vez mais, que Gramsci realiza um “alargamento” distinto do de Hegel e de Croce. 80 Observe-se que, no texto de Bianchi, não só Gramsci empreende tal crítica a Bukharin, mas também George Lukács. Sobre a contraposição de Lukács e Gramsci ao marxismo da Segunda Internacional ver o estudo de Oldrini (1999). Sobre a crítica a Croce e Bukharin, em específico, ver Gruppi (2000, p.101-116).

80

sociedade política. No entanto, há ainda o ponto complicador do Quaderno 6 no qual o

escritor do cárcere faz uma associação direta entre sua concepção de sociedade civil e a de

Hegel. Haveria ainda argumento que justificasse o “enquadramento” de Gramsci como

(neo)hegeliano?

Voltamos, assim, ao problema de nossa pesquisa, ao qual passamos a nos dedicar

diretamente.

3.3 Gramsci como marxista e leitor crítico de Hegel

Perguntávamos, na introdução, se o parágrafo 24 do Quaderno 6 deveria nos levar a

compreender Gramsci como hegeliano. Retomemos o texto:

É preciso distinguir a sociedade civil tal como é entendida por Hegel e no sentido em que freqüentemente emprega-se nestas notas (ou seja, no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre a sociedade inteira, como conteúdo ético do Estado) do sentido que lhe dão os católicos, para os quais a sociedade civil é, pelo contrario, a sociedade política ou o Estado em confronto com a sociedade familiar e a Igreja (GRAMSCI, 1975.II, Q.6, p.703).

A partir do exposto sobre a crítica gramsciana a Croce, podemos afirmar, de antemão,

que a “leitura” feita pelo autor dos Quaderni da obra de Hegel tem os seus limites e, acima de

tudo, passa por um filtro croceano.

Associada a esta questão, uma segunda ressalva é importante. Em função das condições

de elaboração dos Quaderni, do conhecimento em certa medida restrito das obras hegelianas

e, acima de tudo, pelo objetivo principal de recolocar o marxismo nos “trilhos” da dialética, é

possível dizer que a leitura feita por Gramsci de Hegel é “em muitos pontos forçada”, o que

“exigiria alguns reparos” (LIGUORI, 2003, p.179)81.

81 O mesmo pensamento tem Bobbio, o principal responsável por colocar em destaque a ligação entre Gramsci e Hegel no tema da sociedade civil (BIANCHI, 2007, p.42). Para Bobbio, Gramsci faz uma “interpretação um pouco forçada, ou pelo menos unilateral, do pensamento hegeliano” (1982, p.34).

81

Desse modo, os Quaderni não propõem tanto uma crítica aos textos de Hegel – como

Marx fez em seu tempo e como Gramsci faz com Croce –, mas sim uma “leitura” de sua

importância histórica na filosofia e na política.

Losurdo resume bem esse ponto, ao afirmar que Gramsci, “ao contrapor Hegel ao

Syllabus, o lê como consecução e o ponto mais alto da modernidade, caracterizada pela

conquista da liberdade de consciência e dos direitos do homem que o documento pontifício”,

numa posição reacionária, “tentara condenar” (2006, p.240)

O hegelianismo, inicialmente, não é tomado por Gramsci tanto em seu aspecto idealista,

o que é evidentemente um ponto negativo – como se verá no embate com Croce –, mas sim

naquilo que contribui para a filosofia da práxis, oferecendo-lhe a valorização da história e da

dialética.

Desse modo, após a abordagem da concepção de Estado “ampliado”, julgamos correto

afirmar que a citação do Quaderno 6 tomada como problemática, por associar Gramsci a

Hegel, ganha um novo sentido. Duas são as razões: em primeiro lugar, pelo fato de que

qualquer referência a Hegel feita por Gramsci não deve ser tomada isoladamente, bem como a

nenhum dos diversos autores com quem dialoga. A característica dialética do pensamento de

Gramsci, bem como as condições em que foram escritos seus textos no cárcere, obriga-nos a

tomar alguns pressupostos gerais antes de analisar uma particularidade das notas ou mesmo

um tema. Estes pressupostos, grosso modo, podem ser resumidos em três:

• Compromisso político e aprofundamento teórico do autor que garante uma

passagem gradativa de uma visão influenciada pelo neo-idealismo na juventude

para uma concepção marxista original na maturidade82;

82 Aquilo que Losurdo (2006) bem chamou de passagem do idealismo ao comunismo crítico.

82

• Visão aberta e arejada quanto à construção de uma sociedade nova, parâmetro a

partir do qual julga tanto a derrota do comunismo italiano ao fascismo quanto os

limites crescentes do estatismo soviético;

• Noção de história e de política de longa duração que o impede de estabelecer

cortes bruscos entre uma época e outra, entre uma “escola” de pensamento e

outra.

Voltando, pois, ao parágrafo 24 do Quaderno 6 que, aliás, trata-se de um texto B,

segundo a Edição Crítica dos Quaderni, portanto um texto que não teve revisão83, devemos

lê-lo dentro de um contexto geral dos escritos carcerários, o que não nos autorizará de

maneira alguma a identificar seu autor como hegeliano.

Em segundo lugar, um dado um tanto trivial, mas importante: a nosso ver, a referida

citação não tem como foco o tema da sociedade civil em Hegel, mas sim o confronto da

concepção de Gramsci com a católica. Nesse sentido, a alusão a Hegel serve duplamente para

negar a visão dos católicos: de um lado, remete à oposição de Hegel ao conservadorismo

pontifício, como vimos ao tratar do Syllabus e, de outro, fortalece a concepção de sociedade

civil gramsciana como conteúdo ético do Estado “ampliado” em oposição à concepção

católico-medieval que entendia a Igreja como sociedade civil.

Colocar-se estrategicamente ao lado de Hegel contra a posição reacionária católica

implica, assim, em reconhecer a mudança do contexto histórico que apresenta como elemento

novo a disputa de hegemonias na sociedade (civil e política).

Se considerarmos o exposto sobre Croce e Bukharin, podemos dizer que, para um

resgate dos conceitos gramscianos, “é necessário não só reconstruir com rigor filológico e

83 Na Edizione critica dos Quaderni del Carcere, Valentino Gerratana dividiu os textos de Gramsci em A, B e C. Os “textos A” são aqueles cancelados e depois retomados com maiores ou menores alterações como “textos C”. Os “textos B” são de redação única. O referido parágrafo 24 do Quaderno 6 é um “texto B” (GRAMSCI, 2007, p.7-8, nota prévia de Carlos N. Coutinho).

83

precisão teórica a rica e complexa trama categorial elaborada nos Cadernos, mas também

investigar a obra dos seus principais interlocutores” (LIGUORI, 2007, p.54).

É preciso, então, recordar que “Gramsci é Gramsci exatamente porque supera

dialeticamente os conceitos dos seus ‘autores’ e constrói uma originalíssima noção de

sociedade civil, que surge como o eixo central de uma nova teoria marxista do Estado”

(LIGUORI, 2007, p.54).

Mas, diferentemente do modo liberal de refletir, que “vai sempre de teoria em teoria,

sem que nunca apareça o referente ideal delas”, Gramsci funda sua reflexão no contexto

concreto do entre-Guerras que apresenta a nova relação entre economia e política da qual

bolchevismo, fascismo, keynesianismo são todos exemplos (LIGUORI, 2007, p.48).

No entanto, cabe ainda a pergunta: qual a relação, explícita no parágrafo 24 do

Quaderno 6, entre Hegel e Gramsci quando define sociedade civil como “hegemonia política

e cultural de um grupo social sobre a sociedade inteira, como conteúdo ético do Estado”?

Trata-se de mais uma “apropriação” que Gramsci faz de um conceito idealista para

reinterpretá-lo. Por isso, toma o “conteúdo ético do Estado”, não numa visão teleológica

abstrata – um ideal, como aparece na filosofia do direito de Hegel –, mas sim como

característica própria do Estado de dar forma à ação dos homens, pois ele é “educador”

(GRAMSCI, 1975.II, Q.8, p.937), isto é, ele “tende precisamente a criar um novo tipo ou

nível de civilização” (GRAMSCI, 1975.II, Q.8, p.978).

Para Gramsci,

Todo estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes (GRAMSCI, 1975.II, Q.8, p.1049).

O Estado ético em Hegel, do qual a sociedade civil é um estágio preliminar, refere-se à

passagem do que seria o nível da necessidade (sociedade civil) para a liberdade (Estado) e

84

exige, segundo Hegel, que os indivíduos atomizados orientem sua vontade para um fim geral

(SOARES, 2000, p.77). É, pois, a vontade racional universal, para além da vontade dos

indivíduos, que constitui a substância ética do Estado.

Nesse sentido, podemos falar, já em Hegel, de uma dimensão estatal educativa, quando

trata das organizações políticas e sindicais como iniciativa “privada” do Estado (GRAMSCI,

1975.I, Q.1, p.56).

Embora vaga e primitiva, essa “doutrina” hegeliana aponta para a atividade que os

intelectuais devem desenvolver na sociedade civil, para educar e pedir o consentimento dos

governados, utilizando-se das associações políticas e sindicais que, no tempo de Hegel, eram

formadas por clubes e conspirações secretas, deixadas à iniciativa da classe dirigente

(GRAMSCI, 1975.I, Q.1, p.56-57).

No entanto, embora se possa afirmar que as associações da vida civil apontadas por

Hegel quando trata do aspecto corporativo seriam uma espécie de embriões daquilo que

Gramsci conheceu por sociedade civil (SOARES, 2000, p.39), há que se distinguir as duas

perspectivas.

Ao abordar o tema do “Estado ético” em relação a Hegel, Gramsci assim se expressa:

A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia podia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou universalidade desta classe podia ser afirmada: todo o gênero humano será burguês. Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral (GRAMSCI, 1975.II, Q.8, p.1049-1050).

A expressão “todo gênero humano será burguês” significaria, portanto, que todos

seriam educados para se elevar à condição de classe dirigente, à condição de “Estado”

(SOARES, 2000, p.96). Nesse caráter educativo Gramsci vê o meio pelo qual propaga a

ideologia hegemônica. Numa tal interpretação, o “Estado ético refere-se à atividade educativa

85

e moral do Estado laico que, superando a fase econômico-corporativa extrema, busca

governar com o consentimento organizado dos governados” (SOARES, 2000, p.97).

A especificidade da sociedade civil reside justamente no fato de que, ao invés de usar a

força, busca a adesão “voluntária” das massas (SOARES, 2000, p.97). Tal característica é

complemento da teoria do “Estado restrito”, no qual há predominância da sociedade política,

da força.

O esforço de Gramsci consiste, pois, em mostrar que o Estado moderno se amplia

quando se organiza uma esfera nova do exercício do poder, a sociedade civil, cujo específico

está no consenso e não na força. O surgimento desta nova esfera, contudo, não suprime a

instância repressiva, coercitiva, a sociedade política.

Desse modo, a citação do parágrafo 24 do Quaderno 6 mostra mais um caso em que

Gramsci toma o hegelianismo naquilo que tem de positivo e o reinterpreta à luz da filosofia da

práxis e do contexto histórico de seu tempo.

É assim que, longe de ser uma ruptura com a reflexão empregada por Marx e Engels, o

estudo sobre o Estado – e por ele, da própria teoria da revolução – feito por Gramsci se

apresenta como um desenvolvimento, uma “superação dialética” (COUTINHO, 2008, p.68).

Superação e não negação, já que o próprio Gramsci se reconhece na perspectiva de

continuidade de Marx, no qual “está contido in nuce o aspecto ético-político da política ou a

teoria da hegemonia e do consenso, além do aspecto da força e da economia” (GRAMSCI,

1975.II, p.1315).

Não é, pois, Gramsci um idealista, mas um autêntico marxista de seu tempo. Desse

modo, resta-nos abaixo sinalizar, a partir do exemplo da leitura de Norberto Bobbio sobre a

obra de Gramsci, o risco de interpretações equivocadas e distorcidas sobre o autor dos

Quaderni.

86

3.4 Equívocos na leitura de Gramsci – o exemplo de Norberto Bobbio

Em 1969, foi publicado o ensaio A sociedade civil em Gramsci, de Norberto Bobbio,

autor que se notabilizou por ser um dos primeiros a salientar o conceito de sociedade civil

como central na teoria gramsciana (SCHLESENER, 2002, p.151).

A importância de Bobbio é grande não só pela biografia docente, jurista e política, mas

por ter influenciado em muito a interpretação dos textos gramscianos84. Passemos a uma

consideração breve de sua obra, na qual apresenta um esboço do conceito de sociedade civil

dos jusnaturalistas a Hegel, deste a Marx e deste a Gramsci que, segundo Bobbio, “introduz

uma profunda inovação em relação a toda a tradição marxista” (1982, p.32).

Após realizar o resgate da teoria do Estado pré-hegeliana e a crítica de Marx/Engels,

Bobbio apresenta a perspectiva de Gramsci. A inovação gramsciana em relação a Marx é,

segundo Bobbio, exatamente esta: a sociedade civil não pertence ao momento da estrutura,

mas da superestrutura. Reside aí todo o sistema conceitual gramsciano (1982, p.32).

Assim, se em Marx sociedade civil abarca todo o conjunto das relações materiais e todo

o conjunto da vida comercial e industrial, em Gramsci sociedade civil abarca todo o conjunto

das relações ideológico-espiritual e intelectual.

Se em Hegel o Estado é o momento ativo, em Marx/Gramsci, em certo sentido

invertendo Hegel, a sociedade civil é o momento ativo, o verdadeiro “teatro da história”. No

entanto, há que se ressalvar que, em Gramsci, o momento ativo é superestrutural.

Dito isto, pode-se afirmar que “a reavaliação da sociedade civil não é o que liga Gramsci

a Marx, mas sim o que o distingue dele”; ou, de outra forma, “Gramsci deriva seu conceito

próprio de sociedade civil não de Marx, mas de Hegel” (BOBBIO, 1982, p.34).

84 Segundo Buci-Glucksmann, deve-se, fundamentalmente, à interpretação de Norberto Bobbio o entendimento da teoria gramsciana do Estado como “deslocamento exclusivamente em direção ao campo superestrutural” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p.127).

87

Surge, então, a dificuldade: Gramsci deriva sua tese de sociedade civil como parte da

superestrutura, a partir de Hegel; porém, Marx também se valerá da sociedade civil de Hegel

como momento estrutural. A resposta para tal impasse está no fato de que Gramsci não tem

em mente o sistema de necessidades (as relações econômicas), de onde partiu Marx, e sim as

instituições que as regulamentam. A sociedade civil que Gramsci tem em mente, quando se

refere a Hegel, não é a do momento inicial, no qual explodem as contradições que o Estado irá

dominar, mas a do momento final em que, através da organização e da regulamentação dos

diversos interesses (corporações), são postas as bases para a passagem ao Estado (BOBBIO,

1982, p.35-36).

Bobbio, em seguida, passa ao estudo mais apurado da concepção gramsciana de

sociedade civil. No entanto, cremos ser já suficiente o que em linhas gerais expusemos da

proposta de Bobbio. Cabe pois, fazer algumas observações.

O texto de Bobbio é rico, preciso e bem construído. Sua argumentação, como ele mesmo

sustentou, é uma tentativa de organização da obra de Gramsci, pouco linear, em razão das

condições de produção dos Quaderni.

Ressaltamos, do texto, três elementos, que nos parecem interessantes. Primeiramente, a

importante contextualização de Gramsci na teoria política do Estado. Ao fazer o caminho

histórico desde Hobbes, passando por Hegel e chegando a Gramsci, Bobbio mostra bem

como, após o ápice da teoria do Estado em Hegel e a conseguinte crítica de Marx/Engels à

sociedade burguesa, dá-se uma “nova história” em torno do estudo sobre a relação entre

Estado e sociedade. Assim, a teoria do Estado de Gramsci pertence a esta nova história,

segundo a qual

o Estado não é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um instrumento; é o representante não de interesses universais, mas particulares; não é uma entidade superposta à sociedade subjacente, mas é condicionado por essa e, portanto, a esse subordinado; não é uma instituição permanente, mas transitória, destinada a desaparecer com a transformação da sociedade que lhe é subjacente (Bobbio, p. 23).

88

Um segundo ponto trata da reação crítica feita a Bobbio, quando do lançamento do seu

livro, em relação à sua interpretação sobre o marxismo de Gramsci. Bobbio mesmo, na

Introdução (p.7-19) e na “Réplica” (p.55-60) apresenta suas argumentações quanto à hipótese

de que, ao sublinhar o conceito de sociedade civil, teria “invertido Gramsci com relação a

Marx e colocado o pensamento de Gramsci fora da tradição marxista” (1982, p.56).

Bobbio sustenta, mais de uma vez, que tal crítica é infundada85 e é importante no

desenvolvimento dos estudos gramscianos a afirmação de que “a sociedade civil, em Gramsci,

não pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura” (1982, p.32).

Mas o aspecto que se mostra realmente mais interessante a destacar, e este seria nosso

terceiro ponto, refere-se a algo mais sutil no interior da argumentação de Bobbio e que

autores contemporâneos apontaram como problemático. Trata-se do seguinte: embora seja

correta a definição da sociedade civil em Gramsci como um momento superestrutural (ao lado

do seu par-conceitual dialético sociedade política), “inferir daí que há uma primazia do

político sobre o econômico, da superestrutura sobre a estrutura por parte de Gramsci é um

equívoco” (RAMOS, 2005, p.94). Bobbio se equivoca ao supor que, pelo nexo observado

entre Hegel e Gramsci, este “teria atribuído à sociedade civil (e, portanto, à superestrutura) o

lugar ativo a ela atribuído por Marx” (BIANCHI, 2007, p.42).

A suposta transformação efetuada por Gramsci deslocaria da “infra-estrutura” para a

“superestrutura a centralidade:

Assim, para Bobbio Gramsci era, sobretudo, o “teórico das superestruturas”, no sentido de que o momento ético-político tinha no seu sistema teórico um inédito lugar fundador em relação a Marx e ao marxismo. De tal modo, Gramsci era de fato assimilado à tradição liberal (LIGUORI, 2007, p.40).

Parece-nos correta a observação de Ramos:

85 “Fique bem claro que [...] não pretendo absolutamente negar o marxismo de Gramsci [...] (BOBBIO, 1982, p.34).

89

O que ocorre é um equívoco por parte de Bobbio, na medida em que este supõe que, por Marx considerar a sociedade civil como o fator ontologicamente primário na explicação da história, Gramsci também o faça, retirando assim da infra-estrutura sua centralidade ontológica (2005, p.94).

A interpretação de Bobbio leva os autores que comungam com ele a aceitar a primazia

do político sobre o econômico e esse nos parece ser o ponto mais crítico. De fato, tal posição

desarticula “a relação que está em Gramsci, entre sociedade civil, Estado, economia,

hegemonia e revolução” (MONTAÑO, p.130)86.

Destaca-se também a concepção pouco dialética de Bobbio, para quem “a estrutura e a

superestrutura parecem determinar uma a outra (só que para Marx a estrutura determina a

superestrutura e em Gramsci, o contrário)” (LIGUORI, 2006, p.8). Do modo como Bobbio

toma o texto de Gramsci é necessário pressupor uma leitura “mecanicista” da relação

estrutura-superestrutura, na qual a determinação de um dos dois termos se torna imediata do

outro nível de realidade (LIGUORI, 2007, p.40).

No entanto, como vimos, os elementos estruturais e superestruturais não são concebidos

em Gramsci de modo autônomo, como quer Bobbio, e sim na unidade (LIGUORI, 2006, p.8).

O aspecto da dicotomia é sem dúvida a grande contribuição de Bobbio para uma confusão na

interpretação de Gramsci (BIANCHI, 2007, p.40). Na leitura bobbiana, parece “não haver

mais momentos ao mesmo tempo de unidade e de autonomia, e ação recíproca entre os

diversos níveis da realidade, próprios de toda concepção dialética, tal como é a concepção de

Gramsci” (LIGUORI, 2007, p.40).

É preciso dizer, pois, com a firmeza de Liguori:

Gramsci se situa fortemente em terreno marxista. Não substitui a economia pela política, simplesmente afirma com vigor o nexo dialético e de ação recíproca entre os dois níveis da realidade, pesquisando em profundidade o nível “superestrutural”, mas a partir da lição fundamental de Marx (2007, p.14).

86 Em sua obra, Montaño mostra como uma leitura “forçada” do texto gramsciano leva autores a grandes equívocos, inclusive na atual confusão entre sociedade civil e o chamado “terceiro setor” (2002, p.120-134).

90

Fruto de uma visão dicotômica, inspirada majoritariamente em Bobbio, foi a absorção

de uma “sociedade civil” gramsciana com traços tocquevillianos, ou seja, a “sociedade civil”

passou a significar um conjunto de associações situadas fora da esfera estatal (BIANCHI,

2007, p.41).

Ademais, Bobbio propõe uma aproximação entre Gramsci e Hegel que o desfigura, de

tal modo que nos faz identificá-lo como um reconvertido ao idealismo (1982, p.42). No

entanto, toda a crítica ao (neo)hegelianismo, via Croce, que apresentamos, bem como o estudo

do parágrafo 24 do Quaderno 6 nos leva a descordar em absoluto de Bobbio.

Longe de negar as descobertas essenciais de Marx, Gramsci “as enriquece, amplia e

completa no quadro de uma aceitação plena do método do materialismo histórico, interpretado

à luz das novidades próprias da realidade que tem diante de si” (LIGUORI, 2007, p.41).

Por fim, cabe apontar a crítica de Nelson Coutinho a Bobbio. Esse último ponto nos

parece importante por nos remeter, uma vez mais, ao nosso problema de pesquisa.

Coutinho está de acordo com a opinião de que a leitura de Bobbio conduz a um

enquadramento de Gramsci na perspectiva idealista, por colocar a superestrutura e não a

estrutura como determinante (COUTINHO, 2007, p.122). A continuidade da argumentação,

no entanto, leva Coutinho a afirmar certo distanciamento de Gramsci em relação a Marx, por

compreender que a questão da sociedade civil gramsciana se refere ao problema do Estado e

não ao vínculo recíproco entre estrutura e superestrutura (2007, p.122). Desse modo, ao

cunhar a expressão “sociedade civil” para designar os organismos “privados”, Gramsci teria

se afastado de Marx e se aproximado de Hegel (COUTINHO, 2007, p.125-126).

Rebatendo esta opinião, Soares afirma que “as reflexões sobre o conceito de sociedade

civil não nos levam a concordar que o mesmo esteja mais próximo do de Hegel do que do de

Marx, como diz Bobbio e sugere Coutinho” (2000, p.109). Não fica claro neste último o modo

pelo qual Gramsci realiza, por mediação de Hegel a ampliação da teoria marxiana do Estado.

91

Soares afirma se tratar do movimento inverso: “foram as próprias determinações do fenômeno

estatal, apreendidas por Marx, que levaram Gramsci até Hegel” (2000, p.110).

Nesse sentido, vale retomar uma observação de Nelson Coutinho, de cunho filológico,

ao tratar das distinções entre sociedade civil (bürgerliche Gesellshaft) em Marx e Gramsci. O

autor indica uma observação de Valentino Gerratana, um dos principais expoentes dos leitores

de Gramsci, segundo o qual, nos exercícios de tradução feitos no cárcere, Gramsci traduz a

expressão marxiana “bürgeriliche Gesellschaft” não como “sociedade civil”, mas sim com a

expressão literal “sociedade burguesa” (GRAMSCI, 1975.II, Dai Quaderni di Traduzione nº7,

p.2358, nota b). O fato é apresentado como um afastamento de Gramsci da terminologia

marxiana (COUTINHO, 2007, p.126).

Segundo Soares, a indicação de Gerratana “mostra [não] um afastamento do pensamento

de Gramsci em relação ao de Marx [...] mas [...] uma aproximação consciente do primeiro em

relação ao segundo” (SOARES, 2000, p.110). Para a autora, Gramsci estaria mostrando que

em Hegel a sociedade civil é concebida como “sociedade burguesa”, ou seja, o projeto

civilizatório burguês é posto como universalizante (2000, p.110).

Bem menos complicada parece a Liguori a questão da bürgeriliche Gesellschaft. Após

refletir sobre a polêmica em torno do tema, o autor toma sociedade civil como o termo mais

apropriado nos estudos sobre Gramsci para tratar da esfera constituinte do “Estado ampliado”

junto com a sociedade política (LIGUORI, 2007, p.41-43).

De qualquer forma, o que nos interessa mais é a contribuição de Gramsci para a filosofia

política ao conferir um sentido novo a termos como “Estado” e “sociedade civil”: eles são

enriquecidos em função da observação arguta do autor dos Quaderni sobre a realidade

histórica italiana e internacional.

92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa proposta neste trabalho foi a de aprofundar o modo pelo qual Gramsci contribui

no estudo sobre o aparato estatal, na superação dialética das teorias do Estado formuladas por

Marx e Engels. Para isso, propusemos, no primeiro capítulo, estabelecer a plataforma de

discussão, os pressupostos teóricos de Gramsci que estão, justamente, em Hegel e Marx.

No segundo capítulo, vimos como Gramsci empreendeu um resgate da dialética na

filosofia política. A continuidade de Marx e Engels se dá na atenção às mudanças havidas na

sociedade desde 1848 até o início do século XX. O quadro categorial que analisamos, mostrou

a originalidade de Gramsci na atualização da filosofia da práxis.

No terceiro capítulo, debruçamo-nos, novamente sobre o problema de nossa pesquisa,

que era exatamente o de responder à questão se Gramsci seria ou não um autêntico marxista

ou, dito de outro modo, até que ponto ele teria se afastado de Marx pela aproximação a Hegel.

O confronto de Gramsci com o neo-idealismo de Croce e o determinismo de Bukharin

evidenciou sua perspectiva crítica, não obstante as leituras equivocadas de sua obra, como no

exemplo de Norberto Bobbio.

Nesse sentido, gostaríamos de dar uma última palavra sobre a relação de Gramsci com

aqueles aos quais ele chama de “fundadores da filosofia da práxis”. Cremos ser importante

afirmar que Gramsci não inventa a “atualização” do conceito de Estado marxista, uma vez que

este já se alterava, como vimos, na obra tardia de Marx e no último Engels. Gramsci, mais do

que o Manifesto do Partido Comunista de 1848, cuja proposta é a abolição do Estado, está

próximo da Crítica ao Programa de Ghota de 1875, em que Marx, já de forma distinta,

afirma que “a liberdade consiste em converter o Estado de órgão que está sobreposto à

sociedade num órgão inteiramente subordinado a ela” (MARX & ENGELS, vol.2, s/d, p.220).

93

Em outras palavras, trata-se da sociedade regulada, da “absorção da sociedade política na

sociedade civil” (GRAMSCI, 1975.I. Q.5, p.662)

Do mesmo modo, ao observar a experiência da Comuna de Paris, Marx já havia

concluído que não bastava à classe operária apropriar-se da máquina estatal, uma vez que “a

dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão

social” (MARX & ENGELS, vol.2, s/d, p.83).

Gramsci se coloca, pois, na continuidade de Marx e, se retoma Hegel, é para superá-lo

dialeticamente, de tal modo que pode afirmar, na síntese da relação entre idealismo e filosofia

da práxis, uma

Época histórica inaugurada intelectualmente por Marx e que durará provavelmente séculos, quer dizer, até o desaparecimento da sociedade política e a instauração da sociedade regulada [onde será possível ver] a concepção da necessidade “superada” pela concepção de liberdade (GRAMSCI, 1975.II. Q.7, p.882, grifos nossos).

A “sociedade regulada” ou “auto-regulada” (SEMERARO, 1999, p.98) torna-se o

horizonte de todo o processo político, não sendo outra coisa senão a democracia radical, o

autogoverno efetivo da sociedade pelos seus próprios componentes, o “Estado sem Estado”, a

utopia de homens realmente livres, iguais, racionais e morais (GRAMSCI, 1975.II. Q.6,

p.764).

No âmbito da tradição marxista, pode-se dizer que Gramsci foi singular na crítica ao

mecanicismo e na recusa a qualquer forma de messianismo, a ponto de ser alçado, atualmente,

por vários autores, à dignidade de “clássico” (LOSURDO, 2006, p.285).

Essa definição acerta se pretende evidenciar o fato de que a lição dos Cadernos do Cárcere e, em parte, dos escritos juvenis ultrapassa as fronteiras do movimento comunista (e da própria esquerda): categorias como as de “hegemonia”, “sociedade civil”, “bloco histórico”, “revolução passiva” são imprescindíveis para quem queira compreender adequadamente os mecanismos do poder e a dialética história; estamos na presença de uma obra que enriqueceu e reinterpretou o léxico, reformulou a gramática e a sintaxe do discurso político e histórico (LOSURDO, 2006, p.285-286).

94

Sinalizamos, em certa altura do texto, para a relação simbólica e real entre o Manifesto e

os Quaderni. No entanto, é necessário afirmar veementemente que a segunda obra é

impensável sem a primeira, como nos lembra Liguori:

A tendência recente de transformar Gramsci em um teórico da democracia (como princípio político diferente e, segundo alguns, alternativo ao socialismo) – um autor, portanto, não comprometido em lutar contra o domínio da forma-mercadoria, mas em superar ou negar esta luta – não tem fundamento nos textos gramscianos. Pode-se [até] dizer – se se acredita nisso – que a teoria gramsciana não é mais adequada ao mundo contemporâneo, [mas] não que Gramsci tenha pensado e escrito coisas que na realidade não pensou nem disse (2007, p.146).

Desse modo, concluímos que a reflexão de Gramsci presente nos Quaderni não

representa uma adoção do hegelianismo para o desenvolvimento de seus conceitos:

diferentemente, o que ocorre é a retomada crítica de Hegel mediada por Marx, isto é, pela

filosofia da práxis. Assim, Gramsci desenvolve a teoria marxiana do Estado, enriquecida e

ampliada pela articulação dialética entre sociedade civil e sociedade política.

95

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